Levantar-nos da sociedade do cansaço, eis o desafio, por Luiz Marques

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Vivemos a era das doenças neuronais, sugere Byung-Chul Han. Terror é ameaça permanente. A hiper-atenção esgota corpos e mentes, produz o sujeito depressivo. Mas há uma brecha: decodificar o poder totalitário de hoje – o neoliberalismo

Luiz Marques – Outras Mídias – 17/07/2023

O filósofo radicado na Alemanha, Byung-Chul Han, em Sociedade do cansaço, considera que o fim da época bacteriológica coincide com a descoberta dos antibióticos, em 1928. A pandemia do vírus HIV, que a partir de 1977-78 vitimou 32 milhões de pessoas e o da Covid-19, que no biênio 2020-21 cravou 15 milhões de óbitos, para não citar os diversos tipos de gripe Influenza (A, B, C e D) e o vírus ebola, não o fizeram mudar de ideia. Sua ênfase recai nos imunizantes das moléstias virais, ignorando as tragédias mundiais. A publicação em português do ensaio, sem o posfácio autocrítico, demonstra que o autor segue com as antigas convicções ao propor um salto acrobático e arriscado, da biologia e da medicina, para a filosofia, a sociologia e a política.

O século XXI seria a época das doenças neuronais: depressão e transtornos, seja do déficit de atenção com síndrome de hiperatividade, seja da personalidade limítrofe. Já não morreríamos de infecção atacados por uma alteridade, mas de enfartos pelo excesso de positividade (o mesmo). A globalização suspendeu a negatividade (a diferença) ao trespassar as barreiras nacionais e impor um cosmopolitismo. Aqui, vale recordar: “A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, as relações produtivas e as relações sociais… A burguesia obriga as nações a adotarem o modo burguês de produção, constrange-as a abraçar o que ela chama de civilização”, como previra Karl Marx no Manifesto de 1848.

Na verdade (que liberta), o capital é que foi globalizado. Se no decênio de 1960 a “sociedade de consumo” foi alvo de críticas acadêmicas nos países desenvolvidos, mais de sessenta anos depois o problema nos países em desenvolvimento não é o consumismo, senão a dificuldade da população em acessar uma cesta básica. O autor abstrai do raciocínio a realidade. Apaga das estatísticas o aumento das desigualdades sociais, consequência das políticas neoliberais: a desindustrialização, a precarização do trabalho, o desemprego e a inempregabilidade por falta de absorção da mão de obra não qualificada perante os extraordinários avanços da tecnologia.

Para o professor da Universidade de Berlim, “o igual não leva à formação de anticorpos”, logo, “não é possível falar de força de defesa, exceto em sentido figurado”. O imigrante seria apenas um peso, ao invés de uma ameaça. Ora, no capitalismo, admitir que os indivíduos se constituem em peças da engrenagem sistêmica ou que a concorrência interindividual corrompe a solidariedade – é razoável, mas não nivela os desiguais. Nas últimas eleições presidenciais nos Estados Unidos e na Europa, o assunto preponderante entre os eleitores foi disparado a imigração. As tribos que esgrimem uma igualitarização tóxica não são parâmetro para universalizar as teses pós-modernas (ou pior) sobre a sociabilidade, in totum. Antes, reenviam à equação cognitiva dentro-fora.
Sociedade de desempenho

Diferentemente de Michel Foucault, Byung-Chul Han avalia que os estudos sobre as instituições totais da “sociedade disciplinar” – hospitais, presídios, quartéis, fábricas, seminários – cederam a instituições como os bancos, laboratórios de genética, aeroportos, escritórios, shopping centers. Correspondem melhor à “sociedade de desempenho”, em que “os habitantes não se proclamam mais sujeitos de obediência, mas sujeitos de desempenho e produção; são empresários de si mesmos”. Note-se que a matriz do empreendedorismo, a desindustrialização, é sequestrada da tela.

A sociedade disciplinar era caracterizada pela negatividade (proibição, coerção). A sociedade do desempenho, com a “desregulamentação crescente, vai abolindo-a”. A passagem a seguir é muito ilustrativa: “O poder ilimitado é o verbo modal positivo da sociedade de desempenho. O plural coletivo da afirmação Yes, we can expressa precisamente o caráter de positividade da sociedade de desempenho. No lugar de proibição, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa e motivação.

A sociedade disciplinar gera loucos e delinquentes. A sociedade de desempenho produz depressivos e fracassados”. Na imagem descritiva, a luta de classes e o malogro da meritocracia passam ao largo. A condenação ecoa uma lamentação resignada, sem bússola. Um campo fértil para a literatura de autoajuda e as palestras motivacionais de neurolinguística a empresários.

O impacto do neoliberalismo no continente europeu resultou na guinada da social-democracia para la pensée unique, que fez tábua rasa da direita e da esquerda. De repente, todos estavam a favor da austeridade, do equilíbrio fiscal e da contenção dos gastos sociais. Quase batendo à porta de Murray Rothbar, fundador do anarcocapitalismo, para o qual a organização social deve pautar o axioma “o Estado é um mal desnecessário”. Isso, apesar das lições catastróficas da crise de 2008 evidenciarem a imprescindibilidade da regulamentação estatal. Vide a negligência fatal da segurança privada na tragédia do submersível, que levou bilionários ao cemitério do Titanic.
“Liberalização nem sempre cria mais produtividade. É preciso estimular gastos de governos em áreas que tragam retorno (saúde, educação, etc.)”, reconhece agora o comentarista do Financial Times, Martin Sandbu, na contramão dos dogmas monetaristas dos anos 1990 que criminalizavam investimentos essenciais. Não obstante, o produtivismo extrativista a expensas do meio ambiente prossegue colado como um kárman ao inconsciente social da sociedade de desempenho, em perseguição do lucro imediatista. Conforme o velho Marx, o processo econômico em curso marcha independentemente da vontade do sujeito: “assemelha-se ao feiticeiro que não pode controlar as potências internas que pôs em movimento com suas palavras mágicas” (op.cit.).
Uma lacuna da narrativa

Byung-Chul Han realiza uma espécie de fenomenologia dos sentimentos que afloraram na dita pós-modernidade, a começar pelo tédio. Explicaria então as pessoas, de um lado, rejeitarem o ato da contemplação e, de outro, correrem a maratona da hiper-atenção, com o radar em múltiplos sinais e uma certeza somente – a derrota ao final. Feito um animal na selva que ao comer cuida para não ser comido, os humanos seriam entes irrequietos. Sem a paciência dos zen-budistas, absolutizam a vita activa e afundam na histeria e no nervosismo do redemoinho da ação.

“A sociedade do cansaço, enquanto sociedade ativa, desdobra-se lentamente numa sociedade do doping. A incessante elevação de desempenho leva a um enfarto da alma”. A pressão por resultados, a ausência de regramentos e os esgotamentos causados pela super positividade induzem ao uso de ansiolíticos e antidepressivos. Um fenômeno que Christian Dunker com senso de humor denomina “síndrome de domingo à noite”, momento entre o ócio e o ativismo.

“O cansaço profundo afrouxa as presilhas da identidade. As coisas cintilam e tremulam em suas margens. Tornam-se mais indeterminadas, permeáveis, e perdem certo teor de sua decisibilidade”.

Quem somos, de onde viemos e para onde vamos. As célebres perguntas não calam. O autor sul-coreano metaboliza a subjetividade aflita do tempo marcado pela irracionalidade da hecatombe climática, do terror da guerra nuclear, da erosão da democracia e do espectro de novas pandemias. Motivos para combater a distopia da extrema direita, a necropolítica, na acepção foucaultiana do soberano que controla a mortalidade e define a vida como uma manifestação do poder. É hora de mobilizar a opinião pública e superar os maus agouros coletivos.

O neoliberalismo, isto é, a nova razão do mundo, serve de pano de fundo ao ensaio de Byung-Chul e ao filme O lobo de Wall Street, de Martin Scorsese, estrelado por Leonardo DiCaprio. Contudo, na obra de arte cabia evitar o conceito para valorizar as emoções. Em uma reflexão teórica, o silêncio sobre a sociedade que não ousa dizer o seu nome é uma grande lacuna da narrativa. Não contribui para o trabalho de decodificação do totalitarismo do livre mercado. Esse é o ponto central. No teatro da política, não existe um diagnóstico sem responsabilização do diretor do espetáculo e sem um prognóstico com vistas à reordenação do papel dos atores, e da plateia.

Tempos estranhos

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Vivemos momentos estranhos na sociedade internacional. Os valores estão invertidos, os ganhos monetários e financeiros se tornaram o grande objetivo social, onde os indivíduos estão sendo vistos através de seu poderio econômico, os valores estão centrados no imediatismo, no individualismo e na busca frenética pelas riquezas materiais, deixando de lado valores centrados no humanismo, na solidariedade e na busca do bem-estar social, desta forma estamos caminhando a passos largos a uma fragilização civilizacional.

Nesta sociedade, encontramos descobertas científicas e tecnológicas que contribuíram para novos horizontes de melhorias sociais, doenças vistas como incuráveis, responsáveis por ceifar milhões de vidas, foram controladas por novas drogas, novos medicamentos e tratamentos revolucionários. Regiões inóspitas e inabitadas foram transformadas pela ciência, pelas pesquisas científicas que contribuíram para melhorar o clima e a vegetação, levando a riqueza material, a fartura alimentar e a melhora das condições de vida da população, deixando a pobreza e a indigência nos registros dos livros e nas anotações acadêmicas.

Vivemos numa sociedade que a tecnologia se transformou no agente instrumental da transformação social e econômica, trazendo uma aproximação física entre os indivíduos, aumentando a comunicação entre os seres humanos, barateando novos produtos, máquinas e serviços que estão revolucionando as relações sociais, alterando o convívio das pessoas, mudando seus comportamentos, modificando seus relacionamentos e impactando sobre as convenções sociais, criando novos modelos de negócios, novos desafios e oportunidades. Nesta sociedade, encontramos várias contradições, tais como uma tecnologia que nos aproxima virtualmente e, ao mesmo tempo, nos torna cada vez mais distantes fisicamente, mais solitários e infelizes, num verdadeiro paradoxo contemporâneo.

A atual sociedade revolucionou as descobertas espaciais, levando satélites, criando estações estelares e investindo trilhões de dólares para conhecer os segredos planetários e, ao mesmo tempo, percebemos que estamos se degradando com conflitos íntimos e pessoais, trabalhamos em excesso, acumulamos cada vez menos recursos monetários e estamos envoltos em crises existenciais crescentes e numa busca generalizada pelo sentido da vida, levando muitas pessoas a se entregarem em soluções milagrosas e elixires mágicos que, posteriormente, aumentam sua indigência emocional e afetiva. Neste cenário, os especialistas em saúde pública acreditam que estamos vivendo um incremento de desequilíbrios emocionais e espirituais, com aumento da depressão, das ansiedades crescentes e um aumento generalizado dos suicídios diretos e indiretos, ceifando milhões de pessoas em todas as regiões do mundo.

Desde o desenvolvimento industrial da humanidade, encontramos novas técnicas de gestão, novos instrumentos de incremento da produtividade, elevando o conhecimento da sociedade, melhorando os sistemas educacionais e, ao mesmo tempo, percebemos que estamos degradando mais efetivamente o meio ambiente, levando inúmeras espécies humanas à extinção, aumentamos a temperatura do Planeta Terra e estamos degradando regiões inteiras e plantações tradicionais, gerando riquezas para poucos e espalhando a miséria e a indigência para muitas pessoas do mundo, neste cenário, ainda encontramos inúmeros céticos, por desconhecimento ou por conveniência?

Vivemos momentos preocupantes e tempos estranhos, como destacou o sociólogo polonês radicado em Londres Zygmunt Bauman, onde as tecnologias da comunicação estão sendo utilizadas para espalhar inverdades e ressentimentos, aumentando os conflitos sociais e políticos, aumentando as tensões sociais e os conflitos dentro das comunidades, exigindo dos governos nacionais uma atitude cada vez mais agressiva para controlar os desequilíbrios, gerando mais repressões, mais prisões e mais dispêndios econômicos e fragilizando os orçamentos públicos.

Vivemos momentos estanhos, assustadores e preocupantes, neste cenário, precisamos de lideranças capacitadas e, urgentemente, repensar o modelo econômico dominante na sociedade brasileira, que estimular o rentismo, o imediatismo e o individualismo que aprofundam as desigualdades que caracterizam a sociedade nacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre e Doutor em Sociologia.

Carta Mensal – Junho 2023

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O mês de junho de 2023 completou seis meses do governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva, um momento de grandes expectativas no cenário econômico, além de grandes incertezas políticas e inseguranças sociais, geradas por movimentos de polarizações constantes, que levaram o governo a adotar políticas serenas com o objetivo de gerar maiores instabilidades no campo econômico, cujo potencial é elevado e pode criar graves constrangimentos para o governo e, ao mesmo tempo, um conjunto de medidas que deveriam iniciar o sepultamento de políticas anteriores criadas e estimuladas no governo anterior.

Destacamos neste mês grandes desafios no campo econômico, onde destacamos as votações do chamado Novo Arcabouço Fiscal (NAF), medida criada pelo governo com o intuito de substituir o modelo anterior, chamado de Teto de Gastos, implementado no governo de Michel Temer e que congelava os gastos públicos num período de vinte anos, mesmo sabendo que os recursos fiscais fossem aumentados, gerando impactos sobre os chamados gastos sociais e públicos.

Depois de uma costura cotidiana, onde o Ministro da Fazendo Fernando Haddad, conseguiu aprovar o novo arcabouço, contando com o forte apoio do governo federal, além de seus integrantes e do Presidente da Câmara, Arthur Lira, o grande e poderoso no cenário nacional, detentor de forte representatividade na eleição de fevereiro no Congresso Nacional.

O chamado Novo Arcabouço Fiscal (NAF) pode ser visto como uma forte vitória do governo Lula da Silva, angariando força política perante os mercados e um fortalecimento do Ministro da Fazendo, visto como muitos políticos e empresários, o próximo candidato para a próxima eleição presidencial, se o atual governante não aceitar uma reeleição.

O NAF pode ser visto como um acerto entre o governo e o mercado, como forte potencial de elevar os indicadores econômicos nacionais, onde destacamos a valorização da moeda nacional, que o dólar saiu de mais de R$ 5,40 no começo do ano e, no momento, está na casa dos R$ 4,80, um movimento interessante que está contribuindo ativamente para melhorar o ambiente de negócio e reduzir as taxas de inflação, aliviando os preços internos e melhorando a renda do consumidor nacional e criando novos horizontes para o segundo semestre.

Outro assunto que precisamos destacar é os dados referentes a inflação, que está dando sinais claros de redução, depois de anos de forte crescimento e que levou o Banco Central a elevar as taxas de juros ao patamar de 13,75%, a maior taxa de juros entre as economias internacionais, que contribuiu para que o comportamento da economia nacional fosse preocupante e assustador, reduzindo os investimentos produtivos e elevando os recursos ligados aos setores rentistas da economia nacional.

A queda da inflação está ligada a variados movimentos, onde destacamos a chegada de um novo ambiente externo marcado por viagens internacionais e novos acordos comerciais com outras nações, onde destacamos as medidas adotadas na viagem da China, onde várias empresas estão sinalizando novos investimentos produtivos para o Brasil, destaque para o setor automobilístico, que está recebendo novos projetos bilionários, como a chegada da empresa BYD, conglomerado chinês líder em baterias elétricas, além de carros, caminhões e outros produtos variados.

A chegada de novos investimentos deve se somar aos novos acordos com a renovação do Mercosul, com conversas bilaterais e os acordos comerciais com a União Europeia que, no momento, está sendo rediscutido e futuramente será implementado totalmente ou parcialmente, só o tempo pode responder essa indagação.

A chegada de recursos internos, valorizou a moeda nacional, além de novos horizontes fiscais, com o NAF, que podem melhorar o ambiente de negócios, melhorando as condições econômicas e produtivas, atraindo investimentos externos e novas levas de geração de emprego.

Destacamos ainda a Reforma Tributária em curso na economia nacional, com potencial de simplificar as questões tributárias, diminuindo os custos com a questão dos impostos, vistos como um grande emaranhado complexo e centrado na ineficiência e nos desperdícios elevados, desta forma, a aprovação dessa reforma na Câmara dos Deputados pode trazer boas sinalizações no horizonte para a economia brasileira e atraindo novos investimentos internos e internacionais.

Muitos foram os avanços neste seis meses de governo, embora muitos críticos acreditem que as mudanças sejam pontuais, percebemos que muitos analistas estão sendo excessivamente críticos com as mudanças neste período, se esquecendo que se o governo anterior continuasse no poder, as questões econômicos seriam muito mais agressivas e degradantes, com isso, percebemos que falta uma maior complacência com um governo que assumiu a poucos meses, depois de um verdadeiro tsunami de degradação e destruição.

Embora destaque as muitas medidas positivas, é importante destacar, que o governo se tornou muito dependente do presidente da Câmara dos Deputados, responsável por grandes vitórias do governo, mas sabemos que todas as vitórias capitaneadas por Arthur Lira, tem uma fatura salgada para o governo nacional, como aconteceu no período da presidente Dilma Rousseff que culminaram no impeachment.

Destacamos ainda os movimentos de reindustrialização da economia brasileira que estão em curso e estão apresentando frutos interessantes, embora saibamos que os verdadeiros frutos tendem a demorar muitos anos, mas é fundamental que essa política seja estimulada por todo governo, uma medida de governo que una todos os setores econômicos, políticos e sociais, como uma forma de transformar um projeto é uma verdadeira Missão, como destaca a economista italiana Mariana Mazzucatto.

Neste cenário, destacamos a desoneração de carros de até 120 mil reais, como forma de estimular a produção, reduzir os estoques das montadoras e dar um alívio para a economia nacional, mobilizando os setores econômicos e produtivos, garantindo empregos e movimentando a economia.

A medida foi criticada por muitos críticos, que acreditam que essa medida piora as condições das cidades, aumentando a quantidade de carros circulando nas vias públicas, aumentando a emissão de dióxido de carbono e estimulando um setor produtivo com forte impacto sobre a economia linear em detrimento da chamada economia circular.

Depois de seis meses, os avanços são visíveis, embora saibamos que os desafios contemporâneos sejam elevados e as perspectivas podem ser positivas, mesmo sabendo que os riscos são elevados e as preocupações são muitas e prescinde de atenção constantes…

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Poder e progresso, por Hélio Schwartsman.

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Livro mostra que avanços tecnológicos podem virar concentração de renda ou prosperidade compartilhada

Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”.

Folha de São Paulo, 16/07/2023

Daron Acemoglu, um dos autores do best-seller “Por que Nações Fracassam”, volta à carga com mais um livro importante. Trata-se de “Power and Progress” (poder e progresso), desta vez em parceria com Simon Johnson.

Os autores admitem, por óbvio, que avanços científicos e tecnológicos estão na base da era de bem-estar material em que nos encontramos. Hoje, mesmo os mais pobres vivem vidas mais longas, mais saudáveis e com acesso a confortos com que nossos ancestrais de 300 anos atrás nem sequer podiam sonhar. O ponto da dupla é que nem todos os progressos tecnológicos se convertem automaticamente em prosperidade para todos.

Em algumas circunstâncias conseguimos transformar os avanços em bem-estar compartilhado, mas em várias outras o que se vê são elites se apropriando dos ganhos de produtividade, podendo até mesmo levar a maioria a experimentar uma piora nas condições devida. Foi o que ocorreu, por exemplo, com vários dos grupos que trocaram a caça/coleta pela agricultura/pastoreio. Foi também o destino das primeiras levas de trabalhadores sob a revolução industrial.

Acemoglu e Johnson analisam mil anos de história e tentam mostrar as razões para a diferença. Os detalhes obviamente variam muito, mas a repartição dos ganhos só ocorreu de forma mais equitativa quando a sociedade conseguiu desenvolver instituições, como sindicatos, imprensa etc. que lograram fazer com que as decisões sobre a tecnologia e a organização do trabalho não ficassem unicamente a cargo das elites.

Com esse instrumental, a dupla também aborda vários temas quentes do momento, como a inteligência artificial e as ameaças à democracia representadas pelas redes sociais. No capítulo final, eles elencam medidas que ajudariam a robustecer a sociedade civil, transformando-a numa força capaz de contrabalançar a tendência de concentração de poder e riqueza nas mãos de grupos cada vez mais restritos.

Professores, uni-vos!, por Jean Pierre Chauvin

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A Terra é Redonda -11/07/2023

Iean Pierre Chauvin

Um voto de protesto contra o discurso nefasto sobre o duro, incompreendido e desvalorizado ofício de professor

Uma das notícias mais tristes, nos últimos anos, foi constatar a existência de colegas que não só votaram no mitômano especializado em matar,[i] mas continuam a defendê-lo em 2023, apesar de tudo o que ele negou, distorceu, corrompeu e desfez; a despeito de todas as ignomínias que cometeu; apesar do absoluto deboche com que desgovernou as pessoas, as coisas, as culturas, as leis e as contas do país, em favor de si mesmo e de seus asseclas, todos situados muito abaixo da mediocridade.

Ora, se nem mesmo a hecatombe sanitária por negligência federal foi capaz de sensibilizar alguns professores durante a pandemia, o que o discurso leviano do seu filho poderia despertar? É nisso que tenho refletido desde que o deputado comparou “professores doutrinadores” a “traficantes” – em prejuízo moral dos educadores –, durante o final de semana, em ato que “coincidiu” com os seis meses do atentado aos três Poderes da República, no dia 8 de janeiro de 2023.

Alguém objetará que resulta inútil propor qualquer forma de diálogo com essa turma nefasta; mas, persisto.

Comecemos pela suspeita de que pouca gente lembra ou sabe que entre os antigos romanos, o verbo “doutrinar” subjazia o ato de lecionar, ou seja, era prática inerente à relação entre Mestre e Discípulo (veja-se o que ensinou Antônio Geraldo Cunha em seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa).

Entretanto, o correr dos séculos, a mudança dos regimes, as novas formas de conceber o mundo, emprestaram caráter pejorativo ao termo doutrinação. Se até o final do Oitocentos, doutrina traduzia um conjunto de preceitos e, por extensão, a ideia de sistema, o fato é que a palavra assumiu caráter negativo ao longo do século XX, especialmente quando ela passou a ser empregada como sinônimo de perversão, desvio ético e/ou intelectual dos “puros” alunos, por obra do professor “doutrinador”.

Se resgatar a etimologia de doutrina pode resultar em argumento inconsistente (já que foram atribuídas muitas camadas de sentido a essa palavra, ao longo dos séculos), consideremos o uso que Paulo Freire fez dela em Pedagogia do Oprimido – publicado em 1968. Contrariando o que disparam seus detratores sem tê-lo lido, repare-se que em nenhum momento ele defendeu o papel doutrinário do professor, mas o seu propósito libertário, no trabalho com os alunos.

Uma explicação possível. A concepção freiriana de ensino-aprendizagem pressupunha solidariedade contra antagonismo; educação crítica em lugar de escolarização ingênua. Em suma, superar a contradição oprimido-opressor envolveria a relação horizontal entre educador-educando e educando-educador.

A lição pode soar óbvia aos colegas familiarizados com a extensa obra de Paulo Freire; mas, provavelmente será condenada como peça de pedagogia “doutrinária” pela extrema direita e seus adeptos – especialistas em ressentimento que fingem acreditar nos absurdos que eles mesmos criam e disseminam, em nome de quimeras como “Pátria” (quintal dos EUA), “Deus” (da prosperidade), “Família” (das aparências) e “Propriedade” (do latifúndio improdutivo) etc.

O que seres dessa estirpe simulam esquecer é que não há professor neutro, tampouco ensino isento de parcialidade. O que eles teriam a dizer sobre coachs apologetas do neoliberalismo, que transferem toda a cota do insucesso para o indivíduo “fracassado”? Sobre instrutores que “ensinam” o empreendedorismo como se fosse um valor absoluto, alheio aos limites do indivíduo e infenso às assimetrias sociais? Sobre líderes “religiosos” que espoliam os fiéis mais carentes, em benefício próprio? Sobre sujeitos na política que se divertem enquanto alvejam os profissionais da educação?

Professores, uni-vos!

Jean Pierre Chauvin é professor de Cultura e literatura brasileira na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros de Sete Falas: ensaios sobre tipologias discursivas.

A economista que desmascarou a “austeridade”

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A poucos meses de lançar seu livro no Brasil, Clara Mattei sustenta: “Falta de recursos” é armadilha ideológica. Dinheiro, os Estados criam o tempo todo. Corte de serviços públicos visa disciplinar as maiorias, forçando-as a aceitar qualquer trabalho

Outras Mídias – 06/07/2023

A professora e escritora Clara Mattei é objetiva: já no título de seu mais recente livro ela fala da conexão direta entre austeridade econômica e o fascismo. Em The Capital Order: How Economists Invented Austerity and Paved the Way to Fascism (ainda sem título em português – em tradução livre: “a ordem do capital: como os economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo”) ela destrincha essa relação. O livro será lançado no Brasil ainda este ano pela editora Boitempo.

Mattei foi a convidada do Brasil de Fato Entrevista desta semana. Ela contou sobre o processo para elaboração da obra, que é fruto de dez anos de estudo. Italiana radicada nos Estados Unidos (ela é professora de Economia na The New School for Social Research, em Nova Iorque), a pesquisadora cita personagens como Benito Mussolini, Donald Trump e a atual primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, como frutos políticos de um caminho trilhado com apoio na lógica da austeridade econômica.

“Para o capitalismo funcionar, a maioria das pessoas deve estar desempoderada, precarizada e
dependente do mercado. E é isso que a austeridade faz. Tira recursos da maioria das pessoas, que ganham dinheiro através de um salário, e entrega a uma minoria, cuja riqueza vem de patrimônios e rendas”, afirma ela, que destaca que a alternativa a esse sistema passa pela organização das pessoas em suas comunidades locais.

A senhora passou dez anos escrevendo o livro que nasceu da sua tese de doutorado. Como e quando decidiu se aprofundar neste assunto?

Tudo começou quando estava vivendo os anos de grande austeridade de Mario Monti, na Itália. Ele chegou ao poder após a crise da dívida soberana em nosso país e estava estudando e vivendo na pele, assim como a maioria das pessoas no mundo ainda vive hoje, os efeitos da austeridade, a redução de verbas para a educação e saúde pública. Vi as pessoas na Itália ficarem cada vez mais pobres a olhos vistos. Era um país em que não tínhamos pessoas morando na rua e as ruas estavam ficando cheias de gente. Não havia moradia.

Mas você passou dez anos pesquisando e procurando material em arquivos, certo?

Sim, é um trabalho em economia histórica e política. É baseado em fontes primárias e na reconstrução do passado através de uma nova perspectiva, analisando material que ainda não havia sido publicado. O tipo de debate sobre austeridade que estava ocorrendo na mídia, na política pública e até entre movimentos de esquerda era muito insatisfatório porque era muito apolítico.

Transformaram a austeridade em uma ferramenta técnica para gerir a economia e a discussão era se a austeridade estava ou não funcionando para equilibrar o orçamento e promover crescimento. Era um debate sem solução. E não muito útil para entender por que a austeridade continuava emergindo mesmo que claramente não estivesse gerando crescimento, nem ajudando a resolver a questão da dívida.

Então o estudo histórico é muito importante porque nos dá uma análise com perspectiva de classe que estava ausente no debate econômico contemporâneo, que era muito tecnocrático. A tentativa era então olhar para o que aconteceu 100 anos atrás e mostrar como a austeridade tem uma clara lógica política que visa manter todos nós em uma situação de precariedade, de dependência do mercado, desempoderando assim a população para que o sistema se proteja e mantenha a ordem do capital, que é o título do livro: A ordem do capital, para se manter intacto.

Se olharmos para a história, isso só é visível porque aconteceu em um momento em que o capitalismo foi muito contestado depois da Primeira Guerra, e assim realmente vemos como a austeridade operava como uma contraofensiva usada pelas elites para impedir qualquer alternativa ao nosso sistema.

Na apresentação do livro, você fala sobre várias crises econômicas e políticas em países do mundo todo, já que essas crises e essa austeridade são intrínsecas à nossa sociedade moderna.

Nos últimos anos, mais uma vez vimos uma crise do neoliberalismo no mundo todo, algo que já se dizia no início do século passado. Esse modelo econômico não é o mais adequado, certo?

Sim, com certeza. Estamos em outro momento em que as pessoas não acreditam no sistema, penso eu.

Aliás, é por isso que a austeridade voltou com força total. Não só no Brasil. Eu moro nos Estados Unidos e o motivo pelo qual o Federal Reserve, o [equivalente ao] Banco Central, está aumentando a taxa de juros é porque a maioria das pessoas não está voltando ao trabalho.

Muitos trabalhadores estadunidenses, 46 milhões, em 2022, largaram seus empregos porque estão cansados da exploração e porque veem que o sistema não trabalha para eles e sim para uns poucos que enriquecem constantemente. Então é nessa situação que a austeridade deve voltar para nos convencer que, na verdade, estamos enganados e não existe outra saída a não ser através do sacrifício dos trabalhadores e, em última instância, do corte de salários para atrair a confiança dos investidores.

E o capital parece tentar se reestabilizar e se preservar o tempo todo. Mesmo diante de uma crise, os bancos, o sistema inteiro, e até os governos liberais, ainda tentam protegê-lo.

Com certeza. Mas acho que existe aí uma mensagem de esperança que surge quando levamos a História a sério: o capital não é fixo, não é algo dado e não é uma coisa, não é um objeto. É uma relação social e se traduz em uma maioria que aceita sua condição e aceita sua condição de vender sua capacidade por um salário.

A relação social não é de maneira alguma estática. É dinâmica e pode ser subvertida. É dinâmica e pode ser subvertida. Então a realidade é que a ordem do capital é muito frágil. E é por isso que a austeridade é tão cara a ela, porque a protege de todas essas demandas de transformação social que vão surgindo.

A mensagem aqui é que precisamos saber como a classe dominante opera para preservar um sistema injusto. Precisamos parar de idealizar o capitalismo como um sistema que pode ser reformado e que tem flexibilidade para incorporar nossas necessidades, e perceber que o capitalismo tem limites rígidos. É um sistema que só cresce e produz para gerar lucro e isso requer austeridade.

A tese central aqui é que a austeridade não é uma exceção no capitalismo, não é algo que só se vê nas etapas neoliberais, começando nos anos 80. Ela é muito mais intrínseca à longa história do capitalismo. Está no DNA do sistema exatamente porque, para o capitalismo funcionar, a maioria das pessoas deve estar desempoderada, precarizada e dependente do mercado. E é isso que a austeridade faz. Tira recursos da maioria das pessoas, que ganham dinheiro através de um salário, e entrega a uma minoria, cuja riqueza vem de patrimônios e rendas.

A pesquisa aborda os primeiros anos do século 20 até a atualidade. E a austeridade esteve sempre presente, como você acaba de dizer, desde o período entreguerras, que é onde começa a pesquisa.

Você disse que a austeridade foi uma ferramenta técnica e despolitizada para a ascensão de lideranças autoritárias. Por que unir Mussolini, Jair Bolsonaro, Viktor Orbán e Giorgia Meloni, por exemplo? A pergunta é: “o que os une?”

É muito importante aqui dar um passo para trás. No livro, faço uma reconstrução da crise do capitalismo após a Primeira Guerra, há exatos 100 anos. Em 1919 e 1920, a população em geral tinha desistido do capitalismo, pensando que haveria um futuro melhor após a reconstrução pós-guerra. E todos esses experimentos que surgem de conselhos de trabalhadores demandam democracia econômica, o que significa que as pessoas estavam se reapropriando da produção e distribuição de recursos. Isso estava acontecendo concretamente.

Meu foco é o movimento de Antonio Gramsci, em Torino, L’Ordine Nuovo, em que é possível ver um esforço real não só para pensar diferente, como também para agir diferente. E só se podia agir diferente realmente pensando diferente e só se podia pensar diferente agindo diferente. Então é a importância da prática, de uma sociedade diferente nascer de experimentos dentro das fábricas e também no campo, em que as pessoas se reapropriaram dos meios de produção e da organização do trabalho.

Nessa situação explosiva, a burguesia ficou muito assustada. Porque, é claro, ela se beneficiava do capitalismo, queriam protegê-lo e qualquer forma de distribuição e democracia econômica teria significado, de certo modo, o fim dos seus privilégios. É nesse momento em que vemos emergir a austeridade como uma contraofensiva e aqui há dois fatores relacionados à sua pergunta. O primeiro é que os economistas participaram muito ativamente na construção de modelos econômicos supostamente “neutros”, teorias “neutras”, conhecimento científico, para dizer às pessoas que elas eram ignorantes, que elas não entendiam e, em suma, que estavam vivendo por conta própria e tinham que aceitar a verdade dura, como diziam, do trabalho duro e abster-se de consumir.

Então esse lema de austeridade, “consuma menos, produza mais”, foi imposto à população italiana e inglesa. Esses dois países são o foco dos meus estudos porque meu interesse é mostrar que a austeridade surge onde a democracia econômica é mais palpável. E naquele momento na Europa as pessoas tinham ganhado o direito ao voto, por exemplo. Mas o que se vê é uma aliança entre economistas e governos. Os economistas são convocados pelos governos para ajudar a impor à população a austeridade. E a austeridade veio em uma variedade de formas. Não foram só cortes de gastos, foi, em primeiro lugar, cortes de gastos sociais, taxação regressiva. Então houve aumento em impostos sobre o consumo, como ainda vemos no mundo todo hoje, mais impostos para pessoas físicas e corte de impostos para ricos e impostos corporativos ou sobre patrimônio etc.

Também se tratava de aumentar as taxas de juros, que também vemos hoje, ou seja, austeridade monetária, e, por último, aquilo que chamo de medidas industriais, que são ataques diretos a sindicatos, privatização, desregulação do trabalho e arrocho salarial. Então essa tríade da austeridade; fiscal, monetária e industrial; foi imposta à população também graças a economistas que estavam dizendo: “Este é o caminho certo a seguir e somos especialistas e objetivos”. Nesse sentido, fica evidente que os economistas desempenharam um papel bastante classista, participaram nessa guerra de uma classe contra o resto dos cidadãos e isso poderia ter sido feito de outro jeito, como foi na Inglaterra, onde a democracia liberal usou a austeridade contra seu povo e isso aumentou o desemprego e assim disciplinou os trabalhadores.

Eles tiveram que deter as greves, voltar ao trabalho com um salário bem menor e em piores condições. Voltando à pergunta, na Itália, vemos que Benito Mussolini, o fundador do fascismo, foi o mais eficiente implementador e aprendiz da austeridade. Mussolini chegou ao poder através de uma eleição, não um golpe, assim como Giorgia Meloni e Orbán hoje. Mas com uma intenção explícita de impor austeridade, dizendo às pessoas para não se preocuparem porque iriam fazer os cidadãos italianos pararem as greves, as reclamações e voltarem ao trabalho.

Agora, eu acho que hoje vemos muitos desses políticos “autoritários parafascistas” emergirem porque as pessoas estão insatisfeitas com a austeridade. A austeridade venceu a um ponto em que não há mais a noção de classe: as pessoas pensam que são indivíduos [isolados], e é uma típica mensagem de austeridade: “Não há classes, não há antagonismo, só indivíduos. E são os empresários que lideram a máquina econômica, não os trabalhadores.”

Então, no caso da Itália, para mim, Meloni chegou ao poder porque prometeu redistribuição de renda, e é claro que não cumpriu, porque assim que assumiu o poder mais uma vez impôs austeridade, como Mussolini e outros regimes autoritários.

Sobre isso, você diz que a austeridade não teve sucesso em estabilizar a crise econômica, mas teve sucesso em estabilizar as relações de classe. Estamos vendo agora uma mudança global nas relações de trabalho. Os sindicatos estão enfraquecidos, perdendo poder em alguns países. Como poderíamos ver nascer uma nova organização de trabalhadores?

Tenho algumas ideias sobre isso. Em primeiro lugar, mesmo se existe essa ideia de que os trabalhadores estão enfraquecidos, isso se deve à ação da austeridade sobre nossa vida por mais de 100 anos. Ela foi muito bem-sucedida, como você disse. A austeridade não teve sucesso em atingir os objetivos estabelecidos de crescimento econômico e pagamento da dívida, mas teve muito sucesso em atingir seu verdadeiro maior objetivo: garantir que as pessoas não pensem que podem viver em outro tipo de sociedade, aceitem sua condição de trabalhadores assalariados. Mais uma vez, impondo a ordem do capital. E isso também é uma armadilha para a mente porque os modelos econômicos reafirmam que os trabalhadores não importam, só os empresários.

Então é justo e correto afastar os recursos dos preguiçosos e favorecer os supostamente meritórios. Eles oferecem justificativas para essas políticas de extração de todos nós.

Claramente a austeridade teve sucesso e vemos que, historicamente, os trabalhadores perderam poder, o poder de barganha, o poder de imaginar um novo futuro. Dito isso, quero chamar atenção ao fato de que, no capitalismo, a luta de classes nunca para. É uma constante. Nosso sistema está em movimento, é um processo, não há nada fixo, mesmo que os economistas queiram que acreditemos que há algo fixo. Porque acreditar que algo é fixo nos desempodera e aprisiona nossa imaginação.

Então quero dizer que, é claro, existe um motivo por que a coisa não vai tão bem para os trabalhadores neste momento histórico, mas não é à toa que existem muitas mobilizações novas.

Nos Estados Unidos, por exemplo, é o setor de serviços: pessoas em restaurantes, hotéis, em áreas em que normalmente o trabalho é muito precarizado e individualizado, estão agora se sindicalizando. Starbucks, Amazon, Chipotle. E isso está assustando muito as classes dominantes.

Eu diria que estamos em um momento, na verdade, em que existe novamente certa turbulência. Claro, não é o espírito revolucionário de 100 anos atrás, mas há muita demanda por libertação.

Respondendo a sua pergunta, me sinto muito esperançosa. Há pouco estive na África do Sul, apresentando o livro, e me organizei e me encontrei com ativistas das townships [áreas urbanas comparáveis a favelas]. As townships são lugares onde o apartheid ainda existe, em termos de precarização econômica. No entanto, há muita energia no território, muita gente das novas gerações que abandonou as velhas categorias e estão pensando o novo.

Acho que o importante, para avançarmos, é abrir espaço para essas iniciativas que buscam recuperar independência e autossuficiência. Trata-se de romper a principal armadilha, que é a dependência do mercado. O que quero dizer? Que a maioria de nós, para poder viver, precisa ter dinheiro no bolso. Se quiser comer, tem que comprar algo no supermercado. Se quiser morar, tem que pagar aluguel. Se quiser ser curado, tem que pagar pelos médicos. Se quiser ir à escola, muitas vezes tem que pagar. Este é o resultado da austeridade. A mercantilização de todos os aspectos da nossa vida para nos desempoderar cada vez mais.

Acho que a primeira missão aqui é ser capaz de recuperar nosso poder através da organização, de conselhos, da vizinhança, de atividades locais, de formas de produzir e distribuir por nossa conta. Assim não dependeremos do salário dos capitalistas e não gastaremos nosso dinheiro em supermercados, para que o dinheiro não vá embora assim que entrar. Precisamos que os recursos permaneçam dentro da comunidade. E acho que esse é um primeiro passo importante para engajar as pessoas na ideia de organizar, colaborar e perceber que não é suficiente só votar nas eleições.

Votar nas eleições é um ato muito superficial. E é algo que mantém viva a servidão econômica.
Então é preciso romper e combater a servidão econômica. E esse seria um primeiro passo em um projeto muito mais ambicioso, que vai além da democracia social. É a derrubada das relações salariais em si. Repito que isso está acontecendo. Está acontecendo nas townships, eu estive lá há pouco. Está acontecendo no Chile, onde os conselhos são fortes. Acho que está acontecendo no mundo todo, mas a mídia não fala disso. Mas é suficiente para se envolver, ir para a rua, conhecer sua vizinha, ver que essas realidades existem e a austeridade está aí justamente para parar esses processos. Mas nós precisamos lutar contra isso.

Você mencionou a viagem à África do Sul. Seu livro será publicado no Brasil no segundo semestre, editado pela Boitempo. Está preparada para esse tour ao redor do mundo?

Tenho um filho de 8 meses que está viajando conosco. Seria melhor não ter que me mover tanto, mas faço isso porque acredito no poder do conhecimento, em ajudar a levar processos adiante.

Novamente, a mudança tem que vir de baixo, de quem está mobilizado. Mas acho que as bolsas de estudo de militância podem ajudar a desenvolver ferramentas para afiar a mente e o conhecimento sobre as estratégias inimigas. E é por isto que a História é útil, para abrir espaço a novas maneiras de fazer as coisas, para fomentar a imaginação política porque, no passado, houve muitos esforços para mudar a nossa sociedade. E ainda existem esforços assim e acho que meu papel é fazer a discussão avançar e dar esperança às gerações mais novas.

A ideia de ter um orçamento elevado é o debate central no Brasil hoje. Esse debate eterno torna impossível avançar em direção a uma agenda positiva para o país. Por outro lado, muita gente, incluindo o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, acredita que os juros altos vão barrar o crescimento econômico e que o controle da inflação não deveria ser o foco principal.

Essa ideia sobre o orçamento primário tem a mesma origem que a austeridade?

Com certeza. É exatamente isto que a austeridade faz. Passa a mensagem de que não há alternativa. Equilibrar o orçamento é uma prioridade indiscutível. É uma prioridade neutra e necessária. Agora, sabe que a mensagem do livro não é que esses economistas estão necessariamente errados. Acho que em boa parte dos casos, principalmente em países do Sul, nos quais os limites do capitalismo são reais, é realmente um problema que a inflação esteja alta, que a moeda esteja desvalorizada. Mas isso dialoga com a violência econômica que é muito estrutural no sistema. Por isso a solução não é só fazer remendos no nosso sistema, com algumas reformas. Porque o estrangulamento é forte.

E é verdade que, sob o capitalismo, dependemos da confiança dos investidores para o crescimento econômico. E como você atrai investidores? Só se mantiver baixas as taxas sobre grandes riquezas e as taxas empresariais. Só se abrir às privatizações. O que ocorre agora é que grandes gestores de ativos estão comprando infraestrutura, imóveis, para tirar o máximo de taxas e renda, para aumentar o máximo possível as nossas necessidades diárias. Mas é exatamente isto que o Estado capitalista deve fazer, em suma, abrir-se a esses investidores privados. Essa é a realidade do sistema. É por isso que é muito idealista pensar que o Estado capitalista pode se opor a essas tendências global de austeridade. É por isso, repito, que temos que encontrar formas através de processos de libertação da propriedade privada, meios de produção e relações salariais. Porque o capitalismo realmente nos aprisiona. Não sei se isso faz sentido.

Esse debate entre economistas soa, é claro, como se não fosse uma escolha política. E podemos dizer que obviamente é uma escolha política. Mas também é uma escolha restritiva porque são decisões políticas favoráveis à manutenção da estabilidade de certa forma de mercado capitalista, certo? E isso requer nossa subordinação às leis do mercado que nos estrangulam e beneficiam uma minoria muito pequena. Essas escolhas políticas são restritivas. Mas nós podemos pensar grande, querer mais que migalhas para manter o povo controlado. Precisamos pensar grande, pensar em realmente romper com a nossa posição de subordinação ao mercado.

Aqui no Brasil, em 2016, o governo, que aliás não tinha sido eleito pelo povo, criou um marco fiscal conhecido como “teto de gastos”. A ideia era controlar o orçamento e a relação entre gasto público e PIB. Na verdade, vimos uma drástica redução em investimentos sociais, como educação, saúde pública e outros programas sociais. Essa política de austeridade, junto a outros eventos do sistema político brasileiro, pavimentaram o caminho para a eleição de Jair Bolsonaro.

Movimentos como esse poderiam dar lugar ao avanço de partidos de extrema direita?

Sim, esse é outro exemplo de que a austeridade não é um erro. Muita gente na esquerda diz que é fruto de uma economia ruim, que é um erro. Infelizmente, não é um erro. O que você descreveu mostra o sucesso da austeridade. As pessoas foram tão desempoderadas, que perderam seu senso de união de classe. Perderam a noção da luta coletiva contra o inimigo, que é a minoria que se beneficia do sistema, e terminaram votando por essa minoria que se beneficia do sistema. Porque a austeridade nos individualiza, nos convence que todos nós podemos ser empresários se nos esforçarmos e que deveríamos sentir vergonha de ser pobres. O motivo por que as pessoas votam em alguém como Trump é exatamente o sucesso da austeridade. Não acho que podemos culpá-las por votarem em Bolsonaro ou Trump. Deveríamos culpar a elite dominante, incluindo, infelizmente, o Partido Democrata [dos Estados Unidos] e todos os partidos supostamente progressistas que, de forma hipócrita, já vinham praticando a austeridade.

A austeridade atravessa fronteiras partidárias. Infelizmente, aqueles que supostamente representam o povo, incluindo os sindicatos, apoiaram a austeridade, criaram a sensação de falta de esperança e de que deveríamos fazer o possível para nos salvar como indivíduos, sem olhar para o fato de que somos, na verdade, produtores, produtores coletivos que deveriam lutar contra a exploração e contra aqueles que nos exploram. Então é só através da recriação do senso de coesão de classe e da conscientização de classe que podemos nos libertar da armadilha de pensar que regimes autoritários vão nos salvar. Eles não vão. Mas o mesmo vale para partidos democratas, como o de Biden, que estão desfinanciando todos os setores sociais. Por toda parte.

Quase trinta anos depois

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O começo de julho completou quase trinta anos do Plano Real, um plano de estabilização monetária que trouxe grandes alterações na economia brasileira, gerando algum tipo de estabilidade, melhora nos indicadores de preços e o incremento do ambiente de negócio, efetivando a redução dos preços que assolavam a economia nacional a décadas, atraindo novas formas de investimento, deixando claro nossos horizontes e os novos desafios para a sociedade brasileira.

Neste mês estamos comemorando quase trinta anos de sucesso no controle inflacionário, embora encontremos muitos especialistas que duvidem deste sucesso, as taxas de inflação caíram sensivelmente, trazendo suspiros e sonhos de que a economia brasileira se consolidassem de forma mais efetiva como uma das economias mais pujantes, se caracterizando como uma das maiores economias mundiais, donas de um potencial invejável, com espaços de crescimento econômico e, posteriormente, nos levando a vislumbrar a possiblidade, concreta, de seu desenvolvimento econômico, com melhorias substanciais para a população, impulsionando o bem-estar social e deixando para trás anos de subdesenvolvimento e heranças coloniais degradantes.

No começo dos anos 1990, a sociedade brasileira era vitimada por taxas elevadas de inflação e degradação do poder de compra da moeda, contribuindo efetivamente para a vergonhosa concentração de renda da sociedade nacional, onde os grandes setores econômicos e produtivos conseguiam se defender das taxas elevadas de inflação, garantindo ganhos reais, em contrapartida, uma parte substancial da população tinham suas rendas e salários mensais degradados pela elevada inflação, reduzindo seus rendimentos e contribuindo ativamente para que as condições de vida e de desigualdade fossem mais precárias.

O Plano Real pode ser visto como uma engenharia financeira muito sofisticada. Inicialmente, o governo dialogou constantemente com os setores econômicos e políticos, deixando de lado as medidas drásticas que foram utilizadas anteriormente, que distorcia o comportamento dos agentes econômicos e contribuíram para gerar desconfiança e descrédito. De outro lado, o Plano buscou um equilíbrio fiscal e, num próximo momento, inaugurou uma nova moeda, o Real, que substituiu a moeda anterior, marcada por grande depreciação e a perda crescente de poder de compra.

O Plano Real trouxe grandes transformações na economia brasileira, a estabilização monetária permitiu uma melhora da situação econômica, atraindo grandes fluxos financeiros para os sistemas produtivos, valorizando a moeda nascente e valorizando demasiadamente o câmbio, facilitando a importação, atraindo novos investidores e prejudicando os setores exportadores, contribuindo ativamente para o processo que vivemos na contemporaneidade, de desindustrialização da economia brasileira.

O câmbio valorizado trouxe grandes investimentos externos, melhorando o ambiente econômico, atraindo empresas internacionais, mas contribuiu, negativamente para fortalecer nosso potencial exportador de produtos industrializados, levando a economia nacional a uma desindustrialização.

Embora a desindustrialização não seja uma característica apenas da economia brasileira, grande parte das economias ocidentais perderam força de seus setores industriais e garantiram aos países asiáticos novos espaços na economia internacional, levando esses países a liderarem setores industriais no cenário global, onde destacamos a China, Coréia do Sul, Taiwan, dentre outras nações.

O câmbio valorizado contribuiu para reduzir os preços internos e contribuíram para debelar a forte inflação, mas levou a economia nacional a perder espaço na indústria global, muitas empresas tradicionais foram vendidas ou foram anexados por conglomerados internacionais, perdendo o dinamismo industrial, levando-nos a um caso único na economia mundial, de uma nação que se desindustrializou sem ter conhecido um setor industrial de ponta, ficamos mais uma vez, pelo caminho e fomos ultrapassados por outras nações, que na atualidade colhem os louros da industrialização e, novamente, ficamos para trás na competição internacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia do Setor Público, Mestre, Doutor em Sociologia. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 12/07/2023.

Por que os jovens saem precocemente da escola? por vários autores

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Distorção idade-série é um fator antecedente e determinante da evasão

Folha de São Paulo, 11/07/2023

Paulo Tafner, Economista e pesquisador da Fipe/USP; autor de “Reforma da Previdência: Debates, Dilemas e Escolhas” (2005), “Demografia: a Ameaça Invisível” (2010) e “Reforma da Previdência: a Visita da Velha Senhora” (2015)

Sergio Guimarães Ferreira, Economista e diretor de pesquisa do Imds

Leandro Rocha, Economista e pesquisador do Imds

Matheus Leal, Economista e pesquisador do Imds

O Brasil, segundo projeção do IBGE, tinha no ano passado 21,7 milhões de jovens entre 15 e 21 anos. Desses, 2,8 milhões não frequentavam a escola. E também não concluíram a educação básica, segundo dados do mesmo ano do Suplemento de Educação da Pnad Contínua.

É um número preocupante. A educação é essencial para o desenvolvimento de habilidades que favorecem a inserção no mercado de trabalho e a mobilidade social dos jovens. Além disso, a evasão escolar reflete a desigualdade social que limita as chances de ascensão dos mais pobres. A maioria dos jovens que deixam a escola (60%) pertence aos 40% mais pobres da população, enquanto apenas 5% estão entre os 20% mais ricos.

Os motivos para o abandono escolar variam conforme o sexo e a idade dos jovens. Entre os homens, os principais fatores são a necessidade de trabalhar e a falta de interesse pelos estudos. Entre as mulheres, a gravidez é o principal motivo. A gravidez afeta especialmente as mulheres mais pobres: dentre aquelas que evadem, 26% citam a gravidez como a razão para sair da escola. A necessidade de realizar afazeres domésticos ou cuidar de pessoas e a falta de interesse são outros motivos que afetam de forma mais ampla as mulheres pobres.

As diferenças entre os principais motivos para deixar de frequentar a escola variam conforme a idade. Entre os homens, a falta de interesse é o motivo mais frequente para os jovens de 14 a 18 anos, enquanto a necessidade de trabalhar é o motivo mais comum para os jovens de 19 a 21 anos.

Para as mulheres, o motivo mais relevante varia entre a falta de interesse e a gravidez. Entretanto, conforme a idade aumenta, a necessidade de trabalhar torna-se mais relevante.

Uma política integrada de combate à evasão deve reunir desde incentivos financeiros à permanência (um exemplo é o “Poupança Jovem Piauí”) até programas de Busca Ativa (existem diversos exemplos, entre os quais podemos destacar o executado pelo estado de Pernambuco pela sua focalização em jovens em territórios mais vulneráveis), de cunho mais reativo.

Contudo, prevenir é melhor e mais barato do que remediar. A distorção idade-série é um fator antecedente e determinante da evasão escolar. No Brasil, a taxa de abandono é de 17% dentre alunos com dois anos ou mais de atraso escolar em relação à série, e apenas 2% dentre alunos com um ano ou menos de atraso, segundo os dados do Inep de 2019 organizados pelo Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (Imds). Logo, a evasão no ensino médio resulta da desatenção da escola com relação aos seus alunos mais vulneráveis nos primeiros anos do ensino fundamental.

Uma política de combate à evasão é prioritária e deve envolver estados e municípios, já que esses últimos são os responsáveis por boa parte do ensino fundamental público. E não deve ser tarefa somente das secretarias de Educação, mas também, e no mínimo, das secretarias de Assistência Social e de Saúde, todas atuando de maneira integrada. E muitas vezes atores como varas de infância e adolescência, nos casos em que a infrequência escolar é sinal de violação de outros direitos da criança.

Concentrar esforços, integrar áreas de atuação do Estado e focalizar ações específicas devem ser prioridade da gestão governamental. Não se trata de falta de recursos.

Paulo Tafner diretor-presidente do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (Imds), Sergio Guimarães Ferreira diretor de pesquisa do Imds, Leandro Rocha pesquisador do Imds, Matheus Leal pesquisador do Imds

IA não é inteligência e sim marketing para explorar trabalho humano, diz Nicolelis

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Neurocientista diz que a mente humana resulta de milhões de anos de evolução: ‘quero ver ChatGPT sobreviver a um jogo do Palmeiras’

Pedro S. Teixeira

SÃO PAULO – FOLHA DE SÃO PAULO, 08/07/2023

O ChatGPT funciona como uma ferramenta de marketing por gerar desigualdades na relação entre empregador e força de trabalho, diz o neurocientista Miguel Nicolelis. Para ele, a inteligência é o resultado de milhões de anos de evolução, que não podem ser computados em código binário.

Nicolelis trabalha há 30 anos com redes neurais, mecanismo por trás dos atuais algoritmos de aprendizado de máquina. Referência em interfaces entre cérebro e máquina, atuou no desenvolvimento de neuropróteses capazes de restaurar movimentos do corpo. Durante a abertura da Copa de 2014, na capital paulista, um cadeirante chutou a bola ao gol com o auxílio de um equipamento desenvolvido por ele.

Nicolelis afirma à Folha que é absurdo dizer que os modelos de linguagem como o ChatGPT são dez vezes mais inteligentes que um ser humano por escreverem de forma veloz ou se comunicarem em diversos idiomas, como fez Geoffrey Hinton, cientista da computação que inventou as redes neurais e foi sócio e conselheiro do Google por mais de uma década. “A tartaruga é extremamente inteligente, só é lenta.”

O sr. criticou o escritor Yuval Harari. Por quê?

Ele mistura coisas de outras áreas sem ter conhecimento profundo. No Sapiens, ele mistura as referências e interpreta os nossos resultados de uma maneira que não tem absolutamente nada a ver com o que fizemos. É um trabalho que gastei 30 anos da minha vida. Quando ele fala que no futuro vamos colocar essa coisa chamada interface cérebro-cérebro, que era algo experimental que fiz entre ratos, fiz entre macacos e fizemos entre seres humanos, para reabilitação. Mas não é que eu vou trocar meus sentimentos com outras pessoas. É uma troca de comandos motores, coisas apropriadas para reduzir a lógica digital. Ele fez uma interpretação disso como se eu estivesse lendo a mente de alguém, o que nunca vai acontecer. Ele fala: ‘nós vamos viver até os 200 anos’, ‘vamos acabar com o envelhecimento’. Tudo isso é fantasia.

E sobre o que Harari diz da inteligência artificial?

Ele vive de lacração em lacração. Ele escreveu que a inteligência artificial sequestrou o sistema; ela não sequestrou nada. A espécie humana está sequestrando sua própria evolução.
Por trás da inteligência artificial, existem exércitos de pessoas que anotam dados.

E tem exércitos de evangelistas. Nunca gostei dessa palavra, porque ela denota que a vasta maioria dos movimentos humanos viraram religiões. Tudo parece religião. Do ponto de vista científico, digo isso há anos, e agora Noam Chomsky usa a mesma frase, a inteligência artificial não é nem inteligente nem artificial. Não é artificial porque é criada por nós, é natural. E não é inteligente porque a inteligência é uma propriedade emergente de organismos interagindo com o ambiente e com outros organismos. É um produto do processo darwiniano de seleção natural. O algoritmo pode andar e fazer coisas, mas não são inteligentes por definição. Se estivesse vivo, Charles Darwin teria um infarto com isso.

Chamar de aprendizado de máquina é melhor?

Aprendizado de máquina, deep learning, machine learning, são grandes nomes que usam palavras que nós nos acostumamos coloquialmente a usar, relacionadas ao cérebro humano ou de qualquer animal, para definir coisas que nós fazemos com lógica binária. A inteligência humana não é binária. Por isso, é um nome impróprio.

O criador das redes neurais Geoffrey Hinton diz que ele tenta simular a estrutura do neurônio, para pensar esses algoritmos.

Ele comenta um monte de absurdo também. Ele falou que a inteligência artificial já é dez vezes superior à inteligência humana, o que é um absurdo. Nós temos esses marqueteiros dessas áreas de tecnologia que alegam coisas que parecem verdade. Mas eles não têm a prova.

Ele trabalha com resultados. Ele fala da velocidade com a qual ele entrega respostas, vários idiomas.

A tartaruga é extremamente inteligente. Ela é lenta. Mas o que nós estamos falando é tentar usar a linguagem do mercado para definir o que a vida faz. O mercado quer coisas rápidas, eficientes, com lucro infinito e gasto zero. A inteligência não tem esse compromisso. A inteligência do organismo tem o compromisso de fazê-lo sobreviver o máximo possível em um ambiente em contínua mudança. Só porque um computador joga xadrez mais rápido e ganha de um campeão mundial, não indica que ele é inteligente. Ele só é mais eficiente, porque o xadrez é um jogo com regras predeterminadas. Esse computador não consegue sobreviver no estádio do Palmeiras em uma noite de jogo, não entende os motivos de uma briga, porque não tem a capacidade de generalizar sua inteligência.

A pesquisadora do instituto Open Philantropy, Ajeya Cotra, estimou que, no atual modelo de sociedade, a mente humana corre o risco de estar obsoleta até 2037 em termos de produção para o mercado de trabalho. Isso faz sentido?

Depende do que você chama de produção e do que chama de obsolescência. Existe um limite da lógica digital. Acabei de ler um livro de um dos melhores intelectuais da área de IA, o Michael Wildridge, da Universidade de Oxford. Saiu em 2021. No livro ele fala: sabemos que existe um limite determinado por fenômenos não computáveis, nos quais não há um algoritmo, não há uma fórmula matemática solucionável com um programa. Só que ele põe dois parágrafos sobre a coisa mais importante do livro, e comenta que os pesquisadores não prestam muita atenção nisso porque têm muita coisa para fazer. Mas a mente humana é repleta de fenômenos não computáveis: inteligência, intuição, criatividade, senso estético, definições de beleza, de criatividade, tudo isso é não computável. Qual é a fórmula para a beleza?

Uma jovem publicou no Twitter que seu tio foi acusado de plágio porque um professor pegou um trecho do trabalho dele e perguntou se havia sido feito pelo ChatGPT para o ChatGPT. A plataforma não é feita para reconhecer se um texto foi feito por inteligência artificial e sempre responde que é o autor de qualquer texto.

De certa maneira, o ChatGPT é um grande plagiador, porque pega o material feito por um monte de gente, mistura e gera algo que chama de produto novo, mas, na realidade, é em grande parte influenciado pelo produto intelectual de milhares e milhares de seres humanos. Para o sistema capitalista atual, moderno, a inteligência artificial é a grande ferramenta de marketing, porque gera uma total desigualdade no relacionamento com a força de trabalho.

Um patrão pode dizer: tenho um aplicativo de inteligência artificial, se o trabalhador não aceitar o salário que estou disposto a pagar, que é 10% do que ganha hoje, demito e uso o aplicativo.

Existe toda uma ideologia de substituição do trabalho humano, que não pode ser feita 100%, não há como.

Dá para dizer que ganha espaço na sociedade um pensamento mais utilitarista?

Esse é o problema, isso não tem nada a ver com a máquina. O que está se fazendo é forçar a biologia humana a seguir regras de mercado. As regras de mercado não são divinas, elas são abstrações criadas pela mente humana. O que elas produziram na história da humanidade? Uma estrondosa desigualdade de distribuição de renda. Nós temos gente gastando dinheiro para mergulhar para ver o Titanic explodindo no meio do oceano. Se alguém andar da avenida Paulista até aqui, como eu fiz, vê dezenas de milhares de pessoas morrendo de fome nas ruas. Tudo isso está sendo ignorado porque esses sistemas são convenientes. Eles aumentam a nossa produtividade e nosso alcance como ser humano.

O sr. está mais alinhado com o pensamento de que hoje esses modelos de linguagem são mais como papagaios estatísticos?

Totalmente. Deep learning nada mais é do que redes neurais com múltiplas camadas, mais camadas, mais neurônios e mais conexões entre essas camadas. O cérebro faz isso também. Todavia, é impossível simular os mecanismos biológicos que o cérebro usa para tomar essa decisão.

O cérebro gasta muito menos energia do que supercomputadores de IA para entregar o mesmo processamento.

É um processo de otimização de milhões de anos. Não é à toa que nós descemos das árvores, levou 4 milhões de anos para sairmos andando. É uma coisa muito mais elaborada: 20% da energia que seu corpo produz vai para cá [aponta para a cabeça]. A energia do cérebro dá para acender uma lâmpada, mais ou menos. É um troço extremamente otimizado que sofreu modificações brutais desde que a vida apareceu na Terra. E não é computável. O próprio Alan Turing sabia disso, depois de propor sua tese, disse: há certos problemas que essa minha máquina teórica, que já virou máquina de Turing e gerou os computadores, não vai conseguir resolver. E quando eu tiver esse impasse, só tem uma solução. Tenho que chamar um oráculo para tomar uma decisão. O oráculo é um ser humano.

Mas dentro dessa lógica de concorrência entre máquina e ser humano, o senhor concorda com os riscos para a espécie aventados por pesquisadores e gente da indústria de tecnologia?

Os riscos são tremendos. Essas ferramentas têm de ser usadas sob a supervisão humana. Na programação de um sistema de IA, a pessoa pede algo, mas pode não considerar que os meios para alcançar o objetivo são indesejados. É o que ocorre com o computador HAL do filme “2001 – Uma Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick. A missão dele era chegar com a tripulação a um local. Só esqueceram de falar que HAL não podia matar a tripulação. Esqueceram os cenários em que a missão seria completa, mas não sobraria gente para ver. Quando alguém delega para algo fazer uma missão em seu nome, não vai ser possível oferecer para essa coisa todas as restrições que temos de imediato por causa da evolução.

Esses mecanismos podem ser úteis, em termos de pesquisa, como são seus estudos em neurociência?

Uso redes neurais para interpretar padrões de atividade neural reais desde os anos 1990. Não as mesmas redes de hoje, mas mais simples. É um método estatístico de reconhecimento padrão.

Não concordo com transformar uma ferramenta estatística em um novo Deus e construir embaixo dele toda uma religião, como está acontecendo. Eu chamo a igreja da tecnologia.

RAIO-X
Miguel Nicolelis, 62
Chefiou, o Centro de Neuroengenharia da Universidade de Duke, antes de se aposentar como professor emérito em 2021. Médico, ele é referência no estudo da interface entre cérebro e máquina e coordenou comitê científico do Consórcio Nordeste. Foi o primeiro brasileiro a publicar um artigo na capa da revista científica Science.

Dowbor: Assim o rentismo tornou-se doutrina

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Livro apresenta o homem que forjou o receituário corporativo do capitalismo improdutivo: cortar gastos obsessivamente, criar competição tóxica e buscar o lucro máximo, a qualquer custo. Fórmula inspirou personagens como Lemann

Ladislau Dowbor – Outras Palavras, 27/06/2023

A principal transformação do capitalismo nas últimas décadas é de ter migrado do lucro sobre processos produtivos como eixo central, para a maximização dos rendimentos financeiros, materializados em dividendos para acionistas. Trata-se do rentismo moderno, da maximização de dividendos por meio de sistemas especulativos, recompra de ações, cortes de empregos e de salários, evasão fiscal por meio de paraísos fiscais e outros mecanismos, no que tem sido chamado de financeirização. Há numerosos trabalhos sobre esta nova fase neoliberal do capitalismo, e de primeira linha, como de Joseph Stiglitz, que qualifica esses lucros de “unearned income”, ou seja, rendimentos não merecidos; de Thomas Piketty, que os qualifica de “rentas” (rentes em francês); de Mariana Mazzucato, que se refere ao “extractive capitalism”; de Michael Hudson, que os apresenta como bactérias que matam o hospedeiro (Killing the Host); de Gabriel Zucman (The Triumph of Unjustice), isso sem falar dos que abriram os caminhos, como François Chesnais e David Harvey. É
uma visão que está se tornando dominante na economia em geral. Bom senso em construção.

Mas o aporte de David Gelles, no livro The man who broke capitalism: how Jack Welch gutted the heartland and crushed the soul of corporate America – and how to undo his legacy, é contundente, pela análise detalhada de corporações concretas, como a General Electric – como exemplo básico – mas também da Amazon, AT&T, Boeing, BlackRock, Unilever, Paypal, e também, particularmente interessante para nós, da 3G Capital. Esta última é controlada por Lemann, Sicupira e Telles, responsáveis pelas fraudes bilionárias das Lojas Americanas, e que constituem o grupo privado mais poderoso hoje no Brasil, conforme vemos na edição da Forbes sobre bilionários brasileiros. O trabalho de Gelles alimenta sem dúvida uma visão de conjunto da financeirização, mas construída a partir do comportamento detalhado das grandes corporações, no cotidiano da tomada de decisão dos executivos. Poucas obras são tão ricas em termos de fazer compreender os mecanismos deste bicho novo que ainda chamamos de capitalismo, mas que funciona de maneira diferente e obedece a regras que nos escapam. Ainda se auto-qualificam de “mercados”, mas estão muito mais próximos de uma “aristocracia capitalista”, como as qualifica Michael Sandel.

David Gelles escreve de maneira excepcionalmente clara. Jornalista e colunista do New York Times, e pesquisador sobre o funcionamento concreto de corporações financeiras e tecnológicas, navega com conforto na área, e torna a temática muito acessível. A realidade é que escreve muito bem, o livro “se lê”. E a seriedade da pesquisa, riqueza de fontes e facilidade de consulta faz deste trabalho, a meu ver, uma das melhores ferramentas para entender a dimensão atual dos nossos desafios. Não precisa ser economista, Gelles insiste em que os mecanismos sejam entendidos. Queiramos ou não, esses gigantes corporativos, com seu alcance global, estão definindo os rumos das nossas economias, dos nossos empregos, inclusive das nossas políticas.

Jack Welch é um protagonista central. Executivo da uma das maiores corporações mundiais, a General Electric, ele conseguiu, em 20 anos, entre 1981 e 2001, transformar uma empresa de ponta de produção de utilidades domésticas em um gigante financeiro que compra e revende empresas de qualquer setor da economia, seguindo à risca os conselhos de Milton Friedman, de que se trata de maximizar o retorno dos acionistas, pouco importa como e a que custo. Friedman deu a benção acadêmica para essa economia do vale-tudo corporativo: The business of business is business. Essa fratura entre a busca de lucros e dividendos, e os interesses da sociedade é central. “A lucratividade da corporação já não se traduz em ampla prosperidade econômica”, escreve Gelles, citando William Lazonick. (65).

Eu me familiarizei com Jack Welch ao ler há alguns anos o seu principal livro, Straight from the Gut, título que sugere uma escrita enraizada nos sentimentos mais profundos e sinceros, mas um dos livros de gestão mais cínicos que já tive entre as mãos. E teve impacto planetário, legitimando o vale-tudo, ao mostrar como os acionistas da GE passaram a ganhar muito mais dinheiro, e valorizando a empresa na bolsa. De certa forma, o que Friedman fez para os economistas, liberando-os de qualquer relação com ética e valores em geral, Welch o fez para uma geração de executivos pelo planeta afora, um impacto impressionante, mas que coincide com os interesses de se fazer dinheiro a qualquer custo. Basta olhar o que “os mercados” aprontam no Brasil. Não à toa hoje enfrentamos a “economia desgovernada”.

Uma das técnicas de Welch que ficou famosa e foi muito replicada consiste em organizar a empresa em unidades, cujo chefe é obrigado, a cada fim de ano, a definir quais são os 20% de trabalhadores mais produtivos, os 70% seguintes, e os 10% menos produtivos, que seriam despedidos. Isso gera uma guerra permanente em todos os departamentos, luta pela sobrevivência, em vez de sistemas colaborativos e sentimento de equipe. Acompanhado de despedimentos em massa (downsizing), de liquidação de segmentos menos lucrativos, substituindo-os por terceirizados, e compras dispersas de qualquer empresa que pudesse gerar mais lucro ao ser fragmentada e revendida, o resultado foi um dreno poderoso a favor dos acionistas, na linha, precisamente, da maximização de dividendos.

Dos desastres gerados resulta a batalha atual de muitas empresas, de promover o ESG (Environment, Social, Governance), tentando recolocar no horizonte empresarial não só o lucro dos acionistas (shareholders), mas também os impactos sociais e ambientais (stakeholders).

Como exemplo de comportamentos lucrativos mas desastrosos de grandes corporações, o autor aponta a 3G Capital, controlada por Lemann, Sicupira e Telles, os maiores bilionários brasileiros, que drenam recursos não só das Lojas Americanas, por quaisquer meios legais ou ilegais, mas de uma imensa rede de empresas controladas por participações de diversos tipos. “No caminho, escreve Gelles, os brasileiros desenvolveram uma reputação de cortadores selvagens de custos e de demitidores despiedados (merciless downsizers).” Gelles cita o próprio Lemann: “Na realidade, somos copiadores. É o que somos. A maior parte do que aprendemos foi de Jack Welch, de Jim Collins (autor de Good to Great), da GE, da Walmart. De certa maneira juntamos tudo isso” (p. 178).

Centrar tudo no lucro financeiro e no curto prazo é hoje a filosofia de inúmeras corporações, e explicam em grande parte o paradoxo de tantos avanços tecnológicos, enquanto as economias estagnam, aumentam a desigualdade, o desemprego e os empregos precários. É uma deformação sistêmica, que no Brasil atingiu dimensões absurdas, inclusive com desindustrialização.

“Considerem, escreve Gelles, o caso da 3G Capital, um grupo privado de acionistas que controla marcas incluindo Budweiser, Burger King, e Kraft Heinz. Fundado por um grupo de financistas brasileiros, os homens por trás da 3G Capital são os Neutron Jacks (apelido dado a Jack Welch por sua capacidade de explodir empresas, LD) do século 21, implacavelmente adquirindo empresas, cortando custos e cabeças, e extraindo lucros para si mesmos e investidores enquanto pareciam ignorar o bem-estar da sua força de trabalho e a necessidade de pesquisa e desenvolvimento” (p. 177). É importante entender que essa maximização de apropriação de dividendos pelos acionistas leva à redução de investimentos produtivos na empresa, fragilizando-a. “As corporações, que outrora compartilhavam generosamente os lucros com os seus trabalhadores no país todo (EUA), agora canalizam a parte do leão da riqueza que criam para investidores institucionais e executivos.

Enquanto nos anos 1980 menos de metade dos lucros corporativos voltavam para investidores, durante a última década, este número subiu (soared) para 93%” (p. 183). Para claro o contraste, David Gelles, descreve a tentativa do grupo 3G Capital de controlar a Unilever, fazendo uma proposta dourada ao seu executivo Paul Polman (anteriormente da Nestlé).

Seria uma aquisição gigantesca, da ordem de US$143 bilhões, o que dá uma ideia da força financeira internacional deste grupo. Polman resistiu, e orientou a Unilever para uma linha que prioriza o desenvolvimento produtivo, com equilíbrio entre dividendos, remuneração dos trabalhadores e reinvestimento na empresa. “Temos de sair desta corrida de ratos” disse Polman. “Era uma transação puramente financeira que era atraente no papel, mas constituía na realidade dois sistemas econômicos conflitantes” (p. 206). Segundo Gelles, “os brasileiros tinham mal avaliado a sua presa.”

Eu queria muito recomendar a leitura desse livro. Sem frescuras, academicismos ou gráficos complexos, mas com muita documentação de apoio e pesquisa, é a melhor radiografia que li sobre como se deformou o que conhecíamos antigamente como capitalismo industrial, e que hoje conhecemos como “mercados”, aos quais temos de obedecer, se não “ficam nervosos”, e temos pagar obedientemente os juros extorsivos, e acreditar que se eles ficam ricos – sem gerar produtos, pagando mal os poucos empregos que geram, e evitando os impostos – a economia irá prosperar. Bem, é o que os consultores na mídia comercial nos repetem todo dia.

O comunismo está chegando? por Luís Miguel Felipe.

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Luís Miguel Felipe – A Terra é Redonda -03/07/2023

Segundo o Datafolha, metade dos brasileiros teme a chegada do comunismo. Mas, afinal, o que se entende por comunismo? O que essa metade entende por capitalismo e as implicações que ele tem em sua vida?

Metade dos brasileiros teme que o país vire comunista, diz o Instituto de pesquisas Datafolha.
Pesquisas de opinião precisam ser analisadas com precaução. Como Pierre Bourdieu demonstrou há meio século, elas tratam como convicções o que são meras respostas a perguntas que, na verdade, as pessoas nem fazem a si mesmas.

Ainda assim, é preciso perguntar: que cazzo seria o comunismo, para que metade dos nossos compatriotas achem que ele está para chegar?

Um sentido de “comunismo” remete a sociedades em que tudo é comum a todos. Em que não há “meu” e “teu”. Como em tantos povos não europeus, para os quais a primeira tarefa do colonizador foi ensinar o sentido de “propriedade privada”.

O Brasil de hoje está neste caminho? Difícil de acreditar.

Outro sentido de comunismo se refere à sociedade imaginada por Karl Marx. Nela, não existiria Estado, repressão ou desigualdade. A necessidade estaria abolida e todos seriam integralmente livres. A harmonia entre indivíduo e comunidade ocorreria naturalmente.
Estamos chegando lá? Não parece.

É mais razoável imaginar que, por “comunismo”, as pessoas indicam o tipo de governo autoritário que imperou na antiga União Soviética e que hoje permanece em países como China, Coreia do Norte e Cuba. Alguém realmente acredita que há, no Brasil, alguma força política relevante que planeja implantar esse modelo?

Há um quarto sentido de “comunismo”. É tudo o que não é a extrema direita delirante. Quem difundiu essa acepção foi o (hoje calado) Olavo de Carvalho, que dizia que o governo FHC estava comunizando o Brasil. Então “comunista” é a Rede Globo, o Gilmar Mendes, o Joe Biden, o Emmanuel Macron. Até Sérgio Moro teve sua fase comunista, no curto período de tempo em que ficou de mal com Jair Bolsonaro e tentou se fazer de “terceira via”.

Seria bacana se, em vez de alimentar o medo irracional de um bicho-papão criado pela desinformação da direita, o eleitor brasileiro fosse capaz de discutir o que realmente quer para o seu país. Se entendesse o que é o capitalismo e quais as implicações que ele tem em sua vida, o que é e o que pode ser o socialismo, como uma democracia efetiva deveria funcionar.

Para chegarmos lá, só tem um caminho: educação política. Cabe à esquerda promovê-la – porque, para a direita, a alienação e a desinformação são vantagens.

*Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil (Autêntica).

Demanda insuficiente

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A economia brasileira vem passando por grandes alterações conjunturais, programas exitosos internacionalmente foram fragilizados, muitas políticas públicas foram desestruturadas, ausência de investimentos em setores fundamentais para compreender os grandes desafios na sociedade contemporânea, redução de repasses para a saúde e para a educação, ausência de uma estratégia de qualificar e capacitar os trabalhadores vitimados pelo desenvolvimento tecnológico, tudo isso nos leva a compreender, que vivemos num momento de grandes decisões que podem mudar a sociedade num futuro próximo.

Neste momento, percebemos que a economia brasileira carece de políticas consistentes para fortalecer o mercado interno, aumentar a demanda interna, melhorando a empregabilidade da classe trabalhadora, garantindo educação de qualidade para fortalecer os espaços mais dinâmicos numa economia em transformação.

Nestes últimos anos, os governos se preocuparam em reduzir investimentos públicos, piorando as condições de trabalho dos trabalhadores, reduzindo benefícios para todos os setores econômicos, fragilizando as organizações sindicais e diminuindo os gastos públicos em saúde e educação, acreditando que esse era o caminho correto para aumentar os investimentos da economia, alavancando a renda total do sistema econômico, o resultado destas políticas foram exitosas para os donos do poder econômico e financeiro, os indivíduos que vivem do rentismo e do parasitismo do Estado e, em contrapartida, os setores trabalhadores estão digladiando para a sobrevivência cotidiano, com salário aviltantes e cargas de trabalho elevadas, transporte precário, saúde pública em forte degradação e educação de péssima qualidade, neste cenário, encontramos indivíduos defendem a possiblidade de ascensão social, os méritos da meritocracia e a defesa incondicional do empreendedorismo como forma de revolução social.

Vivemos momentos de reconstrução nacional, precisamos reconstruir nossa estrutura industrial, não aquela indústria do século XX, mas a indústria do século XXI, a chamada Indústria 4.0 ou a Quarta Revolução Industrial, incrementando os investimentos maciços em educação de qualidade, fortalecimento o Sistema Único de Saúde (SUS), investindo em ciência e tecnologia, dessa forma, começamos a repensar a sociedade nacional nos próximos anos e deixando de lado picuinhas desnecessárias, conflitos degradantes, corporativismo ultrapassados e interesses individuais, tudo isso está contribuindo ativamente para que a economia brasileira vem se degradando todos os anos, saindo da sexta para a décima segunda posição no cenário econômico mundial.

Precisamos compreender que o país empobreceu na última década, o salário da classe trabalhadora vem se degradando rapidamente, o desemprego vem aumentando a passos largos, a educação vem perdendo a atratividade para os estudantes e os professores perderam a capacidade de estimular o brilho do conhecimento, isso acontece porque as cargas de trabalho são elevadas e seus salários estão em constante degradação, sem educação um país não consegue pintar uma perspectiva de futuro digna e decente para seus concidadãos e acabam perpetuando essa situação de desintegração social, de ressentimentos elevados e ódios generalizados cotidianos.

As teorias econômicas dominantes deveriam retomar as visões da economia como a ciência da escassez, retomando políticas que incrementem a renda da classe trabalhadora, melhorando os salários e renda agregados, dinamizando as políticas públicas para redistribuir a renda, tributando setores que pouco pagam impostos, desta forma, todos os setores sentirão impactados imediatamente, alavancando o consumo, melhorando a renda dos indivíduos, impulsionando a produção, melhorando o setor de serviços, movimentando os setores econômicos e produtivos e angariando mais recursos para os governos nacionais e financiando as políticas públicas, que são imprescindíveis para melhorar as condições sociais.

As nações que se desenvolveram investiram fortemente em sua população, foram ousados, priorizaram mercado interno e como diz Barbosa Sobrinho “capital se faz em casa”.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista Economia do Setor Público, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Novos horizontes econômicos

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Vivemos numa sociedade que se altera rapidamente, exigindo dos setores econômicos e produtivos uma constante reinvenção, obrigando-os a compreenderem as transformações em curso, adotando políticas efetivas para se posicionar rapidamente, buscando se antecipar às movimentações das organizações, interpretando todos os passos dos concorrentes e compreendendo os anseios dos consumidores, construindo estratégias dos governos e, ao mesmo tempo, buscando compreender que vivemos numa sociedade centrada na competição, na busca frenética do lucro e da acumulação.

Neste cenário, percebemos novas atuações dos governos nacionais, motivados pela perda de espaço do pensamento neoliberal, embora dominante, que vem perdendo força e dinamismo, exigindo que as sociedades construam novas estratégias e novas formas de planejamento. A perda de poder do pensamento neoliberal está diretamente ligada a crise Imobiliária dos Estados Unidos de 2007/2008 e seus impactos na Europa, além do crescimento econômico chinês e de algumas nações asiáticas e, mais recentemente, da pandemia do coronavírus que vitimou mais de 6 milhões de pessoas na sociedade internacional, tudo isso, está motivando novos horizontes para o pensamento econômico internacional.

Neste cenário, percebemos que os discursos econômicos estão sendo reinterpretados nas economias desenvolvidas, a defesa enfática da abertura econômica, das privatizações, das desregulamentações e a diminuição das intervenções dos governos nacionais estão passando por grandes mudanças, com impactos sobre todas as economias, gerando incertezas e instabilidades crescentes.

Depois de uma defesa pseudoliberal, que pregava a abertura econômica e a diminuição do papel dos Estados Nacionais nas questões econômicas e produtivas, as nações desenvolvidas ocidentais passaram a rever seus conceitos. Atualmente, estas nações estão ensaiando um novo modelo baseado nas políticas públicas centradas em seus governos nacionais, com incremento dos subsídios para os setores produtivos, além de políticas fortemente intervencionistas para defender suas organizações, punindo concorrentes e adotando políticas diferentes das defendidas anteriormente, mostrando o crescimento da flexibilidade ou do pragmatismo quando os assuntos eram os interesses nacionais de seus grandes conglomerados.

Nos anos 1990, estas nações desenvolvidas defendiam políticas neoliberais, rechaçando as intervenções governamentais, vistas como atrasadas e marcadas por fortes traços de corrupção e de ineficiência, esquecendo que em momentos anteriores, seu desenvolvimento foi muito estimulado por políticas industriais lideradas por seus Estados Nacionais. Neste período, os defensores destas políticas adotavam aquilo que o economista coreano, radicado na Inglaterra, Ha-joon Chang chamou de chutando a escada.

Neste momento, está surgindo novos horizontes econômicos na sociedade internacional, os governos nacionais estão ganhando, novamente, novos espaços nas discussões econômicas teóricas internacionais, os subsídios estão sendo retomados em todas as regiões, as políticas intervencionistas estão sendo recriadas e repensadas, levando a retomada de políticas industriais reconstruídas objetivando a reconstrução dos setores industriais, reduzindo as dependências de outras nações, alavancando as exportações, diminuindo as importações e aumentando a soberania nacional.

Nesta nova etapa, as nações estão envoltas em grandes conflitos econômicos e produtivos, a concorrência crescente com as nações asiáticas está levando os países ocidentais a injetarem trilhões de dólares para impulsionar setores estratégicos para a economia do século XXI, protegendo seus conglomerados, prometendo subsídios para a atração de novas empresas e setores industriais, exigindo uma forte capacidade de compreensão dos rumos que a sociedade internacional está caminhando para as próximas décadas, evitando investimentos em setores cujos retornos são limitados e, em contrapartida, investindo em setores cujos potenciais são elevados e seus retornos são gigantescos para a sociedade.

Neste cenário, precisamos buscar uma estratégia para desenvolver nossas potencialidades, evitando conselhos daqueles que almejam nossas riquezas e contribuírem para nossas desditas, lucrando com nossas injustiças, nossos atrasos institucionais e nosso subdesenvolvimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 28/06/2023.

Busca pelo crescimento coloca a humanidade em uma rota suicida, diz economista-ecologista

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Francês é o novo expoente do movimento que prega decrescimento econômico para frear mudanças climáticas

FOLHA DE SÃO PAULO, 27/06/2023

FERNANDA MENA

TOULOUSE (FRANÇA) A economia virou uma arma de destruição em massa cuja violência, lenta e difusa, deve-se, não à sua existência, mas ao objetivo central que há tempos a impulsiona: um crescimento sem fim.

É o que afirma o economista e ecologista francês Timothée Parrique, 33, novo expoente de um movimento que surgiu na França nos anos 1970, que ataca a primazia do PIB e aponta para a ideia de decrescimento econômico. Para Parrique, a busca pelo crescimento econômico em regiões ricas do mundo está colocando a humanidade numa rota suicida, “um desastre que já é sentido por populações vulneráveis”, afirma à Folha.

Encampado pela geração clima, sua versão atual critica a ideia de crescimento sustentável e prega a redução do crescimento de países ricos – aqueles que mais produzem, consomem e poluem – diante de um planeja em plena turbulência climática.

Em seu livro, “Ralentir ou périr: L’économie de la décroissance” (Desacelerar ou perecer: A economia do decrescimento, em tradução livre), lançado no final do ano passado, Parrique decreta que a economia verde, na qual as potências econômicas globais investem bilhões, é uma falácia.

Segundo o economista, o chamado “crescimento verde” tem demonstrado ser incapaz de dissociar a produção e o consumo de bens e serviços de impactos ambientais importantes em um planeta já muito desgastado.

“O decrescimento descreve uma redução temporária da produção e do consumo em regiões ricas do mundo, planejada democraticamente para diminuir as pressões ambientais de forma equitativa e com o objetivo de melhorar o bem-estar”, afirma em entrevista por email.

“É como uma dieta macroeconômica para estabilizar o metabolismo das economias de alta renda em uma escala que possa ser sustentável. Isso porque, da mesma forma que o motor de um carro não pode ser maior do que o próprio carro, uma economia não pode ter um tamanho maior do que seus ecossistemas de apoio”, diz.

O destino dessa dieta, afirma, é o chamado pós-crescimento, uma espécie de economia do bem-estar global.

O livro é baseado na tese de doutorado de Parrique, “A economia política do decrescimento”, que teve dezenas de milhares de downloads desde que foi publicada, em 2019, em uma plataforma acadêmica da França, e atraiu a atenção de editores.

O livro rendeu a este economista, ecologista e surfista a classificação de ingênuo, mas também de visionário, convites para palestras em gigantes da economia francesa, como a Airbus e a Saint-Gobain, e o apelido de “Fred Mercury do decrescimento” por causa do bigode que lembra o do líder da banda Queen.

Em poucos meses, o livro se esgotou e já está em segunda edição, o que reflete uma França cada vez mais impactada pelas ondas de calor, enchentes e secas que se intensificaram a partir do verão de 2022 e que ressurgem, ainda com mais força, em 2023.

Esse sentimento Parrique sintetiza em uma frase: “O colapso ecológico não é uma crise, é uma surra.”

Seu livro sugere que a humanidade tem duas opções: desacelerar o crescimento econômico ou sucumbir. Estamos nessa encruzilhada? A busca pelo crescimento econômico em regiões ricas do mundo está colocando a humanidade numa rota suicida, um desastre que já é sentido por populações vulneráveis, cujo sustento é afetado pelo colapso ecológico. A tese principal do meu livro é de que não conseguiremos tornar o crescimento verde. A escolha, portanto, é: ou o decrescimento hoje ou o colapso amanhã. Ou reservamos um tempo para planejar uma transição suave a partir de agora ou esperamos ser confrontados com ondas de calor, escassez de água, colapso da biodiversidade etc., e a série de distúrbios sociais que isso provocará.

Por que não será possível tornar o crescimento verde? É impossível produzir qualquer coisa sem energia e materiais. Essa é uma verdade física simples e contrária a muitas teorias econômicas que supõem que o progresso tecnológico pode dissociar completamente a produção das pressões ambientais. O trabalho que realizei sobre esse tópico, desde a publicação de “Decoupling debunked” [Dissociação desmascarada, em tradução livre do inglês], em 2019, é claro: os países de alta renda não conseguiram tornar seu crescimento “verde” em nenhuma definição significativa do termo.

Como assim? Para tornar o crescimento econômico realmente sustentável, seria preciso dissociar totalmente a produção e o consumo de todas as pressões ambientais –não apenas do carbono–, onde quer que elas ocorram e num ritmo suficientemente rápido para evitar o colapso ecológico, levando em conta metas baseadas em ciência. E seria preciso manter essa dissociação ao longo do tempo para evitar uma reacoplagem. Esse crescimento genuinamente verde nunca foi alcançado em nenhum lugar da Terra. E não vi nenhuma evidência convincente mostrando que poderia ser alcançado.

Como explicar então que se fale tanto em economia verde? O discurso do crescimento verde se tornou uma forma macroeconômica de greenwashing [expressão em inglês que consiste em maquiar ações e resultados para que pareçam ser mais sustentáveis]. Assim como no típico greenwashing empresarial, apontar para uma redução insignificante de um único indicador ambiental e chamá-lo de “crescimento verde” é enganoso. À medida que os ecossistemas racham em uma velocidade sem precedentes na história, estamos perdendo tempo precioso argumentando que talvez, um dia, a dissociação possa acontecer quando o sistema deveria ser radicalmente transformado.

Parte dos cortes nas emissões que estamos testemunhando atualmente pode ser explicada por uma desaceleração econômica. E isso é paradoxal: esperamos que um crescimento econômico mais rápido acelere a dissociação, embora grande parte da dissociação historicamente alcançada tenha ocorrido por causa de um crescimento mais lento. Uma coisa é certa: o crescimento do PIB dificulta a redução das emissões em comparação com um cenário de crescimento negativo ou de ausência de crescimento.

Qual é a diferença entre decrescimento e recessão? Uma recessão é uma redução no PIB, que acontece acidentalmente, muitas vezes com resultados sociais indesejáveis, como desemprego, austeridade e pobreza. O decrescimento, por outro lado, é uma redução planejada, seletiva e equitativa das atividades econômicas. Associar o decrescimento a uma recessão só porque os dois envolvem uma redução do PIB é absurdo. Seria como argumentar que uma amputação e uma dieta são a mesma coisa só porque ambas levam à perda de peso.

Além disso, o próprio conceito de decrescimento surgiu para criticar uma visão economicista do mundo que vê tudo em termos de indicadores monetários. O decrescimento não é a antítese do crescimento, mas sua nêmesis –um conceito cuja razão de ser é destronar um modo de pensar que vê tudo como aumento ou queda no PIB.

Qual é o problema de medir desenvolvimento a partir do PIB? A maior ameaça de uma economia obcecada pelo crescimento é que ela acaba sacrificando a sustentabilidade ecológica e a saúde social no altar do Produto Interno Bruto, um indicador abstrato fundamentalmente mal adaptado para medir a prosperidade. Precisamos reformular completamente o funcionamento das economias já ricas para que elas produzam e consumam menos, que é o decrescimento. Ao mesmo tempo, precisamos fazer a transição para um sistema em que essas economias possam prosperar com níveis muito mais baixos de uso de recursos, que é o pós-crescimento.

O objetivo da economia verde é um bom exemplo dessa obsessão pelo PIB. Por que estamos nos concentrando tanto em tornar o crescimento econômico mais verde? Estamos prospectando na direção errada. Em vez de tentarmos obstinadamente dissociar o PIB dos gases de efeito estufa, deveríamos tentar dissociar o bem-estar das pressões ambientais. Em países de alta renda, onde o PIB per capita perdeu toda a correlação com a qualidade de vida, parece tolice desperdiçar recursos naturais preciosos para produzir mais, enquanto estratégias alternativas baseadas no compartilhamento seriam não apenas mais sustentáveis mas também mais eficazes para elevar os padrões de vida.

Quais são as métricas que deveriam substituir o PIB? Existem muitos indicadores alternativos e qualquer um deles seria melhor do que o PIB. Um exemplo entre muitos: o Wellbeing Budgets, da Nova Zelândia. Trata-se de um painel de 65 indicadores de atividade econômica, bem-estar social e sustentabilidade ecológica, divididos em duas categorias amplas de bem-estar presente e futuro. O desenvolvimento é um processo complexo que não deve ser simplificado em um único número monetário. A expectativa de vida deve ser medida em anos, a disponibilidade de alimentos em calorias, a eletricidade em quilowatts, o número de ciclovias em quilômetros, o aquecimento global em graus, a água doce em litros, a biodiversidade em número de espécies etc.

Você escreveu que “a economia se tornou uma arma de destruição em massa”. Não é exagero? Hoje, para “salvar a economia”, estamos sacrificando o planeta. Estamos preocupados com o impacto que o aquecimento global terá sobre o PIB, mas o que deveria nos preocupar é a degradação da própria habitabilidade do mundo vivo.

Vou ser ainda mais provocativo: o crescimento econômico é um fenômeno imperial. Parte do que está sendo registrado nos países de alta renda como um aumento aparentemente benigno do PIB é, na verdade, uma apropriação injusta e insustentável do tempo de trabalho e dos recursos naturais de todo o planeta.

[O geógrafo britânico] David Harvey chama isso de “acumulação por desapropriação” para nos lembrar que o que rotulamos como “crescimento” é mais parecido com uma reorganização de ativos já existentes. Não sejamos tímidos e falemos até mesmo de “acumulação por contaminação” para reconhecer o rastro tóxico que o crescimento econômico deixa para trás. A situação é a seguinte: a expansão macroeconômica das regiões ricas do mundo age como um vácuo gigante que trata o Sul global e a natureza como um bufê do tipo “coma o quanto puder”.

É justo exigir decrescimento também de países em desenvolvimento? O conceito de “décroissance conviviale” (decrescimento convivial) surgiu na França em 2002 como uma estratégia para a justiça global. A promoção do decrescimento em um país como a França não foi uma luta interesseira pela sobrevivência, mas sim uma tentativa de libertar o Sul global do “modo de vida imperial” das nações ricas e de consumo excessivo.

Sabemos há muito tempo que a maior parte das pressões ambientais é exercida pelos mais ricos. Por exemplo, os 10% mais ricos do mundo geram cerca de metade de todas as emissões do planeta. E sabemos que o impacto do estilo de vida nas regiões ricas do mundo priva os países pobres de seus recursos naturais. É por isso que o decrescimento tem como alvo as nações de alta renda; não se trata de uma receita universal, mas sim de uma dieta macroeconômica para essas poucas nações e classes que vivem acima de seus meios sustentáveis.

A América do Norte e a Europa são responsáveis por metade de todas as emissões desde 1850, o que torna o orçamento de carbono restante bastante pequeno. Preferimos queimar nossos últimos barris de petróleo para atualizar os carros ocidentais para SUVs ou para construir painéis solares, tubulações de água e hospitais no Sul global? Essa lógica se aplica a todos os recursos naturais.

Os consumidores ricos comem mais bifes, pegam mais aviões, constroem mais casas etc., mas à custa de menos biodiversidade, água e soberania alimentar em países que precisam desmatar para fornecer matéria-prima barata ao Norte global, além de menos estabilidade climática e menos minerais disponíveis para construir infraestrutura de energia renovável. Em um mundo que ultrapassou seus limites ecológicos, muito em algum lugar significa sistematicamente insuficiência em outro.

Raio-X
Economista e ecologista, Timothée Parrique, 33, é pesquisador na Pesquisador na Universidade de Lund, na Suécia, e autor de “Ralentir ou périr: L’économie de la décroissance” (ed. Seuil), que trata do decrescimento econômico dos países ricos como forma de frear o colapso ecológico do planeta. Ele é autor também do estudo “Decoupling debunked” (Dissociação desmascarada, em tradução livre), que desconstrói a ideia de crescimento sustentável.

Junho de 2013: rio revolto e incompreendido, por Roberto Andres.

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Novo livro analisa os gigantescos protestos que abalaram o país. Ao catalisarem insatisfações para além do preço da tarefa, tornaram-se expressão da luta por democracia real. E produziram fissuras que ainda hoje marcam a política nacional

Roberto Andres – Outras Palavras – 19/06/2023

“Fechem os olhos e imaginem. Imaginem uma cidade como São Paulo, sem tarifa, sem catraca, cada um acessando o transporte livremente. Imaginem a mudança na vida das pessoas. Quantas coisas seriam feitas, o impacto na economia. Muda tudo. A tarifa zero muda tudo.” Umas vinte pessoas em uma sala improvisada no Centro Cultural São Paulo fecharam os olhos e imaginaram. Quem falava era Lúcio Gregori, um senhor de cabelos grisalhos penteados para trás, óculos grandes e camisa social abotoada até o colarinho. Era outubro de 2010.1 Em poucos dias, Dilma Rousseff seria eleita presidenta. A sinfonia que tocava no país era a do espetáculo do crescimento.

O público era pequeno, mas o palestrante não pregava para convertidos. Boa parte ali desconhecia a história que ele protagonizara duas décadas antes. Era surpreendente que uma proposição tão radical fosse tão esquecida. Em 1990, Gregori foi nomeado secretário de Transportes da cidade de São Paulo, no governo de Luiza Erundina, do PT. Tendo caído meio que por acaso na pasta e, sem muito a perder, fez uma proposta ousada à prefeita: financiar indiretamente o sistema de transporte e zerar a tarifa, assim como ocorria com os serviços de educação, saúde, iluminação pública e coleta e tratamento de lixo.

A proposta causou polêmica dentro do governo e do PT, mas acabou sendo abraçada pela prefeita. Assim, durante o ano de 1990, a sociedade paulistana debateu a sério uma proposição de acesso gratuito ao transporte público, que seria financiado pelo aumento da arrecadação do IPTU, de forma progressiva. Naquele momento, nenhuma cidade no Brasil adotava a medida. Os registros indicam que a política era oferecida em apenas seis cidades no mundo – três na França e três nos Estados Unidos, todas com menos de 100 mil habitantes, e uma delas oferecia a política somente durante o verão.

O contexto que permitiu tamanha ousadia será analisado adiante, assim como as condições que faltaram para que a proposta fosse aprovada na Câmara de Vereadores. Após o fim do governo Erundina, Lúcio Gregori saiu de cena. Foi prestar serviços técnicos para empresas e órgãos públicos, e depois se aposentou.3 Como a proposta de gratuidade dos ônibus não foi bem sucedida, ela ficaria na geladeira por um bom tempo.

Em 2010, quando o engenheiro incitava a imaginação de alguns poucos no Centro Cultural São Paulo, havia dez cidades com Tarifa Zero no Brasil. Todas pequenas, com menos de 50 mil habitantes. Em 2022, a Tarifa Zero no transporte público era realidade em 52 cidades brasileiras, atendia 2,5 milhões de pessoas e foi pauta central na eleição em que o país derrotou o autoritarismo e elegeu Lula pela terceira vez. Entre um momento e outro, ocorreram as Revoltas de Junho.

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Uma propaganda feita pelo governo Erundina a favor da Tarifa Zero marcou a memória das pessoas atuantes no período. Era um comercial, veiculado na TV, que utilizava como personagem uma criança de um ano. O argumento da peça era que, embora não se servisse do transporte, o bebê teria acesso a mais alimentos e brinquedos graças ao dinheiro que seus pais economizariam ao não pagarem a passagem. A publicidade contribuiu, junto a outros elementos da campanha, para gerar uma maioria favorável à política na cidade.

O bebê da propaganda poderia ter sido Mayara Vivian. Sua família possuía o perfil social dos que seriam beneficiados pela gratuidade do transporte. Moradores da Zona Leste da cidade, atuavam em profissões de remuneração baixa ou média, e se locomoviam por transporte público. Mayara ia para a escola de ônibus, e foi a primeira da família a chegar à universidade. Em 1990, enquanto a prefeitura tentava emplacar a Tarifa Zero, ela tinha um ano de idade.

Quinze anos depois, ela passou um sábado de verão junto a colegas do movimento estudantil sob uma tenda em um parque de Porto Alegre. Sentados em cadeiras de plástico e enfrentando o calor intenso por mais de seis horas de plenária, uma centena de jovens presentes fundou o Movimento Passe Livre, o MPL. A maior parte deles nunca tinha ouvido falar da história de proposição da Tarifa Zero em São Paulo. Naquele momento, a pauta do grupo era o passe livre estudantil.

Isso foi em 29 de janeiro de 2005. A plenária fez parte do 5º Fórum Social Mundial, que retornava à capital gaúcha depois de uma edição em Mumbai, na Índia. O evento estava em seu período de ouro, e contou com a presença de figuras expressivas da esquerda mundial, como Eduardo Galeano, José Saramago, Lula e Hugo Chávez. A tenda onde ocorreu a plenária de fundação do MPL foi chamada de “caracol intergaláctica”, e abrigou uma programação alternativa, de corte autonomista. Os jovens ali reunidos eram uma parte marginal do festejado evento de esquerda. Seria risível se alguém dissesse que o movimento fundado por eles iria abalar o Brasil daí a oito anos, e contribuir para encerrar o ciclo de hegemonia dos governos petistas.

O MPL nascia das revoltas contra aumentos tarifários ocorridas nos anos anteriores. Seus protagonistas eram estudantes, alguns ligados à esquerda partidária, outros ao autonomismo. A Revolta do Buzu, em Salvador, em 2003, inaugurou uma nova leva de rebeliões pelo transporte, depois de um período de calmaria. A Revolta da Catraca, ocorrida em Florianópolis em 2004, deu um passo adiante: conquistou a redução da tarifa depois de vários dias de protestos. Embalados pela vitória, os militantes da capital catarinense lideraram a articulação de um movimento nacional pelo transporte, que resultou no encontro de Porto Alegre. Mayara Vivian e seus colegas de São Paulo, que haviam fundado um movimento pelo passe livre no ano anterior, viajaram quase 24 horas de ônibus para chegar à capital gaúcha.

O ano de 2005 assistiu à emergência de tendências conflitantes, que colidiriam em pouco tempo. De um lado, uma juventude que ampliava sua organização na luta pelo transporte e pelo direito à cidade9; de outro, o abandono dessa agenda pelo governo federal. Em junho daquele ano veio à tona o escândalo chamado de Mensalão, um esquema de compra de votos de parlamentares pelo Executivo federal. Foi o primeiro caso vultoso de corrupção do governo Lula, e causou grande impacto.

Para garantir sustentação política no Congresso, Lula entregou o comando do Ministério das Cidades para o PP, partido derivado de setores da Arena, legenda de sustentação do regime militar. As lideranças do PP incluíam o ex-governador de São Paulo, Paulo Maluf, e o então presidente da Câmara, Severino Cavalcanti. A mudança foi um cavalo de pau. Criado no primeiro dia do governo petista, o Ministério das Cidades prometia enfrentar a aguda crise urbana brasileira. Seu primeiro ministro foi Olívio Dutra, ex-prefeito de Porto Alegre e ex-governador do Rio Grande do Sul, que montou uma equipe com figuras de relevo no debate urbano.

A primeira gestão do Ministério das Cidades estruturou processos participativos e elaborou diretrizes de políticas que, se implementadas, poderiam remediar os graves problemas de mobilidade urbana, habitação, saneamento e precariedade dos bairros. Mas pouco disso saiu do papel. Após a substituição no comando da pasta, as proposições mais transformadoras foram dando lugar a uma agenda conservadora, em muitos aspectos próxima àquela implantada durante a ditadura.

Isso ocorreu junto a uma guinada na política econômica do governo. O primeiro governo Lula fora marcado pela austeridade e contenção de gastos. A partir de 2007, a toada foi de expansão fiscal e crescimento dos investimentos públicos. Quando a torneira do governo se abriu, já prevalecia no Ministério das Cidades uma visão pautada pelos interesses de grandes empreiteiras e outros atores do andar de cima. As diretrizes progressistas estabelecidas pelos processos participativos foram deixadas de lado.

É notável que a fundação do MPL tenha se dado na mesma Porto Alegre em que Olívio Dutra desenvolvera algumas das políticas mais exitosas das gestões municipais petistas. Em 2005, a tentativa de replicação nacional dessas políticas foi sepultada. A crise das cidades e do transporte urbano se acirrariam nos anos seguintes. As respostas do governo seriam tímidas ou andariam na contramão. Enquanto isso, os movimentos pelo transporte aumentariam seu poder de mobilização. O choque não tardaria a ocorrer.

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Um dos principais argumentos deste livro é que as Revoltas de 2013 ocorreram pela colisão de tendências conflitantes, que remetem ao período da redemocratização e ganharam força durante os governos petistas. Essas contendas extravasam as disputas entre capital e trabalho. Talvez sejam melhor compreendidas na chave da disputa entre formas de vida, que dizem respeito ao conjunto de práticas que moldam o cotidiano, e que são objeto de conflitos quando as sociedades se transformam.10 As formas de vida se estruturam pela organização territorial.

Por isso, a compreensão de Junho de 2013 demanda um olhar para a urbanização sui generis brasileira e suas implicações na vida cotidiana, na manutenção das desigualdades, no tecido social e na política. Entre 1940 e 1980, o Brasil teve uma das maiores taxas de urbanização de que se tem notícia no mundo. O número de moradores nas cidades saltou de treze milhões para mais de 80 milhões de pessoas. Esse processo se deu com atuação seletiva do Estado, cujos investimentos nas áreas centrais destoaram em muito das periferias, marcadas pela precariedade, pela carência de serviços públicos e de oportunidades de emprego

Para os moradores dos bairros populares, estabeleceu-se uma dependência exacerbada do transporte coletivo, ao mesmo tempo em que este nunca foi estruturado como um serviço público essencial. Como resultado, o transporte tornou-se um elemento de martírio – atrasos, veículos lotados, longo tempo das viagens. Aqueles que não tinha condições de pagar as tarifas ou de viajar por longas horas tornavam-se “prisioneiros do espaço local”, como formulou o geógrafo Milton Santos.11 De tempos em tempos, a insatisfação com esse estado de coisas explodia em revolta súbita e violenta, que veremos ao longo do livro.

O automóvel teve seu papel na dinâmica, ao oferecer às classes mais altas a possibilidade de viajar mais rápido e longe dos pobres. Em uma sociedade segregada como a brasileira, o transporte público nunca foi um problema dos ricos. Mas o crescimento das frotas de veículos impacta os ônibus, devido ao aumento dos congestionamentos. Ou seja, quanto mais gente migra para os carros, pior fica a condição dos que não migram. Os períodos históricos de incremento das frotas foram sempre seguidos de crise do transporte público. Os governos petistas, que produziram o maior boom de carros da história do país, e não levaram adiante políticas consistentes para o transporte público, armaram uma bomba que não tardaria a explodir.

O legado deixado pela ditadura civil-militar no Brasil foi muito além da cultura autoritária que ainda hoje nos assola. Ou, dizendo de outro modo, essa cultura autoritária, patrimonial e elitista foi estruturada junto a uma forma de organização territorial, política e produtiva que tornou-se o solo da vida cotidiana. A forma das cidades, a alta desigualdade e segregação, a forma de operação do transporte público, os privilégios concedidos aos automóveis, a formação de um empresariado nacional próximo ao poder político que se beneficiava do arranjo – empreiteiras, mercado
imobiliário, montadoras de carros, empresários do transporte. Tudo isso constituiu a base infraestrutural que informa as possibilidades das formas de vida, da economia e da política.

Em um contexto de abertura e redemocratização, a manutenção da ordem das coisas se deu por meio do fechamento em enclaves. Aos muros dos condomínios e shopping centers, que se multiplicaram desde os anos 1980, minando a convivência nos espaços públicos, somaram-se outros. O sistema político, operando uma transição morna para a democracia, fechou-se em condomínios de poder. Os empresários do transporte aumentaram sua influência sobre a política e garantiram suas receitas mesmo em contexto de piora dos serviços. O mesmo se deu em outros setores, como saúde, educação e segurança, em que a elite buscou manter opções privatistas e nichos de privilégio.

Esse acúmulo de muramentos conviveu com uma tendência oposta, de abertura e modernização. Esta se expressou já na grande pulsação da sociedade nos movimentos das Diretas Já e durante a Assembleia Nacional Constituinte. Um conjunto expressivo de direitos foi colocado na arena pública naquele momento, e pautou o texto constitucional. Durante os governos petistas, essa força progressista ganhou escala e passou a abarcar outros temas, ligados ao espírito do tempo e a uma sociedade que se transformava rapidamente.

O lulismo acelerou as duas tendências, contribuindo para que a colisão fosse mais forte.

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As Revoltas de 2013 resultam de linhas históricas distintas, que se juntaram e formaram um híbrido novo. Trata-se da conjunção de ciclos de luta de longo, médio e curto prazo. O primeiro é a tradição de rebeliões pelo transporte, que remete ao período imperial e atravessou o século 20, sempre intercaladas por períodos de mansidão. O segundo é o conjunto de manifestações políticas massivas ocorridas desde a redemocratização, que teve as Diretas Já em 1984 e o Fora Collor em 1992. O terceiro são as mobilizações pelo direito à cidade, por questões ambientais e pela chamada agenda de costumes que emergiram por volta de 2010. Por fim, há ainda os protestos contra a corrupção que ganharam força a partir de 2011.

Essas vertentes desembocaram simultaneamente em Junho de 2013, de maneira inesperada e rara. Não é todo dia que condições históricas que fazem despontar manifestações tão variadas coincidem no tempo. A confluência de afluentes tão díspares formou o rio revolto e incompreendido de Junho – até hoje um enigma, que este livro busca ajudar a decifrar.

Quando comparadas a cada uma de suas antecessoras nas diferentes linhas históricas, as Revoltas de Junho apresentam particularidades, resultantes da hibridização. O país conviveu desde o período imperial com rebeliões populares contra aumentos tarifários ou más condições do transporte público. Como veremos, esses motins ficaram majoritariamente restritos a setores populares de baixa organização, com semelhanças com o que o historiador Eric Hobsbawm caracterizou como turbas urbanas.12 No ciclo que culminou em 2013, as revoltas pelo transporte ganharam a adesão de setores de maior politização e capacidade de disputa. No centro disso esteve a atuação do MPL e outros movimentos do período.

Os dois primeiros governos presididos por Lula ocorreram junto a – e contribuíram para – uma transformação profunda da sociedade brasileira. A redução da pobreza, o aumento do acesso à educação e à cultura, a difusão da internet e a maior mobilidade internacional produziram uma nova geração com visões de mundo distintas da anterior. As aspirações deram um salto de patamar. Tudo isso ocorreu em paralelo ao fortalecimento de tendências conservadoras, de manutenção do status quo na política, na economia e nos territórios.

As colisões se iniciaram já por volta de 2010. Emergiram mobilizações pelo uso compartilhado dos espaços públicos urbanos, pela qualidade ambiental nas cidades, contra intervenções decididas de cima para baixo e seus impactos na vida social, como as remoções de moradores pobres por obras ligadas à realização da Copa do Mundo no Brasil. Esses movimentos atingiram escalas variadas, e formaram um caldo que fervilhou em Junho, trazendo uma miríade de perspectivas sobre a vida coletiva para as ruas.

Embora hoje isso pareça corriqueiro, o fenômeno foi novo. Marcado historicamente por um déficit de cidadania, o Brasil assistiu pela primeira vez à expressão pública de um conjunto de demandas sobre a vida compartilhada nas cidades. Tudo isso produziu fissuras na hegemonia vigente, apontando, já nos anos que antecederam 2013, que o modelo de desenvolvimento estava desencaixado das aspirações de diversos setores. Também nessa linha, emergiram mobilizações pelos direitos das mulheres, contra a lgbtfobia e pela liberdade no uso de drogas; além de movimentos contra a corrupção, em contraposição à arraigada blindagem do sistema político brasileiro, que se mantinha firme e forte enquanto a sociedade se modernizava.

A conjunção desses temas fez com que Junho representasse uma importante diferença em relação aos outros dois grandes ciclos de manifestações anteriores. As Diretas Já, em 1984, e o Fora Collor, em 1992, embora tenham expressado certa pluralidade de demandas, foram articulados em torno de pautas objetivas: o direito às eleições abertas para presidente e a deposição de um presidente eleito. Em suma, a primeira delas procurava estabelecer regras justas para o jogo democrático, e, a segunda, que essas regras fossem cumpridas em acordo com a vontade popular.

Em 2013, o sentido das manifestações foi além do jogo democrático. Tratou-se de denunciar o déficit e reivindicar o aprimoramento da vida democrática, o que inclui o sistema político, mas também elementos da vida urbana, das condições ambientais, da agenda de costumes e do acesso a serviços públicos, centrais para uma cidadania plena. Esses elementos compõem aquilo que a filósofa Nancy Fraser chamou de lutas de fronteira14, que ocorrem nas bordas da economia capitalista com suas condições de fundo.

A diversidade de pautas contribuiu para que as manifestações de 2013 ficassem sem nome de batismo. Essa é uma diferença marcante em relação aos eventos anteriores. Ninguém se refere às Diretas Já ou ao Fora Collor pelo mês em que explodiram – abril de 1984 e agosto de 1992. Em 2013, não houve uma pauta guarda-chuva que nomeasse o ciclo. A “Revolta dos Centavos” não pegou, já que a pauta se diversificou justamente quando os atos cresceram. Por falta de um nome descritivo, “Junho de 2013” virou nome próprio, assim como seu antecedente mais conhecido – o “Maio de 1968” francês.

O nome próprio que não apresenta um sentido político sustenta o caráter enigmático de Junho, que permaneceu em disputa nos anos seguintes. À direita e à esquerda, emergiram leituras distintas sobre o fenômeno, que veremos ao longo do livro. Aqui, importa notar que as revoltas de 2013 sacudiram profundamente as estruturas da política e da sociedade brasileira. Trata-se daquele tipo de evento histórico que divide o mundo entre o antes e o depois. Como as infraestruturas do mundo físico não se alteram de um dia para o outro, o que se transforma rapidamente são as mentalidades, a percepção social sobre a realidade, e as correlações de força da política.

Depois de 2013, o Brasil passou por um dos períodos mais conturbados de sua história. Visto hoje, o 7 a 1 sofrido na partida contra a Alemanha na Copa de 2014 parece um presságio do que viria. Uma eleição marcada pela alta carga agonística, estelionato eleitoral, crise econômica, uma nova direita nas ruas, Operação Lava Jato, impeachment sem crime de responsabilidade, um presidente sem votos e impopular. Tudo isso desembocou na eleição para presidente, em 2018, de um ex-capitão do Exército saudosista da ditadura que, embora fosse deputado havia quase três décadas, se apresentava como alguém de fora da política.

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Em dezembro de 2019, Lula saíra da prisão havia um mês. Após 580 dias recluso por uma condenação de viés político, o ex-presidente retomava as atividades públicas. Em um entrevista à TeleSur, ele afirmou que “as manifestações de 2013 foram feitas já fazendo parte do golpe contra o PT. […] Elas não tinham reivindicações específicas.”15 Não era a primeira vez que Lula trazia essa perspectiva. Em 2017, ele dissera que “nos precipitamos ao achar que 2013 foi uma coisa democrática. Que o povo foi para a rua porque estava muito preocupado com aquela coisa do transporte coletivo”.

Esse posicionamento diferia daquele feito à época dos protestos, quando o ex-presidente saudou a vitalidade das ruas e afirmou que, “de protesto em protesto a gente vai consertando o telhado”.17 A mudança de posição veio junto da derrocada do PT, alvejado pela Operação Lava Jato e pela crise econômica. Lula, claro, não foi o único na esquerda que voltou as cargas contra Junho. Choveram comentários nessa linha, que questionavam as razões das manifestações e traçavam uma linha direta entre o resultado delas e o golpe parlamentar que derrubou Dilma Rousseff, em 2016.

As inconsistências dessa perspectiva são significativas. As razões das Revoltas de 2013 dizem respeito ao choque entre tendências conflitantes, que foram notadas também por intelectuais dos círculos petistas.18 Elas fizeram parte de um ciclo internacional, que ocorreu em diversos países. A ideia de que o sentido majoritário das manifestações teria sido apropriado pela direita encontra pouco lastro nos dados, fatos e registros, conforme veremos. E o estabelecimento de causalidade direta entre um acontecimento ocorrido em 2013 e outro em 2016, sem analisar o que se passou no meio, carece de sentido.

Só foi possível que uma abordagem desse tipo ganhasse espaço pelo caráter difuso das Revoltas de 2013, que não se organizaram em torno de um objetivo central. Ou seja, foi justamente por ser uma espécie de esfinge que Junho se tornou um bode expiatório. No conhecido mito grego, um ser alado com corpo de leão e rosto de mulher se colocava à entrada da cidade de Tebas, e detinha os passantes com a pergunta: qual é o ser que pela manhã tem quatro pés, ao meio dia tem dois, e à noite tem três? Decifra-me ou te devoro, dizia a esfinge, antes de aniquilar os que não sabiam respondê-la. No rito do povo hebreu, dois bodes eram levados a um templo. Um deles era sacrificado enquanto outro recebia simbolicamente as culpas da comunidade – e depois era abandonado no deserto.

No Brasil, Junho seguiu um fenômeno indecifrado. E muitos buscaram expiar a culpa dos descaminhos do país apontando que “tudo isso começou por vinte centavos”. O procedimento, que ganhou a adesão de nomes relevantes da esquerda brasileira, jogava parte das lutas sociais no deserto, onde deveriam carregar a culpa dos erros coletivos.

Talvez o principal problema desse raciocínio seja que as Revoltas de Junho, assim como outros ciclos similares, não são o ponto de partida de um processo, mas pontos de inflexão resultantes de acontecimentos anteriores. Não foram inventados por manifestantes voluntaristas, mas são resultado das dinâmicas social e política. Não são, tampouco, a panaceia dos problemas nacionais. Se os anseios colocados nas ruas não tiverem canalização política e institucional, eles não serão resolvidos – e o impasse pode abrir espaço para que alternativas distorcidas capturem o sentimento de mudança frustrado.

Esse tipo de narrativa que se disseminou no Brasil não teve paralelo em outros países. Nos Estados Unidos, não se acusou o Occupy Wall Street de ser responsável pela ascensão de Donald Trump. Na Espanha, não se acusou o 15M de chocar o ovo da serpente que levou ao crescimento da extrema direita. No Chile, os estallidos sociais de 2011 e 2019 não foram colocados como gênese do fortalecimento da extrema-direita – ao contrário, a eleição de Gabriel Boric para a presidência, em 2022, um líder da revolta de 2011, mostrou justamente que o fenômeno fez surgir uma nova esquerda no país.

O contexto que levou à ruptura da esquerda brasileira em torno de Junho de 2013 é complexo, e será analisado ao longo do livro. Não há bandidos ou mocinhos na história – o que há são escolhas, baseadas em apostas mais ou menos acertadas, cuja conjunção levou aos resultados que conhecemos.

Custos do conflito

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Vivemos momentos de grandes conflitos na sociedade internacional, na história as nações entram em confrontos constantemente, gerando prejuízos incalculáveis, com mortes de milhões de pessoas, destruições da infraestrutura dos países, gerando desesperanças crescentes, degradações emocionais e devastações espirituais. Neste histórico de fortes destruições, como estamos visualizando na contemporaneidade, quais os motivos que levam as nações a conflitos militares, sangrentos e demorados, sabendo que as guerras geram devastações incalculáveis?

Desde fevereiro do ano passado, a sociedade mundial está envolta em mais um conflito militar, com fortes devastações, mortes e desesperanças, levando a humanidade a se perguntarem se somos seres racionais como acreditam os teóricos da teoria econômica dominante? Neste cenário, a racionalidade dos seres humanos defendida pela teoria econômica me parece incapaz de compreender as realidades da humanidade, seus valores e seus comportamentos.

A guerra em curso entre russos e ucranianos está gerando graves constrangimentos para a sociedade internacional, matando milhares de pessoas, destruindo suas casas, devastando suas cidades, degradando as infraestruturas econômicas e produtivas que levaram décadas para ser levantadas, jogando milhões de pessoas para a indignidade, para a pobreza e para a desesperança. A guerra está gerando problemas para todas as nações do globo, enganam aqueles que acreditam que o problema deste conflito é regional e que estamos distantes deste conflito, essa escalada militar está impactando para toda a comunidade internacional, afetando os sonhos dos indivíduos da comunidade mundial e seus impactos são duradouros e devastadores, afetando confiança, credibilidade e valores humanos.

A guerra entre Rússia e Ucrânia está gerando graves constrangimentos para a economia internacional, isso acontece porque vivemos numa sociedade altamente integrada e interdependente, o desenvolvimento tecnológico aumentou a integração entre as nações, as novas tecnologias da comunicação estão alterando os conceitos de espaço e de tempo, desta forma, o conflito em curso está impactando rapidamente para todas as regiões do mundo, todos os grupos sociais e políticos estão sentindo, de uma forma ou de outra, os impactos negativos gerados pelas atividades militares.

Ambos os atores do conflito são produtores de produtos primários, produtores de alimentos, combustíveis, fertilizantes, gás natural, dentre outros, que com a guerra inflacionou essas mercadorias, afetando fortemente as nações europeias, inicialmente e, posteriormente impactando para outras regiões, obrigando seus governos a aumentarem as taxas de juros, com fortes impactos sobre os investimentos, reduzindo a geração de emprego e degradando salários e renda dos trabalhadores, levando os setores produtivos a reduzirem suas vendas e amargando fortes prejuízos, impactando sobre corporações, trabalhadores e governos nacionais.

Neste cenário, os desajustes econômicos estão se espalhando para todas as regiões, levando muitos governos a aumentarem seus subsídios para evitar um colapso econômico, aumentando políticas protecionistas para proteger seus empregos e seus setores econômicos e produtivos, gerando conflitos entre as nações, todos buscando a defesa de seus interesses imediatos, gerando confrontos diplomáticos e reacendendo rancores que podem culminar em conflitos posteriores.

Neste ambiente de conflitos e hostilidades crescentes, poucas nações da sociedade internacional conseguem defender abertamente o encerramento do conflito militar, estimulando conversas entre os contendores, evitando maiores destruições e uma busca de um instrumento rápido e eficiente para a reconstrução econômica e a superação dos conflitos anteriores que culminaram no conflito.

Percebemos, setores econômicos estimulando e ganhando com o conflito, indiferentes das mortes, das dores e das destruições, empresas angariando somas estrondosas na venda de mísseis e radares militares, governos hegemônicos repassando equipamentos militares para aprofundar o conflito. Espero, fortemente, que não esqueçamos o poderia nuclear e destrutivo de um dos contendores.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Novo consenso de Washington, por Michael Roberts.

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Michael Roberts – A Terra é Redonda – 18/06/2023

O Novo Consenso de Washington visa sustentar a hegemonia do capital dos EUA e de seus aliados juniores

No mês de março deste ano, o conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Jake Sullivan, delineou a política econômica internacional do governo americano. Fez um discurso fundamental porque, como graduado funcionário, nele explicou em que consiste o chamado de “Novo Consenso de Washington” sobre a política externa dos EUA.

O Consenso de Washington original constituía-se de um conjunto de dez prescrições de política econômica consideradas como um pacote de reformas “padrão” destinado aos países em desenvolvimento em crise de crescimento. Ele seria fomentado por instituições sediadas em Washington, D.C., como o FMI, o Banco Mundial e o Tesouro dos EUA. O termo foi usado pela primeira vez, em 1989, pelo economista inglês John Williamson.

As prescrições abrangeram políticas de promoção do livre mercado, como a “liberalização” comercial e financeira e a privatização de ativos estatais. Recomendavam também políticas monetárias e de gasto público destinadas a minimizar os déficits orçamentários e a despesa pública. Era o modelo de política neoclássico aplicado ao mundo e imposto aos países pobres pelo imperialismo norte-americano e suas instituições aliadas. A chave era o “livre comércio” sem tarifas e outras barreiras, o livre fluxo de capitais e a regulação mínima – um modelo que beneficiava especificamente a posição hegemônica dos EUA.

Mas as coisas mudaram desde a década de 1990 – em particular, com a ascensão da China como uma potência econômica rival globalmente, mas também diante do fracasso do modelo econômico internacional neoliberal em gerar crescimento econômico e reduzir a desigualdade entre as nações e dentro das nações.

Particularmente desde o fim da Grande Recessão, em 2009, e no correr da Longa Depressão dos anos 2010 em diante, os EUA e as outras economias capitalistas avançadas – normalmente consideradas como líderes – passaram a rastejar. A “globalização”, baseada no rápido aumento do comércio e dos fluxos de capitais, estagnou e se inverteu. O aquecimento global aumentou o risco de catástrofe ambiental e econômica. A ameaça à hegemonia do dólar se expandiu um bocado. Era, pois, necessário um novo “consenso”.

A ascensão da China com um governo e um sistema econômico que não se curva aos desejos dos EUA é um sinal vermelho para os estrategistas norte-americanas. Os números do Banco Mundial abaixo falam por si mesmos. A participação dos EUA no PIB global subiu de 25% para 30% entre 1980 e 2000, mas nas duas primeiras décadas do século XXI caiu para menos de 25%. Nessas duas décadas, a participação da China subiu de menos de 4% para mais de 17% – ou seja, quadruplicou. A participação de outros países do G7 – Japão, Itália, Reino Unido, Alemanha, França, Canadá – caiu acentuadamente, enquanto os países em desenvolvimento (excluindo a China) estagnaram como proporção do PIB global. E essas participações têm mudado conforme se alteram os preços das commodities e eclodem as crises da dívida.

O Novo Consenso de Washington visa sustentar a hegemonia do capital dos EUA e de seus aliados juniores mediante uma nova abordagem. Eis o que Sullivan assentou: “Diante do agravamento das crises – estagnação econômica, polarização política e emergência climática – uma nova agenda de reconstrução é necessária.” Nesse quadro, os EUA devem manter sua hegemonia, completou, mas é preciso ver que “hegemonia (…) não consiste na capacidade de prevalecer – isso é de dominar os outros – mas na disposição dos outros de nos seguir (sob constrangimento, é claro) e na nossa capacidade de definir a agenda global”. Em outras palavras, os EUA definirão um novo programa e seus parceiros juniores deverão segui-lo – trata-se, pois, de uma aliança dos dispostos a serem liderados. Quem não segue as novas orientações, entretanto, pode enfrentar consequências.

Mas o que é esse novo consenso? O livre comércio e os fluxos de capitais e nenhuma intervenção governamental devem ser substituídos por uma “estratégia industrial” em que os governos intervêm para subsidiar e tributar as empresas capitalistas para que os objetivos nacionais sejam alcançados. Haverá mais controles comerciais e de capital, mais investimento público e mais tributação dos ricos.

Circundando essas metas, de 2020 para frente, cada nação deve se manter por si mesma – isto é, sem pactos globais, mas mediante acordos regionais e bilaterais; não se prescreve mais a livre circulação do capital, mas esse último e o trabalho deverão ser controlados nacionalmente. E em torno disso, novas alianças militares serão necessárias para impor esse novo consenso.

Esse tipo de mudança não é nova na história do capitalismo. Sempre que um país se torna dominante economicamente em escala internacional, ele quer livre comércio e mercados livres para seus bens e serviços, mas quando começa a perder a sua posição relativa, quer passar do livre-comércio para formas de gestão mais protecionistas e nacionalistas.

Em meados do século XIX, o Reino Unido era a potência econômica dominante e defendia o livre comércio e a exportação internacional de seu capital, enquanto as potências econômicas emergentes da Europa e da América (após a guerra civil) contavam com medidas protecionistas e “estratégia industrial” para construir sua base industrial.

No final do século XIX, entretanto, o Reino Unido perdeu o seu domínio e, por isso, passou a defender uma política protecionista. Então, em 1945, depois que os EUA “venceram” a Segunda Guerra Mundial, o consenso Bretton Woods-Washington entrou em cena e a política econômica voltou-se para a “globalização” sob a hegemonia dos EUA. Agora é a vez dos norte-americanos passarem do livre mercado para estratégias protecionistas orientadas pelo governo – mas com uma diferença. Os EUA esperam que seus aliados também sigam o seu caminho e que seus inimigos sejam esmagados como resultado.

Dentro do Novo Consenso de Washington encontra-se uma tentativa de introduzir, ainda sob a égide da economia convencional, o que está sendo chamado de “moderna economia do lado da oferta”. A antiga “economia do lado da oferta” era uma abordagem neoclássica que se opunha à economia keynesiana; ela argumentava que tudo o que era necessário para promover o crescimento eram medidas macroeconômicas, fiscais e monetárias para garantir uma “demanda agregada” suficiente no sistema econômico; se isso ocorria, tudo ficaria bem.

Os economistas mais liberais não gostaram da implicação de que os governos deveriam intervir na economia, argumentando que a macrogestão não funcionaria, mas apenas “distorceria” as forças e os preços de mercado. Nisso eles estavam certos, como mostrou a experiência dos anos 1970 em diante.

A alternativa para promover a economia do lado da oferta era se concentrar no aumento da produtividade e na ampliação do comércio, ou seja, na oferta – e não na procura. No entanto, os mais liberais também se opuseram totalmente à intervenção do governo no abastecimento. O mercado, as empresas e os bancos – argumentavam – poderiam fazer o trabalho de sustentar o crescimento econômico e a renda real, se deixados sozinhos. Isso também se provou falso.

Então, agora, dentro do Novo Consenso de Washington, tem-se pretensamente uma “economia moderna do lado da oferta”. Isso foi delineado pela atual secretária do Tesouro dos EUA e ex-presidente do Federal Reserve, Janet Yellen, em um discurso no Stanford Institute for Economic Policy Research. Janet Yellen é a última neokeynesiana que ainda defende tanto políticas de demanda
agregada como medidas do lado da oferta.

Janet Yellen explicou: “o termo ‘moderna economia do lado da oferta’ descreve a estratégia de crescimento econômico do governo Biden; para que entendam, vou contrastá-la com as abordagens keynesianas e tradicionais do lado da oferta”. Dito isso, continuou: “estamos realmente comparando a nossa ‘nova abordagem’ com a ‘tradicional’ economia do lado da oferta”; esta última – notem – buscava expandir o produto potencial da economia por meio de uma desregulamentação agressiva combinada com cortes de impostos destinados a promover o investimento de capital privado”.

Então, o que tem de diferente essa nova política do governo Biden? “A moderna economia do lado da oferta, em contraste com a anterior, prioriza a oferta de trabalho, capital humano, infraestrutura pública, pesquisa e desenvolvimento e investimentos em um ambiente sustentável. A preocupação com essas áreas destina-se a aumentar o crescimento econômico e a resolver problemas estruturais de longo prazo, em particular a desigualdade”.

Janet Yellen descarta assim a velha abordagem: “a nossa nova abordagem é muito mais promissora do que a velha economia do lado da oferta, que vejo como tendo sido uma estratégia fracassada para aumentar o crescimento. Cortes significativos de impostos sobre o capital não alcançaram os ganhos prometidos. E a desregulamentação tem um histórico muito ruim em geral; mas foi muitíssimo ruim no que diz respeito às políticas ambientais – especialmente no que diz respeito à redução das emissões de CO2.” Realmente!

Janet Yellen observa, então, aquilo que foi discutido neste blog [The next recession blog] muitas vezes. “Na última década, o crescimento da produtividade do trabalho nos EUA foi, em média, de apenas 1,1% – cerca de metade do que nos cinquenta anos anteriores. Isso contribuiu para um crescimento lento dos salários e das remunerações, com ganhos históricos especialmente lentos para os trabalhadores na base da distribuição salarial.”

Janet Yellen quer direcionar a preocupação de seu público de economistas do “mainstream” para a natureza específica da moderna economia do lado da oferta. “O potencial de crescimento de longo prazo de um país depende do tamanho de sua força de trabalho, da produtividade de seus trabalhadores, da capacidade de renovação de seus recursos e da estabilidade de seus sistemas políticos”.

Assim, “a moderna economia do lado da oferta busca estimular o crescimento econômico, aumentando a oferta de trabalho e aumentando a produtividade, ao mesmo tempo em que reduz a desigualdade e os danos ambientais. Essencialmente, estamos focados em alcançar um alto crescimento que seja sustentável, que seja inclusivo e verde.” Assim, a “moderna economia do lado da oferta” visa, segundo ela, resolver as falhas do capitalismo no final do século XX e início do XXI.

Porém – pergunta-se – como isso deve ser feito? Basicamente, por meio de subsídios governamentais destinados à indústria. Mas não se entenda por isso que o Estado vai controlar os setores-chave do lado da oferta. Mas sim que ele vai tributar as empresas tanto a nível nacional como por meio de acordos internacionais visando acabar com a evasão fiscal em paraísos fiscais e outros truques de elisão fiscal praticados pelas empresas.

Como disse e em resumo: “a estratégia econômica do governo Biden abraça, em vez de rejeitar, a colaboração com o setor privado por meio de uma combinação de melhores incentivos baseados no mercado e gastos diretos baseados em estratégias empiricamente comprovadas. Por exemplo, um pacote de incentivos e descontos para energia limpa, veículos elétricos e descarbonização incentivará as empresas a fazer esses investimentos críticos para o nosso desenvolvimento.”

Em minha opinião, os “incentivos” e as “regulamentações fiscais” não produzirão mais sucesso do lado da oferta do que a versão neoclássica dessa mesma política porque a estrutura existente de produção e investimento capitalista permanecerá amplamente intocada. A moderna economia do lado da oferta olha para o investimento privado para resolver problemas econômicos, supondo apenas que o governo vai “orientar” esse investimento na direção certa. Mas a estrutura existente depende da rentabilidade do capital. De fato, tributar as empresas e a regulamentação governamental é mais provável que diminua a lucratividade mais do que quaisquer incentivos e subsídios governamentais irão aumentá-la.

A moderna economia do lado da oferta e o Novo Consenso de Washington combinam a política econômica doméstica e internacional para as principais economias capitalistas em uma aliança daqueles que estão dispostos a colaborar. Mas esse novo modelo econômico não oferece nada aos países que enfrentam níveis crescentes de dívida e custos de serviço que estão levando muitos deles ao calote e à depressão.

O Banco Mundial informou esta semana que o crescimento econômico no Sul Global (fora a China) cairá de 4,1% em 2022 para 2,9% em 2023. Atingidos pela alta inflação, pelo aumento das taxas de juros e por níveis recordes de dívida, muitos países estavam ficando mais pobres. Quatorze países de baixa renda já estão em alto risco de endividamento, contra apenas seis em 2015. “Até o final de 2024, o crescimento da renda per capita em cerca de um terço das economias ditas em desenvolvimento será menor do que era às vésperas da pandemia. Nos países de baixa renda – especialmente os mais pobres – os danos são ainda maiores: em cerca de um terço desses países, a renda per capita em 2024 permanecerá abaixo dos níveis de 2019 em uma média de 6%.”

E não há mudança nas condições de empréstimo do FMI, da OCDE ou do Banco Mundial: espera-se que os países endividados imponham medidas fiscais austeras nos gastos do governo e privatizem as empresas estatais restantes. O cancelamento da dívida não está na agenda do Novo Consenso de Washington… [assim como não está uma renovação da social-democracia].

Além disso, veja-se o que disse Adam Tooze recentemente: “Janet Yellen procurou demarcar as fronteiras para que a competição e a cooperação sejam saudáveis, mas não deixou dúvidas de que a segurança nacional, hoje como sempre, supera qualquer outra consideração por parte de Washington”. A moderna economia do lado da oferta e o Novo Consenso de Washington são modelos, não para que haja melhores condições econômicas e ambientais para o mundo como um todo, mas para oferecer uma nova estratégia global que seja capaz de sustentar o capitalismo nos EUA, ou seja, em casa, e para sustentar o imperialismo desse país, no exterior.
*Michael Roberts é economista. Autor, entre outros livros, de The great recession: a marxist view.

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

Introdução a financeirização, por Luiz Carlos Bresser Pereira

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Luiz Carlos Bresser Pereira

A Terra é Redonda – 18/06/2023

Prefácio do livro recém-lançado de Ilan Lapyda

Este livro se propõe a ser uma introdução ao conceito de financeirização e realiza plenamente seu objetivo. O jovem autor, Ilan Lapyda, terminou recentemente seu doutoramento da USP com uma tese sobre a financeirização no Brasil, e para escrevê-la precisou dominar a ampla literatura sobre o tema que se formou desde as contribuições ao mesmo tempo pioneiras e definitivas de François Chesnais. Este livro é dedicado a este grande marxista francês, há pouco falecido. A dedicatória me estimulou a escrever este prefácio porque François Chesnais era um ótimo amigo com quem eu sempre me encontrava em Paris.

O livro passa por todos os principais autores que discutiram a financeirização e o neoliberalismo – dois aspectos centrais do capitalismo contemporâneo. Eu entendo a financeirização como a captura, pelo setor financeiro, de uma parcela do excedente econômico mundial ocorrida desde 1980 até 2008. Ilan Lapyda, porém, vê a financeirização como um fenômeno que se confunde com o capitalismo neoliberal. Para ele a financeirização consiste na “predominância da lógica financeira nas atividades econômicas (e na sociedade e na política), que leva à intensificação e à diversificação da exploração do trabalho para atender à apropriação rentista da riqueza produzida”.

É uma boa definição, na qual nós vemos um conceito importante – “a apropriação rentista”. De fato, nós podemos pensar o capitalismo neoliberal dessa maneira, porque enquanto o capitalismo social-democrático e desenvolvimentista do após-guerra era dirigido por uma ampla coalizão fordista, a coalizão neoliberal que esteve por trás do processo de financeirização é estreita, formada apenas por uma elite financeiro-rentista. E promoveu um enorme aumento da desigualdade no mundo capitalista. François Chesnais foi novamente pioneiro nesse ponto.

Como observa Ilan Lapyda, o rentista, voltado à extração de rendas, é mais do que um simples credor; este participa de um “financiamento efetivo” e possui uma relação direta com o empreendimento financiado (inclusive tendo de aguardar o retorno do seu capital com os juros). “O interesse da propriedade patrimonial (rentista) não está voltado para o consumo das famílias, nem para o incremento permanente dos mercados secundários, mas para a garantia de um rendimento regular e liquidez permanente dos mercados secundários”.

Ilan Lapyda trabalha com dois autores principais. Toda a primeira parte do livro tem como referência a contribuição notável de François Chesnais e seu conceito de “mundialização financeira”. O projeto imperialista americano de globalização ou mundialização esteve a serviço não do povo americano, mas de uma elite financeiro-rentista. O objetivo não foi o de apenas abrir o mercado de mercadorias do resto do mundo para a troca desigual de bens e serviços sofisticados com alto valor adicionado per capita por bens e serviços simples que agam baixos salários; foi também abrir o mercado de capitais e incluir todo o mundo no processo de financeirização.

O imperialismo não está apenas interessado em exportar mercadorias, interessa-se também por exportar capitais e, para isso, a partir da “virada neoliberal” de 1980, promoveu a abertura financeira. Com isso os países que se submeteram – principalmente os da América Latina – perderam capacidade de controlar sua taxa de câmbio e perderam, assim, um instrumento fundamental para o seu desenvolvimento.

Depois de sintetizar o pensamento de François Chesnais, Ilan Lapyda volta-se para outro notável marxista, este inglês, David Harvey, que foi pioneiro na análise e crítica do neoliberalismo.

Ainda nos anos 1980 ele percebeu que estava havendo uma transição do fordismo para um sistema de ‘acumulação flexível’, que foi assim um primeiro nome para o neoliberalismo. David Harvey e François Chesnais pensam de maneira semelhante. “Assim como François Chesnais, David Harvey também observa a diminuição da separação das atividades do capital monetário (que tem como objetivo juros e dividendos) e do capital industrial (voltado para a obtenção de lucros)”.

Aproveito esta afirmação para fazer minha própria crítica a este excelente livro. Ao lê-lo podemos ficar com a impressão de que financeirização, neoliberalismo, e capitalismo são a mesma coisa; que entre as elites capitalistas não há conflitos maiores; que a clássica divergência entre o capital financeiro e o capital industrial deixou de existir. Não creio que seja assim. A financeirização e o neoliberalismo entraram em crise em 2008, essa crise assumiu um caráter também político em 2016 com a reação etnonacionalista e populista representada pela eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos, e entrou em colapso com a pandemia da Covid em 2020.

O resultado foi a “virada desenvolvimentista” de 2021, liderada pelo presidente Joe Biden. Desde então o Estado está de volta na economia americana, e o mesmo acontece, ainda que com menos intensidade, na Europa. O governo de Joe Biden está envolvido em um grande projeto de reindustrialização e, para isto, está usando amplamente da política industrial e do aumento do investimento público. Está em curso nos Estados Unidos uma estratégia nacional de desenvolvimento – algo que não existia nos Estados Unidos desde o governo do presidente Franklin D. Roosevelt. Joe Biden está atendendo, dessa maneira, às demandas populares, mas é difícil considerar que o capitalismo produtivo não esteja também envolvido nessa virada maior do capitalismo.

No Brasil, as elites brasileiras revelam novamente seu atraso e continuam presas ao neoliberalismo, mas aconteceu algo maravilhoso – a derrota do populismo fascista e neoliberal de Jair Bolsonaro e a eleição do presidente Lula. Surge, assim, uma nova esperança para o Brasil. A financeirização e o neoliberalismo estão reagindo duramente ao novo que aqui está surgindo, mas o êxito dos países do Leste da Ásia deixou claro para o Norte Global que o desenvolvimentismo faz mais sentido, e o novo governo brasileiro sabe muito bem disto. Ilan Lapyda não discute esta questão. Escreveu, porém, um livro que eu recomendo vivamente a quem se interessa em compreender o capitalismo contemporâneo.

*Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor Emérito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP). Autor, entre outros livros, de Em busca do desenvolvimento perdido: um projeto novo-desenvolvimentista para o Brasil (Ed. FGV).

Referência
Ilan Lapyda. Introdução à financeirização: David Harvey, François Chesnais e o capitalismo contemporâneo. São Paulo, CEFA Editorial, 2023, 160 págs.

Stiglitz: retrato do neoliberalismo em fase senil

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Globalização recua, pois o Ocidente não é capaz de conviver com o avanço da China. Quebra de regras torna o comércio internacional caótico. Ao sul Global, impõem-se juros altos — e se negam vacinas. Um sistema como este merece sobreviver?

Joseph Stiglitz em entrevista Ciro Krauthausen, no El Periódico – Outras Mídias, 15/06/2023

As políticas protecionistas estão ganhando terreno em todo o mundo. Você diria que a ordem mundial neoliberal entrou em sua fase final?

Sim, merecidamente. Deu lugar a um crescimento menor ao de antes do neoliberalismo e todo esse crescimento foi para as mãos dos de cima. Criou mais desigualdade e mais instabilidade. O lamentável é que os princípios do level playing field, da igualdade de condições que eram fundamentais para a Organização Mundial do Comércio (OMC) e o mundo, não foram substituídos por nada. Até certo ponto, não existem mais regras. E isso é obviamente muito inquietante.

Estamos também diante do fim da expansão do comércio global?

O comércio global iria se contrair de qualquer forma devido à estrutura das economias. Caminhamos para serviços que são menos comercializáveis do que os bens. As energias renováveis em vez do petróleo, por exemplo.

Fala-se de uma economia mundial fragmentada.

Menos integrada é uma descrição melhor. Também será fragmentada, mas isso tem a ver com a nova guerra fria.

Concorda com quem pensa que a Europa deveria se desvincular da China, como os Estados Unidos já estão tentando fazer?

Prefiro o termo utilizado pelos europeus: de-risking. Ou seja, reduzir os riscos e se tornar menos dependente. Pode ser que seja necessário levantar uma pergunta: onde estaríamos se o que é uma guerra fria suave se transformasse em uma guerra fria mais intensa?

A inter-relação com a China é muito forte. É possível rompê-la?

Sim, é forte, mas na maioria das coisas que são produzidas lá, a China não tem o monopólio da capacidade de produzi-las. O Ocidente poderia produzi-las. Pode ser que tenhamos que pagar mais por isso, mas não seria o fim do mundo se, por exemplo, os iPhones custassem um pouco mais.

Custariam muito mais.

Não muito mais porque as margens de lucro são enormes. Grande parte do valor extra vai para os acionistas da Apple (risos). O preço aumentaria um pouco. Os acionistas da Apple obteriam um pouco menos. Então, haveria ajustes. E é até concebível que, em termos gerais, o ritmo de aumento do nível de vida possa diminuir.

Essa é a perspectiva dos países desenvolvidos. Como os países em desenvolvimento veem isso?

Existem dois ou três aspectos. Em primeiro lugar, há uma longa história de colonialismo, que moldou seus pontos de vista. Depois, existe a era do neocolonialismo, em que se tornaram politicamente independentes. E depois as consequências de tudo isso na pandemia, quando os acordos da OMC para a proteção de patentes supuseram que pessoas entre eles morressem e que nossas empresas farmacêuticas se enriquecessem.

Nada poderia ter demonstrado melhor o neocolonialismo. Claramente, ficaram enfurecidos que estivéssemos colocando os lucros de gigantescas corporações à frente de suas vidas. Então, começou a guerra e, de repente, tiveram que enfrentar o aumento dos preços do petróleo e dos alimentos, e nós não os ajudamos em absoluto.

Além disso, durante a pandemia, fornecemos enormes recursos à nossa economia, enquanto eles não tinham meios financeiros suficientes. Tiveram que se endividar. E, depois, respondemos à inflação aumentando as taxas de juros, o que cria uma crise de dívida em muitos países. Não é de estranhar, portanto, que digam: essa guerra não é nossa, é de vocês. Na minha opinião, a guerra tem a ver com o direito internacional, mas é isso que eles dizem.

Qual pode ser o tamanho da crise da dívida em consequência dos aumentos de juros?

Provavelmente, não será uma crise sistêmica da dívida, mas para países como Zâmbia, Gana e Sri Lanka é um problema importante. Um número significativo de países estão em risco.

O que fazer? Parar de aumentar as taxas?

Sim, mas é preciso mais do que isso. Já lançamos uma iniciativa de suspensão da dívida, mas não é fácil. O setor privado se recusou e a China se mostrou muito lenta na hora de cooperar. Antes, nas crises de dívida, havia um número limitado de credores. Agora, você se encontra com um montão de interesses muito diferentes. O que está sendo debatido no estado de Nova York é um passo importante na boa direção: uma lei que faria o setor privado assumir uma redução da dívida proporcional à que o governo assume.

Qual é o risco de uma crise bancária em consequência dos aumentos de taxas?

Devido à falta de transparência, não sabemos realmente. Há quem analisou e disse que há uma série de bancos que correm quase o mesmo risco que os bancos regionais que quebraram nos Estados Unidos.

E também sabemos que, hoje, as pessoas podem sacar dinheiro de seu banco com muita facilidade. A tecnologia aumentou todos os riscos bancários. O que não sabemos é o risco do portfólio. Houve melhorias nas bases de capital, sim. Contudo, também sabemos que as provas de estresse do Federal Reserve são ineficazes. Isso deveria nos incomodar.

E qual é a dimensão do risco de uma crise imobiliária?

A preocupação se concentra no mercado imobiliário comercial. Se não houvesse dívida, não seria um problema. Sempre existem aqueles que perdem dinheiro e aqueles que lucram. As pessoas no setor imobiliário comercial apostaram mal. Em sua maioria, são pessoas ricas, então, poderiam assumir as perdas, mas quando isso é transferido para o sistema bancário pode se tornar um problema maior.

Tudo isso como consequência de um acontecimento sem precedentes e uma mudança imprevisível na estrutura. Quem poderia prever que as pessoas deixariam de ir para os escritórios, preferindo trabalhar em casa?

Em termos de inovação e tecnologia, os países europeus, e em especial a Alemanha, estão com muito receio de ficar para trás da China e dos Estados Unidos. Você enxerga motivos para isso?

Eu vejo muito mais fortalezas. Antes de 2008, ouvia a mesma coisa: que a Europa estava ficando para trás dos Estados Unidos. E depois se viu que a economia estadunidense se baseava em um castelo de cartas. Hoje, se você perguntar qual é o motor subjacente de nosso setor tecnológico: é a publicidade. Não tem como ser uma boa economia, se tudo gira em torno de vender e não de produzir e aumentar a qualidade de vida das pessoas.

Como estadunidense, quando você vai para a Europa observa a diferença na qualidade de vida. Olho para os dados e vejo que a expectativa de vida dos estadunidenses é menor. As disparidades são enormes. Se permitissem que você caísse aleatoriamente em um país sem saber se estaria entre os 5% da população com renda superior, iria preferir cair na Dinamarca ou nos Estados Unidos?
Na Dinamarca.

Sim, e se você soubesse que seria Bill Gates, iria preferir cair nos Estados Unidos (risos). É preciso pensar nesta perspectiva. Penso que a Europa é inovadora em muitos aspectos. Eu gostaria que houvesse mais financiamento público para a pesquisa básica, mas a capacidade da Alemanha, por exemplo, de traduzir a pesquisa em produção é realmente impressionante. Obviamente, precisam se diversificar, há muita dependência da China. Mas quando olho para a Europa, de onde vem grande parte da inovação eólica? Da Espanha e Portugal. É um erro desmerecer esse potencial inovador.

As chamadas autocracias estão ganhando espaço. Elas colocam em risco a democracia como o melhor modelo de organização da sociedade e da economia?

Não, os governos autoritários não têm se saído bem economicamente. A China desacelerou.
De um nível muito alto.

Sim, tem tido sucesso em recuperar terreno. Contudo, se olharmos para a qualidade de vida, e parte da qualidade de vida é ter controle sobre as decisões importantes que afetam sua vida, os governos autoritários são terríveis.

Mesmo assim, votam neles.

Sim, mas isso é outra questão. Por muito tempo, investimos pouco em educação e permitimos que 40 anos de neoliberalismo gerassem ressentimentos. Isso é difícil de reverter. Temos que agir. Os regimes autoritários são populistas no pior sentido da palavra. Prometem muito e cumprem pouco.

Parte disso é que não acreditam nas restrições orçamentárias. Então, antes das eleições, gastam muito dinheiro. Mas, isso não é sustentável, não estão criando um ambiente inovador. A maioria deles é antieducação. Assim como Trump, odeiam as universidades. Como você pode ter uma economia inovadora, quando odeia as universidades? Penso que estão em um beco sem saída. É o que espero.

Os economistas que desafiam os velhos dogmas, por Ladislau Dowbor

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Crise do neoliberalismo desperta, em todo o mundo, busca de novas teorias. Elas zombam do culto à cobiça e falam em igualdade, volta do Estado, missões sociais e repeito á natureza. Quem as defende? Por que a mídia brasileira omite este debate?

Ladislau Dowbor

Outras Palavras – 15/06/2023
Temos nos apegado aos experimentos mais curiosos e muitas vezes ridículos em análise econômica, alguns até consagrados com o Prêmio Nobel do Banco da Suécia (não um prêmio Nobel oficial) como é o caso de Milton Friedmann, com pessoas ofegantes com a profundidade de sua simplicidade: “O negócio do negócio é o negócio”. Como se isso significasse algo além de comportamento corporativo gratuito. Os modelos matemáticos deram uma aparência de ciência séria ao que se tornou, nas palavras de Michael Hudson,“economia lixo”. Parece que a economia está atualmente recolocando os pés no chão. E, olhando para trás, é impressionante o quanto estivemos (e ainda estamos) atrelados a simplificações absurdas. Basicamente, se cada um de nós se concentrar em se apropriar do máximo que puder, o resultado será mais prosperidade para geral. Quão racional é o slogan A ganância é boa?

A humanidade está pronta para acreditar em quase tudo, e transformar suas crenças em dogmas, se sentir que tem companheiros ao seu lado. A bestialidade coletiva surge com tanta força e muitas vezes encontra cientistas de prontidão para apoiá-la com argumentos. Esses argumentos são racionais, mas construídos sobre pressupostos absurdos, como a invenção do homo economicus, o indivíduo racional que maximiza o lucro. Dar asas às tensões internas e poder cobri-las com argumentos gera uma impressionante sensação de libertação. Jonathan Haidt chamou isso de “mente correta”, que justifica qualquer coisa. Se hoje reagimos aos absurdos da Ku-Klux-Klan, ou ao lema nazista Deutschland Über Alles (com Gott Mit Uns, é claro), tantos compraram a “teoria do dominó” que justificou a invasão do Vietnã, ou a narrativa das “armas de destruição em massa” para justificar a invasão do Iraque, ou as ditaduras militares na América Latina supostamente para nos salvar do comunismo. É difícil abrir a mente de alguém, se seu conforto emocional depende de mantê-la fechada. E os interesses econômicos podem ser facilmente envolvidos em argumentos científicos, se possível complexos o suficiente para evitar que as pessoas olhem mais de perto. Na verdade, a teoria econômica tornou-se principalmente uma justificativa de interesses privados, disfarçada de ciência. J.K. Galbraith chamou isso de “economia da fraude inocente”.

“Devido às pressões e modas pecuniárias e políticas da época, a economia e os sistemas econômicos e políticos mais amplos cultivam sua própria versão da verdade. Isso não tem relação necessária com a realidade” (Galbraith, p.x). Este “[não ter] relação necessária com a realidade” faz parte da leve abordagem irônica de Galbraith. Às vezes ele é mais direto: “Os executivos da espetacularmente falida Enron foram um exemplo proeminente, assim como os da respeitável General Electric. Recompensas generosas para a administração se estendem por toda a empresa corporativa moderna. O autoenriquecimento legal de milhões de dólares é uma característica comum do governo corporativo moderno. Não surpreende: os gerentes estabelecem sua própria remuneração” (p. 27).

Bem, é o mercado! “A crença em uma economia de mercado na qual o consumidor é soberano é uma de nossas formas mais difundidas de fraude. Que ninguém tente vender sem o controle da gestão do consumidor” (p. 14). Nosso progresso econômico deve ser resumido no valor do PIB: “Mas do tamanho, composição e eminência do PIB se origina também uma de nossas socialmente mais difundidas formas de fraude… A fraude mais básica consiste em medir o progresso social quase exclusivamente pelo volume de produção influenciada pelo produtor, o aumento do PIB… Não a educação ou a literatura ou as artes, mas a produção de automóveis, incluindo SUVs: Aqui está a medida moderna de realização econômica e, portanto, social” (p. 15).

Em uma abordagem crítica similar, de acordo com Kate Raworth, as economias devem “nos fazer prosperar, cresçam ou não”. Nesta simples imagem, temos o pudim – o lugar seguro onde devemos estar –, o meio – as carências – e a parte de fora do círculo – os excessos que devemos reduzir. Colocar resultados em vez de velocidade na forma como medimos o progresso é uma mudança profunda naquilo para que vemos a economia ser útil. A economista apresenta mais visualizações em seu Doughnut Economics: seven ways to think like a 21st century economist [Economia do Pudim: sete maneiras de pensar como um economista do século 21]. Mas conduzir a economia para aquilo que precisamos, e não o contrário, é uma mudança profunda.

Robert Skidelsky, com What’s Wrong with Economics [O que há de errado com a economia], é outro estudioso que aponta para novas tendências. Ele sugere um “repensar radical da metodologia”, em que “os tópicos centrais seriam o papel do Estado, a distribuição de poder e o efeito de ambos na distribuição de riqueza e renda… Além disso, meu livro deixaria claro que o único propósito defensável da economia é tirar a humanidade da pobreza” (p. 193). E se a economia for útil hoje, “ela precisará modificar sua crença no mercado autorregulado”. As fortunas financeiras estão crescendo, mas “os historiadores do futuro, olhando para trás, podem muito bem identificar a globalização liderada pelas finanças como a causa raiz das tribulações do século XXI”. Não se trata apenas de crescimento, mas o que produzimos, para quem, com quais impactos ambientais. E recoloca a economia no seu lugar, apenas como parte das ciências sociais, numa abordagem sistêmica: “É pelo fato de que a economia não é uma ciência que ela precisa de outros campos de estudo – quais sejam, psicologia, sociologia, política, ética, história – para suprir as lacunas em seu método de compreensão da realidade… A tarefa é nada menos do que recuperar a economia para as humanidades” (p. 78).

Thomas Piketty teve um papel importante nessa redefinição do pensamento econômico. Analisando O Capital no Século 21, ele mostrou uma mudança fundamental nas economias atuais: a produção de bens e serviços cresce em torno de 2,5% ao ano, enquanto as aplicações financeiras rendem entre 7% e 9%, o que significa simplesmente que o sistema financeiro está drenando as atividades produtivas.

A financeirização tornou-se não apenas evidente, mas os economistas de todo o mundo voltaram sua atenção para um conjunto de transformações dela decorrente. Em seus estudos mais recentes, Piketty mostrou como isso mudou a relação entre poder econômico (e particularmente financeiro) e poder político. Com contribuições do WID (World Inequality Database) e de economistas como Gabriel Zucman, hoje podemos ter uma compreensão muito mais clara não apenas do aumento dramático da desigualdade, mas de como o dinheiro virtual (97% da liquidez hoje em dia são apenas sinais magnéticos, não dinheiro impresso pelo governo) permite uma gigantesca drenagem de riqueza.

Não se trata de “mercados”, mesmo que o chamemos assim. Trata-se de um poder radicalmente concentrado. Larry Fink, chefe da BlackRock, uma corporação de gestão de ativos, administra US$ 10 trilhões; o orçamento federal dos Estados Unidos da América é de US$ 6 trilhões. O rabo está abanando o cachorro. Compreender o dreno financeiro improdutivo da economia está levando a um amplo conjunto de estudos sobre sistemas de distribuição, tributação, financiamento de serviços públicos como saúde, educação, políticas ambientais. Em particular, ficou evidente a lacuna de governança entre os fluxos financeiros, um processo de escala global, e a regulação financeira, fragmentada entre tantos países. A evasão fiscal é escancarada, e em lugares próximos como, por exemplo, Delaware. O que ficou evidente é que atualmente não temos regulação de mercado (os gigantes corporativos mundiais gostam do nome, “mercados”, e afetam agir como se estivessem obedecendo a “eles”) nem regulação governamental (qualquer esforço de regulação em nível nacional leva a corporação a mudar seu local de residência fiscal).

O resultado geral é que estamos diante da convergência de uma catástrofe ambiental, de desigualdades explosivas (tanto a nível nacional como internacional) e de uma gestão caótica e oportunista dos recursos financeiros, que deveriam justamente estar nos ajudando a financiar os desafios ecológicos e sociais. Precisamos de uma sociedade que não seja apenas economicamente viável, mas também socialmente justa e ambientalmente sustentável. Esse triplo resultado final está se tornando óbvio em círculos amplos e foi detalhado nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Mas podemos organizar a economia de acordo com metas? A mudança básica deve ser a concentração em como devemos migrar da maximização do lucro em escala corporativa mundial gratuita para uma economia que seja social e ambientalmente útil, ou no mínimo menos destrutiva.

Praticamente todas as corporações afirmam aderir aos ESGs [ambiente, sociedade e governança], o que significa que estão conscientes dos desafios, mas deixam isso restrito aos seus departamentos de relações públicas e comunicações. Não é falta de entendimento, mas falha no processo de tomada de decisões corporativas. Governança é a questão central.

Mariana Mazzucato tem sido particularmente bem-sucedida na divulgação dessa nova visão da economia do mundo real, tanto em seu livro The Entrepreneurial State [O Estado Empreendedor] como em Mission Economy [Economia por Missões]. Em vez da maximização imprudente dos lucros corporativos junto com a tímida regulamentação pública, deveríamos nos concentrar nas principais questões que a humanidade enfrenta, particularmente nos dramas sociais e ambientais. Esses são os desafios, e políticas públicas, iniciativas empresariais e organizações da sociedade civil devem se unir para enfrentá-los em conjunto. O exemplo que ela usa é a missão da corrida à lua, que organizou contribuições de diferentes setores, gerando sinergia em vez de competição. Mazzucato mostra, assim, não apenas o papel fundamental do setor público na provisão de bens e serviços (o Estado como empreendedor), mas também seu papel em promover a convergência de esforços em torno de prioridades nacionais e internacionais.

J is for Junk Economics [L de Economia Lixo] de Michael Hudson apresenta, em linguagem fácil, uma descrição bem-humorada do que ele chamou de “os 22 mitos econômicos mais difundidos de nosso tempo”, como o de que os ciclos econômicos são regulados pelos estabilizadores automáticos da economia, que a privatização é mais eficiente do que a propriedade e gestão públicas, que não existe renda não auferida, que a desregulamentação do setor financeiro irá liberá-lo da burocracia e permitir que ele repasse a economia de custos para seus clientes, entre outros mitos muito presentes. “O antídoto para essa economia lixo deve explicar por que as economias tendem a se tornar mais instáveis e mais polarizadas como resultado de suas próprias dinâmicas internas (“endógenas”) – acima de tudo, dinâmicas de crédito e dívida, e a desoneração da renda econômica não auferida” (p. 267). Para cada mito, Hudson apresenta “realidade”.

Uma análise particularmente bem estruturada da mudança global na análise econômica é apresentada por Brett Christophers, em Rentier Capitalism (Capitalismo rentista, 2020), bem como em Our lives in their portfolios: why asset managers own the world (Nossas vidas nos portfólios deles: por que os gestores de ativos são donos do mundo, 2023). O argumento básico consiste no fato de que ganhar dinheiro (Big Money) resulta essencialmente de escoamentos financeiros, não de produção. Gestão de crédito e ativos financeiros, apropriação de reservas naturais, propriedade intelectual, plataformas digitais, contratos de serviços, taxas de licenciamento de infraestrutura, aluguel do solo – todas essas atividades têm a comum característica de obter dinheiro com produtos e capitais existentes, não com produção. Eles não estão aumentando nossa capacidade de produção, a estão drenando.

Quer se trate de fraude absoluta na análise econômica, como colocado por Galbraith, ou a mudança na forma como medimos os resultados que expõe o absurdo que é a contabilidade centrada no PIB, quer seja a análise de Skidelsky sobre como a economia perdeu sua ligação com aquilo para o que precisamos dela, a poderosa análise de Piketty sobre o significado do próprio capital, a abordagem de Mazzucato sobre o resgate da capacidade do Estado em definir missões e organizar a convergência racional de esforços, ou ainda a demonstração de Hudson de como a economia (a chamada economia ortodoxa) perdeu contato com a realidade, ou finalmente a síntese de Christophers sobre como o capitalismo produtivo migrou para o capitalismo de extração de renda financeira – a imagem geral que construo em minha mente é a de uma mudança global em como os economistas estão abordando nossas novas realidades. E eles são novos.

Gosto da abordagem direta de Robert Reich, em The System [O sistema]: “Não pode haver responsabilidade sem leis que obriguem as corporações a sacrificar alguns ganhos dos acionistas em benefício dos trabalhadores, das comunidades e da sociedade. E entenderão que as próprias leis não têm sentido se as grandes corporações continuarem a violá-las sempre que as multas resultantes forem inferiores aos benefícios derivados de sua ilegalidade. Eles verão que o atual sistema americano não é uma meritocracia onde a capacidade e o trabalho árduo são recompensados, mas uma impostura cruel dominada pela riqueza e pelo privilégio” (p. 189).
Tantos outros autores poderiam ser mencionados aqui, desde Joseph Stiglitz em New Rules for the 21st Century [Novas regras para o século 21], até Michael Sandel de The Tyranny of Merit: What’s Become of the Common Good? [A tirania do mérito: o que é feito do bem comum?], mas a questão-chave é que os contos de fadas, movidos a altos juros, a respeito dos mercados, do gotejamento para baixo ou que a busca por ganhos individuais trará naturalmente a prosperidade social estão todos sendo deixados para trás, enquanto uma nova economia do mundo real está nos dando novas ferramentas para enfrentar nossos desafios: a catástrofe ambiental, a desigualdade explosiva e o caos financeiro.