China: ameaças e oportunidades

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Nas últimas décadas a economia internacional vem passando por grandes transformações, com a ascensão de novos atores produtivos, novas organizações, novos modelos de negócios, novas culturas e novos personagens políticos, além do crescimento da concorrência global, novas hegemonias estratégicas, novas configurações no mundo do trabalho e o fortalecimento das nações asiáticas, gerando calafrios, ameaças e oportunidades, consolidando um mundo cada vez mais multipolar.

Nesta nova configuração da sociedade internacional percebemos o crescimento e o fortalecimento da economia chinesa, uma nação pobre e miserável nos anos 1980 e, atualmente a segunda maior economia mundial, responsável pela maior estrutura exportadora, dotada de grande tecnologia, responsável por inúmeras inovações que estão impulsionando a sociedade, impactando positivamente sua população, aumentando as possiblidades de melhorias sociais e reduzindo assustadoramente a pobreza e a indigência, retirando milhões de pessoas na indignidade e garantindo novas oportunidades de ascensão social.

A China construiu uma estrutura industrial invejável, suas fábricas produzem mais de US$ 4 trilhões em produtos e mercadorias, exportando para todos os continentes, atuando nas mais variadas áreas e setores produtivos, dominando a produção de televisões, aparelhos celulares, automóveis, eletro eletrônicos, dentre outros, gerando grandes desafios para as nações, pois absorvem produtos chineses a preços módicos, contribuindo ativamente para o aumento do salário da população e um aumento sistemático da renda, mas estes produtos vendidos a preços baixos internamente podem destruir sua estrutura industrial, estimulando a desindustrialização, aumentando o desemprego interno, além de graves constrangimentos econômicos, polarizações políticas e agitações sociais.

Nas últimas décadas, o governo chinês vem buscando novos espaços de investimentos externos para desovar as altas reservas internacionais acumuladas nos anos anteriores, para isso, a China criou a Rota da Seda, uma política global para estimular os investimentos externos nas mais variadas áreas e regiões da economia internacional, crescendo sua participação nos acordos comerciais com a Ásia, a Europa e a África, além dos esforços para incrementar essa política na América Latina, gerando graves constrangimentos com os Estados Unidos, que claramente vem perdendo espaço na economia mundial, levando-o a impulsionar novos conflitos militares, novas formas de intervencionismo, novas formas de protecionismos e medidas mais agressivas para salvaguardar seus interesses nacionais, num momento de instabilidades, incertezas e novos desafios e novas oportunidades.

Neste cenário, as nações buscam defender seus interesses nacionais, alguns se aliam ao gigante asiático para se defender dos desafios contemporâneos, enquanto outros governos preferem fortalecer laços anteriores com a sociedade estadunidense, uma decisão estratégica para todas as nações, escolher caminhos e fazer escolhas podem trazer ganhos diretos ou indiretos, mas podem trazer grandes constrangimentos.

Numa sociedade como a brasileira, dotada de grande potencial nas mais variadas áreas e setores, faz-se necessário construir novos caminhos e novos horizontes para os desafios futuros e as escolhas contemporâneas, arregimentando apoio político interno, consolidando um projeto nacional de país, deixando de lado os conflitos, as brigas e as imaturidades políticas que perpetuam e solidificam nosso subdesenvolvimento e nossa pobreza, quem sabe, depois deste desastre climático em curso no Rio Grande do Sul, a nação acorde efetivamente deste sono letárgico e degradante que vivemos continuadamente desde nossa constituição enquanto nação “independente”.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Brasil no pódio da taxa de juros, por Paulo Kliass

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Mudanças cosméticas na Selic, uma das maiores do mundo, não contribuirão para o desenvolvimento nacional. Reorientar a política monetária é tarefa urgente, a qual Lula não pode mais se furtar. E fim da maioria bolsonarista no BC é estímulo a essa guinada

Paulo Kliass, Doutor em Economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão do Governo Federal

OUTRAS PALAVRAS – 21/05/2024

A necessária discussão a respeito dos riscos provocados pela política do neoaustericídio de Fernando Haddad tem colocado em primeiro plano a preocupação com os aspectos da política fiscal. Afinal de contas, desde a proposta do Novo Arcabouço Fiscal encaminhada por ele ao presidente Lula logo no início de seu terceiro mandato, o Brasil não conseguiu se livrar do fardo que representava o famigerado Teto de Gastos da época de Temer e Bolsonaro. A aprovação da Lei Complementar nº 200/23 em agosto do ano passado passou a estabelecer as orientações para a estratégia do governo na busca da sacrossanta responsabilidade na condução do equilíbrio entre receitas e despesas governamentais. A manutenção do espírito de austeridade fiscal a todo custo terminou por orientar as propostas conservadoras do Ministério da Fazenda, como a atual meta de zerar o déficit primário para o ano em curso.

No entanto, apesar de toda a capacidade destruidora proporcionada pela obsessão do professor do Insper em atender aos comandos do pessoal da Faria Lima no quesito fiscal, a verdade é que a política monetária segue também trazendo consequências muito graves para a economia e para a sociedade brasileiras. A manutenção do foco e da artilharia do financismo sobre as contas ditas “primárias” busca isentar de toda e qualquer responsabilidade o impacto provocado pelas despesas financeiras sobre o equilíbrio macroeconômico. Assim, o espírito da tesoura se limita a atuar sobre as rubricas orçamentárias como previdência social, saúde, educação, assistência social, segurança pública, salário de servidores públicos, saneamento e toda a sorte dos demais investimentos do Estado. Ninguém ouve ou lê nenhuma crítica da parte da elite da finança reclamando da suposta “farra” ou “gastança” envolvendo os valores escandalosos com o pagamento dos juros da dívida pública.

Despesas com juros: nada de teto ou limite

Mas o fato é que o Brasil continua batendo recordes sucessivos no cumprimento desse tipo de gasto. Trata-se do segundo maior grupo de despesa orçamentária, ficando apenas atrás das despesas com benefícios previdenciários. Ao longo dos últimos 12 meses, por exemplo, o Tesouro Nacional transferiu exatos R$ 748 bilhões dos cofres públicos para atender aos interesses dos detentores de títulos da dívida pública federal. Assim como ocorre com a regressividade do nosso sistema tributário, a natureza do sistema de despesas também termina por beneficiar os setores do topo de nossa pirâmide da desigualdade social e econômica. Nos momentos em que se ouve a gritaria por maior rigor e controle no gasto federal, porém, nada é percebido quanto a medidas para impor limites, tetos ou contingenciamento sobre esse tipo de dispêndio.

A principal causa de tal distorção reside justamente na política monetária. A manutenção histórica de nossa taxa oficial de juros em patamares estratosféricos impacta diretamente o montante do fluxo de juros que incide sobre o estoque total do endividamento público. Ao longo das últimas décadas, o Brasil sempre ocupou uma posição de destaque na comparação das alternativas de rendimento financeiro pelo resto do mundo. Ao definir os níveis da nossa Selic em andares bastante elevados, o Comitê de Política Monetária (Copom) termina por chancelar as expectativas dos grandes operadores do mercado financeiro nacional e internacional. O nosso país sempre foi conhecido como o paraíso do rentismo parasita, uma vez que oferece as maiores taxas de retorno para aplicações puramente financeiras e não exige nenhuma contrapartida para o capital especulativo que para cá se dirige.

A boa prática de atração de investimentos estrangeiros sugere que, ao menos, a nação interessada em conseguir a vinda do capital externo estabeleça condições, tais como um tempo mínimo de permanência (a chamada quarentena) e a exigência de aplicação de parcela dos recursos em atividades no setor real da economia e que sejam de interesse do governo brasileiro. Aqui, ao contrário, a regra sempre foi a do laissez faire, laissez passer, como se a decisão de aplicar os recursos no Brasil fosse uma generosidade praticada pelos gestores dos fundos especulativos que vicejam no pântano do financismo global.

Brasil: campeão mundial de juros

Apesar de as últimas reuniões do Copom terem decidido por uma lenta e gradual redução na Selic, o fato é que a taxa real de juros ainda segue muito elevada. A taxa referencial de juros ficou por muitos meses no patamar de 13,75% e, desde a reunião de agosto de 2023 do colegiado, houve uma diminuição paulatina até os atuais 10,50%. Ocorre que durante o mesmo período verificou-se também uma redução da inflação. Assim, em termos da rentabilidade real das aplicações financeiras, quase nada foi alterado. Isso porque o fator relevante para as tomadas de decisão dos investidores é o saldo resultante da subtração da inflação sobre o valor nominal da taxa de juros.

Existem várias instituições e consultorias que elaboram ranqueamentos das taxas reais de juros dos diferentes países pelo mundo afora. Atualmente, por exemplo, o Brasil permanece em segundo lugar, perdendo a medalha de ouro para o México. Estamos com escandalosos 5,9%, mas nossos irmãos latinos do Norte oferecem 7,5%. No ano passado, quando ainda o presidente do Banco Central (BC) insistia em manter a Selic nos píncaros, o país ocupava o primeiro lugar, com 6,7% reais ao ano. Em anos anteriores também já ocupamos a primeira posição entre 2015 a 2017. Mas nem sempre foi assim. Durante a pandemia, por exemplo, quando a Selic chegou ao mínimo de 2%, por exemplo, o Brasil ocupou a 12ª posição no ranking global de taxa de juros reais.

Isso significa que é possível reorientar a política monetária para níveis menos “contracionistas”. Esta é, aliás, precisamente a expressão utilizada na Ata das últimas reuniões do Copom, para expressar o sentimento de unanimidade dentre os membros do colegiado para enfrentar questão do patamar de juros a ser adotado:
(…) “Ao fim, concluiu-se unanimemente pela necessidade de uma política monetária mais contracionista e mais cautelosa, de modo a reforçar a dinâmica desinflacionária.” (…) [GN]
Isso significa dizer que talvez a suposta polêmica relativa à redução de 0,25% ou 0,50% ocorrida no encontro não seja nada tão significativa quanto se supõe. Afinal, os quatro diretores indicados por Lula se mantêm na mesma sintonia da maioria ainda dirigida por Roberto Campos Neto. Ao que tudo indica, trata-se de um diagnóstico consensual quanto à necessidade de se manter a Selic em patamares elevados. A partir do final do ano, o presidente da República terá o direito de indicar o novo dirigente máximo da instituição, em substituição ao nomeado por Guedes e Bolsonaro. O que se espera é que essa nova maioria no colegiado do BC sirva para uma guinada na condução da política monetária.

O Brasil necessita de uma mudança significativa nos patamares da Selic e não essas variações cosméticas que não afetam em quase nada a variável relevante para esse tema, qual seja, a taxa real de juros. Cabe ao presidente Lula orientar os responsáveis pela política econômica que a retomada de um projeto de desenvolvimento econômico e social pressupõe a manutenção da taxa oficial de juros em níveis bem mais reduzidos. Além disso, é urgente que os bancos estatais federais sejam também levados a cobrar spreads de seus clientes em níveis mais “civilizados” e deixem de estabelecer suas políticas para a clientela segundo as regras ditadas pelo oligopólio da banca privada.

As elites desistiram da igualdade cívica, por João Pereira Coutinho

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Tocqueville não veria diferença entre a hierarquia europeia do séc. 19 e a americana do

João Pereira Coutinho, Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Folha de São Paulo, 21/05/2024

Para que servem os ricos, afinal? A pergunta é de Benjamin Wallace Wells na New Yorker. Um cínico, como eu, poderia responder: servem para bancar revistas onde você escreve por um cheque chorudo, Benjamin.

Não vou ser cínico. Caso contrário, gastaria meu latim denunciando toda a intelligentsia anticapitalista que gosta de pregar seus sermões em púlpitos —TVs, jornais, revistas, institutos, universidades etc.— financiados por capitalistas.

Até porque Benjamin Wallace-Wells tem certa razão. Os ricos podem bancar revistas. Com relutância, podem até pagar impostos. Mas desistiram de um ideal de “igualdade cívica” que era estrutural na democracia americana e não só.

Eis a ironia: Wallace-Wells, talvez sem o saber, está bem próximo de um autor conservador como Christopher Lasch (1932–1994), de quem vou lendo “A Revolta das Elites e a Traição da Democracia”. O livro, publicado pela Ediouro em 1995, acaba de ser republicado pela Almedina, com tradução e posfácio (excelentes) de Martim Vasques da Cunha.

Impressionante: a obra é de 1994. Mas Lasch, que morreu no mesmo ano, consegue acertar em alvos que só 30 anos depois nos parecem óbvios.

E o mais óbvio é a “revolta das elites” do título: em meados do século 20, as elites cortaram o contato com o resto do povão. Sempre foi assim?

Não nos Estados Unidos, defende Lasch: as diferenças econômicas não cancelavam uma igualdade cívica que impressionava qualquer visitante europeu, ainda marcado pelo “rapport” aristocrático que sobreviveu à Revolução Francesa.

É uma grande verdade. Alexis de Tocqueville (1805–1859), que viajou pelo país no século 19, deixou páginas notáveis sobre a forma como os americanos (brancos, obviamente; a escravidão é a mancha nessa paisagem) se cumprimentavam nas ruas, apertando as mãos, mesmo que um deles fosse um magnata e o outro um modesto artífice.

Tudo mudou a partir de 1960, quando começou a grande separação entre as elites (econômicas, culturais etc.) e as massas. Tocqueville, hoje, não notaria diferenças entre a hierarquia social europeia do século 19 e a americana do século 21.

Isso é especialmente visível na educação e na cultura. Ao contrário do que pensam os conservadores mais básicos, as elites progressistas não procuraram “doutrinar” o povo com suas teorias (aquela conversa sobre o “marxismo cultural”, que faz a delícia dos ingênuos).

Pelo contrário: a ideia era não ter contato com o povo, criando um mundo paralelo onde a realidade não existe. A doutrinação é um fenômeno de elites para elites –um mecanismo de reprodução. O “cesto dos deploráveis” (lembra?) não merece qualquer conversa ou atenção.

Esse mundo paralelo não é apenas uma criação intelectual. É um fato da própria existência
cotidiana das elites pós-década de 60: por que motivo elas se importam com educação pública, saúde pública e segurança pública?

Sobrecapacidade da China é problema; protecionismo, porém, não será solução, por Igor Patrick

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Sob críticas dos EUA e da Europa, Pequim diz que sua vantagem comparativa não resulta de qualquer prática irregular

Igor Patrick, Jornalista, mestre em Estudos da China pela Academia Yenching (Universidade de Pequim) e em Assuntos Globais pela Universidade Tsinghua

Folha de São Paulo, 18/05/2024

Ao longo dos próximos meses, quando você se deparar com notícias sobre a economia chinesa, o texto quase sempre vai mencionar um termo não muito familiar para o leitor leigo: “excesso de capacidade”.

O problema é, por exemplo, uma das justificativas apontadas pela Casa Branca para o significativo aumento de tarifas sobre carros elétricos chineses e tem rondado as discussões entre Pequim e a União Europeia.

Explico: autoridades governamentais em todo o mundo tem batido o pé e reclamado que, por meio de uma produção acima da demanda interna, a China tem inundado o mercado global com produtos de preço muito abaixo do normal, causando quebradeira em alguns setores industriais incapazes de competir nessas condições. Alguns legisladores vão além, acusando os chineses de turbinar suas exportações com subsídios irregulares, artificialmente tornando suas exportações mais competitivas.

O problema dos subsídios governamentais a indústrias selecionadas não é exatamente novo. De fato, foi essa a razão pela qual vários países se recusam a conceder à China o selo de “economia de mercado”, um atestado de que as exportações são balizadas pelo seu valor nominal e não por interferência estatal. Mas sua combinação com o rescaldo da pandemia criou um cenário complexo.

Ao contrário do que esperavam economistas, o mercado doméstico chinês não reaqueceu após o fim da Covid zero, a dura política do regime de combate à crise sanitária. Receosos e/ou endividados após três anos de restrições pandêmicas, os chineses estão gastando menos, levando o país em 2023 à sua pior deflação desde a crise asiática de 1997. O índice de preços ao consumidor fechou o ano passado em -0,3%, e para 2024 economistas esperam inflação muito modesta (algo entre 0,4 e 0,5%) —um sinal de que o consumo interno não está crescendo como o esperado.

Só isso já seria motivo de preocupação; afinal, os produtos chineses já são usualmente bem mais baratos que no resto do planeta, e, diante de um mercado interno mais fraco, fabricantes são obrigados a diminuir ainda mais os preços para fazer aumentar a demanda.

Nesta equação, é necessário avaliar também as taxas de utilização fabril: se o preço é baixo, há capacidade excedente. As empresas com muita capacidade excedente tendem a baixar os preços para gerar procura, prejudicando a rentabilidade de todo o setor. No primeiro trimestre deste ano, a China usou 73,6% de sua capacidade industrial, o menor índice desde 2020, segundo o Escritório Nacional de Estatística.

Somam-se a isso incentivos fiscais dos governos centrais e provinciais para estimular a economia e temos a tempestade perfeita: produtos que saem do chão de fábrica bem mais baratos do que o normal e chegam a outros países a um preço tão baixo que seus competidores perdem mercado e quebram. No curto prazo pode até beneficiar a você, que quer comprar um carro elétrico ou um painel solar e vai pagar menos. No longo prazo, a falta de concorrência dará a estes players chineses o poder de controlar preços nestes setores, além de frear a inovação e corroer postos de trabalho.

A China diz que sua vantagem comparativa não resulta de qualquer prática irregular. O regime afirma, com razão, que está colhendo os dividendos de décadas de investimento em pesquisa e desenvolvimento, além de uma cadeia produtiva muito eficiente.

Mas esses fatores não contam toda a história: Pequim teme um efeito cascata se deixar quebrar quem não conseguir competir naturalmente e mantém estas empresas funcionando por meio de incentivos fiscais.

Equilibrar a produção será um processo delicado porque invariavelmente levará a aumento no desemprego e potencial agitação social. Ademais, pode desencadear queda na demanda por commodities, o que impactaria diretamente grandes mercados de matéria-prima para o gigante asiático, como Brasil e Austrália.

Como reguladores e políticos reagem a estes desafios em todo o mundo ainda é uma incógnita. A resposta apresentada até agora é apenas mais protecionismo, o que não é bom para ninguém.

A financeirização da velhice assola o Brasil, entrevista com Jorge Félix

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Estado transfere às famílias os cuidados com idosos, abrindo espaço para o setor financeiro abocanhar essa população crescente. Pesquisador avalia: planos de saúde se vendem como garantia do bem-estar – mas são armadilha para criar dívida eterna

Jorge Félix em entrevista a Guilherme Arruda – OUTRA SAÚDE – 16/05/2024

O fenômeno social da transição demográfica avança no Brasil. De 2010 a 2022, o segmento dos maiores de 80 anos foi a faixa que mais cresceu na pirâmide etária brasileira em termos proporcionais, passando de 1,5% a 2,2% da população total. Consequentemente, também cresceu a necessidade de garantir a essas 4,5 milhões de pessoas, segundo o IBGE, os cuidados de saúde adequados à sua idade – que tendem a ser maiores e mais específicos.

A oportunidade de vender esses cuidados como uma mercadoria não seria desperdiçada pelo empresariado em um país como o nosso, onde a saúde privada já se tornou um dos três maiores oligopólios da economia nacional. Por isso, multiplica-se a oferta de produtos como planos de saúde voltados especificamente para a terceira idade, serviços de home care e unidades residenciais para idosos com profissionais de saúde integrados.

Contudo, os pesquisadores Jorge Félix e Guita Debert, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), identificaram que há uma situação mais grave que a simples mercantilização da saúde nesse ramo. Em estudo recentemente publicado, a dupla revela um quadro de endividamento generalizado dos brasileiros mais velhos – principalmente a partir da compra de serviços de cuidado e saúde que respondem a uma dinâmica mais ampla de financeirização da velhice, eles argumentam.

Em entrevista a Outra Saúde, Félix esmiúça as três principais frentes pelas quais, segundo suas pesquisas, o capital financeiro se lança sobre o bolso dos idosos no país: a criação de Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs) controladas por empresas de capital aberto na bolsa de valores; o aumento vertiginoso das mensalidades dos planos de saúde, respaldado pelo “viés pró-mercado” da ANS; e, principalmente, o avanço descontrolado do crédito consignado sobre as aposentadorias – na maioria das vezes, buscado precisamente para arcar com os “gastos catastróficos” com cuidado e saúde.

O enfrentamento à ofensiva da financeirização (sustentada na concepção neoliberal de que o Estado deve ser mero “fiador” da compra de serviços de saúde no mercado), ele aponta, passa pelo fortalecimento do papel do Estado em oferecer o cuidado, revertendo a tendência de jogá-lo para as famílias e o setor privado. Propostas em construção, como a Política Nacional de Cuidados, precisarão ser verdadeiramente amplas e detalhadas – e recente flerte de ministérios da área econômica com a desvinculação das aposentadorias do salário mínimo, o que restringiria ainda mais a renda dos idosos, seria inconsequente com essa estratégia.

Fique agora com os principais momentos da conversa de Outra Saúde com Jorge Félix, pós-doutorando da Unicamp e pesquisador com bolsa FAPESP. Seu artigo com Guita Debert, The financialization of care and the indebtedness of older people in Brazil, está hospedado na versão em português da plataforma WhoCares?, representada no país pelo Cebrap.

Outra Saúde: No que consiste a categoria de financeirização da velhice que você e a profa. Guita
Debert desenvolveram? O que há de novo e específico nesse fenômeno?

Jorge Félix: Há alguns anos, pesquisadores estrangeiros estão trabalhando com o que eles chamaram de financeirização do cuidado – é uma parte do que o Ladislau Dowbor chama de “financeirização da vida”. A financeirização é o fenômeno que marca a economia do século XXI. A possibilidade da reprodução do capital sem sair da esfera financeira é o que caracteriza a financeirização. É o que Marx já colocava em termos teóricos n’O Capital, no Livro III, que com a evolução do capital o objetivo econômico seria gerar “dinheiro que faz dinheiro sem passar pelas agruras da produção”.

Hoje, você tem uma grande parte da economia – quase toda – no processo de financeirização, em detrimento do processo produtivo. Consequentemente, essa financeirização foi se estendendo para todas as esferas da vida. Esses pesquisadores estrangeiros identificaram a financeirização do envelhecimento principalmente pela ação dos fundos de private equity, que foram se interessando pela questão do cuidado e pelo que nós chamamos tecnicamente de instituições de longa permanência para idosos.

Nos países mais envelhecidos, isso evidentemente teve um avanço grande, e hoje as grandes redes mundiais com sede na Europa e nos Estados Unidos funcionam nesse modelo que a gente chama de financeirizado. Nele, os lucros que vem desses empreendimentos não são reinvestidos, eles se “empoçam” na esfera financeira por meio de inúmeros produtos financeiros. Isso tem uma consequência: os fundos querem um retorno de curto prazo, como é típico desse modelo financeirizado. Obviamente, para isso, sacrificando o trabalho do cuidado, o trabalhador do cuidado e as pessoas que são cuidadas.

Em 2022, como nós contamos no artigo, isso levou a um grande escândalo na França, denunciado por um jornalista chamado Victor Castanet, em torno da ação do Grupo Orpea, um grupo financeiro que atua explorando o ramo das instituições de longa permanência para idosos.

Com o tempo, esses modelos começaram a ser exportados, e esses operadores e atores da financeirização entraram no Brasil e no resto da América Latina. Isso nos levou a essa categoria de financeirização do cuidado que, ao estendermos para outras esferas da vida, eu e a professora Guita Grin Debert, da Unicamp, passamos a chamar de financeirização da velhice.

Há cinco anos eu trabalho com a professora Guita, que é uma grande referência no tema da velhice já desde muito tempo. Ela hoje é professora emérita, está aposentada, e é minha supervisora no pós-doutorado. Eu sou pesquisador FAPESP, num pós-doutorado na Unicamp pelo PAGU – Núcleo de Estudos de Gênero, em que eu estudo envelhecimento, dívida e cuidado. Eu e Guita estamos trabalhando com esses temas e delineamos a questão da financeirização da velhice já há algum tempo, principalmente o que você pergunta – as particularidades do Brasil, que são principalmente o crédito consignado e o modelo da saúde privada.

A gente analisa que isso tudo resulta de uma mutação do papel do Estado. Saindo do modelo de Estado de bem-estar social — que, embora esteja sendo destruído, ainda é bastante forte na Europa —, que provém saúde, educação, e tudo aquilo que a gente sabe historicamente, para um modelo de Estado-fiador, que é como eu e Guita estamos chamando aqui no Brasil.

O Estado diz: “Eu não consigo te dar saúde, te prover cuidados, te dar os medicamentos que eu deveria te dar, etc., mas posso ser seu fiador para você ir ao mercado financeiro e tomar empréstimos para isso”. O Brasil é um excelente exemplo disso, tanto que o crédito consignado é estendido depois aos trabalhadores CLT, e não só aos aposentados. Todo mundo pode pegar empréstimo consignado hoje, contanto que prove renda – aí ele já sai descontado do holerite.

Enfim, esse é o Estado fiador, que vai te jogar para a financeirização. Esse modelo do Estado fiador é percebido pela população idosa como um garantidor das condições financeiras para que elas possam custear as suas despesas de cuidado. Contudo, na verdade, o que acontece é que ele insere de uma forma desqualificante a pessoa idosa no mercado financeiro.

No que se refere à saúde, tem dois aspectos. Por um lado, a financeirização está concentrada nos planos de saúde privados, que nós caracterizamos como uma dívida eterna daquela pessoa que tem que pagar por eles. Nos outros 75% da população que não tem plano de saúde, a financeirização se caracteriza com o alto índice de endividamento que há muitas décadas caracteriza o gasto da população brasileira com medicamentos. Ela tem um altíssimo gasto do próprio bolso, off-pocket, com remédios. Isso também caracteriza uma financeirização porque a pessoa precisa se endividar para bancar esses fármacos todos, e a dívida tem uma centralidade teórica no conceito de financeirização.

Apesar disso, vocês identificaram que os idosos brasileiros não vêem esse seu endividamento com maus olhos, eles até entendem como algo que pode ser bom para sua situação de saúde, para sua situação social junto à família, ou para conseguir arcar com seus gastos. Por que isso acontece?

Isso é motivado pelo idosismo – que é como eu chamo o que muitas pessoas chamam de etarismo, algo muito falado hoje em dia. Como a gente vive numa sociedade idosista, o momento em que a pessoa idosa se percebe ainda relevante é quando ela consegue pegar um empréstimo consignado, seja para custear as suas próprias despesas e não depender da família ou para ajudar a família.

Ela ganha outro papel na sociedade, seja na família, seja entre as amigas e os amigos, seja dentro do banco. Ali, ela passa a ser tratada como um cliente de fato, e não como “aquele idoso que só vem aqui receber aposentadoria, não compra nada, não é interessante para a gente porque só dá trabalho”.

Toda aquela visão idosista com que o cliente bancário idoso sofria deixa de aparecer. Hoje, principalmente por conta do crédito consignado, ele é super bem tratado na agência. Toda hora ele recebe telefonemas porque a gente sabe que, embora seja proibido por lei, se usa o crédito consignado para fazer vendas casadas de outros produtos para essas pessoas idosas. Chega até ao ponto do escândalo de se vender previdência privada para quem tem 70 anos de idade. Isso tudo leva a pessoa idosa a não ter essa percepção de que ela está sendo explorada por meio dos juros.

Quando vocês argumentam que os planos de saúde cumprem um papel de proa no endividamento dos idosos e de suas famílias, vocês também apontam que a agência reguladora da saúde privada, a ANS, tem um “viés pró-mercado”. O que caracteriza esse viés pró-mercado da ANS?

Primeiro, há a questão da agência não regular os planos coletivos. Isso tem um efeito colateral perverso para os planos individuais e familiares. Uma vez que não se regula os outros planos, você vai encontrar por aí os produtos não-regulamentados. Isto é, os planos individuais e familiares sumiram do mercado. Por quê? Porque eles são regulamentados, então todo mundo vai para o plano coletivo.

Isso prejudica? Claro que prejudica, porque muitos dos supostos planos empresariais ou coletivos são planos familiares disfarçados. Muitas vezes, as pessoas abrem uma empresa só para ter acesso a um plano de saúde. Mesmo que ela queira comprar um plano de saúde de pessoa física, não encontra no mercado.

Um segundo efeito colateral é que passa a ser um grande negócio criar planos para idosos. Isso acaba sendo estimulado, porque a saúde privada quer os mais velhos no mercado, como clientes de plano de saúde. Contudo, só pelo caso da Prevent Senior, você já vê o que aconteceu quando mais se precisou desses planos. Eles atendem com limitações muito grandes, porque para serem viáveis financeiramente, esses planos precisam reduzir os tratamentos complexos, que custam mais. Com isso, não vai haver um atendimento satisfatório de grande parte desses clientes e, a todo momento, vamos ver reclamações, que só aumentam.

Outra consequência da não-regulamentação dos planos coletivos e empresariais pela ANS é a onda de cancelamentos unilaterais dos planos individuais que vimos recentemente. No meu entendimento, tudo isso é consequência da atuação da ANS, que precisa ser menos “pró-mercado” e mais equilibrada com o interesse dos cidadãos que pagam por planos de saúde. Esse viés pró-mercado atinge em cheio a população idosa, as pessoas com deficiência, as mães de crianças autistas e os pacientes de doenças crônicas. Esses são os grupos mais prejudicados nisso tudo.

É possível uma comparação desse escândalo que vocês comentam no artigo do grupo Orpea na França, com o caso da Prevent Senior?

Do ponto de vista econômico, é possível uma comparação, porque em ambos os casos você tem o impacto do modelo financeirizado. No caso da França, o modelo financeirizado de cuidado se somou à corrupção e ao tráfico de influência. Isso foi tudo provado, noticiado e tem sido punido pelas autoridades francesas.

Aqui, no caso da Prevent Senior, o peso do modelo financeirizado se fez claro à medida que a empresa priorizou proteger o seu lucro, pensou apenas em sua lucratividade e, para isso, adotou procedimentos que vão contra a ciência. Ela também se aproveitou de algo que é bastante discutido entre os pesquisadores da economia da saúde: o modelo verticalizado, onde a operadora tem seus próprios hospitais. Ele é um modelo que é adotado com o intuito da financeirização, para que se implemente uma fórmula que aumenta a distribuição de dividendos das empresas.

Em resumo, o que nós estamos vendo no cenário de hoje é que a financeirização ampliou o potencial de existirem empresas de plano de saúde com dificuldades, mas empresários de planos de saúde bilionários. Isso porque a distribuição de dividendos altos fez grandes fortunas que não são reinvestidas nem quando a empresa tem uma maior demanda. Por isso, várias delas estão apresentando problemas. Você tem inúmeros estudos mostrando isso na área da economia da saúde.

Um fenômeno recente que discutimos no Outra Saúde com o pesquisador José Sestelo é que, nos últimos anos, a saúde privada no Brasil só registrou lucro por conta de suas operações no mercado financeiro, já que ela teve prejuízo operacional. Como isso – que, no fundo, é a expressão da etapa monopolista e financeirizada do capitalismo na Saúde – se reflete no cuidado com a velhice?

O Sestelo, para nós, é um mestre. O fato das empresas hoje se sustentarem pelo lucro financeiro, com prejuízo operacional, é também uma característica da economia financeirizada do final do século XX e começo do século XXI. Já são inúmeros os exemplos – além disso, em boa parte de empresas que estão vivendo dessa forma, isso já passou a ser uma prática da administração.

Muitos dos CFOs, os diretores financeiros dessas empresas, já são mais valorizados no mercado do que os CEOs. Ou os CEOs são ex-CFOs promovidos porque deram resultados financeiros. Os profissionais de finanças hoje são, sem dúvida nenhuma, os mais valorizados dentro das grandes empresas e é evidente que o setor da Saúde não ficaria fora dessa lógica, que já não é mais uma tendência, é a realidade do mercado.

Como isso atinge o serviço que chega lá na ponta para as pessoas idosas? Para produzir esses resultados vultosos para os acionistas, não pode haver reinvestimento na empresa. Hoje em dia, quase nada do montante auferido em um ano é reinvestido. Ele precisa, aquilo que eu falei, ele precisa estar empossado na esfera financeira para que ele gere ainda mais lucro, mais rendimento que cubra um eventual prejuízo operacional.

Se esse dinheiro não é reinvestido, é muito difícil manter na área da saúde um serviço atualizado e compatível com o avanço da ciência, considerando que [o cuidado com os idosos] é um segmento altamente tecnológico. Muitos procedimentos são inovadores e, por isso, são muito caros. Para piorar, nós vemos essa redução do investimento não só nos serviços mais sofisticados, mas também nos mais básicos. Assim, a qualidade do serviço para os idosos fica impactada.

No artigo, vocês argumentam que, considerando o caráter sistêmico da financeirização do capitalismo, é praticamente inviável reverter essa integração dos idosos ao sistema financeiro. Por outro lado, sustentam que esse mercado não pode seguir sendo tão desregulado e predatório.

Por onde enfrentar o problema, então?

Reverter não é viável, realmente. Quanto ao crédito consignado, o que a gente discute – isso não está escrito nos nossos artigos ainda, porque não elaboramos tanto – é limitar o comprometimento da renda, principalmente. Limitar, no espaço de tempo, os créditos consignados que as pessoas podem pegar, para que não peguem um crédito atrás do outro. Tentar, minimamente, impedir que a pessoa planeje ter sempre aquele crédito supostamente “sem limite”, mas que leva ao superendividamento.

A solução que é sempre apontada, da educação financeira, tem imensos limites. Nós não consideramos que o povo brasileiro está endividado – com mais de 70 milhões de pessoas inadimplentes, segundo a Serasa – por falta de educação financeira. Nós enxergamos isso como uma deficiência de renda para fazer frente a novas despesas do cuidado. Todas as famílias estão pressionadas pelas despesas do cuidado.

É o que a Guita chamou lá atrás, em 1999, de privatização da velhice. Como a velhice foi privatizada lá atrás, as famílias é que estão arcando com este cuidado – dos idosos, mas também das crianças, vale adicionar. Nessa nova configuração da família, você tem despesas que estão pesando bastante, principalmente os medicamentos, a contratação de cuidadores ou o sustento de pessoas da família que têm que deixar de trabalhar para cuidar de uma pessoa idosa. Isso tudo faz com que as pessoas tenham mais despesas e se endividem mais.

Por um lado, não acho que a melhor ação do Estado hoje seria cortar o crédito consignado ou acabar com ele, as próprias pessoas não querem isso. Aliás, pelo contrário, o que mostram as pesquisas que eu e a Guita estamos fazendo, é que elas querem comprometer um percentual ainda maior da renda, em especial os trabalhadores da ativa, que ainda não estão aposentados.

Claro, aí é preciso bom senso por parte dos legisladores, do Banco Central e das agências reguladoras, para impedir um risco tão alto de superendividamento. Só a Lei de Superendividamento não foi o suficiente, porque como toda lei, ela precisa ser acionada. O que é preciso são regras na hora da concessão do crédito.

Além disso, sem dúvida nenhuma, a gente só vai resolver, ou mesmo mitigar, esse problema da financeirização da velhice de uma forma razoável se houver mais investimentos no SUS. Esse cenário todo está mostrando que existe um limite para a saúde suplementar e que com o envelhecimento da população, se não fizermos muitos novos investimento no SUS, mesmo a classe média não vai dar conta das despesas de cuidado e saúde.

Por onde deve passar uma reestruturação do cuidado que enfrente a financeirização da velhice?

O Brasil está nesse momento discutindo a criação de uma Política Nacional de Cuidados. Pela primeira vez, o presidente Lula criou um grupo de trabalho para isso, que está sendo conduzido pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS). O país está em plena elaboração dessa política, que é inclusive uma promessa de campanha do Lula, feita quando ele teve uma reunião conosco da área do envelhecimento durante a campanha.

Isso é sempre bom lembrar: ele nos prometeu criar um sistema, uma rede de cuidados domiciliares em um modelo bem parecido – ou ampliado – com o dos agentes comunitários de saúde do SUS. Isso deve ser uma prioridade do Estado brasileiro no atual estágio da transição demográfica do país.

Esse é o primeiro aspecto.

Ao lado disso, tem que vir um maior investimento no SUS. Por ainda não termos no Brasil essa Política Nacional de Cuidados – outros países da América Latina até já estão mais avançados nisso –, o grande risco para o qual eu e Guita temos alertado é o do familismo. Isto é, mesmo com uma Política Nacional de Cuidados, ainda delegarmos à família uma grande ou a maior parte dessa tarefa do cuidado com o idoso. As famílias não vão dar conta disso.

Em termos de Saúde Coletiva, começaríamos a ver com mais frequência algo que já acontece: idosos que morrem dentro de casa e só depois de muitos dias são encontrados e uma acentuada saída dos familiares de idosos do mercado de trabalho. Já existem pesquisas que mostram que uma parte da suposta “geração nem-nem”, na verdade, está dentro de casa cuidando de crianças ou de idosos.

Tudo isso porque o Estado transfere para a família suas atribuições, assumindo apenas o papel de Estado-fiador, como nós chamamos.

Ele diz às famílias: vou ser seu fiador para você comprar esses serviços de cuidado no mercado. Contudo, no próprio mercado já há uma restrição na mão de obra de cuidado. No projeto de pesquisa do CEBRAP de que nós participamos, o Who Cares?, foi detectado principalmente pelos estudos da professora Nádya Araújo Guimarães, da FFLCH/USP, que o percentual da população brasileira que compra cuidados no mercado é mínimo. Seja contratando um cuidador que vai na casa da pessoa, seja o residencial para idosos. É ainda um grupo muito pequeno. O restante da população está se virando dentro da família e sem apoio do Estado. É disso que a Política Nacional de Cuidados tem que dar conta.

Na semana passada, o Governo Federal convocou a próxima Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa para 2025. Como esse espaço vai poder contribuir para essa discussão?

Essa convocação é muito importante. A última conferência exclusiva dos temas da pessoa idosa realmente qualitativa que tivemos aconteceu em 2011, no primeiro governo Dilma. De lá pra cá, em 14 anos, o que tivemos foi uma conferência no governo Temer [a 4ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, em 2016] que juntou todo mundo – juventude, pessoa com deficiência, idosos, e por aí vai –, e esse tipo de encontro é muito improdutivo para debater essas questões, que são tão complexas.

Se você pensar que a Conferência trabalhará com o que vai vir das conferências e conselhos municipais e estaduais de idosos, percebe que é um movimento muito grande, democrático e que, como as Conferências da Saúde, é de uma democracia viva e de baixo para cima. Ali sim nós poderemos dar conta da complexidade do tema e de todas as reivindicações que serão apresentadas pelos municípios e estados.

Vai ser de grande importância que haja a participação não só do Ministério dos Direitos Humanos e da Secretaria dos Direitos da Pessoa Idosa, que é quem vai coordenar essa conferência, mas também de outros ministérios. Eu sonho com o dia em que o Ministério da Fazenda vai fazer parte dessas discussões. No Grupo de Trabalho da Política Nacional do Idoso, o Ministério da Fazenda não se prontificou a participar dessas discussões sobre o cuidado, como se não estivéssemos falando exatamente de economia do cuidado.

No caso da França, os ministérios da área econômica se sentaram ao lado da Secretaria da Pessoa Idosa para discutir soluções que deram muitos resultados. Aqui no Brasil, essa discussão está bastante atrasada. Se você não tiver participação do Ministério da Fazenda, já vamos chegar com um problema muito grande. Também é essencial – e agora com certeza vai ter – a participação do Ministério do Desenvolvimento Social e Família e Combate à Fome.

Se não, vamos ficar no âmbito da reivindicação. O que é preciso é ir para a ação – e uma ação conjunta e interministerial.

Hoje, embora você tenha política para idosos em quase todos os ministérios da Esplanada, a atuação não é ordenada, não é pactuada. Isso é histórico. Desde que eu estudo isso, cada ministério cuida apenas de seu pedaço dessa área, visando muito mais resultados eleitorais do que políticas públicas demandadas e efetivas. Esse tem sido um aspecto muito equivocado na política da pessoa idosa no Brasil e atravessa vários governos, infelizmente.

Nas últimas semanas, os ministros Fernando Haddad e Simone Tebet lançaram, nas redes sociais e na mídia, a ideia de desvincular as aposentadorias do salário mínimo. Como os idosos seriam afetados?

Uma ação como essa aumentaria imensamente o risco de superendividamento para a população idosa, sem dúvida nenhuma. Se mesmo com o aumento real do salário mínimo os idosos não estão conseguindo fazer frente às despesas de cuidado e saúde, imagina se durante anos e anos esse segmento da população mais pobre não tiver aumento real na sua aposentadoria. Aí é que nós vamos para uma situação muito grave de endividamento.

Se o governo quiser fazer uma política de fato efetiva, você tem no Brasil um material imenso hoje. Na pandemia, se falou muito que a ciência não era ouvida, e eu penso que as ciências sociais seguem bastante renegadas. Elas têm oferecido pesquisas muito relevantes que poderiam subsidiar melhores políticas públicas. Não é por falta de dados científicos que não temos uma política para o envelhecimento no Brasil.

Não é por falta de oferecimento de dados científicos que nós não temos uma política estruturada para o envelhecimento no Brasil. A vontade política é que tem que ser maior.

A universidade operacional, por Marilena Chauí

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Marilena Chauí – A Terra é Redonda – 13/05/2024

A primeira universidade que eu conheci é o que eu chamo de “universidade clássica”, que foi a universidade dos anos 1930 até o começo dos anos 1960. É a universidade de formação, sobretudo, e de reprodução dos seus próprios quadros. No caso da filosofia, isso era nítido, de reproduzir os quadros para o seu próprio trabalho.

A universidade que eu conheci, que eu frequentei, era isso que eu estou chamando de uma universidade clássica e, sob certos aspectos, uma universidade aristocrática, pensada para poucos, mesmo porque não havia um interesse, digamos, profissional, econômico, político, que fosse trazido pela universidade. Então, ela era mesmo um espaço de saber, um espaço de conhecimento e uma coisa aristocrática mesmo. Não é qualquer um que se interessa por isso.

A universidade seguinte que se tentou criar e não foi possível por causa das circunstâncias históricas seria a “universidade crítica”, que é aquela do ano de 1968. É aquela universidade que vai pôr em questão essa universidade clássica e aristocrática, mas vai pôr em questão também a própria sociedade, vai pôr em questão o saber constituído etc. E essa universidade foi a universidade bloqueada pela ditadura.

Então, aí vem a universidade da ditadura, que eu chamo de “universidade funcional”. É a universidade destinada a formar mão de obra para o mercado. E é o instante no qual as empresas começam a investir na universidade, na busca de mão de obra qualificada.

Essa universidade é substituída, na altura dos anos 1980, pelo que eu chamo de “universidade de resultados”. Então, o que é que se quer? Se quer uma universidade que prove para a sociedade que ela é útil. Então, quais são os produtos que essa universidade tem, que são úteis para a sociedade? Então, não é só a questão de formar mão de obra para um mercado dito qualificado, mas é a de mostrar a produção de bens e serviços para a sociedade, não em geral, mas para as camadas mais altas.

Médias e mais altas da sociedade. É essa universidade que termina no correr, a partir dos meados dos anos 1990, e é a que está em vigência até agora, e que é o que eu chamo de “universidade operacional”.

A universidade operacional tem duas características principais. Primeiro, ela não se pensa, como as duas formas anteriores se pensaram a si próprias, como instituições sociais. Portanto, dotadas de regras e de valores internos a ela, formas internas de avaliação e de auto-avaliação e autonomia interna para a sua regulamentação. Essa universidade agora se pensa como uma organização. Theodor Adorno já chamava a atenção para isso.

O que caracteriza uma organização é que ela não é uma instituição social, ela é uma forma de ordenação de trabalhos e tarefas para uma finalidade pré-determinada, cuja finalidade é o sucesso no emprego daquilo que foi obtido. A organização, portanto, está voltada para si própria e para a solução, em curto prazo, de problemas determinados. Ao contrário da instituição, a organização nunca se volta para as questões de universalidade, de amplitude, históricas.

Ela trabalha com aqui e agora com um produto que está sendo preciso fazer. Então, o que essa universidade faz? Essa universidade operacional, organizacional age em função do que se denominou “produtividade”. Mas, o que é que mede a produtividade? É o quanto uma organização realiza, em tempo curto, um objetivo delimitado.

Então, a ideia da ampliação do campo do conhecimento, a ideia da ampliação do campo tecnológico, a ideia da ampliação do acesso, a ideia da ampliação do campo dos conhecimentos desaparece.

Existe um problema aqui que precisa ser resolvido aqui e agora, e é função da organização resolver. Ou seja, uma organização trabalha com estratégias para um bom resultado estipulado de fora dela.

Há um agente externo que determina o que é que ele precisa, e a função da organização é realizar isso. E, terminado esse serviço, terminou o trabalho dela. Ao mesmo tempo, ela precisa de recursos, muitos recursos para fazer isso, que são obtidos de duas maneiras, por meio da noção de produtividade.

As agências de fomento à pesquisa estabelecem, a partir dos critérios organizacionais e empresariais, os critérios pelos quais ela financiará as pesquisas e os cursos. E ela estipula, então, o preço que você vai pagar, quantos artigos você vai publicar, em que lugar você vai publicar, quantas teses, é uma coisa quantitativa e vinculada a uma produtividade ininterrupta, da qual, vamos dizer, a prova mais alucinante é o currículo Lattes. Eu tinha uma amiga que dizia, você cospe na esquina e põe no Lattes, cospe na esquina para você ser produtivo.

Bom, ela faz isso e, de outro lado, ela elimina a noção de formação. O trabalho docente é visto como uma correia de transmissão de conhecimentos já estabelecidos. Ela não é um lugar de interrogação, ela não é um lugar de invenção e ela não é, muito menos, um lugar de inovação.

Ela é, pura e simplesmente, a reprodução, a repetição interminável como uma correia de transmissão do que já é sabido e conhecido. Não tem, portanto, formação. E o que é a pesquisa? A pesquisa é aquilo que responde às exigências particulares das organizações.

Então, a universidade operacional, eu digo, ela opera porque ela não age, não tem ação, tem operação. Uma operação atrás da outra. E ela é completamente inconsciente de si própria.

Ela realiza isto como se isto fosse a lei universal e necessária do mundo do conhecimento. O conhecimento desapareceu. Ora, tudo isso está impregnado dos elementos neoliberais.

A universidade operacional, em termos universitários, é a expressão mais alta do neoliberalismo.

No caso da USP, e em várias universidades, a presença desse mundo organizacional e desse mundo empresarial foram aparecendo de um modo muito diluído. Eu costumo dar um exemplo de uma coisa que ninguém tinha prestado muita atenção e que é, digamos, um dos primeiros sinais na superfície do que vinha acontecendo.

Houve, no começo do século XX, em 2001, uma defesa de doutorado na Escola Politécnica, um dos bastões mais altos da engenharia brasileira. Houve a defesa de uma tese sobre quais os caminhos mais adequados e lucrativos para a distribuição feita pelos caminhões de Coca-Cola. Isso é típico do que uma empresa precisa.

Então, a tese de doutorado estava a serviço de uma necessidade das fábricas da Coca-Cola de terem trajetos racionais para os seus caminhões. Isso foi uma tese de doutorado. Então, isso dá um pouco a medida do que estou colocando. Mas tem uma coisa muito pior, muito mais grave que está acontecendo agora. É o seguinte:

O início da cidade universitária como locus da universidade se dá com a construção e a instalação, lá no bairro Butantã, do IPT, o Instituto de Pesquisa Tecnológica, o que é de uma importância total. As grandes pesquisas que foram feitas para o país e para o estado de São Paulo e para diferentes ramos da vida social foram feitas pelo IPT, com uma capacidade imensa, semelhante ao que acontecia com o Instituto Butantã.

Então, nós temos dois gigantes que transformam o saber científico em resultados importantes para a sociedade. Nós vimos o que se tentou fazer com o Butantã, que descobriu, fez a primeira vacina do Covid. Quem fez foi o Butantã e que não foi levado a sério e que, sobretudo, foi esmagado pelo mundo empresarial.

Mas foi o Butantã que fez.

O IPT foi privatizado. Fez-se uma parceria na qual, na verdade, ele foi cedido para a Google. Ele é propriedade da Google.

E o que é mais deprimente é que se trata de um prédio fulgurante, um prédio histórico. Ele marca um momento da arquitetura e um momento fundacional da USP. Agora a Google colocou na frente do prédio, tudo de plástico, arvorezinhas, florzinhas, criancinhas, gatinhos, cachorrinhos, todo mundo contente, todo mundo sorridente, um mundo feliz, que é o mundo da Google, que destruiu o IPT com a privatização.

Então, nós temos uma universidade que demole a noção de formação, porque faz da docência transmissão de conhecimentos já dados, que destrói a noção de pesquisa, porque a pesquisa não é a busca daquilo que não foi pensado ainda e daquilo que precisa e pode ser pensado, mas ela se torna resolução de problemas empresariais.

O processo de privatização que está ocorrendo, que é característico da universidade operacional, invadiu a Universidade de São Paulo. Eu não sei como é que estão as outras universidades públicas no Brasil, mas isto está ocorrendo na USP. Houve, no início deste ano, um congresso para o qual fui convidada, e evidentemente não compareci, sobre as melhores formas de relação entre a universidade e as empresas.

Então, eu diria, temos a universidade funcional, a universidade de resultados e a universidade operacional. A situação na Universidade só irá se modificar se nós, usando a liberdade em sentido espinosano da palavra, tomarmos pé e fizermos alguma coisa.

No momento ela é um desastre.

*Marilena Chaui é professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Em defesa da educação pública, gratuita e democrática (Autêntica).

Texto estabelecido a partir da entrevista concedida a Daniel Pavan, no site A Terra é Redonda.

Devastação climática

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As mudanças em curso na sociedade internacional impactam sobre todos os indivíduos e comunidades, as transformações econômicas e produtivas estão gerando novas oportunidades e grandes desafios, as mudanças de comportamento estão agitando os mercados de consumo e os gestores de marketing vem queimando a cabeça para compreender as revoluções em curso nos hábitos e nos costumes dos consumidores, com alterações nas formas de pagamentos que estão agitando o mercado financeiro, com o surgimento de moedas digitais, novos meios de pagamentos, novas estruturas bancárias, fintechs, startups e novas formas de investimentos, gerando uma verdadeira revolução nos valores, novos produtos e novas perspectivas.

Neste cenário de constantes transformações, percebemos que mudanças crescentes no Meio Ambiente estão em curso na sociedade internacional, modificando regiões, alterando a vegetação, transformando as formas de sobrevivência, novos produtos e novas formas de cultivo, alterando tradições seculares e exigindo uma revolução para adaptar suas plantações, suas famílias e suas comunidades como forma de sobreviver em decorrência das agitações climáticas.

Especialistas renomados nas mais variadas regiões do mundo destacam que desde a Revolução Industrial o clima vem passando por grandes transformações, a adoção de combustíveis fósseis como o principal motor da economia internacional vem gerando um rastro de desequilíbrios e devastações, elevando a temperatura global, alterando a consistência do solo, exigindo novos investimentos para adaptar as plantações e dispêndios crescentes, muitas vezes inviabilizando seus investimentos e gerando uma verdadeira devastação econômica.

Ao mesmo tempo, percebemos o crescimento do negacionismo em todas as regiões do mundo, grupos políticos e setores econômicos reacionários se utilizam da disseminação de mentiras e inverdades como forma de defender os interesses de setores econômicos que degradam o meio ambiente, criando leis para fragilizar a regulamentação institucional e afrouxando a fiscalização, além de precarizar as estruturas de Estado.

Estamos observando as grandes catástrofes do meio ambiente em todas as regiões do globo, com devastações crescentes, aumento assustador das chuvas, destruição de infraestrutura, queda de pontes e desalojando comunidades inteiras, aumentando a degradação da infraestrutura, como aconteceu com muitas regiões do mundo e, neste momento, estamos vivenciando uma das maiores tragédias ambientais no nosso país, com fortes destruições da infraestrutura e rastros de devastações variadas, gerando comoção na comunidade nacional e internacional, aumentando a solidariedade entre os povos e uma busca frenética para salvar regiões inteiras e recuperando comunidades.

As destruições ambientais devem ser vistas como um dos maiores desafios para a comunidade internacional no século XXI. O respeito e a preservação do meio ambiente deveria ser uma bandeira de todas as nações, evitando agendas que degradam o ambiente e estimulam a mineração ilegal, cujos impactos sobre a sociedade são cada vez mais nítidas e evidentes, gerando desequilíbrios que podem inviabilizar a vida no Planeta Terra num futuro próximo.

Numa sociedade que cultua o individualismo, o narcisismo, o imediatismo e a busca frenética pelo lucro financeiro, uma comunidade que estimula a devastação ambiental e preconiza o “passar a boiada” estamos caminhando a passos largos para a uma devastação generalizada, uma morte anunciada e um namoro crescente da destruição civilizacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, MBA Executivo em Economia e Gestão do Agronegócio, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Os negacionistas estão matando, por Conrado Hubner Mendes

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No Rio Grande do Sul, o extremismo político encontrou o evento climático extremo

Conrado Hubner Mendes, Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade – SBPC

Folha de São Paulo, 16/05/2024

Negacionistas não somente rejeitam a verdade. Sequer participam de disputa sincera pela verdade. Não estão interessados. Todo negacionismo é, antes, negação da responsabilidade que a verdade imputa. Estratégia diversionista, esconde causalidades entre ações e consequências. E rejeita a norma jurídica ou moral que sanciona o comportamento danoso.

Não se equiparam aos sofistas ou aos céticos, nem aos ateus ou agnósticos. Estão mais próximos ao que Harry Frankfurt chamou de “bullshiters”. Diferente do mentiroso e do hipócrita, que conhecem a verdade e sabem que mentem, o “bullshiter” tem indiferença à verdade e joga outro jogo. Sua empreitada não é intelectual, mas política e sectária.

Muitos negacionismos contaminam a conjuntura brasileira: negacionismo do golpe, da ditadura, do racismo, da homofobia, dos conflitos de interesses da magistocracia, da corrupção e do autoritarismo; dos efeitos da desigualdade e da boçalidade pública; da correlação entre liberação de armas e aumento de homicídios, parecido com o da causalidade entre cigarro e câncer; do dever constitucional de manter o meio ambiente equilibrado e do direito de gerações presentes e futuras.

Não interessa ao negacionista cultivar o hábito intelectual da dúvida nem a atitude política da desconfiança. Quer apenas destruir inimigos com a melhor arma em mãos. É uma técnica sintonizada ao extremismo político, hoje armado de canhões desregulados de desinformação com alta precisão algorítmica. Financiar a fabricação de negacionismo com cara de ciência é comum a indústrias que impactam a saúde e o meio ambiente.

O Rio Grande do Sul sedia nesse momento o encontro do extremismo político com a desigualdade extrema e o evento climático extremo. Ainda não conhecemos todos os danos que uma reunião explosiva desse calibre produz, mas já somos capazes de perceber a multiplicação desnecessária e discriminatória de mortes, sofrimento e empobrecimento material.

Negacionistas têm tentado corroer o esforço da sociedade e do Estado brasileiro em enfrentar as consequências da tragédia. Sua produção torrencial de notícia falsa se dirige a bloquear e deslegitimar iniciativas estatais de ajuda aos atingidos.

Em paralelo, a solidariedade social, traduzida na dedicação voluntária de indivíduos e organizações, em colaboração com esforços públicos, é tumultuada por oportunistas que, mais do que participar, tentam individualizar os méritos do heroísmo coletivo em redes sociais.

Nesse momento, o negacionista luta dois combates: um contra o Estado, cujas instituições precisam continuar a ser evisceradas de capacidade de compreender a estrutura do desastre, de preveni-lo e de responder a ele; outra contra o conhecimento que demonstra, justamente, a relação de causalidade entre o que o negacionista faz e a consequência para a coletividade.

A tragédia precisa ser desvinculada da ação negacionista. O negacionista precisa ser exonerado de sua responsabilidade.

Exemplos recentes da responsabilidade negacionista: o governo do RS ignorou plano de prevenção a desastres desde 2017; flexibilizou regras sobre barragens em áreas de preservação permanente; enfraqueceu o código florestal; o Congresso Nacional vem desmontando a proteção ambiental nos últimos anos e tenta aprovar o “pacote da destruição” com mais de 20 projetos contra o meio ambiente. O governo federal não dá sinais de ter a causa da proteção ambiental como prioridade.

Ainda não conseguimos construir ferramentas de responsabilização de organizações, empresas e atores políticos que, desinteressados nas consequências humanas e econômicas do que fazem, e ansiosos por ganhos de curto prazo, contribuem para o desastre. Nem conseguimos construir instituições que traduzam o compromisso constitucional da precaução em prática real.

Enquanto isso, os negacionistas estão matando e vão continuar a matar.

A quem interessa que a Saúde seja luxo? por Ladislau Dowbor

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Há vastos exemplos de que sistemas públicos são mais eficientes. Mas modelo hiperfinanceirizado dos EUA se espalha pelo mundo, com remédios caríssimos, marketing trapaceiro e seguros abusivos. Resultado: mortes, sofrimento e dívidas

Ladislau Dowbor – OUTRAS PALAVRAS – 13/05/2024

A indústria de Saúde tornou-se uma área-chave da atividade econômica. Está sendo rapidamente privatizada, com resultados profundamente negativos, exceto para os poucos felizardos no topo da pirâmide de riqueza. O mercado livre e irrestrito pode funcionar melhor para a escolha de sapatos. Mas para a Saúde, é um desastre. Não é uma questão de ideologia, mas de observar exemplos daquilo que funciona melhor.
(Ladislau Dowbor)

Longe de fornecer Saúde Universal, o legado dos aportes das instituições de financiamento ao desenvolvimento em saúde privada com fins lucrativos tem mais chance de resultar em uma crescente concentração de riqueza e poder nas mãos de um pequeno número de homens escandalosamente ricos.¹

As simplificações ideológicas na economia são uma maldição, e são baseadas não apenas na ignorância, mas sobretudo no interesse financeiro. O Paxlovid, um tratamento recente da Pfizer para covid, com 30 pílulas, está sendo vendido por US$ 1.390 – no entanto, pesquisadores de Harvard descobriram que o custo de produção para o tratamento completo é de cerca de US$ 13. Até onde pode ir esse despropósito? A questão-chave aqui é que as decisões são tomadas não com base em quanto se pode melhorar a Saúde, mas quanto dinheiro é possível extrair, ainda que reduza drasticamente o acesso. Para os algoritmos que calculam a otimização de marketing, é óbvio que, nas comunidades abastadas, os clientes não verão muita diferença entre pagar cem ou mil dólares, ao sentirem que sua saúde está ameaçada – eles são muito sensíveis – e pagarão qualquer preço. Os algoritmos refletirão a lógica que incorporaram: maximizar lucros. A ideologia confere o sentimento de justiça: acumular dinheiro é correto e moral neste esporte.

Poderiam justificar com a alegação de que tiveram que gastar muito em pesquisa. Isso é parcialmente verdadeiro, claro, e válido para várias das grandes corporações farmacêuticas. Mas a verdade é que o enorme progresso feito pela humanidade em pesquisa em Saúde é principalmente herdado dos avanços científicos amplos que nos deram o entendimento do DNA, a microscopia eletrônica, bioinformática, IA, nanotecnologia e tantas transformações estruturais nas bases tecnológicas da pesquisa. Quando uma corporação oferece um produto final, pelo qual a população terá que pagar, mas que a maior parte dos insumos de capacidade de pesquisa usados para produzi-lo foi herdada e paga por nossos impostos, isso representa, como Gar Alperovitz e Lew Daly chamaram, “merecimentos injustos”.

O esquema OxyContin nos revela outra dimensão, na qual causar mortes em grande escala é irrelevante, desde que o produto se pague. A crise dos opioides “evoluiu, começando com pílulas sob prescrição médica e terminando com o fentanil sendo produzido ilicitamente, além de outras drogas que juntas já foram responsáveis por 800 mil vidas americanas nos últimos 25 anos, com previsões de mais um milhão de mortes até o final da década”. As famílias Sackler, Purdue e Johnson & Johnson foram levadas à justiça, mas foram penalizadas com apenas algumas multas: “Os reguladores federais e promotores não foram capazes de aproveitar o momento. Mais uma vez, as grandes farmacêuticas escaparam. Os promotores negociaram um acordo no qual a Purdue pagou uma grande multa, mas foi autorizada a continuar vendendo OxyContin praticamente sem restrições. Foi feito apenas um acordo para que seus executivos se declarassem culpados de contravenções e evitassem a prisão… Os EUA ainda não conseguem aprender as lições de uma catástrofe unicamente norte-americana, são incapazes de romper a influência do dinheiro de grandes corporações sobre a medicina, a regulamentação de drogas e a responsabilidade política”.²

Podemos encontrar milhares de exemplos de fraudes, marketing mentiroso e outras ilegalidades. É possível encontrá-los em uma rápida pesquisa na internet, colocando o nome de qualquer grande corporação farmacêutica junto com “acordos”. A lógica é simples: trata-se de uma área diferente de responsabilidade legal, na qual os culpados pagam somas enormes, mas que são como troco de bala em comparação com seus lucros. Assim, seus donos se livram não apenas da prisão, mas também de admitir culpa. A Wikipedia também fornece uma “lista dos maiores acordos farmacêuticos”, cada um na casa dos bilhões de dólares, por violações da Lei de Reivindicações Falsas [False Claims Act é uma lei estadunidense que pune entidades ou indivíduos que defraudam programas governamentais] e similares. Tudo é feito com exércitos de advogados e especialistas de primeira linha em negócios, finanças e até mesmo em drogas. Não é uma questão de não saberem o que estão fazendo. E eles interrompem seu programa de TV com uma garota simpática dizendo que esse medicamento será maravilhoso para você. O consumidor paga por esse comercial, cujo custo está incluído no preço dos produtos. Cerca de 27% do preço de um produto da Johnson & Johnson são para custos de marketing, não para pesquisa.

Esses poucos exemplos se referem à Big Pharma, mas uma lógica similar se aplica a tantos outros serviços de saúde privatizados. A questão que levantamos aqui é: a privatização é compatível com a garantia de vidas saudáveis, ou apenas com os lucros provenientes de serviços de saúde? O problema básico é que um sistema de saúde privatizado, com suporte de regulação pública, que é o modelo dos EUA, é um fracasso sistêmico. É incompetente e ineficiente. No Brasil, como nos EUA e outros países, os oligipólios de saúde assumiram as instituições de regulação. Alega-se frequentemente que a “autorregulação” é suficiente. Mas é um desastre.

Os gastos com Saúde nos EUA, em 2019, foram de US$ 10.921 per capita, e a expectativa de vida de 77,3 anos. Trata-se do sistema basicamente privatizado e não regulamentado que vimos. No Canadá, onde a Saúde é basicamente pública, gratuita e com acesso universal, o custo per capita foi de US$ 5.048, menos da metade, e a expectativa de vida de 81,7 anos. A lógica não é complexa: nos países onde os sistemas são pensados para garantir a saúde da população de fato, as políticas se concentram, entre outros, na saúde preventiva, na água limpa, no controle de emissões, em vacinas, em cidades mais saudáveis. A preocupação central não está em vender o máximo possível de medicamentos e serviços de cura. Trata-se de saúde, não de negócios.

Este estudo do Banco Mundial é esclarecedor. No Reino Unido, os números correspondentes são US$ 4.313 de gasto per capita e 80,9 anos de expectativa de vida, apesar de tantos ataques ao NHS [Sistema Nacional de Saúde]. A Dinamarca é outro caso interessante onde há serviço de saúde basicamente público: US$ 6.003 e 82 anos. Na França, US$ 4.492 e 82 anos. Em outro nível, Cuba é um exemplo interessante, com gastos de US$ 1.032 e 79 anos, superior aos 77 anos dos EUA. Para o Brasil, os números são US$ 853, e uma expectativa de vida de 76 anos, graças, em grande medida, ao Sistema Único de Saúde. Os grupos de seguro de saúde brasileiros, alguns deles propriedade de corporações de saúde privadas dos EUA como United Health, ou da indústria de gestão de ativos como BlackRock, são um exemplo impressionante de ineficiência sistêmica. Eles drenam recursos financeiros de cerca de 50 milhões de pessoas. Mas quando você se aposentar, não poderá mais pagar por eles, na idade em que mais precisaria.

Os serviços de saúde privados tornaram-se uma enorme arena financeira. No geral, os serviços de saúde representam quase 20% do PIB nos EUA – é sua maior indústria, com resultados dramaticamente pobres, a menos que você esteja no clube dos ricos com acesso a ilhas de serviços de saúde privados de luxo. “Enquanto isso, um terço dos americanos sem seguro não pode pagar seus medicamentos, e quase metade dos que não têm cobertura solicitou aos médicos opções mais baratas. A presidente da Câmara dos Deputados, Nancy Pelosi (Democrata da Califórnia), apresentou na semana passada o plano de seu partido para permitir que o governo participe da definição dos preços dos medicamentos prescritos. O projeto foi nomeado de ‘Ato para Reduzir Agora os Custos dos Medicamentos’.”³ Eles ainda estão lutando.

O que é impressionante é que os EUA oferecem o modelo mais ineficiente e caro, mas é ele que está sendo gradualmente expandido em muitos países. Porque é lucrativo, mesmo que deixe a maior parte da população em situações dramáticas. A razão é que faz parte de um sistema financeiro integrado global. Eu pago a uma faxineira, um dia por semana, para limpar minha casa em São Paulo. Ela tem problemas de saúde, então entrou em um grupo de seguro saúde privado, o Notre Dame. Verifiquei dados sobre essa corporação e encontrei, entre seus investidores, a BlackRock. Assim, parte do que pago a uma pessoa modesta no Brasil é transferida para acionistas internacionais, em frações de segundo, como dinheiro virtual. Esta capilaridade de drenos financeiros com dinheiro virtual funciona em escala mundial. Precisamos de saúde, e em situações desesperadoras pagamos qualquer coisa, e nos endividamos – ou adiamos a busca por cuidados até que as coisas piorem, e fiquem mais caras. É um sistema de gestão globalmente falho.
Há uma óbvia dimensão ética. Tornar o acesso à saúde mais difícil, para ganhar mais dinheiro, é simplesmente imoral. E as empresas ganham mais dinheiro quando atende aos mais ricos. Que haja tanta desgraça em um país abastado como os EUA é algo simplesmente absurdo. O que os gigantes da gestão de ativos sabem sobre serviços de saúde, exceto em relação a quanto dinheiro podem extrair? Mas a dimensão econômica é igualmente absurda. E trata-se de economia básica: com muitos produtores e uma riqueza de escolhas, a concorrência pode estimular melhores produtos e preços. Não é o que acontece no caso do sistema de saúde.

Um amigo médico resumiu de forma clara para mim: ele trabalha em um hospital privado e precisa cumprir cotas de procedimentos, que o hospital cobrará do seguro saúde, que por sua vez dificulta a aprovação de procedimentos, exigindo que se avalie caso a caso. O grupo de seguro de saúde cobrará tanto quanto possível dos clientes. Ele geralmente está ligado a uma grande gestora de ativos, e o retorno para os investidores é central. No triângulo entre o médico, o hospital e os seguros de saúde, os interesses do paciente vêm por último. É caro e ineficiente – e aumenta o PIB. Mas o que precisamos é de mais saúde, serviços melhores e mais baratos. Quando você aumenta custos e preços, você aumenta o PIB, mas da maneira errada.

A ideia básica que estou tentando transmitir aqui é que algumas atividades funcionam claramente melhor em um ambiente de mercado livre, como produzir bicicletas, tomates ou abrir um bar. Mas colocar nossa saúde nas mãos de corporações financeiras em um ambiente de maximização de lucros é um tributo à incompetência. E as mortes e sofrimento resultantes são dramáticos, sem falar no sentimento permanente de insegurança, para nós e para nossas famílias. É apenas uma questão de seguir os exemplos comprovados do que funciona melhor: acesso público universal gratuito. Quanto tempo mais os norte-americanos continuarão cruzando a fronteira para o Canadá?

Ladislau Dowbor, Economista e professor titular de pós graduação.

Ricardo Antunes analisa o inferno da precarização

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Dicionário Marielle Franco mostra: hoje, o “andar de baixo” divide-se entre o temor do desemprego e o fardo da precarização. É hora de retomar uma pauta do século XIX: a redução da jornada de trabalho, como forma de gerar empregos e mitigar a exploração…

Ricardo Antunes – OUTRAS PALAVRAS – 03/05/2024

Nos últimos anos, diante de uma crise internacional do trabalho e do capital, a classe trabalhadora brasileira sofreu graves retaliações, como parte do processo de desindustrialização e da diminuição das garantias de direitos sociais sob a racionalidade neoliberal. Este impacto vem trazendo graves consequências, como o aumento da precarização das relações de trabalho, razão pela qual a população brasileira vem sofrendo com a informalidade, a uberização e a retirada de direitos trabalhistas. Para piorar este quadro, passamos pelos duros anos da pandemia da covid-19, o que fez com que as relações de trabalho ficassem ainda mais precarizadas. Além do aumento da fome, tivemos ainda o aumento do desemprego, o que levou muitos trabalhadores à informalidade chegando a marca de quase 39 milhões de brasileiros no mercado informal apenas em 2023, com dados revelados pelo IBGE.

Sabemos que tal crise, relacionada aos direitos trabalhistas aqui no Brasil, não se inicia hoje. A classe trabalhadora brasileira, em toda a sua diversidade e interseccionalidade, tem lutado há décadas por reconhecimento e redistribuição, tanto em seu trabalho produtivo quanto reprodutivo. A conquista dos direitos das trabalhadoras domésticas no Brasil, por exemplo, aconteceu de forma parcelada. Por um longo período direitos conquistados por outras categorias foram negados às trabalhadoras domésticas e até hoje a maior parte da categoria trabalha na informalidade e de forma precarizada. Inclusive, atualmente, as relações entre produção e reprodução têm sido cada vez mais conflituosas. Em 2017, por exemplo, protagonizamos grandes mobilizações nacionais contra a Reforma Trabalhista, apesar da criação da lei nº 13.467, responsável pelas mudanças bruscas nas leis que protegiam os(as) trabalhadores(as) formais brasileiros(as). Desde então, além do aumento da quantidade de trabalhadores(as) sem carteira assinada, as condições de trabalho passaram a ser mais instáveis, fortalecendo, assim, um novo modelo de contrato de trabalho intermitente, sem o pagamento de horas in itinere e de horas extras (em detrimento do banco de horas) e sem a consideração em relação ao tempo de mobilidade para o trabalho e ao tempo de almoço durante a jornada, por exemplo.

Além disso, passados alguns anos desde as reformas, em 2024 o debate sobre a uberização do trabalho volta à tona, e ganha cada vez mais o noticiário (e as ruas). Trabalhadores(as) de aplicativo vêm protestando quase que semanalmente nas avenidas das capitais em crítica às propostas governamentais e empresariais postas à mesa, que não garantem qualquer direito ao trabalhador(a) e fortalecem o papel da Indústria 4.0 – uma nova fase de impulsão capitalista marcada por uma enorme reestruturação produtiva permanente do capital. De acordo com matéria publicada no Brasil de Fato, em julho de 2023, “atrás do aplicativo (app) de transporte da norte-americana Uber, vieram os de comida, de entregas e de compras. Hoje existem cerca de 1,27 milhão de pessoas trabalhando como motoristas e outras 385 mil como entregadores para aplicativos no Brasil”.

Os dados compartilhados por esta mesma matéria revelam ainda o perfil destes(as) trabalhadores(as), levando em conta questões como raça, renda e tempo de jornada, com base em informações cedidas pelos próprios apps – 99, Uber, iFood, Zé Delivery e Amazon: “Entre os motoristas, 95% são homens, dos quais 62% declaram-se negros ou pardos, e têm em média 39 anos. Já entre os entregadores, 97% são homens, dos quais 68% se declaram negros ou pardos, com idade média de 33 anos”. O dado é de uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia.

A informalidade se soma, neste caso, ao racismo estruturado nas relações sociais e de trabalho no Brasil. Muitos(as) destes(as) trabalhadores(as) acabam sendo também criminalizados, marginalizados e perseguidos, seja dentro dos elevadores dos prédios em bairros nobres ou nas ruas, quando em busca da garantia do seu ganho de vida. A realidade das condições de trabalho informal e, em especial, dos(as) trabalhadores(as) da rua, como os ambulantes e camelôs, é também, há muito, degradante – ainda mais considerando, por exemplo, a cidade turística e super populosa do Rio de Janeiro. Diante das violações de direitos agravadas nos últimos anos, o Movimento Unidos do Camelôs (Muca), do Rio de Janeiro, trava há décadas uma luta contra a Guarda Municipal do Rio de Janeiro. Ou seja, não basta sofrer com retrocessos nas leis, ainda sofrem com a criminalização do próprio meio de trabalho pelas ruas da cidade.

O mundo do trabalho tem passado por constantes transformações tecnológicas, mas há cada vez mais retrocessos nas relações e nas garantias de direitos, sendo um deles os direitos trabalhistas. A população brasileira, mais uma vez, tem suas camadas sociais empobrecidas no meio desse jogo entre governos e empresas que visam cada vez mais o lucro – e que negociam direitos sem mesmo ter um sindicato ou organização com representação trabalhistas nas mesas de negociações, o que é o caso dos motoristas de Uber. Dentro disso, infelizmente, sabemos quem são as pessoas mais atingidas no nosso país, são elas: negras, pardas, não brancas, pobres, faveladas e periféricas.

Para refletirmos sobre esses desafios, considerando o papel político da classe trabalhadora, destacamos a entrevista com o sociólogo Ricardo Antunes, realizada pela EPSJV/Fiocruz, em abril de 2024, e publicada como verbete no Dicionário de Favelas Marielle Franco. (Introdução: Gizele Martins e Clara Polycarpo)

A classe trabalhadora não nasce sabendo o que fazer

Ricardo Antunes em entrevista a equipe da EPSJV/Fiocruz

Ricardo Antunes, sociólogo marxista e um dos mais influentes pensadores do país no tema mundo do trabalho, atualmente é professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e leciona disciplinas como Sociologia do Trabalho e Sociologia de Karl Marx. Antunes é também um dos mais importantes teóricos da obra marxiana da América Latina. Nesta entrevista, realizada e originalmente publicada na Revista Escola Politécnica em Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), em abril de 2024, Antunes avalia a realidade atual do mundo do trabalho no Brasil e no mundo nesta entrevista alusiva ao Dia Internacional dos Trabalhadores.

Já se passaram cerca de 140 anos desde a greve em Chicago que originou a celebração do 1º de maio demandava a redução da jornada de trabalho para 8 horas diárias. Isto continua a ser uma demanda?

A jornada de trabalho atualmente é um tema de gravidade relevante para aqueles setores que mais se expandem no mundo do trabalho: o do trabalho intermitente, o trabalho em plataforma, o trabalho uberizado ou o trabalho no setor de serviços. Nestes setores, que reforço, são os que mais se expandem, a jornada é ilimitada.

Veja que o Projeto de Lei Complementar do governo Lula – o PLP 12/2024 –, pasmem, sugere uma jornada limite por aplicativo de 12 horas. Imagine um trabalhador ou trabalhadora que opte por trabalhar em dois aplicativos. Em tese, num cálculo abstrato, eles podem chegar a 24 horas de jornada por dia! Se trabalhassem seis, sete horas, por aplicativo, chegariam facilmente a uma jornada de 13, 14 horas, como as nossas pesquisas têm mostrado. Então, a questão da jornada de trabalho hoje tem uma importância, de certo modo, semelhante a do século 18 e 19. Por quê?

Porque se a moda pega, ou se a porteira for aberta, nós não mais teremos jornadas de trabalho.

O que singulariza o trabalho intermitente em plataformas ou assemelhados é que se trabalha quando há trabalho disponível, e não se trabalha quando não há trabalho, e o tempo de espera não é contabilizado em termo de jornada. Trabalhamos este tema em nossos livros Icebergs à Deriva e Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. Jornadas de 12, 13, 14 horas, no Brasil e em vários países do mundo, não são mais a exceção, vêm se tornando a regra, especialmente se se contabilizar o tempo de espera. Para que todo mundo entenda bem: num shopping center, por exemplo, se um trabalhador que está numa loja comercial não atende clientes, ele está recebendo.

Um motorista ou entregador, em sua jornada diária, se não tem clientes mas está disponível para o trabalho, esse tempo não é contabilizado. Isto é uma questão crucial.

Também não se considera o tempo médio que se gasta em deslocamento, correto? Muitos trabalhadores saem de casa cinco, seis horas da manhã para voltar às oito da noite…

Pesquisas de Brasília mostram, por exemplo, que um trabalhador de moto que trabalha naquele cinturão ao lado de Brasília já leva 40 minutos – de moto! – para chegar ao trabalho no centro de Brasília. Imagine quando esse deslocamento não é de moto, mas de carro ou de transporte público.

A redução da jornada de trabalho para abertura de novas vagas deveria se manter como pauta, então?

Este é um desdobramento crucial desse tema, da jornada de trabalho. Atualmente há no mundo centenas de milhões de pessoas que trabalham 12, 14, 16, 18 horas por dia. E, ao mesmo tempo, temos centenas de milhões de pessoas que não trabalham nenhuma hora por semana, porque não têm nenhum trabalho. Seria muito elementar dizer: ‘vamos fazer uma média, trabalhemos seis horas por dia, todos e todas, de modo que ninguém fique sem trabalho’.

Ou seja, a redução da jornada de trabalho é um tema crucial hoje. E por que ele não entra na pauta? Porque as grandes corporações não aceitam essa conversa.

Elas querem extrair ao máximo tudo que a força de trabalho pode oferecer, num processo de exploração, expropriação e espoliação.

Como a demanda pela redução da jornada de trabalho, prévia ao próprio estabelecimento do Dia Internacional dos Trabalhadores, perdeu seu alcance mesmo a realidade atual sendo esta que você descreve?

São muitos os elementos que explicam isto. Primeiro, há hoje no mundo inteiro, com raras exceções, um desemprego estrutural, que não é exclusivo do Sul global, mas é grande e forte nos países capitalistas do centro, como se constata em tantos setores que desapareceram, indústrias que foram fechadas e no trabalho imigrante, que é recorrentemente buscado porque é aquele trabalho em que vale tudo e passa ao largo da legislação protetora do trabalho.

O segundo elemento: o maior temor da humanidade, hoje, é o desemprego. Não é que houve uma perda de consciência, por descuido dos movimentos organizados de trabalhadores. Se eu não tenho trabalho nenhum e o que me oferecem é uma jornada ilimitada, eu aceito, porque não tenho trabalho nenhum.

Neste novo tipo de emprego que não é emprego, de trabalho que não é considerado trabalho, nessa nova modalidade de prestação de serviço – que também é equivocada porque não é serviço –, as empresas querem esconder a condição de assalariamento, para, a partir da ideia de que são empreendedores ou colaboradores, obliterar as condições de assalariamento. Desse modo, você pode burlar a legislação social protetora do trabalho.

Então, em síntese, nós estamos vivendo uma crise estrutural, não estamos vivendo uma crise conjuntural. A crise é da humanidade, da civilização.

A lógica destrutiva capitalista levou a natureza a esse nível de destruição e o trabalho a esse nível de devastação, trouxe xenofobia, racismo, o neofascismo. Tudo isso se expande.

Este cenário faz com que eu só possa defender e lutar por um trabalho, ainda que ele não seja portador de direito nenhum. Porque se eu não tiver este, eu não tenho nada.

Um cenário de Estado de Bem-Estar Social parece cada dia mais distante. Os sindicatos têm responsabilidade nisto?

Os sindicatos se acomodaram. Isto vale também para o cenário europeu. Quando a gente fala em bem-estar social hoje é preciso tomar muito cuidado. Porque estes direitos de bem-estar não chegam aos imigrantes.

Trabalhadores imigrantes não têm direito algum. São tratados quase como párias sociais. Esta dificuldade faz com que a jornada não ganhe o estatuto da questão crucial para a classe trabalhadora, em sentido amplo. Porque a questão crucial é ter emprego para sobreviver. Eu só vou lutar por uma jornada melhor depois que eu tiver emprego.

Os operários ingleses dos séculos 18 e 19 passaram a lutar fortemente pela redução da jornada de trabalho, uma luta de muitas décadas, quando o emprego lhes estava garantido porque o mundo industrial estava em expansão. Hoje nós vivemos um mundo industrial, de agroindústria e de serviços em crise. Financeirizado. Nele, a prioridade é lutar pelo emprego, pela sobrevivência.

Feito isso, vêm a segunda luta, a terceira luta, e as lutas retornam.

A migração de plantas produtivas e a entrada de novos contingentes de mão de obra colaboram de que forma para este cenário? Qual o impacto de você ter um bilhão de trabalhadores chineses, por exemplo, sendo incorporados ao mercado de trabalho de uma economia globalizada?

O capitalismo do nosso tempo é muito diferente daquele que tínhamos nos anos 1980 e mesmo 1990.

Por quê? Além de toda a explosão tecnológica e do aguçamento da crise estrutural do capital, que só cresce destruindo a natureza, o trabalho e o gênero humano, a grande maquinofatura do mundo hoje está na China. Isso trouxe desindustrialização dos países europeus e de vários países do Sul global. As grandes empresas capitalistas estão na China. A Volkswagen está na China, a Fiat está na China, a Mercedes-Benz está na China. Todas elas migraram.

A China se transformou, de uma revolução socialista autárquica e fechada em si mesma, que possui tudo aquilo que ela precisa para sobreviver, como era o projeto de Mao Tsé-Tung, em uma China pós-maoista em que há criação do socialismo de mercado, que para mim é um eufemismo para defender o capitalismo. O nível de exploração do trabalho na China dez anos atrás era brutal, e foi preciso ocorrerem muitas greves do operariado chinês para que fosse reduzida esta brutalidade. Há o sistema chinês que chamam de 996, no qual você trabalha das 9h da manhã às 9h da noite, seis dias por semana. É brutal, é uma superexploração do trabalho. Mas isso mudou a máquina.

Além disso, o capitalismo hoje se sustenta numa economia financeirizada, que impulsiona as taxas de lucro no setor de serviços.

Houve, portanto, a transformação capitalista dos serviços. De públicos, eles se tornaram privados. Ou seja, nós temos hoje um ramo em expansão da indústria no mundo inteiro: a indústria de serviços. Porque a indústria de transformação, está na China abocanhou. Isto é uma mudança profunda no cenário mundial.

O setor de serviços engloba diferentes categorias, dos trabalhadores de aplicativos até médicos, por exemplo. Todos se enxergam como trabalhadores?

Não. Se você falar, em uma greve de professores universitários, que eles são classe trabalhadora, vai ter professor que vai ficar nervoso, vai se incomodar. Isso vale para médico, advogado, o segmento assalariado das classes médias. Mesmo que as classes médias estejam descendo um elevador em direção à proletarização na vida real, elas sonham com o elevador que as
vai levar ao céu. Elas sonham com o paraíso, ainda que estejam derrapando para o inferno.

O setor que mais se expande é o proletariado de serviços: call center, indústria hoteleira, fast food, trabalhadores em plataformas… Estes são proletários, o que não quer dizer que tenham esta consciência. A classe trabalhadora da Inglaterra de 1730 também não tinha consciência de sua condição operária. Muitos estavam saindo do mundo servil, feudal, rural.

A consciência de classe é um fenômeno muito complexo e difícil. Sabe por quê? É nele que o ideário capitalista e que o neoliberalismo vêm operando há mais ou menos 50 anos, desde a década de 1970.

Isto explica por que trabalhadores que hoje trabalham como entregadores, de motos e até mesmo bicicletas alugadas, se jogam na ideologia do empreendedorismo.

As plataformas são tão impressionantes que quem entra com o carro? O trabalhador. Quem entra com a moto? O trabalhador. Quem entra com a bicicleta? O trabalhador. Quem entra com o celular? O trabalhador. Ou seja, a responsabilidade de prover o instrumental de trabalho foi transferida para o trabalhador.

O impacto da ideologia neoliberal continua muito forte, apesar da crescente dificuldade para subsistir?

Quando eu trabalhei na universidade inglesa, em Sunderland, entre 1997 e 1998, convidado pelo meu amigo István Mészáros, preparava meu livro para o concurso de professor titular, que foi Os
Sentidos do Trabalho. Nele eu lembrava que a Margaret Thatcher, em seus primeiros discursos após ganhar as eleições, dizia querer que cada indivíduo do Reino Unido sonhasse em ser um indivíduo possessivo, um indivíduo que fosse proprietário de si mesmo. Esse discurso se perpetuou no governo John Major e, no período em que lá estive, continuava presente durante a gestão de Tony Blair.

O representante da chamada “Terceira Via”…

Sim, a Margaret Tatcher dizia o seguinte sobre ele: “Esse menino é um menino de futuro”. Os ingleses críticos chamavam o Tony Blair de ‘Tory’ Blair, porque ‘tory’ é o nome do partido conservador inglês. Eu estava lendo os discursos que ela tinha feito uma década antes (anos 1980), e naquela época (1997-998) eu dizia: ‘Não é possível!’. E a verdade é que isto foi possível e entrou no mundo todo. Nós estamos vivendo uma era de desencanto do mundo. Estamos vivendo uma era de derrotas muito duras. O projeto socialista russo e soviético terminou tragicamente.

Em 2008, 2009, nós estávamos animados aqui com a revolta da Tunísia, Occupy Wall Street, vitória das esquerdas na Grécia, depois revolta em Portugal… Nada disso avançou.

A possibilidade de uma ‘Internacional’ hoje é mais factível para a extrema direita do que para a esquerda?

A direita está se organizando globalmente. O [Jair] Bolsonaro é uma peça de um cenário que tem o [Donald] Trump, o [Viktor] Orbán na Hungria, o [Matteo] Salvini e a [Giorgia] Meloni na Itália, que tem crescimento em Portugal, na Inglaterra, o ressurgimento da extrema direita na Alemanha, na Suíça… Nós temos um movimento, digamos, favorável ao ressurgimento do neofascismo, do neonazismo. Muito forte, aliás. Tudo isso dificulta a ação da classe trabalhadora. Quando tudo vai mal na Terra, a única esperança é que exista um reino fora da Terra, em que as coisas funcionam. Daí a crença na teologia da prosperidade.

Esta teologia parece crescer junto ao ideal neoliberal. É como se ela fosse a tradução litúrgica de um novo ideário individualista?

Exatamente. Está certo dizer ‘eu vou resolver o meu problema’. Eu tenho que abraçar uma religião na qual a solidariedade é o que menos conta. Eu tenho é que fazer a coisa certa e fazer a coisa certa significa começar a enriquecer na Terra. Nem todos os evangélicos são de extrema direita, mas há uma forte extrema direita majoritária entre eles, que está nos Estados Unidos, em países da Europa e aqui no Brasil também. E está entrando na Argentina.

Já se fala em uma quinta revolução industrial, na qual os seres humanos e a inteligência artificial precisariam aumentar sua colaboração em prol dos objetivos da empresa. Como você avalia este tipo de discurso?

Eu entrei há uns meses atrás no SAC [Serviço de Atendimento ao Cliente] do site da OpenAI, que é a criadora do ChatGPT 4. Eu ainda não sei se continua lá em seu site, mas ela dizia que era inimaginável o número de trabalhos que iriam desaparecer com a Inteligência Artificial. Eu quase caí de costas. Inteligência artificial, robotização, automatização, internet das coisas, tudo isso significa o trabalho vivo desaparecer e o trabalho morto não ser mais uma máquina, algo dotado de materialidade, mas algo informacional, digital e algorítmico. Esta nova ‘máquina’ comanda você.

Não resta mais a opção ‘ludista’, de se voltar contra o avanço da tecnologia, correto? Não há nenhuma máquina para se quebrar…

É, se você quiser quebrar o algoritmo, você não o vê. Eu estudo esse tema há dez anos e nunca vi o algoritmo. Entendeu o tamanho da complexidade? Essas mudanças exploram o trabalho no mundo inteiro.

É o trabalho que subsidia as informações para a Inteligência Artificial. Eu chamei isso de privilégio da servidão de escravidão digital.

Nós estamos adentrando um mundo onde somos escravos digitais, em várias dimensões e em várias amplitudes. O resultado disso é que o cronômetro do Taylor [Frederick Taylor andava por sua fábrica com um cronômetro com o qual media a relação entre o trabalho realizado e o volume de recursos utilizados através do tempo] não faz mais sentido, porque ele foi substituído pelas metas que são interiorizadas em nossa subjetividade. Todos os entregadores e motoristas que eu entrevistei dizem: ‘eu só paro de trabalhar quando cumpro minha meta’.

O que leva a lista de doenças relacionadas ao trabalho passar a considerar o esgotamento pela síndrome de burnout, ansiedade, depressão…

Qual é o ideário empresarial? Termos resiliência e sinergia. Bom, isto é uma empulhação, é a adulteração completa do léxico. Eu já tratei disso em vários estudos: você querer ser resiliente e trabalhar 48 horas num dia, mesmo ele só tendo 24 horas… Você ter que dar mais do que pode, a resiliência, gera o burnout, o estresse, a depressão e até mesmo o suicídio.

Este é o cenário, e a síntese é: a resiliência é a porta de entrada do burnout. Chega uma hora em que eu apago, e daí eu tenho que ir para um psiquiatra, um médico.

Por quê? Porque eu não dou conta mais deste inferno.

Como enfrentar isto e não ficar paralisado diante dessa realidade?

A classe trabalhadora não nasce sabendo o que fazer. Ela adquire o sentido coletivo na experiência. O chamado Breque dos Apps, em plena pandemia, entrou para a história da luta dos trabalhadores uberizados do Brasil, como várias outras que ocorreram na Inglaterra, na França, na Itália, nos Estados Unidos, na Índia, na China, na África do Sul.

Nós estamos lançando agora, daqui a alguns dias, um livro que vai se chamar Trabalho em plataformas digitais – Regulamentação ou desregulamentação?. Enquanto termino a obra, eu olho para o exemplo do que ocorre na Europa. O Parlamento Europeu aprovou na semana passada a diretiva da União Europeia de que nós precisamos ter a presunção de que todos os trabalhadores das plataformas são empregados e não autônomos. Esta é a presunção. Tem que valer para todo trabalho. ‘Ah, professor, mas isso a gente não consegue’. Aí entra o ponto dois: conseguir isto através de organização e luta. Eu estou citando a diretiva da União Europeia, não uma reivindicação socialista.

É preciso tirar a aparência de neutralidade das plataformas, dos algoritmos. Precisamos desnudar o algoritmo. As empresas não abrem isso, mas têm que abrir. Então, as lutas são as mesmas do operariado do século 18, com a diferença que nós não estamos no século 18 mas no 21. Olhe que tragédia! Nós estamos numa era de monumental avanço tecnológico controlado pelos Elon Musk e Jeff Bezos [segundo e terceiro homens mais ricos do mundo] et caterva.

E qual é o momento da instabilidade, da ruptura? Ninguém sabe, isto é o que é genial da História, é imprevisível. Então, nós temos que lutar. Sem luta, não chegamos a ele, sem organização, consciência e força social também não chegamos a ele, mas há um momento em que, lembrando [Karl] Marx, “tudo que é sólido desmancha no ar”.

Ricardo Antunes,
É um sociólogo marxista brasileiro. Atualmente é professor titular da Universidade Estadual de Campinas.

A Universidade funcionalista, por Jean Pierre Chauvin

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Jean Pierre Chauvin – A Terra é Redonda – 11/05/2024

O contrato de orientação entre professores e orientandos não deve(ria) funcionar como se a universidade fosse um balcão de negócios

Desde os anos 1980 Marilena Chauí [1] oferece-nos diagnósticos precisos sobre o contágio da universidade pelos pressupostos neoliberais, dentre eles o deslocamento da pesquisa e da docência extracurricular, que passaram de atividades-fim para meios de se obter financiamento – quase sempre segundo as regras do capital privado, pautado pela ideologia da “competência” e “performance”.

Em sua tese de livre-docência, defendida em 2002 na área de Literatura Brasileira, João Adolfo Hansen sugeria que, desde o início da década de 1980, a universidade passara a se estruturar e funcionar como uma grande empresa, com o advento dos pressupostos que orbitam os modelos de gestão e estimulam a concorrência entre colegas, segundo a (anti)ética do lucro.

Como sabemos, a discussão é antiga também em outros países. Entre as décadas de 1950 e 1960, Edgar Morin [2] foi um dos primeiros a observar que o intelectual ocupava lugar ambivalente na sociedade dita “pós-moderna”, pois corria o risco de irradiar juízos críticos sobre a instituição que o sustentava.

Decorridas seis décadas, o que dizer da relação entre pesquisadores e docentes, quando seus projetos são submetidos aos desígnios das grandes empresas, bancos e corporações?

Em que estágio está a universidade, hoje? Ela está a “superar” a si mesma, na campanha de estrita obediência aos ditames do neoliberalismo. Quero dizer, a instituição de ensino superior aprimorou o perfil “operacional” (como mostrava Chauí), refinando a concepção “gerencial” (como aventara Hansen), reforçando os questionáveis critérios da avaliação quantitativa.

Obviamente, as métricas que orientam as agências de fomento se combinaram aos rigores crescentes da instituição de ensino.

Uma das razões do mal-estar docente reside no fato de nos sentirmos julgados sem cessar por um tribunal onipresente (instalado desde os departamentos até a reitoria), correndo o sério risco de lidarmos com sentenças recriminatórias sobre a pequena “produção” ou nossa inapetência em “captar recursos”.

Ora, e como se captam recursos? Apresentando-se projetos de pesquisa rentáveis (aos olhos do “mercado”), de preferência pragmáticos e exequíveis, que carreiem o nome da universidade para além do território nacional, com a logomarca da empresa em primeiro plano.

Mas deixemos a estratosfera do grande capital. Em escala mais modesta, digamos, entre os corredores e as salas de aula, crescem episódios protagonizados por alunos que, antes mesmo de amadurecer seus projetos de pesquisa (sejam de Iniciação científica, sejam de Pós-graduação), correm atrás dos docentes em busca de recompensas pecuniárias por trabalhos que sequer iniciaram.

Repare-se. Não se está a negar a importância das bolsas e auxílios: o pesquisador tem direito a eles, considerando a sua ocupação na universidade e fora dela. Por sinal, uma das nossas lutas se dá justamente pela ampliação dos recursos que promovam e estimulem as pesquisas. O que se está a questionar é a aparente inversão das prioridades (e das etapas) relacionadas ao trabalho acadêmico: a pesquisa é um fim; não um pretexto para recompensa antecipada.

Salvo engano, a universidade funcionalista está a naturalizar a relação de barganha entre alunos e docentes, segundo uma racionalidade utilitária, mediada pela relação interpessoal pragmática e o espírito da livre-concorrência. Ainda a esse respeito, supomos que, para além dos conteúdos didáticos, possa-se rediscutir os pressupostos, réguas e pretensões do mercado.

Contudo, quando as aulas e as atividades de pesquisa cedem o lugar (da curiosidade, do conhecimento, da reflexão) à transação financeira, cumpre recordar que o contrato de orientação entre professores e orientandos não deve(ria) funcionar como se a universidade fosse um balcão de negócios.

*Jean Pierre Chauvin é professor de Cultura e literatura brasileira na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros de Sete Falas: ensaios sobre tipologias discursivas.

Notas

[1] Refiro-me a Escritos sobre a universidade. São Paulo: Unesp, 2001.
[2] Cultura de Massas no Século XX – O Espírito do Tempo – Neurose e Necrose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2018.

Brasil é pior inimigo do Brasil na busca por liderança internacional, por Daniel Buarque

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Problemas domésticos prejudicam ascensão na hierarquia global, aponta pesquisa

Daniel Buarque – Folha de São Paulo – 12/05/2024

[RESUMO] Autor apresenta conclusões de sua pesquisa de doutorado, em que realizou 94 entrevistas com membros da comunidade de política externa para mapear a imagem internacional do Brasil. Embora aspire a ser um líder global, o país é percebido como um peão no xadrez geopolítico, um ator periférico prestigiado pelas grandes potências só quando convém a elas. Falta de reconhecimento é reflexo de problemas internos do país, aponta estudo.

Desde o início da invasão da Ucrânia pela Rússia, o Brasil se ofereceu para ser um mediador entre os dois países, tanto com Jair Bolsonaro (PL) quanto sob Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Quando começou o atual governo, a “doutrina Lula” tentou construir a ideia de que “o Brasil voltou” e quis melhorar a sua imagem internacional.

O Brasil começou a buscar protagonismo em questões ambientais, quis retomar uma liderança em temas regionais, procurou grandes acordos comerciais e até buscou conduzir uma votação pelo cessar-fogo na Faixa de Gaza. Além disso, retomou a aposta no multilateralismo e na busca pela reforma da governança global, reiterando o interesse em um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.

Lula até encontrou boa vontade internacional, a imagem do país melhorou e ele conseguiu liderar o Conselho de Segurança por um mês e presidir o G 20, além de ganhar o direito de sediar a conferência do clima.

No entanto, a maioria das tentativas de ter um papel realmente significativo em questões internacionais importantes, motivadas em ampla medida pela ambição de ser um ator de peso na política global, continua esbarrando na falta de reconhecimento internacional de um alto status do país.

Mesmo com todo o esforço para aumentar o prestígio brasileiro, a percepção das nações mais poderosas do planeta é que o país não é suficientemente relevante para influenciar as grandes questões internacionais. Isso vale especialmente para quando elas envolvem discussões sobre segurança, guerra e paz. Para as grandes potências globais, o Brasil não passa de um peão no xadrez da geopolítica global.

Apesar do trabalho sério desenvolvido pelo Itamaraty ao longo de décadas, o problema não está necessariamente no que o Brasil faz em sua atuação internacional. A falta de reconhecimento para o prestígio é um reflexo, em ampla medida, de problemas internos do país, que precisam ser o foco antes de qualquer tentativa de projeção internacional.

Esses são alguns dos pontos centrais do livro “Brazil’s International Status and Recognition as na Emerging Power: Inconsistencies and complexities”, recém-publicado pela editora Palgrave Macmillan. A obra reúne os principais achados de uma pesquisa desenvolvida durante meu doutorado pelo King’s College, de Londres. O estudo analisou a longa aspiração brasileira por alto status internacional em contraste com a percepção externa sobre o papel que o país pode desempenhar no mundo.

Para entender o lugar ocupado pelo Brasil na complexa geopolítica desde o fim da Guerra Fria, a pesquisa se baseou em 94 entrevistas com a comunidade de política externa dos países que já são reconhecidos como potências globais: EUA, China, Rússia, Reino Unido e França —os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU.

UM ‘PEÃO COBIÇADO’

As grandes potências veem o Brasil como um país sem peso na política internacional. A percepção é que o Brasil não passa de um país médio que não tem legitimidade para atuar em questões importantes de segurança global.

Uma razão para essa avaliação é geográfica. O Brasil é percebido como periférico e pacífico, localizado em uma região longe das principais ameaças e disputas do mundo, e por isso não precisaria nem deveria se envolver nesses casos.

Outro ponto importante é que o país enfrenta limites em suas capacidades militares e econômicas, portanto não teria poder suficiente para ser preponderante em escala global.

Paradoxalmente, o Brasil é desejado como um aliado por essas mesmas potências, que buscam utilizá-lo como uma peça estratégica em suas rivalidades e seus interesses globais. Apesar de ser visto como um peão, seu apoio é cobiçado dentro do grande jogo da geopolítica.

Isso explica a frustração do Ocidente com a “equidistância” do país em relação à Guerra da Ucrânia e sobre as críticas de Lula a Israel. Ajuda a entender também a mobilização da China para manter o país envolvido nas ações do Brics e na tentativa de fortalecer outras moedas como alternativa ao dólar em negociações internacionais.

Na realpolitik, cada potência está interessada apenas em avançar seus próprios interesses geopolíticos. O Brasil recebe apoio e alguma forma de reconhecimento somente quando isso indica algum benefício para elas.

BRASIL CONTRA BRAZIL

Ser visto como um peão vai contra a histórica ambição de grandeza do país nas relações internacionais. Isso, contudo, ultrapassa as limitações geográficas e de poder econômico e militar. O Brasil é o maior inimigo do Brasil em sua busca por maior status internacional, avaliaram muitos dos entrevistados na pesquisa.

A percepção externa é que, embora o Brasil realmente tenha muito potencial e sua imagem internacional seja geralmente positiva, o país não alcançou um alto status por causa de seus próprios problemas domésticos, que prejudicam seu desenvolvimento e sua ascensão na hierarquia global. Uma situação doméstica —social, econômica e política— de desordem e incerteza mina a influência internacional mais que qualquer atuação no exterior.

Para essas nações poderosas, países com ambição de emergir entre os mais importantes do mundo devem “fazer sua lição de casa” e “arrumar as coisas internamente” antes de serem aceitos no clube de “alto status internacional”.

Trata-se de uma visão meritocrática da ordem internacional —e uma interpretação do prestígio global que pode ser criticada—, mas que reflete a forma como a comunidade de política externa das nações mais poderosas pensa sobre a ordem global.

Ao observar o Brasil nas últimas décadas, há fortes evidências da importância da situação doméstica para seu prestígio. A estabilização e o crescimento da economia, a expansão da classe média, o fato de o país ter se tornado autossuficiente na produção de energia, a expansão das commodities e a consolidação da democracia no final dos anos 1990 levaram a uma narrativa sobre o aumento do status internac ional do Brasil. Em 2009, a revista britânica The Economist estampava em sua capa a imagem do Cristo Redentor decolando.

Em 2013, contudo, uma série de crises sociais, políticas e econômicas mudou essa situação. Os anos seguintes foram de recessão, escândalos de corrupção, violência e violações de direitos humanos, autoritarismo, negacionismo científico e ameaça à democracia, tornando mais difícil para o Brasil alcançar reconhecimento externo.

Entender a importância do contexto doméstico pode servir como referência para repensar as estratégias do país na construção de um lugar para o Brasil no mundo.

O estudo apresentado aqui indica que focar questões internas (especialmente na economia) e corrigir problemas domésticos são percebidos como os meios mais eficientes para aumentar o status internacional de um país.

Ao buscar destaque em sua atuação internacional, o Brasil deveria dar mais atenção ao que acontece dentro do país, melhorando sua realidade antes de querer se projetar ao mundo.

EUA perderam a América Latina para a China, por Igor Patrick

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Políticos latinos dizem que em Pequim encontram promessas de investimentos; de Washington, voltam com palestras

Igor Patrick, Jornalista, mestre em Estudos da China pela Academia Yenching (Universidade de Pequim) e em Assuntos Globais pela Universidade Tsinghua

Folha de São Paulo, 11/05/2024

Na semana que vem, o Congresso americano vai precisar votar a renovação da concessão de fundos à Corporação Financeira de Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos (DFC, na sigla em inglês), o resultado de uma fusão de várias agências de promoção ao desenvolvimento criado durante o governo de Donald Trump para fazer frente à Iniciativa Cinturão e Rota.
Acompanhei in loco o debate na Câmara e adianto: os argumentos levantados durante a audiência pública sobre o tema deixam claro que os EUA vão perder o trem na competição com a China por influência na América Latina.

Há várias razões para esta conclusão. Para começar, não acho que ninguém minimamente informado acreditou algum dia que a DFC conseguiria fazer frente aos chineses. O fundo que financia as operações da corporação chega a US$ 60 bilhões, contra quase US$ 1 trilhão prometido pelos chineses no lançamento da Cinturão e Rota.

A distribuição do dinheiro também está sujeita a uma série de requisitos, sendo o pior o fato de que ao criar o órgão, congressistas americanos limitaram a maior parte dos recursos a países classificados de pobres pelo Banco Mundial. Essa regra não faz nenhum sentido, e mesmo os coordenadores da DFC admitem isso. Ao ranquear as economias de países ao redor do mundo, o Banco Mundial não leva em consideração questões como variação cambial, poder de paridade de compra e desigualdade. A própria instituição nem sequer usa apenas essa variável na hora de conceder empréstimos.

Consequentemente, países como o Brasil são classificados de “renda média superior”, o que automaticamente nos exclui de receber investimentos substanciais por parte dos americanos. Alguém aí diria que nossa infraestrutura é semelhante à chinesa, outro país posto pelo Banco Mundial sob o mesmo guarda-chuva?

Além disso, o dinheiro que vem de Washington geralmente vem atrelado a uma série de compromissos, como a promoção de reformas políticas e melhora do ambiente de negócios. Não são regras necessariamente ruins, claro, mas atrasam significativamente a aprovação e o recebimento das verbas.

Para um país de tamanho e economia médios, faz pouco sentido esperar anos por um dinheiro que, os chineses, muito mais pragmáticos e desinteressados em interferir na governança doméstica de nações terceiras, conseguem entregar em meses. Políticos latinos também têm por tradição abraçar projetos de infraestrutura que possam mostrar em suas campanhas eleitorais —e o calendário das eleições nem sempre é compatível com o tempo necessário para garantir a sustentabilidade de tais obras.

Por fim, só agora começa a cair a ficha em Washington que a presunção ao tratar a América Latina como seu quintal de influência estava baseada em premissas frágeis. Não me entendam mal, é inegável que os EUA ainda são parceiros essenciais de vários dos nossos vizinhos, mas agora há uma nova opção: a China.

Mesmo assim, não vemos nenhuma movimentação para mudar o panorama. Os EUA estão ocupados demais resolvendo a miríade de disputas políticas internas e agora se veem às voltas com a possibilidade de eleger um candidato abertamente isolacionista.

Não há clima no Congresso para ampliar um auxílio financeiro para atenuar o enorme déficit de infraestrutura na América Latina. O dinheiro disponível está fluindo para o Indo-Pacífico, única região no mundo cuja importância é consenso bipartidário, dada a necessidade de fazer frente aos chineses.

Quando encontro fontes do governo Joe Biden, essas pessoas quase sempre gostam de defender o que vêm fazendo pelos latino-americanos e enunciam de cabeça uma série de projetos na região. É só perguntar sobre o valor empreendido em cada um deles para fazê-los corar e invariavelmente admitir que deveriam estar gastando mais se quiserem competir de verdade com Pequim.

Ao longo dos últimos meses ouvi de dezenas de políticos latinos que, quando viajam à China, voltam para casa com acordos e promessas de investimentos. Dos EUA, voltam com uma palestra sobre o que deveriam estar ou não fazendo. Os cães ladram e o dragão passa.

Universidades como fábricas, por Eleutério F. S. Prado

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Eleutério F. S. Prado

A Terra é Redonda – 10/05/2024
Sob a hegemonia do neoliberalismo, vem ocorrendo uma subjugação franca e brutal de todas as relações sociais às relações de mercado, inclusive as que se dão em uma universidade
Faz-se aqui uma introdução a um pequeno e certeiro artigo de Branko Milanovic [1] que foi publicado no portal Sin permiso em 05 de maio de 2024, com o título acima. Eis o que constata: sob a hegemonia do neoliberalismo, vem ocorrendo uma subjugação franca e brutal de todas as relações sociais às relações de mercado, inclusive as que se dão em uma universidade.

Apresenta-se em sequência, uma tradução do seu escrito que fala do comportamento repressivo das autoridades universitárias diante do levante de grupos de estudantes nos Estados Unidos em favor da causa palestina. Ao fim de sua acusação – ela diz que as universidades estão sendo administradas como fábricas – segue-se um comentário que visa mostrar que esse tipo de “governança” é imanente ao neoliberalismo, ora hegemônico. Veja-se, portanto, de início, o que
ele próprio escreveu em seu blog:

A denúncia de Milanovic

Vi e li sobre muitos casos em que a polícia expulsou estudantes que protestavam das universidades. A polícia vinha ao campus por ordem das autoridades descontentes com os oásis de liberdade criados pelos estudantes. Ela chegava, armada, agredia os estudantes e punha fim ao protesto. A administração universitária se colocava ao lado dos estudantes, invocava “a autonomia da universidade” (isto é, o direito de ficar fora da vigilância policial), ameaçava renunciar ou se demitir. Este era o padrão usual.

O que foi novo, para mim, na atual onda de manifestações pela liberdade de expressão nos Estados Unidos, foi ver que foram os próprios administradores das universidades aqueles que chamaram a polícia para atacar os estudantes. Em pelo menos um caso, em Nova York, a polícia ficou perplexa com o pedido de intervenção e até achou que ela seria contraproducente.

É bem compreensível que essa atitude de autoridades universitária possa ocorrer em países autoritários, onde são nomeadas pelos poderes constituídos para manter a ordem nos campi. Como são, obviamente, funcionários obedientes, elas apoiam a polícia em sua atividade de “limpeza”, embora raramente tenham autoridade para convocá-la.

Mas nos EUA, os administradores universitários não são nomeados por Joe Biden ou pelo Congresso. Por que então atacariam seus próprios alunos? Seriam eles seres malvados que adoram subjugar os mais jovens?

A resposta é não. Eles simplesmente assumiram uma nova missão. Eles não veem mais o seu papel como defensores da liberdade de pensamento, tal como ocorria nas universidades tradicionais.

Eles não estão tentando mais transmitir às gerações mais jovens valores de liberdade, moralidade, compaixão, altruísmo, empatia ou o que mais for considerado desejável.

O seu papel hoje é o de diretores de fábricas que são ainda chamadas de universidades. Essas fábricas têm uma matéria-prima chamada estudantes, a qual é convertida, em intervalos anuais regulares, em novos graduados para os mercados. Portanto, qualquer interrupção nesse processo de produção é como uma interrupção em uma cadeia de suprimentos.

Ela deve ser removida o mais rápido possível para que a produção possa ser retomada. É preciso dar saída aos estudantes graduados, trazer os novos, embolsar o dinheiro, encontrar doadores, obter mais fundos. Se os alunos interferirem nesse processo, eles devem ser disciplinados, se necessário pela força. A polícia deve ser acionada para que a ordem seja restaurada.

Os gestores não estão interessados em valores, mas em demonstração de resultados. O seu trabalho é equivalente ao de um diretor geral no Walmart, Amazon ou Burger King. Para tanto, poderão usar o discurso sobre valores, ou sobre um “ambiente intelectualmente desafiador”, ou mesmo sobre um “debate vibrante” (ou o que quer que seja!), tal como se vê nos discursos promocionais habituais que os altos gestores das empresas produzem hoje ao primeiro sinal de dificuldade.

Não é que ninguém acredite nesses discursos. Mas é preciso pronunciá-los. Trata-se de uma hipocrisia amplamente aceita. A questão é que tal nível de hipocrisia ainda não era totalmente comum nas universidades porque, por razões históricas, elas não eram exatamente vistas como semelhantes às fábricas de salsichas. Eles deveriam produzir pessoas melhores. Mas isso foi esquecido na corrida por renda e dinheiro de doadores. Como tais, as fábricas de salsichas não podem parar e a polícia precisa ser chamada [quando elas iniciam um protesto].

Um comentário crítico

O que é, afinal, o neoliberalismo? Uma boa resposta para essa pergunta é necessária para compreender melhor o fato histórico relatado por Branko Milanovic.

A compreensão do neoliberalismo, ao contrário do que pensa Dardot e Laval, não pode ser encontrada antes em Michel Foucault do que em Karl Marx. Pois, é preciso ver que o primeiro filósofo fornece apenas um modo quase idealista de compreender esse fenômeno sociocultural. A sua característica marcante é que privilegia o discurso (que configura as interações sociais) em detrimento de uma compreensão da práxis (atuação social fundada em determinadas relações sociais de produção).

Veja-se que é por meio de uma análise do discurso como aparato de poder que chegam a uma compreensão desse fenômeno: “o neoliberalismo, antes de ser uma ideologia ou uma política econômica” – dizem eles –, é em primeiro lugar e fundamentalmente uma racionalidade e, como tal, tende a estruturar e organizar não apenas a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos governados”. (Dardot e Laval, 2016, p. 17).

A filosofia da práxis não se concentra em examinar os discursos, pois procura apresentar antes a lógica de reprodução do sistema econômico baseado na relação de capital, as classes que daí se originam, o Estado que procura selar as contradições, assim como as ideologias que tentam bloquear uma boa compreensão dessas contradições e de sua lógica de desenvolvimento, para que o próprio sistema prospere sem contestações radicais. Aqui se examina apenas as ideologias tendo por base os estudos clássicos de Ruy Fausto.

Ora, ideologia não vem a ser pretensão de saber que falsifica a realidade tendo em vista algum interesse, mas uma compreensão do social que se instala e se fixa na aparência dos fenômenos, procurando bloquear uma conscientização sobre a sua essência. Como diz Ruy Fausto, “a ideologia é o bloqueio das significações”. Assim, ela “torna positivo (…) aquilo que é em si mesmo negativo, aquilo que contém negatividade” (Fausto, 1987, p. 299).

Essa compreensão de ideologia, que a vincula à práxis social no modo de produção capitalista, permite entender melhor as três grandes que se impuseram na história do capitalismo, a saber, o liberalismo clássico, o liberalismo social e o neoliberalismo. Pois, elas dão forma a três modos de bloquear o aparecimento da contradição que move o capitalismo, qual seja ela, a contradição entre o capital e o trabalho assalariado. Para compreendê-las é preciso ver que esse modo de produção tem uma aparência, os mercados em que se vendem e se compram mercadorias em regime de competição, e uma essência, a subsunção do trabalho ao capital e, assim, a exploração do trabalho vivo pelo trabalho morto (agenciado como capital) nas fábricas em geral.

Assim, por exemplo, o liberalismo clássico guarda do capitalismo apenas a sua aparência de economia de mercado; desse modo, ele afirma a igualdade e a liberdade dos contratantes que buscam, supostamente, o seu auto-interesse. Contudo, quando se examina criticamente a relação contratual de troca entre o capitalista e o trabalhador, como aparência de uma relação de produção que vincula capital e trabalho, como relação entre o dono dos meios de produção e os possuidores de força de trabalho, vê-se que o capitalismo se eleva sobre a negação da igualdade e da liberdade dos contratantes, sobre a negação do auto-interesse já que ele consiste apenas numa subordinação dos interesses privados ao “interesse” maior da valorização do capital. Ao fixar a aparência da circulação, o liberalismo como ideologia oculta a contradição que mora na produção, para que o sistema possa prosperar.

Na história do capitalismo, o liberalismo clássico foi substituído, primeiro, pelo liberalismo social (que apareceu também como social-democracia) e, depois, pelo neoliberalismo.
O liberalismo com preocupação social – escreveu-se já há quase vinte anos atrás (Prado, 2005) – surge historicamente quando a aparência do modo de produção é desmentida na prática social, quando se torna perigoso para os capitalistas aferrarem-se à mera forma exterior da relação social de produção, quando a conservação do sistema torna-se ameaçada pela radicalidade das lutas sociais e pelas crises econômicas que as tornam ainda mais profundas. Então, a ideologia não pode mais se sustentar apenas na aparência da relação social, qual seja ela, a circulação e concorrência mercantil; ela precisa agora, de certo modo, ter em conta a própria essência dessa relação.

A fórmula que emerge consiste em apresentar a essência, não como contradição, mas como diferença; a contradição é assim reificada como forças sociais em confronto. E essas forças são distintas: uma delas é mais fraca do que a outra; uma delas consome insuficientemente e a outra poupa demais; uma delas não encontra ocupação e a outra não está criando ocupações em número suficiente para que seja mantida a paz social. Nessa perspectiva, afigura-se que cabe ao Estado atuar como poder equilibrador.

Assim, a política econômica keynesiana e a política social-democrática, a partir dos anos 1930, passaram a ocupar um lugar central na condução da política socioeconômica. Não é mais, pois, a identidade, mas a mera diferença, que oculta agora a contradição.

O liberalismo clássico se afigura como uma hipocrisia; ele pressabe da contradição na base do sistema, mas aceita como saber válido apenas aquilo que a dissumula de um modo objetivo; a ordem social lhe parece uma ordem natural; a autorregulação, proporcionada que é pela competição mercantil, lhe parece uma lei objetiva dessa ordem. Como sintetizou Adam Smith por meio do principio da mão invisível: eis que o egoísmo mercantil cria sem qualquer boa intenção “aquela riqueza universal que se estende as camadas mais baixas do povo” (Smith, 1983, p. 45).

O liberalismo social opta pelo reformismo; ele sabe da contradição, mas não a apreende como contradição; admite que mira um sistema social que falha na criação de empregos e que cria diferenças sociais gritantes, mas sustenta que boas políticas econômicas podem atenuar ou mesmo consertar os seus defeitos; a ordem social não é negada como ordem social; ao contrário, é tomada como ordem algo desordenada que falha e que precisa de reparo para que crie riqueza e bem-estar para a sociedade como um todo.

O neoliberalismo, por sua vez, vem a ser um cinismo; ele sabe da contradição, mas a apreende como paraconsistência de um sistema complexo; eis que este resultou de uma evolução espontânea das instituições e que, por isso mesmo, tem de ser aceito como tal. Para ocultar a contradição, não afirma que há igualdade de contratantes ou, alternativamente, que existem diferenças redutíveis entre as diversas posições sociais; afirma, isso sim, que todos estão numa condição similar na luta pela existência e que as diferenças decorrem do caráter lotérico do sistema econômico.

Uns detêm capital em dinheiro e em títulos financeiros, outros são donos de capital industrial ou comercial, outros ainda possuem mais ou menos capital humano. A riqueza é mal repartida, há posições sociais inferiores e superiores etc.? Sim, mas tudo isso deve ser.

Para ele, portanto, a evolução progressiva possível tem de estar submissa à logica discricionária dos mercados em geral; a ordem social é pensada agora como ordem espontânea que deve ser aceita como emergência histórica e, assim, como um imperativo moral; a competição mercantil deve ser acolhida e reverenciada porque se constitui como origem da sociedade atomizada – mera agregação de indivíduos enlaçados objetivamente por normas que se esmeram em proibir apenas os comportamentos desviantes e destruidores dessa ordem. Fora daí, tudo – pelo menos para os mais extremistas – deve ser permitido: venda dos próprios órgãos, venda dos filhos, as fakes news como estratégia de competição política etc.

Como mostra o artigo de Branko Milanovic, o neoliberalismo apregoa e implementa a sociabilidade mercantil; ela precisa se impor em todos os âmbitos sociais, com exceção talvez da família, entendida como ordem paternalista que prepara os indivíduos para os mercados. E o faz de forma mentirosa, autoritária e mesmo totalitária conduzindo de fato a humanidade ao suicídio – num curso trágico em que matar a velha universidade é apenas um detalhe. O capitalismo é hoje apenas um sistema suicidário.

*Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Capitalismo no século XXI: ocaso por meio de eventos catastróficos (CEFA Editorial).

Referência

Dardot, Pierre e Laval, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 17.
Fausto, Ruy. Marx – Lógica e Política. Tomo II. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
Prado, Eleutério F. S. Desmedida do valor – Crítica da pós-grande indústria. São Paulo: Xamã, 2005.
Smith, Adam. A riqueza das nações – investigações sobre sua natureza e suas causas. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

Nota

[1] Economista sérvio-americano. Professor visitante do Centro de Pós-Graduação da City University of New York (CUNY). Foi economista-chefe do Departamento de Pesquisa do Banco Mundial.

Desafio de Lula é resgatar o presidencialismo, por Almir Felitte

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Enquanto não eliminar as amarras legais acionadas desde 2016, presidente ficará refém do Congresso, numa espécie de parlamentarismo não declarado. Porque políticas como o teto de gastos inviabilizam o país, e obrigam a passar o pires todo ano

Almir Felitte, Advogado e estudioso de Políticas de Segurança Pública

OUTRAS PALAVRAS – 01/12/2022

A eleição presidencial de outubro de 2022 era apenas uma das muitas lutas a serem travadas e vencidas por aqueles que sonham em reerguer nosso país após longos anos de crise e destruição.

Para além do insistente golpismo, cada vez mais reduzido, mas também mais armado e violento, o grande desafio que se apresenta à nossa frente é a construção efetiva do Governo Lula e a
realização de seu projeto.

O processo de transição, porém, já tem nos mostrado que os obstáculos neste caminho serão enormes. Neste ponto, todo o debate envolvendo a chamada “PEC da Transição” é central, e devemos estar atentos às possíveis armadilhas que uma aparente vitória pode esconder.

O grande ponto da “PEC da Transição” gira em torno do orçamento do país para o ano que vem deixado pelo governo Bolsonaro. É ponto comum entre o futuro governo Lula, o Congresso e até mesmo a imprensa que ele é simplesmente inviável. Reduzido e amarrado pelo teto de gastos, este legado liberal tornaria impossível a realização das políticas sociais mais básicas, como o próprio Auxílio Brasil.

O novo Governo Lula foi eleito com base na ideia de retomar os investimentos públicos e a expansão do Estado Social no Brasil, com maior participação pública na economia e ampliação de programas sociais. Um programa que reconhece que a austeridade da agenda neoliberal imposta ao país é a grande causa de nossa crise econômica e social. Mas também um programa que só pode ser posto em prática se o orçamento bolsonarista for revisto.

Diante disso, há duas saídas para Lula. A primeira, mais imediata, é a que vemos agora sendo feita por sua equipe de transição: negociar uma PEC com o Congresso que libere “furos” no teto de gastos para que ao menos alguns programas sociais prometidos sejam viáveis. Neste caminho, todo o orçamento do ano fica sujeito às negociações com o Poder Legislativo, que é quem de fato vai decidir o que pode e o que não pode furar a mordaça do teto de gastos.

O problema é que esta saída seria pontual, já que as amarras fiscais seriam mantidas. Dessa forma, até o fim de seu mandato, Lula seria obrigado a sentar com o Congresso todo fim de ano para negociar, novamente, quais gastos poderiam furar o teto. Em outras palavras, o Legislativo teria surrupiado de vez a função presidencial de definir o orçamento público do país, impondo um parlamentarismo forçado e ignorando o programa de governo eleito pelas urnas.

Este cenário, aliás, não seria novidade. Segundo a FGV, entre 2019 e 2022, Bolsonaro conseguiu realizar gastos acima do teto que somaram quase R$ 800 bilhões, boa parte destes conseguidos apenas através da autorização do Congresso.

Como as presidências do Senado e da Câmara estiveram bem alinhadas à agenda econômica de Temer e Bolsonaro, as poucas divergências entre Executivo e Legislativo fizeram com que este parlamentarismo imposto fosse menos aparente nos últimos anos. No novo cenário, onde o programa de governo de Lula é incompatível com a agenda ultraliberal de um Congresso mais radicalizado à direita, talvez este parlamentarismo forçado fique mais visível.

Assim, o povo brasileiro corre o risco de assistir a um verdadeiro golpe eleitoral, no qual o Congresso tornaria inviável, ano após ano, que o programa presidencial vencedor fosse colocado em prática por Lula. Ou, em uma hipótese menos pior, todo fim de ano, os parlamentares cobrariam um preço caro demais para permitir que Lula o realizasse. De uma maneira ou de outra, anualmente, o programa de governo do país seria definido pelo Legislativo.

Por isso, é tão importante debater a segunda saída possível para este entrave, inclusive defendida pelo próprio Lula como promessa de campanha: a revogação do teto de gastos. Nem gastarei mais linhas aqui para falar sobre o suicídio econômico e social que este teto representou para o país nos últimos anos. Os fatos falam por si, e até mesmo liberais insuspeitos já consideram um absurdo que esta política continue.

A questão é que, como podemos enxergar com clareza agora, o teto de gastos não foi uma camisa-de-força apenas para a nossa economia e nosso Estado social. Na verdade, o teto de gastos acabou sendo uma amarra ao próprio sistema político brasileiro, colocando em xeque nosso histórico presidencialismo.

Aliado ao terrorismo econômico da grande imprensa liberal, o teto de gastos representa uma ameaça constante de impeachment a qualquer Presidente que ouse discordar de uma cartilha de austeridade que só beneficia especuladores. Não importa qual programa de governo o povo brasileiro tenha escolhido, o teto de gastos sempre fará com que o orçamento que o sustenta fique sujeito às vontades de um Congresso, sob risco de outro golpe parlamentar. Novamente, um parlamentarismo que nós não escolhemos viver.

A revogação do teto de gastos, desse modo, não seria só uma forma de retomar os investimentos públicos no país e os programas sociais que beneficiam os mais pobres, mas também uma maneira do Brasil retomar o seu próprio sistema presidencialista. Seria, aliás, a única forma de viabilizar o programa de governo lulista eleito pela maioria dos brasileiros.

O grande problema é que esta revogação também deve passar pelo crivo do Congresso. Diante disso, é vital que a equipe de Lula se organize para além das negociações em torno da PEC da Transição. Apesar do ainda grande eleitorado bolsonarista, há um sentimento majoritário na população de que o governo de Jair e as reformas dos últimos anos não trouxeram benefícios e pioraram a vida da população.

Em outras palavras, temos a possibilidade de construir um sentimento geral forte o suficiente para formar uma campanha popular por um “revogaço” de medidas impopulares impostas nos últimos anos, como a Reforma Trabalhista, a Reforma da Previdência e o próprio teto de gastos. Para isso, é mais do que necessário aproveitar o gás dado pela vitória eleitoral e pelo início do novo governo para a esquerda recuperar sua capacidade de mobilização perdida na última década.
Lula não pode nem deve ter medo de chamar o povo para governar com ele. No campo social e econômico, muitas reformas desaprovadas pelo povo foram passadas nos últimos tempos de forma antidemocrática e atropelada. Nessa área, campanhas por plebiscitos e referendos podem ser o impulso necessário para retomar uma capacidade de mobilização que coloque o Congresso em seu devido lugar, force as necessárias revogações e viabilize o programa de governo eleito.

Nesse sentido, recuperar o presidencialismo no Brasil é mais do que confiar toda a esperança de novos tempos para o país apenas nas mãos de Lula. Recuperar o presidencialismo seria, antes de tudo, uma forma de recuperar a própria soberania do povo brasileiro. Esta é uma luta que vai muito além de grupos de engravatados tratando da transição do governo. É uma luta que passa pela reconstrução dos nossos movimentos sociais e populares. Uma luta árdua e exigente, mas que certamente definirá nosso rumo como povo e país nos próximos anos.

Que gastos públicos deveríamos cortar?, por Paulo Kliass

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Fernando Haddad insiste em driblar investimento mínimo em Saúde e Educação. Enquanto isso, paga em juros, aos rentistas, o dobro do orçamento destas duas pastas somadas. Se é para reduzir gastos, poderia começar por essa parasitagem

Paulo Kliass, Doutor em Economia e membro de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.

Outras Palavras – 03/10/2023

O empenho da área econômica do governo em promover a ferro e fogo a política de austeridade fiscal surpreende a todos e todas que não estão muito habituados a acompanhar com certo detalhe e proximidade a evolução do debate e das decisões do Ministério da Fazenda a esse respeito. Na verdade, a postura de Fernando Haddad não tem deixado quase nenhuma diferença com relação aos representantes do financismo quando se trata de recomendações para medidas de orientação da política fiscal.

Essa tendência em atender aos desejos do sistema financeiro começou a tomar forma já no período que transcorreu entre a oficialização da vitória de Lula em outubro do ano passado e a posse em 1º de janeiro. Naquele momento foi gestada a chamada PEC da Transição, que deveria ter tido por objetivo apenas assegurar recursos orçamentários para que o novo governo pudesse começar o exercício de 2023 com dinheiro suficiente para cumprir com algumas de suas principais promessas de campanha. Mas aquele teria sido também o instrumento adequado para estabelecer a revogação da EC 95, dispositivo que abrigava o famigerado teto de gastos. A referida PEC foi promulgada sob a forma da Emenda Constitucional 126/22.

Mas o problema é que Haddad incluiu na medida uma condicionante inesperada para a eliminação de tal instrumento extremo de austeridade. Ao invés de simplesmente revogá-lo, como havia sido prometido por Lula durante a campanha, a política do bom mocismo estabeleceu uma novidade preocupante. A proposta estabelecia que o teto só seria extinto a partir do momento em que o governo eleito encaminhasse ao Congresso Nacional, até o mês de agosto, uma lei complementar que tratasse de um “novo arcabouço fiscal”. A sequência é conhecida de todo mundo. O titular da Fazenda fechou-se em copas, atendendo apenas às demandas e sugestões do presidente do Banco Central e dos demais dirigentes do capital financeiro privado. O prazo de agosto foi encurtado para evitar maiores discussões públicas e críticas ao modelo que foi sendo construído. O governo encaminhou a proposta ao legislativo ainda em abril.

A austeridade segue a todo vapor

A sanção da Lei Complementar nº 200/23 ocorreu em 31 de agosto e o novo arcabouço fiscal passou a substituir as regras muito mais draconianas do teto de gastos. Porém, o artifício retórico de comparar o novo modelo com a desgraceira representada pelo teto de Temer & Meirelles não resiste ao menor debate a respeito do conteúdo da proposta da neo-austeridade. Não é por outra razão que o sistema proposto por Haddad foi logo chamado “carinhosamente” de calabouço fiscal. Afinal, ele mantém as mesmas ideias equivocadas de mirar na busca de superávit primário, de restringir o crescimento de despesas orçamentárias em relação ao crescimento das receitas, de proibir a capitalização de empresa estatais e de não incluir as despesas financeiras no cálculo dos gastos a serem limitados. Enfim, pode-se dizer que se trata de um teto de novo tipo.

Passada a fase de aprovação dos dispositivos da austeridade, agora vem a etapa da implementação de novos ajustes. O alerta que fazíamos desde o início a respeito da compressão que seria provocada pela existência de pisos constitucionais para saúde e educação ganha agora a centralidade no debate. E representantes da área econômica já falam abertamente que o governo deve enviar uma PEC para eliminar a vinculação dos mínimos de ambas as áreas sociais à receita tributária da União. Uma loucura! Imaginemos um governo progressista, com uma proposta desenvolvimentista para o país, fazendo o trabalho sujo que nenhum outro governo de direita ousou ou teve força para implementar. Pior do que isso, foi o Executivo ter enviado uma consulta ao Tribunal de Contas da União (TCU) pedindo autorização à corte de para o descumprimento de determinação constitucional. Ao invés de limitar as atribuições do Tribunal às suas funções de controle, o próprio governo busca, de forma escancaradamente oportunista, uma via para reforçar o austericídio presente na cabeça dos formuladores da área econômica.

A memória curta parece não trazer à tona o doloroso processo de impedimento de Dilma Rousseff, quando esse mesmo TCU criou jurisprudência própria e encomendada para que as tais “pedaladas fiscais” fossem utilizadas de forma ilegal para justificar o afastamento da Chefe do Executivo. A partir do momento que o governo solicita a um órgão de controle autorização para não cumprir a Constituição, abre-se uma avenida de ilegitimidade para decisões posteriores ao arrepio dos princípios democráticos e republicanos.

Cortar nas despesas juros e não em gastos sociais

Mas se o governo insiste mesmo em cortar gastos para atingir o fatídico zeramento do déficit fiscal, talvez fosse o caso de olhar com mais honestidade e transparência para o estado atual das despesas da União. A esse título, vale registrar as informações trazidas pelo Banco Central em sua recente Nota sobre Estatísticas Fiscais. Ali se percebe que o governo federal gastou, apenas durante o mês de agosto passado, o equivalente a R$ 84 bilhões a título de pagamento de juros da dívida pública. Com isso, cai por terra a máscara falaciosa a respeito da necessidade de cortar despesas nas áreas sociais. Se somarmos os valores dos últimos 12 meses, a conta total dos dispêndios com juros sobe a R$ 690 bilhões.

Mas como a malandragem da metodologia das últimas décadas foca apenas nas despesas “primárias”, os gastos financeiros (não primários) ficam de fora dos cálculos. Ora, que os representantes do financismo pensem e ajam de tal forma é até compreensível. Mas não cabe a um governo eleito com um projeto de retomar o desenvolvimento econômico e social do país e de promover a redução de desigualdades de toda ordem incorporar esse tipo de análise distorcida e visada da realidade econômica.

Se vamos cortar mesmo gastos, por que não começar pelas despesas que são inquestionavelmente as mais parasitas do Orçamento e de menor impacto positivo sobre a recuperação da atividade da economia de forma geral? Mas não! A equipe econômica insiste em responsabilizar saúde, educação, previdência, assistência social, saneamento, investimento, salários de servidores e similares como sendo os “vilões” da busca desenfreada de um mítico equilíbrio nas contas públicas no curto prazo a qualquer custo.

O próprio presidente Lula já estabeleceu que, em seu governo, a responsabilidade fiscal não pode ser desassociada da responsabilidade social. Além disso, ele definiu por diversas ocasiões que as rubricas em saúde e em educação, por exemplo, devem ser consideradas como investimento e não como mero gasto corrente. Tais abordagens mudam completamente a forma de se avaliar e solucionar as equações da área fiscal. Apenas a título de comparação, o total de despesas previstas para saúde para o presente ano é de R$ 183 bi e o da educação é de R$ 147 bi. Ou seja, os dois somados não atingem nem a metade do valor dos gastos com juros da dívida.

A intenção é mesmo essa de promover o corte de gastos orçamentários? Então que a tesoura comece pelas despesas financeiras. Como os adeptos do austericídio gostam de dizer, há muita gordurinha para queimar nas rubricas associadas ao pagamento de juros da dívida pública.

Classe média em crise

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Vivemos numa sociedade marcada por grandes incertezas e instabilidades, onde os grupos sociais passam por grandes movimentações estruturais, os grupos dominantes, que controlam os setores econômicos mais pujantes, ganham força e dominam as bases da sociedade, controlam a classe política, ditam as regras e controlam as agendas dos parlamentos e garantem grandes retornos financeiros. Os grupos mais fragilizados financeiramente percebem que as transformações em curso na sociedade contemporânea estão gerando empregos precarizados, com parcos ganhos monetários e financeiros, além de serviços públicos cada vez mais escassos e degradados, levando os indivíduos a condições de sobrevivência marcadas pela exclusão e pela indignidade.

No meio destes grupos sociais encontramos uma classe média cada vez mais atordoada, degradada e precarizada financeiramente, assustada com as movimentações políticas e culturais, pendurada nas dívidas bancárias e impostos escorchantes, sem perspectivas profissionais e marcadas pelos medos e pelas ansiedades crescentes. Neste cenário, essa classe que sempre se destacou pela capacidade intelectual e pela bagagem cultural, exemplo de ascensão social, se entregou para os ganhos imediatos, acolheu o fanatismo das discussões políticas, abraçou o individualismo e a meritocracia, flertou com pensamentos antidemocráticos e perdeu a essência fundamental para a construção de um futuro mais consistente para a sociedade brasileira.

Com a mercantilização da sociedade contemporânea, tudo se transformou e passou a ser visto como uma verdadeira mercadoria, produtos comercializados em todos os mercados, desde que, os indivíduos possam arcar com os custos monetários e financeiros, desta forma, percebemos que os ganhos da classe média vem perdendo rendimentos, levando-a para uma condição secundária e de indignidade, seus proventos foram degradados, seus salários vem perdendo espaço para a inflação e seu status social, anteriormente sempre positivo, perdeu relevância.

Os gastos crescentes da classe média vêm degradando suas condições financeiros e monetárias, o aumento dos gastos educacionais pesam fortemente sobre seu orçamento, os valores dispendidos para manter a saúde crescem muito mais que seus recursos cotidianos, gerando crises constantes, pressões diárias e incertezas. Além disso, os recursos destinados para manter o pagamento dos tributos degradam sua renda mensal, desequilibrando seus fluxos financeiros, levando esse grupo social a se endividarem com bancos e instituições financeiras, entrando numa espiral de juros crescentes, endividamentos contínuos e desequilíbrios emocionais, com impactos generalizados sobre a saúde, o trabalho e o ambiente familiar.

As mudanças no mundo do trabalho estão impactando sobre a classe média, a tecnologia vem reduzindo a mão de obra e exigindo maior qualificação dos trabalhadores, as políticas de austeridades adotadas pelos governos nacionais limitam os recursos públicos, reduzindo os dispêndios das políticas públicas, diminuindo a contratação de trabalhadores, exigindo novas habilidades e gerando novas formas de contratação, mais degradadas e com salários mais achatados e precarizados, desta forma, os sonhos de salários maiores vem se perdendo numa sociedade degradada e imediatista.

O sonho da ascensão social vem se perdendo nas lutas cotidianas, vivemos numa guerra constante e duradoura, as pressões sociais, emocionais e profissionais são violentas e agressivas, as ansiedades crescem de forma acelerada e o sonho de um futuro melhor se esgota todos os dias ao testemunharmos os conflitos e os desequilíbrios do mundo contemporâneo.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Sociologia do Trabalho e Exclusão Social, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário

A rebelião dos manés – derrota provisória? por Laymert Garcia dos Santos

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Laymert Garcia dos Santos – A Terra é Redonda – 06/05/2024
Considerações a partir do livro “8/1 A rebelião dos manés ou Esquerda e direita nos espelhos de Brasília”

1.
Ao que parece, nas últimas semanas, a percepção de alguns integrantes do governo Lula e de parte da esquerda institucional está mudando, em relação à atuação da extrema direita. Como se estivesse caindo a ficha de que o fascismo opera em termos de mobilização permanente e que, portanto, a vitória nas urnas não é garantia de paz social nem de uma neutralização da ameaça.

Muito pelo contrário, o exercício das forças fascistas nas mais diversas frentes – no Congresso, no mercado financeiro, no agronegócio, nas igrejas pentecostais, nas ruas e nos crimes contra os pobres e as mulheres – explicitam que há uma inversão da máxima de Clausewitz: a guerra deixou de ser a continuação da política por outros meios; hoje, o que vigora é que a política é a continuação da guerra.

Aos poucos, então, vai ficando cristalina a necessidade de ter de enfrentar a mobilização fascista com todos os recursos disponíveis. A ideia de que bastaria melhorar as condições de vida do povo através de recuperação de políticas públicas, de crescimento da atividade econômica, de retomada do desenvolvimento, de promoção dos direitos humanos… mostrou sua insuficiência. Passados um ano e cinco meses de governo, a sociedade continua dividida e envenenada, os efeitos das mudanças positivas seguem desapercebidos por parcelas importantes da população (segundo Jean Marc von der Weid, em virtude do alto preço dos alimentos), as agressões e o clima de ódio são estimulados diariamente como dantes, as campanhas de desinformação sistemática se renovam e se intensificam o tempo todo.

Não basta, portanto, procurar melhorar a comunicação do governo, tentar “esclarecer” uma população presa fácil das mais poderosas tecnologias de mobilização permanente, cujos interesses econômicos, políticos e ideológicos estão intimamente interligados. E a própria dificuldade renitente em se regular minimamente as redes sociais para buscar neutralizar o seu caráter tóxico já é indício do tamanho do problema. Seria preciso uma decisão política radical de enfrentamento da mobilização fascista. Mas, aparentemente, não há vontade ou força para tanto.

É nesse contexto que precisa ser apreciado o recente livro de Pedro Fiori Arantes, Fernando Frias e Maria Luíza Meneses, intitulado 8/1 A rebelião dos manés ou Esquerda e direita nos espelhos de Brasília. Muito já se escreveu, e se leu, sobre a escandalosa ocupação da Praça dos Três Poderes, uma semana depois da posse do Presidente Lula. Com certeza ainda há muitas questões no ar. Tenho, porém, a impressão de que os autores foram certeiros ao investigarem a participação dos populares bolsonaristas no episódio golpista do 8 de Janeiro. Porque demonstraram que ela não é nada óbvia, e só uma avaliação simplista a reduz à caricatura, que dificulta o entendimento do real papel desempenhado pelo “gado”.

2.
O livro deixa claro que os manés foram ao mesmo tempo cúmplices e vítimas da prolongada manipulação de massas fascista. Cúmplices porque se engajaram, literalmente, de corpo e alma na tentativa de golpe – nesse sentido, foram protagonistas ativos e, portanto, criminosos, por transgredirem a ordem estabelecida; vítimas porque, abduzidos por uma “realidade paralela”, não tinham o tirocínio político e jurídico da ilegalidade de suas ações, funcionando, assim, como mera bucha de canhão para interesses poderosos, que não eram deles.

Ora, é essa condição ambivalente que se torna objeto de análise. Os manés sabem o que estão fazendo, mas ignoram o caráter perverso do papel que lhes cabe dentro da lógica do golpe, que abarca políticos, empresários, militares, policiais, em suma a extrema-direita organizada – esta teria tudo a ganhar, caso fosse possível emplacar a vitória através do recurso à Garantia da Lei e da Ordem, validando uma interpretação fajuta do art. 142 da Constituição Federal.

Os manés se sentem heróis de uma guerra contra o establishment, acreditam piamente na pantomima canalha de Bolsonaro contra “o sistema”, desejam intensamente uma ruptura constitucional em favor de uma regressão colonial. E nem mesmo seu abandono pelo líder máximo e pelas “forças da ordem” os fará acordar para o fato de terem sido usados e abusados o tempo todo. São pobres coitados fazendo selfie na beira do abismo, imaginando que a batalha estava ganha com a ocupação e depredação consentidas das instalações dos Três Poderes da República.

Para demonstrarem essa condição ao mesmo tempo grotesca e miserável dos manés (que na sequência vão arruinar suas vidas quando o braço de ferro da lei e da ordem se abater sobre elas), os autores recorrem, logo no primeiro capítulo, ao conceito brechtiano de “distanciamento”. Tal recurso se impõe porque, do ponto de vista político e simbólico, historicamente, desde a Revolução Francesa, a tomada de palácios governamentais sempre foi obra de camadas populares insurretas visando à mudança de regime, isto é a revolução.

Mas tanto no ataque ao Capitólio pela massa trumpista quanto no ataque a Brasília pela massa bolsonarista, há uma inversão de sinal – agora são as massas radicalizadas de extrema-direita que praticam o assalto ao centro do poder estabelecido. Tal aberração suscita estranhamento.

Como observam os autores, quem executou o feito não foram os sem-terra, sem-teto, povos indígenas, nem black-blocs, petistas, estudantes ou comunistas; a autoria foi dos autodenominados “patriotas”, “cristãos” e “cidadãos de bem”.

Daí a pergunta: “O que o ataque (…) revela sobre o Brasil contemporâneo? Como expõe a capacidade de pensamento e ação da esquerda e da direita, no sentido de atuar para mudar a história em seu favor/” A resposta será buscada à luz do “distanciamento”. Segundo Bertold Brecht, “distanciar um acontecimento ou um caráter significa antes de tudo retirar do acontecimento ou do caráter aquilo que parece óbvio, o conhecido, o natural, e lançar sobre eles o espanto e a curiosidade”.

Estranhando, os autores distanciam o acontecimento e, na distância, percebem como se deu, no Brasil, a inversão de papéis entre esquerda e direita, a partir das Jornadas de 2013, que selaram uma ruptura entre a esquerda institucional, no poder, e uma nova esquerda, insurgente e anticapitalista. Em seu entender, foi esse desencontro histórico que possibilitou a ascensão da extrema-direita e, com ela, o risco à democracia.

Não cabe aqui nos estendermos sobre os diversos acontecimentos que, desde então, foram aprofundando a tendência desencadeada em 2013. Mas importa notar que a inversão de papéis está na matriz da transformação que torna a direita insurgente, enquanto a esquerda se torna gestora do sistema, da conciliação, da manutenção da ordem e da pacificação.

Assim, o 8 de Janeiro explicita o jogo intrincado e perverso em que surgem os manés, auto-identificados como os perdedores de uma eleição dita fraudada, ou seja manés submetidos à “malandragem” dos ministros do STF, supostamente mancomunados com os “bandidos” do PT. Vale lembrar que o ataque a Brasília pelos “patriotas” em fúria foi convocado como “Levante dos Manés”. Nesse impulso, nesse “espantoso deslizamento semântico entre esquerda e direita”, escreveu Paulo Arantes, a extrema direita, mirando-se no espelho da esquerda, se viu como radical antissistema, adepta da “guerra insurrecional”.

3.
Nos capítulos seguintes, os autores vão pontuando como, de deslizamento em deslizamento, a evolução do processo foi tirando o “fazer a história” das mãos das classes populares e depositando-o nas mãos dos bolsonaristas. Cabe assinalar a influência que Olavo de Carvalho exerceu na dinâmica de apropriação indébita de símbolos, discursos, práticas e armas da luta de classes e povos, e sua conversão em instrumentos do repertório da extrema-direita.

Também vale a pena destacar as apropriações cínicas e debochadas do MBL, bem como a performance patética de Sara Winter e dos “300 do Brasil”, inspiradas em filmes de quinta categoria. Tudo isso, antes da invasão do Capitólio, em 6 de Janeiro de 2021, expressão máxima de levante da extrema direita, que iria se constituir no modelo a ser imitado pelo “Levante dos Manés”.

A insurreição vinha sendo preparada e alimentada desde antes da eleição e da vitória de Lula, conforme ficaríamos sabendo depois, com a revelação dos projetos de golpe de Jair Bolsonaro pela Operação Tempus Veritatis. Preparada e alimentada em duas esferas distintas, mas obviamente com intersecções. Em primeiro lugar, na esfera do poder e do dinheiro, mobilizando Jair Bolsonaro, o clã, assessores, políticos, especialistas em mobilização de redes, militares, pastores e empresários. O que talvez pudesse ser caracterizado como os mandantes do golpe.

Em segundo lugar, na esfera do “gado”, dos manés, da massa de manobra convocada para dar à insurreição o seu caráter “popular”. Ao que as investigações ainda em curso indicam, as duas esferas entrariam em cena em momentos diferentes: primeiro os manés, acampados em frente aos batalhões das Forças Armadas, instaurariam a desordem em Brasília e em outros lugares; na sequência, militares e policiais interviriam, restabelecendo a “ordem” e, com ela, instaurando o golpe fascista.

Ocorre que o golpe falhou, por razões que não estão esclarecidas, pois ainda continua parcialmente nebulosa para a opinião pública a conduta criminosa dos atores envolvidos na esfera do poder e do dinheiro. O segundo momento não aconteceu, a GLO não foi proclamada, as Forças Armadas não se posicionaram, o ex-presidente ficou em silêncio em seu refúgio na Disney…

E os manés, feito patetas, se viram sozinhos dentro de uma armadilha, pois agora seus protetores militares os entregavam à polícia, que os levava para a Papuda e a Colméia, onde posteriormente seriam enquadrados como “terroristas”.

Ora, tal criminalização conta com o apoio entusiasmado da esquerda institucional que, já tendo recalcado sua fração insurgente, agora pode aderir à repressão dos subversivos. Fecha-se assim, sob a aparência de um círculo virtuoso, o círculo vicioso. Pois os espelhos quebrados de Brasília configuram tanto a insurgência da extrema direita quanto a emasculação da esquerda institucional e rebelde; a institucional por não ter força até agora para obrigar os militares a responderem pelo envolvimento institucional das Forças Armadas, que saem ilesas, entregando as “ovelhas negras”, mas buscando manter incólume a sua pretensão de “poder moderador” acima dos Poderes da República; e a esquerda rebelde por não conseguir articular minimamente uma resposta à altura da ameaça, incapaz de sair da inércia.

Assim, a “vitória” da democracia no pós-8 de Janeiro é mais do que relativa. Como se o golpe tivesse sido apenas suspenso, deixando, entretanto, pouco comprometida a máquina infernal que pode voltar a ser acionada num momento mais propício. Daí a pergunta inquietante dos autores, na parte final do livro: Depois de Janeiro, a paz será total? Em seu entender, ela só seria viável se o bolsonarismo for desarticulado na esfera dos mandantes; mas os indícios de que isso acontecerá são muito tênues.

Por outro lado, como está muito bem analisado nos últimos capítulos, a punição exemplar apenas dos manés pode ensejar o que os autores designam como “punitivismo às avessas” – afinal, a pesada criminalização dos “terroristas” pode um dia se voltar contra os verdadeiros contestadores da ordem estabelecida, isto é, aqueles que, à esquerda, querem ir além da defesa da ordem neoliberal injusta e garantidora da reprodução da espantosa desigualdade vigente.

Por isso, na última página do livro, escrevem os autores: “O governo Lula 3 é um tampão contra a ascensão neofacista no Brasil, mas se não lutarmos pela justiça social e por futuros emancipatórios, seguiremos submetidos à pacificação pró-mercado, ao novo punitivismo às avessas e logo abriremos o caminho para que a extrema-direita se reorganize e retome o comando”.

Com efeito, nem bem escreveram estas palavras de advertência, e já se vê no Congresso Nacional, na insolência de certos militares, na desenvoltura dos deputados bolsonaristas, na eterna cruzada neopentecostal, na idolatria de Elon Musk, os sinais de retomada da mobilização permanente…

*Laymert Garcia dos Santos é professor aposentado do departamento de sociologia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Politizar as novas tecnologias (Editora 34).
Referência
Pedro Fiori Arantes, Fernando Frias e Maria Luíza Meneses. 8/1 A rebelião dos manés ou Esquerda e direita nos espelhos de Brasília. São Paulo, Hedra, 2024, 184 págs.

Empresas multinacionais na economia brasileira, por Fernando Nogueira da Costa

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Fernando Nogueira da Costa – A Terra é Redonda – 06/05/2024

No ranking das maiores empresas de tecnologia no Brasil quase todas têm origem estrangeira

A posição total de Investimento Direto no País (IDP) foi de US$ 901,4 bilhões, em 2021, composta por US$ 659,3 bilhões em participação no capital e US$ 242,1 bilhões em operações intercompanhia. Segundo o Relatório de Investimento Direto 2022 do Banco Central do Brasil, em 2021, as empresas residentes atuantes em serviços financeiros, incluindo fundos de investimento, responderam por 20,5% (US$135,1 bilhões) da posição de IDP – Participação no capital (US$ 659,3 bilhões), seguidas por companhias pertencentes ao setor de comércio (8,5%) e extração de petróleo e gás natural (7,6%). Esses dados permitem uma abordagem estruturalista da economia brasileira contemporânea, integrada à economia globalizada, embora distante das cadeias globais de valor do norte rico.

Em direção contrária, pouco menos de um terço (32,4%) do valor investido no exterior por residentes (posição de IDE de US$ 431,9 bilhões) está aplicado em empresas atuantes como veículos para aquisição de ativos financeiros. Em seguida, estão serviços financeiros e atividades auxiliares. Está o Brasil integrado à “financeirização” mundial e/ou demonstra uma fuga de capitais?

Em 2021, permaneceram disseminados os ingressos brutos em IDP – Participação no capital, excluídos lucros reinvestidos, destacando-se os setores de veículos automotores, reboques e carrocerias (9,7% do fluxo bruto), produtos alimentícios (9,5%), comércio exceto veículos (9,4%), agricultura, pecuária e extrativa mineral (9%). Na realidade brasileira, há bastante diversificação, destacando-se ainda serviços de tecnologia da informação (6,85) e serviços financeiros (6,3%).

Quanto às transações brutas de IDP – operações intercompanhia, destacaram-se as empresas com atuação no setor de fabricação de coque, derivados de petróleo e biocombustíveis, e de extração de petróleo e gás natural, tanto nos ingressos quanto nas amortizações. Dedução: o Brasil virou exportador de petróleo!

Isto porque as operações de Pagamento Antecipado de Exportação (PAE), nas quais a empresa residente no Brasil primeiro recebe o pagamento e posteriormente exporta a mercadoria, respondem por parcela significativa das transações IDP – Operações intercompanhia. Em 2021, dos US$ 77,1 bilhões amortizados, US$ 29,2 bilhões (38%) das operações de crédito intercompanhia foram pagos em mercadoria, e não em moeda.

Quanto à lucratividade de IDP – Participação no Capital –, esta variou entre os setores da economia em 2021. Entretanto, todos os setores destacados – metalurgia (23,2% do total), serviços financeiros (9,3%), comércio (7,5%), bebidas (5,7%), extração de petróleo e gás natural (4,6%) – auferiram lucros, inclusive o relacionado à produção e comércio de veículos (8,7%), sem resultados positivos nos sete anos anteriores.

Segundo a Carta ANFAVEA, a produção de todos os autoveículos em 2023 atingiu 2,37 milhões, sendo 481 mil (20%) exportados. Foram licenciados 2,1 milhões deles – e 2,3 milhões se somar os importados. Considerando apenas automóveis de passageiros, esses números foram, respectivamente, 1,825 milhão, 386,4 mil, e 1,577 milhão. Foram licenciados cerca de 165 mil automóveis importados.

Praticamente, todas as marcas internacionais disputam o mercado brasileiro: Audi, BMW, Mini, Caoa (Hyundai e Chery), Subaru, FCA (Chrysler, Dodge, Fiat, Jeep), Ford, General Motors, Honda, Mitsubishi, Suzuki, Jaguar, Land Rover, Mercedes-Benz, Nissan, Peugeot, Citroën, Renault, Toyota, Lexus, Volkswagen. Essas empresas estrangeiras, atuantes na indústria automobilística do Brasil, contribuem para a economia do país ao gerar cerca de 100 mil empregos e impulsionar a produção e as vendas de veículos no mercado doméstico e de exportação.

No Brasil, ao longo das últimas décadas de abertura externa, houve processos de desnacionalização em diversos setores de atividades econômicas, nos quais empresas estrangeiras adquiriram participação significativa ou controle de empresas anteriormente brasileiras, inclusive por privatizações. Alguns exemplos:

(i) Setor de Telecomunicações: empresas estrangeiras, como Telefónica (Espanha) e Telecom Italia (Itália), adquiriram participações em operadoras de telefonia fixa e móvel no Brasil. (ii) Setor de Energia: empresas estrangeiras, incluindo Shell (Países Baixos/Reino Unido) e BP (Reino Unido), têm participação em diversas etapas da cadeia de valor do setor de energia, incluindo exploração e produção de petróleo e gás. (iii) Setor Bancário: bancos estrangeiros, como Santander (Espanha) e HSBC (Reino Unido), adquiriram bancos brasileiros, mas o segundo desistiu.
(iv) Setor de Alimentos e Bebidas: multinacionais como Nestlé (Suíça), Unilever (Países Baixos/Reino Unido) e Coca-Cola (EUA) têm operações no Brasil com produção e distribuição de alimentos, bebidas e produtos de consumo. (v) Setor de Mineração: a Vale (ex-Vale do Rio Doce) se desnacionalizou, levando junto a indústria de mineração do Brasil, com atividades em minério de ferro, níquel, cobre e outros minerais. (vii) Setor de Aviação: companhias aéreas estrangeiras, como American Airlines (EUA), Delta Air Lines (EUA) e Lufthansa (Alemanha), dominam o mercado de aviação brasileiro de voos internacionais, nos locais há Azul, Gol, Latam.

Esses são apenas alguns exemplos dos setores nos quais houve processos de desnacionalização na economia brasileira, com empresas estrangeiras assumindo papel dominante. Essas aquisições e investimentos estrangeiros trazem benefícios, como acesso a novas tecnologias e mercados, mas também colocam em risco a soberania econômica e a concorrência no mercado local.

É interessante destacar: também entre as maiores exportadoras do agronegócio brasileiro, estão empresas estrangeiras. A Cargill, uma das maiores empresas de agronegócio do mundo, com origem nos Estados Unidos, atua no Brasil, no setor de grãos, como soja e milho, além de outras commodities agrícolas.

A Bunge é outra gigante do agronegócio com origem nos Estados Unidos. No Brasil, atua em produção, processamento e comercialização de grãos, óleos vegetais e produtos agrícolas. A ADM (Archer Daniels Midland) é a empresa americana líder global em processamento de grãos e produtos agrícolas. No Brasil, explora a produção e exportação de soja, milho e outros produtos agrícolas.

A Louis Dreyfus Company é uma das maiores empresas de commodities agrícolas do mundo, com sede na Holanda. No Brasil, atua na comercialização e exportação de grãos, óleos vegetais e açúcar.

Entre as empresas multinacionais atuantes na economia brasileira, destaca-se, por exemplo, a Nestlé, uma das maiores empresas de alimentos e bebidas do mundo, aqui com operações em alimentos processados, lácteos, café, chocolates e bebidas. Outra dominante é a Unilever, com presença no Brasil em categorias como alimentos, cuidados pessoais e produtos de limpeza.

Está presente também a Shell, uma das maiores empresas de energia do mundo, com atuação em segmentos como exploração e produção de petróleo e gás, refino e comercialização de produtos petrolíferos. Compete com a Petrobras, a maior empresa de energia do Brasil e uma das maiores do mundo no setor de petróleo e gás, envolvida em todas as etapas da cadeia produtiva, desde a exploração e produção até a distribuição de combustíveis.

A indústria farmacêutica no Brasil não é totalmente desnacionalizada. Mas a presença de empresas multinacionais é dominante no mercado farmacêutico brasileiro, tanto em termos de produção local quanto de importação de medicamentos. Essas empresas trazem tecnologia avançada, expertise em pesquisa e desenvolvimento, e acesso à variedade de produtos farmacêuticos.

Como exportadoras de commodities, além das agrícolas, destacam-se a Petrobras (petróleo e gás) e a Vale (mineração). São multinacionais de origem brasileira, assim como é a Ambev com presença global por meio de várias marcas de bebidas.

Os big five bancos – Itaú, Bradesco, BTG e Banco do Brasil – resistem à desnacionalização. Entre eles, estrangeiro só é o Santander. A Caixa não é uma sociedade aberta, porque 100% de suas ações pertencem ao Tesouro Nacional.

A economia brasileira é muito concentrada em “empresas de valor” e tem poucas empresas de tecnologia locais. Algumas tech companies abriram seu capital, mas elas ainda são relativamente pequenas, com a exceção da WEG, produtora de diversos tipos de produtos industrializados, para clientes de todo o mundo, como motores, tintas e vernizes, entre outros. Fundada em 1961 em Santa Catarina, a WEG é uma das maiores empresas de capital aberto do Brasil, com presença em mais de 135 países.

No ranking das maiores empresas de tecnologia no Brasil quase todas têm origem estrangeira. No mercado de telefonia, há o duopólio da Vivo e da Claro. Na produção de hardware e software empresarial, destacam-se a IBM Brasil, a HP Brasil e a Oracle Brasil. No varejo eletrônico, dominam a Amazon e o Mercado Livre.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP)

Taxação de bilionários não é mais de direita ou esquerda, diz Nobel de Economia

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Esther Duflo vê amplo apoio popular à criação de imposto sobre super-ricos para enfrentar crise climática e pobreza

André Fontenelle, Jornalista baseado em Paris

Folha de São Paulo – 13/04/2024

[RESUMO] Em entrevista à Folha, economista francesa afirma que a cobrança de imposto sobre a fortuna de super-ricos e o aumento da tributação de multinacionais foram incorporados ao espírito do tempo e podem gerar, em todo o mundo, US$ 500 bilhões ao ano para financiar medidas de mitigação de impactos da crise climática sobre populações e países pobres.

Na próxima quarta-feira (17), os ministros da Fazenda dos países do G20 reunidos em Washington ouvirão uma proposta que alguns anos atrás seria inimaginável em um fórum do gênero: usar um imposto sobre os bilionários para lutar contra a pobreza e as consequências da crise climática.

A autora da proposta, Esther Duflo, 51, vencedora doNobel de Economia de 2019, falará como convidada do governo brasileiro, atualmente na presidência rotativa do G 20. Segundo a economista francesa, chegou a hora para articular as duas questões, pobreza e aquecimento global.

Propostas de taxação dos super-ricos vêm ganhando aliados nos últimos anos. Em fevereiro, Fernando Haddad encampou uma dessas propostas, de outro economista francês, Gabriel Zucman, colega de Duflo na Escola de Economia de Paris e especialista em paraísos fiscais.

Segundo Duflo, cobrar 2% sobre a fortuna dos super-ricos e aumentar a tributação das multinacionais arrecadaria US$ 500 bilhões de dólares por ano, que poderiam ser aplicados em favor dos mais pobres do planeta, maiores vítimas da emergência climática. Parte do dinheiro seria diretamente injetado em contas digitais dessas pessoas, parte seria usada como resseguro para os governos obrigados a arcar com os custos das catástrofes e o restante seria investido na adaptação ao calor extremo nas regiões mais afetadas.

A pesquisadora afirma buscar “influenciar o mundo real”: é uma das fundadoras do J-PAL(Laboratório de Ação contra a Pobreza Abdul Latif Jameel) —rede mundial de pesquisa que tem uma representação no Brasil, no Insper, em São Paulo— e lançou na França no ano passado uma série de livros infantis com histórias para conscientizar as crianças dos problemas da miséria.

Em entrevista por videochamada, Duflo antecipou à Folha a proposta que vai apresentar em Washington.

Na última reunião preparatória do G20, em São Paulo em fevereiro, Fernando Haddad mencionou uma proposta de imposto sobre super-ricos. Essa proposta é igual à sua? Não é a mesma, mas eu a conheço muito bem e a apoio. Gabriel Zucman, que está muito envolvido com ela, é meu vizinho de sala em Paris. A minha é, digamos, complementar, porque trata da necessidade de financiamento para adaptação e compensação pelos danos climáticos para as pessoas mais pobres do planeta. O imposto recomendado pelo ministro Haddad em fevereiro é uma dessas fontes.

A sra. dá muita ênfase à viabilidade dessas propostas. Por quê? Não basta mais apresentar argumentos teóricos e morais, do tipo “é só fazer isso”. Temos que ser mais pragmáticos, porque a mudança climática já chegou. As temperaturas já aumentaram. Os últimos 12 meses foram os mais quentes já registrados. Os danos já estão acontecendo, principalmente nos países mais pobres, que não têm condições de se proteger.

Precisamos agir hoje. Até agora, temos demonstrado uma total incapacidade de lidar com esse problema. Não basta fazer declarações ou criar um fundo sem investir dinheiro algum nele.

Nunca se falou tanto em um imposto sobre os super-ricos. Ele está no espírito do tempo? Sim, e o Brasil fez muito para colocá-lo no espírito do tempo. Antes de fevereiro, estava menos que agora. O fato de ter sido encampado pela presidência brasileira do G20 faz uma grande diferença, mas há outros fatores que tornam esse imposto possível.

Por um lado, o aumento da desigualdade e, em especial, das enormes fortunas. Por outro, a constatação de que essas grandes fortunas não pagam Imposto de Renda. Não se trata de tirar a fortuna deles, mas obrigá-los a pagar impostos como os que nós pagamos sobre nossos salários.

O retorno mínimo na Bolsa, para quem é muito rico, é de 5%. Hoje, essa renda não é tributada. Tributar o patrimônio em 2% equivale a tributar cerca de 40% da renda, o que equivale à alíquota superior do Imposto de Renda na maioria dos países. Isso mostra que é possível chegar a um entendimento internacional. Chegou o momento de introduzir o imposto sobre bilionários.

O imposto sobre empresas já está sendo implantado. Ao aumentar um pouco esse imposto ou usar o todo ou parte do imposto sobre os super-ricos, poderíamos financiar até US$ 500 bilhões por ano para os mais pobres do mundo.

A sra. foi convidada a Washington pelo governo brasileiro. Não teme que sua proposta fique associada a um grupo político? Não creio. Foi o G20 que me convidou, como parte da presidência rotativa brasileira, que tem foco na pobreza e na mudança climática. É normal que esse foco reflita a política de Lula, enquanto o G20 geralmente lida mais com os problemas dos países industrializados. A França apoiou imediatamente a proposta, com um governo que não é de esquerda.

Além disso, quando analisamos as pesquisas, o apoio é muito forte. Taxar grandes empresas ou bilionários para ajudar os países pobres a lidar com as mudanças climáticas tem mais de 80% de popularidade. Vai além de direita ou esquerda. É senso comum.

Elon Musk e o STF entraram em conflito sobre a liberdade de expressão. Isso não mostra que haverá resistência dos bilionários a propostas como a sua? É possível. Por outro lado, estamos falando em 2% de suas fortunas. Mesmo que eles não façam nada com essas fortunas —e geralmente fazem—, elas rendem mais de 5% ao ano. Concordar em serem tributados nesse nível totalmente razoável não seria um investimento no tecido social por parte dos bilionários?

Eles podem alegar que já fazem filantropia. Deixaria de ser filantropia, porque seria um imposto: logo, eles não teriam controle. Porém, ainda que seja puramente estratégico, pode ser do interesse deles: “Estamos pagando nossa contribuição razoável para as sociedades em que vivemos”.

Não sei se Elon Musk entenderia isso, mas outros talvez se deem conta de que é um preço pequeno, comparado ao que poderia aguardá-los se houvesse uma revolta popular e populista que saísse do controle. Um bilionário razoável deveria ser a favor.

Como o dinheiro seria aplicado? Podemos dividir as propostas em três “cestos”: primeiro, as individuais. Quando as pessoas recebem dinheiro, podem se mudar temporariamente se houver uma enchente ou muito calor, podem se proteger e seus animais ou não trabalhar por algum tempo se estiver muito quente. Durante a pandemia, vimos que muitos países sabem fazer isso. Qualquer pessoa pode ter uma conta no celular, diretamente conectada a um grande “pipeline” de dinheiro.

Há quem diga: “Mas tem corrupção, o dinheiro não vai chegar”. Não. Hoje, há pesquisas demonstrando que as pessoas que recebem dinheiro o utilizam muito bem. Por isso, é a parte mais importante da proposta.

Depois, as propostas nacionais: quando ocorre um grande desastre climático, os governos são sempre os seguradores de última instância. Portanto, um resseguro para os governos.
Por fim, a adaptação, que pode ser em nível comunitário ou regional, às consequências das mudanças climáticas. No Brasil, há uma tradição muito forte de descentralização, que pode servir de exemplo.

O que a sra. responde a quem diz que as estimativas não estão corretas e que isso não vai acontecer? Não dá para dizer que não vai acontecer porque já está acontecendo. Nos países pobres, já é uma realidade. Basta ver as enchentes do ano passado no Paquistão, a seca intensa no norte da Índia. Tenho certeza de que você pode pensar em exemplos no Brasil. O Níger e todo o Sahel se tornaram áreas onde nada mais pode ser cultivado. Não se trata mais de uma questão do futuro: é uma questão do presente.

Não seria melhor enfrentar a própria existência de bilionários em vez de tributá-los? Estaríamos saindo do meu campo pragmático, para entrar, por exemplo, na proposta de Thomas Piketty de tributar a riqueza em um nível muito mais alto para garantir que não haja bilionários —ou

[tributar] as heranças. São propostas interessantes, mas não estão na mesa no momento. Minha pergunta é concreta: o que podemos fazer hoje?

A partir do momento em que sua proposta for apresentada, quantos anos acha que seriam necessários para colocá-la em prática? Não faço ideia. Não sou muito familiarizada com negociações internacionais. No entanto, se pegarmos o exemplo da tributação de multinacionais, ela demorou uns dez anos até ser feita. Que seja em dez, mas acho que acontecerá e espero que aconteça.

O que a sra. pensa sobre o papel do intelectual na sociedade? Escolhi a economia quando me dei conta de que o economista pode ter uma influência no mundo real. Na maior parte do meu trabalho com o J-PAL, há uma relação clara da intelectual a serviço da política. Os políticos têm ideias, e nós estamos aqui para ajudá-los a encontrar maneiras eficazes de atingir seus objetivos.

Essa proposta é uma postura um pouco diferente da que tive durante toda a minha carreira acadêmica, porque se trata de uma proposta política, não apenas técnica. Pode ser criticada ou melhorada. Ao apresentá-la, me torno uma espécie de porta-voz da ciência atual.

Por que a sra. escreveu uma série de livros infantis sobre a pobreza? As leituras da infância são marcantes. O que vemos nos impressiona, nos choca e nos desafia. Foi essa a minha experiência.

Outro motivo é a literatura atual sobre pobreza e questões ambientais não ser das melhores. Tende a ser extremamente didática ou caricatural. Queria mostrar a riqueza da vida das pessoas pobres. Conscientizar as crianças dos problemas da pobreza e das soluções —porque todos os meus livros oferecem soluções—, só que sutilmente.

Em conferência recente, a sra. falou de um “efeito Bolsonaro” e um “efeito Lula” em relação ao desmatamento. A esquerda se preocupa com o meio ambiente mais que a direita? A política conta. Isso está demonstrado. Uma decisão política afeta outras decisões.

Quanto a Bolsonaro vs. Lula, são duas personalidades específicas. Não acho que Bolsonaro seja representativo da direita, assim como Lula não é necessariamente representativo da esquerda. É verdade que, se observarmos as propostas, os governos de direita tendem em geral a não defender tanto a ecologia quanto os de esquerda. Mas isso não basta para dizer que a direita é menos ecológica que a esquerda.

A sra. parece cética em relação a abordagens baseadas em compromissos voluntários para cumprir as metas de emissões por país. Está pessimista em relação à COP em Belém? Discutem-se muito os termos dos comunicados finais, e, na diplomacia, muitas vezes, o comunicado é a ação. Não sei o que teria acontecido sem as COPs, mas o esforço tem sido muito lento em comparação com a dimensão da necessidade.

Em relação à compensação para os países pobres, está nítido para mim que não é suficiente e que deveríamos fazer melhor e imediatamente. Mas não há só o imposto sobre o carbono. Há também, em tese, a possibilidade de um sistema de cotas por país. Esse era o princípio [do Protocolo] de Kyoto, que não deu certo.

A solução mais justa parecem ser cotas com base na população de cada país. Se conseguíssemos isso, minha proposta não seria mais necessária, porque haveria uma transferência absolutamente maciça para os países mais pobres. Só que não parece estar em pauta.

A sra. lamenta isso? Lamento, mas é preciso encarar o mundo como ele é. Não sou ingênua. Todo o meu trabalho sempre foi fazer o melhor dentro das restrições políticas. O que não quer dizer que não se deva sonhar com sistemas melhores. Tem gente que pode e deve fazer isso, mas meu trabalho sempre foi mais reformista: como fazer o melhor dentro do sistema muito imperfeito existente.

Recentemente, uma reforma tributária foi aprovada no Brasil para simplificar um sistema considerado muito complexo. Esse tipo de reforma pode desempenhar um papel na redução da pobreza? Não estudei [a reforma brasileira], mas ter um sistema mais legível, que unifique diferentes impostos e possibilite calcular a verdadeira extensão da redistribuição, possibilita um debate sobre as questões reais. Na França, temos um Imposto de Renda progressivo, mas também temos um monte de impostos “flat”, o que pode tornar seu caráter redistributivo obscuro.

Qual mensagem a sra. deseja transmitir em Washington? Para mim, é fundamental apresentar essa proposta diante dos ministros das Finanças para obter uma reação e forçá-los a dizer sim ou não e por quê. Isso coloca a proposta oficialmente no debate público. Espero que desemboque em uma declaração do G20 neste ano, que seria um passo importante para a concretização da proposta.

Minha mensagem mais importante será: “Vocês representam os países responsáveis pelas mudanças climáticas, que já estão ocorrendo e causando a perda de vidas nos países pobres. Até que encontrem uma maneira mais eficaz de combater as mudanças climáticas, vocês precisam encontrar

uma forma de compensar as pessoas mais pobres por meio de mecanismos sustentáveis, porque os voluntários não deram certo. Estou ciente da pressão fiscal sobre seus orçamentos, mas existem duas fontes de financiamento justas, realistas, populares, que nos permitiriam arrecadar US$ 500 bilhões de dólares por ano para proteger vidas”.

ESTHER DUFLO, 51
Presidente da Escola de Economia de Paris e professora do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), é cofundadora do J-PAL (Laboratório de Ação contra a Pobreza Abdul Latif Jameel) e vencedora do Prêmio Nobel de Economia de 2019, com Abhijit Banerjee e Michael Kremer. Autora, com Banerjee, de “Good Economics for Hard Times” e “Poor Economics: a Radical Rethinking of the Way to Fight Global Poverty”, entre outros livros.