Conflitos distributivos

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A sociedade brasileira vem vivendo décadas de baixo crescimento econômico, com grandes dificuldades de atrair investimentos produtivos, que poderiam proporcionar novas oportunidades de geração de empregos e a melhora das condições sociais, além da diminuição das desigualdades e poderiam contribuir para a redução das disparidades sociais e amainar os conflitos distributivos que assolam a sociedade.

Neste cenário, o assunto do momento da sociedade e da mídia corporativa é a taxa de juros da economia brasileira, uma das maiores do mundo, com impactos significativos para a atividade econômica, inviabilizando o investimento produtivo e estimulando as aplicações financeiros e garantindo ganhos substanciais para os rentistas, aumentando seus rendimentos e abarrotando os lucros e dividendos, com isenções tributárias e alegrando uma orla de endinheirados e, ao mesmo tempo, aumentando o conflito distributivo.

Ao falarmos sobre as taxas de juros, estamos nos referindo a Selic, Serviço Especial de Liquidação e Custódia, definida pelo Banco Central e que impacta fortemente sobre as atividades econômicas, as aplicações financeiras e as estruturas produtivas, além de definirmos a geração de empregos, a renda dos trabalhadores, o endividamento dos agentes econômicos e contribuindo para a definirmos os horizontes da economia nacional.

No patamar elevado da taxa de juros definida pela Autoridade Monetária, estamos caminhando rapidamente a uma forte recessão. Conjunturalmente, percebemos que os estímulos fiscais do governo anterior perderam força, os investimentos produtivos estão sendo reduzidos, as taxas de juros elevadas estão desestimulando o crescimento econômico e, em contrapartida, as aplicações financeiras estão ganhando espaço, aumentando os ganhos dos poupadores e rentistas, inviabilizando os projetos econômicos e postergando a recuperação dos setores produtivos.

O debate está acalorado, de um lado os defensores da Autoridade Monetária acreditam que só com taxas elevadas de juros devem reduzir os preços e conter o dinamismo inflacionário. De outro lado, os críticos acreditam que as taxas de juros devem jogar a economia nacional numa recessão, piorando as contas públicas e seus impactos sobre as atividades são elevadas, gerando mais desemprego, queda acelerada da renda e maior endividamento das famílias, travando uma perspectiva de retomada do crescimento econômico.

Ao falarmos sobre o custo do capital no Brasil, precisamos destacar que temos juros insanos pouco vistos em outras nações, estamos convivendo, a muitas décadas, com juros de cheque especial em mais de 300% ao ano, taxas de juros de cartão de crédito em mais de 400%, empréstimos pessoais com taxas proibitivas, garantindo ganhos substanciais para os bancos e financeiras, aumentando o poder do mercado financeiro, capturando o Banco Central e defendendo seus interesses em detrimento da população.

Com taxas de juros neste patamar, estamos naturalizando uma degradação econômica que persiste desde a redemocratização, que contribuíram para a estagnação econômica do país e para o incremento das desigualdades, fazendo com que o Brasil seja visto como uma das economias mais desiguais do mundo, inviabilizando investimentos produtivos e alavancando o rentismo, levando variados setores industriais para trocar suas atividades produtivas tradicionais por negócios financeiros, abrindo instituições bancárias, garantindo ganhos estrondosos, aumentando seus ganhos imediatos e contribuindo para uma degradação econômica e piorando as condições sociais, com incremento do desemprego, reduzindo a renda agregada, aumentando a vulnerabilidade social e os conflitos políticos.

Neste momento de recuperação econômica precisamos rediscutir questões estratégicas para a sociedade, repensar os spreads bancários, taxar grandes fortunas, rever isenções fiscais e tributárias indiscriminadas, repensar privatizações sem transparências, reduzir as taxas de juros que servem apenas para engordar rentistas e financistas. Sem políticas consistentes, urgentes e corajosas continuaremos nesta degradação social.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Brasileira Contemporânea, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 22/02/2023.

Convergências

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Vivemos momentos de grandes incertezas e volatilidades, com impactos generalizados para toda a sociedade brasileira, vivemos momentos de medos, preocupações e fortes desagregações sociais, instabilidades econômicas e grandes conflitos políticos, sem convergências e sem rumo para construirmos uma estratégia consistente para a reestruturação da economia nacional. Sem rumos consistentes, os desafios tendem a crescer, as perspectivas de melhora econômica diminuem rapidamente, oportunidades tendem a ser menores e perpetua o incremento da desigualdade, dos conflitos sociais e a degradação política, estamos vivendo momento de fortes degradações, exigindo decisões conjuntas e fortes convergências.

A economia brasileira perdeu a vocação do crescimento econômico, desde os anos 1980, depois de um período de forte crescimento econômico, a sociedade passou a viver instabilidades crescentes, alternando inflação alta, dificuldades externas, taxas de juros elevadas, desindustrialização, degradação das condições de trabalho e de emprego, além de arrocho salarial e redução do mercado interno de consumo, que contribuíram para a fragilização dos trabalhadores, seu endividamento crescente e uma forte degradação política que caminha para uma grande convulsão social.

Neste momento precisamos reconstruir os laços sociais, reestruturar as bases da economia nacional, investir fortemente em ciência e tecnologia, retomando o poder e a centralidade da educação como instrumento de ascensão social, rechaçando os discursos inconsistentes de empreendedorismo como instrumento de retomada do crescimento econômico. Precisamos atuar fortemente para reduzirmos o poder político e econômico dos grandes conglomerados que monopolizam os mercados e impedem a entrada de novos concorrentes, degradando os instrumentos de regulação governamental, impondo sua agenda e auferindo lucros extraordinários.

Nossa sociedade está envolta em grandes degradações políticas, discursos agressivos e ódios e de ressentimentos, vivemos momento de graves conflitos, onde as discussões políticas, fundamentais para a construção de consensos, passou a ser substituída por grandes violências, agressividades e, neste cenário, percebemos que estamos cultivando devastações crescentes, com atrasos institucionais, degradação do meio ambiente, estimulo de uma sociedade centrada da exploração e da insegurança. Neste ambiente, os investimentos produtivos se reduzem, os grandes conglomerados se afastam do país, somos relegados ao esquecimento e não participamos dos grandes fóruns internacionais, levando-nos a sermos vistos como um grande pária internacional.

A reconstrução nacional prescinde de um amplo consenso nacional, onde todos os grandes atores sociais, políticos e econômicos precisam ambicionar a reestruturação da nação, deixando seus interesses imediatos e a busca de um projeto nacional que coloque no centro a redução das desigualdades, reestruturações econômicas e produtivas e uma consolidação de um sistema de justiça que perpetuam as violências e as degradações que permeiam a sociedade e contribuem fortemente para que nossa estrutura social se fragiliza, mostrando a incapacidade de grupos privilegiados, rentista e gestores financeiros que ganham com essa condição social de indignidade e exploração.

No cenário de desintegração que vivemos, os grupos econômicos e políticos usam seus poderes para garantir vantagens e benefícios imediatos, deixam de pensar no longo prazo e se digladiam no agora, buscando ganhos e se esquecem que, muitas vezes, seus ganhos geram desagregações de outros setores, garantindo ganhos imediatos e destroem seus setores no longo prazo, abandonamos o planejamento, as estratégias e nos esquecemos que vivemos num mundo altamente concorrencial.

Em momentos de grandes polarizações políticas, incertezas econômicos e devastações sociais como este, precisamos reconstruir canais de negociações democráticas, arregimentar grupos sociais, fortalecer as instituições e consolidar políticas públicas, buscando consenso, punindo os focos de desequilíbrios e buscando a construção de um novo projeto nacional. Sem um verdadeiro projeto nacional, nosso destino é chafurdarmos na lama da desagregação social.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Brasileira Contemporânea, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 15/02/2023.

A Extrema Direita, por Dennis Lerrer Rosenfield

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A bolha de sua mentalidade furou; resta saber-se haverá uma força capaz de reunir os despojos ou se o Bolsonarismo ainda tentará se organizar

Dennis Lerrer Rosenfield, Professor de Filosofia da UFRGS

O Estado de São Paulo – 13/02/2023

A experiência dos últimos quatro anos foi rica em ensinamentos, em particular o da extrema direita no poder. Embora no início o desenho não estava nítido, ganhou no decurso do tempo contornos precisos. O antipetismo foi a sua bandeira primeira, num amálgama de valores conservadores e liberais, dando progressivamente lugar a pautas antidemocráticas e antiliberais. O estilo bronco e, às vezes, engraçado de Bolsonaro foi se mostrando grotesco e mesmo cruel em sua campanha contra a vacinação, literalmente gozando da morte alheia, expondo sua falta completa de compaixão – algo, aliás, contrário aos valores religiosos que dizia defender.

O “jogo dentro das quatro linhas da Constituição” foi uma mera encenação com o intuito de minar a ordem democrática, de preferência via eleições, como se a democracia pudesse ela própria ser subvertida, paradoxalmente, por instrumentos eleitorais. A campanha contra o sistema eleitoral, o combate insano de Bolsonaro contra as urnas eletrônicas e a contestação das eleições puseram a nu um líder de perfil claramente autoritário. Quem com ele não estava se tornava um inimigo, inclusive seus amigos de ontem. Uma vez que o malogro de seu projeto reeleitoral se esboçava, a tentativa mais explícita de golpe foi se apresentando como uma alternativa real.

Fiou-se ele nas Forças Armadas e, em particular, no Exército, acreditando que elas o seguiriam em quaisquer circunstâncias, mesmo ao arrepio da disciplina militar. Ocorre que, no jogo do poder, a maior parte dos militares só aceitou jogar nas quatro linhas da Constituição, rechaçando qualquer arremedo de legalidade para o emprego da violência. Militares avançados se puseram na consolidação da ordem democrática, dizendo não a qualquer tentativa golpista. Os renitentes terminaram se alinhando, visto que sua formação os colocava na defesa da disciplina e contra qualquer tipo de quebra de hierarquia. Uma instituição hierarquicamente quebrada deixa de ser propriamente uma instituição de Estado. Ali fracassou o golpe.

O estertor deste processo foram as manifestações do dia 8 de janeiro, com a invasão e depredação dos centros do poder republicano: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. O simbolismo foi forte. A máscara democrática caiu, entrando em seu lugar a violência própria da extrema direita, embora saibamos que não lhe é exclusiva, haja vista a experiência comunista. A horda bolsonarista agiu sem freios, ainda acreditando em seu líder, o “mito”, que viria a liderar presencialmente este processo, crendo, ademais, que os militares de extrema direita nele a seguiriam. A partida democrática, porém, já estava previamente ganha, seja pelo pleno funcionamento das instituições, seja pelo resultado eleitoral majoritariamente reconhecido, seja pela atuação decisiva dos militares constitucionalistas. E o “mito” sumiu!

O “mito” refugiou-se nos arredores da Disney, como se lá fosse mais divertido do que o seu próprio país, após as arruaças e instabilidades política e institucional aqui produzidas. Contudo, a extrema direita vive de seus líderes, pessoas resolutas em seu processo político, como bem demonstraram figuras como Hitler, Mussolini e Franco. Enfrentaram intempéries até chegarem ao poder e lá se consolidarem. O líder mantém a coesão de seus liderados, uma espécie de cola que a todos une. Sem esse fator agregador, seus apoiadores se dispersam. O que podem hoje bem pensar aqueles que, com chuva, calor e frio, se reuniram na frente dos quartéis, quando contrastam a sua experiência com a do “mito” no aconchego de um condomínio residencial em Orlando, com todas as comodidades materiais?

A questão que se coloca, portanto, é a de se essa experiência eu diria limite da extrema direita tem condições de perpetuar-se, não apenas por causa da derrota do “mito”, mas principalmente pelo seu sumiço. Provavelmente, os que nele acreditaram, num número impressionante de cerca de 50% do eleitorado, vão agora escolher novos caminhos, considerando que muitos que o seguiram o fizeram por rechaço à experiência petista. Agora, as posições se invertem, com Lula tendo sido, por sua vez, eleito por repúdio à experiência bolsonarista. O Brasil continua oscilando neste pêndulo.

A força do bolsonarismo estava em sua coesão sob o seu líder, em campanhas midiáticas baseadas na mentira e no ataque constante a inimigos reais e imaginários, em motociatas cujo perfil se assemelhava, num mundo digital, às milícias nazistas ou fascistas. No caso destas, com organizações próprias e firme apoio partidário. Aqui, seja por falta de tempo, seja por ausência de um projeto totalitário mais firme, a improvisação terminou se impondo.

Em suma, a bolha da mentalidade de extrema direita furou, com a realidade entrando por todos os seus furos, como águas num navio afundando. Resta, agora, saber se haverá uma força de centro, mais à direita ou mais à esquerda, capaz de reunir esses despojos ou se o bolsonarismo ainda tentará reorganizar as suas forças.

André Lara Resende: taxa de juros de 13,75% está errada.

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Por Jorge Barbosa – O Estado de São Paulo, 13/02/2023

O economista André Lara Resende afirmou que a manutenção da taxa Selic em 13,75% ao ano é um erro, pois desaquece a economia sem combater efetivamente a inflação. “A economia brasileira precisa ser desaquecida neste nível? Com a taxa de juros real mais cara do mundo hoje? Claramente não”, afirmou Resende, em entrevista ao programa Canal Livre, da Band, exibida na madrugada desta segunda-feira, 13.

“O fato é que tivemos uma quebra no varejo, no caso da Americanas e outras áreas deste setor enfrentam problemas, o que fez os bancos retraírem drasticamente o crédito. Quando temos uma contração como essa no crédito, se agrava o processo de desaquecimento da economia e embica numa recessão que pode ser muito séria”, disse o economista.

Lara Resende, que participou da equipe de transição do governo Lula na área econômica, afirmou ainda que o Banco Central tem como objetivos controlar a inflação, promover a estabilidade do sistema financeiro e garantir o mais próximo possível do pleno emprego. “Obviamente que essa taxa de juros de 13,75%, 8% real, é incompatível com esses objetivos. Ela está errada.”
Gastos públicos

O economista contestou a ideia de que um eventual cenário de aumento dos gastos públicos possa provocar uma onda inflacionária no País. “Estamos saindo de 1,3% de superávit primário no ano passado. Agora, este ano, o autorizado pela PEC (da Transição) é um gasto de mais 2%. A arrecadação vai surpreender positivamente. Se gastarmos o valor integral da PEC, ainda que a arrecadação ficasse onde estava, no mesmo nível, teríamos equilíbrio primário. O Orçamento, a previsão é que você possa ter um déficit primário de 1%. Isso é grave? Claro que não”, afirmou.

Lara Resende disse também que o fenômeno da inflação em todo o mundo foi provocado pela desorganização das cadeias produtivas, e que não houve relação com o aumento de gastos por parte dos governos. “A oferta se contraiu e houve uma reação inflacionária. Em cima dessa pressão veio a guerra da Ucrânia, que subiu o preço de energia e alimentos por causa, inclusive, dos fertilizantes. Então esta foi a inflação.”

O economista comentou ainda que “se a taxa de juros alta combatesse a inflação, nós não precisaríamos ter feito o Plano Real” – do qual foi um dos formuladores. “Quando eu assumi a diretoria do BC (nos anos 1980), nós tínhamos a maior taxa básica de juros da história e não havia sinal de que a inflação ia retroceder”, disse.

Reforma tributária

Lara Resende também demonstrou pessimismo com a possibilidade de aprovação da reforma tributária. “Eu não acho que seja uma boa ideia votar a reforma tributária. Todo mundo é a favor dessa reforma, a ideia dessa simplificação, a criação do Imposto sobre o Valor Agregado, isso é em princípio uma ideia muito boa. Só que ela provoca, como todo tema tributário, muitas reações, então há resistências por todos os lados. Não é à toa que ela nunca foi aprovada”, disse o economista, que recentemente assumiu um cargo na Comissão de Estudos Estratégicos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Ele disse ainda que considera “muito difícil” a aprovação da reforma de maneira integral. “Você vai repartir essa proposta e a discussão dela vai tomar tempo.”

O economista também relativizou a importância da mudança no sistema tributário. “Não acho que a reforma tributária possa ser posta como o principal objetivo do País. O principal objetivo que precisamos definir é a recuperação do desenvolvimento. O Brasil deveria crescer, pelo menos, 5% até 7% nos próximos anos, como cresceram todas as economias asiáticas”, disse Lara Resende, que ressaltou a importância a importância da reforma, apesar das críticas que fez.

Crise na Terra Indígena Yanomami: saúde, meio ambiente, direitos humanos, por Márcia Castro

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Governo precisa não só responder à emergência, mas desfazer estragos dos últimos 4 anos

Márcia Castro, Professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard.

Folha de São Paulo, 13/02/2023

Em 1984, foi proposto um modelo para o estudo dos determinantes da sobrevivência de crianças nos primeiros cinco anos de vida. Destaco três pontos importantes do modelo.
Primeiro, sob condições ideais, cerca de 97% das crianças deveriam sobreviver até os cinco anos de idade. A morte durante essa etapa da vida é, em sua maioria, uma consequência do efeito acumulado de fatores adversos que progressivamente deterioram a saúde.

Segundo, há cinco categorias de determinantes próximos que afetam diretamente a sobrevivência. Aqui estão incluídos fatores maternos (como idade da mãe), contaminação ambiental (ar, comida, água, insetos), deficiências nutricionais, acidentes e formas de controle de doenças.
Terceiro, variáveis socioeconômicas modificam os determinantes próximos e, através deles, afetam a sobrevivência de crianças. Essas variáveis estão relacionadas aos pais, ao domicílio e ao contexto ecológico, político e institucional no qual a criança está inserida.

A crise humanitária na terra Yanomami, a maior do país e localizada em Roraima, exemplifica esse modelo. A crise não é resultado de um evento único, imediato. O quadro severo de desnutrição das crianças, o pior já reportado entre comunidades indígenas nas Américas, não aconteceu da noite para o dia. A crise que ganhou a atenção do Brasil e do mundo em janeiro é reflexo de sucessivas ações de negligência, negação de direitos e mudanças na legislação ambiental.

Ressalto alguns eventos nesse processo cumulativo que contribuíram para a crise e que afetaram os determinantes próximos que mencionei anteriormente.

A partir da década de 80, quando ouro foi descoberto na terra indígena Yanomami, atividades ilegais de garimpo resultaram em epidemias de tuberculose e malária. Além disso, o uso do mercúrio nas atividades de garimpo contamina rios, peixes, plantas e o ar. As consequências são inúmeras e podem ser fatais (leucemia, atraso no desenvolvimento, complicações neurológicas etc.).

Após o desmonte do programa Mais Médicos, mais de 80% dos médicos que prestavam atendimento à população indígena perderam seus empregos e não foram totalmente substituídos. Isso afetou a capacidade de vigilância e controle de doenças.

Durante os últimos quatro anos, mudanças na legislação ambiental favoreceram o desmatamento e expansão do garimpo ilegal (extração o de ouro e cassiterita). A Terra Indígena Yanomami é a terceira em área garimpada, ficando atrás das terras Kayapó e Munduruku, ambas no Pará. Além disso, é a que possui o maior número de pistas de pouso, 75 ao todo, 34% localizadas a menos de 5 km de uma área de garimpo.

A malária nessa área aumentou drasticamente. Em 2021, cerca de 46% dos casos de malária em localidades indígenas foram observados na terra Yanomami. Em Roraima, do total de casos de malária reportados em 2017, 0,1% eram em localidade de garimpo e 22,6% em localidades indígenas. Em 2021 esses percentuais foram 26,4% e 54,9%, respectivamente.

A expansão desenfreada do garimpo também trouxe a violência (homicídios e estupros) e afetou a organização social do povo yanomami devido a cooptação de jovens indígenas para trabalhar no garimpo.

A crise humanitária na Terra Indígena Yanomami é uma tragédia anunciada. Não faltaram estudos, relatos e ofícios de alerta enviados ao Ministério Público Federal, à Funai e ao Exército. Todos vergonhosamente ignorados.

O atual governo não só precisa responder a essa emergência de saúde, humanitária e ambiental, como precisa reverter os estragos dos últimos quatros anos. Tarefa hercúlea de reconstrução, já em curso, fundamental para a sobrevivência da floresta e dos povos indígenas.

Regular redes é essencial para conter guerras civis, diz Barbara Walter

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Cientista social diz que Trump e Bolsonaro deixaram EUA e Brasil mais próximos de conflitos

Uirá Machado, Na Folha desde 2004, é formado em direito e em filosofia na USP, foi editor de Tendências / Debates, Opinião, Ilustríssima e Núcleo de Cidades, além de secretário-assistente de Redação.

Folha de São Paulo, 11/02/2023

[RESUMO] Em entrevista, a cientista política Barbara Walter debate o recuo da democracia e a expansão de guerras civis no mundo, aponta que a radicalização política é impulsionada pelo modelo de negócios de big techs e sustenta que a situação do Brasil e dos Estados Unidos, afligidos por ataques golpistas, é frágil. Republicanos e bolsonaristas, diz, estão a caminho de se tornarem facções, o que demanda força de instituições e de outros partidos políticos

Duas tendências identificadas nos últimos anos preocupam acadêmicos em diversas partes do mundo.
A primeira, já bem mapeada pela literatura recente da ciência política, é o declínio da democracia, com a ascensão de políticos autoritários que tomam o poder sem recorrer a um golpe de Estado tradicional.

A segunda ganhou notoriedade com a publicação, no ano passado, de “Como as Guerras Civis Começam e Como Impedi-las” (Zahar). Escrito pela cientista política Barbara F. Walter, da Universidade da Califórnia em San Diego, não demorou a se colocar entre os mais vendidos nos EUA.

O motivo é simples: Walter dá um novo passo na trilha aberta por obras que já se tornaram clássicos, a exemplo de “Como as Democracias Morrem” (Zahar, 2018), de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, e “Como a Democracia Chega ao Fim” (Todavia, 2018), de David Runciman.

Em seu livro, Walter mostra que as guerras civis costumam estourar não em democracias nem em ditaduras, mas em países que estão passando de um desses sistemas para o outro, e que esses conflitos se tornaram cada vez mais frequentes no século 21, a ponto de o pico histórico ter sido atingido em 2019.

O que explica essa tendência? “Não sabemos ao certo, mas temos uma suspeita forte: a ascensão das redes sociais”, afirma em entrevista à Folha.

Se ela diz, vale a pena prestar atenção, mesmo que se trate de uma suspeita. É que Walter acumula mais de 30 anos de estudos sobre guerras civis, incluindo a participação na Força-Tarefa sobre Instabilidade Política, criada pelo governo dos EUA nos anos 1990 para construir um modelo capaz de prever a erupção de conflitos em qualquer país.

Com base em sua experiência, Walter diz que Donal Trump, nos EUA, e Jair Bolsonaro (PL), no Brasil, aumentaram a chance de haver uma guerra civil nesses dois países.

A literatura recente sobre democracia tem apontado um novo padrão de golpe de Estado, e seu livro faz o mesmo em relação às guerras civis. Poderia explicar essas mudanças? São duas grandes tendências. Uma é a de declínio da democracia. As democracias vinham se expandindo pelo mundo a ponto de a gente pensar que todos os países adotariam esse sistema.

Isso mudou em 2010. Desde então, a cada ano há menos democracias e, pela primeira vez, isso tem afetado até as mais maduras e fortes, como Reino Unido, Estados Unidos, Suécia e Espanha.

No século 20, quando uma democracia desaparecia, geralmente era por meio de um golpe militar, mas essa não é mais a norma. Agora prevalece o que vou chamar de “modelo Viktor Orbán” [premiê da Hungria]. Ele tem sido o grande inovador nesse sentido.

Ele descobriu que não é necessário dar um golpe militar: você pode chegar ao poder por meio de uma eleição e, quando as pessoas não estiverem prestando atenção, você começa a desmontar os sistemas de controle sobre o Executivo; você faz isso lenta e metodicamente, de modo que, quando as pessoas perceberem que o poder está concentrado nas suas mãos, será tarde demais para reagir.

Trump observou esse método atentamente. Bolsonaro também. É quase como se Orbán tivesse mostrado a eles um manual de como fazer isso legalmente e sem envolvimento militar. Agora, esses aspirantes a ditador disputam eleições, controlam a mídia e moldam uma narrativa sobre si mesmos como líderes eficientes, fortes e necessários em um contexto de nacionalismo, medo e ameaças.

E com relação às guerras civis? Essa é a outra tendência: o aumento de guerras civis e da violência política. Do fim da Segunda Guerra Mundial até 1992, o número de guerras civis foi aumentando, com algumas oscilações. A partir de 1992, houve uma reversão desse padrão; pensamos que tínhamo s conseguido descobrir como resolver esses conflitos para viver em um período de paz.

A partir de 2002, porém, as guerras civis têm aumentado todos os anos em todo o mundo. Estamos agora em um nível mais alto que o de 1992.

Também vemos ao redor do mundo o aumento do nacionalismo étnico, o crescimento do número de partidos de extrema direita, de líderes do tipo lei e ordem. Vimos isso com [Rodrigo] Duterte nas Filipinas, com Bolsonaro no Brasil, com [Narendra] Modi na Índia, com [Recep Tayyip] Erdogan na Turquia, com Trump nos Estados Unidos.

Há também uma nova forma de violência política, que é descentralizada. As guerras civis de hoje envolvem mais grupos que no passado. Se você pensa na Síria, há centenas de facções de cada lado.

É uma mudança súbita: temos muito mais grupos, as guerras duram mais tempo e há mais intervenção externa.

O que explica isso? Não sabemos ao certo, mas temos uma suspeita forte: a ascensão das redes sociais. Elas permitem que forças antidemocráticas –seja Vladimir Putin, o governo chinês ou os Trumps do mundo— espalhem desinformação na internet, convencendo as pessoas a não confiar nas eleições e a não apoiar a democracia, argumentando que governos autocráticos são melhores. Essa maneira sub-reptícia de atacar a democracia não existia no passado.

As grandes empresas de tecnologia têm o mesmo modelo de negócios, que consiste em manter as pessoas tão ocupadas quanto possível com seus smartphones e computadores, e as informações que mantêm as pessoas conectadas por mais tempo são as que exploram o instinto de luta ou fuga, coisas que desencadeiam raiva, sensações de ameaça, de insegurança. O algoritmo oferece mensagens mais extremas.

Por exemplo, nos Estados Unidos, se você clicar em um link que mostra um policial salvando um filhote de gato em uma árvore, o algoritmo vai considerar que você é simpático à polícia. Começará então a te alimentar com mais informações a favor da polícia até que você esteja envolvido no debate a favor ou contra o Black Lives Matter.

Além disso, as redes sociais facilitam a mobilização de qualquer movimento. É uma mudança, porque antigamente era bastante difícil organizar uma milícia ou um grupo paramilitar. Isso tinha que ser feito com muito cuidado e de clandestinamente, e era difícil alcançar pessoas com as mesmas inclinações radicais.

A sra. afirma no livro que a maioria das pessoas não se dá conta de que uma guerra civil está a caminho até que a violência faça parte do cotidiano. Não existem sinais precoces? O governo dos Estados Unidos tem um manual chamado “Guia para a Insurgência”, que é usado pelos soldados americanos em outros países. O guia ensina o que procurar para saber se há uma insurgência ou não.

São três fases. A primeira etapa é a pré-insurgência, a segunda é insurgência incipiente, a terceira é insurgência aberta. Esse padrão se repetiu tantas vezes que é de fato possível identificá-los, mas, ao mesmo tempo, se você conhece os sinais, é perturbador ver populações ignorando os alertas.

Uma das coisas que acontecem, mesmo na primeira fase, é que, quando um grupo começa a se organizar, ele recruta membros, desenvolve uma ideologia, cria um conjunto de demandas.

Na segunda fase, o grupo adquire um braço militar e começa a realizar atos isolados de violência. Talvez esse seja o estágio em que os Estados Unidos e o Brasil estejam agora. Ocorrem ataques de terrorismo doméstico contra civis e líderes da oposição, talvez um candidato a presidente ou um juiz se torne alvo. Se houver elementos raciais, podem ocorrer massacres em bairros afro-americanos, igrejas, sinagogas.

Nessa fase incipiente, há uma tendência de rotular os ataques como isolados. Nos Estados Unidos, falamos em “lobo solitário”, como se fosse uma pessoa louca, sem conexão com um movimento maior.

O curioso é que o manual do governo americano fala especificamente sobre as pessoas não quererem acreditar que há um câncer crescendo na sociedade. É mais fácil descartar esses primeiros ataques e não ligar os pontos. Só quando esses ataques se tornam frequentes e já não se pode ignorá-los, as pessoas param para pensar se é algo maior. Mas, nesse momento, o movimento provavelmente já teve anos para crescer e se organizar.

A invasão do Capitólio nos EUA, e o ataque às sedes dos três Poderes, em Brasília, são eventos isolados ou indicam algo maior? Depende muito de como as coisas evoluem. Em ambos os casos, a ação foi contida. A invasão do Capitólio serviu de alerta para a sociedade e para o FBI. O FBI tem sido mais agressivo na identificação dos perpetradores e em levá-los a julgamento, e a pena de prisão deve enfraquecer o grupo de extrema direita por um tempo.

Porém, as coisas poderiam ter sido piores em ambos os casos. Por exemplo, os ataques poderiam ter sido bem-sucedidos nos EUA e Trump teria voltado ao poder. Além disso, eles poderiam ter se tornado mais violentos. A situação é frágil.

Sua pesquisa sugere que a transição, tanto da ditadura para a democracia como da democracia para a ditadura, é um fator relevante por trás da guerra civil. Por quê? Múltiplos estudos que analisaram fatores econômicos, políticos e geográficos perceberam que a transição era um dos dois mais importantes. Ou seja, se o governo do país é uma democracia parcial —nem totalmente autocrático nem totalmente democrático—, pode-se pensar em uma democracia fraca.

Se for uma autocracia que tenta se democratizar, o desmonte do aparelho repressivo cria uma oportunidade para que organizações ou pessoas se mobilizem para tentar capturar o governo. Foi o que vimos com o fim da Iugoslávia.

Mas também pode acontecer no sentido oposto, como vimos na Ucrânia. Quando o governo democrático entra em declínio, os cidadãos percebem que começa a se fechar uma janela para fazer suas reivindicações por meios não violentos. Isso cria um impulso para tentar evitar que se instale uma autocracia de fato.

Faz diferença a velocidade dessa mudança, seja para perto, seja para longe da democracia. Uma mudança rápida aumenta o risco. Não sabemos bem o motivo, mas suspeitamos que seja porque a mudança rápida indica um governo mais fraco, cercado de incertezas.

O outro fator que a sra. menciona no livro é a criação de facções. Como distinguir facções de grupos políticos? A faccionalização tem uma característica muito única. ela é racial, étnica ou religiosa. Nos Estados Unidos, os partidos estavam muito polarizados na década de 1960, mas um americano branco naquela época tinha tanta chance de ser democrata quanto republicano.

Isso não acontece mais hoje em dia. O Partido Republicano é quase 80% branco e, quase exclusivamente, cristão evangélico. Isso em um país multiétnico, multirracial e multirreligioso.

Ou seja, o partido fala apenas para um grupo racial e um grupo religioso. Essa é a diferença entre uma facção e uma simples polarização ideológica.

Além disso, quando Barack Obama foi eleito, a classe trabalhadora branca deixou de ser democrata para se tornar republicana. Se essas pessoas realmente se importassem com a ideologia, isso não faria sentido. O Partido Republicano quer desmontar a rede de segurança social e econômica que beneficia a classe trabalhadora.

A razão para a classe trabalhadora branca migrar para o Partido Republicano não tem a ver com ideologia; tem a ver com o fato de o Partido Republicano apelar ao nacionalismo étnico branco. Isso é uma facção.

Isso também se aplica ao Brasil? Pergunto porque os eleitores de Bolsonaro têm um certo perfil demográfico, mas o fator que mais parece agregá-los é o sentimento anti-PT. Eles são espertos.

Isso é apenas uma fachada para imigrantes, negros ou não brancos. Eu acho que há muitas semelhanças entre os Estados Unidos e o Brasil. Trump chegou ao poder, e seu partido se tornou cada vez mais nacionalista branco, pois demograficamente os brancos estão em declínio.

A parcela da população que tem formado milícias, que atacou o Capitólio e que nega eleições é formada de pessoas brancas que se sentem ameaçadas pelo fato de os brancos deixarem de ser maioria. Essas pessoas consideram um dever patriótico garantir que os cristãos brancos continuem no controle, mesmo que esse segmento se torne minoria, o que acontecerá por volta de 2045.

Isso já aconteceu no Brasil. Os brancos deixaram de ser maioria, e Bolsonaro entendeu o poder disso. Homens brancos ricos são os mais propensos a perder privilégios e poder.

Isso é uma facção? Ou está a caminho de se tornar uma facção. Quando um partido político passa esta mensagem: “Você é branco, deve votar em uma pessoa branca e, se eu for eleito, garantirei que as pessoas não brancas não tenham poder”, isso é muito diferente de “se você acredita no conservadorismo e deseja criar incentivos para as pessoas trabalharem duro, vote em mim porque essa é nossa visão de uma sociedade saudável”.

Em seu livro e nesta entrevista, a sra. cita Bolsonaro como exemplo de político que degradou a democracia e aumentou o risco de guerra civil. Poderia explicar melhor? Os estudos sobre guerra civil mostram que elas são mais prováveis em países com democracias parciais e com partidos baseados em uma identidade. O que Bolsonaro fez?

Ele quer enfraquecer a democracia do Brasil, apela cada vez mais para a raça. Ele não tem uma plataforma realmente baseada em ideologia. Ele está criando uma facção de brasileiros que cada vez mais acreditam que imigrantes são ruins, que brancos devem governar, que eles precisam tomar o país de volta.

Se ele tivesse sido reeleito, o risco aumentaria? Ele dobraria a aposta em sua estratégia, de modo que as duas condições para a guerra civil —democracia parcial e apelos à identidade— teriam continuado. Sabemos que, a cada ano que passa dentro dessas condições, o risco de guerra civil aumenta.

A derrota dele significa que não existe mais risco? Não. A situação não depende de uma pessoa específica, mas sim da força da democracia e dos tipos de partidos políticos existentes. Nos Estados Unidos, temos sorte de ter um presidente que acredita na democracia e não piora a situação, mas ele não conseguiu implementar reformas institucionais.

Que reformas precisam ser feitas? A coisa mais importante é regular as mídias sociais.
Como fazer isso sem ameaçar valores democráticos? Líderes de grandes empresas de tecnologia, como Mark Zuckerberg, se escondem atrás da primeira emenda da Constituição americana e dizem que regulamentar as mídias sociais representa um ataque à liberdade de expressão.

Isso é besteira. Todas as outras mídias são regulamentadas. Sabemos como fazê-lo.

Mas vamos aceitar o argumento. Vamos deixar as pessoas colocarem o que quiserem na internet. É só regular os algoritmos. É só não permitir que as empresas projetem algoritmos que divulguem as informações mais odiosas, assustadoras e negativas.

O que os algoritmos fazem é selecionar informações específicas e disseminá-las quase instantaneamente para milhões de pessoas. Isso não é um direito protegido pela Constituição. É aquela citação: “liberdade de expressão não é o mesmo que liberdade de alcance”.

BARBARA F. WALTER, 58
Professora de assuntos internacionais na Escola de Políticas e Estratégias Globais da Universidade da Califórnia em San Diego. Doutora pela Universidade de Chicago, com pós-doutorado pelas universidades Colúmbia e Harvard, é consultora dos departamentos de Defesa e Estado dos EUA e desenvolve pesquisas no campo da segurança internacional, com ênfase em extremismo, grupos rebeldes e guerras civis. Autora, entre outros livros, de “Como as Guerras Civis Começam e Como Impedi-las”.

Juros: os obstáculos diante de Lula e algumas saídas, por Paulo Kliass

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Duas medidas podem aliviar as imposições do financismo, que mantém Selic nas alturas. Uma delas é usar bancos públicos para oferecer crédito sem juros leoninos. Outra é recuperar a função do BNDES: financiar o desenvolvimento nacional

Paulo Kliass – Outras Palavras – 07/02/2023

Ao longo dos últimos dias, o presidente Lula tem subido o tom contra o patamar da taxa de juros em nosso país. Ele identificou corretamente o foco principal desse fenômeno que tem provocado graves danos à sociedade e à economia brasileiras ao longo das últimas décadas. Afinal, a definição da Selic é uma atribuição do Comitê de Política Monetária (Copom), um colegiado composto pelos mesmos nove integrantes da diretoria do Banco Central (BC), que se reúnem em um evento especial a cada 45 dias.

É importante lembrar que, nas duas últimas vezes em que o Copom se encontrou, o Brasil já conhecia seu novo presidente da República e o programa para o qual ele havia sido eleito. Na 251ª reunião realizada em 6 e 7 de dezembro e na 252ª, em 31 de janeiro e 1º de fevereiro, o colegiado optou por manter a Selic em 13,75%, tal como vinha ocorrendo durante a gestão de Bolsonaro e Paulo Guedes. Na primeira delas, o processo de transição entre os governos estava em curso e os membros da diretoria do BC sabiam muito bem da contradição que esse nível de juros apresentava com a intenção de retomar o caminho do crescimento e do desenvolvimento. Já na segunda reunião, o acinte de manter a SELIC na estratosfera foi ainda mais flagrante e caíram no ridículo as tentativas do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, de se mostrar simpático e compreensivo com o presidente do BC, Roberto Campos Neto.

Com a aprovação da Lei Complementar nº 179 em 2021, o superministro da economia atendeu ao desejo de seus parceiros do financismo. O governo de Bolsonaro fez uma enorme pressão para que o Congresso Nacional aprovasse a independência do BC. Assim, a diretoria do órgão com a qual Lula está obrigado a conviver no início de seu mandato foi toda indicada por Bolsonaro e Paulo Guedes.

O neto de Roberto Campos, economista monetarista e conservador que serviu ao regime militar desde o início e foi um dos idealizadores da própria criação do BC em 1964, encerra a saga da família com a missão de sabotar as tentativas de Lula levar à frente seu programa de governo. A política monetária é indissociável do conjunto da política econômica e o patamar de juros atual inviabiliza, na raiz, a retomada dos investimentos necessários para superar o quadriênio da destruição que se abateu sobre o Brasil.
BC independente sabota Lula.

Para obter alguma decisão favorável às necessidades de uma Selic compatível com um cenário de crescimento das atividades, Lula precisaria convencer a maioria do Copom daquilo que eles são contrários. Assim, ou Roberto Campos Neto e seus diretores renunciam aos seus cargos ou fica muito difícil termos uma política monetária harmonizada com os desejos do presidente da República. Não parece sensato assumir a avaliação ingênua e irrealista de que os membros da diretoria do BC possam em algum momento incorporar um lampejo de civilidade republicana e passem a acatar a sugestão de promover uma redução significativa na Selic. Apesar disso, talvez o caminho de se criar uma frente ampla contra os juros elevados possa surtir algum efeito. Afinal, na conjuntura pós-eleitoral, talvez sentindo a pressão vinda do Palácio do Planalto, até mesmo o presidente da Federação dos Bancos (FEBRABAN) tem afirmado publicamente que o nível de juros deveria ser reduzido.

Mas mesmo que o núcleo duro do governo não encontre soluções a curtíssimo prazo para reduzir a Selic, Lula tem a seu dispor um importante instrumento para baixar o custo do crédito e dos investimentos. Trata-se da possibilidade de recorrer aos bancos públicos para que ofereçam recursos para indivíduos, famílias e empresas com taxas de juros sem os astronômicos spreads cobrados pela banca. Banco do Brasil (BB) e Caixa Econômica Federal (CEF), por exemplo, podem passar imediatamente a operar com taxas muito mais baixas do que a concorrência privada. Não faz sentido algum prosseguir com esse processo de “bradesquização” dos bancos federais, que se inspiram na verdadeira prática de extorsão levada a cabo pelos poucos e mastodônticos integrantes do oligopólio financeiro privado. Não existe razão para que os bancos públicos continuem a registrar em seus resultados rubricas vergonhosas de lucros bilionários, obtidos às custas de diferencial abusivo entre as taxas de captação e as de empréstimo, sem mencionar as tarifas igualmente elevadas.

Banco público: missão social a cumprir

O ponto essencial é o governo assumir que banco público tem que servir, em primeiro lugar, à sua função social e não à busca desenfreada e antiética de ganhos a qualquer custo. Se a banca privada tanto clama pela concorrência, pois que se adaptem à nova realidade do setor, onde os bancos comandados pelo governo federal passem a se orientar pelo serviço prestado ao Brasil que produz e à maioria da população e não aos lucros insanos e exorbitantes do capital parasita. Para levar à frente esse programa de expansão de crédito a custos financeiros mais baixos, Lula não necessita de nenhuma alteração legal ou institucional. Basta discutir com a direção dos bancos públicos esta nova orientação e aguardar os efeitos imediatos que tais medidas deverão provocar na procura de recursos junto aos mesmos.

Outra linha de atuação é o BNDES. Lula foi à cerimônia de posse do novo presidente da instituição, Aloísio Mercadante e mais uma vez deixou marcada sua insatisfação com o nível dos juros e com os obstáculos impostos pela independência do BC. Mas também deixou um recado explícito ao recém-empossado, no sentido de recuperar a função precípua do banco: emprestar recursos para financiar o desenvolvimento e a reindustrialização do país. O banco, que chegou a superar a capacidade de financiamento do próprio Banco Mundial durante o segundo mandato de Lula em 2011, sofreu um processo criminoso de garrote e de esvaziamento a partir do golpe contra a presidente Dilma em 2016. Os interesses do financismo foram plenamente atendidos sob gestão Temer e Bolsonaro, de forma que o BNDES e os demais bancos públicos ficaram impedidos de cumprir com suas respectivas missões. Mais uma vez os dirigentes políticos de plantão impuseram ao Estado o lema de oferecer todo poder à banca privada.

Baixar a Selic e os juros cobrados pelos bancos federais

O atual presidente, em seu terceiro mandato, sabe que vai precisar dos bancos federais em sua tarefa de reconstruir a capacidade econômica brasileira. Cada um deles deverá contribuir à sua maneira, de acordo com as suas competências e sua própria história. Existe espaço para os bancos de desenvolvimento regional, como o Banco do Nordeste (BNB) e o Banco da Amazônia (BASA). Existe também espaço para o BB e a CEF, por suas experiências como bancos de varejo, mas também com a especialização na agricultura e o setor de habitação e construção civil. Finalmente, o BNDES poderá voltar a cumprir com seu papel fundamental de financiar o desenvolvimento econômico e social. Tudo isso em um ambiente de juros baixos, que permita ao Brasil reencontrar o caminho de superação de suas desigualdades estruturais.

A meta deve ser a de posicionar a Selic em níveis bem mais baixos e oferecer crédito mais barato e disponível. Esse binômio combinado a uma recuperação dos gastos sociais e dos investimentos públicos é uma estratégia segura para que a nossa economia possa voltar a crescer.

Doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.

Escalada militar

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O século XXI se caracteriza por grandes transformações na sociedade internacional, depois da crise financeira que abalou a economia global, posteriormente presenciamos a morte de mais de 6 milhões de pessoas vitimadas pela pandemia do Coronavírus. Percebemos que estamos nos aproximando rapidamente de conflitos militares devastadores, com todo potencial de destruição e degradação e, como sempre, os grupos sociais mais fragilizados e desprotegidos são os mais afetados.

O século XX foi marcado por inúmeros conflitos militares, neste período, a sociedade presenciou duas grandes guerras mundiais com mais de 100 milhões de mortos, com fortes destruições de países, cidades e regiões. Neste momento, a geopolítica global foi reconfigurada rapidamente, nações fortes perderam espaço nos cenários econômico, geopolítico e outros países ganharam espaço na comunidade mundial, uma verdadeira revolução no ambiente global.

Os fortes investimentos na indústria bélica e militar foram fundamentais para o desenvolvimento da tecnologia civil, impactando fortemente nas grandes transformações que estamos vivenciando na sociedade contemporânea, impulsionando produtos, máquinas, equipamentos e gerando novos modelos de negócios, que alteram por completo o cenário internacional. Produtos como a internet, o Sistema de Posicionamento Global (GPS), os radares, os drones, os caças supersônicos, os equipamentos hospitalares, dentre outros, foram responsáveis por avanços na tecnologia da sociedade, sendo que os maiores investidores da indústria bélica são os Estados Unidos, a Rússia, a França e a China, sendo que os norte-americanos dispendem mais do que o dobro dos investimentos dos outros países descritos acima, com quase US$ 1 trilhão anual.

Os fortes investimentos na indústria bélica foram fundamentais para o desenvolvimento da chamada Terceira Revolução Industrial, que trouxeram para a comunidade internacional os grandes avanços na informática, na biotecnologia e na telecomunicação, setores que contribuíram para impulsionar as alterações que estamos vivendo na sociedade contemporânea, com fortes avanços em variadas áreas e setores, mas ao mesmo tempo, contribuindo para o incremento das incertezas e das instabilidades que estamos vivendo na contemporaneidade.

Neste momento, percebemos que os grandes movimentos geopolíticos, com as grandes potências se abrindo para conflitos militares duradouros, que podem culminar em guerras devastadoras, com destruições e degradações humanas, além de grandes prejuízos materiais e imateriais.

Vivemos momentos de incertezas, espionagens e preocupações crescentes, além do conflito
militar entre Ucrânia e Rússia, com movimentos das nações da Organização do Tratado Atlântico Norte (OTAN), cuja expansão pode gerar um aprofundamento do conflito, levando várias nações a entrarem na guerra, gerando devastações em toda a comunidade internacional e seus resultados, com certeza, não são animadores. Afinal, estamos falando de nações com forte poderes bélico, militar e nuclear, neste cenário, o poderio nuclear pode levar a sociedade internacional a destruição.

O envio de equipamentos militares, armas, aviões, tanques, drones e bilhões de dólares, dos países da OTAN para “defender” a Ucrânia, pode aumentar a instabilidade na região, aumentando os conflitos e as ameaças de uso de armas nucleares, tudo isso contribuindo para aumentar o conflito, gerando mais represálias, mais destruições e impactos sobre a economia internacional, aumentando os preços das commodities, como alimentos, energias, combustíveis e fertilizantes, impactando a economia mundial, degradando a renda dos países mais pobres e garantindo lucros extraordinários dos setores vinculados a indústria bélica.

Destacamos ainda, as arestas verbais entre os Estados Unidos e a China, que podem levar a conflitos militares nos próximos anos. Neste cenário, depois de crises financeiras internacionais e pandemias avassaladoras, uma possível guerra entre nações com fortes potenciais nucleares nos levariam para uma verdadeira tempestade perfeita, de destruição, de devastação e de irracionalidade.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre em Economia Circular, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 08/02/2023.

Decrescimento – uma necessidade imperiosa? por Eleutério Prado.

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Eleutério F. S. Prado

A Terra é Redonda – 06/02/2023

A lógica da expansão, que guiou a civilização nos últimos séculos, precisa ser detida
Não há dúvida, o capitalismo é globalmente hegemônico. Em quase todos os países que conformam o mundo atual domina o modo de produção histórico que se orienta pela acumulação de capital. Em todos eles, por isso, o crescimento econômico figura como um imperativo socialmente cristalizado. Em consequência, a expansão da produção como riqueza efetiva e da riqueza fictícia na forma de dívidas empapeladas (ou digitalizadas) não pode ser desafiada de modo eficaz. O decrescimento, assim, aparece como uma má utopia.

No entanto, acumulam-se já nos sítios da internet e nas prateleiras das bibliotecas artigos e livros que defendem o decrescimento como uma necessidade imperiosa e mesmo definitiva para o caso de que a humanidade deseje sobreviver nas próximas décadas deste e do próximo século pelo menos. Como se sabe, a razão imediata do surgimento dessa ansiedade teórica – e mesmo prática – advém da preocupação crescente com as mudanças climática enquanto uma mega-ameaça à existência de vida altamente organizada na face da Terra.

Se esse perigo existencial tem sido encarado como antropogênico há bastante tempo pelas pessoas bem-informadas, crescentemente agora ele tem sido atribuído ao próprio capitalismo mesmo por autores que não se veem como marxistas. Mas as resistências ainda são poderosas mesmo quando já há uma consciência sobre a seriedade dos efeitos da poluição em geral sobre as condições da vida possível neste planeta – planeta este que, como bem se sabe, propiciou excepcionalmente o desenvolvimento de uma complexidade orgânica rara ou única no universo.

O Relatório sobre os riscos globais produzido pelo Fórum econômico mundial é um exemplo da alienação ilustrada que prevalece na elite pensante do sistema da relação de capital. Eis que se preocupa – afirma de início e centralmente – com a ocorrência de eventos que podem causar “impactos negativos significantes sobre o PIB e a população mundial”. Ora, ao focar privilegiadamente o PIB e ao tomar esses eventos como se fossem exógenos ao bom funcionamento sistema econômico, é bem evidente que o relatório pressupõe a continuidade do capitalismo.

Veja-se, então, como concebe os riscos globais que aparecem no horizonte próximo e mais distante: “A próxima década se caracterizará por ocorrências de crises ambientais e societárias, impulsionadas pelas tendências econômicas e geopolíticas subjacentes. A crise do custo de vida aparece como o risco global mais severo nos próximos dois anos – o seu pico é de curto prazo. A perda de biodiversidade e o colapso dos ecossistemas surge como o risco global crescentemente mais agudo do próximo decênio”.

Como se pode ver, as ameaças são levadas a sério nesse relatório, pois são vistas, sim, como mega-ameaças. O documento também não deixa de indicar que o sistema econômico global se encontra num processo acelerado de deterioração devido a várias causas que aponta, discute e critica.

Além dos problemas ecológicos sobrevenientes, esse escrito anota como riscos as “confrontações geopolítica” e a “erosão da coesão social e aumento da polarização política”, sem deixar de mencionar as crescentes “imigrações involuntárias” e a “difusão dos crimes cibernéticos” que causam insegurança para as empresas e para as pessoas em geral.

O relatório não se resguarda nem mesmo de assumir um tom catastrófico: “À medida que as ameaças crescem em paralelo, o risco de policrises se acelera. (…) crises díspares interagem de modo que o impacto geral excede em muito a soma de cada parte. A erosão da cooperação geopolítica terá efeitos em cascata no cenário de riscos globais no médio prazo, inclusive contribuindo para uma potencial policrise de riscos ambientais, geopolíticos e socioeconômicos inter-relacionados relacionados à oferta e demanda de recursos naturais”.

Se a avaliação da falência possível do sistema é pertinente, se a visão das ameaças se mostra assustadora, as recomendações para enfrentá-las parecem tímidas e, na verdade, incompletas: “Alguns dos riscos descritos no relatório deste ano estão chegando a um ponto crítico. Este é o momento de agir de forma coletiva, decisiva e com uma visão de longo prazo para traçar um caminho para um mundo mais positivo, inclusivo e estável”.

Sim, é preciso atuar coletivamente. Mas para fazer o quê? Como tal ação seria possível nas circunstâncias atuais. É evidente que falta uma proposta efetiva para arrostar os perigos anunciados, ainda que não seja este ainda a principal deficiência do relatório.[i] Pois, ele supõe desde o início que o modo de produção capitalista tem de ser conservado, ou seja, que as alternativas para enfrentar as mega-ameaças têm de se circunscreverem ao que seria possível mantendo as estruturas societárias desse modo de produção.

Para provar que esse pressuposto não passa de um equívoco, na verdade, de um erro ideologicamente induzido, é preciso mostrar que é impossível enfrentar as mega-ameaças mantendo as relações sociais constitutivas do capitalismo. E, para tanto, é preciso de início recuperar a argumentação básica dos que advogam o decrescimento econômico. E este se funda em apenas um elemento, ainda que central, da calamidade que se aproxima.

Sustentam com base científica sólida que a expansão da transferência material (material throughput) realizada pelo atual sistema econômico é incompatível com a redução das emissões de gases do efeito estufa e mesmo com a manutenção dos níveis atuais, os quais já são considerados como desastrosos.

Portanto, se o objetivo for alcançar a sustentabilidade no futuro próximo, é imperativo reduzir o volume atual de transferência material, o que implica necessariamente – julgam – no decrescimento econômico. Dito de outro modo, a lógica da expansão, que guiou a civilização nos últimos séculos, precisa ser detida, pois, em caso contrário, sobrevirá um colapso da civilização humana e da vida complexa na face da Terra.

Um decrescimento substantivo, em princípio, poderia ser obtido de várias formas. Por exemplo, por meio de um genocídio implacável das populações mais fracas dos países mais pobres da periferia. E essa é uma possiblidade real que encontra exemplos na própria história do colonialismo capitalista do passado e do presente. Se ele for almejado para alcançar um grau mais elevado de civilização, vai requer necessariamente um planejamento que contemple também uma redistribuição drástica do produto social, que hoje se encontra muito concentrado.

Veja-se, agora, que os críticos dessa tese costumam contestar a positividade da relação entre o crescimento econômico e a elevação do transporte material. Sugerem que as inovações tecnológicas, o uso de outras fontes de energia, podem inverter o sentido das mudanças dessas duas variáveis. Se isso fosse efetivamente possível, ter-se-ia, nesse caso, uma transformação do capitalismo realmente existente em um “capitalismo verde”. Ora, os estudos empíricos existentes têm demonstrado que mais crescimento implica em mais efeito estufa e que as tentativas de contornar essa “lei tendencial” têm fracassado sistematicamente.

Ora, como se sabe, o sistema econômico atualmente dominante não pode existir sem crescimento – eis que a sua lógica está baseada na acumulação insaciável de capital e, assim, na apropriação sem limites da natureza humana e não humana. E não precisa ser marxista saber disso, basta conhecer um pouco de história. Logo, o que na verdade esses críticos não suportam saber é que o capitalismo precisa ser suprimido para que a humanidade possa ter um horizonte de sobrevivência mais amplo, de longo prazo. Aquilo que Sigmund Freud chamou de “denegação” no âmbito da clínica psicanalítica, está se manifestando assim em escala social para sustentar um evolver suicidário, um negacionismo in extremis, enfim, um passado que precisa morrer para que o ser humano genérico possa sobreviver.

Não apenas o “aquecimento global”, mas todos os riscos mencionados no Relatório produzido sob os auspícios do Fórum Econômico Global provêm do motor econômico do antropoceno, o qual por isso mesmo costuma ser chamado também de capitoloceno. Assim, o ressurgimento das “confrontações geopolíticas”, assim como o advento da “erosão da coesão social e aumento da polarização política” são produtos endógenos da sociabilidade do capital.

Em particular, como diz Gustavo Mello, “a guerra atravessa a reprodução social moderna nos mais diversos sentidos e dimensões. Sendo o solo no qual germina a finalidade sem fim da valorização do valor, num segundo momento a guerra será subsumida pelo capital, que se autonomizará em seu movimento fetichista, sem, no entanto, deixar de ter na guerra um de seus pilares fundamentais”.[ii]

A questão que põe agora é saber por que o processo da acumulação de capital requer os dois tipos de guerra – a interna e a externa – como momentos constitutivos. Ora, o capitalismo é um modo de produção que se baseia na apropriação de mais-valor gerado pelo trabalho em unidades de produção, as quais são detidas por capitais particulares que competem entre si mesmo por meio da concorrência.

O antagonismo entre as classes trabalhadoras e capitalistas só pode prosperar produzindo mercadorias porque se encontra selado pelo Estado, superestrutura cuja função principal vem a ser pôr a unidade da sociedade em face dessa contradição constitutiva, seja por meio de leis seja por meio da violência. Ora, a concorrência capitalista para além dos limites dos Estados nacionais não está limitada por um “Estado global” e, por isso mesmo, engendra lutas constantes pela hegemonia regional ou global. É esse processo igualmente antagônico, como se sabe, que foi chamado adequadamente de imperialismo.

É precisamente esse caráter do modo de produção capitalista que explica o paradoxo central da geopolítica no presente momento histórico. As nações precisam cooperar para enfrentar a mega-ameaça do aquecimento global, mas elas não podem deixar de atuar de modo oportunista praticando sistematicamente o “free-riding”, ou seja, fugindo das obrigações que elas mesmas aceitaram nos “acordos climáticos”.

Mas isso não é tudo. A prioridade das potências, em particular da potência hegemônica, não é combater as mega-ameaças em geral que a humanidade está enfrentando, mas garantir essa hegemonia frente a concorrentes potenciais. É isso, evidentemente, que explica a guerra da Ucrânia entre a Otan e a Rússia, é isso que explica a tensão crescente entre os Estados Unidos e a China, é isso que explica os conflitos permanentes no Oriente Médio.

Tudo isso, como se sabe, é bem óbvio; mas é preciso repetir tais obviedades porque os olhos estão cegos, os ouvidos estão moucos e as bocas estão fechadas para o imperativo do decrescimento.

*Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Da lógica da crítica da economia política (Lutas Anticapital).
Notas

[i] Entretanto, Klaus Schwab, o cofundador do Fórum Econômico Global, pensa num “capitalismo das partes interessadas” como solução dos problemas atuais. Eis como explica esse oxímoro societário: trata-se de “um modelo que (…) posiciona as empresas privadas como administradoras da sociedade para responder aos desafios sociais e ambientais de hoje”.
[ii] Mello, Gustavo M. de C. – A natureza bélica do capital: uma introdução à crítica da economia política do capital. Relatório de Pesquisa, 2022.

Radicalização da direita passa por influenciadores considerados moderados, diz pesquisadora.

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Michele Prado, que pesquisa extremismo online, diz que atores digitais que não são considerados ligados a essa mobilização estão entre principais introdutores de teorias conspiratórias

UIRÁ MACHADO – FOLHA DE SÃO PAULO – 06/02/2023

SÃO PAULO Fazia mais de dez anos que Michele Prado havia mergulhado no ambiente online da direita quando decidiu mudar de vida. Não foi fácil. Ela precisava largar o emprego na área de decoração e romper com pessoas que, àquela altura, respondiam pela quase totalidade de suas amizades.

“Eu tinha duas opções: ficar calada e manter a amizade com as pessoas, fingindo que nada estava acontecendo, ou ser honesta intelectualmente e ficar com as consequências”, diz Prado, 44.

Ela escolheu a segunda opção. Mudou-se para o interior da Bahia e começou a pesquisar. Queria entender o que estava por trás das mensagens que pipocavam num grupo de WhatsApp do qual ela começou a participar após a eleição de Jair Bolsonaro (PL), em 2018.

Eu via gente dizendo que Bolsonaro deveria dar um golpe, que teria adesão popular”, conta.
“Vi que não era uma direita democrata, moderada. Eram pessoas com rejeição à democracia liberal, com muitas coisas de desrespeito à dignidade humana.”

Durante seus estudos, entendeu que muitas das teorias conspiratórias que circulavam no WhatsApp eram teorias antissemitas disfarçadas teorias antissemitas disfarçadas com outras palavras.

Ficou chocada, porque vinham de pessoas que ela considerava intelectuais e suas amigas.

Chamado “Internet livre”, o grupo agregava diversos influenciadores da direita. “Só os grandões. Tinha deputado, jornalista, gente de organizações de direita etc.”, afirma Prado, que em 2021 publicou o livro “Tempestade Ideológica” (Lux) e se prepara para lançar “Red Pill – Radicalização e Extremismo”.

“Esses influenciadores da direita, principalmente esses que o pessoal acha moderados, são os principais introdutores desse tipo de teoria conspiratória”, diz a pesquisadora. “E isso continua radicalizando as pessoas.”

No ano passado, após o ex-deputado federal Roberto Jefferson (PTB) atacar policiais, a sra. disse que não se tratava de episódio isolado. Eventos como a tentativa de ato terrorista no aeroporto de Brasília e a intentona golpista de 8 de janeiro estavam no seu radar? A gente está vendo no Brasil um processo de radicalização em massa que ocorre essencialmente online, especialmente quando a gente está se referindo às várias correntes da extrema direita. O próprio bolsonarismo é um movimento que surgiu online.

Dentro desse ecossistema da direita, os conceitos, as teorias conspiratórias, as pautas e os métodos são copiados da alt-right, dos Estados Unidos [movimento de extrema direita], e da far-right internacional como um todo [junta direita radical e extrema direita]. Então era óbvio que, se estávamos passando por um processo de mais ou menos 15 anos de radicalização online, e se lá nos Estados Unidos teve a invasão do Capitólio, aqui não seria diferente.

Lá no meu livro, “Tempestade Ideológica”, eu falei que a gente teria algo similar aqui, porque são as mesmas ideias que estão radicalizando e mobilizando essas pessoas. E essas pessoas estão sendo capturadas dentro de um sistema de crenças que rejeita a democracia liberal de forma extrema, inclusive com adoção da violência.

Aqui no Brasil, vimos exemplos de pessoas em acampamentos golpistas acreditando em teorias conspiratórias sem nenhum lastro na realidade. Por que que isso acontece? A nova direita do Brasil é toda baseada em teorias conspiratórias de extrema direita. Todo o universo imaginário dessas pessoas já está contaminado com a mentalidade conspiração.

Recentemente, Renan Santos, que é o coordenador do MBL [Movimento Brasil Livre], compartilhou uma teoria conspiratória de cunho antissemita, racista, que tem alto potencial para violência, que é a teoria da grande substituição [segundo a qual as elites estão substituindo a população europeia branca por povos não europeus]. Só que ele compartilhou com o nome de “transplante populacional”.

Esses influenciadores da direita, principalmente esses que o pessoal acha moderados, são os principais introdutores desse tipo de teoria conspiratória. E as pessoas que começam a ser capturadas por isso ficam presas nessas câmaras de eco e formam uma identidade coletiva.

Em que sentido? Se você olhar as imagens que foram disponibilizadas da invasão [em Brasília], você observa que a maioria das pessoas está gravando, fazendo selfie. Isso é um recurso de identidade para as pessoas que estão ali. Elas põem na câmara de eco, onde elas se acham pertencentes a algo muito maior. Elas saem do anonimato. Elas têm uma identidade coletiva construída à base de teorias conspiratórias que desumanizam outros grupos e que têm total rejeição à democracia liberal.

Não é só extrema direita que está capturada pela mentalidade conspiratória. É a direita em si.

Porque são os influenciadores, talvez por desinformação de muita gente, que continuam até agora a disseminar teorias conspiratórias, mas com outras palavras, com eufemismos, como no caso do “transplante populacional”. E isso continua radicalizando as pessoas.

No 8 de janeiro, as pessoas de fato achavam que iriam derrubar o governo? Não era um grupo homogêneo. Ali tinha muitos oportunistas, pessoas que viram a confusão e aproveitaram para tirar algum proveito. Mas a maior parte realmente acreditava que aquele ato de violência iria provocar a interrupção da ordem democrática.

Aqueles manifestantes que estavam acampados em frente a quartéis potencializaram o extremismo violento. Quando você está dentro da radicalização online, você não tem todos os meios para cometer o ato. No acampamento, os manifestantes tiveram uma radicalização híbrida, online e offline. Isso aumenta o investimento emocional no extremismo violento.

Como se fosse realmente uma incubadora para a ação violenta. E quando aquilo foi permitido pelas
Forças Armadas e pelas demais instituições, as pessoas se sentiram mais empoderadas para considerar a solução da violência como legítima.

Logo após os ataques, a sra. afirmou que a ação não se restringiria a Brasília. No entanto, não houve mais nada tão expressivo. Por quê? Eu acho que é momentâneo, porque a mobilização continua. As pessoas ainda não estão desengajadas, não estão desligadas. O volume de pessoas presas dá uma atenuada no ímpeto de quem eventualmente poderia querer continuar com esse tipo de ataque. Mas pode esperar que vai continuar. Não vai parar.

A atuação do Bolsonaro no fim do mandato foi criticada por bolsonaristas. Isso vai fazer com que o bolsonarismo fique mais fraco? Houve uma decepção com Bolsonaro. Para muitas dessas pessoas, ele não foi extremista o suficiente, não estava representando o que eles acreditam ser uma direita. Então elas vão buscar outro ídolo, outro avatar, outro candidato para suprir essa necessidade. A extrema direita no Brasil não se resume ao Bolsonaro ou ao bolsonarismo. É maior. Eles vão se reagrupar, como já está acontecendo.

Qual é a sua avaliação sobre a reação institucional ao extremismo, sobretudo a do Supremo Tribunal Federal? Só chegamos a essa situação porque as outras instituições foram muito omissas. Foram muito improdutivas, inconsequentes e irresponsáveis. Porque houve muitos alertas a respeito do processo de radicalização.

Cabe aos parlamentares exigir das agências de inteligência relatórios de monitoramento do extremismo violento no Brasil, por exemplo. Pedir relatórios a respeito da infiltração de extremistas em forças militares. Nada disso foi feito nos últimos anos. Então sobrou para uma corte [o STF] tomar conta desse problema sozinho, o que a torna um alvo.

O que o Brasil deveria fazer para combater o crescimento da violência extremista? A gente tem que pensar em formas como os programas de PCVE [prevenção e combate ao extremismo violento, na sigla em inglês], que existem em outros países. O Brasil está uns 15 anos atrasado nisso. Mas uma coisa importante de dizer é que não abarca só a extrema direita. Precisa ter disposição de abordar todos os extremismos, da direita à esquerda. Não pode pensar com a perspectiva político-eleitoral.

Antes de olhar para a extrema direita como um objeto de pesquisa, quanto tempo a sra. frequentou esses grupos como uma participante regular, por assim dizer? Era um ecossistema, um ambiente.

Não era um grupo específico. Eu sempre fui de direita, minha vida inteira. Hoje não sou mais. Muita coisa aconteceu e eu acho que estou bem ao centro. Mas em 2004, por exemplo, eu já estava no Orkut olhando esses influenciadores.

Eu não tinha ainda a visão “direita X esquerda”. Eu era só uma pessoa que não votava no PT. Ou melhor, poderia votar no PT se eu achasse que as propostas eram boas, mas eu preferia o PSDB.

Passei a primeira década dos anos 2000 online, conversando com pessoas que também não votavam no PT. Não eram pessoas de extrema direita, pelo menos não que eu soubesse na época. Só depois que eu fui recordar algumas coisas.

Depois, ali por volta de 2010, o boom da nova direita, Olavo de Carvalho, os novos livros, tudo isso eu acompanhei como espectadora. Em 2018, votei no Bolsonaro no segundo turno, porque eu era antipetista radical.

E no primeiro turno? Acabei votando no João Amoêdo [então no Partido Novo]. Bolsonarista mesmo eu nunca fui. Logo depois, uma moça que conheci no Facebook, totalmente radicalizada na extrema direita, me colocou num grupo de WhatsApp chamado “Internet livre”. Era um grupo só com influenciadores, só com os grandões. Tinha deputado, jornalista, gente de organizações de direita etc.

E eu fiquei observando. Eu via gente dizendo que Bolsonaro deveria dar um golpe, que teria adesão popular. Fiquei observando aqueles comentários internos e vi que tinha alguma coisa muito sinistra. Percebi que o grupo estava radicalizando as pessoas.

Por isso a sra. decidiu romper? Eu discuti com essas pessoas, fiz barraco. Então decidi estudar, pesquisar, porque eu já via muito sinais acontecendo e eu tentava entender o que era aquilo.

Quando eu cheguei nesses influenciadores dentro desse grupo, ficou tudo muito claro para mim. E eu vi que não era uma direita democrata, moderada, nada disso.

Eram pessoas com rejeição à democracia liberal, com muitas coisas de desrespeito à dignidade humana. Eu chutei o pau na barraca, foram discussões homéricas, que sempre acabavam em misoginia.

A gente conta nos dedos quem a gente pode falar que é direita moderada no Brasil, democrata. Em quem você pensar de influenciadores digitais de direita que você acha moderados, você pode colocar todos dentro de um balaio da far-right, porque todos eles trazem conceitos da direita radical e da extrema direita transnacional.

Durante suas pesquisas, qual foi sua maior surpresa? A primeira coisa que me deixou chocada foi ver como eles protegem os erros uns dos outros. Por exemplo, quando alguém aponta algo que está errado, nenhum deles analisa o argumento. Se um deles falar que a pessoa está errada, todos passam a atacar aquela pessoa.

Outra coisa chocante foi entender que as teorias disseminadas por eles eram teorias antissemitas. Porque eram pessoas que eu considerava minhas amigas. Eu tentava alertar uma pessoa no grupo, mas ela dizia: “Não, você está viajando”. Aí eu chamava outro influenciador, e ele dizia que eu estava maluca, que eu não entendia bem o que estava acontecendo.

Então eu tinha duas opções: ou ficar calada e manter a amizade com as pessoas, fingindo que nada estava acontecendo, ou ser honesta intelectualmente e ficar com as consequências. Eu optei pela segunda opção, que foi mais difícil, porém mais necessária.

MICHELE PRADO, 44
Pesquisadora da extrema direita, é autora dos livros “Tempestade Ideológica” (Lux) e “Red Pill – Radicalização e Extremismo” (lançamento em breve)