Capitalismo Parasitário, por Luiz Guilherme de Besurepaire

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Luiz Guilherme de Besurepaire – 11/05/2020 .

O capitalismo tem uma incrível capacidade de se reinventar, de se regenerar. No entanto, após o tsunami financeiro de 2008, demonstrou a todos nós que a prosperidade não é algo para sempre e que os bancos capitalistas, através de seus métodos que se dizem “solucionadores de problemas”, na verdade se destacam por criar problemas, e não por solucioná-los. É assim que começa esse livro maravilhoso de Zygmunt Bauman chamado “Capitalismo Parasita”.

Bauman cita um artigo publicado na New York Books Review, em intitulado “The Crisis and What to Do About It”, em que George Soros apresenta as (des)venturas do capitalismo como um ciclo de bolhas que chegam ao seu limite de resistência. Quando a bolha em 2008 estourou, ocorreu de imediato a contração do crédito.

Alguns antecipavam o fim do capitalismo, mas na verdade tudo não passou de uma exaustão de mais um pasto. O Estado capitalista, através dos recursos públicos (usando impostos em vez do poder de sedução do mercado), buscará novas pastagens enquanto ficar fora de operação.

Rosa Luxemburgo, em seu livro chamado “Acumulação Capitalista”, diz que o capitalismo não pode viver sem as economias “não capitalistas”, ou seja, enquanto existirem “terras virgens” para expansão e houver capacidade de explorá-las até exaurirem as fontes de sua própria alimentação. Em outras palavras, o capitalismo é um sistema parasitário.

Como todos os parasitas, pode prosperar durante certo período, desde que encontre um organismo ainda não explorado que lhe forneça alimento. Mas só pode fazer isso destruindo o hospedeiro, destruindo as condições de sua prosperidade, ou mesmo de sua sobrevivência. Após uma exaustão completa ou quase completa de um organismo hospedeiro, um parasita procura encontrar outro, para supri-lo de sucos vitais por um período sucessivo, embora também limitado, de tempo.

Rosa Luxemburgo, quando escreveu o seu livro, não previa nem podia prever que os territórios pré-modernos cheios de continentes exóticos não eram os únicos “hospedeiros” potenciais dos quais o capitalismo poderia se nutrir para prolongar a própria existência e gerar uma série de períodos de prosperidade.

“Sem meias-palavras, o capitalismo é um sistema parasitário. Como todos os parasitas, pode prosperar durante certo período, desde que encontre um organismo ainda não explorado que lhe forneça alimento. Mas não pode fazer isso sem prejudicar o hospedeiro, destruindo assim, cedo ou tarde, as condições de sua prosperidade ou mesmo de sua sobrevivência.” (pg8, pg 9)

O parasita a que se refere Rosa Luxemburgo é a força do capitalismo que busca incessantemente novos lugares para se “hospedar”, ou seja, novos mercados. O capitalismo revelou desde então seu incrível talento para buscar e encontrar novas espécies de hospedeiro cada vez que a espécie explorada anteriormente diminuía em número.

Hoje, o capitalismo já alcançou a dimensão global ou, de qualquer forma, chegou muito perto de alcançá-la − uma façanha que para Luxemburgo ainda era uma perspectiva um tanto distante. O que aconteceu no último meio século mais ou menos é o capitalismo aprendendo a arte anteriormente desconhecida e inimaginável de produzir sempre novas “terras virgens”, em vez de limitar sua rapidez ao conjunto das já existentes. Milhões de homens e mulheres que se dedicavam antes a economizar em vez de viver do crédito foram transformados com astúcia em um desses territórios virgens ainda não explorados. Essa nova arte − possibilitada pela mudança da “sociedade de produtores” para a “sociedade de consumidores” e da reunião de capital e trabalho para a reunião de mercadorias e clientes como a principal fonte de “valor agregado” − lucro e acumulação consiste principalmente na mercantilização progressiva das funções da vida.

Com a sociedade de consumidores, o cartão de crédito foi o indício do aparecimento de um mercado sedutor. Nos velhos tempos, era preciso postergar as satisfações – que segundo Max Weber foi o princípio que tornou possível o capitalismo moderno –, apertar os cintos, negar outros prazeres, gastar de forma prudente, economizar dinheiro, que se podia separar com a esperança de que, com o devido cuidado e paciência, os sonhos seriam concretizados.

A expressão material deste parasitismo é o cartão de crédito, que, com seu slogan “não adie a realização dos seus sonhos”, induz o consumidor a gozar sem cessar, a consumir. A compra em débito não é boa para os emprestadores, os bancos em geral, porque não se paga juros.

O “devedor ideal” é aquele que jamais paga integralmente suas dívidas porque os juros são o alimento do “parasita”. Assim a contração do crédito decorrente da crise econômica mundial de 2008, para Bauman, não foi devido ao insucesso dos bancos; ao contrário, foi devido ao extraordinário sucesso destes porque introduziu a regra do “compre agora e pague depois”, produziu e produz em série indivíduos endividados. “Como poucas drogas, viver de crédito cria dependência”, diz Bauman.

O Estado teve um papel fundamental na criação desses “novos pastos” a explorar. Coube a Bill Clinton a iniciativa de introduzir nos Estados Unidos as hipotecas subprime. Elas foram vendidas aos mais pobres como solução dos problemas dos sem-tetos, mas na verdade multiplicou o número de pessoas sem casa com a epidemia de retomada dos imóveis, que ficou conhecida como subprime.

Elas foram garantidas pelo governo a fim de oferecer crédito para a compra da casa própria para pessoas desprovidas de meios de pagar a dívida assumida e, portanto, a fim de transformar setores da população até então inacessíveis à exploração creditícia em devedores.

A cooperação entre Estado e mercado no capitalismo é a regra; o conflito entre eles, quando acontece, é a exceção. O Estado e o mercado mantêm relações simbióticas, que é uma relação mutuamente vantajosa entre dois organismos vivos de espécies diferentes. No entanto, as políticas são construídas não contra o interesse dos mercados; seu objetivo natural é avalizar, permitir a segurança e a longevidade do domínio do mercado. Se a relação entre Estado e mercado é de vantagens mútuas, a relação entre mercado e o consumidor é de parasitismo.

“Se o Estado assistencial hoje vê seus recursos minguarem, cai aos pedaços ou é desmantelado de forma deliberada, é porque as fontes de lucro do capitalismo se deslocaram ou foram deslocadas da exploração da mão de obra operária para a exploração dos consumidores. E também porque os pobres, despojados dos recursos necessários para responder às seduções dos mercados de consumo, precisam de dinheiro − não dos tipos de serviço oferecidos pelo Estado assistencial − para se tornarem úteis segundo a concepção capitalista de “utilidade”. (pg 32)

Nossa sociedade deixou de ser de produtores para se transformar numa sociedade de consumidores. O mundo todo é visto e vivido como consumidores. A cultura também se transforma em um armazém de produto destinado ao consumo. Todos concorrendo contra todos para conquistar a atenção inconsciente dos potenciais consumidores, na esperança de atraí-la e conservá-la por pouco mais tempo.

Nosso mundo lembra cada vez mais Leônia, “a cidade invisível” de Italo Calvino, onde “mais do que pelas coisas que todos os dias são fabricadas vendidas compradas, a opulência… se mede pelas coisas que todos os dias são jogadas fora para dar lugar a novas”. (pg 41)

Numa sociedade consumidora como a nossa, as redes substituem as estruturas, em que o tabuleiro está estabelecido por um jogo de apego e desapego e uma infinita sucessão de conexões e desconexões. A cultura nos dias de hoje é feita de ofertas, para garantir que “a escolha continue a ser inevitável ou uma necessidade e, ainda, um dever de vida”. Ter não é mais suficiente. O sentimento que prevalece é o desejo de substituir o que se tem por bens novos e melhorados. Essa é a regra da sociedade líquida moderna. Trata-se da cultura da “obsolescência instantânea”, pois estimula o consumo.

A solidez dos vínculos é uma ameaça, pois um futuro com obrigações restringe a liberdade de movimento e a capacidade de vislumbrarmos novas oportunidades quando elas aparecerem e, por conseguinte, compromete a sociedade líquida moderna feita para o descartável. Relações duradouras não são consideradas boas.

As universidades não escapam a essa regra por uma razão bem simples: o mundo muda de uma forma que desafia o saber existente. Para Bauman, o mundo volátil da modernidade líquida “mais parece um mecanismo para esquecer do que um ambiente para aprender”. A memória, a longo prazo, cede lugar para os engajamentos flexíveis perante um vasto mundo de informações televisivas e virtuais, a tendência das notícias impressas é desaparecer, dando lugar a outros meios de informação.

Para Bauman, a antiga tarefa de representar o mundo para os alunos, por exemplo, o mundo tal como ele é, auxiliando a formação de uma personalidade adequada para viver em um mundo previsível, já não é mais possível. A massa de conhecimentos acumulados transformou-se no epítome contemporâneo da desordem e do caos. Bauman conclui que ainda não estamos preparados para este tipo de vida.

A parcela de conhecimento retirada para uso e consumo pessoal só pode ser avaliada com base na quantidade. Já não é mais possível utilizar o critério da qualidade com o restante, pois todas as informações se equivalem. Se no passado a educação adaptava-se às mutações, definia objetivos e projetava novas estratégias. Torna-se claro, para Bauman, que a arte de viver em um mundo hipersaturado de informação ainda não foi aprendida.

Fico por aqui. Apenas dizendo que Bauman mantém uma crítica ao mundo líquido, acrescentando o conceito de capitalismo parasitário em que o consumo desenfreado determina uma nova abordagem sobre alguns temas contemporâneos, desde os comportamentos da vida cotidiana. A utilização da metáfora da infestação, o conceito de parasita através de instituições como bancos e a exploração do crédito para o consumo desenfreado, somados a crises geracionais, e o modo de vida que vivemos.

Tudo isso fazem do livro “Capitalismo Parasitário”, de Zygmunt Bauman, um livro importantíssimo para os dias de hoje. Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.

Minha geração, por Francisco de Oliveira Barros Júnior

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Francisco de Oliveira Barros Júnior – A Terra é Redonda – 25/08/2025

O docente propõe um conjunto de interrogações com o objetivo de construir uma visão ampla e complexa sobre as novas gerações, representadas pelos alunos que participam das disciplinas

Refletir sobre o conceito de geração, a partir de textos musicais e fílmicos, é uma proposta metodológica a ser desenvolvida. Na sala de aula, do ensino fundamental ao superior, professores experimentam relações intergeracionais. Na exposição de um conteúdo, intitulado de “Intergeracionando”, o docente propõe um conjunto de interrogações com o objetivo de construir uma visão ampla e complexa sobre as novas gerações, representadas pelos alunos que participam das nossas disciplinas.

Estamos no campo universitário onde o professor vai projetar em uma tela, imagens e perguntas para serem pensadas. Uma metodologia dialogal, aberta para dar voz aos estudantes que têm, em média, 20 anos. Seguem as fotografias de nomes conhecidos do universo artístico nacional e internacional. Cada imagem vem acompanhada de uma interrogação.

Sigamos o roteiro da exposição: Com os Beatles, indago: “a que geração pertenço?” Estamos no ano de 2023, em tempos paradoxais, ambivalentes e incertos. Progressos e regressões. Em desassossego, propomos um exercício de contextualização histórica da sociedade na qual vive a juventude atual. Os jovens vivendo em riscos, conectados em redes, na cultura consumista das relações mercantilizadas. Companheiros dos avanços e retrocessos, eles fazem história, são de várias tribos e representam a diversidade.

Com os Rolling Stones, vem a seguinte questão: “quais as características da minha geração?” A sociabilidade juvenil encontra novos paradigmas nos espaços digitais ocupados pelos jovens. Munidos de aparelhos eletrônicos, na sociedade telânica, navegam nas redes sociais e constroem as suas cidadanias em movimentações políticas online. Movimentos sociais juvenis agitam o cenário político em um cyberativismo praticado na “sociedade em rede”. Na “era da informação”, sopram ventos sulistas e nortistas de uma mudança social na qual mentes articuladas contestam o poder.

Atitudes contestatórias em um contexto histórico de reinvenção democrática praticada por uma juventude que vive “uma revolução possibilitada pela internet”. “Indignação e esperança” em um mundo transformado, de reformas políticas e emergência de um padrão tecnologizado no modo de promover insurreições e discursos revolucionários (CASTELLS, 2013). No coletivo, indignados e esperançosos empunham a faixa com uma mensagem no plural: “somos a rede social”.

Com Roberto Carlos, pergunto: “que avanços e retrocessos acompanham a minha geração?” Progressos e regressões em um contexto de ambivalências e paradoxos. Longevidade populacional e altos índices de criminalidade. Notícias animadoras e sombrias. Novas barbáries e robótica presentes na sociedade do espetáculo. Inteligência artificial e pobreza dão matérias jornalísticas. Medos medievais são reatualizados. A covid-19 fez um strip-tease revelador das nossas vulnerabilidades e riscos. Como vivemos agora?

Uma jovem de 20 anos, nos dias de hoje, vive em sociedades paradoxais. Os brasis são exemplares. Um país de excluídos curtindo as viralizações das celebridades em suas pornográficas ostentações. “A galáxia da internet” convive com precários estados de bem-estar social. A pergunta antes feita necessita de um exercício de contextualização histórica. Mostrar as múltiplas faces da globalização, do capitalismo parasitário e do neoliberalismo. Quais as suas consequências humanas? Negócios e economia eletrônicos em movimentos milionários e os quadros de exclusão social correndo em paralelo.

Na “vida para consumo” e “a crédito”, “a geração jovem de hoje” conhece “uma sociedade de consumidores”. Nas redes sociais, a juventude é um terreno virginal a ser conquistado e explorado “pelo avanço das tropas consumistas”. “O jovem como lata de lixo da indústria de consumo”. Uma cultura consumista e “agorista”. Inquietos “e em perpétua mudança”, os jovens entram no “culto da novidade”. Em tempos excessivos e de descartabilidade, eles participam da “assombrosa velocidade dos novos objetos que chegam e dos antigos que se vão”. No império do efêmero, em suas curtições internéticas, a juventude navega nas compras virtuais e provoca a curiosidade: quantas horas por dia gasta com smartphones, computadores, telas diversas e outros instrumentos eletrônicos? (BAUMAN, 2013, p.34).

Com Gilberto Gil, indago: “quais os valores que conduzem a minha geração?” De que matrizes procedem? Estão sendo invertidos? No foco, os princípios que norteiam as nossas existências em uma sociedade de mercado, competitiva e violenta. Em termos necropolíticos, injusta, cruel e outros adjetivos desumanos. Um campo de conflitos. O que é valorizado nas relações capitalistas? O nosso pensamento tem sido crítico em relação às ações desumanizadoras observadas no cotidiano? A mercantilização de todas as relações expõe os homens transformados em mercadorias.

Todos os campos, destacando a saúde, a educação, a religião e outras esferas, são atravessadas pela lógica mercadológica, objetiva, calculista e voltada para o máximo de lucratividade. Números, quantidade de viralizações, vendas da bilheteria e audiência numérica são critérios prioritários. A qualidade do que é produzido e promovido está abaixo do objetivo número um: vender. Em termos mais sintonizados com a época atual, viralizar. Noticiário policial, fofocas e ti ti tis envolvendo celebridades, em especial, viralizam e geram milionários negócios.

Glamour, ostentações ao som de funk, badalações e chacinas telanizadas. “A civilização do espetáculo”, seus ópios, tragédias e frivolidades. Janelas indiscretas. Exposição da intimidade e privacidade pessoal desconhecem os limites entre o público e o privado. “Sou visto, logo existo”. Aparecer de qualquer jeito. Os olhos do poder e os seus plantonistas. Vamos ler “1984”, de George Orwell? Nas telas, o “grande irmão” vê o jogo do “vale-tudo”, o time dos que “topam tudo por dinheiro”.

Francisco de Oliveira Barros Júnior é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí (UFPI).

Referência

BAUMAN, Zygmunt. Sobre educação e juventude: conversas com Riccardo Mazzeo. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

O dilema silencioso da geração X, por Rodolfo Damiano

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Rodolfo Damiano – A Terra é Redonda – 18/09/2025

A resiliência da Geração X, forjada na adversidade, tornou-se sua própria armadilha. O verdadeiro legado que precisam construir não é mais de resistência silenciosa, mas de aprender a finalmente cuidar de quem sempre cuidou de todos – inclusive de si mesmos

1.

A geração X, formada por aqueles que nasceram entre 1965 e 1980, vive hoje um dos maiores desafios geracionais da história contemporânea. Criados sob a promessa de que estudo, trabalho e disciplina garantiriam estabilidade, muitos chegaram à vida adulta em um cenário que desmentiu essas expectativas. As últimas quatro décadas foram marcadas por crises econômicas sucessivas, mudanças tecnológicas radicais e um mercado de trabalho cada vez mais instável. O resultado é um grupo que, apesar de resiliente, enfrenta pressões simultâneas que afetam profundamente não apenas sua saúde física, mas sobretudo sua saúde mental.

Um dos dilemas mais marcantes é a chamada “geração sanduíche”, expressão usada para descrever adultos que cuidam, ao mesmo tempo, de filhos que ainda não conquistaram independência e de pais que envelhecem com crescente necessidade de apoio. No Brasil, quase metade dos jovens adultos ainda mora com os pais por dificuldades financeiras, desemprego ou salários insuficientes para manter uma vida autônoma (IBGE, 2023).

Ao mesmo tempo, a longevidade aumenta, mas nem sempre é acompanhada de autonomia: cresce o número de idosos dependentes de cuidados diários, exigindo tempo, energia e recursos. Para a geração X, isso significa viver em permanente estado de alerta, equilibrando responsabilidades múltiplas sem espaço para si.

Essa sobrecarga tem repercussões claras na saúde mental. Sintomas de ansiedade generalizada, depressão e burnout são cada vez mais comuns nessa faixa etária, frequentemente mascaradas pelo discurso da “resiliência”. Estudos mostram que o bem-estar subjetivo costuma atingir seu ponto mais baixo na meia-idade, fenômeno conhecido como a “curva em U da felicidade” (Blanchflower & Oswald, 2008). É exatamente nesse período, entre os 45 e 55 anos, que muitos gen xers enfrentam crises de identidade, frustrações profissionais e sobrecarga familiar, fatores sabidamente associados a maior risco de transtornos mentais (WHO, 2022).

2.

No campo do trabalho, os impactos psíquicos são evidentes. Muitos acreditaram que a ascensão social seria consequência natural do esforço, mas se depararam com um mercado hostil, instável e acelerado. A recessão de 2008, a pandemia de Covid-19 e as sucessivas transformações tecnológicas trouxeram perdas salariais, insegurança crônica e necessidade de reinvenção constante. Esse cenário alimenta sentimentos de inadequação, fadiga emocional e desesperança – todos reconhecidos pela psiquiatria como gatilhos importantes para quadros depressivos e transtornos de ansiedade (APA, 2019).

No plano cultural, a geração X enfrenta ainda a sensação de não pertencer. São jovens demais para se aposentar e velhos demais para se integrar plenamente ao universo digital dominado por TikTok e influenciadores. Suas referências culturais são tachadas de “vintage”, enquanto seus filhos navegam com naturalidade em ambientes virtuais que eles apenas decifram superficialmente. Essa experiência de deslocamento cultural reforça a sensação de isolamento e pode agravar quadros de solidão – hoje reconhecida pela OMS como um fator de risco comparável ao tabagismo para a saúde mental e física (WHO, 2022).

Apesar de tudo, a geração X desenvolveu notável capacidade de adaptação. Aprendeu a lidar com mudanças, a sobreviver em cenários de incerteza e a encontrar soluções criativas. No entanto, é urgente quebrar o mito de que resiliência significa suportar indefinidamente. A literatura em saúde mental mostra que essa geração apresenta níveis elevados de estresse crônico e desgaste emocional, especialmente entre aqueles que conciliam múltiplas funções familiares e profissionais (APA, 2019). Cuidar de si, nesse contexto, é não apenas legítimo: é uma necessidade de saúde pública.

Estratégias individuais e coletivas são fundamentais. No nível pessoal, buscar apoio psicológico, praticar autocuidado e aprender a compartilhar responsabilidades são passos importantes. No nível social, políticas públicas que ampliem o acesso à saúde mental, incentivem o envelhecimento ativo e apoiem financeiramente famílias cuidadoras são urgentes.

O Brasil já ultrapassa os 15% de população idosa, mas o investimento em saúde mental segue abaixo das recomendações internacionais (The Lancet Commission, 2018). Sem uma rede sólida de apoio, o peso recai desproporcionalmente sobre essa geração.

No fim, a geração X está redefinindo o que significa “meia-idade” em um mundo de transformações aceleradas. Ao equilibrar cuidado com os outros e cuidado consigo mesmo, pode inaugurar uma forma mais honesta e sustentável de atravessar esse período da vida. Porque, afinal, quem cuida de todos também merece ser cuidado – inclusive por si próprio. Essa talvez seja a principal lição silenciosa que a geração X pode deixar: resiliência não se mede pela capacidade de resistir sozinho, mas pela coragem de reconhecer os próprios limites e buscar apoio.

Rodolfo Damianomédico psiquiatra, é pós-doutorando na USP. Autor, entre outros livros, de Compreendendo o suicídio (Editora Manole).

Referências

American Psychological Association (APA). Stress in America™: Stress and Current Events. Washington, DC: APA, 2019.

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

BLANCHFLOWER, D.G.; OSWALD, A.J. Is well-being U-shaped over the life cycle? Social Science & Medicine. 2008;66(8):1733-1749.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNAD Contínua. Rio de Janeiro: IBGE, 2023.

The Lancet Commission. Global Mental Health and Sustainable DevelopmentThe Lancet. 2018;392(10157):1553-1598.

World Health Organization (WHO). World Mental Health Report: Transforming mental health for all. Geneva: WHO, 2022.

 

 

O que é saúde mental? por Maria Rita Kehl

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Quais os fatores que nos satisfazem psíquica e emocionalmente? Freud pode chocar, ao dizer: a incompletude. Impulso que cria desejo, desloca-nos e gera a busca de sentido no amor e no trabalho. Força que nos afronta a encarar insuficiências e permite o arriscar

Por Maria Rita Kehl, no Blog da Boitempo. OUTRAS MÍDIAS

Começo com Freud, que era médico mas não tratava da saúde física. A definição de Freud quanto a esse tema é sucinta e (a meu ver), certeira. A saúde mental de uma pessoa pode ser resumida como a sua capacidade de amar e trabalhar. São duas ações muito diferentes, não acham? Mas entre elas há um ponto em comum: Tanto no amor quanto no trabalho, o sujeito, forçosamente, sai um pouco de si mesmo — de sua solidão, de suas ruminações estéreis, de sua vã vaidade — e se entrega a predisposições psíquicas que transcendem o ego.

Não que o ego seja supérfluo em nossas aventuras amorosas ou em nosso empenho profissional. O ego é nosso sustentáculo. Mas amor e trabalho nos forçam a ceder espaço psíquico para além dele. O ego nos estrutura, enquanto sujeitos, mas não é tão soberano quanto gostaríamos de acreditar. Quando amamos alguém, por exemplo: uma parte da satisfação que sentimos ao sermos correspondidos no amor é puramente egóica. A proposta freudiana, de que a saúde mental se define pela capacidade de amar e trabalhar, pode ser entendida também desta forma: amor e trabalho produzem saúde mental. Tanto um quanto o outro nos ajudam a dar sentido à vida porque forçosamente abrem brechas no rochedo que nos protege da castração.

Para os leigos em psicanálise (o que não é vergonha pra ninguém) vale esclarecer que “castração” é a metáfora com que Freud tenta explicar nossa incompletude — a qual, aliás, é condição para a saúde mental. A incompletude humana pode ser traduzida como “a falta que move”. É o que nos faz desejantes. Somos sujeitos, por definição, incompletos — por isso mesmo, a falta nos move. Nos move a quê? A criar. E a amar.

Em contrapartida, quando o outro deixa de nos amar, o ego, frequentemente, fica mais ferido do que o “coração”. Nessas horas, para quem for capaz disso, vale a pena entregar-se novamente a algum projeto de trabalho que talvez não traga de volta o ser amado, mas, sim, renova a autoestima.

Além disso, tanto o amor quanto o labor exigem que saibamos encarar nossas insuficiências: tanto um quanto o outro são incompatíveis com excessos narcísicos. Explico: o sujeito que se considera perfeito, ou completo, dificilmente vai conseguir abrir mão dessa agradável fantasia para se arriscar em alguma empreitada na qual pode tanto ter sucesso quanto fracassar. Por outro lado… se não nos arriscamos em empreitadas interessantes (e, se possível, bem-sucedidas), nosso ego se empobrece e deixa de atender a nossos ideais narcísicos.

Sim: algum narcisismo (vale simplificar aqui e traduzir por autoestima) é necessário. Quem não tem nenhum amor por si mesmo tende à depressão. Em situações em que o sujeito não encontra — ou não produz — nada que alimente sua autoestima, ele se deprime. Deixa de amar a si mesmo. Em casos extremos, essa falta de autoestima pode levar a tentativas de suicídio. Eu diria que o bom amor de si mesmo — que nada tem a ver com exageros de vaidade — se alimenta tanto das realizações que o sujeito se empenha em conquistar quanto da estima e do reconhecimento do outro. Mais, ainda: nossa autoestima também é acionada quando, além de receber admiração do outro, somos também capazes de dar o que ele necessita. Sermos solidários nos faz bem. Isso nada tem a ver com uma tendência sacrifical: quem se sacrifica por vaidade (“vejam como sou bom!”) corre o risco de se tornar ressentido: “fiz tanto por ele, mas ele não me agradeceu à altura”… Se você quer fazer algo pelo outro, faça de coração aberto, não como quem investe em uma futura medalha de bom comportamento. Fazer pelo outro, com gosto, nos alegra. “Saúde mental” (o tema desta coluna) tem mais a ver com alegria do que com vaidade.

Se for o caso de sacrificar alguma coisa, sacrifiquemos nosso egoísmo… mas não todo, ok? Vale guardar um pouco de egoísmo para conquistar, e desfrutar de coisas que nos fazem bem!

Maria Rita Kehl é doutora em psicanálise pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e atua, desde 1981, como psicanalista em São Paulo. Entre 2006 e 2011, atendeu na Escola Nacional Florestan Fernandes do MST, em Guararema (SP). Integrou a Comissão Nacional da Verdade (2012-2014). Foi jornalista de 1974 a 1981 e segue publicando artigos em diversos jornais e revistas de São Paulo e do Rio de Janeiro. Em 2010, ganhou o prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção, com a obra O tempo e o cão, a atualidade das depressões, publicada por nossa casa. Também pela Boitempo, publicou Tempo esquisito, Videologias: ensaios sobre televisão (em coautoria com Eugênio Bucci), 18 crônicas e mais algumas, Deslocamentos e o feminino, Bovarismo brasileiro e ressentimento. Pela Boitatá publicou, em parceria com Laerte Coutinho, Neném outra vez! E disco-pizza. 

A engenharia do eu na era das redes sociais, por José Alberto Roza

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Reflexões desde o Orkut como fenômeno cultural até as novas formas de existir no mundo hiperconectado atual. Hoje, a tecnologia é integrada ao corpo. E o sujeito é um curador de narrativas e imagens para a apreciação alheia, autopromoção, pertencimento e validação.

Por José Alberto Roza, na Cult – OUTRAS MÍDIAS – 19/09/2025

Do Orkut à hiperconectividade: o nascer da subjetividade digital

Há um eco recorrente nas redes sociais brasileiras: o burburinho sobre a possível volta do Orkut, marcado por nostalgia de uma era digital de comunidades vibrantes e autodescoberta. Para mim, esse tema tem um significado especial. Em 2009, quando o Orkut começava seu declínio frente ao Facebook, ele foi objeto central da minha dissertação de mestrado em Psicologia, que buscava entender as inter-relações adolescentes daquele tempo. Observei ali, mais que dinâmicas de uma rede social, o início de novas formas de existir e se relacionar que hoje são a essência da nossa hiperconectividade, ou dos tempos apressados e hipermodernos
propostos por Lipovetsky.

O Orkut foi, para o Brasil, mais que um site de relacionamentos – foi um fenômeno cultural inédito, reunindo cerca de 35 milhões de usuários e oferecendo aos adolescentes um palco para definir a própria identidade, colecionar validações, expressar sentimentos e pertencer a comunidades. Era uma experimentação em massa da vida mediada por telas, que à época dependia dos computadores de mesa, antes da onipresença dos celulares. Naquele ambiente efervescente, era possível perceber ainda restavam certos limites entre identidade digital e offline, mas já se notava a tendência à fusão. Atualmente, esses limites praticamente desapareceram: o real e o virtual se mesclam de forma quase indissociável, com o “estar conectado” tornando-se condição permanente da subjetividade contemporânea.

Minha pesquisa aconteceu nesse cenário de transição, centrada na adolescência imersa no ciberespaço nascente. Não era uma análise tecnológica, mas sim um esforço para desvendar como a presença crescente das redes e dispositivos poderia reconfigurar a psique humana. O Orkut serviu de laboratório aberto, onde pude testemunhar as primeiras manifestações do que hoje é comum: a ansiedade da desconexão, a curadoria da imagem e a fluidez dos relacionamentos.

A Psicanálise acompanhou-me ao longo dessas duas décadas de mudanças. Três adolescentes, protagonistas da minha pesquisa, forneceram as primeiras pistas das subjetividades emergentes: uma conectada e ansiosa, outra indiferente aos ditames digitais, uma terceira adaptando-se com leveza surpreendente. Suas vozes, angústias e esperanças, revisitadas hoje, convidam a uma reflexão mais humana e psicanalítica sobre nossa relação com o mundo conectado.

Máquina In-corporada: Tecnologia, Corpo e Vínculos

Com o passar dos anos, já era visível que a tecnologia deixava de ser apenas uma ferramenta externa, passando a se integrar ao próprio ser humano. O que antes era um simples artefato se transformava em uma extensão quase orgânica do corpo. Em meus estudos daquele período, propunha-se que a tecnologia não estivesse mais “diante” do homem, mas se situasse “dentro” do corpo contemporâneo. O conceito de “máquina in-corporada” — aprofundado sob o olhar psicanalítico — sugere que o dispositivo, ao ser internalizado, transforma nossa percepção, desejos e corporalidade, dissolvendo fronteiras entre o “eu” e a tecnologia. Ela deixa de ser algo externo e passa a moldar profundamente nossas formas de sentir, relacionar-se e existir.

O imperativo de “estar conectado” deixava de ser mera escolha social e tornava-se o início de uma simbiose. Comunidades, “scraps” e depoimentos operavam como mecanismos de validação e demandavam a curadoria de identidades digitais cada vez mais relevantes que a pessoa offline. Cada atualização e interação era direcionada a um público amplo, exigindo performance contínua e auto-observação intensa, antecipando o ciclo de validação social que hoje nos atravessa.

Além disso, nos últimos anos, a inteligência artificial passou a influenciar fortemente as redes sociais, otimizando a criação de conteúdo e a análise de dados do comportamento dos usuários. Ferramentas automatizadas ajudam desde a sugestão de temas à edição de imagens, moldando novas formas de interação e autoexpressão.

Nos relatos dos jovens, a urgência da conexão digital se manifestava nitidamente. Uma frase emblemática: “Eu tô incomunicável, daí dá desespero, parece que você não faz parte do mundo, sabe?”. Isso revela o medo profundo de exclusão e esquecimento: a tecnologia, que antes era meio, havia sido elevada a condição fundamental de pertencimento, quase uma prótese existencial. Para alguns, desconectar equivalia a perder uma parte de si, uma ameaça à integridade psíquica e social.

Hoje, o smartphone representa o ápice da máquina in-corporada. Nossas “próteses cognitivas” nos acompanham o tempo todo e já não estão restritas ao celular: relógios inteligentes e outros wearables monitoram e notificam em tempo real, tornando-se “extensões biométricas e comunicacionais”. O celular, antes posse, agora compõe um ecossistema de dispositivos que nos mantém constantemente conectados, inclusive em momentos antes reservados à introspecção ou à interação direta. A ansiedade da desconexão, que antes parecia traço isolado de alguns jovens, agora é uma neurose global, conhecida como FOMO (Fear of Missing Out). A vida sem celular soa inimaginável; a falta de internet pode desencadear angústia comparável a grandes perdas.

As consequências psíquicas dessa incorporação ainda estão sendo desvendadas. O tempo se fragmenta em microinterações, induzindo imediatismo. O espaço se desloca prioritariamente para o virtual, enquanto o entorno físico pode perder sentido. A linha entre “eu” físico e digital dissolve-se: autoestima frequentemente atrelada a números de curtidas e seguidores, performance que nunca cessa, e crescente dificuldade de aceitar vulnerabilidades. A máquina in-corporada não é só avanço técnico, mas agente reformador do psiquismo, dos laços sociais e da própria concepção do que é ser humano.

Ilha de Edição e Disfarce: A Curadoria e Performance da Identidade Digital

A profunda integração da tecnologia deu origem à “ilha de edição”, conceito que pode representar o indivíduo como curador de imagens e narrativas cuidadosamente selecionadas para apreciação alheia. Mais que espaço virtual, a ilha de edição é a sala de controle onde cada um edita sua própria presença. O
fenômeno antes restrito às celebridades agora se generalizou: redes sociais transformam todos em editores e promotores da própria imagem, tornando rotineira — e muitas vezes exaustiva — a prática da autopromoção.

Na época do Orkut, esse processo já se desenhava, embora de modo mais rudimentar. Perfis funcionavam como vitrines: exibiam as melhores fotos, textos idealizados e depoimentos estrategicamente selecionados. Os adolescentes, atentos aos mínimos detalhes desses espaços, buscavam pertencimento e validação pelo pertencimento a comunidades e pela curadoria quase instintiva de si mesmos. Esse exercício antecipava o que seria mais tarde necessidade existencial na hiperconectividade: a montagem de uma versão “aprimorada” do eu, em contínua busca por aceitação digital.

A “ilha de edição” é, portanto, um processo dinâmico, impulsionado por feedbacks constantes e novas tendências. Ela exige permanente vigilância sobre a própria performance, submetendo a pessoa a um ciclo de remodelação da identidade guiado pelo olhar externo. Tal liberdade de expressão, paradoxalmente, aprisiona na busca por perfeição, gerando divergência entre realidade e imagem digital, e pode acentuar a fragilidade do eu real por trás da tela.

O conceito de “Paixão do Disfarce”, trabalhado por Fábio Herrmann, torna-se central nesse contexto. O disfarce não é mera enganação, mas um comportamento social necessário: seguimos códigos implícitos de relacionamento, adaptando-nos e experimentando papéis diversos. No ambiente digital, a necessidade de disfarce se intensifica, tornando-se estratégia quase obrigatória para aceitação social. O palco digital potencializa a maleabilidade das identidades: o indivíduo adapta suas subjetividades conforme o ambiente e o público, não como falsidade, mas em resposta às demandas de adaptação e reconhecimento.

Além de aprimorar a exposição, o disfarce digital também serve como proteção diante da constante exposição e da busca por aprovação. Herrmann considera que o “eu” é em si uma “máscara inventada”, trabalhada ao longo da vida — e as redes são o espaço primordial dessa construção e revisão. A circulação da imagem de si torna-se permanente, impulsionada pelo imperativo de pertencer e de manter-se visível, instaurando um ideal de “autenticidade performada” que pode ser insustentável a longo prazo.

Conexão versus Vínculo: Relações, Mal-estar e Cultura Digital

A incorporação tecnológica não impactou apenas o modo como nos apresentamos, mas reformulou profundamente as formas de nos relacionarmos. A passagem do século XX para a era digital abriu espaço à “conexão”, que suplantou o vínculo como modelo dominante das interações. Profundidade e permanência foram substituídas pela instantaneidade e funcionalidade, alterando inclusive o significado dos próprios termos: “amigos” e “relacionamentos” passaram a dar lugar a “conexões”, “seguidores” e “contatos”. Essa incorporação pode ser pensada a partir Sherry Turkle, que analisa a fusão entre os dois mundos desde “Alone Together” e outros escritos sobre “vida nas telas”.

O padrão de descartabilidade, antes restrito ao ambiente virtual, agora influencia expectativas sobre relações offline, tornando o compromisso menos valorizado. Bloqueio, unfollow ou ghosting são práticas comuns, evidenciando a preferência por conveniência e menor exposição à vulnerabilidade. Relações caracterizadas pela busca de satisfação imediata, alimentadas pela ilusão de infinitas possibilidades, promovem impermanência e evitam investimento emocional profundo — menos investimento, menos insegurança.

Paradoxalmente, tal hiperconectividade intensifica a solidão: o volume de interações não garante qualidade, e a constante disponibilidade raramente se traduz em apoio significativo. A superficialidade dos contatos — mediada por telas, sem entonação ou contato humano direto — resulta em vazio relacional e dificulta a construção de laços autênticos. O resultado é uma solidão mascarada por notificações e conversas instantâneas, que estimula um ciclo vicioso de mais conexões em busca de preenchimento.

O espaço social também é redefinido: fronteiras entre físico e virtual se diluem, com conversas migrando para aplicativos e redes, onde predominam trocas utilitárias sobre o aprofundamento do diálogo. O custo da praticidade é ignorar recursos essenciais da comunicação — voz, olhar, presença corpórea— tornando o outro mais facilmente descartável e adaptável à nossa própria “edição” digital.

Essa lógica algorítmica permite hoje uma personalização cada vez maior das experiências digitais, aproximando conteúdos e pessoas segundo interesse compartilhados. Ainda que essa segmentação prometa conexões mais genuínas, ela reforça tanto comunidades quanto bolhas de convivência limitadas.

O fenômeno pode ser compreendido a partir dos pressupostos freudianos sobre o “mal-estar na civilização”. Freud observa que as exigências, normas e interdições culturais sempre entram em conflito com os desejos e impulsos individuais, gerando tensões constantes entre desejo, frustração e adaptação. Na era digital, essa dinâmica se potencializa: as redes sociais promovem uma promessa de felicidade e reconhecimento coletivo, que é rapidamente frustrada pela comparação contínua, busca de aprovação imediata e exposição a padrões inalcançáveis de sucesso e felicidade.

Esse fenômeno expande a repressão, já apontada por Freud como um dos “preços” da civilização: reprime-se, nas redes, não apenas o inaceitável socialmente, mas também tudo aquilo que diverge do ideal de felicidade e produtividade incessantes. Essa constante exposição e necessidade de validação levam muitos ao sofrimento psíquico, ansiedade e até quadros depressivos. O sujeito, submetido à aprovação social medida por curtidas, seguidores e comentários, muitas vezes renuncia aos próprios desejos e necessidades para se encaixar nas demandas externas.

Freud, ademais, definiu o desamparo psíquico como uma condição universal humana. Na contemporaneidade digital, esse sentimento é radicalizado: vivemos conectados, em permanente exposição, na fronteira cada vez mais difusa entre realidade e virtualidade. O excesso de estímulos, os “laços” frágeis e transitórios e o imperativo de pertencimento ampliam tanto a experiência de solidão quanto o desamparo, potencializando o mal-estar e a sensação de insuficiência diante dos padrões impostos pelas plataformas sociais.

Bauman aponta que essa liquidez dos vínculos —relações rápidas e potentes, porém frágeis e prontas para o descarte — é amplificada pelas mídias digitais. Goffman, por sua vez, poderia entender as redes como palcos de encenações múltiplas, onde a gestão da impressão se torna exaustiva e central.

Assim, o mal-estar na civilização adquire contornos digitais: as novas formas de sofrimento emergem do choque entre o ideal de plenitude produzido pela cultura das redes e a impossibilidade de sua realização concreta. O sintoma social contemporâneo manifesta-se no ciclo de performance, ansiedade, solidão e busca incessante por reconhecimento.

A era digital exige reflexão: ampliar conexões não significa qualidade relacional. A valorização da superfície em detrimento da profundidade, o medo constante de perder o lugar no ciclo de visibilidade digital, e o predomínio do disfarce como instrumento de relação impõem desafios inéditos à saúde mental e à construção do eu. O desafio hoje é cultivar vínculos genuínos num universo que estimula a circulação veloz de imagens e a performance exaustiva, afetando perigosamente aquilo que realmente somos.

O Eco Digital na Psique e Caminhos para (Re)Humanização

A profunda remodelação de nosso psiquismo pelas “máquinas in-corporadas” e “ilhas de edição” produz efeitos complexos na saúde mental. O ideal de performance ininterrupta nas redes sociais, sustentado pelo desejo de validação, impõe ansiedade crescente, dependência de aprovação externa e um ciclo de autocrítica e comparação constante. O eu digital, ao buscar aceitação, pode se aprisionar em narrativas editadas, minando espontaneidade e autenticidade.

Neste ambiente de hiperconectividade, a solidão se manifesta paradoxalmente: ampliam-se as possibilidades de comunicação, mas a qualidade das interações se dilui. Relações intermediadas por telas — sem contato direto, sem o corpo, sem a tridimensionalidade das trocas — facilitam vínculos frágeis e dificultam o suporte emocional real, agravando a sensação de desamparo e o medo do esquecimento ou do isolamento. Pesquisas recentes apontam que essa “neurose de ansiedade digital” apresenta sintomas próprios: preocupação crônica com avaliação social, medo constante de exclusão e manutenção de uma vigilância inquieta sobre a própria imagem digital.

Recentemente, os vídeos curtos e dinâmicos tornaram-se o formato dominante, favorecendo a busca por engajamento emocional imediato. Plataformas priorizam conteúdos visuais rápidos, ampliando tanto o potencial criativo quanto a superficialidade das trocas. Comparar-se continuamente a vidas editadas intensifica sentimentos de inadequação, especialmente entre jovens, cuja identidade está em construção e que buscam aprovação para consolidar autoestima e autovalor. O tédio, antes estímulo para criatividade e reflexão, se torna experiência aversiva — combatida com mais estímulos digitais, reforçando o ciclo de superficialidade e fuga da própria interioridade.

Diante desse quadro, a (re)humanização da experiência digital é imperativa. A Psicanálise propõe autoconhecimento crítico: podemos reconhecer a “ilha de edição” e o papel do disfarce como construções sociais, e não verdades sobre o eu; estabelecer limites de uso, cultivar interações presenciais, valorizar vínculos autênticos e a escuta mútua. O autocuidado digital, que inclui o “detox”, a contemplação do presente e a priorização da vida “não editada”, é cada vez mais essencial para o bem-estar psíquico.

A liberdade na era digital exige agência. O desafio não está em negar a tecnologia, mas utilizá-la como aliada, não como ditadora de nossa subjetividade. Cabe-nos buscar autenticidade e profundidade nos vínculos, discernir entre performance e verdade e encontrar espaços de silêncio para que a psique floresça além do algoritmo e do ruído. Mesmo diante da predominância da edição e da performance digital, cresce o discurso da valorização da autenticidade. Os usuários e influenciadores buscam se mostrar ‘reais’, expondo vulnerabilidades e cotidiano, numa tentativa de criar laços mais sinceros e diferenciados no meio virtual. Neste cenário, uma engenharia do eu consciente e crítica é essencial: optar pela qualidade do vínculo em vez da quantidade de conexões, reconhecer limites, acolher vulnerabilidades e cultivar a riqueza de experiências reais — restaurando, assim, o valor do humano diante da máquina e das imagens.

Os males da desindustrialização, por Marcio Pochmann

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 Marcio Pochmann – A Terra é Redonda – 16/09/2025

O abandono da industrialização madura condenou o país a uma reprimarização da economia, fragmentando o tecido social e espalhando a pobreza urbana para o interior. O fim da metropolização industrial não significou desenvolvimento, mas a multiplicação de favelas em novos polos de commodities, onde a riqueza exportadora convive com a informalidade e a violência organizada

De forma prematura, o processo de industrialização nacional promovido pela Revolução de 1930 foi interrompido pelas regressivas reformas neoliberais instaladas a partir de 1990. Com isso, as características principais da sociedade urbana e industrial – ainda incompleta – que havia sucedido o longevo e primitivo agrarismo há cem anos passou a dar lugar a outra estrutura social dos serviços hiperconectada por tecnologias de informação e comunicação.

Concomitante com a ruína da sociedade industrial, o fenômeno da metropolização, outrora promovida pela dinâmica da industrialização mais concentrada nas cidades litorâneas, terminou sendo embargado. Com o esvaziamento da importância da indústria, os empregos de qualidade e maior remuneração foram sucedidos por ocupações nos serviços associados, em geral, mais à circulação do que a produção, estimulando o inédito processo da desmetropolização nas regiões litorâneas.

Simultaneamente, a retomada do modelo econômico primário exportador passou a promover – mais distante da convencional rede urbana nacional – a emergência de enclaves nos espaços urbanos no interior do país face à expansão da renda nos negócios, em geral, voltados ao comércio exterior. Dessa forma, o fenômeno da urbanização periférica do capitalismo que estava praticamente concentrado nas antigas metrópoles litorâneas brasileiras passou rapidamente a ser interiorizado com outro tipo de dinâmica urbana em cidades de médio porte.

Os males da desindustrialização

O declínio da atividade industrial no conjunto da economia brasileira compreende, em geral, o processo antecipado da desindustrialização desde o final do século 20. Nos países do Norte Global com a industrialização considerada madura, a queda relativa da atividade industrial aconteceu em grande medida após o pleno atendimento da demanda populacional por bens manufaturados, favorecendo o maior deslocamento do consumo para serviços mediados pela elevação da renda per capita menos desigual.

No Brasil, contudo, a desindustrialização terminou ocorrendo precocemente, sem que o país tivesse ainda atingido o nível de industrialização madura. Assim, uma parcela significativa da população ficou distante do acesso pleno aos bens manufaturados, simultaneamente à estagnação relativa da renda per capita e à repartição desigual da riqueza sustentada no processo fictício da financeirização.

No ano de 2024, por exemplo, o setor industrial representou a metade da participação que havia sido registrada, em 1985, no Produto Interno Bruto nacional. No mesmo período de tempo, tanto a parcela do emprego industrial em relação ao total do emprego formal decaiu 44% como avançou parte dos postos de trabalhos mais qualificados na indústria foram substituídos pelos de serviços, em geral de menor produtividade e contida capacidade de geração de riqueza e desenvolvimento tecnológico.

Assim, o antigo projeto de avançar na direção nacional de uma economia complexa e diversificada foi sendo gradualmente superado pelo novo perfil da especialização produtiva ancorado em certo dinamismo regional assentado em commodities para exportação. Com a geração da renda exportadora, o Brasil passou a ter melhores condições de financiar o acesso aos bens e serviços de maior valor agregado por meio das importações, reposicionando-se na Divisão Internacional do Trabalho1.

A desmetropolização litorânea

A metropolização marca o processo de industrialização nacional concomitante com o enorme êxodo rural acontecido ao longo do século XX. Sem a realização da reforma agrária, comum nos países do Norte Global, o Brasil assistiu – concentrado no tempo – ao brutal deslocamento da população do campo no interior do país para poucas cidades litorâneos providas de intenso crescimento econômico industrial.

A cidade do Rio de Janeiro que até 1960 era a capital federal e economicamente uma das mais dinâmicas do país serve de exemplo da expansão desordenada ocorrida nos centros urbanos com base produtiva industrial. Entre os anos de 1950 e 1980, a intensa expansão populacional do município do Rio de Janeiro registrou o aumento de moradores em favelas que passou de 7,2% para 12,1% do total da população.2

Algo diferente da realidade das favelas que surgiram no final do século XIX no Brasil, quando muitos libertos sem recursos e excluídos de políticas públicas se deslocaram para áreas pouco povoadas, mais afastadas e precárias dos centros urbanos. A primeira favela brasileira teria surgido no ano de 1897 na cidade do Rio de Janeiro, em pleno Morro da Providência, com a chegada dos ex-combatentes da Guerra de Canudos (1897-1897) que lutaram na expectativa de receber uma moradia.

Uma especificidade da urbanização brasileira transcorrida durante o ciclo da industrialização nacional deveu-se, em geral, à ausência do planejamento nas cidades que diante da migração desenfreada produziu enorme desigualdade na ocupação do espaço urbano, sobretudo concentrado nas regiões litorâneas. De certa forma, a antiga pobreza rural terminou sendo transferida parcialmente para as grandes cidades, concomitante com o aparecimento de favelas em paralelo à ampliação da riqueza produzida pelo crescimento industrial do país.3

Toda essa transformação estrutural da sociedade brasileira imposta pela urbanização até a década de 1980 esteve submetida à elevação dos ganhos de produtividade do trabalho. Com isso, parte importante da pobreza advinda do campo foi sendo superada por empregos com salário superior ao nível de subsistência, sobretudo no segmento industrial.

Mas com a desindustrialização posta em marcha pelas reformas neoliberais regressivas desde 1990, a desmetropolização passou a se processar enquanto processo inverso da metropolização. Isso porque correspondeu ao afastamento da população, empresas e investimentos centrado nas grandes metrópoles na faixa litorânea para cidades de médio porte, seja em regiões metropolitanas, seja no interior do país.

Com a estagnação da produtividade do trabalho, especialmente nos antigos centros industriais do país, as grandes cidades litorâneas deixaram de ser atrativas à migração como anteriormente. Mesmo assim as favelas continuaram a se reproduzir com a presença de múltiplas gerações de moradores com antepassados, ainda que assistidos por avanços de urbanização.

Conforme revelado pelo Censo Demográfico de 2022, a população brasileira aumentou, diferentemente do conjunto dos residentes nas metrópoles litorâneas. As 27 capitais brasileiras mantiveram a participação no total da população entre os anos de 2010 e 2022, por exemplo, enquanto entre os censos demográficos de 1872 e 1980 foram as cidades com maior concentração de habitantes.

Os municípios de São Paulo e do Rio de Janeiro, as duas cidades mais populosas do país, exemplificam o processo da desmetropolização em regiões litorâneas. No ano de 2022, por exemplo, os dois municípios juntos responderam por 8,7% do total da população do país, enquanto em 1991 representavam 10,3%. Somente em 2025, quase 38% dos 5.571 municípios brasileiros tiveram redução no número de habitantes em relação ao ano de 2024.

Favelização no interior do país

O fenômeno da favelização ocorrido durante a urbanização processada no ciclo da industrialização nacional entre as décadas de 1930 e 1980 deixou de ser mais recentemente um problema exclusivo das metrópoles próximas da costa atlântica do país. Com a desindustrialização e a desmetropolização, a favelização tem avançado para algumas cidades do interior, compreendendo, por exemplo, os municípios que enriqueceram assentados, em geral, no modelo econômico primário-exportador.

Sejam estados com desindustrialização mais avançada como em São Paulo, exemplificado pelas cidades abastadas na produção sucroalcooleira (Ribeirão Preto e Sertãozinho), e no Rio de Janeiro, nas regiões petroleira (Macaé e Rio das Ostras) e da turística serrana (Petrópolis e Teresópolis), sejam estados com baixo graus de industrialização como nas regiões do Norte (Amazônia e Pará) e do Centro-Oeste (Distrito Federal e Goiás), a favelização da população no interior cresceu.4

A partir da década de 1990, justamente quando se tornou mais evidente no país a contenção do crescimento demográfico e a desaceleração da urbanização, ganhou impulso a parcela da população residindo em domicílios definidos como favela que saltou de 6,1 milhões (3,3% da população total), em 1991, para 16,4 milhões de pessoas (8,1% da população total), em 2022. Ainda que a comparação populacional não seja adequada diante de alterações metodológicas, percebe-se a aceleração tanto da quantidade de municípios com registros de população favelada, multiplicada por 3,1 vezes (de 209 para 656 cidades), como do número de favelas que passou de 2,7 mil para 12,3 mil (4,6 vezes maior).

De um lado, o Brasil segue concentrando população favelada nas metrópoles litorâneas diante do esvaziamento econômico provocado pela desindustrialização, violência e elevado custo da vida. Assim, a informalidade ocupacional em decréscimo nos antigos centros industriais passou a recuperar espaço urbano, tendo o destino das massas sobrantes aos novos requisitos do capitalismo rentista exposto a disputas entre o importantíssimo conjunto governamental dos programas de transferência de renda e o salto organizativo do banditismo social e/ou fanatismo religioso (sistema jagunço urbano).

De outro lado, as concentrações urbanas mais favelizadas revelam o deslocamento demográfico para municípios do interior que guardam alguma dinamicidade econômica a atrair população que vem, por exemplo, da floresta para se acumular ao longo de grandes rios da Amazônia. Também o fenômeno da favelização em cidades médias do interior do país que decorre do processo vinculado à dominância do modelo econômico primário-exportador.

Ao concentrar riqueza do comércio externo estimula localmente ocupações em atividades vinculadas ao comércio e serviços em geral. Dessa forma estimula a formação de quase enclaves locais que parecem repetir o passado da urbanização desigual ocorrida no passado sem planejamento nas regiões litorâneas, porém, agora, submetida à presença do novo sistema jagunço.

Marcio Pochmann, professor titular de economia na Unicamp, é o atual presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Autor, entre outros livros, de Novos horizontes do Brasil na quarta transformação estrutural (Editora da Unicamp).

Notas

  1. ARAUJO, E.; FEIJÓ, C. Industrialização e desindustrialização no Brasil.Curitiba: Appris, 2024; POCHMANN, M. Brasil sem industrialização: a herança renunciada. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2016; SAMPAIO, D. Desindustrialização e desenvolvimento regional (1985-2015). In: MONTEIRO NETO, A. et al. (orgs.) Desenvolvimento regional no Brasil: políticas, estratégias e perspectivasRio de Janeiro: Ipea, 2017.
  2. GUIMARÃES, A. As favelas do Distrito Federal e o Recenseamento de 1950. Revista Brasileira de Estatística. ano 14, n.55, jul./set., 1953; COSTA, V. Expansão e quantificação de favelas no município do Rio de Janeiro nas últimas décadas. Rio de Janeiro: Ippur/Ufrj, 1992.
  3. DA MATA, D. et alFavelas e dinâmica das cidades brasileiras. In: CARVALHO, A. et al. (orgs.) Ensaios sobre economia regional e urbana. Brasília: Ipea, 2007; SANTOS, M.  A urbanização brasileira. São Paulo: Editora HUCITEC, 1993; POCHMANN, M. A desmetropolização regressiva do Brasil. Outras palavras, 2022.
  4. PEQUENO, R. Expansão da favelização no Brasil.Observatório das Metrópoles, 2024; FREITAS, A. Favelas rurais e favelas urbanas no Brasil. Revista Políticas Públicas & Cidades, 13 (2), 2024; PÁDUA, J. Favelização na cidade média do agronegócio. Porto Alegre: UFRGS, 2020.

35 anos: o sistema que queremos e que precisamos ter, por Guimarães, Costa & Fernandes

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O SUS que almejamos e necessitamos passa inevitavelmente pela ampliação da Medicina de Família e Comunidade

Por Fabiano Guimarães, Brenda Costa e Arthur Fernandes

O Estado de São Paulo, 19/09/2025.

Em 2025, o Sistema Único de Saúde (SUS), um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde pública do mundo, celebra 35 anos de existência. Fundamentado a partir do artigo 196 da Constituição federal de 1988, o SUS é um pilar da cidadania brasileira, garantindo acesso integral à saúde, da prevenção e da atenção primária ao tratamento de alta complexidade, como câncer e transplantes, para milhões de pessoas, servindo como modelo e inspiração global por sua universalidade e abrangência, que contrastam com modelos fragmentados e de alto custo em outras nações.

Nessas três décadas e meia, o SUS impulsionou avanços notáveis: a drástica redução da mortalidade infantil, a erradicação da poliomielite e um calendário vacinal robusto e atualizado são testemunhos de sua eficácia e resiliência. Mais do que inspirar sistemas de saúde globais, o SUS alcança os locais mais remotos e as populações mais vulneráveis, oferecendo cuidado essencial sem custo direto ao paciente, um contraste marcante com a realidade de muitos países, onde o acesso à saúde é determinado pela capacidade de pagamento.

Mesmo com ampla atuação em diversas frentes, o SUS ainda está em processo de avanço em muitas áreas, principalmente na Atenção Primária à Saúde (APS) e no programa Estratégia Saúde da Família (ESF). Ambos são o ponto inicial de contato da população com o sistema, por meio das mais de 44 mil Unidades Básicas de Saúde espalhadas pelo País. Enquanto você lê este artigo, profissionais das mais de 50 mil equipes da ESF estão atuando nos mais diversos territórios do Brasil.

E qual seria o SUS que queremos e precisamos dentro da perspectiva real e futura da população brasileira? O SUS que almejamos e necessitamos, à luz das crescentes demandas futuras da população, como o envelhecimento demográfico e o aumento das doenças crônicas, passa inevitavelmente pela ampliação da Medicina de Família e Comunidade (MFC). Experiências bem-sucedidas em países como Canadá, Holanda e Reino Unido demonstram que investir massivamente na atenção integral e coordenada eleva a qualidade de vida da população e otimiza os recursos do sistema, gerando eficiência e sustentabilidade.

Na APS, o indivíduo é atendido de forma holística, considerando não apenas a doença, mas o contexto social, econômico e familiar do paciente, sendo encaminhado a especialistas apenas quando estritamente necessário. A presença de médicos e médicas de família e comunidade acessíveis, atuando como o profissional de referência para cada cidadão, é uma estratégia de saúde pública comprovadamente eficaz e custo-efetiva. Essa abordagem, alinhada às melhores práticas internacionais, é capaz de transformar o panorama da saúde no Brasil ao promover a saúde, prevenir doenças e gerenciar condições crônicas de forma mais eficiente.

A Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) corrobora: o investimento robusto na APS não só reduz custos operacionais, mas eleva a qualidade de vida e a eficiência global do sistema de saúde.

Ao centralizar os cuidados num único especialista que atua com a abordagem centrada na pessoa, o SUS oferta os princípios de longitudinalidade e integralidade. O acompanhamento ao longo da vida faz com que aquele médico ou médica conheça a pessoa com todos os seus determinantes sociais, inserida em seu contexto familiar e comunitário, e como tudo isso afeta a sua saúde, produzindo melhores tratamentos e prevenindo doenças, reduzindo excesso de exames e intervenções desnecessárias, promovendo assim uma economia ao sistema.

O SUS que existe já é grande, robusto e funcional, mas pode melhorar e estamos caminhando para isso. Novas políticas públicas estão sendo implementadas, assim como outras estão em discussão. Que o Sistema Único de Saúde, patrimônio do povo brasileiro, continue sua trajetória de sucesso, assegurando saúde e dignidade a todos. Vida longa ao SUS!

Fabiano Guimarães, Médico de família e comunidade, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, mestre em Saúde da Família Profsaude/UFJF, preceptor da Residência em Medicina de Família e Comunidade do HC-UFMG, é professor da Graduação em Medicina na Unifenas-BH

Brenda Costa, Médica de Família e Comunidade, diretora de Comunicação da Sbmfc, doutoranda em Saúde Pública na ENSP/Fiocruz, professora no departamento de Medicina Integral, Familiar e Comunitária, é preceptora do programa de residência em Medicina de Família e Comunidade da UERJ

Arthur Fernandes, Médico de família e comunidade, diretor do Departamento de Comunicação da Sbmfc, mestre em Cuidados Paliativos e Paliativista, preceptor da Residência em Medicina de Família e Comunidade da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF), é referência técnica distrital em MFC da SES-DF

Polarizações crescentes

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Vivemos numa comunidade internacional marcada por grandes confrontos políticos, discussões econômicas e desajustes sociais, com impactos generalizados para todos os indivíduos, empresas e governos nacionais, gerando constrangimentos para todos os setores sociais, conflitos bélicos e militares, crescimento tecnológico inimaginável e dificuldades crescentes de relacionamento interpessoal, além de grandes desequilíbrios emocionais e espirituais.

Neste ambiente de tantos desequilíbrios percebemos o aumento sistemático da polarização em todas as esferas e setores da comunidade global, cientistas renomados, responsáveis por pesquisas relevantes, se sentem ameaçados e perseguidos por movimentos negacionistas que renegam descobertas científicas importantes para a comunidade mundial, gerando incertezas, medos e instabilidades na população, contribuindo para a divulgação do pânico, da confusão e do descrédito das pesquisas científicas.

No front político, percebemos o incremento da polarização, embora percebamos que a discussão faz parte da lógica política para a construção dos ideais democráticos, os debates nos parlamentos são imprescindíveis, as conversações são fundamentais entre os atores sociais, políticos e econômicos para defenderem ideias e pensamentos com o intuito de fortalecer os laços sociais, aumentar e consolidar os consensos sociais, vislumbrando um bem-estar na comunidade. Infelizmente, as polarizações crescentes, em todas as regiões do mundo, nos trazem confrontos físicos, agressões constantes, violências verbais, cancelamentos, represálias e inverdades, que contribuem para a fragilização dos ideais democráticos, levando a sociedade a perder tempos preciosos com discussões estéreis e inapropriadas, onde cada grupo defende seus interesses imediatos.

No campo econômico, percebemos um conflito secular entre ortodoxos e desenvolvimentistas, com visões diferentes do comportamento econômico e da percepção política, um se deliciando com políticas de austeridade, juros altos e arrocho da renda da população mais fragilizada, defendendo a limitação dos gastos públicos e sociais, além de manterem os subsídios para grupos mais abonados da sociedade, muitos deles seus empregadores. De outro lado, percebemos que outros priorizam os investimentos produtivos, a geração de emprego, aumento da renda e salários melhores, sendo vistos, muitas vezes, como populistas e gastadores.

No campo ideológico, percebemos um conflito crescente e assustador, pessoas defendendo pensamentos e ideologias desconhecidas, bradando ideias e teorias conspiratórias supostamente defendidas por intelectuais e, pasmem, autores que não foram lidos e mesmo assim, se arvoram na condição de críticos travestidos de intelectuais e dotados de capacidade reflexiva. Neste cenário, percebemos, na sociedade global, uma visão binária, acreditando que um dos lados é o representante do bem e outros são representantes do mal, uma dualidade medíocre e limitadora da capacidade de reflexão crítica sobre os grandes desafios da comunidade internacional.

A polarização do mundo coloca os indivíduos em um grande conflito existencial, neste cenário ao encontrarmos pessoas com ideias e pensamentos diferentes são taxados de ignorantes e atrasados, limitando a capacidade cognitiva, gerando um conflito de todos contra todos, num momento fundamental para compreendermos os grandes desafios da humanidade. Esta polarização nos coloca em polos contrários, num momento imprescindível para unir forças em prol da humanidade, elencando desafios coletivos, tais como a degradação ambiental, a corrupção generalizada, a pobreza material que assola parte significativa da sociedade mundial, a concentração de riqueza que patrocina uma guerra fratricida entre ricos versus pobres, dentre outros. Será que estamos na hora de acabarmos com essa polarização equivocada e atrasada, que destroem os elos dos seres humanos e leva a sociedade global para uma desagregação civilizacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre e Doutor em Sociologia e Professor universitário

“Dilma foi derrubada pelos donos do PIB”, diz Leonardo Loureiro Nunes

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Economista afirma que um dos principais objetivos do golpe de 2016 foi elevar as margens de lucro de setores cartelizados da economia

Brasil 247 – 13/06/2025

247 – Em entrevista ao jornalista Leonardo Attuch na TV 247, o economista e administrador Leonardo Loureiro Nunes apresentou os principais argumentos de seu recém-lançado livro Dilma contra os donos do PIB (Editora Contracorrente, com prefácio de Luiz Gonzaga Belluzzo), que investiga o papel dos grandes grupos econômicos no golpe parlamentar que resultou no impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016.

Nunes sustenta que a ruptura institucional não se deu por colapso econômico, mas sim pela insatisfação da elite empresarial com políticas públicas que reduziram suas margens de lucro. “Houve uma queda generalizada da taxa de lucro da economia, e é isso que explica a rejeição ao governo Dilma”, afirmou. Segundo ele, Dilma foi “derrubada pelos donos do PIB” — os setores oligopolizados da economia que, ao verem seus lucros comprimidos, se aliaram para romper a institucionalidade democrática.

A tese central: lucros sob ataque

De acordo com o autor, a explicação para o impeachment deve ser buscada menos nas narrativas de crise ou corrupção, e mais na perda de rentabilidade de setores estratégicos da economia. “O que causou a insatisfação foi a queda nas taxas de lucro. Dilma tentou controlar preços estratégicos — como energia, combustíveis, juros e tarifas de concessões — e isso desagradou profundamente os grandes grupos econômicos”, explica.

Nunes argumenta que esses grupos, que ele chama de “donos do PIB”, não se confundem com a base industrial tradicional representada por federações como a Fiesp. São conglomerados atuando em setores como energia, logística, mineração e bancos, com forte interpenetração entre capital produtivo, rentista e internacional. “Hoje não há mais distinção entre capital nacional e internacional. Tudo está entrelaçado.”

Políticas que desagradam o topo

Entre as iniciativas que teriam despertado a ira do mercado financeiro, Nunes lista:

  • MP do Setor Elétrico, que visava baixar os preços da energia renovando concessões amortizadas com tarifas menores. “Muitos fundos de investimento têm posição em empresas de energia. Isso afetou diretamente sua rentabilidade.”
  • Redução dos spreads bancários, por meio do Banco do Brasil e da Caixa, pressionando a margem de lucro do setor financeiro.
  • Política de modicidade tarifária em concessões de infraestrutura, como no PIL (Programa de Investimento em Logística), estabelecendo que vencia o leilão quem oferecesse a menor tarifa.
  • Controle nos preços dos combustíveis e desonerações fiscais, que foram capturadas pelas empresas sem se traduzirem em aumento de investimento ou produção.

Todas essas medidas, segundo o economista, foram tentativas de elevar a competitividade da indústria brasileira, mas acabaram minando o apoio da elite empresarial.

Um projeto burguês sem a burguesia

Para Nunes, há um equívoco histórico recorrente na esquerda brasileira: a crença na existência de uma burguesia nacional desenvolvimentista. “Sou cético em relação à existência de uma burguesia nacional. O Brasil é um país periférico e essa classe empresarial olha apenas para seus interesses imediatos”, afirmou. “O PT tentou fazer um projeto reformista burguês à revelia da burguesia.”

Essa crítica remete à tradição de intelectuais como Florestan Fernandes e Celso Furtado, que analisaram a formação das classes médias e das elites brasileiras como profundamente conservadoras e avessas à mobilidade social ascendente das classes populares.

A classe média e o ressentimento social

Nunes também oferece uma explicação sociológica para o papel da classe média no processo de desestabilização do governo Dilma. “A classe média baixa foi uma das grandes bases do bolsonarismo. O andar de baixo subiu, e ela ficou estagnada. As pessoas são comparativas. E isso gerou ressentimento”, disse. “Programas sociais como o Bolsa Família criaram incômodos em setores que não se viam contemplados por políticas específicas.”

Essa frustração, combinada com o discurso anticorrupção promovido pela mídia e pelo Judiciário, criou um terreno fértil para manifestações e adesão a um projeto autoritário de ruptura institucional.

O legado do golpe e o desafio de Lula

Segundo o autor, o governo de Michel Temer — que sucedeu Dilma após o impeachment — recompôs as taxas de lucro da elite empresarial com medidas regressivas, como a reforma trabalhista, previdenciária e privatizações. “Mesmo com uma economia menos dinâmica, o governo Temer ampliou as margens de lucro.”

Já o presidente Lula, no terceiro mandato, enfrenta restrições herdadas desse processo. “Muito do que foi feito no pós-Dilma foi bem amarrado e impõe limites. A política de preços da Petrobras, por exemplo, engessou a capacidade do governo de atuar”, aponta.

Além disso, Nunes lembra que o Brasil de hoje é outro: polarizado, com instituições abaladas e sob a constante ameaça da extrema direita. “Não dá para esperar os mesmos índices de aprovação de 2010. O governo tenta normalizar a democracia após uma tentativa de golpe de Estado.”

Socialismo na periferia: limites e dilemas

Ao ser questionado sobre uma eventual ruptura socialista, Nunes expressou ceticismo quanto à viabilidade de experiências radicais nos países periféricos. “Não acredito em soluções de ruptura pela periferia do capitalismo. O centro — EUA e Europa — é que teria condições de promover mudanças estruturais.”

Para ele, o desafio da esquerda é formular respostas concretas aos problemas do trabalho, da renda e da desigualdade, sem cair nas armadilhas retóricas da extrema direita, que aponta inimigos fictícios (como imigrantes ou programas sociais), enquanto protege o capital.

Uma obra fundamental

Dilma contra os donos do PIB é resultado de uma tese de doutorado defendida na Universidade Paris 1 – Panthéon-Sorbonne. O livro reúne entrevistas com nomes como Nelson Barbosa, Esther Dweck, Arno Augustin, Luciano Coutinho e outros formuladores da política econômica dos governos do PT. Nunes também ouviu empresários e dirigentes da Fiesp, alguns sob anonimato, que revelaram perplexidade com as consequências políticas do golpe de 2016.

A obra é um marco na análise econômica e política do impeachment, conectando os interesses do topo da pirâmide econômica com a erosão da democracia brasileira. Como disse o próprio autor: “O vice-presidente transformou o impeachment numa eleição indireta para presidente. Se isso não é golpe, não sei o que é.”

Disponível pela Editora Contracorrente, o livro se impõe como leitura essencial para compreender o passado recente e os desafios presentes da democracia no Brasil.

O golpe impune no cerrado, por Marcelo Leite.

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Condenação é pouco para todo o mal que a boçalidade ruralista já causou

Marcelo Leite, Jornalista de ciência e ambiente, autor de “A Ciência Encantada de Jurema” (ed. Fósforo).

Folha de São Paulo, 15/09/2025

Sessenta e oito anos cumpridos neste domingo (14) é tempo suficiente para ver de tudo acontecer. Há 52 anos, a morte de Salvador Allende no golpe do Chile, sob as ordens de um Augusto Pinochet que matou 3.000 adversários políticos e é por isso admirado por aprendizes no Brasil.

Há 24 anos, a queda das torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York. Morreram outras 3.000 pessoas, um décimo do que o inelegível defendia matar numa guerra civil brasileira.

Há três dias, o sentenciamento a 27 anos de prisão do presidente que se mandou para os EUA, de onde pretendia assistir pela TV o golpe de seus kids pretos. O mesmo que sustenta lá o filho quinta-coluna conspirando contra o próprio país.

Vinte e sete anos é tempo insuficiente para punir alguém cujas ações e omissões causaram 95 mil dos mais de 700 mil óbitos por Covid sob seu governo. Brasileiros mortos por falta de oxigênio, de quem o covarde fez troça imitando-lhes a asfixia.

Mas justiça não é vingança, pontificam comentaristas com a razão. Cadeia serve para proteger a coletividade, impedindo o criminoso de voltar a delinquir. Sei.

O 11 de setembro marca também o Dia do Cerrado, agonizante sob os golpes do agronegócio que elegeu o condenado e pagou acampamentos, caminhões e ônibus de mínions marchando para a festa da Selma em 8 de janeiro de 2023. Haverá entre eles arrependidos, mas não pelos crimes ambientais continuados.

De 1985 a 2024, segundo o MapBiomas, o desmatamento do cerrado para cultivo de soja saltou de 6.200 km2 a 120 mil km2, incremento de 19 vezes. Em 2021, percorrendo essa savana mais biodiversa do planeta, chocava ver uma bandeira brasileira sequestrada em cada fazenda (patriotismo, o último refúgio dos vilões).

Vilões e também néscios: destruir a cobertura vegetal que regula o ciclo hidrológico perturba o regime de chuvas de que tanto depende a agricultura. Em meio século, desde a década de 1970, a precipitação recuou 21% no cerrado, da média de 680 mm para 539 mm anuais.

De acordo com relatório da Ambiental Média, desde a década de 1970 diminuiu 27% o volume de água nos rios do cerrado, manancial dos pivôs de irrigação que pontilham a paisagem. Os mesmos rios que alimentam 8 das 12 principais bacias hidrográficas do país, a tal de caixa d’água do Brasil, crucial para a geração de eletricidade.

Quarenta anos foram tempo suficiente para derrubar 405 mil km2 do cerrado, mais de um quarto (28,5%) de sua vegetação nativa. Desde o período colonial, a savana brasileira acumula devastação de pelo menos metade da área, vale dizer, uma perda de cerca de 1 milhão de km2, superfície comparável à do Egito.

No governo anterior, houve anos em que o cerrado teve mais desmatamento, em termos percentuais, que a amazônia, bioma que tem o dobro de seu tamanho e concentra as preocupações do mundo. Não as da bancada ruralista que lhe deu sustentação e engrossa o centrão ainda dando as cartas no Congresso, a ponto de aprovar um PL da Destruição.

Vinte e sete anos, à sombra da trevosa história do Brasil, até que não é muito. É tempo suficiente para ver de tudo acontecer, inclusive o pior.

 

Anistia a Bolsonaro jogaria estabilidade democrática no chão, por Leonardo Weller

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Perdão a golpistas é retrocesso que pode nos levar novamente ao chumbo da ditadura

Leonardo Weller, Folha de São Paulo, 14/09/2025

[RESUMO] Conceder indultos a golpistas e conspiradores tem sido uma tradição no Brasil do pós-guerra, o que só incentiva novas tentativas de tomada armada do poder. Se a anistia de 1979 revelou-se depois indispensável para pacificar o país, afinal os militares ainda estavam no poder, repetir agora o perdão judicial a Bolsonaro e demais réus condenaria a uma instabilidade política que já parecia superada, avaliar autor.

Vários políticos de direita defendem uma anistia aos réus envolvidos na trama golpista liderada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. Segundo reportagem da Folha, o grupo inclui cerca de 300 deputados, maioria na Câmara. Por detrás desta reação contra o julgamento do STF está o governador de São Paulo, Tercísio de Freitas (Republicanos), que se move com medo da família Bolsonaro e de olho nas eleições presidenciais do ano que vem.

Do ponto de vista histórico, a anistia não é uma ideia completamente abilolada. O Brasil foi diversas vezes sacudido por tentativas de golpe, cujos conspiradores acabaram sendo anistiados em indultos que, por sua vez, geravam incentivos para novas conspirações. Esta corrente de instabilidade marcou o sistema político do pós-guerra, a primeira experiência democrática brasileira.

Getúlio Vargas se suicidou em 1954 para evitar um golpe montado pela oposição e por setores das Forças Armadas. O vice-presidente Café Filho tomou o poder, mas se ausentou do cargo, dando lugar a Carlos Luz, o presidente da Câmara. Luz se mancomunou com militares com o objetivo de evitar a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek.

O ministro da Guerra, o general Lotti, um legalista, deu um golpe preventivo em Luz para garantir que JK assumisse a Presidência. Mesmo assim, em 1959 os militares pegaram em armas contra JK, já presidente, nas frustradas quarteladas de Jacareacanga e Aragarças.

Ninguém foi condenado pelas tentativas de golpe da década de 1950, e a conspiração só cresceu nas Forças Armadas, culminando em 1964. Os ditadores não mostraram benevolência enquanto estiveram no poder: o regime militar cassou, exilou, prendeu, torturou e assassinou oponentes ao longo de duas décadas.

O general Geisel iniciou um longo processo de abertura ao assumir a Presidência, em 1974. A distensão, contudo, suscitava uma série de questões ao governo. Se deixassem o poder, quem garantiria que os militares não seriam julgados e condenados por seus delitos?

O núcleo do regime tinha medo dos civis. Já os linha-dura, que haviam torturado e matado, tentaram armar um golpe contra Geisel. Como de praxe, os conspiradores saíram impunes, mas nem por isso pararam de explodir bombas e perseguir opositores à revelia do comando militar.

A redemocratização foi viabilizada por um acordo baseado na Lei de Anistia de 1979, que livrou políticos oposicionistas e os criminosos do regime de qualquer punição, apesar de excluir os guerrilheiros condenados pelos tribunais militares. A anistia era uma garantia sobretudo aos ditadores e agentes da repressão, não à oposição que havia seguido o caminho da luta armada.

O oposicionista moderado Tancredo Neves, do MDB, saiu candidato a presidente nas eleições indiretas de 1985, tendo como vice José Sarney, um homem do regime, egresso da Arena. Com apoio de diversos políticos da ditadura, a chapa Tancredo-Sarney bateu Paulo Maluf no Colégio Eleitoral.

A anistia e o novo governo civil deram as garantias necessárias para que os militares voltassem aos quarteis, inclusive os linha-dura, que submergiram na política nacional, ao menos até a vitória de Bolsonaro em 2018.

No livro “Democracia Negociada: Política Partidária no Brasil da Nova República”, Fernando Limongi e eu argumentamos que, sem as conciliações iniciadas na anistia de 1979, a ditadura teria durado mais, possivelmente sob o julgo da linha-dura.

Apesar de ter à época revoltado vários democratas, o arranjo que se concluiu na posse de Sarney foi necessário para a construção de uma democracia sólida e duradoura. Inédito na história do país, o regime em que vivemos não mais permite tentativas impunes de golpe; vem daí a importância do julgamento de Bolsonaro no STF.

Se a anistia era indispensável para pacificar o país há quatro décadas, ela terá agora efeito oposto, capaz de jogar por terra a estabilidade democrática conquistada na Nova República. Os militares estavam no poder em 1979, controlando tanto as armas quanto a caneta com a qual se aprovaria a abertura. Naquela época, ou a oposição negociava, ou seguiríamos em um regime de exceção.

A situação é hoje bem diversa: os militares não estão no poder, e a maior parte da cúpula das Forças Armadas opôs-se ao golpe de Bolsonaro.

Não há mais necessidade de negociar com golpistas. Se políticos de direita emplacarem a anistia, novas tentativas de golpe fatalmente virão, nos condenando ao retorno ao passado, à instabilidade da democracia do pós-guerra ou, pior, ao chumbo da ditadura militar.

 

 

Num mundo de múltiplas crises, precisamos de um Estado forte e inteligente, por Eliane Conceição

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Eliane Barbosa da Conceição, Professora da Unilab-CE e pesquisadora do FGV-CEAPG; doutora em administração de empresas (FGV-SP), mestra em administração geral (Ibmec-RJ) e parceira da Plataforma Justa;

Folha de São Paulo, 13/09/2025.

A Primeira Turma do STF deve concluir nesta semana o julgamento do primeiro núcleo da trama golpista, formado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e sete de seus aliados. Tudo indica que serão condenados a mais de 30 anos de prisão.

A inelegibilidade decretada pelo Tribunal Superior Eleitoral em 2023 já havia praticamente excluído Bolsonaro do pleito de 2026, salvo uma improvável reversão da pena —hipótese ainda acalentada por seus seguidores no Congresso. A condenação iminente no STF, contudo, se confirmada, agrava a situação, afastando de vez qualquer possibilidade de retorno relevante ao cenário político.

Nesse vácuo, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, surge como potencial herdeiro do espólio do, talvez, duplamente inelegível. Em 5 de setembro, celebrou a concessão em São Paulo e exaltou a iniciativa privada, reafirmando a centralidade da agenda de privatizações em sua gestão.

Esse discurso remete aos anos 1980, quando teve início a primeira onda de reformas administrativas, no bojo da crise do capitalismo após os “anos gloriosos” do pós-guerra. Reino Unido e Estados Unidos, sob Thatcher (1979-1990) e Reagan (1981-1989), foram pioneiros em experiências de redução do papel estatal, que logo seriam replicadas em outros países desenvolvidos.

Nos anos 1990, o receituário alcançou a América Latina, impulsionado pelos Estados Unidos e organismos internacionais.

O Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 1997, intitulado “O Estado num mundo em transformação”, recomendava que as reformas administrativas na região se dedicassem a privatizações, descentralização, enxugamento dos quadros e flexibilização na contratação de servidores.

Esse documento ecoava os princípios mais amplos do Consenso de Washington, que também defendia austeridade fiscal e redução do gasto público. Mantendo o núcleo duro inicial e se reorganizando em torno elementos ou narrativas periféricas, as reformas administrativas e fiscais proliferaram nas décadas seguintes, deixando legados bem diferente dos previstos.

Interessante perceber que o relatório de 1997, ao recomendar uma completa alteração do papel assumido pelo Estado no pós-guerra, ressaltava a dificuldade dessa redefinição, uma vez que o “terreno em que se assenta está sempre mudando”.

Hoje resta evidente que o terreno mudou —para pior. As reformas legaram desigualdades, concentração de renda e poder, precarização e enfraquecimento da ação pública. Enquanto a Europa, aprendendo com os erros, reestatiza serviços essenciais, o Brasil ainda insiste no mantra da privatização.

Num mundo de múltiplas crises, precisamos de um Estado forte e inteligente. Isso exige, sim, revisar privilégios imorais de segmentos do alto funcionalismo do Judiciário, Executivo e Legislativo.

Mas, sobretudo, requer valorizar o servidor que está na ponta —professores, médicos, enfermeiros, policiais, assistentes sociais, atendentes— os chamados “burocratas de nível de rua”, na expressão de Michael Lipsky (1980). São eles que garantem a efetividade da ação governamental.

É deles que precisamos falar ao pensar uma reforma administrativa à altura dos desafios do século 21.

“Imortalidades” do Giannetti

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Costumamos dizer que, no parto, a mãe “dá à luz” ao filho, mais exato seria dizer que ela “dá o tempo”, seu primeiro minuto: a luz conquistamos ao longo da vida — sempre em busca de não morrer cedo e de transcender à morte

Correio Braziliense – 25/06/2025

A história do pensamento mostra que os intelectuais brasileiros se dedicam aos problemas do Brasil, enquanto os europeus abordam grandes temas da humanidade. De tempos em tempos, surgem exceções, como Eduardo Giannetti, que eleva nossa contribuição ao debate universal. Em suas obras, já ofereceu reflexões sobre felicidade, ética e racionalidade. Agora, com o livro Imortalidades, Giannetti une beleza literária à sólida base da história do pensamento e da reflexão filosófica, para tratar de assunto essencial à condição humana: a ideia de que a vida possa transcender sua curta duração biológica.

Giannetti adota o estilo de ensaios curtos — 235 ao todo — cada um podendo ser lido independentemente ou em sequência, como um grande romance de ideias em torno da ânsia por imortalidade que caracteriza a única espécie com consciência da própria morte e que não se conforma com esse destino. Retoma anotações acumuladas ao longo de sua vida de leituras, desde muito jovem. Investiga as diversas formas de imortalidade que o ser humano busca incessantemente. Mergulha em mais de 150 obras de 116 autores, incluindo ele próprio, para pensar, especular, compreender e descrever como o desejo de permanência atravessa a história do pensamento, especialmente ocidental, ao longo de milênios.

O autor passa por obras orientais e antigas, como o Épico, de Gilgamesh, de 1.800 anos antes de Cristo, e textos de filósofos gregos de 2.500 anos atrás. Todos com a mesma inquietação: o que havia antes de nós e o que virá depois. A ideia de continuidade após a morte foi, talvez, o gesto de maior arrogância do homo sapiens: atribuir a cada um deles o privilégio que, antes, era reservado apenas aos deuses da mitologia clássica. Mesmo os mais materialistas encontram uma forma de sobrevida nos átomos do corpo que, depois da morte, se dispersam no universo. Não há, talvez, expressão mais materialista do que a ideia bíblica de que “viemos do pó e ao pó voltaremos”.

Costumamos dizer que, no parto, a mãe “dá à luz” o filho, mais exato seria dizer que ela “dá o tempo”, seu primeiro minuto: a luz conquistamos ao longo da vida — sempre em busca de não morrer cedo e de transcender à morte. A arrogância foi punida pelo medo da morte e do pós-morte. Personagens literários que tentaram ultrapassar a fronteira entre a mortalidade dos homens e a imortalidade dos deuses foram punidos com vidas vazias e trabalho insano. Usam a capacidade intelectual para não morrer — seja ampliando os dias de vida do corpo, seja apostando numa outra existência, seja deixando obras para ser lembrado, ainda que por poucas gerações — e se esquecem de viver. Ele ainda reconstrói a história do surgimento desse desejo de imortalidade e das múltiplas formas de buscá-la, e ainda explica como esse conceito foi gradualmente apropriado e transformado pelas religiões que adotaram a ideia de alma individual e imortal, que se desprende do corpo morto e vai para outra dimensão ou reencarna depois em outros corpos.

O livro Imortalidades é um belo e rigoroso estudo sobre a arrogância de querer ser imortal e a consequente tragédia de morrer pelo vazio existencial, inclusive decorrente da ilusão de uma alma eterna. O homo sapiens talvez seja resultado de um erro da evolução natural, ao criar um animal com racionalidade ilimitada, mas incapaz de controlar moralmente seu destino e, inclusive, de aceitar o destino de sua morte definitiva, tratada como fato natural e irreversível. Confundindo viver com produzir e consumir, acaba provocando entropia ecológica e civilizatória e, no limite, o suicídio da espécie.

De certo modo, é isso que ocorre com o ser humano moderno que, ao buscar a imortalidade de cada indivíduo, ameaça a própria espécie com suicídio coletivo. A ânsia neurótica de transformar, cada vez mais rapidamente, pedras, plantas e animais em produtos para serem consumidos, define o homem moderno. O cartão de crédito como a chave da imortalidade.

Em um trabalho de Sísifo, desperdiçando a curta vida com a ilusão de permanência por meio da riqueza material a ser consumida. Ao ponto de, na era do Antropoceno, destruir o equilíbrio ecológico e ameaçar a própria sobrevivência da espécie. Felizmente, graças, especialmente, aos filósofos existencialistas é possível vislumbrar imortalidade em cada minuto de vida vivido plenamente: “Cada minuto eterno enquanto dura”. Entre essas imortalidades transitórias está a leitura de livros que nos inspiram e deslumbram, fazendo-nos imortais enquanto os lemos: sentimento despertado pela leitura de Imortalidades, de Eduardo Giannetti.

Escolha sua Distopia, propõe Luiz Eduardo Soares

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Novo livro do antropólogo é, a um só tempo, intervenção no debate da Segurança Pública e reflexão de fôlego sobre patrimonialismo, máfias e milícias no coração da República. E a respeito de como o negacionismo histórico nos arrasta para a irracionalidade…

Leandro Saraiva – OUTRAS PALAVRAS – 12/09/2025

Os animais, como se sabe, dividem-se em embalsamados, sereias, desenhados com um finíssimo pincel de pelo de camelo, que de longe parecem moscas, e mais alguns tipos. Acredito que as complexidades dessas investigações se estendam aos animais políticos, entre os quais há alguns que muito dificultam os diligentes esforços taxionômicos e taxidérmicos de quem se dedica à estabilização do mundo em catálogos capazes de anestesiar a inquietação da pólis. Luiz Eduardo Soares é um desses seres inemapalháveis. Quem o conhece pelo aspecto frontal de militante da segurança pública, vê apenas a projeção em nível pragmático do estudioso que chegou à secretaria de segurança carioca pelo empenho de pesquisa do contexto social registrado em Violência e política no Rio de Janeiro (1996). Mas quem observa o cruzamento do eixo da ação e do estudo talvez perca de vista uma dimensão filosófica de fundo, que, ao mesmo tempo que desenha equações capazes de dar forma aos problemas, interroga cada termo posto em tela, chamando a atenção para a instabilidade existencial – de poderes, palavras e afetos – dos fenômenos humanos. Um bom nome para o horizonte dessa reflexão seria – como diz o título de outro antigo livro seu, ainda tão atual –, O rigor da indisciplina (1994). E talvez uma outra forma de ver toda a complexidade de vida e morte que Luiz Eduardo, a cada vez, volta a encarar, seja a da narrativa como condição básica da existência. Como são convocados e apresentados os personagens? Como se enredam em tramas que variam entre confrontos e suspenses e mergulhos subjetivos dos quais nem eles próprios conhecem o fundo que lhes contorna a figura? Que vozes comentam e conduzem a jornada? Como os eixos agônicos amarram esses seres em desenlaces ansiados e temidos? Quem acompanha o exercício de alternância entre obras analíticas – como Justiça (2011), Desmilitalizar (2019), O Brasil e seu duplo (2019) ou Dentro da noite feroz (2020) – e as de variadas matizes ficcionalizantes – de O experimento de Avelar (1997), ao recém-lançado O Crânio de Vidro do Selvagem Digital (2025), entremeados por sucessos como Cabeça de Porco (2005) e Elite da Tropa (2006)–, sabe que a origem teatral do autor, no mítico Asdrúbal trouxe o trombone, pulsa na tensão de contrários presentes em tudo que escreve, entre a capacidade de pôr em cena a intensidade de fragmentos dramáticos precisos e o distanciamento reflexivo que revela os andaimes, luzes, sombras, bastidores e espelhos que fazem do encenado uma das infinitas possibilidades da montagem da trama social e existencial.

Escolha sua distopia (ou pense pelo avesso) é assim. Dizer que o livro é multidisciplinar, já que mobiliza sociologia, ciência política, filosofia, antropologia, direito, psicanálise, seria um tipo de miopia reversa, que vê mal por excessiva clareza de definição das bordas da constelação de fenômenos em pauta. O eixo de assuntos que encadeia suas quatro seções – a anatomia do poder miliciano, a história da corrosão das polícias, a sombra de Junho de 2013 e, por fim, o plot twist do potencial pragmático-utópico dos Direitos Humanos – é enganoso em sua linearidade sequencial, já que a cada conjunto de ensaios reunidos em cada seção, ou a cada movimento reflexivo de cada ensaio ou até mesmo a cada peça invocada para o quebra-cabeça de nossa violência histórica, vibram dialeticamente alternativas de entendimento e de forças que sugerem que há sempre uma direção contrária ao que se diz.

Nessa escrita dramático-ensaísta, até o fundamento relativista da antropologia é virado pelo avesso, por uma reflexão filosófica acerca da constituição simétrica e dialógica do sujeito moral, que não pode se furtar de projetar no outro o valor transcendente da dignidade humana universalizada, sob pena de perder a sua própria. Uma hipótese crucial, que vê a sempre repetida irracionalidade das políticas de segurança como denegação do trauma das raízes históricas de nossa violência criminal, nos ajuda a compreender o medo paranóico como um afeto coletivo de fundamento. A análise da trama social inclui uma dimensão agonística e de pathos, iluminando o movimento que liga o passado colonial, escravista e patriarcal, e a força atual do fascismo, mas também indica reversibilidades potenciais, tanto em afirmações vitais da diferença, como as invenções contemporâneas das identidades de gênero, como na afirmação radical dos Direitos Humanos. A vida e o pensamento pelo avesso.

Há por toda parte uma sensibilidade psicanalítica, acompanhada de afinidades eletivas com a boa dramaturgia. Vale o destaque para o explícito contraponto entre a necessidade da regulação jurídica, operada pelo Direito – que por definição estabiliza identidades e causalidades, para emitir juízos de culpa ou inocência – e o uso desconstrutivo da palavra por parte da psicanálise, para quem o sujeito, ser de linguagem, é sempre um campo de virtualidades exploráveis. Os exemplos sugerem que, ao contrário do que pretendia Freud, a psicanálise pode, sim, ser uma visão de mundo, um weltanschauung, com grande rendimento para entendimento da sociedade como algo mais que um código classificatório, ou mesmo uma dinâmica de confrontos – uma rede de ambivalências, não só de conteúdos proposicionais (ideologias expressando lógicas de interesses contraditórios), mas também de afetos e sentidos que tem sempre seus avessos e complementos, que, uma vez explorados, mesmo que de forma especulativa e imaginativa, redefinem a própria identidade dos sujeitos e de suas relações. Talvez se possa chamar de multidimensional esse movimento ensaístico que, por exemplo, para passar em revista empírica e teórica as vicissitudes dos Direitos Humanos, começa por um mergulho em Hamlet como paradigma de hesitação e do caráter abismal da consciência e inconsciência dessa invenção histórica chamada de indivíduo.

Há algo de balanço nesse livro a um só tempo de intervenção do militante da segurança pública e dos Direitos Humanos – pauta crucial no cenário político, nacional e global, encoberto pela sombra do fascismo – e de um trabalho intelectual de longa maturação. São imprescindíveis as sínteses de fôlego sobre a história de patrimonialismos, de renovados coronelismos, novas enxadas e velhos votos, que permitiram a emergência das máfias milicianas, infiltradas até o núcleo da (dita) república. Não menos importante é a complementar dissecação das formas institucionais do funcionamento das polícias e o contraponto das propostas de reforma, das quais o autor tem sido protagonista. E se os mergulhos reflexivos se tornam mais explícitos e densos nos textos das duas seções finais, trata-se apenas de um movimento de concentração, já estão presentes desde o início. Estudo histórico e estrutural, cruzamento de horizontes antropológicos, interrogação filosófica e narração dos dramas sociais e existenciais dão esqueleto, corpo e espírito para uma escrita dialógica e interpelativa que se põe e nos põe na pólis conflagrada.

O ensaio “Visão de túnel: segurança pública, ética e justiça no Brasil”, no qual é exposta a tese do negacionismo histórico como causa da irracionalidade das políticas de segurança, é um exemplo máximo dessa lapidação do pensamento, em clareza multifacetada e iluminadora de ângulos, história, tensões internas e potencialidades negadas e ao mesmo tempo presentes. Luiz Eduardo parte da experiência, tida como iniciática para os policiais cariocas, da “visão de túnel”: a ultra concentração inerente ao combate armado, que abole percepção e juízo para dispor à ação pura, imediata e inevitavelmente letal. Aí, num salto da narração antropológica da experiência do outro para a filosofia, o autor contrapõe o túnel ao universalismo contratualista na versão de Hannah Arendt que afirma ser condição para a civilização a postulação de “uma região além e acima da linha de combate”. O parafuso crítico dá outra volta, e o universalismo implícito, de sabor especulativo kantiano, de Arendt, é posto em questão, convocando como necessidade – pragmática, e não transcendental – a intencionalidade horizontal de ações políticas concretas, como perspectiva de superação do impasse. O modo de colocar o jogo de ponto de vistas em outra região é pôr para jogo a régua da violência de grau zero e a da racionalidade abstrata, interpeladas por outras possibilidades, experiências dialógicas de cidadania e invenções práticas de segurança pública. A partir dessa conexão inesperada, entre a iniciação “caveira”, filosofia e política dos direitos humanos, a visão se multiplica, se exponencia. Primeiro, por uma caracterização do fetichismo da mercadoria como indissociavelmente amalgamado ao monopólio estatal da violência, reunindo dois vetores fundamentais do pensamento ocidental. E, logo, com a especificação da reflexão para o caso brasileiro, com a projeção da visão de túnel na história do nosso capitalismo autoritário. A violência intransitiva e compulsória ganha contexto e função, revelando-se um operador crucial da nossa sociedade, tanto na naturalizada repressão e recorrente eliminação dos setores rebeldes ao arranjo de poder, como na denegação desse trauma brutal constantemente reencenado, expresso em discursos moralizantes obsessivamente repetidos, vazios e mortais, sobre segurança pública – espécie de aleph, ou segredo sujo da nação que nunca supera seu fundamento traumático. A não ser que tenhamos a coragem de olhar o trauma no fundo de nossa noite feroz, deslocando a energia da violência como sintoma para uma energia de construção inaugural da república sempre adiada.

Escolha sua distopia. Ou pense pelo avesso.

A República dos bacharéis, por Luis Fernando Vitagliano

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Luis Fernando Vitagliano – A Terra é Redonda – 11/09/2025

O Parlamento não é uma república de bacharéis, mas um espaço de garantias para todos. Se protege apenas os que detêm o poder, já não é democracia – é seu simulacro

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O Brasil elegeu em 2022 pelo menos 131 deputados cuja formação é em Direito (103 advogados e 16 bacharéis, 13 delegados). Talvez haja outros formados na área que não foram contabilizados pela profissão. Mesmo assim, este número equivale a ¼ dos deputados em exercício hoje na Câmara. Ainda que entender dos processos, conhecer as leis e atuar dentro das regras jurídicas e dos estatutos é fundamental para o exercício dos mandatos, parece haver uma preocupante relação acrítica limitante da área do Direito.

Isso tem consequências para o modo com que se apropria dos fatos. Optar pelo Direito enquanto perspectiva da política pode gerar distorção para o olhar da democracia. Obviamente entre os bacharéis, os barões do centrão e os golpistas autoritários há diferenças, mas se não nos preocuparmos com o padrão das instituições democráticas, essas diferenças acabam por dar indícios de deturpação do exercício da democracia e aproxima oportunistas de golpistas, cafajestes de sabichões, ingênuos de maldosos.

Sem a sociedade saber exatamente o que é, como se manifesta e o que sustenta a democracia, fica difícil defender seus princípios elementares e mais fáceis de atingi-la. O que podemos perceber rapidamente, com um olhar para a opinião pública, é que dificilmente encontramos definições coerentes do que seja democracia. E como cada um usa a noção de democracia do modo que convêm, corremos agora o risco de interromper o período mais longevo da democracia brasileira – que começou com a promulgação da Constituição de 1988.

São 37 anos de altos e baixos das instituições democráticas, que hoje estão sob a ameaça real de sucumbirem às pressões de uma maioria que acredita estar coberta pela iluminação, mas que abusa do precedente não democrático da decisão de maioria.

Defendi uma tese para o doutoramento exatamente sobre democracia. Desde suas definições até suas disfunções. É um exaustivo trabalho de leitura, pesquisa e reflexão. A análise histórica, factual e comparada é muito importante para formar uma robustez conceitual que dá contornos a definição. Longe de ser um conceito em que há uma definição única e precisa é preciso olhar para a história e suas múltiplas manifestações práticas.

Defendi que a democracia tem dois pilares que a sustentam: de um lado a deliberação coletiva através de consultas públicas. Eleições, Leis, deliberações públicas, impessoais e transparentes formam um governo que toma decisões com base no jogo de representação pública; de outro lado há a garantia de direitos individuais e coletivos de minorias. Ou seja, para defender a democracia é preciso reconhecer que os derrotados tenham seus direitos garantidos mesmo quando são minorias.

Ao contrário então do que comumente se supõe: democracia não é o direito constituído pela deliberação da maioria; democracia é o exercício da deliberação que garante o direito da minoria. Preservar quem perdeu é tão importante para a democracia quanto é o exercício da deliberação pelos vitoriosos. Eu diria, até mais importante; porque se quem ganhou ou teve o mandato concedido pela maioria propõe algo que atinja os derrotados diretamente deve haver mecanismos que impeçam essa ação de acontecer.

2.

Tratemos de um exemplo concreto, pergunto: ao ganhar uma eleição, conseguir apoio legislativo, com maioria no Congresso, pode um partido da maioria propor o fim da cultura cigana, por exemplo? E que aqueles que insistirem em manifestar através dessa prática serão presos e punidos com a morte? A resposta é não. Mesmo vencendo, mesmo cumprindo todos os trâmites legais e os ritos da deliberação, o princípio da maioria não se impõe ao direito de existência e de livre expressão das minorias. De modo que um ideal de democracia é a composição de minorias sem a existência de uma maioria consolidada. Portanto, não há direito que sustente a extinção da oposição.

Democracia como pode ser entendida historicamente é o regime que permite a coexistência pacífica de diferentes concepções sociais, políticas e culturais nas instituições políticas, de modo que as garantias dos direitos individuais e coletivos se harmonizam com as deliberações de governo, garantindo oportunidades sociais, econômicas e políticas a todos os grupos e indivíduos.

Assim, quando comecei a desenvolver o trabalho acadêmico, me fiz a seguinte pergunta: a democracia tem por princípio, entre outros, a garantia do direito a livre manifestação política e que minorias tenham assegurada sua liberdade de defender quaisquer que sejam seus princípios políticos. Democracia pressupõe tolerância e diversidade de opiniões e para provar a efetividade desse direito, me propus a discutir o argumento em suas últimas consequências.

Perguntei se, por exemplo, uma constituição pode banir ou proibir um partido nazista (como se faz na Alemanha)? Esta postura afasta ou aproxima a Nação da democracia? Minha resposta naquele momento era ainda inconsistente: embora reconhecesse que há razões históricas para sustentar o banimento de partidos nazistas, e que mesmo isso não sendo o ideal era coerente com a história e isso não torna o país menos democrático, reconhecia que com essa postura o conceito de democracia poderia se enfraquecer dado que não se supunha a tolerância mesmo que em se tratando de um movimento totalitário. Em linhas gerais, o que eu me perguntava é a respeito do dilema mais complexo enfrentado sobre o tema e que pode ser resumido na seguinte pergunta: podem os democráticos tolerar os antidemocráticos?

O dilema me permitia definir algumas características a respeito de democracia. Em primeiro lugar, de que há um ideal puro de democracia que concretamente não se pode atingir. Democracia plena em todos os seus aspectos é uma utopia importante para que as decisões a respeito das condições democráticas nos permitam agir.

Em segundo lugar, é preciso entender que a resposta a respeito da presença ou ausência de democracia num país não é binaria: existe e/ou não existe. Assim como não é efeito de um cálculo racional: com essas condições temos uma democracia, sem elas, não. Há uma seria de, digamos, tonalidades e/ou possibilidades de exercício de democracias dentro de um leque de deliberações que permitem a ação das maiorias e/ou não permitem determinados limites de defesa política e ideológica.

3.

Quando terminei minha tese, porém, tinha compreendido algumas ideias e questões históricas que mudaram minhas conclusões. Não em relação ao conceito geral de democracia. Mas, no que diz respeito aos seus dilemas. Entendi que há um princípio balizar da democracia que apresenta seus limites: sua própria sobrevivência enquanto sistema de garantias de direitos as minorias. Se este princípio estiver ameaçado por um grupo e/ou movimento, é preciso reagir a ele com todas as forças das instituições.

A democracia não apenas pode, como deve, reagir contra movimentos políticos antidemocráticos. Então, não só é legitimo proibir a organização de um partido nazista como é dever da democracia – baseada no argumento de que não pode este regime permitir a institucionalização de um aparelho que propõe destruir um dos seus pilares básicos: o direito da minoria.

Então, qualquer ação que tenha por objetivo a supressão através da força de movimentos de minoria, deve ser condenada pelas instituições democráticas e punida de modo que não possa existir ou ter condições para manifestar esses ideais. Portanto, só há uma lei que obriga a democracia restringir direitos: quando está diante de movimentos políticos totalitários.

Cito os bacharéis do parlamento brasileiro porque eles entendem muito bem do primeiro pilar da construção democrática (os direitos e garantias a respeito das deliberações), mas pouco do segundo (a defesa e a garantia dos direitos fundamentais coletivos) que obriga a democracia reagir em relação aos antidemocráticos.

Para os juristas que tem se manifestado na opinião pública brasileira da atualidade, democracia não é muito mais que o respeito ao devido processo legal. Não poderia ser diferente ao que diz uma especificidade da ciência jurídica. Mas, o rito processual é algo específico que não determina os elementos centrais da história política de um país.

4.

Veja o que está em questão no Brasil hoje: não é apenas o julgamento de um golpe contra um governo. Mas, a concepção por detrás desse grupo que não reconhece o direito do outro de existência e de manifestação política. Que a maioria parlamentar define tudo. Para os bolsonaristas, o direito da maioria é a democracia. Vence, tem maioria, se permite suprimir a minoria.

O bolsonarismo não é apenas um regime autoritário, é uma proposta de hegemonia política baseada na opressão das forças que a fazem oposição. Destruir o contraditório como propõem é destitui a democracia. Hoje isso se aplica a política. Num futuro próximo pode se aplicar a religião também… e assim pode seguir de esfera em esfera de valor. Portanto, quando falamos do bolsonarismo, (que agem contra as instituições e se valem do direito da maioria para oprimir a minoria), ou as instituições democráticas agem com rigor, ou a democracia está acabada.

Nenhum regime autoritário, ditatorial, opressor começa com uma defesa fundada nos valores da ditadura. Todos defendem alguma ideia de democracia. Ou sua própria ideia de democracia. Mas, na prática, exercitam a ditadura da maioria ou constroem subterfúgios dentro das instituições para tornar suas decisões majoritárias e oprimir grupos menores. Para ser tornar uma ditadura é preciso parecer ser democrático.

Pode ser que as ditaduras tenham, em algum momento a maioria dos votos. Pode ser que em outros momentos, excluam parte dos eleitores para ter a maioria dos votos. Em um ou em outro caso, são ditaduras da mesma forma. Nascem da defesa de valores consagrados.

O fato da oposição no Brasil hoje ter a maioria dos votos no Parlamento para aprovar a anistia, não quer dizer que esta seja uma deliberação legal e de acordo com as regras da democracia. É apenas um disfarce de legalidade. Sabemos que isso pode confrontar o Legislativo com o Judiciário em uma grande crise institucional. Nesses casos, o judiciário (que não tem votos nem base popular) costuma retroceder.

Finalmente, que fique claro: não haverá democracia se aprovada a anistia. Não é uma ação democrática ou sequer legal. Aprovar a anistia é um ato contrário a própria sobrevivência da democracia. Essa anistia é um salvo-conduto ao aprisionamento da democracia pelas forças autoritárias. Em primeiro lugar, parece que está na esfera da legalidade é um indicio da sua maledicência. Porque parece seguir os trâmites legais, mas os segue no sentido de aprisionar as instituições, não defendê-las.

Aprovar uma emenda de anistia é o mesmo que permitir que os setores antidemocráticos sejam alimentados para que, em seguida, tomem as rédeas do governo para reivindicarem como majoritários para conduzam a maioria à ditadura. É a asfixia do regime: impedindo-o de reagir contra aqueles que querem sua morte. É a ingenuidade de supor que a proposta destrutiva de autocratas possa limitar-se a respeitar algum princípio. Condenar os golpistas não é apenas uma defesa de uma concepção de mundo ou uma defesa de ideais. É a democracia se manifestando e atuando segundo a lei da autopreservação.

Luís Fernando Vitagliano é doutor em “Mudança social e participação política” pela EACH-USP. Autor, com Marcio Pochmann, do livro O atraso do futuro e o “homem cordial” (Hucitec).

A burla como resistência e como sintoma na educação paulista, por Fernando Cássio

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‘Ataque hacker’ de alunos às plataformas digitais deve ser analisado sem moralismo ou contemporizações; criou-se o ‘ensino a distância presencial’

Fernando Cássio, Professor da Faculdade de Educação da USP, integra a Rede Escola Pública e Universidade (Repu) e o comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Folha de São Paulo, 10/09/2025

O  editorial “Tecnologia no ensino de SP exige cuidados” (4/9) sugeriu que os alunos da rede estadual de São Paulo teriam desferido um “ataque hacker” contra as plataformas digitais que hoje centralizam toda a sua vida escolar.

A terminologia usada é imprópria, pois ataques organizados a computadores almejam o cometimento de crimes. Já o emprego de scripts para cumprir tarefas em plataformas, após login dos próprios alunos, é uma forma orgânica de resistência ao tecnossolucionismo que transformou a educação pública paulista em um paradoxal “ensino a distância presencial”.

Quando apenas o tempo de uso das plataformas era monitorado pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, os estudantes simplesmente colavam ou respondiam às tarefas com caracteres aleatórios. Agora, com o cumprimento das tarefas sendo monitorado com base nos “acertos” (ignorando o erro, ponto de partida para o aprendizado), os scripts são chamados para o trabalho.

Os alunos mais habilidosos nos aplicativos usam o conhecimento a seu favor, vendendo aos colegas um “serviço” de preenchimento de plataformas. Isso deve orgulhar o governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), que esvaziou o currículo científico do ensino médio para enxertar aulas de empreendedorismo juvenil.

Se uma ferramenta pedagógica se afasta dos processos de ensino e aprendizagem e torna-se um fim em si mesma, os alunos a tratarão de forma burocrática e acharão formas de abreviar o tédio e as pressões.

Reconhecer que o uso de tecnologias na escola é inevitável (uma obviedade!) não pode levar à afirmação condescendente, feita pelo editorial, de que as “novas políticas nesse campo decerto precisam de algum tempo para mostrar resultados”. Na educação, processo e resultado são inseparáveis.

Ademais, a dicotomia insinuada entre entusiastas “do uso de ferramentas digitais em variados campos do ecossistema pedagógico” (é este o rótulo dado pela Folha ao secretário Renato Feder) e os que defenderiam simplesmente abolir as ferramentas digitais das escolas distrai o debate público e alivia para o governo Tarcísio.

Não se pode esquecer que o entusiasmo de Feder com as plataformas deriva de seu próprio papel como agente econômico interessado na digitalização do ensino público. Nem que a ideia de “ecossistema pedagógico” pressupõe o reconhecimento das relações objetivas das pessoas com o mundo e também intersubjetivas; logo, não admite uma rotina escolar restrita ao uso de apps, que —como mostrou um estudo recente para o caso paulista— não melhorou a aprendizagem.

Sem um compromisso real do Estado com uma formação sólida para as juventudes, toda plataforma digital é quinquilharia pedagógica fadada à obsolescência.

Sintoma do fracasso de uma política que precisa mudar, a burla generalizada às plataformas não pode ser encarada com moralismo. Cientes de que a “EaD presencial” está piorando a sua aprendizagem, os alunos estão ensinando à cúpula da secretaria que a tecnologia educacional não existe em abstrato, sem escolas e sem sujeitos.

Pedir paciência àqueles que testemunham a obliteração da escola pública que os está formando soa como ofensa.

PIX, novo pretexto para golpear o Banco Central, por Paulo Kliass

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Projeto que busca subordinar ainda mais BC aos rentistas inclui agora dispositivo que supostamente protege a gratuidade do sistema de pagamentos. Direita tenta manipular bandeira da soberania e deturpa debate: mudança deixaria PIX exposto à pressões do financismo.

Paulo Kliass – OUTRAS PALAVRAS – 19/08/2025

O tema da independência do Banco Central (BC) é recorrente entre os defensores do financismo e da agenda neoliberal para o Brasil e para o mundo. Desde há muito tempo que esse pessoal da elite do sistema financeiro insiste na lengalenga de que a economia é assunto muito sério para ser deixado nas mãos dos políticos eleitos, pouco importando a legitimidade conferida a eles pela população nas urnas. Assim, o mesmo raciocínio vale para duas dentre as principais dimensões da política econômica, quais sejam a política monetária e a política cambial. E ambas são da competência do BC de acordo com nossa tradição legal e institucional.

Aos olhos do povo da finança, pouco importa que o BC tenha sido criado em 1964 logo depois do golpe militar de 1de abril, por meio da Lei n® 4595. Ele foi constituído a partir de extinção da antiga Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC) do Banco do Brasil (BB) e tomou a forma jurídica de uma autarquia vinculada ao governo federal. Assim, o BC já nasce com um certo grau de autonomia, uma vez que os membros de sua diretoria deveriam ser indicados pelo Presidente da República, mas a efetivação dependia de aprovação pelo Conselho Monetário Nacional. O modelo atravessou décadas e foi mesmo incorporado pela Constituição de 1988, com a novidade de que os membros da diretoria do BC deveriam ser aprovados pelo Senado Federal antes da nomeação pelo Presidente da República.

Apesar do livre trânsito que sempre foi exercido pelos representantes do financismo sobre a direção do BC, o fato é que essa turma nunca se deu por satisfeita. Queriam porque queriam aprofundar ainda mais a autonomia do órgão, buscando uma quase independência em relação à institucionalidade da dinâmica político-eleitoral que se seguiu à democratização no período posterior ao fim da ditadura militar. A oportunidade surgiu em 2021, durante o mandato de Bolsonaro e o poder exercido pelo superministro da Economia, Paulo Guedes. A partir de um projeto enviado pelo Poder Executivo, o Congresso Nacional aprovou a Lei Complementar n® 179, onde foi estabelecido o mandato fixo para os diretores do órgão. Assim, por exemplo, Lula tomou posse em janeiro de 2023 com a presença de todos os 9 integrantes do colegiado indicados ainda na gestão bolsonarista. A substituição dos mesmos foi feita de forma paulatina e apenas dois anos depois é que o Presidente da República eleito pela maioria da população conseguiu indicar o dirigente máximo do BC e compor a maioria de sua diretoria.

Financismo quer independência completa do BC

Ocorre que nem mesmo assim o financismo satisfez seu apetite. Em novembro de 2023, ainda com Roberto Campos Neto (RCN) exercendo a presidência do BC, foi articulada a apresentação de um projeto bastante polêmico no interior do legislativo, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n® 65. O texto protocolado de forma coletiva por 42 senadores, em um espectro que vai do PSB ao PL, terminou por unir parlamentares protagonizados pela extrema direita com apoio mesmo de alguns progressistas. A proposição recebeu logo de início o apoio entusiasmado de RCN e da diretoria do banco.

No entanto, a reação da maioria do sistema político não foi lá muito favorável à proposta apresentada. Com a substituição de Gabriel Galípolo para o cargo de Presidente do BC no início de 2025, o movimento de apoio à medida sofreu um recuo estratégico. Apesar disso, o relator na medida na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) no Senado Federal não colocou nenhum freio definitivo em suas articulações. O Senador Plínio Valério (PSDB/AM) parecia ganhar tempo e aguardar uma conjuntura mais favorável para avançar com seu Relatório. Apesar da importância e sensibilidade da matéria, foi realizada apenas uma audiência pública a esse respeito, muito longe do debate necessário. Afinal as mudanças sugeridas implicam na transformação do estatuto jurídico do BC, que deixaria a condição de autarquia federal para se converter em uma empresa pública.

Com isso, os valores orçamentários do órgão seriam retirados do Orçamento Geral da União e passariam a fazer parte da contabilidade de uma empresa que se rege por regras e parâmetros externos à administração direta. Os valores trilionários do Balanço do BC, por exemplo, passariam a ser operados pela direção do órgão sem nenhum controle efetivo por parte do governo ou da sociedade. Assim, por exemplo, a contabilidade do BC demonstra que seu ativo patrimonial é superior a R$ 4 trilhões em julho de 2025. No exercício de 2024, por outro lado, foi registrado um lucro contábil de R$ 270 bilhões. Como ficaria a distribuição deste valor puramente fictício caso o banco fosse atualmente uma empresa pública?

PEC 65: golpe na democracia

Outro detalhe malandro da proposição refere-se aos mecanismos de controle das contas e das atividades do BC no modelo proposto na PEC. O texto menciona genericamente a responsabilidade do Congresso Nacional para se ocupar de tais funções. O modelo ficaria completamente fora de qualquer controle efetivo:

(…) “I – a autonomia de gestão administrativa, contábil, orçamentária, financeira, operacional e patrimonial, sob supervisão do Congresso Nacional;

II – a ausência de vinculação a Ministério ou a qualquer órgão da Administração Pública e de tutela ou subordinação hierárquica.” (…) [GN]

Mais recentemente, na dinâmica política mais geral entrou em cena o debate a respeito do PIX, a partir das sanções impostas pelo presidente estadunidense. Dentre as inúmeras aberrações e agressões adotadas ou ameaçadas por Trump contra o governo e a sociedade brasileiras consta a reclamação de que o modelo inovador brasileiro estaria prejudicando empresas financeiras dos Estados Unidos. A partir dos procedimentos verificados na “investigação da seção 301 sobre Práticas Comerciais Desleais no Brasil, a intenção da equipe de Trump é defender as empresas daquele País e atacar o que considera práticas desleais de nosso País:

(…) “O Brasil também parece se envolver em uma série de práticas desleais com relação a serviços de pagamento eletrônico, incluindo, entre outras, a vantagem de seus serviços de pagamento eletrônico desenvolvidos pelo governo” (…) [GN]

Golpe do PIX: cortina de fumaça

A oportunidade do faro político falou mais alto. Assim, o Relator decidiu incluir em seu Parecer um dispositivo assegurando que o modelo do PIX não poderia ser objeto de negociação nem transferido pelo BC, além de estabelecer sua gratuidade para pessoas físicas. O texto adicionado é o seguinte:

(…) “Art. 9º Compete exclusivamente ao Banco Central a regulação e operação do arranjo de pagamentos de varejo PIX e da correspondente infraestrutura do mercado financeiro, sendo vedadas sua concessão, permissão, cessão de uso, alienação ou, por qualquer título, transferência a outro ente, público ou privado, observados os seguintes princípios:

I – gratuidade de seu uso por pessoas físicas;

II – acesso não discriminatório aos serviços e à infraestrutura necessária ao seu funcionamento;

III – eficiência, contabilidade e qualidade dos serviços; e

IV -segurança em sua utilização, inclusive quanto à prevenção e combate a fraudes.” (…) [GN]

O detalhe é que o argumento a ser utilizado pelos defensores da banca no Senado para recuperar o apoio à PEC 65 passará a contar, a partir de agora, com a boa receptividade que a sociedade manifesta quanto ao PIX. Sem dúvida alguma a medida propiciou a ampliação do acesso ao sistema bancário por setores e grupos sociais até então marginalizados. Além disso, a natureza gratuita do serviço destoa da grande maioria daquilo que os bancos oferecem a seus clientes. Exatamente por isso, a maioria da população apoia e é simpática ao PIX. Caberá às forças progressistas impedir que esse método de enganação progrida sem o necessário debate esclarecedor.

Na verdade, a defesa da soberania nacional e a criação de obstáculos para que o PIX entre em alguma negociação com o governo estadunidense não precisa de alteração constitucional. Bastaria um compromisso explícito do governo ou uma Medida Provisória tratando do tema. A intenção do Senador Plínio Valério vai na direção oposta: ele espertamente pretende pegar carona em um jabuti popular que ele mesmo introduziu em seu Relatório para criar uma cortina de fumaça e escapar do debate dos malefícios generalizados que caracterizam a PEC 65 – a independência completa e absoluta do BC.

Morte por desespero

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Vivemos momentos de grandes inquietações na sociedade internacional, modelos econômicos perdem espaço no cenário global, transformações frenéticas no mundo do trabalho, um sólido e consistente desenvolvimento tecnológico que traz grandes ganhos de produtividade da economia mundial e, ao mesmo tempo, percebemos o incremento de guerras crescentes em todas as regiões do mundo, levando especialistas a afirmarem que estamos nos aproximando de um conflito militar, com grande potencial destrutivo da sociedade internacional.

Nesta sociedade, percebemos problemas prementes de desigualdades variadas e crescentes em todas as nações do mundo, países que eram vistos pelo sólido ambiente de bem-estar social e um forte desenvolvimento econômico, baixa desigualdade e variadas oportunidades para todos os grupos sociais, estão sentindo na pele o crescimento das desigualdades, com o incremento da pobreza, da violência e da desesperança, deixando características mais evidentes da comunidade internacional.

Em pleno século XXI, numa sociedade global altamente tecnológica, integrada e interdependente, percebemos novas formas de morte, onde os indivíduos estão perdendo a vida por desespero, uma situação que aparece fortemente nos Estados Unidos da América, como destacou o renomado economista e ganhador do Prêmio Nobel de Economia, Angus Deaton. Segundo o autor, estamos vivendo as mortes por desespero, motivados pelo consumo crescente de overdoses de opiáceos, depressão, suicídio, mortes associadas ao álcool… que vitimam mais de 150 mil pessoas ao ano. Segundo Deaton, no livro Mortes por desespero e o futuro do capitalismo retrata, neste sentido, a queda do sonho americano, o fracasso do capitalismo americano em proporcionar bem-estar a muitos.

Percebemos, desde os anos 1980, o crescimento da desigualdade da renda na maior economia mundial. Os Estados Unidos se transformaram na maior economia do mundo depois do pós-segunda guerra mundial, seus números de crescimento econômico e a melhora substancial das condições de vida da população eram palpáveis, sua democracia era vista como um exemplo a ser seguido por todas as regiões do globo, suas empresas eram as mais pujantes e seu sistema produtivo era o mais eficiente mas, nos últimos anos, essa locomotiva perdeu sua força, a renda se concentrou de forma acelerada, o 0,1% da população concentra mais de 20% da riqueza nacional, o 1% mais alto controla mais de 40% e a metade da população estadunidense tem um ativo líquido negativo, o que significa que as dívidas superam os ativos, neste cenário, percebemos uma estagnação da renda dos trabalhadores no período neoliberal, estimulando raivas, rancores, violências e ressentimentos. De um mundo de oportunidades, riquezas e pujança econômica e produtiva estamos vislumbrando uma estagnação e o incremento da desesperança, tudo isso contribui para o crescimento das chamadas mortes de desesperos.

Neste cenário, a expectativa de vida nos EUA, que vinha aumentando de forma sistemática ao longo do século XX, estagnou e, em seguida, caiu nos últimos anos, queda de 78,9 anos para 78,6 anos entre 2014 e 2016, um fenômeno descrito como uma especificidade norte-americano, uma sociedade marcada pela competição, pelo individualismo, pelo imediatismo e cujo foco fundamental está sempre no lucro, no culto das armas e do ganho monetário. Neste ambiente de grandes transformações estruturais da geopolítica global, precisamos construir as nossas aspirações, deixando de lado tutelas externas e construir nossa história, respeitando nossa trajetória e consolidando valores esquecidos da sociedade contemporânea.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

“O fenômeno das ‘mortes por desespero’ parece ser uma característica específica estadunidense”. Entrevista com Noam Chomsky

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Instituto Humanitas Unisinos – 28/08/2019

A vida nos Estados Unidos – o país mais rico da história mundial – não tem motivo para ser assim. As intermináveis guerras, mortes por desespero, taxas de mortalidade em aumento e violência armada fora de controle deste país não surgiram do nada.

Nesta transcrição exclusiva emitida por Alternative Radio, o intelectual público Noam Chomsky aborda as raízes da cultura das armas, o militarismo, a estagnação econômica e a crescente desigualdade nos Estados Unidos.

A entrevista é de David Barsamian Truthout, publicada por El Salto, 23-08-2019. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Você conecta, em algum momento, a violência exterior dos Estados Unidos com o que está ocorrendo internamente com todos os tiroteios e matanças?

Os Estados Unidos são um país muito estranho. Do ponto de vista de sua infraestrutura, os Estados Unidos muitas vezes parecem um país do “Terceiro Mundo”… Não para todo mundo, claro. Há pessoas que dizem: “Bom, vale, irei em meu jato ou helicóptero particular”. Caminhe por qualquer cidade estadunidense. Estão caindo aos pedaços. A Sociedade Estadunidense de Engenheiros Civis confere aos Estados Unidos, periodicamente, um D – o ranking mais baixo – em infraestrutura.

Este é o país mais rico da história mundial. Possui enormes recursos. Tem vantagens que são simplesmente incomparáveis, recursos agrícolas, recursos minerais, um território enorme, homogêneo. Você pode voar 3.000 milhas [4.800 km] e pensar que está no mesmo lugar onde começou. Não há nada parecido em todo o mundo. De fato, há êxitos, como boa parte da economia de alta tecnologia, substancialmente baseada no Governo, mas real.

Por outro lado, é o único país no mundo desenvolvido em que a mortalidade, de fato, está aumentando. Isso é algo simplesmente desconhecido nas sociedades desenvolvidas. Nos últimos anos, a expectativa de vida caiu nos Estados Unidos. Há estudos de dois importantes economistas, Anne Case e Angus Deaton, que analisaram meticulosamente os números de mortalidade.

Resulta que no grupo de idade aproximadamente entre 25 e 50, o grupo de idade trabalhista dos brancos, a classe trabalhadora branca, há um aumento das mortes, o que chamam de “mortes por desespero”: suicídio, overdoses por opiáceos, etc. Estima-se cerca de 150.000 mortes ao ano. Não é algo trivial. O motivo, geralmente assumido, é a estagnação econômica, desde Reagan. De fato, este é o grupo que entrou no mercado de trabalho por volta do início dos anos 1980, quando os programas neoliberais começaram a ser instituídos.

Isto levou a um enfraquecimento do crescimento. O crescimento não é o que era antes. Há crescimento, mas altamente concentrado. A riqueza se tornou extremamente concentrada. Agora, segundo os últimos números, o 0,1% da população concentra 20% da riqueza nacional; o 1% mais alto controla aproximadamente 40%. A metade da população tem um ativo líquido negativo, o que significa que as dívidas superam os ativos. Em geral, houve estagnação em mão de obra durante todo o período neoliberal.

Esse é o grupo do qual estamos falando. Naturalmente, isto leva à raiva, ao ressentimento e desespero. Coisas parecidas estão acontecendo na Europa sob os programas de austeridade. Esse é o contexto que falaciosamente é chamado de “populismo”. Mas, nos Estados Unidos, é bastante surpreendente. O fenômeno das “mortes por desespero” parece ser uma característica específica estadunidense, sem igual em outros países.

Lembre-se, não há país no mundo que tenha algo como as vantagens dos Estados Unidos em relação à riqueza, poder e recursos. É um comentário impactante. Constantemente, se lê que a taxa de desemprego atingiu um nível maravilhoso, apenas 3% de desempregados. Mas, isso é bastante enganoso. Quando se utiliza as estatísticas do Departamento de Trabalho, resulta que a taxa de desemprego real está acima de 7%.

Quando se leva em conta o grande número de pessoas que simplesmente saíram do mercado de trabalho, a participação da mão de obra está consideravelmente abaixo do que estava cerca de 20-30 anos atrás. Há bons estudos de economistas sobre isso. Tem-se aproximadamente uma taxa de desemprego de 7,5% e estagnação dos salários reais, que apenas se movimentaram. Desde o ano 2000, houve um firme descenso na riqueza familiar média. Como disse, para cerca da metade da população, agora é negativo.

Em termos de armas, os Estados Unidos são um caso atípico. Temos 4% da população mundial com 40% das armas do planeta.

Há uma história interessante sobre isso, muito bem estudada. Há um livro recente de Pamela Haag chamado The Gunning of America: Business and the Making of American Gun Culture [O tiroteio dos Estados Unidos: negócios e a criação da cultura das armas estadunidenses]. É uma análise muito interessante. O que mostra é que, após a Guerra Civil, os fabricantes de armas realmente não tinham muito mercado. O mercado do Governo dos Estados Unidos havia caído, é claro, e os governos estrangeiros não eram um grande mercado. Era, então, uma sociedade agrícola, de finais do século XIX. Os fazendeiros tinham armas, mas eram como ferramentas, nada especial. Possuía-se uma boa e antiquada arma. Era suficiente para espantar os lobos. Não queriam as sofisticadas armas que os fabricantes de armas estavam produzindo.

Desse modo, o que ocorreu foi a primeira campanha de publicidade importante e enorme que foi uma espécie de modelo para outras posteriormente. Realizou-se uma enorme campanha para tentar criar uma cultura de armas. Inventaram um Oeste Selvagem, que nunca existiu, com o valente sheriff sacando a arma mais rápido que todo mundo e toda essa insensatez que existe nos filmes de cowboys.

Tudo foi inventado. Nada disso jamais ocorreu. Os cowboys eram algo assim como a escória da sociedade, gente que não podia conseguir um trabalho em outro lugar. Eram contratados para conduzir algumas vacas. Mas, passou a existir essa imagem do Oeste Selvagem e os grandes heróis. Junto a isso, vieram os anúncios, dizendo algo como: ‘Se seu filho não tem um rifle Winchester, não é um homem de verdade. Se sua filha não tem uma pequena pistola rosa, nunca será feliz’.

Foi um êxito tremendo. Suponho que foi um modelo para mais tarde, quando as empresas de tabaco desenvolveram o “homem Marlboro” e todo este tipo de negócio. Era fins do século XIX, inícios do século XX, o período em que se estava começando a desenvolver a enorme indústria de relações públicas. Foi tratado de forma brilhante por Thorstein Veblen, o grande economista político, que destacou que nessa fase da economia capitalista era necessário fabricar necessidades porque, caso contrário, não seria possível manter a economia que geraria grandes níveis de lucro. A propaganda das armas foi provavelmente o começo.

Na continuidade, avançando até o período recente de 2008, a decisão Heller da Suprema Corte. O que chamavam direitos da Segunda Emenda se converteram em uma escritura sagrada. São os mais importantes direitos que existem, nosso sagrado direito de portar armas, estabelecido pela Suprema Corte, revogando um século de precedentes.

Lance um olhar na Segunda Emenda. Diz: “Sendo necessária uma Milícia bem organizada para a segurança de um Estado livre, o direito do povo de possuir e portar armas não será infringido”. Até 2008, isso era interpretado basicamente da forma como se lê. O sentido de portar armas era manter uma milícia. Scalia [ex-juiz da Suprema Corte], em sua decisão de 2008, fez uma guinada. Era um acadêmico muito bom. Supõe-se que era um ‘originalista’. Prestava atenção nas intenções dos fundadores. Quando se lê a decisão, é interessante. Há todos os tipos de referências para ocultar documentos do século XVII.

Surpreendentemente, não menciona nenhuma vez os motivos pelos quais os fundadores queriam que as pessoas portassem armas, que não estão ocultos. Um motivo era que os britânicos viriam. Os britânicos eram o grande inimigo, naquele momento. Eram do Estado mais poderoso do mundo. Os Estados Unidos tinham apenas um exército permanente. Se os britânicos retornassem, o que de fato fizeram, era preciso ter milícias para o combate. Desse modo, tínhamos que ter milícias bem organizadas.

O segundo motivo era que se tratava de uma sociedade escravista. Este era um período em que ocorriam rebeliões de escravos por todo o Caribe. A escravidão estava crescendo enormemente após a revolução. Havia profunda preocupação. Muitas vezes, os escravos negros superaram em número os brancos. Era preciso ter milícias bem armadas para mantê-los sob controle.

Ainda havia outra razão. Os Estados Unidos são talvez um dos raros países da história que virtualmente estiveram em guerra todos os anos, desde a sua fundação. É possível se deparar apenas com um ano em que os Estados Unidos não estiveram em guerra.

Quando se olha para a Revolução Estadunidense, a história dos livros de texto é “tributação, sem representação”, que não é falsa, mas está longe da história completa. Dois dos principais fatores na revolução foram que os britânicos estavam impondo uma restrição ao assentamento para além das montanhas Apalaches, que chamavam “país indiano”. Os britânicos estavam bloqueando isto. Os colonos queriam se expandir para o oeste. Não só pessoas que queriam terra, mas também grandes especuladores de terra, como George Washington, queriam ir para as zonas do oeste. “Do oeste” significava para além das montanhas. Os britânicos estavam bloqueando [essa possibilidade]. Ao final da guerra, os colonos puderam se expandir.

O outro fator era a escravidão. Em 1772, houve uma sentença muito importante e famosa de um importante jurista britânico, Lord Mansfield, de que a escravidão é tão “odiosa” que não era possível tolerar na Grã-Bretanha. As colônias estadunidenses eram essencialmente parte da Grã-Bretanha. Era uma sociedade escravista. Puderam ver os dias contados. Se os Estados Unidos permanecessem dentro do sistema britânico, seria uma ameaça real à escravidão. Isto terminou com a revolução.

Mas isto significava, voltando às armas, que eram necessárias para manter os britânicos na linha, que eram necessárias para controlar os escravos, para manter índios. Se você vai atacar as nações indígenas – eram nações, é claro –, vai atacar muitas nações ao oeste do país, terá que ter armas e milícias. Em última instância, se substituiu mais tarde por um exército permanente.

Mas veja os motivos pelos quais, para os fundadores, era preciso ter armas. Nenhum só se aplica no século XXI. Isto está completamente ausente não só da decisão de Scalia, como também do debate legal sobre isso. Há uma literatura legal que debate a decisão Heller, mas quase tudo é sobre a questão técnica de se a Segunda Emenda é um direito de milícia ou um direito individual. A redação da emenda é um pouco ambígua, desse modo, é possível debater sobre isso, mas é completamente irrelevante. A Segunda Emenda é totalmente irrelevante para o mundo moderno: não tem nada a ver com ele. Mas se converteu em escritura sagrada.

Então, existe esta enorme campanha de propaganda. Quando eu era uma criança, me atingiu. Wyatt Earp, armas, “matar índios”, tudo isso. Está estendida por todo o mundo. Na França, amam os filmes de cowboys. Um retrato do Oeste totalmente fabricado, mas teve muito êxito em criar uma cultura de armas. Sendo assim, sim, todo mundo deve ter uma arma…

Fala sobre a Primeira Emenda, a liberdade de imprensa e o jornalismo, um ofício que recebeu ataques do autodenominado “gênio extremamente estável”, na Casa Branca, como “o inimigo do povo”. Fala sobre isto e também sobre o caso Assange.

A Primeira Emenda é uma importante contribuição da democracia estadunidense. A Primeira Emenda, na realidade, não garante o direito à livre expressão. O que diz é que o Estado não pode tomar ação preventiva para impedir a expressão. Não diz que não possa puni-la. Sendo assim, sob a Primeira Emenda, literalmente, você pode ser punido por coisas que diz. Não impede isso.

Foi, não obstante, um avanço no ambiente da época, em que os Estados Unidos avançaram de muitas maneiras. Com todos os seus defeitos, a Revolução Estadunidense foi progressista em muitos aspectos para os padrões do momento, inclusive a frase: “Nós, o povo”. Deixando de lado os defeitos na implementação, a ideia em si foi um avanço. A Primeira Emenda foi um avanço.

No entanto, não foi realmente até o século XX que os temas da Primeira Emenda passaram à agenda, primeiro com as opiniões dissidentes de Oliver Wendell Holmes e Louis Brandeis [ambos juízes da Suprema Corte], em casos por volta da Primeira Guerra Mundial, um pouco depois. Vale a pena olhar como eram estreitos estes dissidentes. A primeira coisa importante, no caso Schenck de 1917, foi um caso de alguém que publicou um panfleto descrevendo a guerra como uma guerra imperialista e dizendo que não se deveria participar dela. O apoio à liberdade de expressão sob a Primeira Emenda era muito limitado, assim como a discrepância e, depois, o apoio à punição por parte de Holmes demonstrou isso. O caso foi todo um escândalo, mas inclusive Holmes aceitou.

De fato, os verdadeiros passos para o estabelecimento de uma forte proteção da liberdade de expressão foram, na realidade, nos anos 1960. Um caso importante foi Times v. Sullivan. O Estado do Alabama havia reivindicado o que se chama imunidade soberana, no qual não se pode atacar o Estado com palavras. Esse é um princípio que se mantém na maioria dos países: Grã-Bretanha, Canadá, outros. Houve um anúncio publicado pelo movimento de direitos civis, que denunciava a polícia de Montgomery (Alabama) por atividades racistas, e entraram com uma ação para o impedir. A questão foi à Suprema Corte. O anúncio estava no The New York Times. Por isso, se chama Times v. Sullivan. A Suprema Corte, pela primeira vez, basicamente, derrubou a doutrina da imunidade soberana. Disse que se pode atacar o Estado com palavras. É claro, já havia ocorrido, mas, agora, tornou-se legal.

Houve uma decisão mais forte alguns anos depois: Brandenburg v. Ohio, em 1969, em que a Corte determinou que a expressão deveria ser livre até a participação em uma ação criminosa iminente. Assim, por exemplo, se você e eu entramos em uma loja com a intenção de roubar, e você tem uma arma e eu digo “dispara”, isso não está resguardado. Mas, basicamente, essa é a doutrina. É uma proteção muito forte da liberdade de expressão. Não há nada parecido em lugar algum, pelo que eu sei.

Na prática, os Estados Unidos não têm um histórico estelar, mas um dos melhores (talvez, inclusive, o melhor histórico) é na proteção da liberdade de expressão e a liberdade de imprensa. Isso está, com efeito, sendo atacado quando se denuncia a imprensa como a “inimiga do povo” e se organiza sua fanática base de apoio para atacar a imprensa. Essa é uma séria ameaça.

E Julian Assange?

A verdadeira ameaça para Assange desde o princípio, a razão pela qual se refugiou na embaixada equatoriana, era a ameaça de extradição para os Estados Unidos, agora implementada. Já foi acusado de violações da Lei de Espionagem. Teoricamente, inclusive, pode receber uma condenação à morte por isso. O crime de Assange foi expor documentos secretos que são muito embaraçosos para o poder do Estado. Um dos principais foi a exposição do vídeo de pilotos de helicópteros estadunidenses matando pessoas.

Em Bagdá.

Sim. Contudo, depois houve muitos outros, alguns deles muito interessantes. A imprensa informou sobre eles. Então, ele está realizando a responsabilidade jornalística de informar o público sobre coisas que o poder do Estado preferiria manter em sigilo.

Parece ser a essência do que deveria estar fazendo um bom jornalista.

É o que fazem os bons jornalistas. Como quando [Seymour] Hersh mostrou a história do massacre de My Lai [no Vietnã, onde o Exército dos Estados Unidos matou cerca de 400 pessoas], e quando Woodward e Bernstein mostraram os crimes de Nixon, o que se considerou muito louvável. O Times publicou fragmentos dos Papéis do Pentágono [documentos secretos sobre a participação dos Estados Unidos no Vietnã]. Sendo assim, em essência, ele está fazendo isso. Você pode questionar seu julgamento – deveria ter feito isto neste momento, deveria ter feito algo mais; pode fazer muitas críticas –, mas a história básica é que o WikiLeaks estava produzindo materiais que o poder do Estado queria suprimir, mas que o público deveria conhecer.

 

As duas faces do capitalismo, por Tadeu Valadares

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Tadeu Valadares – A Terra é Redonda – 08/09/2025

Anotações sobre soberania ameaçada, ordem mundial em transição e tarifaço trumpiano contra o Brasil e o mundo

Numa tentativa de vincular os três temas, começarei pelo círculo mais amplo: a ideia de soberania e sua relação com o capitalismo histórico. Em seguida passarei ao segundo círculo, o da ordem mundial em plena crise de transição. Só então analisarei o tarifaço de Donald Trump contra o Brasil e o mundo.

1.

Com relação à soberania, crucial sublinhar que essa noção e as práticas dela derivadas são tão antigas quanto o capitalismo histórico, ambos nascidos na Europa do século 13. Desde então, mas sobretudo a partir do século 16, a soberania se elabora e refina no âmbito do direito internacional público, sempre em constante parceria com o desenvolvimento do capitalismo, o que nada tem de circunstancial ou acidental.

De fato, essas trocas entre um modo de produção e uma concepção de mundo jurídico-política foram decisivas para que a transição do feudalismo para o protocapitalismo e daí para o capitalismo propriamente dito se haja tornado história. Bem sabemos, o capitalismo pleno só se estruturou no plano político com as revoluções burguesas do século 18, a americana e a francesa. No plano econômico, com a primeira revolução industrial, ocorrida na virada do 18 para o 19.

O capitalismo obviamente assumiu várias encarnações desde o século 16. O mesmo ocorreu com a noção, ideia ou conceito de soberania, assim como as práticas estatais e sociais derivadas. O leque dessas transformações internas ao registro jurídico-político da soberania pode ser concebido de maneira simplificada como se originando no absolutismo de Bodin e Hobbes, passando pelo democratismo de Rousseau e desaguando nas sofisticadas formulações de direito internacional público construídas desde o término da segunda guerra mundial.

Hoje, o capitalismo é mundial, dominante, bifronte. Capitalismo com duas faces. Uma delas, a que remete à predominância das finanças, isto é, ao capitalismo financeiro ‘ocidental’ às voltas com graves problemas de reprodução e expansão. A outra emerge como poderoso capitalismo de estado centrado na dimensão produtiva, na produção de mercadorias tangíveis, regime não apenas ou maiormente fixado nas finanças, na financeirização, na criação do que é intangível. Esse dinâmico capitalismo de estado também atende pelo simpático nome de ‘socialismo à maneira chinesa’.

Grosso modo, sua trajetória, em especial desde o início do século, é simplesmente espetacular. Não há memória de que algo similar haja acontecido desde quando o capitalismo se tornou mundo. Mencionar a espetacularidade da ascensão chinesa é sublinhar que vivemos todos, em termos de ordem mundial, uma época de crise que também é tempo de transição de hegemonia. Algo que tomará seu tempo longo para se completar, mas que conforma a realidade que se tornou nosso cotidiano. O que hoje é flagrante há muito está em construção, em particular se nos damos conta da trajetória da ordem criada em Bretton Woods (1944) e São Francisco (1945), de seus altos e baixos.

Essa ordem se encontra em processo de desfazimento desde mais ou menos 50 anos. Seu mais recente avatar, ele próprio uma forma de adaptação da ordem originária às mudanças ocorridas em termos planetários, é o que o Ocidente chama de ‘ordem internacional baseada em regras’. Assinalável: o período que os historiadores liberais e conservadores denominam ‘os trinta gloriosos’ é passado encerrado. Noutras palavras, desde meados dos anos 70 a variante ‘ocidental’ de capitalismo declina.

Donald Trump e o trumpismo surgem como imensa surpresa porque, desesperados com o declínio incessante, partiram para o escandaloso antes inimaginável: o criador abandonou a criatura à sua sorte. Desse abandono resulta que 2025 se tornou desde 20 de janeiro passado sinônimo de ‘annus horribilis’. Instaurou-se um tempo de prodígios no significado bíblico, diriam uns. Outros afirmariam que vivemos tempos interessantes. Interessantes no significado que essa expressão tem para os chineses. Tempos interessantes, tempos muito negativos para o Ocidente expandido.

2.

Nesse contexto, como pensar o tarifaço imposto ao Brasil? Fomos sancionados com a tarifa mais alta, 50%, mas analiticamente decisivo é destacar que o tarifaço não é contra o Brasil, é contra o mundo. Dos 192 países com os quais os Estados Unidos interagem na Assembleia Geral da ONU, dessa demonstração de autoritarismo primário apenas 8 escaparam. Não sei seus nomes. Provavelmente são microestados que se situam na periferia da periferia do sistema.

Outro dado relevante: as tarifas aplicadas a 184 estados formam uma espécie de escada com 12 degraus. Na base, a tarifa mínima, 10%. No ápice, a tarifa de 50% aplicada até agora tão somente ao Brasil e à Índia. Entre o degrau 10% e o degrau 50% há tarifas de 15%, 18%, 19%, 20%, 25%, 30%, 35%, 39%, 40% e 41%. No degrau dos 10% se amontoam 98 países, entre eles o Reino Unido, Cuba e Rússia; no degrau dos 15%, 62 padecem, 27 deles pertencentes à União Europeia; no de 19% estão apenas 5 países: Camboja, Indonésia, Malásia, Paquistão e Filipinas.

A tarifa de 20% é imposta tão somente a Bangladesh e Sri Lanka. A de 25% vale para Brunei, Cazaquistão, Moldova e Tunísia. A de 30% contempla apenas três estados: Argélia, Líbia e África do Sul. De ressaltar que essa tarifa deveria ser aplicada à China. Se concebermos a tarifa de 35% como uma espécie de divisor de águas, olhando para o alto da escada teremos o seguinte quadro: a tarifa de 35% só vale para a Sérvia; a de 39%, apenas para a Suíça; a de 40%, para Laos e Mianmar. A de 41%, para a Síria. No mais alto, a que compartilhamos com os indianos, 50%.

Lida superficialmente, essa escada proclama que Donald Trump, o trumpismo e o governo americano se puseram em conflito comercial com o mundo. Mas na verdade esse conflito não se reduz à dimensão tarifária nem é simplesmente comercial. Funciona como elemento estratégico, relevante e até mesmo decisivo como pressão geopolítica. Pesa negativamente, em grau extremo, sobre o futuro imediato da política internacional. Não deixa de ser, em sua brutalidade, uma das manifestações mais escancaradas da ‘húbris’ americana.

Assombroso: em meio a sua persistente decadência relativa, Washington se ilude e pensa ter poder suficiente para parar o grande jogo de poder planetário, o da transição de hegemonia. Pensa que pode refazer o baralho, redistribuir as cartas e dar início a uma nova era. Em sua desmedida, pretende criar enigmática ordem planetária no seio da qual exerça hegemonia absoluta, algo absolutamente contraditório porque é ordem unidimensional, pura coerção, zero consenso. Portanto, a ordem impossível é caos como projeto.

Cristalino: inviável conformá-la; impossível sustentar o projeto. No curto prazo essa ‘grande estratégia’ depende totalmente de Donald Trump fazer seu sucessor e manter o controle de ao menos uma das casas do congresso. No longo prazo, os Estados Unidos, como resultado das tensões e fraturas internas antigas, e da belicosidade tarifária e de outras ordens, ambas turbinadas pelo governo de Donald Trump, arriscam mergulharem difusa anarquia interno-externa. Crise completa.

3.

Agora sim, vejamos o que nos mostra o tarifaço de 50% a nós imposto. O gesto tresloucado ao menos sinaliza que: (a) não havia déficit comercial dos Estados Unidos conosco que pudesse servir de base para a aplicação das medidas autoritariamente adotadas; (b) Donald Trump na verdade e sem o saber nos impôs algo tipicamente russo-imperial. Baixou um ukase. Recorreu ao estilo absolutista que os Romanov empregavam para submeter povos que integravam o império tsarista; e (c) as exigências constantes da Ordem executiva e da carta a Lula são de impossível aceitação pelo Brasil. Aceitá-las nos reduziria à situação colonial que foi a nossa até 1822.

Tanto a Ordem quanto a carta são explícitas. Ambas sublinham que se o Brasil se curvar a Donald Trump estaria talvez quem sabe disposto a rever as medidas imperialmente impostas. Até o Brasil se curvar, as práticas e as ações do governo brasileiro ‘ameaçam a segurança nacional dos Estados Unidos’. Nunca havia me dado conta de quão poderosos somos.

Ambos os textos à brutalidade agregam insulto: se o Brasil se alinhar suficientemente – sublinhar o suficientemente – aos Estados Unidos no relativo a segurança nacional, assuntos econômicos e temas de política externa, Donald Trump poderá modificar sua posição. Em suma, o que Washington espera de nós é uma variante pós-moderna da servidão voluntária decifrada por Etienne de la Boétie 500 anos atrás. No desnorteamento engendrado por sua decadência, a república imperial exige sejamos voluntariamente servis.

Para completar a exposição desse delírio do ‘hegemon’ declinante, na Sessão 2, letra b, da Ordem executiva damos com grave ameaça explícita: se o governo do Brasil retaliar contra os Estados Unidos em resposta às medidas adotadas, elas serão modificadas ‘para assegurar a eficácia das ações nela contempladas’. E para que não restem dúvidas, o governo americano ainda tem o desplante de explicar tintim por tintim: ‘Por exemplo, se o Governo do Brasil retaliar, aumentando tarifas sobre exportações de produtos americanos, eu (no caso, ele, Donald Trump) aumentarei as tarifas no montante correspondente’.

4.

Diante dessa agressão ao Brasil, dessa ameaça à nossa soberania, dessa insana vontade de poder que no plano institucional e também no político-eleitoral quer impor ao executivo e ao STF um veredito que só cabe à nossa mais alta corte, o governo de coalizão vem reagindo como esperado.

No fundo, Lula sabe que no essencial a manobra americana quer incidir decisivamente nos resultados das eleições do ano que vem, aproveitando-se da fragilidade histórica que marca a democracia brasileira e do peso aumentado do extremismo neofascista desde o início da década passada. Ano que vem seremos submetidos a outro teste crucial. De seu resultado dependerá se o Brasil permanecerá ou não fragilmente democrático.

Diante do desafio lançado por Washington, o governo vem agindo bem, sabedor de que não há como negociar porque a plataforma que os Estados Unidos nos oferecem é sinônimo de absoluta sujeição. No plano bilateral estrito, refiro-me ao relacionamento Brasília-Washington, pouco ou quase nada a fazer. Mas em outros planos o governo se mostra ativo: busca aproximação com os BRICs e com outros grupos e países que, todos atacados pelos Estados Unidos, ainda que em graus variáveis, reagem desviando comércio e tudo o mais que se possa para parceiros confiáveis.

No plano interno, o governo vem conseguindo, como indica o ‘Brasil Soberano’, conferir um caráter socialdemocrata, frágil como a nossa democracia, ao esforço voltado para proteger o nível de emprego e, num primeiro momento, priorizar a pequena e a média empresa. Do ponto de vista político-eleitoral, o governo e seus apoiadores procuram mobilizar a sociedade em geral, o povo como totalidade, com vistas a eleitoralmente derrotar o antipovo nas vindouras eleições.

O essencial no curto prazo do atual ciclo eleitoral é bater nas urnas a direita neofascista e seu leque de sócios na barbárie, no atraso ou numa modernização que apenas extrai recursos da base da sociedade para seus píncaros. Essa, a direita que, no caso brasileiro, é voluntária e apaixonadamente servil a Washington.

Difícil que o governo possa ir muito além. Para se ir além, o que fazer é historicamente bem conhecido, por impossível ou improvável que seja sua concretização imediata: há que pressionar o governo nas ruas com manifestações gigantescas. Caso isso venha a ocorrer, o que começou na dimensão relativamente pequena que é a do ‘Brasil Soberano’ poderá se transmutar em algo que, séculos de distância mediante, remete à vontade geral explicitada por Jean-Jacques Rousseau: a soberania é do povo e só do povo. É intransferível ou não é soberania.

Tadeu Valadares é embaixador aposentado.