Em busca das raízes da brutalidade policial, por Almir Felitte.

0

Violência e racismo das PMs remontam ao período 1830-71. Burguesia colonizada e sem projeto assumiu o Estado. Promoveu branqueamento, dependência e repressão das “classes perigosas”. As elites jamais quiseram livrar-se desta garantia

Almir Felitte – OUTRAS PALAVRAS – 16/05/2025

Do Código Criminal do Império à criação do inquérito policial, os primeiros regulamentos criminais e policiais do país se desenrolam entre 1830 e 1871. Paralelamente, a primeira lei abolicionista brasileira data de 1831, convergindo para a aprovação da Lei Áurea em 1888. Muito além de mera coincidência histórica, preocupações das camadas dominantes em realizar esta transição nas relações de produção, da escravidão ao trabalho livre, sem perder o controle sobre classes trabalhadoras foram centrais na formação do sistema de segurança pública brasileiro. Sob a perspectiva de que este período de formação do Estado nacional representou verdadeira revolução burguesa que desembocou em um sistema capitalista moderno e dependente, reconhecemos que a racionalidade burguesa brasileira operou numa dupla articulação que compatibilizou dominação imperialista externa e desenvolvimento desigual interno. Enxergamos três contradições fundamentais neste novo sistema nacional: entre o negro recém-liberto e as classes dominantes; entre o trabalhador imigrante e os interesses do modelo dependente de capitalismo; entre a massa negra marginalizada e o trabalhador imigrante. Nelas, compreenderemos como o processo de independência desembocou numa autocracia marcada pela dominação burguesa sobre a máquina estatal e as demais classes, bem como este processo tem relação direta com a formação das instituições policiais no Brasil e o foco de suas atividades no controle social sobre a classe trabalhadora no nascente capitalismo nacional.

(…)

Dos sentidos da colonização aos sentidos da independência: capitalismo e Revolução Burguesa no Brasil

“O escravismo colonial cria, portanto, as premissas econômicas, sociais e culturais para o modelo do capitalismo dependente que o substitui”. A frase de Clóvis Moura (2023, p. 45) dá a tônica do nosso tema. É difícil compreender o papel da polícia brasileira sem recorrer às teorias da formação social do Brasil. Estudar a segurança pública passa por desvendar os sentidos do desenvolvimento de nosso Estado nacional, no qual a transição da forma de produção baseada no trabalho escravo para outra fundamentada no trabalho livre, bem como os interesses nacionais e internacionais que a dirigem, são questões centrais. Ao descrever o processo de evolução do Brasil colônia ao Brasil nação, Caio Prado (1977, p. 83-85). destaca quatro etapas históricas fundamentais: a independência política, a supressão do tráfico africano e, por consequência, a imigração de trabalhadores europeus e a abolição da escravidão. Para desenrolar este trabalho, inicialmente, nos aprofundaremos nos sentidos daquela primeira, sobretudo a partir das ações e pensamentos da classe dominante que a protagonizaria: a nascente burguesia brasileira, em sua heterogeneidade e especificidade. Por isso, como pontapé inicial, fazemos a mesma pergunta de Florestan Fernandes (1976, p. 20-22) décadas atrás: “existe ou não uma ‘Revolução Burguesa’ no Brasil”?

Como ele, respondemos afirmativamente. Mas Florestan não o faz buscando repetir deformada ou anacronicamente o movimento ocorrido na Europa, por exemplo, forçando uma pré-existente sociedade feudal brasileira. Dentro das características nacionais, ele procura os agentes humanos que protagonizaram as grandes transformações históricas do país representadas pela desagregação do regime escravocrata-senhorial e pela formação de uma sociedade de classes no país. Reconhece, assim, que uma revolução burguesa não é mero episódio histórico, mas um fenômeno estrutural que pode ser reproduzido de modos relativamente variáveis, desde que determinada sociedade absorva um padrão de civilização que torne esta revolução uma necessidade histórica. No Brasil, esta revolução estava representada pela necessidade do rompimento da classe dominante com a ordem escravocrata-senhorial.

(…)

Aliados incômodos: o povo negro e a burguesia na revolução brasileira

Não tomar o povo negro como força política dinâmica e radical no processo de independência é um erro. A negritude brasileira, mesmo à época da escravidão, teve influências diretas e indiretas nos movimentos revolucionários. Na estratificada sociedade escravista, todo processo de mudança social partia da análise sobre as relações entre senhores e escravos e da possibilidade ou necessidade de substituição deste modo de trabalho. A participação negra neles mostra tanto a força de seu dinamismo na história brasileira, quanto seu próprio isolamento criado pelos centros deliberantes destes processos (MOURA, 2023, p. 56-57). Ao analisar movimentos abolicionistas, Clóvis Moura (2021, p. 215-216) aponta neles dois níveis distintos: o dos negros, desde cedo, pela sua própria condição material; e o de políticos e outras camadas sociais que geralmente enxergavam no escravismo um entrave ao desenvolvimento capitalista. Neste sentido, ele contrasta a fala do abolicionista Joaquim Nabuco na defesa da luta via Parlamento com a realidade negra, em que a liberdade era garantida, geralmente, pelo uso da violência do escravo contra o senhor, resultando em fugas, quilombos, insurreições e crimes. Em suas palavras, “o escravo rebelde foi uma força social ativa e permanente no processo de modificar-se o tipo de trabalho existente no Brasil”.

Lutando pela própria emancipação, induzindo o país a uma nova modalidade de relações de trabalho, não é estranho que o negro escravizado tenha participado diretamente de movimentos que visavam a emancipação também do país. Na dinâmica interna destes processos, negros escravos e ex-escravos dividiram desígnios com outras classes, expondo os sentidos do “espírito burguês” que se criava no Brasil e suas contradições entre o apego a estruturas coloniais e o desejo de desenvolvimento capitalista. Revoltosos negros se fizeram presentes nas duas mais importantes inconfidências brasileiras: a mineira e a dos alfaiates baianos. Clóvis (1981, p. 58-70) aponta que tal atuação não fora tão relevante na revolta de Minas e que, embora os inconfidentes fossem abolicionistas em geral, não é clara a coesão entre os dois grupos sociais. Quando o conflito explodiu, o território mineiro era um dos maiores focos quilombolas do país e os negros aquilombados já sinalizavam união com os da cidade, conforme pasquins encontrados em Sabará. Por outro lado, inconfidentes como o sargento Luís Vaz de Toledo propunham a promessa de alforria como fator atrativo de escravos para a luta, colocando em dúvida qual o real nível de coesão entre ambos.

Na Bahia, onde os organizadores do movimento pertenciam às camadas pobres da sociedade, a Revolta dos Alfaiates foi nitidamente republicana e abolicionista, buscando romper com o governo representante do estatuto colonial para fundar uma república aos moldes franceses em 1798. Seus líderes se preocuparam em atrair outros artesãos, escravos e ex-escravos, reunidos em torno de um programa revolucionário que compreendia a independência da capitania, a forma republicana, a liberdade comercial, a remuneração de soldados e a libertação dos escravos. Mas uma dinâmica interessante deve ser apontada no levante: intelectuais como Cipriano Barata, Hermógenes de Aguiar e Francisco Moniz Barreto, abordados pelo líder pardo Manuel Faustino dos Santos, tentaram convencê-lo a aguardar pela chegada dos franceses ao invés de adentrarem, eles mesmos, numa revolta violenta pela independência. Enquanto a intelectualidade afastou-se gradativamente, membros das classes mais populares mantiveram o movimento coeso. Sufocada violentamente, documentos oficiais demonstram que a revolta teve muitos negros e pardos entre seus líderes condenados à morte, a castigos físicos ou ao banimento para a África. Lideranças das camadas médias, porém, sofreram punições mais brandas: Cipriano Barata ainda participaria de nova revolta em 1817, morrendo apenas anos mais tarde, na velhice; igualmente Hermógenes, que, absolvido, viveria longos anos até morrer como Marquês de Aguiar.

Para Clóvis Moura, o fim da Revolta dos Alfaiates é um marco nos grupos que se organizavam pela independência. “A classe senhorial – possuidora de escravos – entra na composição dessas forças e influi cada vez mais poderosamente, fato que determina a mudança concomitante de objetivo dos movimentos subsequentes”. Se fortalece a ideia de que apenas uma classe com base econômica sólida poderia dirigir o movimento independentista e, nas contradições entre as camadas letradas e populares e os senhores de escravos, são os últimos que conquistam o bastão de comando político dos levantes subsequentes. Embora contasse com escravos e inicialmente defendesse a abolição, tão logo a revolução pernambucana de 1817 fundou seu Governo Provisório, apressou-se em publicar documento esclarecendo: “a base de toda sociedade regular é a inviolabilidade de qualquer espécie de propriedade” e, por isso, desejava uma emancipação “lenta, regular, legal” do “cancro da escravidão”. Na aliança com o latifúndio escravista, ideias liberais em defesa da propriedade, ironicamente, serviram “para defender uma formação econômico-social que na Europa elas ajudaram a esfacelar”. Além disso, apesar da participação escrava na revolta ter sua parcela espontânea, muitos escravos participaram obrigados por seus próprios senhores envolvidos na luta.

Nos três movimentos citados, todos com a causa independentista em comum, vemos a participação de escravos e ex-escravos. Porém, apenas no mais popular deles, o baiano, a população negra obteve algum protagonismo a ponto de pautar o movimento. Na Inconfidência Mineira e na revolta pernambucana, embora desejada por parte das classes brancas, a abolição ficou em segundo plano em relação à independência política do país, e o negro era visto por muitos como uma reserva militar motivada pela esperança da alforria. A participação negra nestas revoltas pode inclusive ter sido decisiva para uma maior adesão de classes dominantes à luta pela independência. O senhorio brasileiro buscava a extinção do estatuto colonial, mas não se desapegaria tão facilmente de certas estruturas de poder tipicamente coloniais, mesmo que representassem um entrave para o desenvolvimento capitalista brasileiro. A publicação do Governo Provisório pernambucano foi didática: a passagem do bastão para as classes senhoriais rurais no comando do movimento independentista representava, ao mesmo tempo, a passagem de um liberalismo mais radical, com bases populares, para outro mais conservador. Este seria o sentido do “espírito burguês” responsável pela revolução burguesa aquecida pela independência em 1822.

(…)

Voltemos a análise de Clóvis (2023, p. 43-47). A identificação colonial da divisão social do trabalho com sua divisão racial é mantida. Mesmo com o surgimento do Brasil nação, as classes dominantes formam um tipo ideal nacional que segue o modelo antigo do colonizador: o branco. Criam-se símbolos que justifiquem o negro como inferior biológica, psicológica e culturalmente. A permanência da escravidão até 1888 cercearia possibilidades democráticas para o país, mas não apenas: o latifúndio escravista também minaria a formação de áreas de desenvolvimento capitalista que, à época, eram vistas na Europa, impedindo o surgimento de uma burguesia nacional que liderasse maiores transformações estruturais na sociedade. Este atraso impossibilitaria maior acúmulo de capital pelo próprio país, tornando inevitável que o Brasil pós-independência desembocasse num modelo de capitalismo dependente. É interessantíssima a comparação de Clóvis ao ressaltar que a Lei Eusébio de Queirós seria publicada dois anos após “O Manifesto do Partido Comunista”, de Marx e Engels, e a Lei do Ventre Livre entraria em vigência no mesmo ano da Comuna de Paris. Enquanto o Parlamento brasileiro ainda se ocupava com a luta de traficantes brasileiros pela manutenção da escravidão, áreas em expansão do capitalismo moderno, como a financeira e a de infraestrutura, se acumularam nas mãos do capital estrangeiro, ao invés de serem controladas por uma burguesia nacional que nunca se completou verdadeiramente.

Forma-se uma situação de dupla dominação no Brasil: uma interna e outra externa. Pouco antes da abolição, em 1882, a população das cinco principais províncias do país (SP, MG, BA, PE e RJ) se dividia entre 1.433.170 trabalhadores livres, 656.540 escravos e 2.822.583 desocupados. Estes últimos, uma franja marginal característica do capitalismo dependente formada majoritariamente por negros e mestiços, mesmo após a abolição, que ocorreria em 1888 mantendo-se o latifúndio e praticamente as mesmas classes dominantes. O país continuaria dependendo da economia de exportação monocultora, do café, enquanto a importação maciça de imigrantes europeus brancos criava enormes contingentes poliétnicos marginalizados. O imperialismo se consolida como um componente externo de dominação, tal qual o antigo colonialismo, impondo situações em que essa franja marginal nunca é aproveitada por solicitações do mercado internacional. Mesmo na abertura de áreas pioneiras para a lavoura de café paulista, a imigração japonesa é induzida, deixando-se o negro na marginalidade.

Para Clóvis, este modelo dependente que vai substituindo o escravismo se define em seis pontos principais: ausência de um capitalismo nativo capaz de conferir autonomia nacional; conservação do latifúndio; subordinação ao imperialismo; conjugação de formas arcaicas e modernas de produção; alta concentração de renda; e a construção de um aparelho de Estado altamente repressivo que contenha a franja marginalizada da população. É neste último ponto que focaremos para explicar a relação entre a transição do trabalho escravo para o trabalho livre e a consolidação de um sistema de segurança pública no Brasil.

Autocracia burguesa: a construção do aparelho policial na formação da classe trabalhadora livre no Brasil

As classes senhoriais brasileiras lograram a independência política, mas havia um longo caminho para construir um verdadeiro Estado nacional e desenvolver um capitalismo moderno no país. Muito pelo fato de que o rompimento com o estatuto colonial acabou mesmo liderado por setores da classe dominante arredios às formas mais radicais do liberalismo. A insistência no modelo latifundiário-escravista dificultaria a modernização necessária ao maior acúmulo de capital pelo Brasil, mantendo-o em posição de atraso e dependência em relação aos países desenvolvidos. Ao mesmo tempo, a fresta de liberalismo utópico que se abriu numa parcela da população e a potencialidade negra exerceriam pressão na direção da modernização capitalista brasileira, tornando a abolição uma necessidade latente que se realizaria em processo conjunto com a massiva imigração branca europeia.

Começaremos por uma rápida análise do fim deste processo, pois seu resultado final explicita três contradições que foram emergentes ao longo de todo o período imperial-escravocrata. Primeiramente, aquela entre o negro recém-liberto e as classes senhoriais advindas do Império. A segunda, entre o trabalhador imigrante e os interesses de uma sociedade de capitalismo dependente que gradualmente se firmava após o escravismo-colonial. Por último, aquela entre o trabalhador negro livre, desempregado ou subempregado, e o trabalhador branco estrangeiro livre (MOURA, 2023, p. 70-71). Consolidadas com a abolição em 1888, estas três contradições deram a tônica ao período imperial, que representou um lento processo de modernização do capitalismo brasileiro em direção a um modelo baseado no trabalho livre assalariado. Vale apontar que o movimento abolicionista já mostrava força antes mesmo da independência e que a Lei Barbacena, que proibia o tráfico de escravos, embora desrespeitada, seria imposta já em 1831. A ela, seguiu-se a legislação estrangeira Bill Aberdeen, em 1845, e, como consequência nacional, a Lei Eusébio de Queiróz, de 1850, concretizando a proibição do tráfico. A partir daí, acelera-se a transição do modo de trabalho no Brasil. A Lei do Ventre Livre, em 1871, e a dos Sexagenários, em 1885, seriam um prelúdio da Lei Áurea, que enfim aboliu a escravidão negra no país.

A cronologia destas legislações ganha relevo ao lado de estatísticas populacionais do Brasil. Em 1850, às vésperas da Lei Eusébio de Queiroz, que dificultou a reposição do trabalho escravo, a população nacional era de 5.520.000, sendo 2.500.000, quase metade, escravizada. Dois anos depois, enquanto o povo brasileiro atingia a marca de 8.429.672 pessoas, a população escrava decresceu para 1.510.000. Um ano antes da abolição, entre 18.278.616 brasileiros, o número de escravizados caíra para 723.419. Dados explicados pela mortalidade negra escravizada, pelo gradualismo da abolição e pela massiva imigração de brancos europeus para o país. O Brasil passava por uma nítida transição demográfica tendente ao branqueamento de seu povo, efetivamente acelerada pela República. São Paulo sozinha receberia cerca de 940 mil imigrantes entre 1827 e 1899 (MOURA, 2021, p. 47-49).

Também em estatísticas demonstramos a razão de Clóvis Moura ao dizer que este processo se desenrolaria através de relativo privilégio ao imigrante branco e da marginalização do povo negro. Em 1891, 30% dos trabalhadores de fábricas no Rio de Janeiro eram negros. Em São Paulo, imigrantes ocupavam 84% destas vagas em 1893 (FAUSTO, 2012, p. 124- 125). No Recenseamento carioca de 1906, embora estrangeiros fossem 26% da população da capital, eram quase 50% dos trabalhadores no setor de transformação e emprego da matéria-prima. Em vários setores, estrangeiros ultrapassavam brasileiros, ao passo que, no setor de profissionais liberais e servidores públicos, os nacionais eram 90%. Ao mesmo tempo, a taxa de improdutivos entre os nativos era de 55%, contra apenas 26% entre estrangeiros. Por um lado, na República, os empregos advindos da modernização capitalista iniciada no Império se concentrariam entre imigrantes brancos. Por outro, o contraste entre o alto número de nacionais nas profissões de maior prestígio e a alta taxa de improdutividade entre brasileiros denota a incômoda realidade: na modernização capitalista brasileira, o grosso da população de pretos e pardos seria relegado à marginalidade do desemprego e do subemprego, enquanto uma elite branca se apossava das atividades estatais e melhor remuneradas (FELITTE, 2023, p. 64).

O que importa para o fim deste trabalho é saber por que, ao consolidarmos nossa modernização capitalista, chegamos a esta situação social. Um início de resposta está no caráter dependente do capitalismo nascente. Caio Prado (1977, p. 86-100) diz que a economia brasileira se originou da função exclusiva de fornecimento aos mercados externos, condicionando seu desenvolvimento como Estado independente e constituindo a base da penetração imperialista no país. Duas circunstâncias fundamentais do colonialismo se perpetuaram: esta base voltada ao abastecimento externo e, por consequência, o tipo de relações de produção e trabalho que, mesmo após a abolição, conservaria características da tradição escravista-colonial. Em nossa economia rural, “os miseráveis padrões da população trabalhadora rural asseguram os baixos custos da produção exportável, (…) a favor (…) de um sistema capitalista de produção apoiado essencialmente (…) naquela produção exportável.”

(…)

Aqui, finalmente tocamos o ponto de chegada deste trabalho: a construção do aparato policial como necessidade coativa para o desenvolvimento do capitalismo brasileiro. Se a dependência do país no capitalismo global colocou nossa burguesia numa situação que seu acúmulo de capital só é possível via superexploração da classe trabalhadora livre, este sistema só pôde se sustentar com um forte aparelho público que contivesse ameaças de perturbação desta ordem. Forma-se, no Brasil, uma dissociação pragmática entre desenvolvimento capitalista e democracia, ou, em outros termos, uma associação racional entre desenvolvimento capitalista e autocracia. A apropriação dual do excedente econômico nos países dependentes acentua fatores sociais e políticos da dominação burguesa. Extrema desigualdade interna, drenagem internacional do excedente econômico, persistências de formas subcapitalistas de produção e pressão baixista sobre o valor do trabalho remunerado, tudo entra em contradição com aspirações democráticas geradas pelo momento revolucionário. A forma de dominação burguesa que se origina só é comparável, nos países desenvolvidos, aos momentos em que o fascismo se associou à expansão capitalista. No subdesenvolvimento depen- dente, o capitalismo nascido é mais “selvagem e difícil” e sua viabilidade se define por meios políticos. Apesar da dissimulação de uma democracia burguesa, escondida na universalização dos interesses burgueses, o que nasce no Brasil, de fato, é uma autocracia burguesa (FERNANDES, 1976, p. 289-293).

Não à toa, no pós-independência, a formação do aparato repressor estatal, as instituições policiais e legislações penais, ocupou boa parte do esforço político da burguesia brasileira no século 19. A Constituição de 1824 previu a supressão de direitos individuais em nome da segurança do Estado e determinou a criação de um Código Criminal. Este seria promulgado em 1830, preocupando-se com a manutenção das estruturas de poder estatais em rol de tipificações que envolviam crimes contra a existência do Império, conspirações, rebeliões, sedições, insurreições e reuniões secretas, além de especificar delitos de abuso da liberdade de comunicar pensamentos e do uso indevido da imprensa. A mentalidade escravocrata se manteve, conservando penas de açoitamento a qualquer escravo que não fosse condenado à morte ou à gaulés e estabelecendo, entre os artigos 113 e 115, penas severas, do açoite à morte, a qualquer cidadão insurrecto envolvido na luta abolicionista (FELITTE, 2023, p. 41-42).

Em torno deste arcabouço penal, formaram-se as polícias. Meses após a formação da Guarda Nacional do Império, a Lei de 10 de outubro de 1831 criou o Corpo de Guardas Municipais da Corte do Rio de Janeiro e permitiu a cada Província do país fazer o mesmo, no que é considerado a origem das polícias militares estaduais no Brasil. Com exceção da mineira, formada no ciclo do ouro do século 18, da fluminense, ligada à chegada da família real portuguesa, e da pernambucana, criada em 1824, as demais polícias militares do país consideram o início de sua história apenas após a promulgação desta lei. Em comum, todas acumulariam atuações na repressão a revoltas que ameaçassem a ordem imperial, como as destruições de quilombos, a supressão à Guerra dos Farrapos, à Cabanagem e à Revolução Praieira e até mesmo o conflito internacional no Paraguai (FELITTE, 2023, p. 37-40).

Mas seria na atuação cotidiana das nascentes polícias criminais que a importância da transição da escravidão ao trabalho livre seria mais sentida. O Código de Processo Criminal de 1832 criou uma estrutura envolvendo Chefes de Polícia, Juízes de Paz, escrivães de paz, oficiais de justiça e inspetores de quarteirões conformando um ciclo completo de policiamento nas províncias, da prevenção à formação de culpa. A reforma de 1841, considerada a origem de polícias civis estaduais como a paulista e a gaúcha, renovou a figura dos delegados e subdelegados, sem ainda desfazer a confusão entre funções policiais e judiciárias (FELITTE, 2023, p. 43-45). O Chefe de Polícia funcionava como uma espécie de “supermagistrado”. Através dos termos de bem viver e de segurança, que formavam culpa sumariamente, o trabalho destas polícias era altamente inquisitório, pouco aberto à defesa dos acusados e especialmente voltado aos considerados perturbadores do sossego público, como vadios, bêbados e prostitutas. Somente as reformas de 1871 começariam a desfazer esta confusão, separando funções judiciais das policiais e limitando a competência das segundas autoridades às diligências instrutórias do recém-criado inquérito policial. Apesar disso, os termos ainda seriam usa- dos por algum tempo, e o próprio inquérito conservaria características inquisitoriais (SOUZA, 2009, p. 97-100).

Na repressão a movimentos de grande vulto, é fácil perceber o papel das polícias militarizadas na manutenção dos interesses burgueses no gradual desenvolvimento capitalista nacional. Mas é na atuação destas polícias civis criminais que perceberemos a centralidade da preocupação burguesa com as novas classes trabalhadoras livres que surgiam, além de um forte componente racial, na formação do aparato policial. Clóvis Moura (2023, p. 47-48) é certeiro ao dizer que, nos países periféricos, o imperialismo permite a formação de um capitalismo dependente conjugado com grandes áreas marginalizadas sistematicamente oprimidas por um aparelho estatal autoritário e despótico. A fim de manter o nível máximo de lucro das multinacionais, consagra-se um novo símbolo do homem brasileiro como idealmente branco, ao mesmo tempo em que o negro é atirado para estas últimas franjas da sociedade como modelo antinacional. Mesmo após a abolição, reinterpretam-se racionalizações escravistas, mantendo o negro como exército industrial de reserva e massa marginalizada, forçando baixos padrões salariais e de vida às massas plebeias. O preconceito de cor funciona como mecanismo regulador do capitalismo dependente, e a repressão realizada pelas polícias é central no controle das pessoas negras e na criação da imagem destas como desordeiras e criminosas.

Quando dizemos que o capitalismo dependente exigia uma grande franja marginalizada da força de trabalho, dizemos que, no subemprego e no desemprego, uma boa parcela da população, majoritariamente negra no caso brasileiro, seria relegada ao ócio. Na contenção deste equilíbrio econômico permanentemente vacilante e explosivo, será justamente sobre os ociosos que a repressão policial brasileira terá seu principal foco de atuação. Acostumada a controlar a massa escravizada de trabalhadores através de meios domésticos de coerção, bem simbolizados pela senzala e pelo feitor, ao longo do Império, com o avanço abolicionista e migratório, a burguesia brasileira se deparou com um inédito número de pessoas livres e ociosas circulando pelas cidades, não mais sujeitas às antigas formas escravistas de controle privado. As modernas relações de trabalho que surgiam exigiam que o controle sobre elas também se modernizasse. No contexto de uma autocracia burguesa em que a classe senhorial passou a se organizar pelo poder público, em torno e dentro do Estado, também estas formas de controle deveriam se organizar no seio estatal. A estatização do controle sobre as classes trabalhadoras e ociosas, sobretudo negras, seria o cerne da formação das polícias no Brasil.

Curioso como listas de prisioneiros do Rio de Janeiro e da Bahia entre 1834 e 1837 mostram que, no período, a proporção de pessoas brancas, pardas, livres, libertas e estrangeiras encarceradas era maior que a de negros e escravos. Por motivos óbvios: a população escrava, ainda grande à época, não só estava mais sujeita às formas privadas de punição, como, caso levada ao poder público, acabava sofrendo as penas mais sumárias e cruéis, como açoite e morte (KOERNER, 1999, p. 41). Mas em 1835, então Chefe de Polícia do Rio de Janeiro, Eusébio de Queiroz já esboçava sua preocupação ao Ministro da Justiça: pela dificuldade de se obter provas sobre a condição de uma pessoa negra quando era detida, o mais razoável era presumir sua situação de escravidão, mantendo-a presa até que um certificado de batismo ou uma carta de alforria fosse apresentada em contrário (CHALHOUB, 2011, p. 431). Tanto a livre circulação quanto a prisão de negros nas cidades ainda são tratadas como novidade neste período em que o aparato policial se formava no país. Fenômeno parecido foi observado no estado norte-americano do Alabama, também de escravismo prolongado, onde negros eram somente 1% da população prisional até 1850, mas saltariam para 75% em 1865, ano da abolição (THOMPSOM, 2019, p. 223).

Junto ao recorte racial, o controle sobre ociosos ficaria mais explícito ao longo da transição do país para um modelo de produção baseado no trabalho livre entre o Império e a Velha República. Em São Paulo, de 1892 a 1916, mais de 80% das prisões foram realizadas por vadiagem, quebra de posturas municipais, averiguações de suspeitos e termos de bem viver e segurança. Mesmo com 3.466 pessoas presas ao longo de 1893, apenas 329 inquéritos foram abertos pela polícia paulista, mostrando que a arbitrariedade policial era rotina (KOERNER, 1999, p. 169-171). Na Bahia, em 1917, o secretário de segurança Álvaro Cova já havia manifestado sua preocupação com o “exército de vadios, desordeiros e contraventores” de pessoas sem trabalho no estado. No ano seguinte, em Salvador, das 2.023 prisões efetuadas, 78% seriam motivadas por “desordem” e “vagabundagem” (DIAS, 2004, p. 22-25). Desocupados também apareciam nos regulamentos policiais. O regramento carioca de 1907 previa a função policial de “dar destino aos loucos e enfermos encontrados nas ruas, bem como aos menores e vadios e abandonados e aos mendigos” (VALENÇA, 2017, p. 173-195). Já a Polícia Administrativa de Porto Alegre tinha como função oficial “pôr em custódia turbulentos, bêbados por hábito e prostitutas perturbadoras do silêncio público” (MAUCH, 2011, p. 35-90). Situações que se juntavam às repressões aos movimentos de maior vulto realizadas pelas polícias militares. Neste quesito, a PM paulista é emblemática: seu atual brasão de armas, instituído em 1958, rende homenagens a atuação da corporação na repressão à Guerra dos Farrapos, em 1838, à Campanha de Canudos de 1897 e à retaliação à primeira Greve Geral do país em 1917 (SÃO PAULO, 1981). No mesmo período, o Secretário dos Negócios de Justiça paulista requisitava, em relatório de 1899, a militarização da cavalaria como bom método “para afastar os desordeiros”, eficaz “nos casos de perturbação da ordem” (FERNANDES, 1973, p. 211-212).

Não é à toa que Florestan conclui que, no processo revolucionário brasileiro, a “Nação burguesa” iria imperar sobre a “Nação legal”. A integração nacional horizontal da burguesia em seu plano de dominação de classe impôs seus interesses particulares como universais no país. Os conflitos entre as facções dominantes foram, de certa forma, aceitos dentro da ordem como um mal menor frente à possibilidade de colapso do poder burguês. Já os conflitos com as antagônicas classes trabalhadoras foram colocados “fora da ordem”, reprimidos de forma violenta até se descolarem totalmente da ideia democrático-burguesa de revolução nacional. Mais do que isso, estes conflitos justificaram o discurso burguês de defesa da estabilidade da ordem para legitimar a dominação desta sobre as demais classes, transformando-se numa espécie de “ditadura de classe preventiva” (FERNANDES, 1976, p. 317-318).

É neste cenário formado que o Presidente do país em 1902, Washington Luís, “símbolo da mentalidade ultraconservadora do Partido Republicano Paulista”, declararia que a fermentação dos movimentos operários pelo país era um “caso de polícia” (DALLARI, 1977, p. 37-38). A revolução capitalista brasileira, iniciada nos movimentos de independência e consolidada entre o Império e a Velha República, imprimiu de forma gradativa uma mudança substancial em nossas relações produtivas. A transição do modelo colonial-escravista para o capitalismo baseado no trabalho livre foi uma necessidade de modernização que se impôs à burguesia brasileira. A posição dependente do país no capitalismo global, porém, induziu tal revolução a um caminho mais conservador, desembocando numa autocracia que possibilitasse a dominação burguesa feroz sobre as demais classes que compensasse a submissão ao abastecimento do mercado externo. Neste interregno, onde se formam as classes sociais no país, formam-se também as polícias. Consolidado o capitalismo brasileiro, a burguesia teria sua própria máquina repressiva ancorada no Estado nacional para exercer controle total sobre as camadas trabalhadoras e marginalizadas e manter o tão “desigual equilíbrio” socioeconômico do nosso país.

Conclusões

(…)

No contexto em que anseios mais democráticos eram deixados de lado na defesa dos interesses burgueses, ainda que disfarçados de universalismo, as legislações penais e as instituições policiais surgiriam ao longo do século 19 em concomitância com o próprio processo abolicionista. Nas estatísticas e nos documentos oficiais, é patente o foco que o trabalho destas tinha no controle sobre a classe trabalhadora brasileira, sobretudo na grande faixa de ociosos, majoritariamente ex-escravos, que se formava como exército de reserva industrial necessário para a manutenção dos baixos custos de produção do capitalismo dependente. Não se quer dizer a mudança no modelo de trabalho tenha sido a única motivação da conformação das polícias no país. A política dos governadores e a dinâmica entre as oligarquias regionais e a União são apenas duas outras catalizadoras deste processo que poderíamos citar. É indubitável, porém, o papel central que a formação de uma massa de trabalhadores livres ocupou nas preocupações das classes dominantes ao organizarem as instituições policiais no seio do nascente Estado nacional brasileiro.

Referências

CHALHOUB, S. The precariousness of freedom in a slave society (Brazil in the nineteenth century). International Review of Social History, Amsterdam, v. 56,

  1. 405-439, 2011.

DALLARI, D. A. O pequeno exército paulista. São Paulo: Editora Perspectiva, 1977.

DIAS, A. A. A malandragem da mandinga: o cotidiano dos capoeiras em Sal- vador na República Velha (1910 – 1925). Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2004.

FAUSTO, B. História concisa do Brasil. 2 ed., 5 reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012.

FELITTE, A. História da polícia no Brasil: estado de exceção permanente? São Paulo: Autonomia Literária, 2023.

FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação socio- lógica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2a. ed., 1976.

FERNANDES, H. R. Política segurança. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1973.

KOERNER, A. HabeasCorpus,práticajudicialecontrolesocialnoBrasil(1841- 1920). São Paulo: IBCCrim, 1999.

MAUCH, C. Dizendo-se autoridade: polícia e policiais em Porto Alegre, 1896- 1929. Tese (Doutorado em História) – Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.

MOURA, C. Brasil: as raízes do protesto negro. São Paulo: Editora Dandara, 2023.

O negro, de bom escravo a mau cidadão?2a ed. São Paulo: Editora Dandara, 2021.

Rebeliõesdasenzala. São Paulo: Lech Livraria Editora Ciências Hu- manas, 1981.

MARX, K. A miséria da filosofia: resposta à ‘Filosofia da Miséria’ de Pierre-Josepf Proudhon. Rio de Janeiro: Editora Leitura, 1965.

PRADO JUNIOR, C. A revolução brasileira. 5 ed. Brasília: Editora Brasiliense, 1977.

SÃO PAULO. Decreto-Lei nº17.069, de 21demaiode1981. Disponível em: <ht- tp>. Acesso em: 10 jul. 2024.

SOUZA, L. A. F. Lei, cotidiano e cidade: Polícia Civil e práticas policiais na São Paulo republicana (1889-1930). São Paulo: IBCCrim, 2009.

THOMPSOM, H. A. The racial history of criminal justice in America. DuBois Review:SocialScienceResearchonRace, Amsterdam, v. 16, p. 221-241, 2019.

VALENÇA, M. A. Processo penal e democracia: as práticas repressivas aos mo- vimentos operários na Primeira República. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 133, p. 173-195, jul. 2017

A universidade refém do produtivismo, por Michel Goulart da Silva

0

Exame de uma universidade sem dinheiro e sem projeto. Pesquisas são repetitivas ou rendidas a modismos. Cai a renovação teórica, busca-se financiamento privado e pontuação. Com saberes apartados da sociedade, portas são abertas ao mercado

Michel Goulart da Silva – OUTRAS PALAVRAS – 14/05/2025

Pode-se afirmar que o fundamento que estrutura o meio acadêmico brasileiro é o da precarização, ou seja, a maior parte dos profissionais que produzem conhecimento científico o fazem em condições de extrema dificuldade. Não há muitas das condições básicas para a realização das atividades, seja em termos de estrutura física ou de pessoal, fazendo com que o pesquisador e seus colaboradores encontrem grandes dificuldades para realizar seu trabalho.

Os professores das universidades públicas, onde é realizada a maior parte das pesquisas, encontram dificuldades como a escassez de tempo para se dedicar à pesquisa e à extensão, combinada a uma extensa carga horária de aulas. Os professores das instituições privadas, com poucas exceções, não são incentivados a fazer pesquisa nem a atuar na pós-graduação. Os técnico-administrativos, além de gastar a maior parte do seu tempo em tarefas operacionais, sofrem com todo tipo de preconceitos e marginalização, tornando praticamente impossível a dedicação a outras atividades do espaço acadêmico, como pesquisa e extensão. Os centros de pesquisa públicos são poucos e, a despeito de produzirem importantes pesquisas, não conseguem dar conta das necessidades demandadas pela sociedade.

Outro aspecto a ser considerado se refere à materialização da precarização na condição dos estudantes. Como os docentes têm dificuldades de tempo e de estrutura para realizar suas pesquisas, acabam sendo os estudantes os responsáveis por realizar parte do trabalho, cabendo ao coordenador do projeto se limitar a uma orientação genérica ou simplesmente colocar o nome no artigo final. Esse elemento se manifesta em especial numa divisão de tarefas em que a pesquisa dos orientadores é dividida em partes que os discentes assumem, independentemente do seu nível de formação. Com isso, grande parte das dissertações e teses desenvolvidas no interior dos grupos de pesquisa acabam sendo não o produto do interesse dos pesquisadores em formação, mas fragmentos de uma investigação cujos resultados estão voltados para os interesses e para o currículo do docente que coordena o projeto.

Os discentes, a despeito da enorme responsabilidade que acabam assumindo, inclusive eventualmente de docência, recebem bolsas cujos valores não condizem com suas necessidades vitais e mesmo de apoio às suas pesquisas. Em meio à necessidade de aquisição de bibliografia, de viagem para pesquisas e eventos, além de necessidades primordiais, como se alimentar e pagar aluguel, os valores pagos pelas bolsas vão sendo corroídos pela inflação sem que haja qualquer política de reajuste permanente. Um fator ainda mais degradante se refere ao fato de que, em um cenário de crise econômica e desemprego, para esses pesquisadores em formação a bolsa muitas vezes não está ligada a um projeto de vida e carreira como pesquisador, mas apenas à necessidade imediata de sobrevivência.

Em meio a isso, se coloca a supervalorização da titulação, onde a obtenção do doutorado não é encarada como uma fase da formação do pesquisador, mas um objeto de poder que pode ser utilizado como uma forma de distinção dentro do ambiente acadêmico. Nas universidades o título de doutor pode representar também o ponto mais elevado dentro da burocracia universitária, ocupando cargos de direção ou mesmo a reitoria. O docente doutor pode orientar pesquisadores de todos os níveis de formação, pleitear todos os tipos de financiamento e acessar todos os cargos e órgãos disponíveis na instituição. Muitos doutores fazem questão não apenas de ressaltar sua titulação, mas de destacar que isso os torna especiais e, por isso, mais importantes que todos os demais profissionais que atuam na instituição, inclusive em comparação até mesmo com técnico-administrativos que possuem doutorado. Essa relação de poder e detenção de status é uma demonstração de que “o capital universitário se obtém e se mantém por meio da ocupação de posições que permitem dominar outras posições e seus ocupantes”.1

Para que seja relevante, o título de doutor dos pesquisadores precisa estar acompanhado de uma rede de financiamento e alianças que possibilitem à instituição obter mais e mais recursos. Em função disso, não importa a relevância da pesquisa ou o papel que possui o pesquisador em sua área, mas somente a capacidade que ele tem de obter recursos, sejam públicos ou privados, e as redes de contatos em que está inserido. Para a maior parte das instituições vale mais a pena ter um pesquisador que, embora sem grandes contribuições em sua área de pesquisa, possua amigos influentes em outras universidades e centros de pesquisa.

Essa necessidade de busca por financiamento impacta na escolha do que é produzido na instituição, ainda que a pesquisa seja irrelevante em sua área do conhecimento ou apresente uma baixa qualidade teórica e metodológica. O critério passa pela publicidade que a pesquisa possa alcançar e pela sua capacidade de ser vendida ao mercado. Esse processo tem relação direta com a crise na qual se encontra o sistema capitalista, que:

“[…] reflete-se numa crise dos valores burgueses, da moralidade, da religião, da política e da filosofia. O pessimismo que aflige à burguesia e aos seus ideólogos neste período se manifesta na pobreza de seus pensamentos, na trivialidade de sua arte e no vazio de seus valores espirituais. Expressa-se no espantalho filosófico pós-modernista, que se imagina superior a toda filosofia anterior, quando, na realidade, é absolutamente inferior”.2

Muitas das pesquisas se tornam meras repetições umas das outras, com pequenas variações, dentro de grupos de pesquisas ou como parte de redes. Produz-se uma grande quantidade de teses, dissertações e artigos que basicamente discutem os mesmos assuntos, apresentando pequenas mudanças nos objetos ou nos problemas a serem discutidos. Não há uma preocupação efetiva em ensaiar novas metodologias e perspectivas, mas somente em chegar a um produto, o que obviamente é garantido por uma metodologia conhecida e utilizada de forma repetida e recorrente. Não se trata aqui de experimentos variados que levam a um novo conhecimento, podendo contribuir inclusive para uma renovação daquele campo de pesquisa, mas de um conhecimento pronto que basicamente vai sendo repetido à exaustão e, dessa forma, garantir a produção em grande escala de dissertações, teses e artigos.

Uma consequência dessa repetição de métodos e procedimentos é um completo desdém pelo debate teórico. Evita-se produzir reflexões que exijam a leitura aprofundada de clássicos e um denso debate epistemológico, e que poderiam apontar para novas interpretações ou mesmo para construções teóricas inovadoras. O caminho mais comum é partir de algum referencial pronto, normalmente algum autor ou um campo da moda na Europa ou nos Estados Unidos, e aplicar na pesquisa. Muitos pesquisadores apenas se alongam em citações que, com sorte, talvez façam sentido dentro da lógica do texto. Como consequência, a ciência “se converter numa rotina de simples absorção e arquivamento de ideias, de mera repetição de procedimentos conhecidos e sancionados, dos quais apenas se esperam os resultados seguros e rendosos que não podem faltar”.3 Torna-se, assim, praticamente impossível a construção de um referencial teórico que apresente inovações e novos olhares para os objetos de pesquisa.

Essa situação acaba se mostrando mais grave na pós-graduação, onde se estruturou uma avaliação quantitativa do trabalho realizado, embasada num sistema de controle que inicia nos projetos em andamento, passa pelas orientações e trabalhos em eventos, chegando à publicação de artigos e livros, exigindo uma coerência temática e metodológica que é medida não por critérios teóricos e metodológicos ou pela relevância para a área de conhecimento, mas, em última instância, por palavras-chave ou número de citações. Os pesquisadores, as instituições a que estão vinculados, os periódicos e os livros são categorizados e ranqueados, sendo sua classificação um critério determinante na definição da distribuição de recursos. Entende-se que essa “adoção do modo quantitativo de avaliação das produções cientificas, e o fato de que ele passa ser visto como razoável, decorre do processo de mercantilização ao qual a ciência está sujeita no capitalismo”.4

Esse cenário de pressão pela produtividade está associado às mudanças na forma de organização do trabalho, na medida em que o capitalismo necessita cada vez mais que a técnica e a tecnologia garantam a diminuição nos custos de produção. No sistema capitalista, “a grande indústria tem de incrementar extraordinariamente a força produtiva do trabalho por meio da incorporação de enormes forças naturais e das ciências da natureza ao processo de produção”.5 Cabe à pesquisa um papel decisivo nesse processo, na medida em que possibilita a incorporação de novas tecnologias ao processo produtivo, exigindo-se resultados rápidos, inovadores e com impactos práticos. Como parte do processo de “reorganização econômica, a esfera de natureza simbólico-cultural altera-se, para constituir-se de valores e signos próprios da produção econômica, no contexto de tecnificação da política e da cultura”.6 Consequentemente, diante de dificuldades estruturais, de pressão pela produtividade, e de avaliações com critérios arbitrários, criam-se formas de garantir dados estatísticos de produção. Nesse sentido:

“[…] a pressão produtivista gera o efeito perverso do agir instrumental e do abandono do essencial (o processo em si, gerador de conhecimento e enriquecedor da formação intelectual) pelo aparente, isto é, o resultado espelhado na pontuação. Em outras palavras, privilegia-se a quantidade sem se importar com a qualidade”.7

Esse problema se manifesta no comércio de publicações. O mercado das revistas acadêmicas e as parcerias com empresas fazem com que se deixe de lado a possibilidade de produção de conhecimentos que possam ter um caráter socialmente refletido e que apontem para uma perspectiva minimamente crítica. Construiu-se um complexo sistema de indicadores e estatísticas que mede não a qualidade ou a importância do conhecimento produzido, mas a quantidade de textos que o pesquisador produz. Não importa o conteúdo desses textos, se repetem integralmente o que foi escrito antes ou mesmo se não tem alguma relevância, mas sim as citações que faz e as que possa vir a obter. Os textos podem não apresentar nenhuma contribuição para sua área do conhecimento, mas tornam-se importantes dentro da realidade paralela do mundo acadêmico, importância essa completamente subjetiva e que somente faz sentido para um grupo específico de profissionais. O objetivo desses artigos produzidos em grande quantidade não é a apresentação de reflexões realizadas a partir de uma pesquisa com efetiva contribuição para seu campo de estudo ou a intervenção para a solução de um problema da sociedade, mas a obtenção de resultados que sejam mensuráveis por um sistema de avaliação definido com critérios arbitrários e desconhecido pela esmagadora maioria das pessoas de fora da universidade.

Nesse cenário, de precarização do trabalho da pesquisa e de atribuição de pouca relevância ao conteúdo que se produz, a adesão aos modismos acaba sendo o caminho seguido por pesquisadores em qualquer nível de formação. Os pesquisadores acabam ou adotando os temas mais comuns do momento ou incorporando métodos e teorias mais utilizados por seus pares, na medida em que isso facilita tanto a obtenção de recursos e bolsas, como a publicação em revistas. O pesquisador deixa de ser um profissional que procura novos caminhos para seu trabalho, onde poderia encontrar saberes ainda pouco conhecidos e nada explorados, para permanecer estagnado em um lugar lotado e totalmente desgastado. Outro aspecto tem relação com o fato de esses métodos, teorias e objetos de moda normalmente expressarem interesses privados que, mesmo quando não influem de forma direta sobre o financiamento da pesquisa, determinam a importância que se deve dar ao trabalho do pesquisador.

Essa busca por estar na moda e em harmonia com os temas e teorias dominantes nos meios acadêmicos também tem como consequência o fato de se evitar quaisquer polêmicas. Se há divergências teóricas, deve-se ou fazê-las da forma mais cordial possível ou até mesmo evitar torná-las públicas, embora a produção do conhecimento necessite do debate e da crítica para apontar não apenas limitações do trabalho realizado, como indicar possíveis caminhos a serem seguidos. Nos diversos campos, dominam teorias, temas e métodos quase consensuais, parecendo que todos falam a mesma coisa, ainda que com pequenas variações na forma. O meio acadêmico atualmente existente, com raras e marginalizadas exceções, não é constituído por um espaço de debate aberto e saudável, mas por um comodismo que aceita passivamente os modismos dominantes e a precarização estrutural.

Nos últimos anos, algumas vozes têm se levantando para denunciar os problemas enfrentados pelos pesquisadores, enfatizando especialmente cortes de verbas para fomento, dificuldades estruturais e a ameaça de perda de bolsas. Contudo, de forma geral, essas críticas não apresentam uma análise da lógica perversa do meio acadêmico e do fato de que sua precarização não se limita a um projeto de governo, mas constitui-se em uma estratégia diretamente ligada aos interesses do capital, que tem como objetivo a completa transformação do conhecimento em mercadoria. Deve-se ressaltar que:

“[…] as atividades intelectuais de produção da ciência e da tecnologia não se constituem processos autônomos, independentes da realidade concreta onde se efetivam. A ciência revela-se historicamente como instrumento de poder. Ela passa a atuar junto às forças produtivas de forma cada vez mais decisiva, ampliando cada vez mais sua potência econômica”.8

O Estado, diante das variações no modo e nas relações produções, adapta as políticas educacionais e de pesquisa aos interesses do capital, priorizando ora investimentos com recursos públicos, ora a entrega da educação à gestão privada, com ou sem recursos do Estado. Portanto, a despeito de todas as mediações possíveis, em última instância, a educação sob o capitalismo é funcional à produção de valores de troca e à exploração do trabalho. Com isso, a possibilidade de avanço na produção do conhecimento mostra-se incapaz de romper as barreiras da sua mercantilização, exigindo das organizações trabalhadores ações que se coloquem no sentido de romper essa bolha perversa.

Notas:

  1. BOURDIEU, Pierre. Homo academicus. 2ª Florianópolis: Editora da UFSC, 2011, p. 115.

2 Alan Woods. Reformismo ou revolução. São Paulo: Editora Marxista, 2009, p. 67.

3 Álvaro Vieira Pinto. Ciência e existência: problemas de filosofia da pesquisa científica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, p. 255.

4 Marcos Barbosa de Oliveira. A mercantilização da ciência: funções, disfunções e alternativas. São Paulo: Scientiae Studia, 2023, p. 38.

5 Karl Marx. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 460.

6 Valdemar Sguissardi; João Reis Silva Jr. Novas faces da educação superior no Brasil: reforma do Estado e mudança na produção. 2ª ed. São Paulo: Cortez; Bragança Paulista: USF, 2001, p. 80.

7 Antonio Ozaí da Silva. A corrida pelo Lattes. In: Waldir José Rampinelli; Valdir Alvim; Gilmar Rodrigues (Org.). Universidade: a democracia ameaçada. São Paulo: Xamã, 2005, p. 89.

8 Maria de Lourdes Pinto de Almeida. A pesquisa acadêmica no século XXI. Campinas: Mercado de Letras, 2012, p. 93.

Os rumos do Banco Central, por Paulo Nogueira Batista Júnior

0

Paulo Nogueira Batista Júnior – A Terra è Redonda – 16/05/2025

A conta dos juros altos: ricos lucram, pobres sofrem, e o governo pode perder em 2026

Gabriel Galípolo e os demais indicados pelo presidente Lula para o comando do Banco Central ainda não disseram a que vieram. São economistas competentes e, pelo que se sabe, de orientação econômica menos ortodoxa. Mas até agora pouco mudou – talvez nada. Visto de fora, é como se o Banco Central continuasse a ser presidido por Roberto Campos Neto – com a diferença de que o governo agora não tem mais o bode expiatório.

Não quero exagerar, entretanto. A visão de fora pode não captar mudanças ocultas, em gestação. E a verdade é que pouco tempo se passou desde a saída do presidente anterior. Pode-se supor que Gabriel Galípolo e os novos diretores ainda estejam tomando pé da situação. Afinal, como ignorar que o Banco Central é uma instituição grande e complexa? Não se dá cavalo-de-pau num transatlântico. Vamos então dar o benefício da dúvida a Galípolo e cia.

Para entender a situação do comando do Banco Central neste momento é fundamental ter em conta, entre outros fatores, o seguinte fato básico: a política econômica obedece em alguma medida à influência do ciclo político. A perspectiva de eleições influencia inevitavelmente a condução da política econômica, inclusive a monetária.

Do ponto de vista do governo brasileiro, faz sentido praticar políticas monetária e fiscal razoavelmente apertadas entre o final de 2024 e meados de 2025, de forma a conter um pouco a inflação, para em seguida relaxar a política econômica, no final de 2025 e início de 2026, ajudando a criar um clima mais propicio à reeleição de Lula (ou à eleição de quem ele resolver indicar em seu lugar). Isso significaria começar a reduzir a taxa básica de juro nos próximos meses.

Um economista ortodoxo discordará e dirá certamente que o Banco Central tem autonomia em relação ao governo e não deve subordinar a seus objetivos político-eleitorais. Isso é teoria, entretanto. Na prática, os bancos centrais quase nunca são totalmente autônomos em relação ao poder político. Acabam refletindo em alguma medida, de forma não declarada, a orientação geral do governo pelo qual os seus dirigentes foram indicados.

Evidentemente, o mandato do Banco Central requer obediência às metas de inflação estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional. Ora, a inflação e as expectativas de inflação estão “desancoradas”, isto é, superam o centro da meta (3%). A política monetária deve então, argumenta-se, fazer a inflação convergir para a meta (ou, pelo menos, situá-la dentro do intervalo previso no regime de metas).

Porém, um risco central, sempre presente, é que alcançar a meta de inflação pode cobrar um preço proibitivo dos pontos de vista social e político. De que adiantaria colocar a inflação no centro da meta e entregar o país de mão beijada para a direita ou a ultra direita em 2026? Quando se considera o baixíssimo nível da oposição, tanto a bolsonarista, como a direita tradicional, a perspectiva é aterradora.

Parte do problema que estamos enfrentando, leitor ou leitora, está na definição da meta de inflação – 3% com intervalo de 1,5 ponto percentual para cima ou para baixo. Estabelecer metas ambiciosas como essa contribui para forçar o Banco Central a praticar juros muito elevados.

O responsável por essa definição, recorde-se en passant, foi o presidente do Banco Central Ilan Goldfajn no governo Temer, uma das várias figurinhas carimbadas que exerceram esse cargo ao longo das décadas recentes. Na época, o argumento “científico” era que a Colômbia e o Chile tinham meta de 3%. Por que não o Brasil? – argumentavam Ilan Goldfajn e seus asseclas. Como dizia Brizola, a elite brasileira é um lixo.

O governo Lula deveria ter revisto a meta de inflação logo no seu início em 2023, como parecia querer o próprio Presidente da República. Diversos economistas, inclusive eu mesmo, argumentaram que seria conveniente elevar o cento da meta para 3,5% ou 4%, aumentando ao mesmo tempo o intervalo entre o piso e o teto da banda de 1,5 para 2 pontos percentuais. O teto para a meta ficaria em 5,5% ou 6%, o que permitiria absorver choques de oferta sem praticar juros exorbitantes. Manteve-se, entretanto, a meta ambiciosa, com as consequências que estamos vendo.

Não há dúvida de que uma taxa básica de juro elevada pode ajudar no combate à inflação. Como? Primeiramente, porque tende a gerar apreciação do real, favorecendo o controle dos preços dos bens e serviços comerciáveis internacionalmente. Em segundo lugar, porque derruba o nível de atividade e de emprego, comprimindo os preços dos bens e serviços transacionados domesticamente.

O problema, como se sabe, é que a redução ou desaceleração da atividade econômica, ao afetar o emprego e a renda, provoca deterioração do quadro social e prejudica o governo do ponto de vista político. Além disso, tende a reduzir a arrecadação tributária, piorando o resultado primário das contas públicas.

Ainda mais importante do ponto de vista das finanças governamentais: a taxa básica de juro aumenta direta ou indiretamente o custo da dívida, que é majoritariamente interna. A despesa líquida de juros do setor público consolidado já supera os 8% do PIB! O propalado crescimento do déficit e da dívida do governo tem muito mais a ver com essa carga de juros do que com o déficit primário (que está em torno de 0,6% do PIB) – contrariamente ao que sustentam ou insinuam os economistas da Faria Lima e a mídia tradicional.

Não se pode esquecer, além disso, que os juros altos concentram a renda nacional. Não é por acaso que a turma da bufunfa defende uma política monetária apertada. Quem embolsa os juros pagos pelo governo? Os ricos e super-ricos com elevada poupança financeira aplicada em títulos públicos. O Banco Central está desfazendo, pelo menos em parte, o considerável progresso feito em termos de distribuição de renda pelo governo Lula em 2023 e 2024.

Um último ponto, nem sempre notado: a taxa de juro exorbitante coloca dinheiro nas mãos daqueles que têm meios de remeter recursos para o exterior quando bem entenderem. Com a liberdade que se concedeu mandar dinheiro para fora, a turma da bufunfa faz o que bem entende, entrando e saindo do país quando lhe convém – um legado da desastrosa gestão Fernando Henrique Cardoso, que promoveu a liberalização prematura da conta de capitais. Algo que a China, por exemplo, jamais fez.

Depois do último aumento da Selic, a taxa real de juros ex ante se aproxima de 10%! Preciso dizer mais? Por todos esses motivos econômicos, sociais e políticos, Gabriel Galípolo e cia. não podem demorar a reduzir os juros.

Paulo Nogueira Batista Jr. é economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS. Autor, entre outros livros, de Estilhaços (Contracorrente)

Novos Mercados

0

Neste momento de grandes transformações econômicas, sociais, políticas e culturais na sociedade internacional, percebemos uma reorganização da estrutura da economia internacional, novos mercados crescem cotidianamente, novos concorrentes surgem diuturnamente, novas estratégias econômicas e produtivas ganham relevância no sistema econômico, exigindo governos ágeis, flexíveis e competentes, demandando profissionais altamente qualificados, empresas rápidas e dinâmicas, além de consumidores conscientes de seus interesses cotidianos, uma verdadeira revolução.

Neste cenário de agitações e conflitos comerciais, percebemos uma reorganização dos parceiros econômicos, as nações percebem as incertezas que crescem todos os dias, suas estratégias se perdem neste ambiente de instabilidade, acordos assinados são descumpridos, discursos inflamados geram graves constrangimentos diplomáticos, levando os países a repensarem seus acordos comerciais, buscando novos horizontes, reestruturando seu parque produtivo e fortalecendo sua estrutura financeira, como forma de encarar os novos desafios da economia internacional.

Vivemos numa sociedade altamente competitiva, dominada pelo individualismo e pelo imediatismo, onde os valores da concorrência dominam o ambiente econômico e produtivo, exigindo dos governos, dos indivíduos e das organizações uma adaptação constante, neste cenário, percebemos que os valores do compartilhamento, da solidariedade e da tolerância perdem espaço numa sociedade centrada em valores materiais.

Neste ambiente, percebemos que as trocas econômicas e produtivas estão crescendo como forma de satisfazer as necessidades das nações e de seus povos, novos atores do comércio internacional estão transformando a sociedade global, a ascensão dos países asiáticos está revolucionando os valores, os costumes e os comportamentos, exigindo uma reflexão menos materialista, afinal estes atores trazem outros valores culturais, como o misticismo e a valorização do espiritualismo. Estas mudanças em curso na sociedade internacional estão diretamente ligadas ao crescimento das economias asiáticas, dotadas de valores e culturas milenares e, desta forma, estão revitalizando a sociedade global e trazendo novos desafios para a sociedade global.

Diante deste novo cenário global, marcado por grandes desafios e, ao mesmo tempo, marcados por novas oportunidades as nações precisam fortalecer suas estruturas produtivas, investindo fortemente em educação, capacitando os professores, garantindo melhores condições de trabalho e remuneração dignas e decentes, afinal, mesmo sabendo que o mundo se transforma rapidamente e a tecnologia ganhando uma relevância pouco vista na sociedade mundial, a melhora da qualificação da mão de obra é um dos maiores desafios para as nações na contemporaneidade. Sem investimentos em pesquisa e desenvolvimento científico e tecnológico, vamos continuar sendo consumidores de produtos industrializados e fornecedores de produtos primários de baixo valor agregado, perpetuando uma situação de dependência externa, pobreza crescente e perspectivas futuras sombrias.

A geopolítica global nos mostra o crescimento do Pacífico em detrimento do Atlântico, novos produtores surgem na sociedade mundial, novas tecnologias surgem e nações como o Brasil apresentam grandes vantagens competitivas para se inserirem no comércio internacional. Somos dotados de grande potencial de energia renovável, possuímos espaços geográficos elevados e forte potencial agrícola e mineral, precisamos aproveitar as mudanças no comércio global e mostrar nossas potencialidades, negociar investimentos estrangeiros, exigir transferência de tecnologia, fortalecer nosso comércio exterior, investir fortemente em infraestrutura e logística, além de fortalecer o capital humano, com fortes investimentos em educação, pesquisa, ciência e tecnologia. Tudo isso nos parece urgente e necessário, mas para uma elite atrasada, rentista e imediatista que domina a sociedade brasileira a quinhentos anos, isso seria uma grande revolução.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

O Antropoceno e o pensamento econômico, por Ricardo Abramovay

0

Ricardo Abramovay – A Terra é Redonda – 12/05/2025

Considerações sobre o livro recém-lançado de José Eli da Veiga

A utopia que dominou o século XX e desabou como castelo de cartas em 1989 oferecia o inegável conforto intelectual de transformar de forma inapelável e completa as próprias bases sobre as quais se constituíram as sociedades modernas. Era como recomeçar do zero. Sistema de preços, lucro, empresas privadas e o que Karl Marx chamou de “anarquia da produção” seriam substituídos por decisões racionais vindas da inteligência planificadora que, apoiada, em tese, sobre participação social democrática, sinalizaria aos organismos centrais quais seriam as necessidades e os desejos da sociedade.

Esta utopia foi importante inclusive em países democráticos e sua derradeira expressão política foi o governo de “Union Populaire” da França que, sob a presidência de François Mitterrand, em 1981, deu início à estatização dos dez maiores grupos econômicos do país. A ousadia não durou um ano e depois de sua reversão nenhuma força política expressiva, em qualquer lugar do mundo, preconiza o que a esquerda europeia chamava de “nacionalização dos grandes monopólios” como caminho para combater as desigualdades, evitar os desperdícios e usar os recursos materiais e bióticos em benefício da sociedade.

Mas este final melancólico nem de longe suprimiu os valores ético-normativos em que se fundamentou a utopia da esquerda do século XX. Tanto mais que o espetacular aumento da riqueza em todo o mundo, desde o final da Segunda Guerra Mundial, não tardou a revelar seus pés de barro pela destruição em que se assentou de recursos e serviços ecossistêmicos sem os quais o bem-estar e o próprio dinamismo econômico estavam sob risco crescente.

A utopia do século XXI não é e não pode ser conformista e condescendente. Ela mantém e, sobretudo, ela expande o que marcou os projetos de emancipação social do século XX. Sua ênfase é, em primeiro lugar, a expansão das liberdades substantivas dos seres humanos, para empregar a expressão de Amartya Sen, que exerceu influência decisiva sobre os trabalhos vindos dos diversos programas e de diferentes agências das Nações Unidas.

A conquista desta liberdade supõe não apenas direitos humanos, mas exige que se rompa com a noção de que a natureza é apenas um meio, cujo uso ilimitado pode se perenizar, já que sua exaustão será compensada por aquilo que nosso engenho tecnológico é capaz de criar.

Só que em vez de trazer a marca da tomada do Palácio de Inverno ou de uma vitória eleitoral que ponha de cabeça para baixo as regras do jogo, a utopia do século XXI assemelha-se a trocar os pneus do carro com o veículo em movimento. Ela não se propõe a suprimir os pilares da vida social (mercados, empresas, lucros) e sim a ampliar os bens públicos, reduzir ao mínimo as atividades predatórias da saúde humana e do meio ambiente e promover participação social e inovação tecnológica que contribuam para atingir este objetivo.

Nada exprime melhor a utopia do século XXI que os dezessete Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), aprovados pelas Nações Unidas em 2015 e que serão revistos em 2030. E apesar da má reputação de que goza o pensamento econômico como sinônimo daquilo que Thomas Carlyle chamou de ciência sombria, que só conseguiria conceber a sociedade como resultado não antecipado de interesses individuais, transformando, na trilha de Bernard de Mandeville, o egoísmo em virtude social, é exatamente no pensamento econômico que se encontram as fontes mais férteis das quais se alimenta esta utopia.

É o que mostra a impressionante síntese do mais recente volume da trilogia que José Eli da Veiga acaba de publicar, O Antropoceno e o pensamento econômico. O primeiro volume da trilogia (O Antropoceno e a ciência do sistema terra, Ed. 34, 2019) discute uma expressão relativamente recente no âmbito das ciências da terra e da vida: o sistema terra.

O termo tem a ambição de romper com a estreita especialização em que são treinados os pesquisadores das disciplinas que compõem esta área científica diante da urgência de se compreender o fato de que as atividades humanas dos últimos oitenta anos não só provocaram alterações na biosfera, mas se tornaram uma força de natureza geológica, interferindo no comportamento do sistema climático e por aí nos oceanos, na atmosfera e nos solos. Daí a ideia de Antropoceno.

No segundo volume, o Antropoceno e as humanidades (Ed. 34, 2023), a reflexão se volta às ciências do homem e da sociedade e alguns dos mais expressivos pensadores sociais contemporâneos são objeto de reflexão. O livro se apoia em ninguém menos que Charles Darwin para mostrar que, longe da ideia vulgar segundo a qual a evolução biológica pode ser resumida a uma disputa acirrada em que vence o mais forte, a vida (e a vida social) é composta, antes de tudo por processos cooperativos apresentados numa obra decisiva e pouco conhecida do criador da teoria da evolução, The Descent of Man.

E quem imaginou que no terceiro volume, O Antropoceno e o pensamento econômico, a narrativa se concentraria em como os ajustes no sistema de preços podem contribuir a enfrentar aquilo que Sir Nicholas Stern colocou como a mais importante falha de mercado da sociedade atual (as mudanças climáticas), a surpresa será imensa.

Longe de sua imagem caricatural que a vê como a disciplina que estuda a alocação de recursos escassos entre fins alternativos, baseada inteiramente na ideia de que indivíduos racionais e auto interessados relacionam-se uns aos outros a partir da sinalização que os mercados transmitem ao que compram e vendem, a ciência econômica da segunda metade do século XX reserva novidades que o livro de José Eli da Veiga tem a virtude de expor de maneira dinâmica, persuasiva e, como não poderia deixar de ser, polêmica.

A apresentação dos autores mais expressivos do pensamento econômico das últimas seis décadas sobre o Antropoceno gira em torno de duas questões centrais.

A primeira rompe com o dogma básico do pensamento neoclássico expresso por um de seus mais consagrados expoentes, Lionel Robbins, que, referindo-se à relação entre ética e economia, escreveu, em 1932: “infelizmente não parece logicamente possível associar os dois estudos de qualquer outra maneira que não seja a justaposição”.

A reflexão dos economistas que se voltaram a estudar o Antropoceno, ao contrário, coloca a ética no coração da economia. Se a vulnerabilidade da biosfera for abordada sob o ângulo puramente instrumental o resultado será a convicção (que domina o pensamento econômico convencional) de que seu eventual esgotamento pode ser enfrentado por meio de inovações tecnológicas que entregarão para a sociedade os serviços que as atividades humanas acabaram por destruir.

Não surpreende então que, para colocar a natureza como finalidade e não como meio, é necessário fazer aquilo que Lionel Robbins acreditava impossível. A abordagem dos mais importantes economistas sobre o Antropoceno supõe, assim. a contestação das premissas epistemológicas (e, de certa forma, ontológicas) em que a disciplina convencionalmente se apoia.

Não se trata de negar a importância dos mercados, das empresas e do lucro e sim de mostrar que a compreensão da vida econômica se torna mais fértil caso ela se amplie para incluir a cooperação, a solidariedade e os bens públicos e, mais que isso, a importância de um tratamento dos materiais, da energia e dos recursos bióticos de que depende a oferta de bens e serviços com instrumentos que não se resumem ao que o sistema de preços sinaliza.

É nesta reflexão sobre ética que se apoia a discussão central do livro: para que serve, qual o alcance e quais os limites do crescimento econômico? A miragem de uma solução unificada e totalizante para enfrentar a destruição a que vem levando a gigantesca riqueza produzida pela grande aceleração, o decrescimento, é rejeitada não por sua impossibilidade prática ou por não estarem reunidas as forças político-culturais que poderiam levá-las à prática.

O equívoco da proposta de decrescimento está em que ele se tornou, de certa forma, o outro lado da moeda do mito do crescimento. Ele se abstém de estudar a vida social com base no uso dos recursos materiais, energéticos e bióticos e nos serviços de provisão (na alimentação, na mobilidade, na construção, na saúde) a que este uso dá lugar.

Mais importante que saber se a economia cresce ou não é conhecer como se extraem e transformam os recursos voltados à oferta de bens e serviços e se estes bens e serviços contribuem a melhorar ou piorar tanto a vida social como o meio ambiente.

A proposta que decorre desta análise é que é preciso “crescer decrescendo” e “decrescer crescendo”. O aparente paradoxo se explica: por mais importante que seja a virtude do crescimento em criar empregos, arrecadar impostos e estimular inovações, estes atributos serão ofuscados se os bens e serviços em que eles se apoiam forem o tabaco, a destruição dos tecidos urbanos provocada pela massificação dos automóveis individuais (em detrimento dos transportes públicos) e a ampliação do consumo de alimentos ultraprocessados que são vetores da pandemia global de obesidade.

É preciso reduzir ao mínimo estas atividades (decrescer) ampliando aquelas que aumentam a oferta de bens públicos e as que se voltam a regenerar os serviços ecossistêmicos que, até aqui, o crescimento econômico vem destruindo, como as energias renováveis, alimentos de qualidade e o fortalecimento das áreas protegidas (crescer). Em vez de se fixar nesta medida sintética (e, de certa forma, arbitrária) que é o PIB, o fundamental é examinar as bases materiais, energéticas e bióticas da formação da riqueza e seus efeitos reais sobre o bem-estar humano e os serviços ecossistêmicos.

Em suma, a riqueza e a diversidade das correntes de pensamento apresentadas neste livro são antídotos contra o ceticismo dos apologistas do fim do mundo e contra o cinismo dos que insistem em dizer que não há e não haverá força suficiente para mudar a trajetória destrutiva que está levando ao aumento das emissões, à crescente erosão da biodiversidade e a diferentes formas de poluição. Conhecer o pensamento econômico sobre o Antropoceno é certamente um caminho promissor para evitar esta dupla paralisia.

Ricardo Abramovay é professor titular da Cátedra Josué de Castro da Faculdade de Saúde Pública da USP. Autor, entre outros livros, de Infraestrutura para o Desenvolvimento Sustentável (Elefante)

Economistas ainda pensam em crescimento eterno, diz José Eli da Veiga

0

Professor da USP defende noção de crescer decrescendo e afirma que COP30 pode ser a mais difícil de todas;

Eduardo Sombini, Doutor em geografia pela Unicamp, é repórter da Ilustríssima.

Folha de São Paulo, 10/05/2025

Nem abandonar a ideia de crescimento econômico nem confiar nela cegamente.

José Eli da Veiga, professor sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP, recorre a essa dupla negativa para sintetizar sua análise em “O Antropoceno e o Pensamento Econômico” (Editora 34), terceiro volume de sua trilogia sobre as ciências e as humanidades em um período de crise climática e transformação acelerada do planeta pela sociedade.

No livro, o intelectual revisita escolas e pensadores à margem do mainstream da economia para sustentar que a disciplina não acompanhou o avanço da fronteira do conhecimento e ainda passa ao largo, por exemplo, da teoria da evolução e da física moderna.

Em razão disso, Veiga argumenta, o pensamento econômico ignora os fluxos de energia e matéria envolvidos no processo de produção, o que faz com que economistas concebam um crescimento eterno e não se preocupem com as condições de vida das gerações futuras.

Na entrevista, o pesquisador fala sobre as ideias de crescer decrescendo e decrescer crescendo, um caminho do meio entre manter o modelo atual e as propostas de decrescimento da economia.

Veiga também discute o impasse em fóruns multilaterais dedicados à crise ambiental, como as COPs. Para ele, negociações entre as corporações e os governos responsáveis pela maior parte das emissões de gases do efeito estufa teriam mais resultado que encontros anuais com a participação de mais de uma centena de países.

Leia abaixo os trechos principais da entrevista.

O pensamento econômico hoje

Existe uma corrente muito secundária, vista pelos economistas como uma coisa heterodoxa e estranha, a economia evolucionária. Tem uma muito forte, a economia institucional. Tem uma bem sólida, mas que não é muito reconhecida, a economia ecológica. Mas, se você perguntar como uma inteligência artificial classifica as várias correntes da economia, o risco é que nem apareçam essas que eu citei.

Porque as principais são aquelas que, no fundo, formam o currículo tradicional de um curso de economia: macro, micro, história do pensamento econômico, um pouco de história econômica. A formação de um economista é mais ou menos essa.

Será que uma humanidade —a economia não é uma ciência— precisa ser compatível com a física e com a biologia, para não falar de química e geociências? Minha tendência é dizer que é errado ser incompatível.

Tem ramos da economia que avançaram muito, principalmente aqueles afeitos à modelização matemática, mas a economia ainda hoje é absolutamente prisioneira da mecânica clássica e, principalmente, da ideia de equilíbrio. Ignora totalmente a termodinâmica, para começar. Você chega a conclusões muito diferentes a respeito de como pode ser o desenvolvimento se levar em conta ou não a termodinâmica.

O conceito de entropia

Uma das primeiras coisas com que um estudante de economia se defronta é um diagrama do fluxo circular, que explica como funciona o chamado sistema econômico. Não entra nada nem sai nada desse sistema. Ele ignora a entrada de energia —nós somos uma dádiva do Sol— e, principalmente, todos os resíduos, do outro lado, além da entropia.

O que interessa para um economista na questão da entropia? Quando se usa energia —e nós não fizemos outra coisa que procurar fontes de energia que nos dessem cada vez mais produtividade—, parte dessa energia se dissipa. Permanentemente, estamos perdendo uma boa parte da energia que mobilizamos.

A rigor, a longo prazo, você não pode pensar em crescimento econômico. Você tem que pensar que o futuro da humanidade ou o desenvolvimento vão ter que prescindir do crescimento. Essa é uma conclusão que choca um economista ortodoxo, tradicional. Para eles, é subentendido que o crescimento é uma coisa eterna.

A economia e a ética

A dicotomia entre a economia como ética e uma economia mais logística, que a gente normalmente chama de o lado engenheiro da economia, é bem antiga. Houve tentativas teóricas de dizer que a economia devia se limitar só a esse aspecto logístico e não entrar em nenhum tipo de consideração ética. Evidentemente, isso não é uma coisa que foi seguida pelos economistas, mesmo por economistas que eu classificaria como ortodoxos. Uma parte deles, ao contrário, é bem ligada em considerações éticas.

Para nós, isso é muito importante porque o aquecimento global —para não falar de todos os outros prejuízos ao meio ambiente que a gente vem causando pelo menos há uns 80 anos de forma muito intensa– coloca em questão as condições de vida das próximas gerações. Esse é um dilema ético para nós.

Resultados frustrantes das COPs

Uma das coisas chocantes é notar que a questão da camada de ozônio, que era complicadíssima, teve um arranjo de cooperação internacional que deu muito resultado. Por quê? Como foi o formato?

No início, só se juntaram os que mais eram responsáveis pelo assunto. Eram poucos países que tinham as empresas que faziam o estrago. A partir disso, paulatinamente, foram ganhando adesões à convenção. É difícil encontrar, pelo menos na área ambiental, outra convenção ou outro tratado que tenha tido tanto sucesso.

Quando, em 1988, se criou o IPCC, houve muita pressa, porque a Rio-92 estava marcada e ia ser uma coisa muito importante. Mais importante que mera pressa, havia a conjuntura internacional geopolítica desse período. Ainda se vivia muito daquele entusiasmo e otimismo que surgiu a partir da queda da União Soviética. Hoje, olhando com a facilidade de estar distante disso, parece uma coisa infantil imaginar que você poderia fazer uma assembleia anual de todos os países do mundo e chegar a algum tipo de decisão.

A Convenção do Clima criou uma arena para que houvesse disputas políticas das mais variadas. No início, era sempre o Sul querendo dizer que a culpa era do Norte e que eles tinham que pagar. Depois, foram encontrando algumas saídas e, no famoso Acordo de Paris de 2015, a ideia é que cada país vai determinar ele mesmo qual é a contribuição que pode dar. Isso foi um grande avanço.

Neutralidade de carbono

No meio disso, com um grupo de Oxford liderando, cientistas começaram a levantar a ideia de que existem emissões que podem ser, de certa forma, abatidas —quando, por exemplo, uma área desmatada é restaurada— e isso levou à ideia de compensação de carbono.

Foi um tremendo desserviço. Quer dizer, tinha um lado bom e um lado ruim. O lado bom é que muitas empresas que olhavam para a questão do aquecimento global e viam sempre como um sacrifício ter que reduzir emissões, de repente, falaram: “Bom, vamos também poder abater aquilo que a gente faz de positivo”. Isso deu um certo incentivo para que elas não simplesmente banissem a ideia do aquecimento global.

Por outro lado, as empresas que mais emitem acharam o máximo. “Comprar uns créditos de carbono do pessoal que restaura na Amazônia, se a gente for muito pressionado, senão vamos continuar emitindo”. O resultado? É só olhar o que aconteceu.

Do Acordo de Paris para cá, as emissões de CO2 equivalente não pararam de aumentar, em um ritmo que é difícil imaginar se seria diferente. O impacto dos créditos de carbono nem começou a fazer cócegas por enquanto. Conheço muitos colegas que acreditam que, por volta de 2050, haja neutralidade de carbono –quer dizer, que o aquecimento global vai continuar, mas que as emissões estariam sendo mais ou menos integralmente abatidas por esses descontos.

Quando olho os números, acho que o máximo que se pode dizer é que talvez seja um problema que tenha solução neste século, mas não vai ser desse jeito, com essa convenção.

Um novo modelo para as COPs

Do meu ponto de vista, o que pode melhor acontecer é que, em algum momento, esse mesmo sistema de COPs descubra que é preciso reconsiderar a própria convenção. Hoje, a gente sabe que 80% das emissões saem de 57 empresas que estão em 34 países.

Se você juntasse esses 34 países em vez de juntar mais de cem uma vez por ano, eles não demorariam para encontrar uma maneira de se comprometer com um esquema de redução. Por exemplo, o chamado “cap and trade”: você fixa uma meta de redução das emissões para o ano que vem e as empresas que tiverem conseguido atingir essa meta recebem créditos que poderão ser vendidos para aquelas que ainda não conseguiram. Um esquema desse tipo é o que funciona no mercado de carbono europeu.

Aos poucos, você teria muito mais resultados se o arranjo fosse só com esses 34 países ou essas 57 empresas —ou a parte deles que topasse. Se a convenção não fosse abolida, as COPs poderiam começar a ser reunidas de cinco em cinco anos. É um desperdício de tudo, de dinheiro, de energia. Essas COPs são uma coisa assustadora.

Expectativas para a COP30

Do ponto de vista das negociações diplomáticas, acho que vai ser praticamente mais do mesmo. Sempre aparece alguma coisa que você pode usar para dizer que foi um avanço, mas, no frigir dos ovos, não vai ter nada de significativo nesse plano.

Só que surgiu uma novidade muito importante. No discurso do Lula na Assembleia Geral da ONU, ele fez a sugestão de que nós fizéssemos um balanço ético global.

A ideia é que o balanço seja feito a partir do momento em que todos os países apresentem os seus compromissos nacionalmente determinados, os NDCs, e pouquíssimos países, por enquanto, apresentaram. Vai ficar muito em cima da COP, em novembro, que se terá esse conjunto e se poderá começar a fazer esse balanço.

Não vai ser exatamente na COP, mas, com isso, a COP poderá ter desencadeado na sociedade civil uma dinâmica que ainda não existe: a sociedade civil mundial se mobilizar em torno desse balanço ético global e isso gerar uma forma de maior responsabilização e pressão sobre o conjunto dos países. Se eu não estiver muito enganado, vai acontecer algo de muito positivo, mas meio que fora da COP em si, que virou uma espécie de feira anual de lobistas.

Não vai ser muito diferente desta vez —e com conflitos. Tem tanta gente na Amazônia e tantas tendências da sociedade civil muito mobilizadas em torno disso que é provável que seja, de todas as 30, a mais difícil de conduzir.

Crescer decrescendo

Considero essa ideia uma espécie de ovo de Colombo, porque fica um debate entre os decrescentistas e aqueles que dizem: “Olha a fórmula que funcionou até hoje. Você terá população em queda, educação e inovações institucionais e tecnológicas continuando. Os problemas ambientais meio que se resolvem pelos preços. Não tem que ficar discutindo se tem que ter ou não crescimento. Quanto mais crescer, melhor”.

No entanto, quando você para para pensar em termos práticos, tem coisas que não podem mais crescer e tem outras que são promissoras e que precisam ter espaço para crescer. Não se trata de dizer, para quem está com a responsabilidade da política econômica, que deva pisar no acelerador ou no freio do crescimento. Ao contrário.

Tudo o que emite e queima energia fóssil demais, o ideal é que decresça. As energias renováveis precisam crescer. Estou falando do terreno da energia, mas você pode encontrar exemplos em todos os terrenos. É permanente esse caminho do meio.

Tem uma ideia que eu procuro ressaltar no fim do livro: o fundamental é desacoplar. Este é o verbo-chave da mensagem que a gente pode tirar de uma análise sobre o Antropoceno. Desacoplar, fundamentalmente, significa que tenho que procurar ao máximo possível estimular as atividades que usem menos energias fósseis e que, portanto, emitam menos. Não é o único desacoplamento, mas é o principal.

A viabilidade política da ideia

Na conjuntura atual, diria que é uma inviabilidade. O principal sinal disso é o Trump, mas não está sendo assim na China e a União Europeia está na vanguarda. Para construir a ideia, não posso condicioná-lo ao fato de a agenda ser ou não ser realista.

Se não for, eu estiver errado e essa conjuntura extremamente negativa perdurar, pior para vocês que estarão vivos [risos].

O futuro da universidade, por Simon Schartzman

0

A incerteza sobre o futuro da universidade é a incerteza crescente sobre esta ideia difusa, que reflete a incerteza sobre o futuro do País

Simon Schartzman – O Estado de São Paulo – 09/05/2025

Não deve ter sido por acaso que, na mesma semana, fui convidado para dois seminários sobre o mesmo tema, o futuro da universidade. A primeira coisa que digo sobre isso é que “a universidade” não existe, o que existe são milhares de instituições diferentes, desde grandes universidades com pesquisa, cursos de pós-graduação e milhares de estudantes, geralmente públicas, até gigantescas empresas com centenas de milhares de estudantes em cursos à distância, passando por um sem-número de pequenas faculdades isoladas com cursos noturnos em educação, administração ou saúde. Existem as públicas, gratuitas e financiadas pelo governo federal e alguns Estados, e as privadas, algumas religiosas ou de orientação comunitária, e a grande maioria com fins de lucro. Estamos falando de quê?

Mas existe também, na cabeça das pessoas, uma ideia difusa de “universidade” como um lugar para onde os jovens vão no início da vida adulta, aprofundam seus conhecimentos, vivem a cultura da juventude, criam redes de relacionamento que vão levar para toda a vida e adquirem uma profissão que vai lhes dar um lugar seguro e muito mais rentável do que o de seus pais, se de famílias mais pobres, ou semelhante ao deles, se de famílias mais ricas e educadas. Quando milhões de jovens, todo ano, se inscrevem no Enem, é essa ideia que estão perseguindo, embora saibam que poucos conseguirão a nota necessária para entrar numa carreira de prestígio em uma boa universidade. Quando, depois, muitos dos que sobraram se inscrevem em cursos baratos a distância, em que é mais fácil conseguir um diploma, é ainda a ilusão das carreiras universitárias que perseguem, embora a maioria acabe abandonando os cursos ou só consiga um trabalho precário e mal pago.

A incerteza sobre o futuro da universidade é a incerteza crescente sobre esta ideia difusa, que reflete a incerteza sobre o futuro do País. Apesar das imensas desigualdades, predominava no Brasil até recentemente a sensação de que as coisas iam melhorar para todos, que amanhã seria melhor do que hoje, que a vida de nossos filhos seria melhor do que a nossa. Essa sensação vinha da grande mobilidade econômica e social que durou, com altos e baixos, até dez anos atrás e que se interrompeu com a crise econômica e a desilusão com governos, partidos políticos e instituições. Investir a longo prazo numa carreira, esquentar a cadeira aprofundando conhecimentos, construir uma reputação profissional pelo trabalho sério e responsável, tudo isso perde sentido quando comparado com a fascinação do estrelismo prometido pelos meios de comunicação, o enriquecimento pela tacada de um grande negócio ou os números corretos na Mega Sena e as certezas simples de entender disseminadas pelos influenciadores da internet.

O que mais se ouve, conversando com professores universitários, é como os estudantes de hoje são apáticos, mal cumprem as obrigações escolares e são muito mais ligados às suas redes de internet do que ao que dizem seus professores.

Pesquisas mostram que um terço dos jovens, no Brasil, gostaria de mudar para outro país. Existem, hoje, mais de 4 milhões de brasileiros no exterior, comparado com 3 milhões há dez anos e menos de 1 milhão no ano 2000.

A incerteza, no entanto, vai além da estagnação do País e da apatia da juventude. A ideia de que as universidades, primeiro as públicas, depois as privadas, se aproximariam do modelo tradicional, e que seriam acessíveis a todos, está cada vez mais distante, com 80% das matrículas em instituições privadas e mais da metade em cursos a distância. Instituições públicas mal conseguem recursos para pagar salários a seus professores e manter os prédios que ocupam. Poucas conseguem manter pesquisa e programas de pós-graduação de qualidade, e a distância entre a pesquisa brasileira e a dos países de ponta só aumenta. No setor privado, o espaço das instituições comunitárias e religiosas, criadas com a intenção de influenciar a sociedade com seus valores, vem diminuindo, na concorrência com os grandes conglomerados de ensino que dificilmente vão além de cursos empacotados nas profissões sociais mais simples e baratas de ministrar. E, com os novíssimos recursos da inteligência artificial, ninguém sabe mais o que, como e para que ensinar.

As instituições de ensino superior, em suas diversas formas e com todas as suas dificuldades, não vão desaparecer, porque o mundo depende cada vez mais de conhecimentos e competências, e a capacitação intelectual e profissional continuará sendo a grande porta de entrada para a vida dos países, instituições e pessoas. Elas precisam, no entanto, se reinventar. Essa reinvenção passa por novos tipos e cursos e carreiras, novas formas de ensinar, novas maneiras de buscar recursos e novos e mais relevantes temas para pesquisar. Para isso, elas contam com um recurso precioso, que é o capital intelectual de seus professores e a tradição de autonomia e audácia intelectual que muitas vezes acabaram perdendo, pelo peso da rotina, da burocracia ou dos resultados de curto prazo. É por aí que passa o futuro, se ele não trouxer mais desilusões.

Leão XIV, por Leonardo Boff

0

Leonardo Boff – A Terra é Redonda –

Do Peru ao Vaticano, a jornada do Papa Leão XIV — e a missão impossível de desocidentalizar uma Igreja que insiste em vestir as roupas do Império Romano

Confesso que fiquei surpreso com a nomeação do Cardeal norte-americano-peruano Robert Prevost ao supremo pontificado da Igreja. Isso por ignorância minha. Depois, ao informar-me melhor, vendo youtubes e falas dele no meio do povo, de pé em plena inundação de uma cidade peruana e seu cuidado especial para com os indígenas (a maioria dos peruanos) me dei conta de que ele realmente pode ser a garantia da continuidade do legado do Papa Francisco.

Não terá o carisma do último Papa, mas será ele mesmo, mais contido e tímido, mas muito coerente com suas posições sociais, inclusive críticas face ao presidente Donald Trump e ao seu vice. Não sem razão que o Papa Francisco o chamou de sua diocese de pobres no Peru e o convocou para uma função importante na administração do Vaticano.

Leão XIV viveu grande parte de sua vida fora dos EUA, por muitos anos como missionário e depois como bispo no Peru, onde certamente colheu farta experiência de outra cultura e da situação social pobre da maioria da população. Explicitamente confessou que se identificou com aquele povo a ponto de naturalizar-se peruano.

Sua primeira fala ao público foi contra minhas expectativas iniciais. Foi um discurso piedoso e feito para o interno da Igreja. Nunca ocorreu a palavra pobre, menos ainda libertação, ameaças à vida e o clamor ecológico. O tema forte foi a paz especialmente “desarmada e desarmante”, suave crítica ao que está ocorrendo nos dias de hoje de forma dramática como a guerra na Ucrânia e o genocídio, a céu aberto, de milhares de inocentes crianças e civis na Faixa de Gaza. Pareceria que tudo isso não estivesse na consciência do novo Papa. Mas estimo que tudo isso voltará em breve, pois tais tragédias foram tão fortes nos discursos do Papa Francisco, seu grande amigo, que ainda devem ressoar nos ouvidos do novo Papa.

O Papa Francisco como jesuíta possuía um raro senso de política e do exercício do poder, pelo famoso “discernimento do espírito”, categoria central da espiritualidade inaciana. Minha pressuposição é que ele viu no Cardeal Robert Prevost um possível sucessor seu. Não pertencia à velha e já decadente cristandade europeia, vinha do Grande Sul, com a experiência pastoral e teológica madurada na periferia da Igreja, no caso do Peru, onde com Gustavo Gutiérrez, nasceu e se desenvolveu a teologia da libertação.

Seguramente, com sua maneira suave e seu caráter afeito a escutar e a dialogar, levará avante os desafios assumidos e as inovações enfrentadas pelo Papa Francisco, o que não é o caso de aqui enumerá-las.

Mas terá outros desafios, no meu ponto de vista, nunca tomados a sério pelas intervenções dos papas anteriores: como desocidentalizar e despatriarcalizar a Igreja Católica face à nova fase da humanidade. Ela se caracteriza pela planetização da humanidade (não só em sentido econômico, agora perturbada por Donald Trump) que, de fato está ocorrendo a passos cada vez mais rápidos em termos políticos, sociais, tecnológicos, filosóficos e espirituais. Nesse processo acelerado, a Igreja Católica em sua institucionalidade e na forma como se estruturou hierarquicamente, comparece como uma criação do Ocidente. Isso é inegável.

Por detrás de tudo, está o clássico direito romano, o poder dos imperadores com seus símbolos, ritos e forma de exercício do poder centralizado numa autoridade máxima, o Papa, “com o poder ordinário, máximo, pleno, imediato e universal” (cânon 331), atributos que, na verdade, caberiam somente a Deus. Acresce ainda sua infalibilidade em assuntos de fé e moral. Mais longe não se poderia ir. O Papa Francisco conscientemente se afastou deste paradigma e começou a inaugurar outro modelo de Igreja simples e pobre e em saída para o mundo.

Isso não tem nada a ver com o Jesus histórico, pobre, pregador de um sonho absoluto, o Reino de Deus e severo crítico a todo o poder. Mas foi o que ocorreu: com a erosão do Império romano, os cristãos, feitos Igreja, com alto senso de moralidade, assumiram a reordenação do império romano que atravessou séculos. Mas isso é criação da cultura ocidental.

A mensagem originária de Jesus, seu evangelho, não se exaure nem se identifica com esse tipo de encarnação, pois a mensagem de Jesus é de abertura total a Deus como Abba (paizinho querido), ilimitada misericórdia, o amor incondicional até aos inimigos, a compaixão pelos caídos nas estradas da vida e a vida como serviço aos demais. O atual Papa Leão XIV não ficará imune a este desafio. Queremos ver e apoiar a sua coragem e fortaleza para enfrentar os tradicionalistas e dar passos na referida direção.

Um grande, imenso desafio para qualquer Papa, é relativizar essa forma de organizar o cristianismo para que possa ganhar novos rostos nas várias culturas humanas. O Papa Francisco deu largos passos nesta direção. O atual novo Papa acenou para este diálogo em sua fala inaugural. Enquanto não se caminhe firmemente nesta desocidentalização, para muitos países o cristianismo será sempre coisa do Ocidente. Foi cúmplice da colonização de África, das Américas e da Ásia e assim ainda é visto assim pelas inteligências dos países que foram colonizados.

Outro desafio não menor consiste na despatriarcalização da Igreja. Ele já foi referido acima. Na direção da Igreja só existem homens e estes celibatários e ordenados no sacramento da Ordem (padre a Papa). O fator patriarcal é visível na negação às mulheres ao sacramento da Ordem. Elas compõem, de longe, a maioria dos fiéis e são as mães e as irmãs da outra metade, dos homens da Igreja e da humanidade. Essa exclusão machista fere o corpo eclesial e coloca em xeque a universalidade da Igreja. Enquanto não se abre a possibilidade às mulheres, como ocorreu em quase todas as igrejas, de acederem ao sacerdócio ela mostra seu arraigado patriarcalismo e sua marca de um Ocidente cada vez mais um Acidente na história universal.

Junto a isso a manutenção obrigatória do celibato (feito lei) faz com que o caráter patriarcal ainda se radicalize mais e favoreça o antifeminismo que se nota em estratos da hierarquia eclesiástica. Como é apenas uma lei humana e histórica e não divina, nada obsta que seja abolida e se permita o celibato opcional.

Estes e muitos outros desafios deverá o novo Papa enfrentar, pois cresce mais e mais na consciência dos fiéis o sentido evangélico de participação (a sinodalidade) e da igualdade em dignidade e direitos de todos os seres humanos, homens e mulheres. Por que na Igreja Católica deveria ser diferente?

Estas reflexões pretendem ser um desafio permanente a ser enfrentado por quem foi escolhido para o mais alto serviço de animação da fé e de direção dos caminhos da comunidade cristã como a figura do Papa. Chegará o tempo em que a força destas mudanças se fará tão exigente que ela ocorrerá. Então será uma nova primavera da Igreja que se tornará tanto mais universal quanto mais assumirá questões universais e dará a sua contribuição para respostas humanizadoras.

Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Eclesiogênese: a reinvenção da Igreja (Record).

Para que servem os economistas? por Manfred Back & Luiz Gonzaga Belluzzo

0

Manfred Back & Luiz Gonzaga Belluzzo – A Terra é Redonda – 09/05/2025

Ao longo do século XIX a economia tomou como paradigma a imponente construção da mecânica clássica e como paradigma moral o utilitarismo da filosofia radical do final do século XVIII

Começamos com uma afirmação que, certamente, vai desfiar desagrados aos cultores da ciência sombria. A história do pensamento econômico nos oferece o espetáculo da naturalização da economia. A economia tem que se apresentar como uma esfera autônoma da vida humana e social em que prevalecem leis naturais, às quais os indivíduos deveriam se submeter.

Da infância smithiana à maturidade caquética das expectativas racionais, os conflitos de concepção e de método assolaram a trajetória intelectual da ciência sombria. Nos momentos de controvérsia aguçada, os príncipes e sacerdotes da ciência econômica convocam os quatro cavaleiros da ortodoxia – naturalismo, individualismo, racionalismo e equilíbrio – para espaldeirar a turba dissidente.

Leis naturais, as que possuem a mesma forma das leis da física. De Adam Smith para frente, este movimento de aproximação do paradigma da física se torna crescente. Havia, não só um ambiente intelectual que favorecia essa aproximação, como a dimensão econômica, ao mesmo tempo, vai se tornando cada vez mais importante, e cada vez mais separada das demais.

Ao longo do século XIX, a economia tomou como paradigma a imponente construção da mecânica clássica e como paradigma moral o utilitarismo da filosofia radical do final do século XVIII. O homo economicus, dotado de conhecimento perfeito, busca maximizar sua utilidade ou os seus ganhos diante das restrições de recursos que lhe são impostas pela natureza ou pelo estado da técnica.

Essa metafísica da corrente dominante supõe uma ontologia do econômico que postula certa concepção do modo de ser, uma visão da estrutura e das conexões da sociedade. Para esse paradigma, a sociedade, onde se desenvolve a ação econômica, é constituída mediante a agregação dos indivíduos racionais.

Tais premissas da economia repetidas todo o santo dia, não passam de retórica travestida de ciência. A tal racionalidade é fabricada através de crenças e dogmas, maquiados por números, equações e funções algébricas. Bufando modelos econométricos aos quatro ventos do planeta, como se fossem a pedra fundamental de um conhecimento único, incontestável como a santíssima Trindade. Um estilo rococó de se expressar, que se reproduz na eternidade dos cursos de economia! Nivelando a estatística a matemática! Um dialeto algébrico que poucos entendem! É feito para não entender!

O importante para esses sofistas alfanuméricos não é entender e estudar as relações econômicas, mas transformar uma suposta realidade estática em um jogo de causa-efeito, e pronto! Um dos dez mandamentos recebidos por Lucas, não o apóstolo, mas o ícone das expectativas racionais, a moeda é neutra.

No modelo “equilibrista” que organiza a sociedade habitada por indivíduos racionais, utilitaristas, proprietários de mercadorias e dos fatores de produção, a moeda só é necessária formalmente como moeda de conta e meio de troca. A moeda é neutra e determina o nível geral de preços sem qualquer efeito de longo prazo sobre a economia de intercâmbio de mercadorias, cujos valores relativos são mensurados pela utilidade marginal dos agentes. Também é nesse espaço de mensuração que são tomadas as “decisões de produção” dos indivíduos proprietários do capital e do trabalho

Essa forma tem seu código próprio, misture algumas equações e dados, e algumas previsões, e para dar credibilidade, imponha força divina nas palavras.

Aí, pela graça divina, os argumentos não podem ser contestados, ao contrário, são paparicados e mimados. E reverenciados como deuses, “Deus” não se dúvida, nem se contesta, é questão de fé e crença! Assim como a Cúria Romana, o que falam é lei! Um dos dez mandamentos entregue a Moisés no monte Sinai, dizia: Não tomarás em vão o nome do Senhor, o teu Deus, pois o Senhor não deixará impune quem tomar o seu nome em vão.

Nos mandamentos dos economistas: Não tomarás em vão o nome do equilíbrio, o teu “Deus”, pois o senhor academia quem tomar posse da realidade em vão seja na utilidade marginal, na produtividade dos fatores. Não darás falso testemunho econométrico. Honra a forma, o método, a burocracia, como se fossem, teu pai e mãe.

Se você perguntar, perante uma plateia, aos sábios da crematística como produzo um pão e vendo no mercado? Espere, meu caro, preciso construir um modelo econométrico do mercado de pães! Segundo nossas expectativas análises quantitativas, ceteris paribus, o mercado crescerá 20% até 2035, estimamos um mercado mundial desse produto na ordem de 7 bilhões de dólares, se prepare, para exportar! O Brasil será um dos maiores exportadores de pães em 2035, se resolver o problema fiscal, acabar com os aposentados, e congelar o salário-mínimo.

Eu perguntaria: como é viver com um salário-mínimo mensalmente, para pagar aluguel, vestir e comer? Não faça pergunta difícil e pertinente com a vida diária das pessoas. Você não entende nada!

Afinal, para que serve os economistas?

Robert Skidelsky, biográfo de John Maynard Keynes, nos ofereceu a leitura do livro O que há de errado com a economia?: “A economia não é progressiva, no sentido de, digamos, da física. O progresso na economia consiste principalmente em maior formalização, em vez da descoberta de novas verdades. Nenhuma verdade na economia, uma vez proclamada, foi refutada. Isso argumenta muito fortemente para não consignar alternativas ao mainstream atual para a lata de lixo de falácias explodidas”.

Em terceiro lugar, a economia não é uma ciência natural, mas uma ciência social (Keynes a chamou de ciência moral). Na física, a interação dos corpos é fixada por leis físicas, mas na economia é fixada pelo contexto, valores e normas sociais, que são parâmetros variáveis. Como a economia não tem verdades universais, ela não tem mais direito do que a sociologia ou a história de reivindicar uma super teoria ou metametodologia, com ensino catequético.

“Porque o objetivo de uma economia não é apenas gerar empregos para que as pessoas possam sobreviver. É elevar o padrão de vida de todos e garantir que a prosperidade seja compartilhada”. (William Lazonick, especialista em corporações empresariais americanas).

Manfred Back é graduado em economia pela PUC –SP e mestre em administração pública pela FGV-SP.

Luiz Gonzaga Belluzzoeconomista, é Professor Emérito da Unicamp. Autor entre outros livros, de O tempo de Keynes nos tempos do capitalismo (Contracorrente).

Crise e Oportunidade

0

A sociedade internacional vive momentos de grandes mutações em todas as áreas e setores, todos os dias surgem novas tecnologias, alterações de modelos de negócios, movimentações disruptivas, transformações estruturais no mercado de trabalho, mudanças no comportamento dos consumidores e o crescimento sistemático da concorrência entre os atores econômicos, exigindo maior profissionalização de toda a cadeia produtiva, além de novos instrumentos educacionais que surgem todos os dias, tudo isso contribui para percebermos que vivemos numa sociedade instável e em crescente transformação.

Nessas novas mutações que passa a economia global, percebemos alterações constantes no comércio internacional, o surgimento de novos atores globais, aumento da integração entre regiões, novos conflitos entre nações hegemônicas, guerras tarifárias, aumento do protecionismo e o incremento dos subsídios, gerando incertezas em toda a economia mundial, impactando sobre as estruturas produtivas nacionais, estimulando ou desestimulando os investimentos produtivos, a geração de emprego e a renda agregada.

Neste momento de crises constantes na economia internacional, cada sociedade precisa construir novos espaços para a sua inserção na economia internacional, redesenhando seu comércio exterior, investindo em setores fundamentais para fortalecer a estrutura econômica e repensar os parceiros comerciais, aproveitando os espaços que surgem nos conflitos globais de países que lutam pela hegemonia, usando instrumentos de política industrial para atrair grandes corporações e variados conglomerados econômicos e além disso, é imprescindível preparar toda a cadeia produtiva, aumentando os investimentos na educação, atraindo pesquisadores renomados que buscam novas oportunidades no mercado internacional, contribuindo para fomentar a pesquisa científica e as bases tecnológicas.

Neste cenário de grandes incertezas na sociedade global, é fundamental atrairmos novos conglomerados econômicos e setores produtivos de ponta, dotados de grande potencial e alta complexidade, para alcançarmos este intuito é importante melhorarmos a infraestrutura, investindo fortemente em logística, reduzindo a burocracia que emperra os investimentos produtivos, diminuindo os impostos que reduzem a competitividade da estrutura produtiva, reduzindo as taxas de juros que desestimulam os investimentos produtivos e melhorando, com urgência, o capital humano nacional que, na era da inteligência artificial que está transformando a sociedade global, encontramos quase 30% dos brasileiros incapazes de compreender texto e nem fazer contas simples.

Somos uma nação dotada de grandes vantagens competitivas, temos uma gama elevada de energias sustentáveis, não temos conflitos militares e hostilidades com nenhum dos nossos vizinhos, nosso país detém grande contingente de terras e clima propício, somos detentores de minérios estratégicos para a economia do século XXI e, importante destacar, que neste ambiente de conflitos hegemônicos, nosso país consegue conversar soberanamente com todas as nações do globo, somos respeitados e todos reconhecem nosso potencial, precisamos apenas confiarmos em nós mesmos, deixando de lado discussões mesquinhas e irresponsáveis e construirmos um projeto de país, com autonomia econômica e independência política.

Estamos num momento de crises e imensas oportunidades, lembremos do período da pandemia, onde os setores mais empreendedores e dotados de grande potencial de inovação viram na crise sanitária uma grande oportunidade para se reinventar e aumentarem seus ganhos monetários, agora, aqueles que não compreenderam o imenso potencial das transformações contemporâneas, perderam espaço na sociedade. Vivemos num momento parecido, turbulento e marcado por grandes instabilidades e neste instante as decisões estratégicas definirão o futuro da nossa nação.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor universitário. 

Redes sociais e o partido digital de massas, entrevista com Bruna Della Torre

0

Pesquisadora explora a hipótese de uma indústria cultural digital – entre a vitrine narcisista e a extração de dados. Uma falsa esfera pública que, nas mãos das Big Techs, favorece a ultradireita. Poderá a esquerda se organizar fora desses espaços?

Bruna Della Torre, no Blog da Boitempo – Outras Mídias – 30/04/2025

A entrevista abaixo foi preparada para a mesa redonda “América Latina: linhas de conflito na luta pela democracia”, de que participou a pesquisadora Bruna Della Torre ao lado de Silke Pfeiffer (Brot für die Welt), Pablo de Marinis (Universidad de Buenos Aires) e Jennie Dador Tozzini (ex-diretora executiva da Coordenação Nacional de Direitos Humanos – Peru). O debate fez parte da programação de um evento chamado “Democracia e autoritarismo: desdobramentos autocráticos, análises e contra-estratégias”, que ocorreu em 26 de abril em Frankfurt e foi organizado pela Associação Democracia Transnacional, em cooperação com as seguintes instituições: Instituto de Pesquisa Social; Brot für die Welt; Offenes Haus der Kulturen; mehr als wählen e. V.; World Design Capital 2026; Frankfurter Rundschau e Feira do Livro de Frankfurt. As perguntas são de Silke Pfeiffer e as respostas são de Bruna Della Torre

Depois de superar a ditadura militar nos anos 80, seu país sofreu recentemente uma experiência autoritária muito forte sob o regime de Jair Bolsonaro. Em sua pesquisa, você está investigando a influência da internet e especialmente das mídias sociais na política. Como funciona a propaganda digital da extrema direita e que efeitos está tendo?

Obrigada pela pergunta, Silke, é um prazer estar aqui com vocês neste prédio que Max Horkheimer presenteou aos estudantes para que tivessem um espaço autônomo para promover sua própria formação política (algo inimaginável na universidade hoje em dia). Entre 2021 e 2024, empreendi uma pesquisa motivada pela inquietação que me causou o rumo político do Brasil após a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Aquela eleição foi importante porque produziu, como você mesma disse, um processo de ruptura com a Nova República. Bolsonaro venceu exaltando o passado da ditadura militar e o torturador da ex-presidenta Dilma Rousseff. Durante esse período, analisei como a infraestrutura digital favoreceu formas renovadas de organização neofascista. Investiguei a propaganda dessa extrema direita nas redes ao longo desses anos, especialmente no Instagram, Telegram, TikTok e YouTube. Minha atenção se concentrou principalmente no próprio presidente Jair Bolsonaro e seus filhos Eduardo, Flávio e Carlos (políticos profissionais), mas também em grandes influenciadores de extrema direita. Parte dessa pesquisa também se concentrou na questão de gênero. Investiguei diversas formas de propaganda antifeminista, especialmente a produzida por influenciadoras, pastoras e pela esposa do presidente.
Concretamente, interessa-me explorar a hipótese de que a indústria cultural digital — isto é, o complexo de redes sociais, plataformas e dispositivos tecnológicos — opera hoje como uma nova forma de organização política que substituiu, em muitos casos, o partido de massas na articulação da extrema direita. Ou seja, a indústria cultural digital, tal como hoje configurada, não é simplesmente um meio de comunicação… mas uma forma de organização política do neofascismo. As redes não são apenas o lugar da propaganda, mas da própria política.

De fato, a indústria cultural (como o rádio e o cinema) já havia sido um dos principais instrumentos do fascismo histórico; porém, não chegou a substituir a importância do partido. O desenvolvimento mais recente das forças produtivas modificou substancialmente esse equilíbrio. As redes sociais possuem hoje uma capilaridade social que nenhuma outra organização jamais sonhou alcançar. As campanhas eleitorais hoje se desenvolvem quase exclusivamente por meio delas. O partido de massas foi substituído por uma nova forma: o partido digital de massas, uma estrutura que combina verticalidade — conectando diretamente o líder aos seus seguidores, da propaganda governamental às milícias digitais — e horizontalidade — articulando grupos marginais que antes estavam isolados e gerando nas pessoas (muitas vezes excluídas da política) uma falsa sensação de participação ativa. Nada disso é exatamente novo, mas é importante destacar. No Brasil, muitos influenciadores foram eleitos deputados. O que se observa é que, com esse tipo de propaganda, não há mais uma diferenciação clara entre um agitador de extrema direita e um político — essa mudança é muito importante. A direita está conseguindo o que a esquerda, em muitos casos, não conseguiu: mobilizar pessoas das redes para as ruas em questão de minutos, organizando não apenas manifestações, mas até tentativas de golpe político. Os episódios do Capitólio nos EUA e da invasão do Congresso e do Supremo Tribunal Federal no Brasil por parte de neofascistas são apenas duas manifestações de um potencial muito maior.

Em geral, o que observei nessa propaganda é o que temos visto, em termos de conteúdo, em toda a extrema direita: um discurso contra a chamada “ideologia de gênero” — que inclui um forte e influente movimento antifeminista —, o reforço do racismo estrutural presente na sociedade brasileira, o negacionismo, uma retórica neoliberal favorável às plataformas digitais e à livre circulação de armas, e uma particularidade brasileira que, a meu ver, consiste no reforço da lógica religiosa muito apocalíptica, especialmente das igrejas evangélicas, cuja propaganda é ostensiva nessas redes.

No entanto, em geral, nada disso é verdadeiramente novo. Contém muitos elementos do chamado fascismo histórico. Há bodes expiatórios (o Partido dos Trabalhadores, as feministas, os receptores de benefícios sociais que “não trabalham”); há promessas de que as frustrações e ressentimentos atuais serão eliminados por determinadas políticas; há empoderamento dos seus seguidores, há um constante recurso a agravos econômicos, morais, culturais e políticos; há uma produção sistemática de desconfiança e paranoia generalizada; há uma mobilização dos complexos de dependência das pessoas e uma produção de ansiedade social e psíquica generalizada. O exemplo mais ilustrativo desse fenômeno foi um meme que teve impacto considerável na eleição de Bolsonaro: uma imagem de uma mamadeira com um bico em forma de pênis, amplamente difundida nas redes sociais, acompanhada da afirmação de que o Partido dos Trabalhadores planejava instaurar uma “ditadura gay” no Brasil. Essa propaganda opera em uma complexa rede de inter-relações que torna insuficiente estudar apenas o capitalismo. Ela contém elementos políticos, econômicos, psíquicos, sociais, de gênero, entre outros. O que realmente muda é sua escala e seu alcance. Isso, sim, é novo. E trata-se de uma mudança quantitativa que traz consigo consequências políticas qualitativas. Funciona mobilizando todas essas questões que enumerei anteriormente, mas funciona, acima de tudo, porque é extensiva e ostensiva.

Recentemente você disse em uma entrevista que está tentando decifrar a propaganda digital da extrema direita para “desenvolver estratégias para neutralizá-la, impedi-la ou criar uma brigada contra incêndios.” Como você visualiza tal estratégia? E como vê a esquerda e/ou as organizações da sociedade civil / movimentos sociais reagindo frente a esses desenvolvimentos?

Vou começar respondendo a essa pergunta a partir de uma abordagem teórica, para contar que uma das ideias que inspiraram minha pesquisa foram justamente os estudos sobre a propaganda autoritária realizados por Leo Löwenthal e Norbert Gutermann, publicados no livro Profetas do engano: um estudo das técnicas dos agitadores americanos. Esses estudos tinham uma intenção prática. Max Horkheimer, então diretor do Instituto de Pesquisa Social, dizia-se interessado em criar uma espécie de manual contra a propaganda fascista, uma tentativa que acabou não se concretizando. E quando comecei esta pesquisa, minha ideia era, de certa forma, parecida. Do ponto de vista acadêmico, ainda é, e acredito que não se pode pensar em nenhuma estratégia eficaz contra a extrema direita sem compreender como ela funciona.

Mas hoje sou muito mais cética quanto a soluções puramente educativas, por assim dizer. Primeiro, porque existem duas dificuldades intrínsecas. A primeira é que muita gente não entende que não basta desmentir os agitadores de extrema direita ou fazer campanhas contra “fake news”. É muito difícil contestar esses agitadores na base do conteúdo do que dizem, não só porque seu discurso é um “discurso salsinha” — composto de uma junção fragmentária de vários ingredientes heterogêneos entre si, como dizia Theodor W. Adorno — mas porque, na realidade, esses agitadores não falam de fora, mas geralmente surgem do próprio seio de seu público-alvo: falam de dentro das camadas fascistizadas (ou ao menos conseguem transmitir essa impressão aos seus seguidores). Um exemplo: quando Bolsonaro perdeu apoio entre as mulheres devido ao seu machismo, surgiram diversas influenciadoras mulheres nas redes e a própria esposa de Bolsonaro passou a participar ativamente da propaganda antifeminista. Hoje ela é a figura da extrema direita mais bem posicionada nas pesquisas de intenção de voto para as próximas eleições, dada a magnitude de seu papel no fenômeno do pinkwashing  dentro do bolsonarismo. Atualmente, Trump também escolheu como vice-presidente uma figura que, embora não represente necessariamente esse grupo, vem do chamado “cinturão da ferrugem” e, em sua autobiografia e no filme baseado nela, fala sobre o sofrimento da classe trabalhadora branca.

A segunda dificuldade é imaginar que o principal objetivo do agitador seja conquistar a adesão moral ou intelectual de sua audiência. Se seguirmos essa linha de análise, não entenderemos por que alguém como Trump — que declarou publicamente que gostaria de namorar a própria filha — pode ser visto como defensor da família. Como Gutermann afirma, essa propaganda funciona mais como um lubrificante para a violência: não se trata realmente de proteger a família, mas de viabilizar outros discursos, como a violência contra mulheres ou a população LGBTQIA+. Quando Bolsonaro fala de liberdade de expressão, está, na realidade, legitimando discursos que no Brasil constituem crimes, como o racismo. Ele legitima e autoriza essas atitudes violentas. E muitas pessoas se sentem agradecidas, pois possuem um ressentimento profundo por não poder expressar livremente esse racismo em um país que viveu quase quinhentos anos de escravidão.

Finalmente, há o problema da escala. As redes sociais são, assim como o capital financeiro, em certa medida incontroláveis. E nelas a direita domina o meio muito melhor que nós. Mais ainda: para usar uma ideia de Adorno, a venda de uma ideia política como se fosse uma mercadoria — como faz a extrema direita — ocorre hoje em um ambiente monetizado como nunca antes na história. As Big Tech remuneram a agitação de extrema direita. Isso transforma nossa luta não apenas em uma luta ideológica, mas também econômica. Como sempre, eles contam com o respaldo do grande capital. É complexo. Acredito que uma parte da esquerda, especialmente no Brasil, já se deu conta disso, mas isso não ocorre em outras partes do mundo. As redes sociais ainda são percebidas como uma tecnologia neutra.

O que penso que é a única estratégia válida neste momento seria algo como “abra-te sésamo: queremos sair do mundo digital”. Nossa estratégia deve se orientar para o restabelecimento de vínculos sociais e políticos fora das redes. E, por fim, uma nota materialista, talvez a mais importante: Horkheimer advertia que os agitadores têm um público diferente em tempos de crise econômica. Em tempos de crise, há muito mais espaço para mobilizar o descontentamento em múltiplas direções. Portanto, compreender e transformar o sistema em que vivemos é essencial.

Que influência têm os desenvolvimentos internacionais (Trump e Big Tech nos EUA)?

Hoje, as Big Tech são uma das forças sociais — ou antissociais, se preferirmos — mais poderosas que existem. Há pouco tempo, elas teriam sido classificadas como rackets  (organizações mafiosas). O problema do capitalismo monopolista que estamos experimentando é que ele implica uma concentração de poder enorme — por isso, um dos seus riscos é o neofascismo, ou o autoritarismo, se quisermos empregar um termo mais brando. Poderíamos dizer que não é possível compreender esse fenômeno sem articular economia e política… O capitalismo monopolista tende a concentrar dinheiro e capital, o que, no mundo capitalista em que vivemos, implica uma concentração de poder. Este é o ambiente perfeito para o surgimento de um novo fascismo. Estamos vivendo agora, como fica claro com Trump, sob o neofascismo de plataforma — uma tendência que só se fortalece.

O que acontece com as plataformas é que elas estão demonstrando o quão poderosas são diante das velhas soberanias nacionais ou mesmo diante de blocos como a União Europeia. E agora as Big Tech chegaram ao governo de um dos países mais poderosos do mundo — talvez o mais poderoso. A pressão que estão exercendo sobre a Europa é brutal. Não vejo isso apenas como algo negativo — embora evidentemente o seja —, mas acredito que a posição da Europa já mudou e terá que mudar ainda mais nos próximos anos. A sinofobia, por exemplo, que é muito forte aqui na Alemanha e em outros países, também vai se transformar com a necessidade de negociar com a China. Assim, aquilo que se conhece como “Ocidente” vai se transformar com Trump.

Por outro lado, a vitória de Trump nos Estados Unidos vai empoderar profundamente as direitas europeias — já estamos vendo isso na relação entre Musk e a AfD, e com a visita de J.D. Vance à Alemanha. Agora a Europa terá que demonstrar ao mundo quão fortes são suas democracias. Acho que precisamos reconhecer que a extrema direita está organizada internacionalmente — muito mais do que nós. E isso é um problema, porque historicamente os internacionalistas sempre fomos nós. E apesar dos discursos sobre tarifas e protecionismo, a direita estadunidense está exportando um modelo de governo para muitos outros países.

Mas, para dizer algo em um tom mais otimista — se é que este mundo ainda permite algum tipo de otimismo —, vale lembrar que o Brasil se tornou agora um caso-laboratório — por enquanto — também no que diz respeito à contenção do fascismo, e acredito que isso poderá servir de exemplo para a Europa. Embora Bolsonaro não tenha sido julgado nem sancionado por sua atuação como presidente durante a pandemia de Covid-19, como deveria ter sido, ele foi finalmente declarado inelegível por oito anos por abuso de poder político e econômico nas celebrações do Bicentenário da Independência. Atualmente, também é formalmente acusado em um processo judicial que investiga seu papel na incitação ao episódio de 8 de janeiro, no qual uma multidão invadiu as sedes dos Três Poderes em Brasília. Espero que esse tipo de política leve a Europa a estudar e buscar apoio naqueles lugares que estão conseguindo conter a extrema direita. Líderes como Trump não deveriam poder se candidatar a eleições. E a AfD, com suas propostas racistas e neonazistas, também deveria ser proscrita. Pensar que permitir que movimentos de extrema direita cheguem ao poder é um ato democrático é uma ilusão. Trata-se de uma interpretação extremamente superficial do que significa democracia, e acredito que esta é a lição que a Europa precisa aprender agora se não quiser seguir o mesmo caminho dos Estados Unidos. É claro que isso não é suficiente e temos que derrotar o fascismo no corpo social, porém, devido à força mercantil e política desse movimento, precisamos usar todas as ferramentas que temos, principalmente as jurídicas e institucionais.

As redes sociais não são lugares contraditórios que também abrigam a esquerda?

Acredito que a pergunta sobre o caráter contraditório das redes sociais e sobre como deveríamos ocupá-las é uma das que mais ouço quando falo sobre o tema. Confesso que tenho um ceticismo profundo quanto à possibilidade de que alguma mudança parta da esquerda dentro dessas redes — ceteris paribus, ou seja, tal como elas existem hoje. Embora pareçam constituir uma nova esfera pública, convém lembrar que, na realidade, se tratam de grandes monopólios capitalistas baseados na publicidade — daí a analogia com o que Adorno e Horkheimer chamaram de indústria cultural que guia minha pesquisa. São sistemas fechados, cujo funcionamento desconhecemos e que não estão sob nosso controle, mas sob o controle de algoritmos definidos por essa elite que hoje vemos vinculada a figuras como Trump: Elon Musk, Mark Zuckerberg… apenas para mencionar dois dos Broligarcas.

Mas as redes sociais não têm absolutamente nada de público. São uma mistura de prisão — totalmente baseada na vigilância — e shopping center. E não sei se seria possível, nem sequer desejável, tentarmos disputar um shopping center. Não é porque as redes são digitais que elas não funcionam como uma espécie de shopping. Ainda mais quando, como mostraram diversas pesquisas, hoje mais da metade de nossas interações na internet ocorrem com bots. Imaginemos a quantidade de energia e tempo que precisaríamos investir, como esquerda, para tentar nos tornar hegemônicos nesses espaços. Ou aceitamos a mesma lógica e colocamos nossos próprios bots  para interagir com os deles, ou consumimos toda a nossa energia nessa tarefa.

A indústria cultural hoje não é apenas um espaço, é um processo, uma forma social, se quisermos, que favorece objetiva e subjetivamente a extrema direita. É uma ferramenta de produção de comportamentos, de extração de dados, de trabalho e de imaginação política.

Uma alternativa mais interessante — creio eu — seria, em primeiro lugar, compreender a fundo o fenômeno com que estamos lidando e nos reorganizar coletivamente fora desses espaços. Hoje existe um fetichismo muito forte em torno da tecnologia, mas não devemos esquecer que todas as revoluções do século XX foram feitas sem redes sociais. Precisamos expandir nossa imaginação política além dos limites que o capitalismo impõe. Essa sempre foi a tarefa da esquerda e da teoria crítica: imaginar e agir para além do existente.

Você está morando na Alemanha. Como você enxerga a AfD hoje?

Seria preciso comentar a relação da AfD com a história política da Alemanha, que é complexa e problemática, mas para ser rápida, vou ficar no tema da propaganda e comentar um pouco como acho que a AfD tem atuado em sua propaganda e por que ela tem sido tão eficaz.

Acredito que a AfD possui uma perícia incomparável no campo da propaganda neofascista. Seus memes, que invadiram o Instagram, e seus vídeos no TikTok têm uma estética muito característica — a propaganda da AfD é coerente e bem organizada. Ela possui uma identidade visual própria. Uma primeira observação sobre a AfD: A AfD parece falar a língua dos jovens e conseguiu tornar o neonazismo algo cool. Não se apresenta como um partido, mas como uma “alternativa”. Ao eliminar a palavra “partido” de seu nome, mostra-se como um movimento independente, com forte apelo entre a juventude. Um clássico do fascismo histórico. Sua campanha foi amplamente conduzida pelas redes sociais. O símbolo do partido se assemelha ao da Nike e simboliza o movimento (para a direita).

A propaganda da AfD tem, evidentemente, suas particularidades locais. É, por assim dizer, mais “social” que a extrema direita brasileira, apesar de defender direitos sociais apenas para os alemães, e não para os imigrantes. Vale dizer que, no Brasil, a direita não defende nenhum direito social e apresenta um discurso neoliberal muito mais explícito.

Também é importante comentar a questão da guerra: aqui, a AfD adotou uma posição contrária à guerra na Ucrânia, responsabilizando os chamados partidos da ordem por seu estopim. Outro ponto muito significativo é a questão climática, que ocupa um lugar central no debate público na Alemanha. Um exemplo de como essa propaganda atua em relação ao tema climático, que é um tema muito importante aqui: ela ativa uma série de ansiedades econômicas, associando a transição energética à desindustrialização e ao enfraquecimento da economia alemã. Em resposta a uma tentativa do governo de limitar a poluição proveniente das atividades agrícolas, o agronegócio se organizou e invadiu Berlim com seus tratores. Neles, podia-se ver hasteada uma bandeira com o lema: Farmers for Future [Agricultores pelo Futuro], uma referência distorcida ao movimento Fridays for Future [Sextas-feiras pelo Futuro], um dos maiores movimentos sociais na Alemanha e na Europa hoje (cuja figura mais representativa é Greta Thunberg). Assim como no Brasil, a propaganda vinculada ao agronegócio tenta ressignificá-lo: em vez de apresentá-lo como um empreendimento capitalista ultraliberal e nocivo à natureza, ele é retratado como um setor da economia que preserva as tradições rurais, alimenta a população e cumpre assim até mesmo uma função social. Com isso, a AfD ganha força também nas zonas rurais e reativa o velho ódio nazista às grandes cidades e ao seu cosmopolitismo (vale lembrar, por exemplo, o desprezo de Hitler por Berlim).

Esse tipo de propaganda, em última instância, também é capaz de ampliar a noção do econômico e fazer com que as pessoas o experienciem na vida cotidiana.

Outro exemplo: há um vídeo em que se enumeram várias razões para não votar na AfD — “se você deseja a guerra, não vote na AfD; se você acredita que homens podem engravidar, não vote na AfD” —, e que termina com uma afirmação absurda: “se você gosta de comer insetos, não vote na AfD”. A afirmação, completamente disparatada, associa a questão climática ao fim do prazer de comer, em uma sociedade em que esse prazer está associado ao consumo de carne (não por acaso, o veganismo é também um dos alvos favoritos da direita). Trata-se de uma tática já utilizada no Brasil por Carlos Bolsonaro. Nota-se que eles estão organizados e compartilham numerosos materiais de propaganda. A ideia é levar ao extremo os cenários de sacrifício exigidos pela crise climática e, com isso, fazer com que as pessoas, por medo de perder seu modo de vida, nem sequer reconheçam o problema. É uma espécie de mobilização reacionária do surrealismo, de tão inverossímeis que são os exemplos.

A Alemanha, embora tenha reduzido suas emissões de CO₂ (em 2024 registrou o nível mais baixo em 70 anos), consumiu em apenas quatro meses de 2024 o que, em termos sustentáveis, deveria ter sido consumido em um ano inteiro. Ao contrário do governo, a AfD não exige sacrifícios de seus eleitores e, além disso, promete recompensas imediatas. Uma política de esquerda deve estar consciente desse problema ao formular um programa que tenha no centro a própria sobrevivência, por mais justa e verdadeira que seja a ameaça climática.

Para terminar, já que estamos discutindo também alternativas, aqui, creio que seria necessário discutir como a esquerda precisa ser novamente o movimento que oferece, para usar uma expressão baudelairiana, uma promessa de felicidade — real, tangível, possível. Enquanto não formos capazes de fazer isso, o futuro será deles.

 

Disputa pela hegemonia no mundo integrado, por Tarso Genro

0

Tarso Genro – A Terra é Redonda – 04/05/2025

A disputa hegemônica migrou para o controle digital e a financeirização do Estado, com atores globais e elites locais corroendo a democracia em favor de interesses privados

Os protagonistas da disputa pela hegemonia política e cultural na sociedade capitalista dos anos 1980, então conceituada (Adam Schaff) como “sociedade informática” – hoje já selada como “infodigital” – não tinham em mãos um instrumental tecnológico tão diverso e variado, com a capacidade tão ampla de fazer circular dados, opiniões, recursos, com a velocidade e a precisão tão aproximadas das regras espontâneas do mercado, como no fim deste quarto de século.

Na sociedade industrial contemporânea, a partir do rádio e depois da televisão, já predominavam – embora presentes de forma atenuada – as influências dos novos meios e instrumentos tecnológicos, tanto de sedução para concertos e acordos políticos, como de verificação e disseminação de conflitos políticos, embora tudo isso corresse em tempos mais lentos. As técnicas mais adequadas à propagação de produtos para o mercado (como publicidade) predominavam nesta primeira etapa, embora já difundindo informações para semear novos sentidos para a política, numa sociedade com suas classes tradicionais em diluição.

As informações de interesse público ou simplesmente importantes (em diferentes formatos) eram selecionadas pelos grupos empresariais de comunicação locais e nacionais e disputadas, no seu enquadramento, com os partidos políticos, sindicatos, grupos de “interesse” – grupos de pressão de diversas origens – que compunham, à época, sistemas de relacionamento com fontes visíveis de poder para tentar, com seus movimentos rebeldes ou conservadores, mudar a ordem, melhorá-la ou conservá-la, de acordo com seus interesses imediatos.

Pode ser dito que a disputa, neste momento, era principalmente – ainda que anterior às revoluções tecnológicas em curso – determinada pela verticalidade do poder concentrado e que hoje se dá principalmente pela horizontalidade do poder repartido. No atual ciclo de relação das tecnologias informacionais com a política e com a cultura, todavia, há uma nova concentração de poder: externa à nação, ao Estado-nação, ao município e ao território.

Esta concentração de poder também é verticalizada, contudo movida pelos fluxos em rede, com mensagens na velocidade da luz. A sua transferência de mensagens e dados tem também mais precisão, na sua difusão espacial, não só no que refere à parte que penetra na estrutura de classes que ela quer alcançar, como também no que toca aos lugares do território soberano, que as mensagens querem influenciar.

De outra parte, esta transferência de informações planejadas por estes novos centros de poder, só é passível de ser controlada por estes, até o momento da sua dispersão pelas redes sociais, nas quais o poder de transferir e comunicar se socializa. Ali estão organizados os grupos de ação que dominam tecnologias mais fáceis de serem comandadas, embora muito mais complexas para serem produzidas.

Hoje a disputa pela hegemonia no mundo integrado pela circulação do capital financeiro “legal ou ilegal”, passa, portanto por outros caminhos e ocorre internamente ao Estado, como parcerias público-privadas e pactos de privatização de seus serviços essenciais, que integram – cada vez mais – os grandes conglomerados privados globais nos mandos diretos do poder de Estado.

Estes, que passam a prestar serviços públicos essenciais com um monopólio de fácil lucratividade e direcionado para clientelas cativas, instauram – então – nas instituições sua força imperial. E externamente ao Estado, a disputa pela hegemonia passa igualmente pelos processos eleitorais e pelas mobilizações da sociedade civil, através das alianças políticas para atacar ou defender o Estado social e a democracia.

A relação política reformista e democrática com o Estado, com as redes sociais dispersas e com uma intersecção planejada e centralizada de ações políticas digitais, são os novos espaços de disputa que os partidos, governos sociais-democratas e democrático-republicanos, devem ter como prioridade na disputa pela hegemonia. É preciso considerar que este trabalho, para as classes dominantes e facções neoliberais, é feito pela imprensa tradicional e comercial, de maneira “voluntária” (ou paga), mais (ou menos) espontânea, em favor dos seus interesses privatizantes de natureza selvagem.

Os grupos empresariais e os Estados dos países dominantes, vinculados ao novo sistema-mundo da globalização, também em crise de hegemonia, olham este processo com objetivos claros, simplesmente considerando-os como renovação da abertura de uma nova fronteira de acumulação de capital e também de acumulação de força política.

A primeira, para prepararem-se para as guerras inevitáveis, a segunda, para apoiarem os regimes democráticos apenas nos limites dos seus interesses de acumulação.

Os seus pactos políticos de composição de alianças e os seus contratos financeiros de publicidade refletem, abertamente, a aglutinação sistêmica e a força que têm os líderes partidários “das classes altas” – com ou sem partido – que fazem de cada momento de privatização dos serviços públicos um degrau mais avançado de domínio do poder político. Tal conduta dissolve – lenta e seguramente – as fronteiras do público e do privado, asfixiando a democracia eleitoral com o uso da força destes poderes “de fato”.

Esta interação permite fazer, não só a conversão do Estado social em uma estrutura privada de caráter monopolista para prestar serviços essenciais a alto custo, mas também um processo de intervenção permanente nos processos eleitorais, com a proliferação de privatizações selvagens, leniência acrítica com os governos ímprobos e com os cuidados do ambiente natural, bem como na prevenção de catástrofes, gerando dinheiro vivo – com as privatizações – que servem de oxigênio financeiro para as suas alianças contra as formas consagradas do Estado social de direito.

Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).

 

Pessoa em situação de mendigo, por Antonio Prata

0

Qualquer corrupção linguística para maquiar sua condição serve só para amenizar nossa culpa

Antonio Prata, Escritor e roteirista, autor de “Por quem as panelas batem”

Folha de São Paulo, 04/05/2025

Tenho ódio sempre que ouço essa aberração do politicamente correto: “Pessoa em situação de rua”. Primeiro porque não existe, em nosso idioma, ninguém “em situação” de nada. Nunca estive ou conheci alguém “em situação de gripe”. Lá pelo meio-dia não estou “em situação de fome” e depois da meia-noite nunca me descreveria “em situação de sono”. Não sei de onde importaram essa frase horrível, só sei que ela não foi bem adaptada à nossa “situação de língua”.

Não é a “situação de aberração”, porém, que me revolta mais ao falarmos “pessoa em situação de rua”. É a mentira que a frase, em sua deliberada assepsia semântica, tenta passar. É como se o sujeito que tá dormindo na calçada, em cima de uma caixa de papelão aberta, coberto com aquela manta de proteger móvel em mudança, com uma garrafa (vazia) de cachaça ao lado, sem tomar banho há semanas, sem laços sociais, familiares, talvez viciado em crack, enfim, é como se essa pessoa ferrada estivesse numa “situação” momentânea que logo, logo, vai ser resolvida. Tipo: o cara perdeu o último ônibus pro seu bairro, ficou em “situação de rua”, mas amanhã pegará o busão e estará “em situação de casa”.

Mendigo é o nome dessa pessoa. Mendigo não é alguém que simplesmente não tem casa. Não tá em “situação de rua” e nem é “sem teto”. É sem tudo. É o fundo do fundo do alçapão no fundo do alçapão do poço. Qualquer corrupção linguística para maquiar sua condição serve só para amenizar nossa culpa. É calhorda. É covarde. Em vez de tentar salvar a pessoa da degradação total, fingimos que ela não está assim tão mal. “Só uma situação”.

Fingir é uma grande habilidade nossa, brasileira. Difícil viver e ser são neste país sem fingir barbaramente um monte de coisa. Finge que o cara tá “em situação de rua”. Finge que não vê os miseráveis nos faróis de trânsito. Finge que não vê o mar de favelas sob o Rodoanel. Finge que não teve tentativa de golpe. Finge que é normal o “o orçamento secreto”.  Finge que a CBF tem algum interesse na melhoria do futebol brasileiro. Pensando bem, não é só um fenômeno brasileiro. O mundo finge que não tá acabando.

Tudo isso pra chegar na grande mágica, no grande fingimento, não só semântico, mas concreto, urbano, proposto pelo vice da prefeitura: trocar mendigos por carros embaixo do Minhocão. Tirar “pessoas em situação de rua” e colocar “carros em situação de estacionamento”.

Se a gambiarra semântica da esquerda parece bizarra, por “amaciar” a existência dos mendigos, o que a direita propõe agora em São Paulo vai muito além. É a metonímia feita ação. É a falta de vergonha: “vamos sumir com esses pobres!”. Vai ter matéria mostrando como a área do Minhocão ficou mais bonita. Mais segura. Vai gerar renda. Não tenho a menor dúvida. Varrer a miséria pra longe sempre melhora o perto. Eu, se morasse ali, não seria hipócrita. Adoraria a medida. A questão é que esses pobres existem. Continuarão na rua, em outra rua. Na frente da casa de outra pessoa. E continuarão sem casa, sem trabalho, sem banho, sem porra nenhuma, “em situação de mendigo”, em algum lugar.

 

O dilema dos bancos centrais após as tarifas, por Ana Paula Vescovi

0

Autoridades monetárias enfrentam desafio histórico, sem registro em mais de meio século

Ana Paulo Vescovi, Economista-chefe do Santander Brasil

Folha de São Paulo, 04/05/2025

Estamos testemunhando uma transformação no comércio internacional, na geopolítica e na tecnologia. A expressão “mudança de regime” tem sido muito frequente nos últimos dias. A crença predominante é que estamos diante de uma ruptura nas relações produtivas e políticas que reconfigurarão a economia global nos próximos anos.

A ausência de clareza nunca foi tão alta. O Índice de Incerteza da Política Econômica nos EUA, medido por Baker, Bloom & Davis, atingiu seu ponto mais alto desde 1985, superando em quase 100% o recorde anterior, da pandemia da Covid-19. Esse cenário de imprevisibilidade contaminou o mundo, elevando o Índice Global de Incerteza da Política Econômica de volta ao pico observado na crise sanitária.

Anualmente, na primavera do hemisfério Norte, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial realizam reuniões em Washington (EUA), para discutir a economia global e seus impactos regionais. Paralelamente, ocorrem encontros com gestores públicos, como ministros da Fazenda, secretários do Tesouro e diretores de bancos centrais. Neste ano, a mudança de gestão nos EUA, com a política tarifária do governo, foi o tema central.

O “tarifaço de Trump” é inédito: 10% no geral; 25% em alguns setores; e medidas tarifárias recíprocas “individualizadas”, elevadas em razão do tamanho do déficit comercial dos EUA com outros países. A China, com retaliação, enfrenta alíquotas superiores a 100%. As tarifas médias sairiam de cerca de 2,5%, no final do ano passado, para mais de 20%.

A maioria aposta em um cenário nos EUA de estagflação, quando há baixo crescimento com inflação elevada, devido ao choque de oferta causado pelo aumento das tarifas; e uma desaceleração mais acentuada na China, que enfrenta um choque de demanda.

Segundo o presidente do Federal Reserve (Fed, o banco central dos EUA), Jerome Powell, a política de tarifas é algo nunca visto na história moderna, o que leva a interpretar que o Fed navega em águas desconhecidas. Com taxas de importação elevadas e alta incerteza, o risco é o de crescimento fraco, desemprego alto e inflação acelerada. Recentemente, houve um descolamento entre expectativas de inflação, crescentes, e projeções de crescimento, que indicam desaceleração. Se a desaceleração for brusca, o Fed priorizará seu mandato em relação ao crescimento e poderá reduzir taxas de juros no segundo semestre. Ademais, analistas esperam uma política monetária mais cautelosa e reativa, o que poderá mudar o patamar da inflação nos EUA.

No Brasil, os membros do Copom têm sido cautelosos. Qual será o impacto das tarifas? Haverá recessão ou desaceleração suave? O choque de oferta afetará a inflação?

O Banco Central brasileiro está comprometido com a meta de inflação de 3%, ainda que em um horizonte mais longo. É possível esperar uma “desinflação oportunística” se a desaceleração global, especialmente na China, abrir capacidade ociosa na economia brasileira, ajudando a controlar a inflação por aqui.

Contudo, as medidas fiscais e parafiscais expansionistas anunciadas pelo governo desafiam o Banco Central. Com expectativas de inflação desancoradas e crescentes para o próximo ano, acreditamos que haverá mais uma alta da Selic na próxima semana, antes da pausa em junho. Se a desaceleração global e local se confirmar, o ciclo de corte de juros no Brasil poderá começar ainda neste ano, mais lentamente, considerando dois cortes nos EUA no segundo semestre.

Entretanto, os bancos centrais não podem resolver tudo. Trata-se de um ambiente no qual as instituições edificadas desde o pós-Segunda Guerra Mundial tornam-se mais frágeis.

Se a guerra comercial ganhar contornos mais suaves, com acordos bilaterais de comércio com Índia, Japão, China, União Europeia e Canadá e México (USMCA), as tarifas globais poderão ser mais altas que o padrão anterior, mas mais baixas que as anunciadas no “Liberation Day” — definição dada por Trump ao dia 2 de abril de 2025, quando anunciou as novas alíquotas tarifárias. Isso reduziria os impactos disruptivos nos mercados e na economia real. Caso contrário, as políticas econômicas globais precisarão se reposicionar rapidamente, devido a um possível forte rebalanceamento do fluxo de capitais entre as regiões do planeta.

Há uma quebra de confiança que levará países e regiões a buscar maior autonomia em energia, terras-raras, tecnologia (semicondutores), defesa militar e até em temas sanitários, como medicamentos e equipamentos hospitalares. Essa busca por autonomia tende a estar associada a conflitos geopolíticos.

As rupturas nas cadeias produtivas durante a pandemia deixaram um gosto amargo. Subsídios a setores estratégicos e tarifas irão reconfigurar as cadeias produtivas globais. A Europa já mudou sua abordagem, reforçada pelo estímulo fiscal trilionário anunciado pela Alemanha. A China irá endurecer sua postura comercial e militar e buscar refazer suas alianças, inclusive no Oriente Médio.

Os bancos centrais terão de lidar com temas nunca tratados nos manuais de economia. A quebra de regime tão comentada implica dizer que os incentivos econômicos não mais ditarão as relações comerciais entre as nações, e sim a estratégia de domínio de cadeias produtivas e de tecnologias estratégicas. Antever os possíveis impactos da inteligência artificial generativa sobre a produtividade global ainda se coloca como um desafio.

Em tempos tão incertos, a melhor reação para a política monetária passa por estratégia de reação transparente ao risco inflacionário, gradualismo e moderação.

 

O cérebro ideológico, por Hélio Schwartsman

0

Livro de neurocientista política mostra que indivíduos capturados por ideologias passam por transformações neurológicas.

Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”

Folha de São Paulo, 04/05/2025

Uma boa pedida para quem quer entender melhor os tempos estranhos em que vivemos é “The Ideological Brain”, da neurocientista política Leor Zmigrod.

Gostamos de imaginar que aqueles que abraçam ideologias com as quais não concordamos são pessoas rasas, que nem se dão ao trabalho de pensar direito sobre as questões em relação às quais se posicionam. Zmigrod mostra que não é bem assim.

Na mais simples de suas muitas definições, a ideologia é um tipo de narrativa que conta uma história atraente sobre o mundo. Mas, diferentemente das histórias produzidas pela cultura, as da ideologia têm caráter absolutista e cobram adesão dogmática. Não toleram contestação e vêm com prescrições. Quem se torna presa de uma ideologia passa por transformações cerebrais profundas, que deixam marcas físicas. Em casos extremos, a ideologia sequestra o próprio pensamento. A pessoa se torna menos singular, menos curiosa, menos livre.

“The Ideological…” não é um livro difícil, mas não simplifica. As inafastáveis descrições neuroanatômicas estão presentes, mas restritas a poucas passagens. Idem para os vários experimentos (da própria autora e de outros) que tentam mostrar quais são os tipos psicológicos mais vulneráveis à ideologia. A rigidez cognitiva é provavelmente o melhor preditor de suscetibilidade.

Histórica e filosoficamente informada (graduou-se em Cambridge), Zmigrod traça a genealogia do termo ideologia, cunhado por Louis Claude de Tracy no século 18 para designar o que deveria ser a ciência que estuda como temos ideias.

Uma desavença entre De Tracy e Napoleão fez com que, após campanha do corso, a palavra fosse ganhando contornos pejorativos até tornar-se quase que um palavrão com Karl Marx.

Algo que chama a atenção é a transparência com que Zmigrod apresenta as limitações e os pontos fracos de suas pesquisas. Se é o antidogmatismo que caracteriza o pensamento não ideológico, Zmigrod nos oferece uma prova prática de como agir.

 

O socialismo e a excepcionalidade chinesa, por Elias Jabbour

0

 Elias Jabbour – A Terra é Redonda – 02/05/2025

Chegou a momento de discutir a excepcionalidade chinesa enquanto um socialismo com as características daquela formação histórica que está impondo vitórias sucessivas ao seu próprio povo e derrotas ao imperialismo

O sério e respeitável intelectual e militante Valerio Arcary nos entregou recentemente sua análise particular do processo em curso na China. O texto chamado de “A excepcionalidade chinesa”, publicado no site A Terra é Redonda é mais uma prova da vasta cultura política e histórica de Valerio. Na verdade, ele não trata de uma única excepcionalidade chinesa, mas de algumas – sendo que a linha de cada uma das excepcionalidades leve à constatação de o país ter restaurado o capitalismo, amiúde não ter transformado o regime político; o que em si já instigaria um estudo.

O núcleo do argumento de Valerio Arcary é muito claro e vai na direção dos riscos da esquerda mundial em abraçar um novo campismo em torno da China. Vamos aqui trocar ideias sobre alguns pontos levantados no texto de forma não de criticar os pressupostos do escrito, mas no sentido de demonstrar que o desenrolar da experiência chinesa nos demanda não somente uma completa reformulação da gramática política sobre as experiências socialistas.

Devemos rediscutir o próprio socialismo diante dos inegáveis avanços à classe trabalhadora chinesa de um projeto que, antes de mais nada, advoga o socialismo. E não outro “ismo” como nos lembra Xi Jinping.

O verdadeiro “campismo”

De imediato não acredito neste risco. Valerio Arcary fala em “o melhor da esquerda mundial” e os riscos dela se alinhar aos chineses. Em primeiro lugar, o que seria esta esquerda mundial? Se for a esquerda baseada em um marxismo que não se livrou da Europa e que hoje é hegemônica em todo o mundo onde PCs não ocupam o poder político, o risco do campismo não existe. Esta esquerda rejeita as experiências socialistas e observam a China com a mesma cosmovisão que os europeus enxergam os negros, índios, latinos etc.

O que deverá ocorrer, e já ocorre, é a crescente simpatia, de forças nacionalistas revolucionárias que hoje pipocam na África e desalojam governos pró-imperialistas, pela experiência chinesa. São bandeiras chinesas que as pessoas empunham no Níger, Burkina-Faso e alhures como inspiração às suas lutas. Neste sentido, o melhor da esquerda mundial não está no Brasil, na Europa e nos EUA e sim na África onde essa esquerda que enfrenta e derrota o imperialismo francês não é financiada por fundações e/ou ONGs de partidos socialdemocratas europeus como vemos no Brasil e na América Latina operando uma tragédia política de grandes proporções.

Logo, o campismo é entre a esquerda “Open Society” e as forças políticas que integraram o marxismo às suas realidades nacionais. Assim ao africanizar o marxismo, forças políticas que operam no campo oposto da “Open Society” nos entrega esperança, não o niilismo da esquerda no ocidente e sua franja.

A China aí é força política com amplo e decisivo papel positivo no fortalecimento da consciência nacional e revolucionária da periferia africana e asiática do sistema. Suas relações “Sul-Sul” via Iniciativa Cinturão e Rota demonstram com clareza as diferenças entre a globalização financeira que “africanizou a África” e as tendências que o desenvolvimento chinês entrega aos povos do mundo.

Equívocos básicos

Valerio Arcary comete equívocos básicos em seu texto. Por exemplo, Deng Xiaoping não foi preso e torturado na Revolução Cultural, nem tampouco existe uma formulação oficial do governo chinês de uma “NEP de longa duração”, “transição ao capitalismo” e em seguida “um novo giro histórico e reiniciar a passagem ao socialismo.

A formulação oficial é simples objetiva: a China encontra-se na etapa primária do socialismo, etapa esta caracterizada pela convivência de diversas formas de propriedade sob a dominância da propriedade pública. Outro equívoco básico é a colocar acento no “modelo econômico que aprofunda a desigualdade social por uma etapa indefinida não pode ser considerada socialista”.

Aliás, concordo com Valerio Arcary nisso, mas os dados dizem o contrário. Uma pesquisa rápida e fácil nos demonstrará a que as desigualdades sociais e territoriais na China está em curva descendente há pelo menos 20 anos e que esta mesma burguesia que, segundo ele, se favorece de uma ilimitada acumulação de capital tem visto seu patrimônio cair em um terço nos últimos cinco anos, fruto de uma operação em que a contabilidade da firma se submete cada vez mais à contabilidade social. Aqui vou dispensar as fontes, apenas sugerindo pesquisar cada afirmação que exponho aqui.

Valerio Arcary não demonstra conhecimento das políticas executadas pela governança chinesa voltadas ao controle da expansão do capital privado, o verdadeiro enquadramento de sua burguesia a uma ordem política que se tem demonstrado cada vez mais hostil a ela e a inexistência de elementos de contabilidade da firma nas decisões de investimentos estratégicos: o capitalismo é incapaz, em qualquer momento histórico, de entregar 45000 km de trens de alta velocidade em apenas vinte anos.

Outro ponto, que não se trata de um equívoco em si, é o fato de no texto não existir nenhum dado que demonstre de fato que houve uma restauração capitalista na China. Valerio Arcary se contradiz ao propor um estudo capaz de entender a tal da “contrarrevolução social” (sic) sem mudança de regime. Qual o regime anterior a 1978? Não podemos tratar, também, como equívoco a sua alusão ao “massacre” da Praça Tiananmen de 1989. Guarda certa ingenuidade não perceber ou mesmo não se dar ao trabalho de ler os relatórios liberados pela CIA sobre aqueles acontecimentos.

O mesmo pode se dizer sobre a comparação entre Deng Xiaoping e Mikhail Gorbachev. São figuras históricas e políticas antagônicas, inclusive na gramática política chinesa o homem que destruiu a URSS é tratado como um traidor e idiota (adjetivo usado por Deng Xiaoping). As reformas econômicas chinesas nada tem a ver com a Perestroika e a Glasnost. A primeira legitimou um Estado Socialista e as outras duas foram funcionais à destruição da primeira experiência socialista de nossa época.

A “burocracia”

Um dos problemas que identifico nas formulações da corrente política a qual se afilia o professor Valerio Arcary é um certo universalismo de noções pari passu a um envelhecimento das mesmas. Por exemplo, o que não se encaixa em um check-list pode ser considerada “restauração capitalista”. O mesmo se aplica ao conceito amplamente utilizado, e de forma muito séria e competente por León Trótsky, de “burocracia”.

É inescapável em trabalhos de trotskistas o refúgio nessas noções. Aqui eu sugiro substituir o universalismo (um desvio claramente liberal) pela categoria de formação econômico-social. O que significa que a burocracia descrita por León Tróstky, herdeira do czarismo, pouco tem a ver com a burocracia herdeira do modo de produção asiático.

Evidente que a tendência da burocratização é o aburguesamento e digo mais, à corrupção. Esse fenômeno também ocorre na China e é inegável. Não proponho passar por cima desta contradição, que não se tornou uma “contradição antagônica” na China, mas observar que essa burocracia simplesmente realiza: retirou 800 milhões de pessoas da linha da pobreza em 40 anos, construiu 45000 km de trens de alta velocidade em 20 anos, construiu uma imensa economia baseada no setor público capaz de rivalizar a colocar de joelhos o capitalismo estadunidense.

E entrega aumentos salariais nos últimos dez anos acima da inflação, do crescimento do PIB e da produtividade do trabalho, enquadra e coloca limites na burguesia, expropria seus bens e delibera pela distribuição ao povo, constrói um sistema de assembleias populares e de comitês de bairros que foram fundamentais na mobilização de quatro milhões de profissionais da saúde voluntários para enfrentar a morte em Wuhan, planeja a destruição criativa schumpeteriana a ponto de deslocar 200 milhões de chineses do campo às cidades em dez anos sem o risco de favelização etc. etc. etc.

Esta burocracia é herdeira da casta de burocratas que exerciam a administração estatal desde antes de Cristo ocupada com o gerenciamento e execução de imensas obras públicas. A perda de capacidade desta burocracia em entregar grandes obras levava massas camponesas influenciadas por Laotsé a derrubar dinastias.

Ao invés de enveredar a discussões abstratas sobre o “substitucionismo social” seria mais interessante entender a dialética entre o papel histórico do camponês chinês, sua capacidade de pressão sobre a burocracia e as razões de a China não ter sucumbido à contrarrevolução de 1989: os camponeses estavam com o socialismo e não ladeando com um levante pró-imperialista. Hoje esses camponeses são trabalhadores urbanos responsáveis por rebeliões de diversa ordem, colocando contra a parede os herdeiros de Mao Zedong.

Não se entende a China sem conhecer profundamente sua história. O que significa que se é atual a velha máxima do “mandato dos céus ser revogável pelo povo”, não é difícil concluir, conhecendo as minúcias de como aquela sociedade funciona, e a história dessas minúcias, que se trata de um país onde ceder a frágeis noções de “país fechado” e “autoritarismo” para descrever um país e sociedade onde o niilismo não comparece e onde se respira futuro.

“Defesa incondicional de realizações”?

Em 1949 a expectativa de vida dos chineses era de 35 anos. Hoje ultrapassou os EUA. As mulheres estavam submetidas ao processo de enfaixar seus pés de forma a criar uma sinistra forma artística para agradar os homens e hoje ocupam postos de destaque em todos os âmbitos da sociedade. O Tibet era uma semicolônia inglesa submetida por uma teocracia escravista e hoje seu padrão de vida melhora de forma mais rápida que as verificadas em outras regiões do país. A China derrotou o imperialismo em sua guerra civil e na Guerra da Coreia e hoje a derrota novamente no campo comercial e tecnológico.

Os avanços sociais incontestes aprofundados desde 1978, não reduzindo à eliminação da pobreza extrema, mas também a possibilidade de um camponês pobre ser submetido a intervenções cirúrgicas complexas e gratuitas há milhares de km de distâncias por um médico mediado por esquemas de inteligência artificial deveria por si ser um desmentido ao despautério de apontar na China uma “contrarrevolução social” quando ocorre simplesmente o oposto e sua realização não se separa do poder político erigido por uma longa luta revolucionária.

Nenhum cidadão chinês minimamente informado concordaria com uma afirmação tão irreal quanto absurda vendo camponeses pobres se transformando em cientistas e uma vibrante democracia de base enviar mais de 3000 emendas às resoluções da última Assembleia Popular Nacional. A decadência da ciência social ocidental, que atinge duramente o marxismo, não está no não reconhecimento dos feitos da revolução chinesa e sim na elaboração de noções sem nenhuma conexão com aquela realidade e a igualando com completa miséria extrema que assola um país, esse sim, de capitalismo dinâmico como a Índia. É o fundo do poço.

Reconhecer os feitos das revoluções socialistas é um ato de humanismo em um mundo onde a miséria, a fome e a guerra se tornam a regra. É negar a tendência ao ceticismo e ao niilismo e uma quase adesão ao racismo; pois é de racismo que se trata quando lemos os veredictos de intelectuais sem nenhum compromisso com o poder político e influenciado pela decadência do marxismo ocidental. Não é o caso de Valerio Arcary, evidente. A humanidade pode vencer e qualquer indicador social chinês nos demonstra isso.

Seria “campismo” o reconhecimento desses feitos? Não. Seria demonstração de fé no futuro. Isso não significa fechar os olhos para as imensas contradições que afetam a sociedade chinesa. A corrupção, a luxuria, a existência (cada vez menor) de bilionários e milionários, crise ambiental, fosso social formado por imensos equívocos de políticas executadas na segunda fase de reformas.

Tudo isso está apontado em meus livros e artigos sobre a China. Mas só se cria contradições onde o Partido Comunista se propõe a ser motor do desenvolvimento. Nada do que ocorreu após 1978 foi planejado milimetricamente. Não, o que veio foi um gigantesco processo de desenvolvimento e suas contradições proporcionais a este processo, além do altíssimo preço deste desenvolvimento.

A “prova do pudim” de um Partido Comunista no poder está no exercício absoluto de seu poder sobre todas as esferas da produção, da finança e impor à burguesia o seu ritmo e objetivos. Afora isso, este teste também se estende à demonstração de capacidade de o Partido Comunista em perceber a contradição e indicar rumos à sua superação.

Desafio alguém me mostrar que o Partido Comunista da China não enfrenta, e está vencendo e apontando rumos, a todas as contradições criadas pelo seu processo de desenvolvimento.

Discutindo o socialismo em nossa época como adultos

A experiência chinesa, imersa tanto em contradições quanto em ferramentas políticas e institucionais para enfrentar suas contradições, deveria nos obrigar não a temer um “campismo” ou nos refugiar em noções criadas na década de 1930 para compreender os limites da URSS sob a ótica de uma corrente política derrotada e sem nenhuma experiência pratica de poder político desde 1917. Deveríamos os render a mais abstrações (visão de processo histórico) e menos prisões no abstrato (visão ideológica e imersa em apriorismos).

Chegou a momento de discutir a excepcionalidade chinesa enquanto um socialismo com as características daquela formação histórica que está impondo vitórias sucessivas ao seu próprio povo e derrotas ao imperialismo vistas somente na 2ª Guerra Mundial.

É preciso encarar o objeto e penetrar nele; descobrir as suas regularidades e coerência interna. Observar como adultos seria colocar todas as contradições daquele processo em perspectiva de movimento real da mesma forma como observamos seus encaminhamentos resultando em um país estranhamente capitalista que nunca passou por uma crise. As estruturas de propriedade baseadas na propriedade pública e crescente participação de conselhos de trabalhadores em decisões de investimento, o amplo controle do Partido Comunista sobre o setor privado.

É descobrir como após 75 anos de poder político exercido no então país mais pobre do mundo, hoje observamos essa forma histórica encaminhando soluções tanto às três questões centrais de nossa época: o desenvolvimento, a paz e a crise climática. É inescapável não colocar, repetindo, que a base dessas realizações é o próprio poder político que se propõe a revolucionar a sua sociedade em saltos qualitativos e fazendo com que a ciência penetre nos poros de seu tecido social.

No detalhe, é ir fundo na investigação de como aquela experiência consegue dar início, meio e fim a todos os projetos as quais ela se propõe. Aqui, percebemos que a ciência do projetamento criada por Ignacio Rangel se realiza na China sob diversas formas. Por exemplo, o sucesso de um grande projeto depende da equalização das estruturas de custo e benefício de todas as cadeias produtivas envolvidas, por exemplo, no projeto de erradicação da pobreza.

A prática de construção de mais de cem anos de socialismo no mundo nos coloca a evidência empírica de que somente o socialismo é capaz de operar essa equalização e que a mesmo sob o capitalismo hoje é impossível e quando foi possível (consenso keynesiano) ocorreu às custas de desperdício imenso de recursos.

O socialismo ainda está no início de sua trajetória histórica, portanto com regularidades ainda em construção. Em nossa época, a experiência chinesa pode nos entregar uma definição de socialismo que a relaciona com a transformação de ciência em instrumento de governo.

Penetrando à fundo na experiência, percebemos que o “socialismo com características chinesas” se distingue dos estados desenvolvimentistas, além da natureza do poder político e da estrutura de propriedade, pelo fato de dar forma a um Estado Socialista que absorve a natureza do Estado Desenvolvimentista e a supera de forma que se demonstre capaz de introduzir contradição no seio do organismo econômico, gerando movimento e corrida da sociedade empenhada no exercício de observar “just in time” a matriz insumo-produto e entregar as soluções institucionais para promover a transferência intersetorial de recursos.

Está aí a excepcionalidade chinesa. O contrário seria admitirmos que o capitalismo – dados os feitos da experiência chinesa – tem um ainda largo caminho civilizatório pela frente. Precisamos sair do jardim da infância que ainda domina o debate sobre o socialismo.

Elias Jabbour é professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ. Autor, entre outros livros, junto com Alberto Gabriele, de China: o socialismo do século XXI (Boitempo) 

A corrosão da cultura acadêmica, por Márcio Luiz Miotto

0

Márcio Luiz Miotto – A Terra é Redonda – 01/05/2025

A universidade brasileira está sendo afetada pela ausência, cada vez mais notável, de uma cultura leitora e acadêmica

É notório que a universidade brasileira sofre diversos ataques externos. Mas há algo ocorrendo dentro dela e que talvez ofereça outros perigos para sua própria existência. Trata-se da ausência, cada vez mais notável, de uma cultura leitora e acadêmica.

A falta de cultura leitora diz respeito à notável repulsa (sistemática? crescente?) de muitos universitários em enfrentar os textos, argumentos, deduções de fórmula, memorizações de observação (enfim: desafios, lógicas internas, problemas inerentes aos conteúdos que estudam), fazendo com que o “ensino superior” se transforme numa série de conteúdos e programas rasos, cabíveis em manuais simplificados e plataformas facilmente voltadas ao online.

Essas generalizadas faltas de base e/ou negligência, que provavelmente têm origem fora da universidade (via redes sociais, o “horror ao textão” cultivado nos últimos anos, a pandemia, os problemas de formação etc.), sob certos aspectos tornam-se interiores a ela, pois com frequência as universidades encontram dificuldades para combater certo senso comum não-leitor e atitudes refratárias ao estudo. Na universidade dever-se-ia aprender a ler textos, linguagens e argumentos complexos, a deduzir fórmulas, a (re)construir lógicas e arquiteturas conceituais etc.

Disso advém a corrosão da cultura acadêmica. Sem um senso comum leitor de base ou certa disposição espontânea para uma cultura leitora, as demais práticas constituintes da universidade tendem a esfarelar ou implodir. E a universidade tende a se transformar, ou na melhor das hipóteses a se confundir com outros tipos de ensino não necessariamente universitários, tais como o técnico, o profissionalizante etc.

O resultado visível da erosão da cultura acadêmica é o enfraquecimento da pesquisa, da extensão, da assistência estudantil (a qual permitiria dedicação maior aos afazeres universitários), dos projetos acadêmicos ligados ao ensino (monitorias que deveriam ser iniciações à docência e não meras aulas de reforço, redução das pesquisas monográficas, rarefação dos eventos científicos ou de bolsas de atividades acadêmicas etc.), enfim, daquilo que compõe a universidade no que ela tem de público e universalista.

Essas ameaças à cultura acadêmica talvez sejam reforçadas por algumas reações das próprias universidades a isso. Um exemplo notável é a perspectiva que reduz a pedagogia ao pedagogo, isto é, que individualiza o ensino na simples figura do professor, fazendo dele uma espécie de self made man, de “empresário de si”, enfim, transformando-o em algo como um animador de plateia, alguém cujas estratégias devem necessária e suficientemente garantir a educação (pois a pedagogia, enfim, reduziu-se ao pedagogo).

Se não há um cenário de fundo delimitando o que significa estudar e quais deveriam ser os horizontes de estudo, ou mesmo se esse cenário perdeu seu valor, ao fim resta à figura individual do professor a ingrata tarefa de transformar a pedagogia em picadeiro (sob cenários que, aliás, também são pressionados pelo tema da evasão das universidades). A partir daí, as fórmulas de sucesso e insucesso docente tendem a se resumir em receituários pessoais, convicções de ego, perfis e canais de rede social e expressões do tipo “é, mas comigo (não) é assim”.

A redução da pedagogia ao pedagogo ocorre devido ao apagamento de uma cultura de fundo, aquela que serviria de base para formar eventuais projetos pedagógicos e reunir atuações individuais. E essa redução, bem como esse apagamento, são especialmente vistos nas disciplinas de ciências humanas.

Nas ciências naturais, por exemplo, há debates recorrentes entre aqueles professores que não abrem mão da forma e do rigor (pois afinal, uma fórmula independe de circunstância) e os outros que defendem que o rigor não poderia ser destituído de preocupações pedagógicas ligadas aos perfis dos alunos. Seja qual for o desfecho, ambos os termos desses debates dizem respeito (ou deveriam dizer) a critérios pedagógicos de fundo, os quais presumivelmente servem de horizonte à atuação de qualquer profissional da área, independente de suas escolhas pedagógicas individuais.

Afinal, quer se penda para um ou para o outro lado desse debate, algo permanece o mesmo: um estudante que se depara com uma matéria de ciências exatas sabe que ali haverá questões direta ou indiretamente ligadas a cálculos, experimentos etc., cabendo à pedagogia a pergunta sobre como oferecer melhor essas racionalidades.

Algo correlato poderia ser visto nas matérias de ciências biológicas: a não ser que o professor ludibrie o aluno, independente do cenário uma matéria como a de anatomia, para ser razoavelmente ensinada, sempre exigirá uma racionalidade analítica detalhada, baseada em métodos de observação e certos rituais de análise e memorização. Sem o que, caberia imaginar um oftalmologista que desconhece a anatomia do olho, um neurocientista que desconhece as localizações cerebrais, um fisioterapeuta que desconhece a anatomia do corpo etc.

Em humanidades, entretanto, o apagamento de um horizonte leitor e acadêmico de fundo, e a redução da pedagogia ao pedagogo, por vezes são ainda mais visíveis, dando vazão a práticas – e juízos – bem diversos. É o que alimenta preconceitos como o de que os cursos de humanas seriam sem objetividade, eivados de meras opiniões (“cursos-coxa”, como se diz em algumas gírias paulistas), ou ainda desnecessários ou supérfluos.

Ou em via contrária, há também os juízos de que matérias de humanidades seriam atraentes não devido ao rigor ou ao conteúdo, mas a motivadores ocasionais e arbitrários como as discussões em grupo, os momentos de “descontração” ou o carisma individual do professor, a emulação de memes, a confusão entre a divulgação científica (tão bem feita por gente como Leandro Karnal ou Mario Cortella, dentre outros) e o estudo da ciência etc.

Essa individualização das estratégias, unida ao apagamento da cultura do texto, é muito bem descrita por textos como O método da leitura estrutural, de Ronaldo Macedo (MACEDO, 2007). A simples necessidade de que métodos de leitura sejam ensinados aos ingressantes do estudo superior evidencia que a leitura já não é um item óbvio e natural (como o era na época das fotocópias – pois mesmo se as pessoas apenas fotocopiassem, isso não disfarçava que havia uma injunção materialmente dirigida à leitura generalizada…), e o esforço dos professores para que os alunos leiam significa, mais uma vez, a simples inexistência de uma cultura difundidamente leitora.

Mas há mais: Ronaldo Macedo demonstra em seu texto algumas pesquisas nas quais o Brasil teria ficado entre os últimos lugares no quesito “leitura” (MACEDO, 2007, p. 14). Motivos? Não se trata de sustentar o velho preconceito da diferença entre as escolas “ricas” versus as “pobres”, pois Macedo destaca que os mesmos prejuízos ocorreriam em ambas. Trata-se, sim, de mostrar que quando o brasileiro estuda, e mesmo nas ditas “melhores” escolas, ele não estuda para compreender e articular a lógica de um texto, e sim para resolver questões demandadas por testes (isso quando, pelo contrário, não se abandona à simples opinologia).

Em miúdos: muitos brasileiros lêem textos (quando lêem) de forma apenas provocada e dirigida, isto é, de modo heterônomo e orientado por terceiros, como se respondessem a questões de teste, e isso em áreas nas quais escolheram estudar. Isso não à toa lembra as críticas de Richard Feynman ao ensino de física brasileiro dos anos 1950, nas quais “os estudantes haviam memorizado tudo, mas desconheciam o significado” de suas matérias (FEYNMAN, 2017).

Diante disso, para além do apagamento da cultura do texto e da redução das iniciativas a estratégias pedagógicas individuais, talvez não seja inútil lembrar que as ciências humanas, todas elas, também possuem uma cultura de fundo. Bastaria, para detectar essa cultura, retornar ao século XIX e à querela dos métodos dos alemães – a mesma que instaurou a psicologia científica (como a de Wilhelm Wundt), os debates sobre explicação versus compreensão desde Wilhelm Dilthey, as abordagens explicativas e compreensivas em sociologia, as contra-reações positivistas e assim por diante. Desde seu surgimento, seja subordinando-se às ciências naturais, seja – pelo contrário – apelando à sua irredutibilidade e especificidade, as ciências humanas não deixaram jamais de reclamar para si mesmas um espaço próprio.

E se há alusão a um espaço próprio, isso significaria no mínimo que há algo como um campo (por mais disperso que seja, e é, o que não significa que isso não tenha uma história e uma lógica), com contribuições e racionalidades específicas. Dentro das ditas “ciências humanas”, por mais diferenciado que seja um estudo sobre dança contemporânea, sobre uma tribo originária ou sobre história da filosofia, tem-se o pressuposto mais geral de que tais estudos não implicam imediatamente o mesmo tipo de racionalidade daquele praticado por um físico ou um biólogo. O que não significa dizer que ali não exista um outro rigor, encontrável na especificidade de cada ramo das ciências humanas, com seu estudo, textos e lógicas próprios.

Há, sim, uma cultura de fundo em humanidades, e ela perpassa o rigor conceitual (mesmo que não seja o do cálculo, o do experimento ou o das descrições anatômicas) e a análise textual, bem como outros métodos desenvolvidos em cada área específica. O que, mais uma vez, supõe o seguinte: para além das escolhas individuais dos docentes, há ou deveria haver um cenário de fundo, uma figura de rigor, por mínima e abrangente que seja, está sim a orientar as atuações individuais. Grosso modo, tal como se dizia no início do século XX, independente das ciências humanas desejarem ou contestarem uma objetividade naturalista, elas não deixam de ser, cada qual a seu modo, ciências “de rigor”.

Isso deveria dizer respeito, como se ilustrava mais acima, a uma cultura leitora e acadêmica, aquela que permitiria um estudante apontar o dedo e dizer “isso são humanidades” – sem reduzir a questão ao simples carisma do professor ou aos preconceitos de frouxidão de conteúdo. Se um estudante de exatas reconhece sob o fundo de suas matérias o cálculo como uma das racionalidades inerentes ao campo, e o de biológicas reconhece o raciocínio analítico-anatômico, por que o de humanidades muitas vezes, ao apontar o dedo, aponta ao professor para falar bem ou mal do assunto, e quando aponta ao campo costuma enxergar incertezas (isso quando enxerga algo)?

Não deveria haver um reconhecimento geral de que, diante de uma matéria de humanidades, haveria ali uma racionalidade baseada por baixo em análise de textos e rigor conceitual? Pois estes dois componentes – o rigor frente ao texto e aos conceitos – são, no fim das contas, comuns em todas as áreas.

Um aluno de ciências humanas que vai estudar estatística reconhece espontaneamente que ali haverá cálculo. Sendo isso dado em seu currículo, ele também reconhece que, mesmo que não utilize estatística depois, sua formação será precarizada caso não aprenda, pois aquilo lhe servirá de componente formativo. E o mesmo ocorre para quem precisa estudar peças anatômicas ou observar tecidos e células num microscópio.

Afinal, universidade não se reduz a curso profissionalizante. Mas por que, então, certa dúvida sobre o correlato disso em ciências humanas (e até em alguns cursos de formação)? Por que motivo, quando as matérias são de ciências humanas, a necessidade de ler textos e analisar conceitos (no nível mais amplo e geral, pois sabe-se que não se reduz a isso) aparece em tantos cenários como algo não espontaneamente óbvio? Por que aparece como algo que até poderia ou deveria ser minimizado ou desviado por outros subterfúgios?

De todo modo, conforme sugerido, a crise do rigor, ou da cultura acadêmica, não pertence apenas às humanidades (a citação acima de Feynman que o diga). E a crise das universidades não é apenas interna, embora internamente também diga respeito a certa erosão de uma cultura leitora e acadêmica.

Mas a resolução dessa crise não poderia ser reduzida a critérios individualizantes, pois estes são os mesmos que compõem o problema. Há quem gostaria de desfazer de vez o caráter acadêmico das universidades, reduzi-las a cursos online sob conteúdos pré-formatados, sem pesquisa e extensão.

Igualmente, há quem queira reduzir a atuação docente a uma espécie evolucionismo ingênuo (abandonando cada professor a uma fórmula de “esforço” e “eficácia” individuais, o que inevitavelmente redunda em comportamentos de sobrevivência e manada, cartéis e alianças de ocasião para amenizar o primado da competição), há quem queira reduzir a pedagogia ao pedagogo. Pois aí estão também os vínculos de trabalho precarizados e provisórios, bem como as inviabilizações da pesquisa e da extensão a longo prazo. A redução da pedagogia ao pedagogo e a individualização dos processos de ensino contribuem, enfim, para aquilo mesmo que se deveriam combater.

O reconhecimento de que cada campo tem especificidades próprias, a defesa de cada racionalidade inerente ao campo, a composição de cenários pedagógicos de fundo, talvez não acabem com a erosão da cultura acadêmica e leitora (pois muito dela é, como se disse, exterior à universidade). Mas a universidade, e cada docente, não são passivos diante disso. A maior prova é a de que a escolha mais simples ocorre por vezes sob a via individual. Mas afinal, isso também prova que há escolha

Marcio Luiz Miotto é professor de psicologia na Universidade Federal Fluminense (UFF).

Bibliografia

FEYNMAN, R. Richard Feynman: sobre a educação no BrasilMedium, 2017.

FEYNMAN, R. Surely You’re Joking, Mr. Feyman! [s.l: s.n.].

MACEDO, R. O método de leitura estrutura Cadernos Direito GV, v. 4, n. 2, 2007.

 

 

EUA – o novo paraíso fiscal global? por Joseph Stiglitz

0

Joseph Stiglitz – A Terra é Redonda – 01/05/2025

Donald Trump está transformando a América em um paraíso fiscal, segue desmantelando salvaguardas e alimentando a desigualdade por meio da desregulamentação global

1.

Donald Trump está rapidamente transformando os Estados Unidos no maior paraíso fiscal da história. Basta observar quatro ações: (i) a decisão do Departamento do Tesouro de se retirar do regime de transparência que compartilha as identidades reais dos proprietários das empresas; (ii) a retirada do governo das negociações para estabelecer uma Convenção das Nações Unidas sobre Cooperação Tributária Internacional; (iii) a recusa em aplicar a Lei de Práticas de Corrupção no Exterior; (iv) a desregulamentação maciça de criptomoedas.

Isso parece fazer parte de uma estratégia mais ampla para minar 250 anos de história de defesa de salvaguardas institucionais. O governo de Donald Trump violou tratados internacionais, ignorou conflitos de interesse, desmantelou freios e contrapesos, deslocou fundos alocados pelo Congresso. O governo não debate mais políticas, pois, ao contrário, atropela o estado de direito.

Mas Donald Trump adora um tipo de imposto: as tarifas de importação. Ele parece acreditar que os estrangeiros vão pagar a conta que ele cria, fornecendo assim fundos para cortar impostos para bilionários. Ele também parece acreditar que as tarifas eliminarão os déficits comerciais e devolverão a fabricação de bens industriais aos EUA. Não importa que as tarifas sejam de fato pagas pelos importadores, elevando assim os preços domésticos, e estejam sendo cobradas no pior momento possível, quando os EUA estão se recuperando de um episódio inflacionário.

Além disso, a macroeconomia elementar mostra que os déficits comerciais multilaterais refletem a disparidade entre a poupança doméstica e o investimento doméstico. Os cortes de impostos de Donald Trump para bilionários aumentarão essa lacuna já que os déficits reduzem a poupança nacional doméstica. Pode parecer bem irânico, mas as políticas de cortes de impostos para bilionários e corporações tendem a elevar o déficit comercial.

Desde Ronald Reagan, os conservadores afirmam que os cortes de impostos se pagam porque impulsionam o crescimento econômico. Mas isso não funcionou no governo Reagan; não funcionou também durante o primeiro mandato de Donald Trump. A pesquisa empírica confirma que os cortes de impostos para os ricos não têm impacto mensurável no crescimento econômico ou no desemprego, mas aumentam a desigualdade de renda de maneira imediata e persistentemente. A proposta de extensão da Lei de Cortes de Impostos e Empregos de 2017 – quando ocorreram os maiores cortes de impostos corporativos da história dos EUA – vai adicionar cerca de US$ 37 trilhões à dívida nacional dos EUA nos próximos 30 anos, sem entregar o impulso econômico prometido.

2.

Donald Trump também está piorando o déficit comercial no nível microeconômico. Os EUA se tornaram uma economia de serviços. Entre suas maiores exportações estão turismo, educação e saúde. Mas Trump minou sistematicamente cada um deles. Que turista, estudante ou paciente gostaria de vir para os EUA sabendo que poderia ser detido arbitrariamente e mantido por semanas? O enfraquecimento das principais instituições de ensino da América, o cancelamento arbitrário de vistos de estudante e o desfinanciamento da pesquisa científica lançaram uma mortalha profunda sobre esses setores críticos.

A abordagem estrategicamente falha de Donald Trump já está saindo pela culatra. A China é um dos maiores parceiros comerciais dos Estados Unidos; como se sabe, os EUA dependem de importações críticas vinda da China. Sabendo disso, ela já retaliou. O medo do “estagflação” – inflação mais alta combinada com crescimento estagnado – atingiu já os mercados de ações e títulos. E isso é apenas o começo.

Graças ao Departamento de Eficiência Governamental de Elon Musk, as receitas fiscais podem despencar mais de 10% este ano devido ao enfraquecimento da fiscalização. Uma redução de cerca de 50.000 trabalhadores desse departamento resultará provavelmente em US$ 2,4 trilhões em receita perdida nos próximos dez anos, em comparação com o aumento projetado de US$ 637 bilhões sob as disposições da Lei de Redução da Inflação que visava aumentar a força de trabalho desse órgão. A agenda é clara: não apenas taxas de impostos mais baixas para os ricos, mas também uma fiscalização mais fraca.

Em um mundo onde o capital e os indivíduos ricos podem cruzar as fronteiras livremente, a cooperação internacional é a única maneira de os governos garantirem que as corporações multinacionais e as pessoas ultra ricas sejam tributadas de forma justa. Nesse contexto, interromper a aplicação da coleta de dados da propriedade tributável, tolerar mercados de criptomoedas que aumentam o anonimato e abandonar o processo de conclusão de uma nova convenção tributária da ONU, abdicar de um imposto mínimo global, tudo isso revela um padrão deliberado: desmantelar estruturas multilaterais destinadas a combater a evasão fiscal e a lavagem de dinheiro. A “pausa” da aplicação da Lei de Práticas de Corrupção no Exterior indica que os EUA não se importam mais nem mesmo com suborno e suborno.

O que estamos testemunhando é uma aparente tentativa de Donald Trump, Elon Musk e seus comparsas bilionários de forjar uma espécie de capitalismo modelado a partir das zonas sem lei do mundo offshore. Não é apenas uma revolta fiscal; trata-se de um ataque incondicional a qualquer lei que ameace o acúmulo extremo de riqueza e de poder.

Em nenhum ponto isso é mais evidente do que na adoção da criptografia. A explosão do mercado de criptomoedas, cassinos online e plataformas de apostas pouco regulamentadas estão impulsionando a economia ilícita global. Sob Donald Trump, o Departamento do Tesouro suspendeu sanções e regulamentos sobre plataformas que escondem as transações feitas. Trump até assinou uma ordem executiva para estabelecer uma “reserva estratégica de criptomoedas” e realizou a primeira cúpula de criptomoedas da Casa Branca. O Senado dos EUA seguiu o exemplo, matando uma disposição que exigiria que as plataformas de criptomoedas identificassem e denunciassem usuários.

Donald Trump emitiu uma moeda do tipo meme controversa; em breve, ele pode lançar um videogame baseado no jogo conhecido como “Monopólio”; ele instalou um defensor das criptomoedas no comando da Comissão de Valores Mobiliários. Paul Atkins é membro de um grupo de políticas que defende criptoativos e sistemas financeiros não bancários.

As plataformas de criptomoedas têm uma característica central: o sigilo das operações que ali acontecem. O sistema econômico atual se baseia em boas moedas, tais como o dólar, o iene, o euro e outras mais. Há plataformas de negociação eficientes para a compra de bens e serviços. A demanda por criptomoedas vem do desejo de esconder dinheiro e de fazer operações sigilosas com dinheiro. É por isso que as pessoas envolvidas em atividades criminosas, incluindo aí a lavagem de dinheiro e a evasão fiscal, as utilizam: assim, as operações feitas deixam de ser facilmente rastreáveis.

3.

O resto do mundo não pode ficar parado, assistindo a tudo isso.  Vimos que a cooperação global pode funcionar, como mostra o imposto mínimo global de 15% sobre os lucros das multinacionais, que mais de 50 países estão introduzindo agora. Dentro do G20, o consenso forjado no ano passado sob a liderança do Brasil exige que os indivíduos muito ricos paguem sua parte justa.

Os EUA se distanciaram dos acordos internacionais, mas, paradoxalmente, a ausência de sua diplomacia pode ajudar a fortalecer as negociações multilaterais para obter um resultado mais ambicioso. No passado, os EUA primeiro exigiam que um acordo fosse enfraquecido (normalmente para beneficiar um interesse especial), mas no final se recusavam a assiná-lo mesmo assim. Foi o que aconteceu durante as negociações da OCDE para a tributação das empresas multinacionais. Agora, o resto do mundo pode continuar com a tarefa de projetar uma arquitetura tributária global justa e eficiente.

Abordar a desigualdade extrema por meio da cooperação internacional e de instituições inclusivas é a alternativa real ao crescente autoritarismo. O autoisolamento dos Estados Unidos cria uma oportunidade para reconstruir a globalização em bases verdadeiramente multilaterais – criando um G-menos-um para o século XXI.

Joseph E. Stiglitz é ganhador do Prêmio Nobel de economia e professor na Columbia University (New York). Autor, entre outros livros, de O Grande Abismo Sociedades Desiguais e o que Podemos Fazer Sobre Isso (Alta Books)

A Economia de Francisco

0

A semana passado trouxe uma grande infelicidade para a grande maioria dos cristãs que comungam os ideais religiosos do catolicismo, algo em torno de dois bilhões de pessoas no globo, a morte do Papa Francisco gerou muitas tristeza e desespero, levando a sociedade mundial a refletir sobre suas encíclicas, seus sermões e escritos que se espalharam para toda a sociedade internacional.

Vivemos numa sociedade marcada pela fragilização da solidariedade humana, onde encontramos a degradação dos laços sociais e sentimentais, nesta sociedade, percebemos o crescimento indiscriminado do individualismo, do imediatismo e da busca frenética pelo lucro monetário, deixando de lado os interesses do humanismo e dos valores mais sólidos e consistentes dos seres humanos. Estamos cultivando diuturnamente os interesses mesquinhos do imediatismo e dos valores do capital, da imagem deturpada das redes sociais e dos interesses centrados dos donos do capital, que controlam as mentes e distorcem a realidade, levando os indivíduos a buscarem os prazeres imediatos, do hedonismo e nos afastando dos valores da civilização.

Nesta sociedade, encontramos discussões equivocadas e desnecessárias, representantes políticos incapazes de compreender os valores e os anseios  mais sólidos da comunidade, o incremento da violência urbana em todas as áreas e setores, o aumento de profissionais incapazes de compreender os desafios da contemporaneidade, empresas e organizações perdidas num ambiente de transformações e mutações constantes, o  crescimento vertiginoso de moradores de ruas e pessoas degradadas numa economia hostil, o aumento dos financistas, economistas e homens de negócios que se ocupam dos discursos da austeridade dos gastos públicos e da redução das políticas públicas, pregando cortes constantes de custos e defendendo um sistema tributário desumano e cruel, com discursos pomposos que servem apenas para esconder seus interesses imediatos, manter seus poderes imediatos e a perpetuação dessa penúria que vive uma população marginalizada e constantemente explorada.

Neste ambiente, marcado pelo crescimento de um capital financeiro, improdutivo e parasitário, dotado de grande poder econômico e força política, que encontra no Papa Francisco novos instrumentos de reflexão, um apóstolo oriundo do mundo subdesenvolvido e dotado de grande capacidade intelectual e moralidade, que propõe uma sociedade mais igualitária, com mais solidariedade, mais acolhedora e menos julgadora, mais centrada no ensinar e no empregar e menos da exploração e da degradação, com isso, ajudando a construir novos valores, novos comportamentos e novos sentimentos, recriando a esperança e novos horizontes, ao contrário de uma sociedade calcada na exploração e na deturpação dos indivíduos.

A economia de Francisco traz novos instrumentos de reflexão e ação imediata, pregando o respeito ao ser humano e uma valorização da mãe natureza e do meio ambiente, trocando a exploração e estimulando a solidariedade humana, fomentando a reflexão individual e a conversação na comunidade, rechaçando o financismo e o capital parasitário que dominam a sociedade global e que prega o individualismo do cotidiano, destruindo os valores do humanismo e da solidariedade.

A economia de Francisco nos traz novos horizontes e um alento para uma sociedade mundial que, infelizmente, estimula o egoísmo e a busca frenética pelos interesses materiais, com isso, percebemos mais claramente a degradação da civilização.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Sociologia do Trabalho e Exclusão Social, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

 

Pejotização e o colapso silencioso da Previdência, por Erik Chiconelli Gomes

0

Além de precarizar, a multiplicação de contratos PJ corrói a base de financiamento de uma conquista histórica – e abre espaço para a enésima contrarreforma. Debate no STF, portanto, não é apenas jurídico. Envolve o futuro dos direitos e proteções que constituem a cidadania

Erik Chiconelli Gomes – OUTRAS PALAVRAS – 29/04/2025

A transformação das relações laborais no Brasil tem apresentado uma tendência preocupante desde a implementação da reforma trabalhista. O fenômeno conhecido como “pejotização” – a contratação de trabalhadores como pessoas jurídicas em vez de empregados formais – representa não apenas uma mudança nos arranjos contratuais, mas uma profunda alteração na própria estrutura das relações sociais de produção, revelando novas formas de exploração do trabalho que precisam ser analisadas a partir de uma perspectiva historiográfica que valorize a agência dos trabalhadores e as dimensões morais da economia.

Segundo estudo realizado por pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas, a pejotização custou aos cofres públicos entre R$ 89 bilhões e R$ 144 bilhões entre 2018 e 2023. Como observa Nelson Marconi, coordenador do curso de graduação em administração pública da FGV, “do ponto de vista social, os trabalhadores têm perdas em termos de direitos, como férias, décimo terceiro e aviso prévio. Para o lado da empresa, isso flexibiliza o mercado de trabalho e diminui encargos. Mas, do ponto de vista econômico, tem um impacto muito forte na arrecadação. Diminui o dinheiro para financiar políticas públicas.” (Desidério, 2025).

Esta transformação nas relações de trabalho não pode ser compreendida como um mero ajuste técnico ou jurídico no sistema produtivo brasileiro. Representa, antes, um movimento histórico que ressignifica a própria noção de trabalho, alterando profundamente os laços sociais e a consciência de classe dos trabalhadores. A substituição do vínculo empregatício formal por uma relação comercial entre empresas mascara relações de poder e dominação historicamente constituídas, criando a falsa impressão de autonomia e empreendedorismo.

Como argumenta David Harvey em seu estudo sobre a condição pós-moderna, o que testemunhamos é parte de um processo mais amplo de acumulação flexível, que impõe novas formas de controle do trabalho enquanto dissolve conquistas históricas dos trabalhadores. “A acumulação flexível envolve rápidas mudanças nos padrões de desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado ‘setor de serviços’.” (Harvey, 1992).

A análise das perdas arrecadatórias decorrentes da pejotização revela não apenas um problema fiscal, mas sobretudo uma profunda contradição no projeto econômico vigente. As simulações apresentadas pelos pesquisadores da FGV indicam que, caso metade dos trabalhadores CLT em 2023 se tornassem trabalhadores por conta própria, a perda de arrecadação chegaria a mais de R$ 384 bilhões em apenas um ano. Tal cenário, descrito como “extremo, mas possível” pelos próprios pesquisadores, evidencia o potencial desestabilizador dessa prática para as finanças públicas e, consequentemente, para a manutenção das políticas sociais.

A historiadora Bárbara Weinstein, em seu estudo sobre a formação da classe trabalhadora brasileira, nos lembra que “as transformações nas relações de trabalho nunca são meros reflexos de mudanças econômicas ou tecnológicas, mas constituem processos ativamente disputados, negociados e contestados pelos diversos atores sociais envolvidos.” (Weinstein, 1996). A pejotização contemporânea, portanto, deve ser compreendida como um campo de disputa onde se confrontam interesses antagônicos e visões distintas sobre o valor social do trabalho.

O fenômeno da pejotização emerge não como desenvolvimento natural ou inevitável das relações produtivas, mas como resultado de escolhas políticas deliberadas e de interpretações jurídicas específicas. O crescimento exponencial do número de trabalhadores por conta própria após a reforma trabalhista evidencia o caráter induzido dessa transformação, que responde a interesses econômicos específicos em detrimento da proteção social historicamente construída.

Ricardo Antunes, ao analisar as metamorfoses no mundo do trabalho, argumenta que “o que vemos hoje no Brasil é parte de um processo global de precarização estrutural do trabalho, que combina o desmonte dos direitos sociais com novas formas de gestão e controle da força de trabalho. A pejotização representa uma dessas novas modalidades de precarização, que transfere para o trabalhador individual os riscos e custos anteriormente assumidos pelo capital.” (Antunes, 1999).

A dimensão moral dessa transformação não pode ser subestimada. Ao se reconfigurarem as relações de trabalho sob a aparência de contratos entre pessoas jurídicas, opera-se também uma profunda alteração nas expectativas recíprocas entre empregadores e trabalhadores, nas noções compartilhadas de justiça e nas práticas de solidariedade que tradicionalmente caracterizavam as relações laborais. A economia, como sempre enfatizaram os historiadores sociais britânicos, nunca é apenas uma questão de números, mas também um campo de relações morais historicamente construídas.

Olivia Pasqualeto, professora de Direito da FGV, observa com precisão um dos aspectos mais problemáticos desse processo quando afirma que “quando o STF diz que qualquer relação vai ser lícita, ficamos sem saber qual elemento vai diferenciar uma coisa da outra. Fica nebuloso saber o que deve ser regido pela CLT.” (Desidério, 2025). Esta nebulosa distinção revela-se não apenas um problema técnico-jurídico, mas um sintoma da crescente descaracterização do trabalho como relação social dotada de proteções específicas

O historiador Sidney Chalhoub, em seus estudos sobre trabalho, cidadania e direitos no Brasil, nos oferece uma perspectiva valiosa ao afirmar que “as transformações nas relações de trabalho no Brasil sempre foram mediadas por intensas disputas políticas e jurídicas, nas quais os trabalhadores nunca foram sujeitos passivos, mas agentes que continuamente reinterpretam e contestam as imposições das classes dominantes.” (Chalhoub, 1986).

A análise histórica do fenômeno da pejotização deve considerar não apenas seus impactos econômicos imediatos, mas também suas implicações para a construção da cidadania no Brasil. Ao se substituir a relação empregatícia formal por contratos comerciais, fragilizam-se os mecanismos de proteção social que, historicamente, serviram como porta de entrada para direitos sociais mais amplos na sociedade brasileira.

Mike Davis, em sua análise sobre o trabalho precário global, argumenta que “a informalização e precarização das relações de trabalho não representam um retorno a formas pré-modernas de exploração, mas constituem modalidades inteiramente novas de extração de mais-valor, adaptadas às condições do capitalismo financeirizado contemporâneo.” (Davis, 2006).

O embate jurídico em curso no Supremo Tribunal Federal, que suspendeu todos os processos sobre o tema até um julgamento definitivo, ilustra como as lutas dos trabalhadores por reconhecimento e direitos se deslocaram para a arena judicial. Este deslocamento, contudo, não diminui o caráter essencialmente político e social da questão; apenas reconfigura os termos do conflito e os espaços institucionais onde ele se desenvolve.

A suspensão das quase 460 mil ações sobre reconhecimento de relação trabalhista em 2024 representa não apenas uma questão jurídica, mas um momento crítico para a reconfiguração das relações entre capital e trabalho no Brasil contemporâneo. O resultado deste embate determinará não apenas o futuro imediato de milhares de trabalhadores, mas estabelecerá precedentes para toda a classe trabalhadora brasileira nas próximas décadas.

O impacto da pejotização sobre o sistema previdenciário brasileiro revela uma dimensão particularmente alarmante desse processo. Estamos diante de um desmantelamento silencioso da seguridade social, operado não através de uma reforma aberta e transparente, mas por meio de uma erosão gradual da sua base de financiamento. Quando um trabalhador deixa de contribuir como empregado formal e passa a fazê-lo como microempreendedor individual, a diferença de arrecadação não representa apenas um número nas contas públicas – simboliza o esvaziamento de um pacto social que, por décadas, garantiu dignidade a milhões de brasileiros na velhice, na doença e na incapacidade laboral.

Este esvaziamento ocorre em um contexto demográfico de envelhecimento populacional, no qual a sustentabilidade da Previdência já enfrenta desafios consideráveis. A pejotização, portanto, acelera e agrava uma crise anunciada, comprometendo a viabilidade futura de um sistema que representa uma das maiores conquistas sociais da história brasileira. Não se trata apenas de um problema fiscal, mas de uma questão ética fundamental sobre o tipo de sociedade que estamos construindo e os valores que a orientam.

A história das relações trabalhistas no Brasil revela um padrão recorrente de formalização precária, no qual direitos são concedidos no plano legal, mas continuamente subvertidos na prática cotidiana. A pejotização contemporânea representa um novo capítulo nessa história, com a particularidade de utilizar instrumentos jurídicos formais – como a constituição de pessoas jurídicas – para legitimar a evasão de obrigações trabalhistas e previdenciárias. O verniz de legalidade que recobre essas práticas torna-as particularmente insidiosas, pois dificulta seu reconhecimento como formas de precarização e exploração.

A experiência histórica nos ensina, contudo, que as relações de trabalho nunca são estáticas e que sua configuração depende fundamentalmente das lutas sociais em curso. A pejotização, apesar de sua aparente solidez jurídica e econômica, não está imune à contestação e à resistência dos trabalhadores. Novas formas de organização coletiva já começam a emergir entre trabalhadores “pejotizados” que, apesar da fragmentação de seus vínculos formais, compartilham experiências comuns de precariedade e insegurança.

Este movimento de ressignificação e reapropriação da própria condição de trabalho representa uma continuidade histórica com as tradições de luta da classe trabalhadora brasileira, que sempre encontrou formas criativas de resistência mesmo nos contextos mais adversos. A compreensão desta agência histórica dos trabalhadores – sua capacidade de interpretar, contestar e transformar as condições de sua própria exploração – é fundamental para qualquer análise crítica do fenômeno da pejotização que não se limite a reproduzir determinismos econômicos ou legalismos superficiais.

O que está em jogo, portanto, não é apenas uma questão técnica de classificação jurídica de relações laborais, mas a própria redefinição do horizonte de direitos e proteções que constituem a cidadania social no Brasil contemporâneo. A disputa sobre a pejotização é, em última instância, uma disputa sobre o valor social do trabalho e sobre a responsabilidade coletiva frente aos riscos e vulnerabilidades inerentes à condição humana. Seu desfecho dependerá não apenas de decisões judiciais ou políticas, mas da capacidade de mobilização e organização dos próprios trabalhadores em defesa de um projeto de sociedade que reconcilie desenvolvimento econômico com justiça social e dignidade no trabalho.

Referências

ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho: Ensaio sobre a Afirmação e a Negação do Trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999.

CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: O Cotidiano dos Trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. São Paulo: Brasiliense, 1986.

DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006.

DESIDÉRIO, Mariana. Pejotização custou ao menos R$ 89 bilhões e ameaça Previdência, diz estudo. UOL, São Paulo, 26 abr. 2025.

GOMES, Angela de Castro. A Invenção do Trabalhismo. Rio de Janeiro: FGV, 2005.

HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: Uma Pesquisa sobre as Origens da Mudança Cultural. São Paulo: Loyola, 1992.

VAN DER LINDEN, Marcel. Trabalhadores do Mundo: Ensaios para uma História Global do Trabalho. Campinas: Editora da Unicamp, 2013.

WEINSTEIN, Barbara. For Social Peace in Brazil: Industrialists and the Remaking of the Working Class in São Paulo, 1920-1964. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1996.