De exceção em exceção, por Hélio Schwartsman.

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Brasil tende a adiar reformas e a perenizar privilégios

Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”.

Folha de São Paulo, 10/11/2023

A aprovação da Reforma Tributária pelo Senado deve ser celebrada, mas não dá para deixar de observar o padrão, que é inequívoco. Depois que especialistas chegam a um razoável consenso técnico sobre a necessidade de uma reforma estrutural, o Parlamento passa uma ou mais décadas só flertando com ela. Quando os legisladores finalmente se decidem a aprová-la, sarapintam-na com tantas salvaguardas e exceções que, se não a desfiguram, reduzem muito de sua potência. Foi assim com as várias reformas da Previdência; está sendo assim com a Tributária.

Em algum grau, isso é inevitável em democracias, que se valem de negociações políticas e soluções de compromisso para aplainar resistências. Só ditaduras conseguem impor reformas como saem das pranchetas dos técnicos. O problema do Brasil é que sempre deixamos os ajustes dolorosos para a última hora e temos uma preocupante tendência de perenizar os privilégios que lobbies conseguem inscrever nos ordenamentos jurídicos.

A Zona Franca de Manaus, originalmente concebida para durar 30 anos, até 1997, já foi prorrogada sucessivas vezes. Existirá pelo menos até 2073. Militares gozam de benesses previdenciárias com as quais trabalhadores celetistas nem podem sonhar. Igrejas têm imunidade tributária fixada na Constituição e que não cessa de ser ampliada por leis e decisões judiciais.

Há uma explicação matemática para isso. O pequeno grupo beneficiado por uma regalia recebe vantagem tão formidável que move mundos e fundos para obtê-la. A esmagadora maioria que é prejudicada pela medida sofre uma perda tão marginal que não se mobiliza para obstá-la. O problema é que as perdas se somam. Para compensar as várias exceções tributárias, o Brasil terá uma das maiores alíquotas de IVA do mundo.

E o diabo é que o órgão que deveria empenhar-se na defesa dos interesses difusos dos cidadãos, o Parlamento, é também o mais sensível aos lobbies.

Luiz E. Soares: GLO, falsa solução de Segurança

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Antropólogo avalia: a cada nova intervenção militar, é como se o passado nos capturasse. Sem tocar na questão da ilegal autonomia policial, governo arrisca-se a legitimar o sistema de vingança vigente – o fracassado truque da demonstração de força
Luiz Eduardo Soares em entrevista a Kátia Mello, no Geledés. Disponível em OUTRAS MÍDIAS – 06/11/2023

Luiz Eduardo Soares, ex-Secretário Nacional de Segurança Pública na primeira gestão do governo Lula, é um dos mais respeitados profissionais e estudiosos da área. Antropólogo, cientista político e escritor, ele se debruça nesta entrevista a Geledés a fazer extensa análise sobre os motivos da recente onda de violência que assolou o País e as recém anunciadas medidas pelo Ministério da Justiça para combatê-la.

Sobre o Rio de Janeiro, o antropólogo diz que neste Estado não impera a criminalidade dos pobres, mas formas de criminalidade protagonizadas por membros das camadas médias e das elites, que participam da formação de pactos político-econômicos à margem da legalidade e da democracia.

Ao comentar o aumento da violência na Bahia, ele indaga: “Como é que a juventude aviltada se defenderá, se as instituições estão sendo capturadas pelos inimigos da vida?”

Luiz Eduardo também faz uma ponte entre os assassinatos de quatro líderes quilombolas ao histórico de conflitos no campo em nosso País. “É como se o passado tivesse capturado o precário experimento democrático nacional, desvelando sua debilidade, levando-o a render-se às raízes ferozes do aviltamento humano”, diz ele. Leia a entrevista inteira a seguir.
Leia a entrevista a seguir

Em menos de um mês, as disputas envolvendo milícias e facções criminosas fluminenses causaram a execução de médicos no Rio, a explosão de uma bomba num ônibus público, e o incêndio de cerca de 35 ônibus e um trem. Como explica esse fenômeno?

São vários fenômenos que se cruzam, se combinam e se potencializam, mutuamente. Vou nomeá-los para encaminhar uma análise sistêmica, enfatizando, desde já, que as dinâmicas referidas transcorrem em uma sociedade patriarcal profundamente marcada pelo racismo estrutural, pela exploração de classe, por iniquidades ostensivas e desigualdades abjetas, que contrastam com os marcos legais do que seria, supostamente, um Estado democrático de direito: (A) Autonomização ilegal das polícias, que terminam por formar enclaves institucionais, refratários à autoridade política, civil, e à Constituição. Essa autonomização se relaciona com o modelo policial legado pela ditadura, que nossa Constituição assimilou, acriticamente (fazendo com que não houvesse transição democrática na segurança), e à violência policial racista e classista no Brasil, que atravessa toda nossa história, desde a escravidão. (B) As forças centrípetas – maximizadas pela extinção da Secretaria de Segurança – que alimentam a autonomização também agem no interior das instituições policiais: envolvimento com segurança privada informal e ilegal; autorização para execuções extrajudiciais; geração metastática de grupos milicianos; cumplicidade e corporativismo, blindando a corrupção e as violações; acordos, conflitos e tensões entre grupos policiais, no interior de cada corporação e entre elas, disputando poder interno e influência externa. (C) Ministério Público hegemonizado por postura avessa ao pleno exercício do controle externo da atividade policial, seu dever constitucional. (D) Justiça criminal, na prática, aliada à posição tolerante do MP com violações policiais. (E) Unidades prisionais dominadas por facções criminosas, uma vez que o Estado descumpre a Lei de Execuções Penais. (F) Proibicionismo, expresso na perversa lei de drogas, que induz, combinada ao modelo policial herdado da ditadura, ao encarceramento em massa, em flagrante delito (sem investigação), de varejistas do comércio de substâncias ilícitas. (E) Degradação da institucionalidade política, atravessada por alianças com grupos criminosos. (F) Abandono da juventude pobre, acossada por falta de perspectivas econômicas, evasão escolar em grande escala e a percepção generalizada de que as instituições e o Estado são reféns da corrosão de seus compromissos e valores -os quais assim se revelam mera hipocrisia. (G) À generalização do ceticismo imobilista, que conspurca a imagem do que seja política e do que poderiam ser projetos coletivos, se somam: o hiperindividualismo do mercado, impulsionado pelos algoritmos e a linguagem das redes sociais; o discurso cruel da meritocracia (que justifica desigualdades e dissemina a culpa pelo próprio fracasso); a persistência do racismo, contrariando o falso discurso da cidadania e da equidade; a expansão de crenças, cultos, templos e comunidades que, predominantemente, abraçam visões de mundo ultraconservadoras, não raro demonizando tanto a oposição ao patriarcalismo misógino e à fobia ao universo LGBTQIA+, quanto as tradições afro-brasileiras, referências culturais que simbolizam e afirmam a resistência a tudo o que, ainda hoje, preserva elementos da escravidão. De meu ponto de vista, a evasão da paternidade é um componente significativo do modo pelo qual o patriarcalismo e a cultura machista se desdobram e reproduzem, mas desenvolver este ponto nos levaria muito longe. Por outro lado, há movimentos sociais e comunitários, culturais e políticos, na contramão desse verdadeiro tsunami regressivo e obscurantista -não houvesse, talvez disséssemos que tudo está perdido, que não restam motivos para esperança. Aliás, devo acrescentar que o novelo negativo que descrevi cumpre, além de tudo que já foi mencionado, outro papel destrutivo, pouco observado: aliena a opinião pública e as energias da resistência do tema-chave, que é a emergência climática, indissociável da problemática fundamental relativa à injustiça climática. H) Por último, vale destacar que, no Rio, não impera a criminalidade dos pobres, embora contingentes egressos da pobreza sejam com frequência recrutados para práticas criminosas. O que predomina são formas de criminalidade protagonizadas por membros das camadas médias e das elites, que participam da formação de pactos político-econômicos à margem da legalidade e da democracia, como a história violenta da Baixada fluminense mostrou ao país e a capital tem, crescentemente, evidenciado. Esses pactos instrumentalizam a degradação policial e a economia semiclandestina das drogas e das armas. A ponta desse amálgama é mais visível e sangrenta, mas menos poderosa. Todas as questões referidas na pergunta relacionam-se aos oito itens listados acima e a suas subdivisões.

A matança policial na Bahia jogou ainda maior pressão sobre a administração federal. O que acontece na Bahia e qual a dificuldade em combater a criminalidade neste Estado?

Não conheço de perto a situação da Bahia e seria leviano especular com base em informações gerais ou indiretas. O que posso dizer é que a Bahia não teve, ao longo das décadas, uma política de segurança efetivamente comprometida com o controle da violência policial. Os dados são eloquentes nesse sentido e os discursos oficiais dos dirigentes da área revelam que há uma autorização tácita quando não explícita para a perpetuação dessas práticas. Sei que há esforços respeitáveis sendo feitos por ativistas dos Direitos Humanos e por segmentos do próprio governo do Estado para frear e reverter essa história infame. Sugiro com toda ênfase que nossos leitores e nossas leitoras ouçam o episódio “Fincar o Pé, uma noite em Tucano” (interior da Bahia), do podcast Rádio Novelo

Apresenta, dirigido por Branca Viana, que foi ao ar semana passada. Trata-se de um relato emocionante, revoltante, que sintetiza melhor do que qualquer tratado sociológico ou filosófico o que é e como funciona a brutalidade policial letal, em toda a sua covardia perversa, em toda a sua crueldade, e como ela só existe e perdura por conta de uma rede sinistra de cumplicidades institucionalizadas. Passei a vida ouvindo relatos como esse, escrevendo a respeito. Mesmo assim, terminei de ouvir este episódio profundamente abalado. Como é possível que essa aberração continue acontecendo tantos anos depois da ditadura, em um estado sob uma sequência de governos progressistas. O realismo pragmático e o oportunismo eleitoreiro dos políticos têm de ter um limite. Ou a própria política perde o sentido e vamos mergulhar na barbárie. Como é que a juventude aviltada se defenderá, se as instituições estão sendo capturadas pelos inimigos da vida?
Como vê o plano do ministro Flávio Dino para combater a onda de violência, inclusive o envio de tropas ao Rio?

O ministro divulgou uma vaga e genérica carta de intenções, e prometeu apresentar um plano em 60 dias. Veremos, então, o que será. Quanto ao envio de tropas ao Rio, espero que não se concretize.

Sabemos o que isso representa e quais suas consequências. O Rio está farto de GLOs, ocupações e intervenções militares. Custa bilhões ao erário público e muitas vidas às comunidades. Correspondeu, no passado, a retrocessos, cancelando agendas construídas em diálogo com as comunidades e devolvendo o debate público à idade da pedra. Não por acaso, abriu-se caminho para a emergência do bolsonarismo. O discurso hegemônico voltou a ser: “É pau, é pedra, é o fim da picada”. Quando terminam as intervenções, a realidade anterior retorna sem modificações. E elas deixam atrás de si um rastro de indignação, cenas de violações e desrespeito. Com que argumentos se poderia considerar plausível sustentar que fazer mais do mesmo conduziria a resultado diferente? Eu ousaria dizer que, hoje, sequer faz sentido insistir na crítica à via militarizada de enfrentamento do crime no Rio. Não faz sentido porque o fracasso desse caminho já foi amplamente comprovado. Comprovado no laboratório chamado Rio de Janeiro, onde, por décadas, a direita pôs em prática todo o seu arsenal de métodos e concepções, táticas e estratégias, brutalizando comunidades, violando direitos elementares, intensificando o racismo estrutural, cevando o patriarcalismo violador e seus valores. O resultado está aí, diante de nós: banhos de sangue e uma atmosfera envenenada por ressentimento, ódio e medo. E mais insegurança, muito mais.

A cada nova intervenção militar, estreitam-se a capacidade e a credibilidade do Estado de direito, e se expandem ocupações de territórios por grupos criminosos, tiranizando as populações locais. De um ator com um mínimo de compromisso com a razão e a democracia se espera, em primeiro lugar, a recusa do negacionismo e o reconhecimento dessa realidade dramática, construída pela política de segurança em vigor. Em segundo lugar, se espera disposição e coragem para mudar a rota. E para que não pairem dúvidas, sejamos diretos: a política de segurança em vigor (a qual, aliás, não merece este título) compõe-se dos seguintes ingredientes explosivos: tolerância sistemática com a corrupção policial e a brutalidade policial letal; encarceramento em massa de varejistas do comércio de substâncias ilícitas; incursões bélicas a favelas; cessão do sistema penitenciário ao domínio de facções, por renúncia ao cumprimento da Lei de Execuções Penais; negligência com a situação social e econômica da juventude dos territórios vulneráveis; negligência do tráfico de armas que se articula fora das favelas; tolerância com a interpenetração entre crime, polícia e política.

É preciso ainda dizer que, quando o governo do estado do Rio pede ao governo federal que o ajude e apoie na área da segurança, o que verdadeiramente deseja é parceria política para dividir os ônus da ruína e os custos de seus desatinos. O governo federal não deveria aceitar o abraço do afogado e arriscar-se a submergir, levando consigo tantas histórias, tantos compromissos democráticos e tanta esperança. Os dirigentes do Rio querem dividir com quem tem credibilidade sua própria incompetência e a rede de relações perigosas em que se meteram. Portanto, nesse contexto, cabe a pergunta: faz sentido que o governo federal concorde em “ajudar”, sem exigir pelo menos que o governo do Estado do Rio cumpra as determinações do STF, no âmbito da ADPF-635 ? As últimas notícias informam que a GLO se restringirá a portos e aeroportos. Menos mal. Entretanto, ainda assim é lamentável. Trata-se de uma declaração velada de impotência da Polícia Federal e dos meios civis de prover segurança. O caráter político da decisão mal se oculta. O governo federal quer assumir protagonismo, respondendo à demanda da sociedade, mas lhe falta uma política de segurança. Então, retira da prateleira o velho truque da demonstração de força, convocando as Forças Armadas. Sabemos aonde isso nos levou.

O senhor sempre foi um defensor das reformas nas polícias. Ainda aponta esta medida como uma solução? Neste sentido, um ministério apenas direcionado à Segurança ajuda ou atrapalha?
Nenhuma medida isolada pode ser a solução de problemas que envolvem inúmeros fatores e dimensões.

Por isso, nunca tratei reformas policiais como solução. Entretanto, qualquer avanço no rumo da redução dos problemas terá de passar por reformas profundas nas instituições policiais. Quanto a
um ministério da segurança, mantenho a opinião que tenho externado ao longo dos últimos 20 anos: será um desastre caso seja apenas mais uma burocracia para disputas políticas, mais um foco de ambição da bancada da bala, mais uma entidade institucional dedicada a reforçar o status quo, a chancelar o que já existe, a legitimar o sistema de segurança vigente. Entretanto, se for o “ministério da reforma da segurança pública”, agente de mudança, orientado para a efetiva democratização da área, comprometido com os direitos humanos e a luta antirracista, poderá cumprir um papel muito positivo, até mesmo histórico.

O secretário Ricardo Cappelli promete implementar o Sistema Único de Segurança Pública (Susp). Como vê essa proposta?

Faria todo sentido se existisse mesmo algo parecido com o SUSP, tal como concebido no âmbito do primeiro mandato do presidente Lula. Acontece que, quando o governo Temer negociou com o Congresso a aprovação de projeto com o mesmo nome, SUSP, em 2018, sabia perfeitamente, assim como sabiam os
legisladores, que se tratava da encenação de uma farsa, para gáudio da distinta plateia. No Brasil, quando não se quer enfrentar uma disputa importante e difícil, com potencial para disparar conflitos graves, recua-se para pseudo-soluções, os puxadinhos normativos. Ninguém (claro que há sempre as exceções honrosas) teve coragem de propor a alteração do artigo 144, que estabelece a arquitetura institucional da segurança pública, o modelo policial e a distribuição de autoridade e responsabilidade.

Então, uma proposta ousada passou pelo liquidificador e terminou aprovada como legislação infraconstitucional, entretanto em evidente choque com disposições constitucionais. O choque não se revela no papel, ao menos a quem não conhece a área e não tem experiência suficiente. Mas assim que autoridades bem intencionadas ousarem colocar em prática o trabalho integrado, articulando entes federados diversos, agências independentes e instituições autônomas, assim que divergências naturais exigirem a definição de critérios e métodos de decisão, assim que surgir na ordem do dia a questão “quem manda?”, vários atores não hesitarão em judicializar sua recusa a seguir as orientações, oriundas dos gabinetes integrados. Espero que o errado seja eu, que o iludido seja eu. Estou ansioso por assistir à colocação em marcha do SUSP.

Como analisa a atuação do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, que entre as atuações se coloca contrário às câmeras nas fardas policiais?

Acho profundamente lamentável, porque o governador mostra que está mais preocupado em agradar sua claque ideológico-política, credenciando-se a substituir Bolsonaro na liderança da extrema-direita, do que em preservar vidas humanas.
Quatro líderes quilombolas já foram assassinados em 2023. Como explicar o aumento deste tipo de violência e qual a melhor forma de combatê-la?

Meu primeiro trabalho de fôlego, na segunda metade dos anos 1970, foi sobre a luta no campo, a resistência camponesa contra a grilagem e a expropriação. Pesquisei um grupo descendente de escravizados, cujo sucesso na resistência se devia principalmente à capacidade de ação coletiva, até certo ponto derivada da comunhão ancestral, da identidade étnica. A negritude, a história comum, a memória comunitária mantinham a unidade na diversidade e na divergência, e sustentavam a extraordinária liderança de um senhor notável, testemunha viva da trajetória do grupo, que tive a honra de conhecer. Naquela época, quem se preocupava e ocupava da temática da violência, olhava para o campo, não para as cidades. Discutíamos a questão agrária, o lugar do campesinato na luta de classes, mesmo sabendo que o desenvolvimento do capitalismo autoritário e dependente brasileiro expulsaria massas de trabalhadores para o meio urbano. Naquele momento, a linguagem marxista das classes ofuscava a atenção para as estruturas especificamente racistas e para a resistência das comunidades afro-brasileiras. Por isso, o caso que estudei me abriu os olhos: havia outras dimensões em causa. Naquele momento, não circulava entre pesquisadores e trabalhadores rurais negros a categoria quilombola, que se tornaria uma construção ao mesmo tempo política e cultural, originária das populações e de suas lutas concretas, além de ocupar lugar central no próprio léxico sociológico e antropológico. Fiz este preâmbulo à resposta com a intenção de afirmar que a violência contra quilombolas tem sido uma constante na história do Brasil. A brutalidade de classe e étnica, no campo, além das violações do patriarcalismo, era dramática antes do golpe de 1964, seguiu sendo terrível, durante a ditadura, e não cessou, depois da promulgação da Constituição, em 1988.

Nesse processo, se articulam a expansão do capitalismo espoliador, na ausência da reforma agrária, a pregnância do racismo estrutural e a acintosa cumplicidade dos poderes locais, inclusive da Justiça criminal. Nesse aspecto, apesar de tantas transformações nas estruturas da sociedade, parece que permanecemos estacionados na mesma cena originária colonial e escravista. É como se o passado tivesse capturado o precário experimento democrático nacional, desvelando sua debilidade, levando-o a render-se às raízes ferozes do aviltamento humano. Prova disso é a tentativa reiterada de criminalizar o MST. Tristes, trágicas provas desse atavismo perverso são os assassinatos continuados de lideranças quilombolas. Ainda mais chocante é saber que a violência não apenas perdura, cresce.

Considerando-se tudo isso, para combater a violência contra quilombolas, compreendendo suas origens e sua inscrição na permanente luta pela terra -uma das faces mais iníquas e cruéis do capitalismo agroexportador, turbinado pela especulação financeira-, é necessário politizar a questão e mobilizar o conjunto dos movimentos sociais. É urgente exigir do governo federal o compromisso de atribuir prioridade à defesa da vida e dos direitos dos quilombolas, assim como dos demais pequenos produtores e trabalhadores do campo -o mesmo vale para as sociedades originárias.

Por que formar mais jovens não está aumentando nossa produtividade? por Deborah Bizarria

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É fundamental que jovens tenham acesso a informações confiáveis e orientação adequada sobre o mercado

Deborah Bizarria, Economista pela UFPE, estudou economia comportamental na Warwick University (Reino Unido); evangélica e coordenadora de Políticas Públicas do Livres

Folha de São Paulo, 06/11/2023

Para adolescentes no fim da vida escolar, novembro costuma ser um mês tenso, afinal, é quando ocorre o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio).

Se, em um contexto de crescimento econômico, a decisão sobre o que fazer após a escola é difícil, no contexto atual o desafio é ainda maior.

Em gerações anteriores, havia o entendimento tácito que entrar no ensino superior era garantia de salários mais altos e relativa estabilidade. Essa percepção já não existe mais.

O contexto não ajuda. Apesar de o desemprego ter caído para 7,7%, a taxa de participação na força de trabalho ainda está abaixo do nível pré-pandemia.

Se todos os trabalhadores de antes da pandemia voltassem a procurar emprego, a taxa de desemprego seria de cerca de 10%, segundo Fernando de Holanda Barbosa Filho, pesquisador do Ibre/FGV (Instituto Brasileiro de Estatística da Fundação Getulio Vargas).

Essa situação pode gerar desperdício de capacidade de crescimento econômico e dificuldades na reintegração dos trabalhadores afastados.

Além disso, a maior parte dos empregos gerados após a crise de 2016 foi na informalidade, que atinge trabalhadores com baixa qualificação e baixo acesso a tecnologias, de acordo levantamento do Ibre/FGV.

Esses trabalhadores acabam produzindo menos que os formais e contribuem para a queda da produtividade média da economia. Estima-se que mais da metade da redução da produtividade desde 2014 se deve ao aumento da informalidade, principalmente em setores como construção e transportes.

Diante disso, é fundamental que os jovens tenham acesso a informações confiáveis e orientação adequada sobre as possibilidades e as exigências do mercado de trabalho, bem como sobre as características dos cursos superiores e profissionalizantes.

Nesse sentido, a educação brasileira para além de ensinar conteúdo para provas, deveria ser capaz de fornecer habilidades úteis para um mercado de trabalho em constante mudança.

Não parece que estamos indo nessa direção. Apesar de boas ideias estarem sendo discutidas no Ministério da Educação, como um programa que oferta bolsas e a criação de uma poupança educação, há mudanças pouco positivas em vista.

A proposta de retomar o modelo de uma educação conteudista, repleta de disciplinas obrigatórias para atender demandas corporativas, ignora a necessidade de reformas significativas.

O cenário atual da educação brasileira já demonstra resultados insatisfatórios, apesar dos vultosos investimentos na ordem de R$ 2,2 bilhões por dia útil. Ao analisar os gastos em contraste com desempenho, o Brasil se destaca como o país com o sistema educacional mais ineficiente do mundo.

Não há duvidas que mudanças precisam ser feitas. A mentalidade do bacharelismo, defendendo o excesso de matérias obrigatórias e diplomas vazios permeia as decisões educacionais, tanto nos governos quanto em muitas famílias.

Por exemplo, ofertar cursos em locais onde não há mercado de trabalho consolidado na região pode levar o recém-formado a migrar de região ou a buscar um emprego que não utilize nada de sua formação.

Ou ainda, encher a grade curricular de matérias obrigatórias, ao mesmo tempo que não se garante o aprendizado sólido em linguagem e matemática.

Similarmente, pressionar um adolescente a escolher uma “carreira tradicional”, sem qualquer conexão com suas aptidões ou com a realidade do mercado de trabalho, gera adultos frustrados e improdutivos para o país.

Em contraste, uma educação que leve em consideração as habilidades e preferências dos alunos é transformadora.

Os desafios são significativos, mas não podemos subestimar a capacidade da juventude em se adaptar e inovar. No entanto, é essencial fornecer-lhes as ferramentas e o apoio necessários para que possam trilhar caminhos profissionais que estejam alinhados com seus talentos

Ecos da Desglobalização

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Vivemos momentos intensos e marcado por grandes transformações econômicas, sociais e geopolíticas, neste cenário a economia internacional tende ao baixo crescimento, com desaceleração dos grandes polos da economia global, levando chineses e norte-americanos a buscarem novas formas de movimentar seus setores produtivos, aumentando os subsídios e os gastos públicos como forma de dinamizar a atividade econômica.

Vivemos momentos de conflitos militares, guerras fratricidas, confrontos culturais nas mais variadas regiões do mundo, movimentando a economia da guerra, com investimentos maciços em armas e tecnologias militares e, ao mesmo tempo, conflitos que geram milhares de mortos, destruição da infraestrutura das nações, devastações de populações, exigindo dos governos nacionais políticas públicas para dirimir as destruições que crassa as suas sociedades.

No cenário econômico, percebemos o aumento das políticas protecionistas de seus Estados Nacionais e o aumento dos subsídios para seus grupos internos como forma de proteger suas estruturas produtivas, garantindo a geração de emprego, salário e renda para seus trabalhadores, criando constrangimentos com outras nações e parceiros comerciais e gerando instabilidades no cenário internacional.

Vivemos momentos de incertezas, levando especialistas a acreditarem no crescimento de movimentos de desglobalização, com animalidades entre as nações, guerras retóricas e agressões diplomáticas que podem culminar em conflitos militares, com consequências inimagináveis para a sociedade global, ainda sabendo, que o potencial destrutivo das armas é crescente e preocupante, que podem criar rastros de devastação de todo planeta e exterminando a vida humana.

Vivemos momentos marcados com fortes ecos de desglobalização, que estão levando os governos de países desenvolvidos a adotarem medidas protecionistas, que anteriormente eram rechaçados e criticadas como forma de fraqueza econômica, desta forma, estamos vivendo momentos extraordinários, levando o pragmatismo a ganhar espaço agenda na economia destas nações. Nos Estados Unidos, arauto do liberalismo econômico, está se distanciando das medidas liberalizantes e defensores do livre comércio, passando a defender abertamente as medidas protecionistas, a injeção de trilhões de dólares para fortalecer empresas nacionais vistas como estratégicas, além de fortes subsídios fiscais e tributários para atraírem empresas transnacionais para seu território, garantindo empresas em solo norte-americano, com criação de empregos internos e incrementando o potencial exportador de sua economia e garantindo a reversão dos déficits crescentes na balança comercial.

A reversão do processo de globalização ou a chamada desglobalização está atrelada as grandes movimentações geopolíticas globais, com a ascensão da economia chinesa e a construção de um novo ambiente internacional, onde podemos definir como um mundo multipolar. Neste novo posicionamento geopolítico da sociedade internacional, percebemos espaços interessantes para algumas nações, dentre elas destacamos o Brasil, que pode aparecer como uma alternativa interessante para aos confrontos geopolíticos e econômicos das potências dominantes.

Neste cenário, podemos vislumbrar novas oportunidades para o Brasil, recentemente uma delegação norte-americana veio visitar o Brasil para que o país possa exportar chips menos sofisticados para os Estados Unidos, com grandes investimentos para a produção local e fortes recursos financeiros, desta forma, os americanos diminuem a dependência das importações dos chips chineses e criem uma cadeia global mais amigável e menos belicosa.

Essas oportunidades estão se abrindo para a sociedade brasileira em um mundo multipolar, novas possibilidades externas podem impulsionar a economia nacional, garantindo novos investimentos produtivos e a geração de empregos de qualidade, que possibilitem novos saltos tecnológicos e uma sofisticação produtiva, deixando de lado um histórico de sermos uma economia exportadora de produtos primários de baixo valor agregado. Neste momento, precisamos repensar a sociedade brasileira, reduzir as polarizações, buscando espaços de reconstrução da economia nacional e retomando os ecos do desenvolvimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre. Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

2023: uma prévia do futuro? por Marcia Castro

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Ano deixa um rastro de destruição devido a eventos climáticos extremos

Márcia Castro, Professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard.

Folha de São Paulo, 06/11/2023.

A menos de dois meses do fim do ano, 2023 já deixa um rastro de destruição devido a eventos climáticos extremos. Recordes de temperatura, seca, incêndios, enchentes. Cidades inteiras praticamente destruídas nos hemisférios norte e sul. Ainda que o El Nino contribua para esses eventos, não é a única causa.

Um estudo mostra que 20 dos 35 sinais vitais planetários usados para monitorar a crise climática alcançaram valores recorde, criando um cenário jamais observado na história da humanidade. Em setembro, outro estudo já havia mostrado que dois terços das condições favoráveis à vida humana na Terra já haviam sido comprometidas.

Ainda que a grande maioria dos países tenham assinado o Acordo de Paris em 2015, comprometendo-se a reduzir emissões para limitar o aumento da temperatura global a 1,5°C (em relação aos níveis pré-industriais), o avanço na redução de emissões tem sido lento.

No início deste ano, a estimativa de que o limite de 1,5°C seria alcançado em 2023 era de menos de 1% . Entretanto, a última estimativa (de setembro) é que há 90% de chance de que 2023 ultrapasse esse limite. As consequências são devastadoras. Um estudo estimou que entre 2000 e 2019, cerca de 1,2 bilhão de pessoas no mundo foram afetadas por eventos climáticos extremos, gerando um custo de US$ 143 bilhões por ano, 63% devido a perda de vidas humanas.

Apesar dessas consequências, o progresso na adoção de medidas de adaptação climática está diminuindo. Um relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, publicado neste mês, mostra que o financiamento para ações de mitigação e adaptação é de apenas 5% a 10% do que é necessário. O relatório sugere formas de aumentar gastos domésticos e financiamento internacional e do setor privado. Porém, é preciso comprometimento político.

Além da redução no investimento em medidas de adaptação, o último relatório da Organização Meteorológica Mundial, publicado semana passada, mostra que o uso de alertas meteorológicos por Ministérios da Saúde para orientar ações de mitigação ainda é muito limitado.

Além disso, a recente passagem do furação Otis mostrou que nenhum modelo conseguiu prever sua intensidade. Atípico, Otis passou de tempestade tropical a furacão de categoria máxima em cerca de 12 horas. Com isso, mais de um milhão de pessoas no México tiveram pouco tempo para se preparar para a tempestade. A urgência da crise climática é uma realidade. E ainda que a velocidade das mudanças surpreenda, as mudanças em si já vêm sendo discutidas há décadas. Porém, as respostas não acompanham a velocidade da urgência.

No Brasil, as catástrofes em 2023 são incalculáveis. Enquanto a região Sul enfrenta enchentes há meses, partes do Nordeste convivem com a desertificação. Na Amazônia, rios estão com nível de água muito abaixo do normal, deixando comunidades completamente isoladas. E a fumaça das queimadas que encobre cidades da Amazônia expõe a população a sérias complicações de saúde.
2023 com 1,5°C acima da média mostra ao mundo uma prévia de um planeta aquecido. Um planeta onde as estações do ano perdem o sentido, onde catástrofes correm o risco de serem normalizadas, e onde os que menos contribuíram para as emissões mais sofrem com os efeitos da crise climática.

A próxima Conferência do Clima (COP 28) começará no dia 30 deste mês. Nela será apresentado o primeiro balanço global das metas do Acordo de Paris para que países avaliem onde estão progredindo em direção ao cumprimento das metas, onde não estão, e o que devem fazer.

Que a urgência do momento e o balanço global impulsionem a ação!

Agro foca mais no gado do que em gente, diz presidente da Cibra

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Em livro, executivo diz que gestão de pessoas é a nova fronteira a ser rompida pelo agronegócio

Julio Wiziack – Folha de São Paulo, 05/11/2023

BRASÍLIA O colombiano Santiago Franco preside, há mais de uma década, a Cibra Fertilizantes, uma das maiores do ramo no Brasil, controlada pelo grupo americano Omimex (70%) e a mineradora britânica Anglo American. Nesse período, a companhia, antes quebrada, saltou de R$ 70 milhões para R$ 8 bilhões em vendas. Para isso, Franco teve de conhecer o agro por dentro para detectar oportunidades.

Em seu livro “Liderança e Gestão de Pessoas no Agronegócio”, ele diz que a tecnologia levará a uma revolução no campo e que, sem gestão de pessoas, não há como obter sucesso.

O agro se preocupa mais com bois do que com gente?
[Risos] Não sei se trata melhor o gado, mas os gestores focam no gado mesmo, na produtividade, na eficiência, no custo. Embora hoje existam empresas muito grandes, a maioria delas é familiar e a gestão passa de pai para filho. Quando contratam profissionais, a preocupação é sempre na parte técnica. É um setor em que predominam o comando e o controle. Quem manda, manda. Obedece quem tem juízo.

Se é assim, por que você defende peões mais preparados?
Porque a tecnologia está mudando as relações de trabalho. Já não é mais possível seguir tocando o negócio do jeito de sempre. Se você precisa pilotar um trator que fala, que é computadorizado, tem de ser escolarizado. E avançamos para uma fase em que os tratores não precisarão mais de pilotos. Haverá menos gente no campo e mais pessoas nos escritórios, com salas cheias de computadores fazendo a gestão da fazenda. A relação de trabalho é outra nesse caso. Não dá para ter uma pessoa que não goste da empresa e, no limite, peça demissão. [Essa nova fase] Exige engajamento [dos funcionários].

A troca de funcionários no campo ainda é muito grande?
Na Cibra, por exemplo, o turnover [reposição de mão-de-obra] é de mais ou menos 10%. Para mim, não é bom. No agro, é bem mais alto, mas não saberia mensurar.

Até que ponto o turnover não reflete o dinamismo do agronegócio, que oferece salários melhores para tomar funcionários de concorrentes?
Um gestor tem um tripé: a estratégia, as pessoas e a operação. Os gestores ainda olham muito para a operação. No meu caso, eu dedico pelo menos 50% do meu tempo às pessoas e a outra metade, aos processos. É preciso conectar a estratégia às pessoas e deixar as pessoas tocando a operação. É daí que sairá a próxima revolução do agro.

RAIO-X
Formação: Engenharia agronômica (Universidad de Caldas), pós-graduação em Administração (Inalde Business School)

Carreira: Presidente da Cibra (desde 2012); Diretor da divisão de agro da Abocol (1997-2011); Diretor comercial da Insucampo (1995-1997); diretor comercial da Hoechst (1991-1995)

Educação em apuros, por Muniz Sodré

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EAD é experimento de automação do positivismo educacional

Muniz Sodré, Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

Folha de São Paulo, 05/11/2023

O Brasil ocupa a terceira pior posição em investimento público na educação básica. Fato gravíssimo: um terço dos jovens abandona a escola antes de concluir o ensino médio. Não é só questão de verba, e sim de falência do verbo educar, ou seja, má qualidade de ensino. Inexiste programa sério de capacitação de professores, enquanto avança a proliferação do ensino a distância (EAD). Um grupelho de universidades privadas domina o setor, com número de inscritos superior ao de todas as instituições públicas. Mas estas, na avaliação do Enade de 2022, tiveram melhor desempenho que as privadas.

Sistematicamente, os estudantes de EAD têm conceitos mais baixos que os presenciais. Sabe-se que disciplinas relativas a cálculos e mecanismos se prestam bem à instrução online, porém não se sabe como, em certos casos, um único tutor possa acompanhar centenas, senão milhares de inscritos. Outra questão é a evasão técnica: alunos se ausentam, deixando seus avatares nas telas. A pior de todas é a rasteira perspectiva pedagógica de que “bastam português e matemática”.

Essas duas disciplinas, em que estudantes brasileiros revelam baixa proficiência, são vitais à tecnologia, embora não sob um positivismo culturalmente excludente. De fato, no domínio da criatividade, as big techs não pautam sua prática pela camisa de força, hostil à criação, com que o positivismo vestiu o conhecimento. Para Emmanuel Carneiro Leão, filósofo e educador falecido em outubro, pensar tem mais a ver com criação do que com cálculo.

A pedagogia positivista serve para passar no Enem, consolidar os rendosos monopólios de ensino e reproduzir elites de poder. Nesses termos, a universalização do acesso à escola é também apequenamento de qualidade, secundado pela pauta retrógrada da ultradireita, que agora avança sobre conselhos tutelares. Corporeidade infantil é matéria-prima para a hipocrisia moralista.

Só que existem corpos sociais e corpos raciais. Os primeiros integram-se na comunidade étnica hegemônica. Corpos de raça são aqueles que, no tráfico negreiro, “podiam ser comprados e vendidos, postos no trabalho como fontes privilegiadas de energia” (Achilel Mbembe em “Corpos-Fronteiras”). Desses foram sucedâneos os escravos da máquina, operários, ou qualquer corpo de segunda classe.

A EAD destina-se a corpos raciais como experimento de automação do positivismo educacional, uma forma acelerada de adestramento que ignora a diferença entre produtividade e criatividade, entre instrução técnica e formação humana. De modo geral, excesso de informação é recesso de compreensão. Já a velocidade circulatória suprime pausa, ambivalência, reflexão e, no limite, a própria educação, estruturalmente mais lenta. Junto aos jovens, vence o TikTok. É o epitáfio do professor.

Desumanidade cotidiana

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Vivemos num momento marcado por grandes desenvolvimentos tecnológicos que estão transformando a sociedade global, criando relações novas entre o espaço e o tempo, como disse, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman. Um momento marcado pelo crescimento das redes sociais, das alterações produtivas e da comunicação instantânea, onde os seres humanos se sentem, cada vez mais, solitários, amedrontados e marcados pela desesperança, pela incerteza e pela instabilidade.

Neste cenário de fortes transformações tecnológicas, os trabalhadores estão passando por grande reinvenção, a busca de capacitação e requalificação profissional crescem todos os dias, exigindo investimentos crescentes e dedicações cotidianas como forma de acompanhar a aceleração das novas tecnologias, que criam novas formas de geração de riqueza, além de uma cobrança mais intensiva, numa busca insana que impacta todos os seres humanos, uns empregados e outros desempregados, num ritmo frenético que estão motivando desequilíbrios emocionais e desajustes afetivos e psicológicos.

Neste ambiente de fortes alterações econômicas, políticas, culturais e sociais, encontramos uma sociedade mundial cindida e que se compraz com a destruição dos inimigos, muitos deles verdadeiros e outros imaginários, estimulando guerras fratricidas, destruições militares e violências crescentes, nos levando a indagar, diante deste cenário, se somos seres humanos racionais, como defendiam os arautos da economia neoclássica.

No ambiente internacional, percebemos o crescimento dos conflitos bélicos, embarques crescentes de armas, remanejamento de tropas e armamentos militares, levando nações a canalizarem bilhões de dólares para impulsionar os mercados da guerra, desviando recursos imprescindíveis para a melhora das condições de vida de seus povos, criando confrontos internos, violências extremas, exclusões sociais, desempregos elevados e desesperanças inimagináveis, e muitos indivíduos, que vivem numa outra sociedade, estão se perguntando como a violência está crescendo de forma acelerada, afinal, muitos acreditam, erroneamente, que somos um povo pacífico, acolhedor e cordial, como destacou o grande intelectual brasileiro Sérgio Buarque de Holanda.

Internamente, somos uma nação criada e constituída na pilhagem, na exploração e na corrupção cotidiana, mantivemos durante séculos um modelo econômico centrado na explorando dos negros e dos indígenas, convivendo com uma concentração de renda obscena, vivemos numa sociedade centrada em privilégios de poucos, com fortes benefícios, isenções e privilégios tributários, além de recursos monetários e condições sociais de prestígios sociais e de respeitabilidade, seres que vivem em uma verdadeira casta. Em detrimento de uma grande maioria da sociedade, pessoas espoliadas, endividadas, desempregadas, com salários ultrajantes, transporte público degradante, educação de péssima qualidade, sem políticas públicas, sem segurança pública e sem dignidade humana.

Nesta sociedade encontramos imagens assustadoras, guerras nas mais variadas regiões do globo, conflitos sangrentos e violências crescentes, ônibus e trens queimados, bombas sendo disparadas, crianças sendo mortas e uma desumanidade ascendente, onde os seres humanos perdem a capacidade de indignação, com isso, percebemos que a sociedade caminha a passos largos a uma degradação sem precedente, com guerras, agressões e destruições, onde as instituições multilaterais não conseguem garantir melhores condições de convivência pacífica, exigindo uma reestruturação de todos os canais de negociação internacional, como forma de retomar as políticas de desenvolvimento social, fundamentais para a melhora das condições de vida da sociedade internacional.

Neste ambiente de grandes transformações, percebemos que as lideranças estão aquém dos desafios contemporâneos, como as questões relacionadas ao meio ambiente, o incremento da pobreza em todas as regiões, o aumento do crime organizado, as alterações no mundo do emprego e dos modelos de negócios. Todos esses desafios exigem uma visão sistêmica, multidisciplinar e uma visão coletiva, deixando de lado uma visão que domina a sociedade contemporânea marcadas pelo individualismo, pelo imediatismo e centrada no lucro.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Desigualdade é coisa de rico, mas afeta oportunidades dos pobres, por André Roncáglia

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É a falta de renda, não de educação financeira, que mantém pobres os pobres

André Roncáglia, Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Riqueza é poder. Os super-ricos não desejam apenas viver de forma nababesca; querem influenciar as leis, bem como o que as pessoas podem saber e estudar.

A coalizão agrofinanceira gasta muito para formar bancadas no Legislativo e para influenciar a opinião pública. Recente reportagem da revista Piauí revelou como o mercado financeiro tenta influenciar o debate sobre economia e negócios. Desigualdade sem limites ameaça a democracia.

Na contramão das investidas plutocráticas, uma série de livros e estudos vem destrinchando a desigualdade no Brasil. O livro de Pedro Souza, “Uma História da Desigualdade”, a concentração de renda entre os ricos no Brasil” (2018), revela a desigualdade vista do topo; e o compêndio “Desigualdades: visões do Brasil e do mundo” (2022) —organizado por Fernando Mattos, João Hallak Neto e Fernando Gaiger— analisa os impactos multidimensionais da desigualdade sobre o mercado de trabalho, o acesso à saúde e à educação etc.

Engrossando o caldo, a Companhia das Letras lançou em 18/10 ” Os Ricos e os Pobres: o Brasil e a desigualdade”, de Marcelo Medeiros. Com erudição despretensiosa e capítulos curtos, o livro responde a inúmeras falácias veiculadas nas redes antissociais nos últimos anos. Traduz para o público os resultados de pesquisas sobre variados temas, como salário mínimo, disparidade salarial entre gêneros e raças, bem como taxação de riqueza e a miragem da educação como solução de nossos problemas.

Medeiros mostra didaticamente como desigualdade é coisa de rico: há “muito mais renda nas mãos do 1% mais rico do que na metade mais pobre da população adulta”; e o 0,5% mais rico apropria 20% da renda nacional. Já a imensa massa de pobres e homogênea do ponto de visto socioeconômico. Pobreza e desigualdade são fenômenos interligados, mas diferentes entre si.

O livro desmonta a falsa dicotomia entre política e técnica. Por exemplo: programas de combate à pobreza refletem o jogo de poder no conflito distributivo ao definirem uma “linha de pobreza” e ao adotar uma noção de insuficiência de renda. Afinal, “quanto mais rica for uma sociedade, mais alta tende a ser a linha que define o que é pobreza”.

Um capítulo chocante ilustra, com números, o que significa poupar para os pobres no Brasil. Se uma família poupar 5% da sua renda diária de R$ 14,50 todos os dias, teria anualmente R$ 264. Esperaria 30 anos para comprar uma motocicleta usada para prestar serviço de motoboy; seis anos para uma geladeira ou para uma máquina de lavar roupas.

Não é a falta de educação financeira que mantém os pobres nesta condição. É a falta de renda.

Por isso, o combate à pobreza deve ir além do Bolsa Família e da defesa da educação básica. É preciso atacar as causas da desigualdade. Como estas operam no topo da distribuição, são necessárias políticas específicas, como tributação progressiva da renda e da riqueza e acesso ao ensino superior, entre outras.

O livro rebate também a ameaça de fuga de capitais em caso de tributação da riqueza. Além de “metade da riqueza ser imóvel e cerca de dois terços não conseguirem migrar internacionalmente”, as frentes parlamentares bloqueiam ou desidratam a tributação justa da riqueza. O projeto de lei prevê a taxação de fundos exclusivos de alta renda e offshores reduziu de 15% para 8% a alíquota sobre ganhos financeiros destes fundos e excluiu os ganhos decorrentes de variação cambial da base de cálculo.

Por isso, Medeiros defende que a tributação integrada de renda e riqueza constitua um “imposto mínimo” sobre os mais ricos, não apenas por melhorar alocação de capital (ao tributar a fatia ociosa do patrimônio) mas por financiar a expansão das políticas de combate à pobreza.

Reduzir a desigualdade é vital para eliminar a pobreza e promover a democracia efetiva. A liberdade econômica deve valer para todos.

O cinismo dos EUA e o direito ao vale-tudo de Israel e Hamas, por Marcos A. Gonçalves

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Quando discutimos quem matou mais crianças e civis é que já estamos no inferno

Marcos Augusto Gonçalves, Editor da Ilustríssima e autor de ‘1922 – A Semana que Não Terminou’ (Companhia das Letras, 2012).

Folha de São Paulo, 27/10/2023

Um ato de barbárie não transforma uma revanche bárbara em resposta moralmente defensável. O terrorismo não se define pela precedência da iniciativa, como se um primeiro gesto de horror merecesse condenação e absolvesse os que porventura viessem a ocorrer em sentido contrário.

Sendo assim, não são sustentáveis os argumentos que procuram justificar o inominável ataque do Hamas sob a alegação de que Israel promove hostilidades que poderiam ser caracterizadas como terrorismo de Estado.

Do mesmo modo, são uma afronta à ética humanitária os bombardeios indiscriminados contra civis em Gaza e a supressão de alimentos, energia e água da população confinada. A ideia de que os palestinos devem ser tratados como animais é fundamentalmente terrorista.

Quando nos entregamos a uma contabilidade para apurar quem mata mais crianças e civis, quem começou e quem tem mais motivos para continuar a fazê-lo, é que já descemos ao inferno. Israel não é um Hamas às avessas, mas é preciso que o país e seus apoiadores demonstrem que ainda não desistiram dessa diferença.

Considerações éticas e princípios humanitários, no final das contas, são incompatíveis com a lógica das guerras, ainda que se estabeleçam normas e acordos internacionais para tentar torná-las menos inaceitáveis. A guerra já é uma derrota por si. A tendência em confrontos bélicos é que prevaleça a espiral de ódio, ressentimentos e vinganças —como mais uma vez se observa no atual conflito.

Mesmo numa guerra justa e convencional, como a que se moveu contra o nazismo, a barbárie marcou presença dos dois lados.

A explosão de duas bombas atômicas sobre duas cidades japonesas pelos Estados Unidos, em 1945, sem nenhuma distinção entre crianças, civis e alvos militares, talvez tenha sido o mais bárbaro dos crimes de guerra que se tem notícia. Foi praticado e continua a ser justificado por alguns, mal e porcamente, em nome da paz e da democracia ocidental. Haveria outras maneiras de demonstrar o poderio da rosa estúpida e inválida que não explodi-la sobre Hiroshima e Nagasaki.

É sintomático que o governo norte-americano tenha vetado o texto que o Brasil apresentou ao Conselho de Segurança da ONU com aprovação expressiva, inclusive de membros permanentes. O cinismo americano, com suas políticas de conveniência embrulhadas em retórica de defesa do “mundo livre”, é conhecido e encampado de bom grado por americanófilos em diversos fóruns.

Os EUA financiam a ditadura egípcia, curvam-se ao déspota saudita e mantêm uma prisão fora do alcance de todas as leis, num pedaço do território de Cuba, país que acusam de ser do “eixo do mal” e sufocam com um embargo em tudo nocivo.

O argumento de que a proposta de resolução apresentada pelo Brasil não contemplava o direito de defesa do Estado de Israel seria risível se não fosse trágico. Pedir um cessar-fogo para estabelecer corredores humanitários não é negar direito de defesa. E direito de defesa não é direito ao vale-tudo, não é direito ao olho por olho, dente por dente. Espanta que até mesmo alguns brasileiros alfabetizados tenham apoiado o veto.

Os terroristas do Hamas não reconhecem o direito de Israel existir. Israel dá sinais há anos de que já desistiu do direito dos palestinos a constituir um Estado. Nessas bases nada se resolverá. Por culpa de muitos, a proposta internacional de criar um país para os judeus como solução pacífica para uma tragédia secular e reparação ao Holocausto parece se aproximar perigosamente de uma decepção histórica. É triste, mas é o que os fatos estão aí a nos dizer.

Estado criminal, por Luís Francisco Carvalho Filho

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É possível investigar os sinais exteriores de riqueza

Luís Francisco Carvalho Filho, Advogado criminal, é autor de “Newton” e “Nada mais foi dito nem perguntado”

Folha de São Paulo, 28/10/2023

Um ser que se habitua a tudo: a melhor definição que se pode dar ao homem, escreveu Dostoiévski.

Os desentendimentos históricos dos dois povos, judeus e palestinos, a guerra medonha. O fundamentalismo religioso, a semear ódio, intolerância, misoginia e genocídio. A espantosa e ininterrupta sequência de atiradores solitários nos Estados Unidos acertando a esmo pessoas comuns. A indústria de armas de fogo livre, leve e solta. As misérias da África.

O Brasil é o oitavo país mais letal do planeta. O número de homicídios de jovens negros é três
vezes maior que o de jovens brancos.

Habitua-se a tudo, ainda que aos sobressaltos.

O terror se espalhou na segunda-feira (25), instantaneamente, para retaliar a morte do proeminente miliciano Fustão pela Polícia Civil carioca. Caos, medo e prejuízo –35 ônibus incendiados. Surpreendidos, governantes radicalizam o discurso e pedem o endurecimento das leis penais, mesmo sabendo que não adianta nada.

Assim como não há solução milagrosa, previsível, imediata e viável para o conflito do Oriente Médio, não há solução milagrosa, previsível, imediata e viável para a violência brasileira.

As cidades estão habituadas. Algum dia, alguma coisa acontece. É um desafio gigantesco administrar o problema que não é apenas do Tio de Janeiro, muito embora, por alguma razão, o Rio esteja sempre na vanguarda.

A expansão do ciclo econômico das milícias e do crime organizado, que afeta o meio ambiente, a qualidade da água, o turismo e o cotidiano das populações, tem como insumo a corrupção policial.

Sufocá-la, não por moralismo, mas por interesse público, não é suficiente, porém é essencial.

As milícias namoram as igrejas e a política. Milícias e igrejas exercem poder eleitoral decisivo.

O país está habituado, mas as chamadas do noticiário são alarmantes. O novo chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro (“a polícia mata sim” e “vai continuar matando”) é condecorado com a medalha Tiradentes por iniciativa de parlamentar funcionalmente relacionado a miliciano. Filha de miliciano condenado ganha cargo de confiança no governo de Claudio Castro. Filho do ex-presidente Bolsonaro mantém vínculo com milicianos, assim como a ex-ministra do Turismo nomeada pelo presidente Lula. Milicianos ocupam gabinetes de senadores, deputados e vereadores, que transitam entre facções rivais e interesses antagônicos.

O cardápio oferecido pelas milícias é amplo e isento de impostos. De grupos de extermínio a sinais pirata de TV a cabo, construção civil, transporte alternativo, botijões de gás. Armas de guerra são desviados do Exército e municiam ação de traficantes e do “novo cangaço”.

Para enfrentar a violência desmedida, o governo federal projeta atos de repressão ostensiva e pretende compartilhar informações com autoridades locais e corporações habituadas a dividir espaço e gentileza com milicianos. Corre o risco de nomear vampiros para gerir bancos de sangue.

É possível investigar os sinais exteriores de riqueza que policiais ostentam sem cerimônia. Que carro usa, onde mora, de quem é a casa, negócios, bicos, o relógio de ouro, o dinheiro vivo, o cartão de crédito e as contas bancárias, está tudo de acordo com o holerite?

O homem se habitua a tudo e a vida criminosa deixa rastros. Investigar quem é quem nas polícias talvez seja a primeira e a mais singela das providências necessárias para retomar o controle do Estado.

Brics, pra que te quero? por Rodrigo Zeidan

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Grupo era fantasia que virou realidade; não dá para esperar grandes coisas

Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Folha de São Paulo, 28/10/2023

O Brics não existe. Brasil, Rússia, Índia e China (e depois África do Sul) foram colocados no mesmo saco por um executivo do Goldman Sachs, em 2001, por serem os países do futuro, que combinariam grandes populações e potencial econômico.

Bem, o futuro chegou e a realidade é dura. China e Índia não pararam de crescer durante os últimos 20 anos, enquanto Brasil, Rússia e África do Sul se estabeleceram como bastiões da armadilha da renda média; economias estagnadas sem chance de saltar estágios de desenvolvimento. China e Índia podem sonhar em galgar degraus.

Os chineses saíram da baixa renda média (onde a renda per capita é de menos de US$ 4.000) para a alta renda média (ganhos por habitante entre US$ 8.000 e US$ 13 mil). A China se tornará um país rico? Possivelmente, embora não seja certo. A Índia, por sua vez, saiu da classificação de país pobre (com renda abaixo de US$ 1.100 por pessoa) para renda média baixa e, provavelmente, chegará à renda média nos próximos dez anos.

Em 2000, o Brics representava 20% do PIB mundial. Hoje, o bloco é um terço da renda mundial. Só que a participação dos outros países que não China e Índia encolheu sobremaneira, com a parcela do PIB mundial representado pela economia brasileira caindo quase um quarto, para 2,4%, enquanto os gigantes asiáticos aumentaram seu peso na economia mundial para 20% (China) e 9% (Índia).

O mais interessante é que a China, que é o país com menos razão econômica para fazer parte do Brics, é o governo que de longe mais lidera iniciativas para manter a existência de um clube que, não fosse um relatório de um banco de investimentos, não existiria. Na China existem inúmeros centros de estudos do Brics, o país sedia o Banco do Brics (agora chamado de Novo Banco de Desenvolvimento) e são várias as conferências sobre o assunto.

Vamos ser sinceros: o Brics hoje é uma construção geopolítica liderada pelos chineses. Para o Brasil, vale a pena ser parte do bloco? Claro que sim. Afinal, a China é o maior parceiro comercial do país e diversificar interesses econômicos é algo que faz sentido geopolítico. Mas o que não dá é para o governo brasileiro achar que os eventos do Brics refletem uma visão de consenso entre os países do bloco. Quem dá a energia para a existência das iniciativas é o governo chinês, e não há qualquer possibilidade de outros países terem uma voz ativa que se distancie demais dos interesses da China. De novo, isso não é um grande problema, pois afinal o Brics é a centésima prioridade geopolítica chinesa (e também têm baixa prioridade nos outros países).

Para a China, o grupo também serve como diversificação geopolítica. Custa muito pouco manter um grupo de países aliados em um momento no qual o ocidente espreme o país. Para os outros países membros, como a maior parte dos custos é bancada pelos chineses, participação custa muito pouco.

Mas não há sonho global comum. O Brics não é parte de um projeto de fortalecimento do Sul Global (outra construção ideológica de dúbio valor). É um investimento geopolítico pragmático, com poucos custos para os países envolvidos, mas também sem prometer grandes retornos.

É legal dizer que fazemos parte de um clube que concentra um terço do PIB mundial? Talvez, mas o Brics era uma fantasia de um banco de investimentos que se tornou realidade; não dá para esperar grandes coisas de algo assim.

Demandas contemporâneas

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Vivemos numa sociedade marcada por constantes turbulências em todas as áreas e setores, novos negócios são criados todos os dias, e muitos são destruídos rapidamente, novas demandas surgem cotidianamente, percebendo novos comportamentos dos consumidores, gerando desafios constantes para empresas e para os empreendimentos, obrigando as corporações a aumentarem as exigências para seus trabalhadores, novas habilidades e novas formas de compreensão dos desafios da sociedade contemporânea.

Neste cenário, o Fórum Econômico Mundial publicou, recentemente, uma pesquisa para compreender as habilidades dos trabalhadores do futuro, as suas exigências, qualificações e suas capacitações, numa sociedade em constantes transformações, com o crescimento dos negócios digitais, as preocupações da sustentabilidade, as urgentes discussões climáticas e as necessidades de reduzir os grandes desequilíbrios sociais que perpassam a sociedade global, gerando confrontos crescentes, terrorismo em todas as regiões, medos e ressentimentos que criam constrangimentos para todos os grupos sociais.

Nesta pesquisa do Fórum Econômico Mundial foram destacadas habilidades comportamentais em detrimento das habilidades técnicas como as grandes exigências do mundo do negócio, onde a pesquisa destacou a capacidade de resolução de problemas complexos, pensamento crítico, criatividade, liderança e gestão de pessoas, trabalho em equipe, além de inteligência emocional, flexibilidade cognitiva, negociação, tomada de decisão e orientação à serviços. Numa nova sociedade como a que estamos vislumbrando, percebemos que o mundo do trabalho prescinde de novos trabalhadores, novas habilidades e capacitações, um mundo marcado por disrupturas, transformações constantes, volatilidades cotidianas, pelas instabilidades crescentes e pelo crescimento de incertezas, como foi destacado pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman na obra de referência “Modernidade Líquida”.

Nesta sociedade contemporânea, marcada pela busca constante pelos lucros e ganhos monetários e financeiros, as demandas sobre os profissionais crescem de forma acelerada, exigindo constantes capacitações, cursos de atualização, investimentos em novas especializações, pós-graduações e muito mais, ao mesmo tempo, as valorizações salariais crescem lentamente, os ganhos monetários, da maior parte, estão estagnados, gerando medos constantes em cortes e listas de dispensas, motivando um ambiente de insanidade, de constantes preocupações e incertezas. Sejam bem vindos num mundo marcado pela luta de todos contra todos, um verdadeiro retrocesso civilizacional.

Nesta nova sociedade, profissões estão sendo substituídas cotidianamente, investimentos estão sendo remanejados, empregos estão sendo destruídos, as experiências são deixadas de lado e substituídos por profissionais pouco capacitados e sem experiências, onde empresas estão observando apenas os valores monetários, deixando de lado a reputação e os ganhos imediatos, como se não existisse futuro. Neste cenário, percebemos o crescimento do empreendedorismo forçado, pessoas buscam se recapacitar para sobreviver, os mais experientes são deixados de lado na busca pela sobrevivência, um contrassenso numa sociedade que estimula uma vida longa para os indivíduos e, ao mesmo tempo, rechaça os mais experientes, degrada seus ganhos financeiros e não cria oportunidades para uma velhice com mais dignidade e sabedoria.

Neste momento marcado por grandes disrupturas econômicas e transformações tecnológicas, a educação vem ganhando, cada vez mais importância e centralidade para governos e famílias, levando-os a buscarem modelos educacionais eficientes, construindo novos formatos escolares para a apreensão do conhecimento e para a consolidação de valores comportamentais significativos para a satisfação das necessidades individuais e coletivas, estimulando o crescimento econômico, o desenvolvimento social e o bem-estar das sociedades.

A pesquisa desenvolvida pelo Fórum Econômico nos traz elementos valiosos para a construção de uma nova empregabilidade para os indivíduos, mas precisamos, antes de mais nada, refletirmos sobre os valores da sociedade contemporânea, que prega valores inatingíveis, espalha individualismo e imediatismo, e defende a meritocracia e o empreendedorismo como forma de melhoria social.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Neoliberalismo e criminalização da pobreza, por Marco Mondaini

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MARCO MONDAINI – A Terra é Redonda, 12/10/2023

Prefácio ao livro recém-lançado, organizado por Terçália Suassuna Vaz Lima
O último quarto do século XX assinalou um significativo ponto de inflexão na história do modo de produção capitalista, bem como na trajetória do Estado e do conjunto de instituições criadas por este desde os processos revolucionários ocorridos na Inglaterra, Estados Unidos e França, no decorrer dos séculos XVII e XVIII.

Depois de um breve período de aproximadamente trinta anos em que, no Norte global, o capitalismo foi “organizado” em função da destruição gerada pelas Primeira e Segunda Guerras Mundiais, pela edificação do amedrontador mundo comunista criado ao redor da União Soviética, pelas lutas da classe trabalhadora dentro das suas fronteiras e pelas crises cíclicas do próprio modo de produção, chega-se, em meados da década de 1970, a um ponto de virada no qual o sistema do capital volta a apelar para o uso sistemático da barbárie que sempre o caracterizou dentro dos seus limites geopolíticos e, especialmente, nas suas relações com os países e povos do Sul global, desde o seu processo primitivo de acumulação.

A barbárie nua e crua que retorna à cena histórica de onde nunca havia se ausentado por completo foi – e permanece sendo até os dias de hoje – resultado da implementação de uma fórmula responsável por aumentar exponencialmente os níveis de exploração e opressão do capitalismo, isto é, seus índices de desigualdade, pobreza e violência.

Tal fórmula responde pelo nome de neoliberalismo e pelo sobrenome de Estado Penal. Dela resultaram fenômenos como a criminalização e controle da pobreza, o encarceramento em massa, a desproteção social à infância e adolescência, a preservação e aumento da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes e do trabalho infantil – fenômenos estes abordados no livro que tenho a satisfação de prefaciar num momento de transição da história brasileira, resultante da derrota da extrema direita encabeçada pelo capitão da reserva do exército (de corte neoliberal e punitivista, diga-se de passagem) no último pleito presidencial para a Frente Ampla Democrática que se formou em torno da candidatura de Lula.

Organizado pela doutora em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professora da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Terçália Suassuna Vaz Lima, o livro intitulado Neoliberalismo e Criminalização da Pobreza reúne dez artigos escritos na sua maioria por assistentes sociais com pós-graduação, muitas das quais já exercendo a docência no ensino superior, em universidades públicas e privadas, entre as quais ex-alunas minhas nos cursos de graduação e pós-graduação em Serviço Social da UFPE e colegas de docência e pesquisa no magistério superior – fato que expressa outra vez mais o crescimento quantitativo e qualitativo da produção realizada no âmbito do Serviço Social.

No entanto, para além de critérios meramente acadêmicos, o livro em questão expressa o compromisso de caráter ético-político de um conjunto de profissionais que deslocam seu olhar para (e em defesa de) uma das parcelas da população brasileira que mais sentem no corpo e na alma os impactos do enxugamento dos recursos destinados à área social de um Estado que nunca foi provido de uma ossatura próxima daquela do Estado de Bem-Estar Social dos países do Norte global e que reproduz um passado escravista e patriarcal que insiste em não passar. Um passado de desigualdades sociais e étnico-raciais, entre tantas outras, que é potencializado pelas políticas macroeconômicas e sistemas de valores neoliberais.

Uma parcela da população brasileira que sofre no corpo e na alma as consequências do avanço das práticas punitivistas que, a negar o falso discurso do Brasil como país da impunidade, penalizam seletivamente crianças e adolescentes filhos de uma classe trabalhadora – negra, na sua maioria – cada vez mais precarizada e desprovida de direitos e garantias sociais e, concomitantemente, cada vez mais “administrada” pelas políticas de contenção do Estado Penal e sua cultura necrófila.

Por essas razões, Neoliberalismo e criminalização da pobreza merece ser lido por todas as pessoas interessadas em aguçar seu espírito crítico a fim de intervir nas lutas contrárias ao Estado Penal Neoliberal no Brasil.

*Marco Mondaini, historiador, é professor titular do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e coordenador e apresentador do programa Trilhas da Democracia.

Referência
Terçália Suassuna Vaz Lima (org.). Neoliberalismo e criminalização da pobreza. A (des)proteção social à infância e adolescência no Brasil. Campina Grande, EDUEPB, 2023, 392págs.

Austeridade econômica pavimenta o caminho para o fascismo, diz pesquisadora

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Clara Mattei, autora de livro sobre o tema, foi a convidada da semana no BdF Entrevista

José Eduardo Bernardes – Brasil de Fato – 04 de julho de 2023

A professora e escritora Clara Mattei é objetiva: já no título de seu mais recente livro ela fala da conexão direta entre austeridade econômica e o fascismo. Em The Capital Order: How Economists Invented Austerity and Paved the Way to Fascism (ainda sem título em português – em tradução livre: “a ordem do capital: como os economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo”) ela destrincha essa relação. O livro será lançado no Brasil ainda este ano pela editora Boitempo.

Mattei foi a convidada do Brasil de Fato Entrevista desta semana. Ela contou sobre o processo para elaboração da obra, que é fruto de dez anos de estudo. Italiana radicada nos Estados Unidos (ela é professora de Economia na The New School for Social Research, em Nova Iorque), a pesquisadora cita personagens como Benito Mussolini, Donald Trump e a atual primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, como frutos políticos de um caminho trilhado com apoio na lógica da austeridade econômica.

“Para o capitalismo funcionar, a maioria das pessoas deve estar desempoderada, precarizada e dependente do mercado. E é isso que a austeridade faz. Tira recursos da maioria das pessoas, que ganham dinheiro através de um salário, e entrega a uma minoria, cuja riqueza vem de patrimônios e rendas”, afirma ela, que destaca que a alternativa a esse sistema passa pela organização das pessoas em suas comunidades locais.

Confira abaixo a entrevista.
Brasil de Fato: A senhora passou dez anos escrevendo o livro que nasceu da sua tese de doutorado. Como e quando decidiu se aprofundar neste assunto?

Clara Mattei: Tudo começou quando estava vivendo os anos de grande austeridade de Mario Monti, na Itália. Ele chegou ao poder após a crise da dívida soberana em nosso país e estava estudando e vivendo na pele, assim como a maioria das pessoas no mundo ainda vive hoje, os efeitos da austeridade, a redução de verbas para a educação e saúde pública. Vi as pessoas na Itália ficarem cada vez mais pobres a olhos vistos. Era um país em que não tínhamos pessoas morando na rua e as ruas estavam ficando cheias de gente. Não havia moradia.

Mas você passou dez anos pesquisando e procurando material em arquivos, certo?
Sim, é um trabalho em economia histórica e política. É baseado em fontes primárias e na reconstrução do passado através de uma nova perspectiva, analisando material que ainda não havia sido publicado. O tipo de debate sobre austeridade que estava ocorrendo na mídia, na política pública e até entre movimentos de esquerda era muito insatisfatório porque era muito apolítico.

Transformaram a austeridade em uma ferramenta técnica para gerir a economia e a discussão era se a austeridade estava ou não funcionando para equilibrar o orçamento e promover crescimento. Era um debate sem solução. E não muito útil para entender por que a austeridade continuava emergindo mesmo que claramente não estivesse gerando crescimento, nem ajudando a resolver a questão da dívida.

Então o estudo histórico é muito importante porque nos dá uma análise com perspectiva de classe que estava ausente no debate econômico contemporâneo, que era muito tecnocrático. A tentativa era então olhar para o que aconteceu 100 anos atrás e mostrar como a austeridade tem uma clara lógica política que visa manter todos nós em uma situação de precariedade, de dependência do mercado, desempoderando assim a população para que o sistema se proteja e mantenha a ordem do capital, que é o título do livro: A ordem do capital, para se manter intacto.

Se olharmos para a história, isso só é visível porque aconteceu em um momento em que o capitalismo foi muito contestado depois da Primeira Guerra, e assim realmente vemos como a austeridade operava como uma contraofensiva usada pelas elites para impedir qualquer alternativa ao nosso sistema.

Na apresentação do livro, você fala sobre várias crises econômicas e políticas em países do mundo todo, já que essas crises e essa austeridade são intrínsecas à nossa sociedade moderna. Nos últimos anos, mais uma vez vimos uma crise do neoliberalismo no mundo todo, algo que já se dizia no início do século passado. Esse modelo econômico não é o mais adequado, certo?

Sim, com certeza. Estamos em outro momento em que as pessoas não acreditam no sistema, penso eu. Aliás, é por isso que a austeridade voltou com força total. Não só no Brasil. Eu moro nos Estados Unidos e o motivo pelo qual o Federal Reserve, o [equivalente ao] Banco Central, está aumentando a taxa de juros é porque a maioria das pessoas não está voltando ao trabalho.

Muitos trabalhadores estadunidenses, 46 milhões, em 2022, largaram seus empregos porque estão cansados da exploração e porque veem que o sistema não trabalha para eles e sim para uns poucos que enriquecem constantemente. Então é nessa situação que a austeridade deve voltar para nos convencer que, na verdade, estamos enganados e não existe outra saída a não ser através do sacrifício dos trabalhadores e, em última instância, do corte de salários para atrair a confiança dos investidores.

E o capital parece tentar se reestabilizar e se preservar o tempo todo. Mesmo diante de uma crise, os bancos, o sistema inteiro, e até os governos liberais, ainda tentam protegê-lo.

Com certeza. Mas acho que existe aí uma mensagem de esperança que surge quando levamos a História a sério: o capital não é fixo, não é algo dado e não é uma coisa, não é um objeto. É uma relação social e se traduz em uma maioria que aceita sua condição e aceita sua condição de vender sua capacidade por um salário.

A relação social não é de maneira alguma estática. É dinâmica e pode ser subvertida. É dinâmica e pode ser subvertida. Então a realidade é que a ordem do capital é muito frágil. E é por isso que a austeridade é tão cara a ela, porque a protege de todas essas demandas de transformação social que vão surgindo.

A mensagem aqui é que precisamos saber como a classe dominante opera para preservar um sistema injusto. Precisamos parar de idealizar o capitalismo como um sistema que pode ser reformado e que tem flexibilidade para incorporar nossas necessidades, e perceber que o capitalismo tem limites rígidos. É um sistema que só cresce e produz para gerar lucro e isso requer austeridade.

A tese central aqui é que a austeridade não é uma exceção no capitalismo, não é algo que só se vê nas etapas neoliberais, começando nos anos 80. Ela é muito mais intrínseca à longa história do capitalismo. Está no DNA do sistema exatamente porque, para o capitalismo funcionar, a maioria das pessoas deve estar desempoderada, precarizada e dependente do mercado. E é isso que a austeridade faz. Tira recursos da maioria das pessoas, que ganham dinheiro através de um salário, e entrega a uma minoria, cuja riqueza vem de patrimônios e rendas.

A pesquisa aborda os primeiros anos do século 20 até a atualidade. E a austeridade esteve sempre presente, como você acaba de dizer, desde o período entreguerras, que é onde começa a pesquisa.

Você disse que a austeridade foi uma ferramenta técnica e despolitizada para a ascensão de lideranças autoritárias. Por que unir Mussolini, Jair Bolsonaro, Viktor Orbán e Giorgia Meloni, por exemplo? A pergunta é: “o que os une?”

É muito importante aqui dar um passo para trás. No livro, faço uma reconstrução da crise do capitalismo após a Primeira Guerra, há exatos 100 anos. Em 1919 e 1920, a população em geral tinha desistido do capitalismo, pensando que haveria um futuro melhor após a reconstrução pós-guerra. E todos esses experimentos que surgem de conselhos de trabalhadores demandam democracia econômica, o que significa que as pessoas estavam se reapropriando da produção e distribuição de recursos. Isso estava acontecendo concretamente.

Meu foco é o movimento de Antonio Gramsci, em Torino, L’Ordine Nuovo, em que é possível ver um esforço real não só para pensar diferente, como também para agir diferente. E só se podia agir diferente realmente pensando diferente e só se podia pensar diferente agindo diferente. Então é a importância da prática, de uma sociedade diferente nascer de experimentos dentro das fábricas e também no campo, em que as pessoas se reapropriaram dos meios de produção e da organização do trabalho.

Nessa situação explosiva, a burguesia ficou muito assustada. Porque, é claro, ela se beneficiava do capitalismo, queriam protegê-lo e qualquer forma de distribuição e democracia econômica teria significado, de certo modo, o fim dos seus privilégios. É nesse momento em que vemos emergir a austeridade como uma contraofensiva e aqui há dois fatores relacionados à sua pergunta. O primeiro é que os economistas participaram muito ativamente na construção de modelos econômicos supostamente “neutros”, teorias “neutras”, conhecimento científico, para dizer às pessoas que elas eram ignorantes, que elas não entendiam e, em suma, que estavam vivendo por conta própria e tinham que aceitar a verdade dura, como diziam, do trabalho duro e abster-se de consumir.

Então esse lema de austeridade, “consuma menos, produza mais”, foi imposto à população italiana e inglesa. Esses dois países são o foco dos meus estudos porque meu interesse é mostrar que a austeridade surge onde a democracia econômica é mais palpável. E naquele momento na Europa as pessoas tinham ganhado o direito ao voto, por exemplo. Mas o que se vê é uma aliança entre economistas e governos. Os economistas são convocados pelos governos para ajudar a impor à população a austeridade. E a austeridade veio em uma variedade de formas. Não foram só cortes de gastos, foi, em primeiro lugar, cortes de gastos sociais, taxação regressiva. Então houve aumento em impostos sobre o consumo, como ainda vemos no mundo todo hoje, mais impostos para pessoas físicas e corte de impostos para ricos e impostos corporativos ou sobre patrimônio etc.

Também se tratava de aumentar as taxas de juros, que também vemos hoje, ou seja, austeridade monetária, e, por último, aquilo que chamo de medidas industriais, que são ataques diretos a sindicatos, privatização, desregulação do trabalho e arrocho salarial. Então essa tríade da austeridade; fiscal, monetária e industrial; foi imposta à população também graças a economistas que estavam dizendo: “Este é o caminho certo a seguir e somos especialistas e objetivos”. Nesse sentido, fica evidente que os economistas desempenharam um papel bastante classista, participaram nessa guerra de uma classe contra o resto dos cidadãos e isso poderia ter sido feito de outro jeito, como foi na Inglaterra, onde a democracia liberal usou a austeridade contra seu povo e isso aumentou o desemprego e assim disciplinou os trabalhadores.

Eles tiveram que deter as greves, voltar ao trabalho com um salário bem menor e em piores condições. Voltando à pergunta, na Itália, vemos que Benito Mussolini, o fundador do fascismo, foi o mais eficiente implementador e aprendiz da austeridade. Mussolini chegou ao poder através de uma eleição, não um golpe, assim como Giorgia Meloni e Orbán hoje. Mas com uma intenção explícita de impor austeridade, dizendo às pessoas para não se preocuparem porque iriam fazer os cidadãos italianos pararem as greves, as reclamações e voltarem ao trabalho.

Agora, eu acho que hoje vemos muitos desses políticos “autoritários parafascistas” emergirem porque as pessoas estão insatisfeitas com a austeridade. A austeridade venceu a um ponto em que não há mais a noção de classe: as pessoas pensam que são indivíduos [isolados], e é uma típica mensagem de austeridade: “Não há classes, não há antagonismo, só indivíduos. E são os empresários que lideram a máquina econômica, não os trabalhadores.”

Então, no caso da Itália, para mim, Meloni chegou ao poder porque prometeu redistribuição de renda, e é claro que não cumpriu, porque assim que assumiu o poder mais uma vez impôs austeridade, como Mussolini e outros regimes autoritários.

Sobre isso, você diz que a austeridade não teve sucesso em estabilizar a crise econômica, mas teve sucesso em estabilizar as relações de classe. Estamos vendo agora uma mudança global nas relações de trabalho. Os sindicatos estão enfraquecidos, perdendo poder em alguns países. Como poderíamos ver nascer uma nova organização de trabalhadores?

Tenho algumas ideias sobre isso. Em primeiro lugar, mesmo se existe essa ideia de que os trabalhadores estão enfraquecidos, isso se deve à ação da austeridade sobre nossa vida por mais de 100 anos. Ela foi muito bem-sucedida, como você disse. A austeridade não teve sucesso em atingir os objetivos estabelecidos de crescimento econômico e pagamento da dívida, mas teve muito sucesso em atingir seu verdadeiro maior objetivo: garantir que as pessoas não pensem que podem viver em outro tipo de sociedade, aceitem sua condição de trabalhadores assalariados. Mais uma vez, impondo a ordem do capital. E isso também é uma armadilha para a mente porque os modelos econômicos reafirmam que os trabalhadores não importam, só os empresários.

Então é justo e correto afastar os recursos dos preguiçosos e favorecer os supostamente meritórios. Eles oferecem justificativas para essas políticas de extração de todos nós. Claramente a austeridade teve sucesso e vemos que, historicamente, os trabalhadores perderam poder, o poder de barganha, o poder de imaginar um novo futuro. Dito isso, quero chamar atenção ao fato de que, no capitalismo, a luta de classes nunca para. É uma constante. Nosso sistema está em movimento, é um processo, não há nada fixo, mesmo que os economistas queiram que acreditemos que há algo fixo. Porque acreditar que algo é fixo nos desempodera e aprisiona nossa imaginação.

Então quero dizer que, é claro, existe um motivo por que a coisa não vai tão bem para os trabalhadores neste momento histórico, mas não é à toa que existem muitas mobilizações novas.

Nos Estados Unidos, por exemplo, é o setor de serviços: pessoas em restaurantes, hotéis, em áreas em que normalmente o trabalho é muito precarizado e individualizado, estão agora se sindicalizando. Starbucks, Amazon, Chipotle. E isso está assustando muito as classes dominantes.

Eu diria que estamos em um momento, na verdade, em que existe novamente certa turbulência. Claro, não é o espírito revolucionário de 100 anos atrás, mas há muita demanda por libertação.

Respondendo a sua pergunta, me sinto muito esperançosa. Há pouco estive na África do Sul, apresentando o livro, e me organizei e me encontrei com ativistas das townships [áreas urbanas comparáveis a favelas]. As townships são lugares onde o apartheid ainda existe, em termos de precarização econômica. No entanto, há muita energia no território, muita gente das novas gerações que abandonou as velhas categorias e estão pensando o novo.

Acho que o importante, para avançarmos, é abrir espaço para essas iniciativas que buscam recuperar independência e autossuficiência. Trata-se de romper a principal armadilha, que é a dependência do mercado. O que quero dizer? Que a maioria de nós, para poder viver, precisa ter dinheiro no bolso. Se quiser comer, tem que comprar algo no supermercado. Se quiser morar, tem que pagar aluguel. Se quiser ser curado, tem que pagar pelos médicos. Se quiser ir à escola, muitas vezes tem que pagar. Este é o resultado da austeridade. A mercantilização de todos os aspectos da nossa vida para nos desempoderar cada vez mais.

Acho que a primeira missão aqui é ser capaz de recuperar nosso poder através da organização, de conselhos, da vizinhança, de atividades locais, de formas de produzir e distribuir por nossa conta. Assim não dependeremos do salário dos capitalistas e não gastaremos nosso dinheiro em supermercados, para que o dinheiro não vá embora assim que entrar. Precisamos que os recursos permaneçam dentro da comunidade. E acho que esse é um primeiro passo importante para engajar as pessoas na ideia de organizar, colaborar e perceber que não é suficiente só votar nas eleições.

Votar nas eleições é um ato muito superficial. E é algo que mantém viva a servidão econômica.
Então é preciso romper e combater a servidão econômica. E esse seria um primeiro passo em um projeto muito mais ambicioso, que vai além da democracia social. É a derrubada das relações salariais em si. Repito que isso está acontecendo. Está acontecendo nas townships, eu estive lá há pouco. Está acontecendo no Chile, onde os conselhos são fortes. Acho que está acontecendo no mundo todo, mas a mídia não fala disso. Mas é suficiente para se envolver, ir para a rua, conhecer sua vizinha, ver que essas realidades existem e a austeridade está aí justamente para parar esses processos. Mas nós precisamos lutar contra isso.

Você mencionou a viagem à África do Sul. Seu livro será publicado no Brasil no segundo semestre, editado pela Boitempo. Está preparada para esse tour ao redor do mundo?

Tenho um filho de 8 meses que está viajando conosco. Seria melhor não ter que me mover tanto, mas faço isso porque acredito no poder do conhecimento, em ajudar a levar processos adiante. Novamente, a mudança tem que vir de baixo, de quem está mobilizado. Mas acho que as bolsas de estudo de militância podem ajudar a desenvolver ferramentas para afiar a mente e o conhecimento sobre as estratégias inimigas. E é por isto que a História é útil, para abrir espaço a novas maneiras de fazer as coisas, para fomentar a imaginação política porque, no passado, houve muitos esforços para mudar a nossa sociedade. E ainda existem esforços assim e acho que meu papel é fazer a discussão avançar e dar esperança às gerações mais novas.

A ideia de ter um orçamento elevado é o debate central no Brasil hoje. Esse debate eterno torna impossível avançar em direção a uma agenda positiva para o país. Por outro lado, muita gente, incluindo o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, acredita que os juros altos vão barrar o crescimento econômico e que o controle da inflação não deveria ser o foco principal. Essa ideia sobre o orçamento primário tem a mesma origem que a austeridade?

Com certeza. É exatamente isto que a austeridade faz. Passa a mensagem de que não há alternativa. Equilibrar o orçamento é uma prioridade indiscutível. É uma prioridade neutra e necessária. Agora, sabe que a mensagem do livro não é que esses economistas estão necessariamente errados. Acho que em boa parte dos casos, principalmente em países do Sul, nos quais os limites do capitalismo são reais, é realmente um problema que a inflação esteja alta, que a moeda esteja desvalorizada. Mas isso dialoga com a violência econômica que é muito estrutural no sistema. Por isso a solução não é só fazer remendos no nosso sistema, com algumas reformas. Porque o estrangulamento é forte.

E é verdade que, sob o capitalismo, dependemos da confiança dos investidores para o crescimento econômico. E como você atrai investidores? Só se mantiver baixas as taxas sobre grandes riquezas e as taxas empresariais. Só se abrir às privatizações. O que ocorre agora é que grandes gestores de ativos estão comprando infraestrutura, imóveis, para tirar o máximo de taxas e renda, para aumentar o máximo possível as nossas necessidades diárias. Mas é exatamente isto que o Estado capitalista deve fazer, em suma, abrir-se a esses investidores privados. Essa é a realidade do sistema. É por isso que é muito idealista pensar que o Estado capitalista pode se opor a essas tendências globais de austeridade. É por isso, repito, que temos que encontrar formas através de processos de libertação da propriedade privada, meios de produção e relações salariais. Porque o capitalismo realmente nos aprisiona. Não sei se isso faz sentido.

Esse debate entre economistas soa, é claro, como se não fosse uma escolha política. E podemos dizer que obviamente é uma escolha política. Mas também é uma escolha restritiva porque são decisões políticas favoráveis à manutenção da estabilidade de certa forma de mercado capitalista, certo? E isso requer nossa subordinação às leis do mercado que nos estrangulam e beneficiam uma minoria muito pequena. Essas escolhas políticas são restritivas. Mas nós podemos pensar grande, querer mais que migalhas para manter o povo controlado. Precisamos pensar grande, pensar em realmente romper com a nossa posição de subordinação ao mercado.

Aqui no Brasil, em 2016, o governo, que aliás não tinha sido eleito pelo povo, criou um marco fiscal conhecido como “teto de gastos”. A ideia era controlar o orçamento e a relação entre gasto público e PIB. Na verdade, vimos uma drástica redução em investimentos sociais, como educação, saúde pública e outros programas sociais. Essa política de austeridade, junto a outros eventos do sistema político brasileiro, pavimentaram o caminho para a eleição de Jair Bolsonaro.

Movimentos como esse poderiam dar lugar ao avanço de partidos de extrema direita?
Sim, esse é outro exemplo de que a austeridade não é um erro. Muita gente na esquerda diz que é fruto de uma economia ruim, que é um erro. Infelizmente, não é um erro. O que você descreveu mostra o sucesso da austeridade. As pessoas foram tão desempoderadas, que perderam seu senso de união de classe. Perderam a noção da luta coletiva contra o inimigo, que é a minoria que se beneficia do sistema, e terminaram votando por essa minoria que se beneficia do sistema. Porque a austeridade nos individualiza, nos convence que todos nós podemos ser empresários se nos esforçarmos e que deveríamos sentir vergonha de ser pobres. O motivo por que as pessoas votam em alguém como Trump é exatamente o sucesso da austeridade. Não acho que podemos culpá-las por

votarem em Bolsonaro ou Trump. Deveríamos culpar a elite dominante, incluindo, infelizmente, o Partido Democrata [dos Estados Unidos] e todos os partidos supostamente progressistas que, de forma hipócrita, já vinham praticando a austeridade.

A austeridade atravessa fronteiras partidárias. Infelizmente, aqueles que supostamente representam o povo, incluindo os sindicatos, apoiaram a austeridade, criaram a sensação de falta de esperança e de que deveríamos fazer o possível para nos salvar como indivíduos, sem olhar para o fato de que somos, na verdade, produtores, produtores coletivos que deveriam lutar contra a exploração e contra aqueles que nos exploram. Então é só através da recriação do senso de coesão de classe e da conscientização de classe que podemos nos libertar da armadilha de pensar que regimes autoritários vão nos salvar. Eles não vão. Mas o mesmo vale para partidos democratas, como o de Biden, que estão desfinanciando todos os setores sociais. Por toda parte.

Edição: Rodrigo Durão Coelho

Uma terra para todos, por Thomas Piketty

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A Terra é Redonda, 20/10/2023

Ao fechar os olhos para as violações do direito internacional e ao privilegiar os interesses financeiros a curto prazo, a União Europeia contribuiu para enfraquecer a esquerda israelense

As atrocidades cometidas durante a operação terrorista do Hamas e a resposta israelense em curso na Faixa de Gaza levantam a questão das soluções políticas para o conflito israelo-palestino e do papel que outros países podem desempenhar na tentativa de promover uma evolução construtiva.

Será que ainda podemos acreditar numa solução de dois Estados, tornada obsoleta, na opinião de muitos, pela extensão da colonização, por um lado, mas também, por outro lado, por um desejo de negar a própria existência de Israel e de eliminar seus cidadãos, que acaba de assumir sua forma mais bárbara com os assassinatos e as tomadas de reféns dos últimos dias?

Será que ainda podemos sonhar com um Estado binacional, ou não é o momento de imaginar uma forma original de estrutura confederativa que permita que dois Estados soberanos possam um dia viver em harmonia? Tal solução é cada vez mais evocada por movimentos de cidadãos que reúnem israelenses e palestinos, como a coalização Uma Terra para Todos: Dois Estados, Uma Pátria, que elaborou propostas inovadoras e detalhadas. Muitas vezes ignorados no estrangeiro, estes debates merecem ser seguidos de perto.

Os territórios palestinos reúnem cerca de 5,5 milhões de habitantes, dos quais 3,3 milhões na Cisjordânia e 2,2 milhões em Gaza. Israel tem uma população de pouco mais de 9 milhões de habitantes, incluindo cerca de 7 milhões de cidadãos judeus e 2 milhões de árabes israelenses.

No total, Israel e Palestina possuem uma população de mais de 14 milhões de habitantes, dos quais cerca da metade são judeus e metade muçulmanos, bem como uma pequena minoria de cristãos (cerca de 200.000).

Este é o ponto de partida para o movimento Uma Terra para Todos: as duas comunidades têm aproximadamente a mesma dimensão e cada uma delas tem boas razões históricas, familiares e afetivas para considerar a terra Israel-Palestina como sua, a terra de suas esperanças e sonhos, para além das fronteiras arbitrárias e intricadas legadas pelas cicatrizes militares do passado.
Solução política

Idealmente, gostaríamos de imaginar um Estado verdadeiramente binacional e universalista, que um dia reunisse estes 14 milhões de habitantes e concedesse a todos os mesmos direitos políticos, sociais e econômicos, independentemente de suas origens, crenças ou práticas religiosas. Mas, antes de chegarmos lá, será necessário percorrer um longo caminho para restabelecer a confiança, na esperança de que a estratégia abjeta dos terroristas não tenha aniquilado essa possibilidade.

A coalizão Uma Terra para Todos propõe inicialmente a coexistência de dois Estados: o atual Estado judaico e um Estado palestino que sucederia a Autoridade Palestina criada em 1994. Esta última, já reconhecida como Estado com estatuto de membro observador nas Nações Unidas desde 2012, exerceria finalmente uma soberania plena sobre a Cisjordânia e Gaza.

A novidade é que os dois Estados estariam ligados por uma estrutura federal que garantiria sobretudo a liberdade de instalação entre os dois Estados, semelhante às regras aplicadas na União Europeia. Por exemplo, os atuais colonos israelenses poderiam continuar instalando-se na Cisjordânia, desde que respeitassem as leis palestinas, o que implicaria o fim das expropriações sumárias. Do mesmo modo, os palestinos poderiam trabalhar e instalar-se livremente em Israel, desde que respeitassem as regras em vigor. Em ambos os casos, as pessoas que optassem por residir no outro Estado teriam o direito de votar nas eleições locais.

Os autores da proposta não escondem as dificuldades, mas mostram como elas podem ser superadas.

Em particular, afirmam inspirar-se explicitamente na União Europeia que, desde 1945, permitiu pôr fim, por meio do direito e da democracia, a um século de guerras e derramamento de sangue entre a França e a Alemanha. Referem-se também ao caso complexo da federação bósnia criada em 1995.

A coalizão Uma Terra para Todos insiste igualmente no papel fundamental do desenvolvimento socioeconômico e na redução das desigualdades territoriais. O salário médio é inferior a 500 euros em Gaza, em comparação com mais de 3.000 euros em Israel. A entidade federal que reunirá os dois Estados deverá estabelecer regras comuns em matéria de direito do trabalho, partilha da água e financiamento da infraestrutura pública, educativa e sanitária.

Tudo isso tem alguma chance de acontecer? Depois de, no passado, ter-se apoiado frequentemente no Hamas para dividir e desacreditar os palestinos, a direita israelense parece agora determinada a destruir a organização terrorista. Mas, depois disso, não se contentará em colocar novamente a tampa e fechar as torres de observação nos territórios palestinos. Terá que encontrar interlocutores e relançar um processo político.

É aqui que o resto do mundo tem um papel a desempenhar, em particular a Europa, que absorve quase 35% das exportações israelenses (contra 30% para os Estados Unidos). É tempo da União
Europeia utilizar sua arma comercial e deixar claro que oferecerá regras mais favoráveis a um governo que se oriente por uma solução política do que a um regime que se lance no apodrecimento.

Ao garantir à direita israelense as mesmas regras comerciais, faça ela o que fizer, a União Europeia encorajou de fato a colonização. Ao fechar os olhos para as violações do direito internacional e ao privilegiar os interesses financeiros a curto prazo, a União Europeia contribuiu para enfraquecer a esquerda israelense.

Mas existe uma esquerda vívida e inovadora em Israel e na Palestina, particularmente entre os jovens. Estes jovens viram-se muitas vezes sozinhos diante da indiferença dos governos, tanto do Norte como do Sul, que pactuaram com uma direita israelense cada vez mais nacionalista e cínica.

É mais do que tempo de apoiar o lado da paz e de penalizar o lado da guerra.

Thomas Piketty é diretor de pesquisas na École des Hautes Études en Sciences Sociales e professor na Paris School of Economics. Autor, entre outros livros, de O capital no século XXI (Intrinseca).

Tradução: Fernando Lima das Neves. Publicado originalmente no jornal Le Monde.

Planos de saúde estão num beco sem saída e a única opção é a prevenção, por Drauzio Varella

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Operadoras economizam no valor da consulta para esbanjar com imagens produzidas em exames desnecessários

Dráuzio Varella, Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

Folha de São Paulo – 18/10/2023

Mantida a atual organização, os planos de saúde se tornarão inviáveis. Os primeiros sinais já estão à vista: demora para autorizar procedimentos, substituição de hospitais e laboratórios por similares de qualidade inferior e outras estratégias para redução de custos.

Sou leitor assíduo das colunas de Hélio Schwartsman na Folha. No último sábado, com o título de “Círculo Mórbido”, ele resumiu com precisão a encruzilhada em que se encontram os planos de
saúde.

Em primeiro lugar, durante a pandemia os gastos das operadoras diminuíram graças à suspensão de cirurgias eletivas e de outros tratamentos. Agora, a demanda reprimida explodiu e a situação é de crise.

As fraudes também aumentaram, e os legisladores e reguladores ampliaram as coberturas sem considerar os custos. Assim, as mensalidades sobem mais do que a inflação.

Além disso, os jovens arriscam ficar sem planos, enquanto os mais velhos “fazem de tudo para mantê-los”, cenário em que a sinistralidade aumenta e encarece as mensalidades.

Hoje, cerca de 50,4 milhões de brasileiros são atendidos pela saúde suplementar, que responde por 60% do total de gastos com saúde no Brasil inteiro. Os gastos do SUS correspondem a apenas 40%, para cerca de 160 milhões de brasileiros que só contam com ele.

Nos anos 1970 e 1980, as operadoras dos planos tiveram alta lucratividade. Nas listas dos brasileiros mais ricos, havia sempre um empresário do setor. Numa época de inflação galopante, em que as mensalidades eram pagas em data certa enquanto hospitais, laboratórios e demais prestadores de serviços tinham o pagamento retido por 60 a 90 dias, aplicar esse dinheiro no mercado financeiro foi uma fria.

As operadoras não se preocupavam com os custos dos serviços contratados, mas com os prazos de
pagamento. Na competição pela clientela, anunciavam na televisão o acesso aos equipamentos modernos, às tecnologias mais avançadas e ao transporte de doentes por helicóptero.

Tais extravagâncias publicitárias deram origem à cultura de que exames laboratoriais, ultrassonografias, tomografias e ressonâncias eram essenciais não só para recuperar como para manter a saúde.

Correr para o pronto-socorro ao primeiro pico febril da criança virou rotina. Perdi a conta de quantas vezes tenho ouvido essa frase: “pede todos os exames, doutor, eu tenho plano de saúde”.

Nesse contexto, os médicos tiveram papel importante. Preencher pedidos de exames com cruzinhas sem pensar nos custos é prática usual. Pouco antes da pandemia, uma paciente me trouxe 83 exames laboratoriais pedidos pela ginecologista numa consulta de rotina. O único número alterado era a dosagem de antimônio.

Solicitar exames de imagem para abreviar a consulta é uma estratégia para compensar os baixos salários que a maioria dos planos paga aos médicos. Eles economizam no valor da consulta para esbanjar com as imagens produzidas.

A realidade é que esses desmandos criaram uma situação que vai levar à insolvência. O número de operadoras tem caído desde 2016. Desde 2010, as despesas anuais com o atendimento pagas por elas aumentaram 18%, enquanto as receitas mal chegaram a 14%. Ao contrário de outras áreas da economia, na medicina a incorporação de tecnologia só aumenta drasticamente o preço do produto final.

Para agravar o quadro, há as fraudes e os desperdícios. Uma análise das contas hospitalares realizada pela Funeseg revelou que 18% correspondem a fraudes e 40% a exames desnecessários. Que atividade comercial consegue sobreviver com perdas da altura de quase 60% da receita?

Com o envelhecimento da população, as doenças crônicas se tornaram a principal demanda. Cerca de 60% dos adultos sofrem de uma delas. Quando o SUS foi criado, éramos mais jovens. Hoje, quando perdemos um familiar com 70 anos, dizemos que morreu cedo. A faixa da população que mais cresce, inclusive, é a que está acima dos 60 anos.

Os brasileiros envelhecem mal. Metade das mulheres e homens chega aos 60 anos com hipertensão arterial, o número de pessoas com diabetes anda perto dos 20 milhões e mais da metade dos adultos tem excesso de peso ou obesidade.

A saúde suplementar está neste momento em um beco sem saída. A única alternativa é a prevenção.

É preciso adotar programas semelhantes ao Estratégia Saúde da Família, do SUS, considerado um dos mais importantes do mundo, com equipes que contam com agentes de saúde para bater de porta em porta.

Inquietações globais

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A economia internacional vem vivendo momentos de grandes inquietações, de um lado estamos saindo de uma pandemia que gerou graves constrangimentos sociais, econômicos e políticos, com mais de seis milhões de mortes e graves desequilíbrios emocionais e sentimentais, que impactaram todas as regiões do globo, deixando rastros de destruições generalizadas. Vivemos períodos de alterações geopolíticas, passando de uma sociedade unipolar e atrelada a uma nação dominante, os Estados Unidos, para uma nova configuração geopolítica, com o surgimento de um mundo multipolar, com novos focos de poder e grandes repercussões internacionais.

Depois de milhares de mortes atreladas a pandemia, percebemos momentos de inquietações econômicas e produtivas, a introdução de novos modelos de negócios, o surgimento da inteligência artificial, novas tecnologias e o crescimento dos negócios digitais, neste cenário, percebemos o incremento das incertezas crescentes da economia global, da elevação dos preços, do aumento nas taxas de juros e o crescimento do desemprego estrutural, cujos impactos variados e imprecisos são preocupantes, como será a sociedade mundial nos próximos anos?

Neste cenário, percebemos que os preços estão crescendo em algumas economias, levando seus governos a elevarem os custos do dinheiro, levando as taxas de juros a incrementos crescentes, cujos impactos sobre as respectivas economias são elevados, diminuindo as atividades produtivas e degradando empregos, desta forma, os movimentos internacionais são preocupantes e geram instabilidades que podem gerar retração dos investidores, diminuindo seus investimentos produtivos e reduzindo a geração de empregos.

Recentemente, o Banco Central dos Estados Unidos elevou sua taxa de juros como forma de reduzir
as pressões inflacionárias, com impactos generalizados sobre a economia internacional, gerando fuga de dólares, desvalorizando moedas locais e pressões inflacionários que, posteriormente, levando as Autoridades Monetárias a elevarem seus juros internos, prejudicando a recuperação da economia, postergando a geração de emprego e diminuindo a renda agregada, com graves constrangimentos para suas economias e seus setores produtivos.

A elevação das taxas de juros dos Estados Unidos nos mostra, claramente, como o sistema econômico internacional tem grande dependência da moeda norte-americana, dando a este governo um poder muito elevado sobre as outras economias mundiais e a condução da política econômica de outras nações, demonstrando a urgência da reconstrução do sistema econômico e financeiro internacional, diminuindo o poder da economia hegemônica em detrimento de um modelo mais abrangente e democrático, elevando a autonomia das economias nacionais, retomando a capacidade de gestão interna e retomando a soberania de suas economias.

Desde a pandemia, a economia internacional passou a sentir na pele os efeitos deletérios do incremento das taxas de inflação, o crescimento dos preços que fragilizam as populações mais carentes e geram novos desequilíbrios econômicos e financeiros para todos os setores da população, motivando instabilidades políticas crescentes, auxiliando na ascensão de governos autoritários, populistas e antidemocráticos. O aumento inflacionário obriga os governos a elevarem as taxas de juros, reduzindo os investimentos produtivos, aumentando os ganhos de setores parasitários da economia e contribuindo para a piora dos indicadores sociais e agravando as polarizações políticas que crescem em todas as regiões da sociedade global.

Vivemos um momento estratégico da sociedade mundial, com alterações climáticas e desequilíbrios ambientais, crescimento de confrontos militares, com guerras econômicas e comerciais, com corrupção generalizada e com a degradação do trabalho, prejudicando quase todos os indivíduos da sociedade globalizada, mas não podemos perder de vista que, dentre os grandes desafios contemporâneos, fazem-se necessários combatermos os desequilíbrios sociais, a hipocrisia, a soberba e a ambição humana que crassa no coração dos defensores do individualismo, do imediatismo e do lucro exasperado.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Periferias criaram governo de baixo para cima com facções e igrejas, diz Bruno Paes Manso

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Para autor, onda pentecostal difunde imagem de Jesus adepto da extrema direita e leva batalha espiritual à política

Eduardo Sombini, Geógrafo e mestre pela Unicamp, é repórter da Ilustríssima

Folha de São Paulo, 16/09/2023

Um homicídio em 1993 deu origem a conflitos que resultaram em 156 mortes em cinco anos, de acordo com o Ministério Público de São Paulo.

Esse dado, incluído em “A Fé e o Fuzil” (Todavia), de Bruno Paes Manso, sintetiza o cenário de violência nas periferias de São Paulo nas décadas de 1980 e 1990: um assassinato, muitas vezes por motivos banais, levava a ciclos de vingança intermináveis, produzindo um efeito bola de neve que fazia as estatísticas crescerem a cada ano e os jovens a se preocupar, antes de mais nada, com a própria sobrevivência.

A situação, que parecia não ter saída, foi pouco a pouco se distensionando. Não de cima para baixo, a partir de uma ação das polícias ou da Justiça, mas principalmente de baixo para cima, argumenta o jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP em seu livro recém-lançado.

Convidado deste episódio, Manso chama a atenção para o novo sistema de valores difundido por igrejas pentecostais e por facções criminosas e afirma que a reprogramação de mentes por meio da conversão, promovida tanto por pastores quanto no PCC, permitiu que o Brasil popular das periferias inventasse mecanismos para se governar.

Na conversa, Manso diz que a onda pentecostal recorre à imagem do Deus vingativo do Antigo Testamento e impulsiona discursos de batalha espiritual e perseguição a infiéis, em que a pretensa guerra do bem contra o mal logo extrapola os cultos e passa a influenciar os rumos da política nacional.

“Foram sendo construídas igrejas que transformaram o vocabulário e passaram a lidar com os valores de uma sociedade em que, se você tem dinheiro, pode testemunhar a diferença entre vida e morte. Pode comer, ter casa, ter educação e condição de trabalhar. Se você não tem dinheiro, está perdido. Essa visão realista da situação acabou sendo articulada, e a solução foi promovida pelas instituições criadas no seio da miséria, de pessoas que viviam a miséria e percebiam o desafio que era participar desse mercado cada vez mais relevante. De um lado, as igrejas promoveram o autocontrole das pessoas, dos seus desejos e dos seus comportamentos. Do lado do crime, houve uma transformação da mentalidade do criminoso em São Paulo, via PCC, que tem muitos aspectos parecidos com a igreja”, de Bruno Paes Manso, jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP

Para o autor, um Jesus másculo e simpatizante da extrema direita tomou o lugar do Jesus fraterno e pacifista. Citando o teólogo Fernando Altemeyer Júnior, Manso diz que o pentecostalismo se tornou uma religião do capital, em que o sucesso financeiro individual, considerado uma benção divina, se torna a razão de existir.

Os esfarrapados viraram traders! por André Roncaglia

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Livro de César Calejon mostra como pessoas de baixa renda sofrem influência dos mais ricos

André Roncaglia, Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela
FEA-USP

Folha de São Paulo, 13/10/2023

A pandemia transformou muitas dimensões da vida social e agravou desigualdades mundo afora. A fome acompanhou o aumento no valor da riqueza acumulada pelo crescente número de bilionários.

A falta de saneamento adequado para proteger as famílias pobres da disseminação da Covid-19 revelou deficiências profundas nas infraestruturas física e social. O mundo do trabalho, o mercado imobiliário e as relações sociais foram irreversivelmente afetados.

No Brasil, em que o 1% mais rico detém metade da riqueza do país, a pandemia se chocou com a agenda neoliberal, turbinada sob Temer e Bolsonaro, responsável pela estagnação econômica e a precarização das condições de trabalho.

A interrupção do ciclo de desenvolvimento (2006-2014) e o desmonte das políticas públicas bloqueou a ascensão da classe mais pobre, tornando-a presa fácil do populismo de extrema-direita que Bolsonaro incarnou. Emergiu deste processo uma figura sociológica desafiadora: o pobre de direita.

Por ser um objeto de estudo que transcende a economia, é bem-vindo o contundente livro “Esfarrapados”, de César Calejon. O autor decifra a gramática da desigualdade brasileira explorando o conceito de “elitismo histórico-cultural”: um regime em que categorias de distinção —material, racial, de gênero etc.— estruturam hierarquias sociais rígidas. Neste arranjo, pessoas de baixa renda adotam como seus os interesses e aspirações dos mais ricos. Identificados com a elite, os esfarrapados introjetam a retórica da meritocracia e do Estado mínimo.

Paralelamente a este processo, os anos 2010 viram a digitalização de serviços bancários e de investimento acirrar a concorrência entre bancos, fintechs e corretoras. A queda no custo das operações incluiu milhões de brasileiros no mercado financeiro.

Segundo relatório de junho de 2023 da B3 (antiga Bovespa), em 2017, eram 500 mil investidores pessoa física; em 2023, há 5,3 milhões de CPFs. O crescimento de CPFs na B3 entre 2020 e 2023 foi mais rápido nas regiões Norte (188%) e Nordeste (135%). No recorte etário, os jovens (de 0 a 24) representavam 10% em 2018; hoje, são 22% dos CPFs da B3.

Nas categorias de renda variável, o saldo mediano caiu de R$ 20 mil por investidor (em 2017) para R$ 1,1 mil (em 2023). O fenômeno se repete em Fundos Imobiliários (de R$ 29 mil para R$ 3 mil), em ETFs (de R$ 18 mil para R$ 1,6 mil) e no Tesouro Direto (de R$ 15 mil para R$ 3 mil).

Dos 86 mil novos CPFs na B3 em junho de 2023 cerca de metade (55%) fez aplicações até R$ 200; 27% deles, até R$ 40.

A análise dos dados sugere, portanto, que os “esfarrapados” foram para a bolsa de valores. O mercado de assessoria financeira cresceu e se descentralizou, expondo os pobres digitalizados à proliferação de gurus das finanças —que rotulei de econocoaches— vendendo cursos sobre a “viver de renda” por meio de estratégias ousadas na Bolsa de Valores e em criptoativos.

E aqui mora um risco enorme: tratar a bolsa como um jogo de loteria. Neste sentido, o livro “Trader ou investidor”, de Bruno Giovannetti e Fernando Chague, é um antídoto à sedução dos econocoaches.

Os autores mostram de forma leve e cativante como orientar as finanças para a aposentadoria (investidor), em vez da adrenalina com enriquecimento fácil que motiva o trader —que compra e vende ações rapidamente buscando retornos rápidos. Renomados pesquisadores em finanças, eles revelam como os agentes de mercado lucram com a oferta de produtos financeiros que mascaram o risco e exageram os retornos (como os COEs) —e mostram os vieses comportamentais (comprar ações de empresas em crise, por exemplo) que geram perdas sistemáticas aos traders.

O acesso à bolsa de valores é uma boa notícia, desde que não se torne uma loteria viciada contra os pobres.