“Enxergar e Ver”, por Lília Schwarcz.

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Reflexão sobre monumentos e estátuas leva historiadora e antropóloga Lilia M. Schwarcz a uma análise mais profunda sobre o racismo estrutural no Brasil: ‘Não teremos democracia enquanto continuarmos racistas’

‘Por que será que todos os nossos heróis são homens e brancos?’

Entrevista com Lilia Moritz Schwarcz

Estado de São Paulo – 14/06/2020 – Daniel Fernandes

Enxergar é biológico. Ver é opção cultural. O Brasil descrito por Lilia Moritz Schwarcz, historiadora, antropóloga e autora de livros como ´Sobre o Autoritarismo Brasileiro´ e ´Lima Barreto: Triste visionário´, é o de heróis brancos e masculinos, nunca negros, nunca femininos. É o Brasil inserido na civilização ocidental que, mais uma vez, enxerga e não vê quais deveriam ser seus monumentos e esculturas. É o Brasil que não vê que perpetuou a escravidão por todo o seu território – mais de 4,8 milhões de pessoas foram privadas de liberdade. É o mesmo país que, segundo a escritora, não vê que a morte de Marielle matou também um outro Brasil, com mais oportunidade. Um país que enxerga mas não vê que enquanto for racista não terá democracia. A seguir, a entrevista concedida por telefone ao Estadão.

A minha pergunta inicial seria: você é contra ou a favor da retirada desses monumentos, dessas estátuas de escravocratas? Mas não sei se é tão simples assim se posicionar de um lado ou de outro. Mas queria começar com essa pergunta.

Eu acho que a questão é equivocada, que não se trata de ser contra ou a favor porque não se trata de abrir ou fechar um partido político que seja a favor ou contra esse tipo de manifestação. Eu sou a favor da reflexão em cima desse tipo de manifestação. Eu sou absolutamente a favor porque nós crescemos com uma historiografia que se chama de universal, mas que não é universal. É uma historiografia que se detém sobretudo nas conquistas e nos feitos das sociedades européias e depois norte-americanas. Um bom exemplo aqui é por que será que no Brasil, que foi colonizado por portugueses, mas também indígenas e várias Áfricas, vários africanos, não temos na nossa história uma referência a todas essas origens? Ou seja, não se fala das inúmeras Áfricas que chegaram ao Brasil, as tecnologias, as filosofias, as culturas materiais, as religiões que vieram nos navios negreiros. Também não comentamos os inúmeros povos indígenas que estavam no Brasil quando os portugueses chegaram.

Falamos de descobrimento de uma terra que já estava densamente povoada. Os historiadores mostram que nas Américas, na América do Sul sobretudo, a população respondia, em termos de quantidade, à população da Península Ibérica no mesmo contexto. Mas, mesmo assim, falamos de descobrimento. O que isso revela? Revela uma narrativa histórica muito marcada por uma só experiência. Por que será que toda a nossa imaginação é uma imaginação branca? Por que será que todos os nossos heróis são homens e brancos? Quase não temos mulheres, quase não temos heróis negros. Se as imagens dos heróis podem ser inventadas, isso é o que acontece com boa parte dos monumentos, não sabemos como eram as imagens dessas pessoas, assim como não sabíamos qual era a imagem de Tiradentes. Ela foi criada entre o final do Império e o começo da República para que ele figurasse um herói branco, republicano, mas também religioso, por isso Tiradentes hoje na imaginação se parece tanto com Jesus Cristo. Por que será que nós não criamos uma imaginação negra?

Então, voltando a sua pergunta, porque ela está equivocada. Porque o que a gente não percebe é que esses monumentos, essas esculturas, reforçam uma imaginação somente ocidental. Mais ainda: uma imaginação, por vezes, muito violenta. Nós apaziguamos a violência. Eu sou absolutamente a favor da retomada crítica desses espaços simbólicos porque eu sou historiadora e antropóloga e eu acredito piamente na eficácia simbólica para o poder político. Ou seja, não se trata de ingenuamente contar com uma escultura de um traficante de escravos. Se trata de glorificar e enaltecer essa figura. De lembrar para esquecer. O que você lembra? Que ele foi do parlamento – estou me referindo ao caso mais gritante no momento, inglês. E o que se esquece? Que ele traficou vidas humanas durante muito tempo. E também, o que se esquece? Que a Inglaterra, a Grã-Bretanha, não era só essa grande civilização. Ela compactou com a barbárie. Então, esse é o meu a favor.

Penso sim que recuperar esses espaços simbólicos é um ato muito significativo. Como nós vamos recuperar é uma outra questão. Eu, particularmente, acho que não é o caso de destruir apenas. Eu faria, por exemplo, um memorial crítico da escravidão. um memorial crítico da colonização. Ou então, colocaria ao lado dessas, esculturas que tensionem esses regimes de verdade. Esculturas que digam o oposto sobre essa pessoa. Existem muitos mecanismos de fazê-lo, mas, por vezes, é preciso começar radicalizando para que a sociedade preste atenção. Porque o que acontece no nosso cotidiano, nós não vemos. Existe uma diferença muito grande entre enxergar e ver. Enxergar é uma faculdade biológica, ver é uma opção cultural. Eu penso que os brasileiros e de uma maneira geral a civilização ocidental enxerga, não vê. É isso que fazemos diante dessas esculturas, desses monumentos.

Eu li no New York Times uma entrevista do professor (do John Jay College of Criminal Justice) Erin Thompson. Ele diz que a queda das estátuas é um sinal de que o que está em questão não é apenas o nosso futuro, mas também o passado como nação, sociedade e mundo. Nesse sentido, eu pergunto se isso é sinal de que precisa haver uma ruptura. Você entende que é um olhar para o passado tudo isso que está acontecendo a partir do movimento de Black Lives Matter?

Eu digo lá no meu livro Sobre o Autoritarismo (Sobre o Autoritarismo Brasileiro, Companhia das Letras, 2019) que o nosso presente está cheio de passado. Ou seja, que nós vivemos entre fantasmas. Disse o poeta Carlos Drummond de Andrade que toda história é remorso. O que nós fazemos com isso? Nós silenciamos os nossos fantasmas, não queremos viver com eles. O que nós estamos vivendo, não só nesse momento, também provocado pelo Black Lives Matter, mas não só, é um movimento de revisão da história. Isso não quer dizer apagamento da história. Isso quer dizer que deveríamos falar de ‘histórias’ no plural. Nós temos que ter muitas histórias para contar e não uma história para contar.

Então, o que sou totalmente contra é com essa ideia de que vamos apagar totalmente a história. Ninguém apaga. A história é assim: o historiador Jacques Le Goff falou, e também o historiador (Achille) Mbembe, que a história é feita a partir das nossas perguntas. Ou seja, por que será que a história do final do século 19 foi uma história eminentemente política e a história do começo do século 20, uma história eminentemente social? A história que nós vivemos foi uma história muito cultural e por que agora vamos viver este momento em que a história se detém sobre direitos civis? Porque essa é uma linguagem que vai nos socializando. Então, um documento nunca diz nada para um historiador. Um documento só diz a partir das perguntas que nós fizemos a ele.

Essas perguntas têm a ver com os tempos que nós presenciamos. Vou dar um exemplo prático: quando eu escrevi a biografia do Lima Barreto (Lima Barreto: Triste Visionário, Companhia das Letras, 2017), já existiam biografias fundamentais sobretudo a de Francisco de Assis Barbosa, que praticamente recriou o Lima Barreto. Eu considero que o Lima Barreto não existiria sem Francisco de Assis Barbosa. O que eu fiz lá? Fiz uma pergunta nova para o mesmo objeto, ou seja, de que maneira a tensão racial impacta a biografia de um escritor como Lima Barreto? Até dizer que Lima Barreto morreu com 41 anos e que no atestado de morte devia estar escrito assim: morreu de racismo.

Os documentos estão lá, claro, cada um acha novos documentos, mas a pergunta é que é diferente. Aquilo que nós queremos saber é que é diferente. Os arquivos da escravidão são violentos, são arquivos silenciosos e o que está acontecendo agora grandemente no Brasil e em outros países? Nós voltamos a esses arquivos coloniais e fazemos outras perguntas a eles e com isso nós achamos outros personagens, outras realidades. Escravizadas que compravam sua liberdade, e compravam a dos seus filhos também. Descobrimos tantas insurreições, tantas rebeliões, tantos atos. Não que eles não estivessem lá, eles estavam lá, mas nós precisamos fazer outras perguntas para encontrar um projeto de história que seja mais amplo, mais generoso e mais plural.

Você escreveu com Flávio Gomes na introdução do ´Dicionário de Escravidão e Liberdade´ (Companhia das Letras, 2018) que projetando um futuro moderno se inventava um passado distante. Lá atrás, lá distante, tinha ocorrido a escravidão. Eu queria te perguntar o seguinte: o quanto da Lei Áurea, que vocês mesmo escrevem que foi breve e sem inclusão social, você acha que contribui para um racismo estrutural hoje no Brasil?

O Brasil não foi apenas o último país a abolir a escravidão mercantil, porque eu sei que existem outras formas de escravidão vigentes hoje em dia, mas foi também aquele que recebeu o maior número de escravizados e escravizadas. Dos 12 milhões de africanos e africanas que deixaram compulsoriamente o continente africano, hoje se diz que 10 milhões desembarcaram nas Américas e no Caribe. Desses, 4,8 milhões tinham como destino final o Brasil. Pelos portos do Recife, do Rio de Janeiro, Salvador, pouco importa aqui. Mas o Brasil recebeu praticamente metade dos escravizados.

Nós tivemos, diferente de outros países escravocratas, escravidão em todo o nosso território. Isso fez da escravidão mercantil mais do que uma força de trabalho, fez da escravidão mercantil uma espécie de linguagem social. E essa linguagem traz muitas consequências para nós. Eu entendo sua pergunta, que é excelente, mas eu não acho que a gente tem que dizer que tudo é culpa da Princesa Isabel. Nós tivemos trabalho escravizado em todas as partes do Brasil. Nós também não tivemos, como diz uma certa mitologia, uma escravidão pacífica. Isso seria uma contradição em seus termos porque o sistema que pressupõe a posse de uma pessoa por outra pessoa não pode ser pacífico, não é?

Nós tivemos também uma Lei Áurea, a lei de 1888, quando o Brasil aboliu a escravidão depois dos Estados Unidos, depois de Cuba, depois de Porto Rico, portanto, estávamos na lanterninha do movimento abolicionista. E fizemos uma lei muito curta e muito conservadora, uma lei que tinha uma intenção política de dar à Isabel um terceiro reinado, que acabou não acontecendo. O plano falhou. Mas o fato é que na época existiam outros projetos correndo muito mais inclusivos, que previam ressarcimentos, que previam trabalho, que previam educação, mas a nossa lei saiu curta, saiu muito breve e saiu muito conservadora. ‘Não existem mais escravos no Brasil’.

Quais são os problemas disso? Primeiro, nós divulgamos a ideia de que a Princesa Isabel nos deu a liberdade. A pergunta é a seguinte: alguém pode dar a liberdade uma vez que esse é um direito de toda a humanidade? Ninguém pode lhe dar isso. Esse foi um processo de luta, um processo que teve muito ativismo negro e a Lei Áurea foi apenas o ponto final. Mas o que acontece a partir de então? Nós temos um longo período do pós-abolicionismo que tem data para começar e não tem data para terminar. E mesmo assim, já nesse momento, você vê várias práticas discriminatórias. Ao mesmo tempo, você vê o surgimento dos artistas negros, dos jornais negros, enfim, de personagens negros que se elegem para a política, de cantores que falam das mazelas, de teatrólogos que denunciam a escravidão e assim vamos. Então, o que acontece, é que a Lei Áurea tem um papel nesse nosso racismo estrutural e institucional, este é um legado pesado que nós temos.

Mas sua questão é muito boa porque não dá para dizer que é tudo culpa do passado porque, se não, nós fazemos a coisa que nós mais gostamos, ou seja, nós nos aliviamos da nossa culpa. E não é coisa do passado, ela é coisa do nosso presente porque no momento em que eu você conversamos aqui o Brasil pratica um racismo estrutural e institucional. Ele é estrutural porque ele está na estrutura, na base da nossa sociedade. A escravidão legou essa linguagem social muito perversa. Então, ela está na base da nossa sociedade de que forma? Nos dados sobre emprego, nos dados sobre subemprego, nos dados da saúde – na atual pandemia nós já temos dados mostrando que são as populações negras as que estão sendo mais afetadas. Nos dados da educação, porque nós sabemos que são as populações negras que menos conseguem cumprir com o ciclo básico obrigatório. É estrutural porque nós nos acostumamos a ir nos espaços sociais e não convivermos com as pessoas negras. Nós não temos uma lei do Apartheid, mas na nossa prática vivemos em cidades divididas. Não só a Lei Áurea, mas o que essa grande mitologia da democracia racial fez entre nós?

Ela naturalizou o racismo e naturalizou a diferença. O racismo também é institucional porque nós não vemos pretos e pardos, que segundo categorias do IBGE correspondem a quase 56% da nossa população, em instituições em posições de mando, de direção; ela é absolutamente desequilibrada em relação a esse porcentual. É institucional porque eu não vejo negros nas direções das escolas, quase não vemos negros no ambiente corporativo, quase não vemos negros e negras na indústria da moda, quase não vemos negros e negras nas nossas esculturas e monumentos públicos, então, isso é um racismo institucional e essa é a perversão do racismo institucional, porque ele naturaliza e faz com que as pessoas enxerguem, mas não possam ver.

Você fala que o racismo é uma questão presente. E tivemos, nos Estados Unidos, a partir de um caso, uma ruptura. As pessoas vão às ruas mesmo em meio a uma pandemia. Essa ruptura talvez seja o começo de uma mudança. Olhando para o Brasil, como você acha que pode se dar essa ruptura? Ela é uma ruptura traumática, nos sentido de que pode ser violenta, ou é uma coisa de crescimento da sociedade para olhar e mudar esse presente?

Essa situação já existe há muito tempo, não é de hoje que a polícia brasileira é considerada uma das mais violentas do mundo e não é de hoje que estamos praticando um genocídio da população negra, jovem e que vive nas nossas periferias. Eu sei que o termo genocídio aplica-se a situações de guerra, mas os números são tão fortes, eu mostro no Sobre Autoritarismo que nós temos em guerras civis, como a guerra civil no Afeganistão e a guerra civil na Síria. Só que mais uma vez nós enxergamos, mas não vemos.

Há quem pergunte assim: por que será que nos Estados Unidos, que têm uma população negra que corresponde de 11% a 12%, um evento como esse do George Floyd em Mineápolis causa muito mais comoção do que aqui no Brasil a morte de Miguel, a morte de João Pedro? Eu acho que, mais uma vez, a pergunta está errada. Me lembra muito aquela conversa que Lewis Carroll faz entre Humpty Dumpty e a Alice, quando ela precisa tomar um líquido para diminuir e entrar no País das Maravilhas. E ela só tem um rótulo, que está escrito ‘Beba-me’ e ela fala como é que eu vou saber qual é o certo se o rótulo diz a mesma coisa. E o Humpty Dumpty responde: um, aquele que acredita em rótulos, em geral, se engana. Dois, aquele que faz perguntas erradas recebe respostas erradas. Eu acho que a questão é outra. A questão é que não é que a população negra no Brasil não se manifesta, mas se a gente pensar a primeira revolução republicana, que foi a Revolta da Vacina de 1904, já era uma revolta negra contra as medidas autoritárias da república.

A pergunta certa seria: por que será que a sociedade brasileira, e a mídia brasileira, de uma forma geral, não cobrem esses eventos com a devida responsabilidade que deveriam ter? De novo é uma questão de cegueira cultural. Porque nos Estados Unidos, o que acontece, essa linguagem dos direitos civis, a linguagem do direito, a diferença na universalidade é um ganho do século 20. Democracia sim, é projeto inconcluso. Mas é certo que nós só chegamos nessa linguagem dos direitos civis como nação no final da década de 1970. Então, eu acho que o que está acontecendo aqui no Brasil, no mundo também, é essa ideia de prestar atenção às nossas invisibilidades, prestar atenção para os nossos tantos silêncios. E os silêncios em relação às questões raciais são silêncios muito profundos.

Outro dia uma amiga minha negra estava me falando sobre as colunas sociais, e é verdade. As colunas sociais até pouquíssimo tempo e ainda continuam a ser esse espaço da branquitude. O que é a branquitude, e eu falo como branca, é o privilégio de poder estar em qualquer lugar, é o privilégio de não ser parado pela polícia, é o privilégio de não ter de entrar pelo elevador de serviço, é o privilégio de frequentar o restaurante que quiser sem que as pessoas fiquem olhando, é uma política de privilégios e essa política de privilégios será mantida se as elites não quiserem ter atitudes antirracistas.

Não é possível prever se teremos uma convulsão social, se teremos um aprimoramento da nossa cidadania, mas com os ativismos negros que eu convivo não me parece que a posição é bélica, a posição é de construir aliados. Na minha opinião o que a sociedade branca pode fazer: primeiro, mais do que dizer ‘eu não sou racista’, prestar atenção e dizer eu quero ser antirracista. A questão não é moral. A questão não é culpa. Culpa não leva longe. A questão, na minha opinião, é de responsabilidade. Ou seja, ser antirracista é adotar atos e fazer ações antirracistas. Abrir espaço nas redações de jornais para mais editores negros e prepará-los; abrir espaço nas universidades para mais negros não só na graduação, mas na pós-graduação; abrir espaço nas empresas, nos nossos consultórios, tomar atitudes antirracismo.

Se a sociedade brasileira se mobilizar, nesse sentido, quem sabe nós teremos um aprimoramento da nossa sociabilidade e não exatamente uma guerra, mas muitas vezes é preciso enfrentar, tomar atos para que as pessoas saiam da sua posição de passividade. E reflitam. Cidadania é assim, é de cada um. Não vale dizer você tem que fazer. Cidadania é feito de grandes atos e de pequenos atos, é feito do nosso cotidiano. E é preciso que a sociedade brasileira – essa sociedade  que está vivendo uma crise que é social, que é política, que é econômica e que é moral, na minha opinião, como historiadora nunca vista antes – entenda também, e se pudesse eu grifava o também, que nós não teremos uma democracia enquanto continuarmos tão racistas. Ou seja, racismo não funciona com democracia e é essa luta por direitos que nós vamos ter que encampar.

Eu vou citar uma frase do Lima Barreto, que eu pesquei do seu livro, e gostaria que você fizesse uma reflexão do momento a partir dela. A frase é a seguinte: ‘Nós, os brasileiros, somos como Robinsons: estamos sempre à espera do navio que nos venha buscar da ilha a que um naufrágio nos atirou.’

Lima Barreto era uma pessoa muito contrária aos estrangeirismos da sociedade brasileira, acreditava que os brasileiros tinham mania de Madame Bovary – ele usava uma teoria do (filósofo Jules de) Gaultier chamada Bovarismo que ele dizia que nós brasileiros sempre queremos estar no lugar a que não pertencemos e sempre queremos nos imaginar em outro lugar. Lima Barreto estava coberto de verdade. Ele brincava que a nossa imaginação era grega, vamos espalhar colunas dóricas e jônicas pelo Rio de Janeiro. Mas do que ele reclamava nessa circunstância?

Dessa ideia de que os brasileiros não conseguem se apalpar, não conseguem ver o que eles são de fato. Era isso que ele criticava, que as lojas têm mania de Paris, que as ruas têm mania de Roma, de alguma forma dizendo como nós temos dificuldade de nos apalpar, de nos escutarmos e, sobretudo, de nos acolhermos nas nossas sublimes diferenças e nas nossas sublimes similitudes. Nesse momento que nós estamos vivendo uma pandemia, que pegou o Brasil de jeito, ou seja, um governo muito autoritário, um governo que sonega informações, o que é péssimo para nós planejarmos e projetarmos nosso futuro, mas essa questão do racismo, de tantos ´João Pedros´, de tantas Ágatas´, de tantos meninos Miguel, de tantas Marielles, precisa entrar na nossa agenda urgentemente. Quando Marielle morreu, eu penso que um sonho de Brasil, um sonho de Brasil mais cidadão, mais generoso, morreu com ela.

Por que que eu digo isso? Porque Marielle simbolizava um Brasil que conseguia incluir. Um Brasil difícil. Marielle usou de todas as franjas do sistema para fazer uma escola, entrar na universidade, fazer um mestrado, ser eleita como uma das vereadoras mais populares do Rio de Janeiro, ela sendo favelada, negra, gay, enfim, isso mostrava um outro Brasil, sinalizava uma outra possibilidade de Brasil.

Quando Marielle morre e nós ficamos, e continuamos, tanto tempo sem saber quem mandou matar Marielle isso fala da nossa amnésia coletiva. Isso fala muito da nossa forma de lidar com o racismo tentando escondê-lo, isso fala muito de uma perspectiva brasileira de que todos os brasileiros dizem que são contra o racismo, mas ninguém se diz racista. Então, enquanto nós não assumirmos esse lugar antirracista essa agenda vai continuar urgente e ela não pode mais ser postergada para um futuro indeterminado.

 

Prioridades para a economia Covid-19, por Joseph Stiglitz

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Os gastos públicos bem direcionados, particularmente os investimentos na transição verde, podem ser oportunos, intensivos em mão-de-obra (ajudando a resolver o problema do aumento do desemprego) e altamente estimulantes

Joseph Stiglitz – Project Syndicates – GGN – 09/07/2020

Com as esperanças de uma recuperação acentuada da recessão induzida pela pandemia, os legisladores devem fazer uma pausa e fazer um balanço do que será necessário para alcançar uma recuperação sustentada. As prioridades políticas mais urgentes são óbvias desde o início, mas exigirão escolhas difíceis e uma demonstração de vontade política.

NOVA YORK – Embora pareça história antiga, não faz muito tempo que as economias do mundo inteiro começaram a fechar em resposta à pandemia do COVID-19. No início da crise, a maioria das pessoas antecipou uma rápida recuperação em forma de V, supondo que a economia apenas precisasse de um curto intervalo de tempo. Depois de dois meses de carinho e montes de dinheiro, ele continuaria de onde parou.

Foi uma ideia atraente. Mas agora é julho, e uma recuperação em forma de V é provavelmente uma fantasia. É provável que a economia pós-pandemia seja anêmica, não apenas nos países que não conseguiram administrar a pandemia (a saber, nos Estados Unidos), mas mesmo naqueles que se deram bem. O Fundo Monetário Internacional projeta que, até o final de 2021, a economia global será um pouco maior do que era no final de 2019, e que as economias dos EUA e da Europa ainda serão cerca de 4% menores.

As perspectivas econômicas atuais podem ser vistas em dois níveis. A macroeconomia nos diz que os gastos cairão devido ao enfraquecimento dos balanços das famílias e das empresas, uma onda de falências que destruirão o capital organizacional e informacional e um forte comportamento de precaução induzido pela incerteza sobre o curso da pandemia e as respostas políticas a ela.  Ao mesmo tempo, a microeconomia nos diz que o vírus age como um imposto sobre atividades que envolvem contato humano próximo. Como tal, continuará a conduzir grandes mudanças nos padrões de consumo e produção, o que, por sua vez, trará uma transformação estrutural mais ampla.

Sabemos, tanto pela teoria econômica quanto pela história, que apenas os mercados não são adequados para administrar essa transição, especialmente considerando o quão repentina foi. Não há uma maneira fácil de converter funcionários de companhias aéreas em técnicos da Zoom. E mesmo que pudéssemos, os setores que agora estão se expandindo são muito menos intensivos em mão-de-obra e mais intensivos em habilidades do que os que estão suplantando.

Também sabemos que amplas transformações estruturais tendem a criar um problema keynesiano tradicional, devido ao que os economistas chamam de efeitos de renda e substituição. Mesmo que os setores sem contato humano estejam em expansão, refletindo melhorias em sua atratividade relativa, o aumento de gastos associado será superado pela diminuição nos gastos que resulta da queda de renda nos setores em retração.

Além disso, no caso da pandemia, haverá um terceiro efeito: aumento da desigualdade. Como as máquinas não podem ser infectadas pelo vírus, elas parecerão relativamente mais atraentes para os empregadores, principalmente nos setores de contratação que usam relativamente mais mão-de-obra não qualificada. E, como as pessoas de baixa renda devem gastar uma parcela maior de sua renda em bens básicos do que aquelas que estão no topo, qualquer aumento da desigualdade causado pela automação será contracionista.

Além desses problemas, há duas razões adicionais para o pessimismo. Primeiro, embora a política monetária possa ajudar algumas empresas a lidar com restrições temporárias de liquidez – como ocorreu durante a Grande Recessão de 2008-09 -, ela não pode resolver problemas de solvência, nem estimular a economia quando as taxas de juros já estão próximas de zero.

Além disso, nos EUA e em alguns outros países, objeções “conservadoras” ao aumento dos déficits e níveis de dívida impedirão o estímulo fiscal necessário. Para ter certeza, as mesmas pessoas ficaram mais do que felizes em cortar impostos para bilionários e corporações em 2017, socorrer Wall Street em 2008 e ajudar os gigantes corporativos este ano. Mas outra coisa é estender o seguro-desemprego, assistência médica e apoio adicional aos mais vulneráveis.

As prioridades de curto prazo estão claras desde o início da crise. Obviamente, a emergência de saúde deve ser tratada (por exemplo, garantindo suprimentos adequados de equipamentos de proteção individual e capacidade hospitalar), porque não pode haver recuperação econômica até que o vírus seja contido. Ao mesmo tempo, políticas para proteger os mais necessitados, fornecer liquidez para evitar falências desnecessárias e manter vínculos entre os trabalhadores e suas empresas são essenciais para garantir um reinício rápido quando chegar a hora.

Mas, mesmo com esses fundamentos óbvios na agenda, há escolhas difíceis a serem tomadas. Não devemos resgatar empresas – como varejistas tradicionais – que já estavam em declínio antes da crise; fazer isso criaria apenas “zumbis”, limitando, em última análise, dinamismo e crescimento. Também não devemos resgatar empresas que já estavam endividadas demais para poderem suportar qualquer choque. A decisão do Federal Reserve dos EUA de apoiar o mercado de títulos não desejados com seu programa de compra de ativos é quase certamente um erro. De fato, esse é um caso em que o risco moral é realmente uma preocupação relevante; os governos não devem proteger as empresas de sua própria loucura.

Como o COVID-19 provavelmente permanecerá conosco a longo prazo, temos tempo para garantir que nossos gastos reflitam nossas prioridades. Quando a pandemia chegou, a sociedade americana estava devastada por desigualdades raciais e econômicas, padrões de saúde em declínio e uma dependência destrutiva de combustíveis fósseis. Agora que os gastos do governo estão sendo desencadeados em grande escala, o público tem o direito de exigir que as empresas que recebem ajuda contribuam para a justiça social e racial, melhoria da saúde e a mudança para uma economia mais verde e baseada no conhecimento. Esses valores devem refletir-se não apenas na maneira como alocamos dinheiro público, mas também nas condições que impomos a seus destinatários.

Como meus co-autores e eu indicamos em um estudo recente, os gastos públicos bem direcionados, particularmente os investimentos na transição verde, podem ser oportunos, intensivos em mão-de-obra (ajudando a resolver o problema do aumento do desemprego) e altamente estimulantes – gerando muito mais barato do que, digamos, cortes de impostos. Não há razão econômica para que países, incluindo os EUA, não possam adotar programas de recuperação grandes e sustentados que afirmem – ou os aproximem – das sociedades que afirmam ser.

 

Tecnologia com humanidade, por Alice Ferraz.

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A mudança na comunicação a partir da existência dessas ferramentas é uma revolução no modo como conversamos e interagimos no nosso dia a dia

Alice Ferraz, O Estado de S.Paulo – 05 de julho de 2020

Há anos, trabalho no estudo da comunicação via mídias sociais e no desenvolvimento de narrativas que envolvem a transmissão de mensagens de maneira assertiva em plataformas nas quais a história deve ser construída em imagens fixas ou em takes de até 15 segundos. A mudança na comunicação a partir da existência dessas ferramentas é uma revolução no modo como conversamos e interagimos no nosso dia a dia – e também como somos impactados por informações veiculadas muitas vezes em uma única imagem ou frase que pode atingir milhões de pessoas. Entender e respeitar a força e o poder desses novos veículos que estamos todos aprendendo a usar faz parte do estar alinhado com um novo mundo. Em mais uma semana de trabalho, e assistindo ao avanço de fake news e de ataques de extrema violência nessas mídias, vou trazer para nossa conversa semanal as virtudes necessárias em 2020. A justiça é um importante ponto de reflexão para os dias de hoje.

Segundo pesquisa recente feita pelo Ibope, mais de 90% dos brasileiros afirmam que deveria haver leis que regulamentem as redes sociais para combater a disseminação de notícias falsas. Além disso, a pesquisa mostra a vontade da população para que as contas que não são de pessoas de verdade, sejam rotuladas como robôs. Um projeto de lei, que já está no Senado, pretende transformar em crime o uso de contas falsas nas redes sociais ou de robôs sem o conhecimento das plataformas. Ok, Alice, mas o que isso tem a ver com nossa busca pelas virtudes, assunto proposto para este mês de reflexões? Explico. Em cada notícia falsa disparada ou postada, existe um fator humano que colabora de maneira decisiva para que ela ganhe escala e cause estragos. Algo que explicam como “efeito manada”, termo usado para descrever o comportamento de indivíduos que reagem todos da mesma forma quando estão em grupo, mesmo sem análise ou informação suficientes para tomarem determinada decisão. Centenas e até milhares de pessoas, em efeito manada, contribuem para a dispersão das fake news. A informação falsa, distribuída via mídias sociais para grupos de amigos e seguidores, pode vir acompanhada de ataques violentos. Com esses comportamentos, as pessoas deixam de usar a Justiça, uma das mais importantes virtudes humanas. O termo virtude, segundo o dicionário, é a disposição do indivíduo de praticar o bem, são hábitos constantes que regulam nossos atos, ordenam nossas emoções e guiam nossa conduta.

Olhando por esse ângulo, cometer uma injustiça é abrir mão de uma virtude. A própria Justiça. E no mundo atual, em que informações falsas sobre quaisquer assuntos têm o poder de prejudicar a saúde, destruir relações, carreiras e negócios, como deixar só a cargo da lei e tirar nossa própria responsabilidade do que ocorre nas mídias sociais?

Como podemos, enquanto indivíduos, não nos dar conta de que cada notícia falsa e criminosa tem em nossas próprias atitudes sua plataforma de amplificação? Pessoas que compactuam com o efeito manada, munidas de suas próprias ferramentas, atacam e compartilham histórias falsas e inventadas sem pensar que podem estar cometendo injustiças. “A Justiça só existirá se a fizermos, se existem justos para defendê-la”, dizia Alain, pseudônimo do filósofo e pacifista francês Émile Chartier (1868-1951). A regra de ouro para se entender de maneira simples o lugar da Justiça é se colocar no lugar do outro. Usar a tecnologia disponível para a comunicação para disseminar informações sem comprovação seria um lugar onde nenhum de nós gostaria de estar se essas fake news fossem sobre nós e nossas famílias. Então por que agir diferente quando o assunto é com quem não conhecemos?

Mais de 150 empresas se uniram nos Estados Unidos e na Europa na campanha Stop Hate for Profit (pare de dar lucro ao ódio, em tradução livre), em que elas pretendem suspender a publicidade em algumas plataformas de mídia social como protesto pela falta de ação contra o discurso de ódio nessas redes. No Brasil, que possui a audiência mais engajada do mundo em redes sociais, liderando também os rankings de tempo de conexão diária, podemos, com mais consciência e uma busca de mais justiça, mudar o cenário de raiva para o de cuidado, usando outra virtude pouco falada, a prudência. “A ética da responsabilidade, que se preocupa com as consequências das nossas ações”, diria Max Weber. Agir e reagir de maneira impulsiva e sem prudência ou bom senso como é costume quando estamos no espaço das mídias sociais leva à injustiça. Individualmente, temos o poder para realizar essa mudança.

 

Federico Finchelstein: ‘Brasil abdicou de sua liderança regional’

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Segundo especialista, preocupa a intolerância do governo Bolsonaro e a falta de interesse pelos outros países da região

Entrevista com: Federico Finchelstein, diretor do depto. de estudos sobre América Latina da New School for Social Research

Paulo Beraldo, O Estado de S.Paulo – 05 de julho de 2020

Em vez de liderar a América do Sul, como no passado, o Brasil tem se desinteressado pelo continente, afirma o professor Federico Finchelstein, diretor do departamento de estudos sobre América Latina da New School for Social Research, de Nova York. Argentino radicado nos EUA, ele é autor do livro Do Fascismo ao Populismo na História e analisa o avanço desses movimentos nos últimos anos. A seguir, trechos da conversa de Finchelstein com o Estadão.

Como o sr. vê o momento da relação entre Brasil e Argentina?

A diferença entre Alberto Fernandez e Jair Bolsonaro não é só uma questão de posição política. Tem a ver com o conceito de democracia. O Brasil, claramente o país mais importante da região, e sobretudo o mais importante para a Argentina, seu grande sócio, é visto com preocupação entre os argentinos, e não somente pela esquerda, mas também pela direita. Há preocupação com a falta de responsabilidade do governo, com a intolerância, com as políticas e esse desinteresse total por tudo que acontece no restante da região.

Como o sr. vê o papel do Brasil como líder da América do Sul? 

Os países estão coordenando uma resposta ao coronavírus e o Brasil não participa porque, em nível federal, nega até a problemática do vírus. O Brasil deveria ser o líder da região e essa falta de liderança é muito ruim. Do lado da Argentina, que é um país onde todos estão sempre brigando, com uma grande dose de instabilidade, sempre se olhava para o Brasil como um país estável. Agora, parece que o Brasil está mais argentino que a Argentina, com grande instabilidade. A liderança do Brasil é muito importante e necessária para a região, mas o que vemos é, para dizer em termos de futebol, um país que sempre jogava em equipe e agora prefere jogar sozinho. Essa é uma percepção em muitos países da América do Sul. O Brasil deixou de ser líder e se tornou um país desinteressado pela região.

O sr. ainda acha que Bolsonaro é um dos líderes populistas mais próximos do fascismo? 

Não só continuo com a avaliação como, lamentavelmente, minha preocupação se aprofundou. Cada vez ele se aproxima mais do fascismo ao passar do autoritarismo para tentativas de destruição da democracia, que são típicas de ditaduras e do fascismo. Os exemplos são as ideias de fechar o Supremo Tribunal Federal, o Congresso e estabelecer um tipo de pretorianismo (influência abusiva do poder militar) nada democrático e tampouco típico do populismo.

O sr. diz que esses movimentos populistas estão se reformulando ao longo dos anos. Como se dá esse processo? 

Os elementos centrais do fascismo não são centrais no populismo, de esquerda ou de direita. De Perón a Vargas, de Cristina Kirchner a Silvio Berlusconi, não vemos elementos como violência política ou racismo, mas sim um desprezo pelas instituições, um certo autoritarismo, mas sempre em democracia. Com o surgimento de líderes como Donald Trump (EUA), Narendra Mori (Índia), Viktor Orbán (Hungria) e Jair Bolsonaro, eles retomam elementos que haviam ficado no passado. Trump se lançou na campanha com diversos termos racistas contra mexicanos e imigrantes. Bolsonaro fez campanha imitando um revólver na mão. Ou seja, a glorificação da violência como símbolo da política.

Como o racismo se encaixa dentro desse populismo?

Com a glorificação da violência voltam o racismo, a discriminação, a xenofobia, o fazer política com intolerância contra as minorias. Isso vira um eixo central da política. São argumentos fascistas. O elemento que falta, para passar de populismo para fascismo, é a destruição da democracia e a instauração de uma ditadura. Depende dos brasileiros resistir aos ataques contra a democracia. Também é fundamental o trabalho das instituições e do jornalismo, para que mostre os fatos para a população.

Na polarização, qualquer crítica ao governo é taxada de comunista. Como o sr. vê essa argumentação?

Essa pergunta é importantíssima para entender o fenômeno. Quando escutava falar de Bolsonaro durante a campanha, me lembrava dos discursos de Goebbels, o grande mentiroso das campanhas nazistas. Há outro elemento central desse novo populismo: são grandes mentirosos. Mas mentirosos não em um sentido cotidiano, mas em termos da técnica de propaganda. Todos que conhecessem história sabem o que é comunismo. Estamos falando de fatos históricos. Mas eles não estão falando disso, e sim de fantasias, de mitos, de propaganda que eles mesmos creem e utilizam para enganar a população. Por isso, tanto ódio ao jornalismo, porque os jornalistas mostram os fatos para os cidadãos interpretarem. E mostrar fatos vai contra as fantasias oficiais. Bolsonaro diz que o vírus é uma gripezinha, mas é uma pandemia global como vimos, a maior em cem anos.

Qual o papel de quem não está no poder? 

É importante que, frente a esse ataque, as diferenças entre setores políticos sejam menores. É preciso haver uma frente de defesa da democracia, não importa o nome. O importante é que os políticos do lado da democracia, os cidadãos e os funcionários do Estado devem defendê-la. Não é como em outros tempos. A história deixa a lição de que o fascismo venceu quando isso não aconteceu.

Pesquisas mostram a dificuldade de Trump conseguir a reeleição. Uma derrota dele enfraqueceria o movimento?

A defesa de democracia, atacada em nível global, tem de ser global. É preciso colocar evidência nas mentiras de Trump e em seu autoritarismo, suas políticas contra a ciência que provocaram mais mortes na pandemia. Isso é uma tarefa global. Então, uma derrota de Trump, já que muitos copiam o que ele faz, seria importante. Mas faltam muitos meses. No fundo, é importante que prevaleça uma defesa das instituições de Estado.

Vamos ter uma alteração estrutural da economia no pós-covid, diz Edmar Bacha

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Integrante da equipe que criou o Plano Real disse que recuperação do Brasil será lenta, mas abrirá espaço para a questão da distribuição de renda do País e o aumento dos gastos públicos

Entrevista com Edmar Bacha, economista

Vinicius Neder, O Estado de S. Paulo, 29/06/2020

Estamos em meio à recessão, mas há espaço para recuperação em “V”?

Nos Estados Unidos, como reportou a Marcelle (Chauvet, professora da Universidade da Califórnia, integrante do Codace, na reunião da última sexta-feira, 26), foi feita uma pesquisa muito interessante com economistas sobre a forma da retomada. Já houve duas rodadas da pesquisa. Na primeira, a maior parte dos economistas colocou o “V”, e, agora, todo mundo mudou do “V”, para algo que começa com um “V” inclinado, mas logo depois atinge um platô. E essa questão do platô é fundamentalmente por causa do esgotamento dos impulsos fiscal e creditício que o governo está dando. Quando isso acabar, como vai ficar? Depois, do lado do vírus, tem a questão de que isso vai exigir uma realocação muito pronunciada da atividade econômica. O mundo pós-covid não vai ser o mesmo. Vai ser bastante diferente. A natureza da atividade econômica vai ser muito distinta, com setores que vão ser beneficiados e os setores que vão ser prejudicados. Vamos ter uma alteração estrutural, se não permanente, pelo menos prolongada na estrutura das atividades econômicas.

No caso do Brasil, o quadro é diferente, já que o espaço fiscal para manter medidas é menor?

Obviamente, o Brasil tem bastante menos espaço fiscal do que os países que têm moeda-reserva. (…) Com esse agravamento do quadro fiscal, estamos indo para uma relação dívida pública sobre PIB de 100%. Agora, se temos menos espaço fiscal, temos um pouquinho mais de espaço monetário. Os juros lá (nos países desenvolvidos) já estão em zero. Isso é uma questão complexa, que vai depender muito da capacidade que temos de reestabelecer o ânimo empresarial e a disposição dos consumidores a gastar.

Os impulsos ficais ajudam no consumo das famílias, não?

Nos Estados Unidos, por causa das transferências, houve uma retomada muito forte, praticamente no nível anterior, do consumo das classes mais pobres. O consumo que está retraído é o consumo dos 25% mais ricos, do pessoal que fugiu de Manhattan. Esse consumo vai voltar quando o medo passar. O curso do vírus é que vai determinar um pouco esse processo de retomada do consumo da parte mais substantiva do total. Embora seja menos gente (os 25% mais ricos), o poder de compra é muito maior.

Isso vai acontecer no Brasil ainda?

Com certeza. Não temos ainda esse tipo de dado. Nos Estados Unidos é um pouco mais fácil porque aqui as pessoas mais pobres ainda gastam em dinheiro. Isso é mais difícil de traçar.

Diante disso, deveríamos investir na manutenção dos auxílios emergenciais?

O ideal seria a gente encontrar um espaço fiscal para fazer uma ampliação do Bolsa Família. Esse é um tema que está em discussão muito ampla, tem propostas pipocando para todo lado, algumas mais fantasiosas, outras mais realistas. Há uma coisa emergencial, que é o prolongamento do auxílio dado que o vírus não se abateu no período que estávamos com esperança que se abatesse. A outra questão é como será o formato mais ou menos prolongado desse processo.

O sr. é favorável a uma ampliação das transferências?

Acho importante, temos que discutir isso. Podemos fazer desta crise uma oportunidade para uma discussão séria sobre distribuição de renda no País.

É possível fazer isso sem reformas, como a administrativa e a tributária?

A alternativa a isso seria aumentar brutalmente os impostos, o que não é o caso. Já estamos com uma carga tributária, para nosso nível de renda, bastante alta. Temos que conseguir um jeito é de redistribuir o gasto. E tem que melhorar a qualidade dos impostos, obviamente.

Qual a consequência de continuar aumentando a dívida pública?

Isso seria autodestrutivo, porque a retomada depende do restabelecimento de um ambiente de negócios. As oportunidades estão aí. A do saneamento está sendo criada (com a aprovação, na semana passada, do novo marco regulatório para o setor). A questão é saber se o pessoal (os investidores) vai vir. Para vir, precisa ter confiança no ambiente de negócios e em tudo o mais. Num País que está com a dívida descontrolada, quem vai ser louco (de investir)?

Como fazer as reformas?

Vai ter que fazer uma redistribuição. Então, vai haver perdedores, sem dúvida. Não é fácil. Não é uma coisa para fazer do dia para a noite. Vai precisar de um debate amplo na sociedade, para ter uma avaliação muito clara para as pessoas do que se trata. Não vai chover dinheiro. Vamos tirar dinheiro de um lado e colocar no outro. É importante que esse debate seja bastante amplo, porque se depender só dos lobbies que pressionam o Congresso, não vamos chegar a lugar algum.

O sr. está mais pessimista ou otimista com os rumos da economia?

Estamos numa situação extremamente difícil. Normalmente, os períodos de expansão são muito mais prolongados do que os períodos recessivos. É uma característica do ciclo econômico tradicional. Agora, pega essa última leva. Tivemos um período recessivo, de 2014 a 2016, que é praticamente da mesma extensão (11 trimestres) que a expansão que tivemos até o ultimo trimestre do ano passado (de 12 trimestres). Só isso já é uma sinalização bastante clara da precariedade. A economia já estava andando de lado. Essa expansão não foi nada para ficar muito entusiasmado. A economia já não vinha bem das pernas. Precisamos ter um conjunto de mudanças muito substantivas para uma retomada mais vigorosa e para termos um espaço mais amplo para essa discussão dos sistemas redistributivos, que são tão importantes no Brasil.

As medidas dos países desenvolvidos podem beneficiar o Brasil com um crescimento global maior?

Já estamos nos beneficiando da retomada na Ásia. As exportações brasileiras para a Ásia estão indo muito bem, obrigado. Nesse sentido, sim, mas isso olhando para os próximos meses. A questão que se coloca mais à frente, pós-covid, é como vai ser essa reestruturação, a recomposição da economia mundial, toda essa questão do protecionismo e do papel das organizações internacionais. Isso vai depender muito do resultado das eleições (presidenciais) americanas (marcadas para novembro).

Paulo Guedes, coautor do desastre por Paulo Nogueira Batista Jr.

Jornal GGN, 30/06/2020

O presidente Bolsonaro sofre rejeição e críticas crescentes. Curiosamente, a área econômica do seu governo nem tanto. Pode até escapar de um eventual naufrágio. Para alguns setores influentes (nem preciso dizer quem são), tudo se passa como se o ministro da Economia e sua equipe estivessem em uma esfera à parte e precisassem ser preservados de alguma maneira. Mas é uma ginástica e tanto. Bolsonaro e Guedes são dois lados da mesma moeda.

A fragilidade da tentativa de separá-los salta aos olhos. Bolsonaro vem caprichando no esforço de desorganizar e desestabilizar o país, não há dúvida. Poucos se equiparam ao presidente em matéria de talento destrutivo. Como ignorar, entretanto, que ele conta com a sincera colaboração da sua equipe econômica? São muitas as contribuições do ministério da Economia ao rebaixamento do Brasil. Não só na área econômica doméstica, mas também – aspecto menos notado – na área internacional. Pretendo tratar neste texto dos dois aspectos, mas principalmente do segundo, que tem recebido pouca atenção.

Antes de prosseguir, quero deixar claro que o que me move a tratar criticamente desse tema não é nenhuma animosidade pessoal contra o ministro e sua equipe. De forma alguma. Nem conheço a grande maioria deles. Mas, convenhamos: não é por acaso que Guedes se tornou ministro da Economia de Bolsonaro. As afinidades são visíveis. Os dois são extremistas por vocação e trajetória. E o que temos em Brasília hoje é nada mais nada menos do que o casamento do extremismo político com o extremismo econômico.

O radicalismo do presidente é notório. O do ministro da Economia talvez seja um pouco menos conhecido, mas tem raízes antigas. Paulo Guedes é um adepto da escola de Chicago, onde estudou na década de 1970. Essa escola é a vertente radical da economia ortodoxa. Os traços centrais da ortodoxia aparecem ali magnificados e exacerbados. A começar pela propensão a superestimar, de maneira dogmática, o papel das forças de mercado e do setor privado. E a subestimar, em contrapartida, a necessidade que têm as economias modernas de um Estado atuante no campo econômico. Problemas centrais como distribuição de renda são negligenciados ou tratados de forma insuficiente. A questão nacional é ignorada ou vista como mero anacronismo.

É o chamado “fundamentalismo de mercado”, vício que leva economistas supostamente científicos a defender com fervor religioso teses no mínimo discutíveis, às vezes claramente falsas, sobre o que fazer ou não fazer na condução das políticas públicas. Já deveríamos saber, a esta altura, que a economia é uma ciência inexata, que se presta mal à defesa rígida e fervorosa de propostas específica. Mas vá tentar, leitor, convencer os seguidores dessa seita de que ceticismo e distanciamento críticos são sempre necessários para lidar com temas econômicos – temas que são sempre políticos e sociais ao mesmo tempo. A ideologia, como dizia Maria da Conceição Tavares, é uma plataforma precária.

Chicago em Brasília

O espírito crítico foi para o espaço. No Brasil, os xiitas da economia se uniram aos xiitas da política. E ficamos então submetidos, desde 2019, à aplicação de certo tipo de teoria econômica. Já tive ocasião de escrever a esse respeito em artigos publicados na minha coluna na revista Carta Capital (elas podem ser encontradas na minha página na internet: www.nogueirabatista.com.br). A ideia central de Guedes e cia era submeter a economia brasileira a reformas ditas estruturais, a começar pela da Previdência, acelerando e radicalizando o que vinha sendo feito no governo Temer. O objetivo era – e ainda é – reduzir o tamanho do Estado, via mudanças constitucionais e outras medidas, privatizar o que fosse possível – inclusive as estatais estratégicas – e tentar reduzir o déficit fiscal rapidamente, sem levar na devida conta os efeitos desse ajustamento sobre a economia, o emprego e a distribuição da renda.

Um ajustamento regressivo, em suma. Os resultados foram pífios. Como se podia prever, não se confirmou a promessa de que o “choque de confiança” provocado por políticas radicais traria uma recuperação econômica liderada pelo setor privado. A economia continuou se arrastando, crescendo pouco ou nada em termos de PIB per capita. Antes da chegada do novo coronavírus, a tendência para o nível de atividade em 2020 era, na melhor das hipóteses, mais um voo de galinha. Guedes perdeu credibilidade quando garantiu, repetidamente e sem a mínima base, que a economia brasileira estava “decolando”.

Veio então a pandemia e aí foi um verdadeiro deus nos acuda. A inadequação da equipe econômica aos desafios de uma crise dessa magnitude ficou totalmente escancarada. Não sei se o leitor se recorda, mas houve um momento em que a mensagem que se tentou passar era de que a melhor “vacina” contra o vírus era, no plano econômico, a continuação das reformas estruturais! O suprassumo do ridículo nacional.

A participação do Estado na economia, sempre necessária em alguma medida, se torna urgente e indispensável em momentos de crise aguda. Prisioneira de dogmatismos e preconceitos, Guedes e sua equipe resistiram ao óbvio e demoraram a reagir. Quando o fizeram, as medidas foram incompletas, mal formuladas ou implementadas sem convicção. Resultados: a economia mergulhou em recessão profunda, empresas brasileiras estão sendo destruídas, o desemprego cresceu de forma alarmante, a renda nacional se concentrou e aumentou a pobreza. O FMI, por exemplo, prevê agora queda de 9,1% no PIB brasileiro em 2020. Uma recessão sem precedentes na história das contas nacionais brasileiras.

Para ser justo, é preciso dizer que, nas circunstâncias, uma recessão era inevitável e que qualquer ministro da Economia governo teria enorme dificuldade de enfrentar o desafio. Não se pode tampouco botar toda a culpa pelo que vem ocorrendo em 2020 na conta da equipe econômica. O resto do governo deu a sua contribuição – e notável – ao colapso da economia, em especial com a atuação tumultuada e incompetente na área da saúde pública.

Atuação na área financeira internacional

Mas não foi só no campo da macroeconomia que Paulo Guedes e seus auxiliares se destacaram negativamente. Diferentemente do que às vezes se imagina, a política externa do país não é prerrogativa apenas do Itamaraty. O ministério da Economia e outros ministérios também têm responsabilidades importantes na área internacional.

Uma das razões que levam o ministro da Economia a ter protagonismo na política externa é o fato de ele ser o principal representante político do país em organismos financeiros internacionais, como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e o Novo Banco de Desenvolvimento. No jargão adotado nessas instituições, ele é o “governador” do Brasil. Com essas alavancas nas mãos, pode-se fazer muito de positivo – e também, claro, muito estrago. O atual ministro, infelizmente, vem se notabilizando pelos estragos que faz no campo financeiro multilateral.

É um tema que conheço bem, pois trabalhei por mais de dez anos em instituições multilaterais, em Washington e Xangai, entre 2007 e 2017. O Brasil era outro, bem sei, principalmente até 2014. Depois veio a decadência política do governo Dilma, seguida do medíocre governo Temer. Mas nada, nada mesmo, se compara ao que tem feito o atual governo nesse campo. Nem mesmo a indigência manifesta da equipe econômica de Temer se compara ao que temos hoje.

Banco dos BRICS

Alguns exemplos. Ao Brasil tocava, em 2020, indicar o segundo presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), mais conhecido como Banco dos BRICS, para um mandato de 5 anos a partir de julho. Foi o resultado de uma difícil negociação, concluída na cúpula dos líderes dos BRICS, em Fortaleza, em 2014. A presidente Dilma Rousseff queria muito que o Brasil indicasse o primeiro presidente. A Índia insistia em garantir para si essa possibilidade. Depois de muita discussão, o Brasil concordou em ceder e ficou com o direito de indicar o presidente seguinte. Na delegação brasileira, eu fui um dos que argumentaram que era mais importante assinar logo o acordo de criação do NBD, em Fortaleza, do que continuar insistindo em indicar o primeiro presidente.

Em retrospecto, parece claro que foi um erro. A Índia acabou indicando um presidente apagado, o banqueiro K.V. Kamath, de carreira ilustre, mas já em idade avançada e em regime de pré-aposentadoria. Durante os seus 5 anos no comando do NBD, sobressaiu-se pela inércia. (Uma avaliação crítica da fase inicial do banco, do qual fui vice-presidente até fins de 2017, pode ser encontrada no livro que publiquei no final do ano passado, O Brasil não cabe no quintal de ninguém, pela editora LeYa.) Quando estávamos em Fortaleza, finalizando a dura negociação do NBD, nunca em nossos piores pesadelos poderíamos imaginar, leitor, que 6 anos depois o Brasil teria como presidente um personagem caricato como Jair Bolsonaro e, como ministro da Economia, o inefável Paulo Guedes. Se tivéssemos bola de cristal, teríamos talvez preferido indicar o terceiro ou quarto presidente do banco!

Mas aqui estamos. Guedes exerceu o direito de indicar e escolheu um certo Marcos Troyjo, figura relativamente obscura e sem experiência relevante. Espero estar errado, mas o que se sabe sobre o novo presidente do NBD não nos autoriza a esperar grande coisa. Dificilmente será capaz de proporcionar a reorientação e o impulso requeridos para uma instituição que começou mal sob a presidência de K.V. Kamath. O leitor pode imaginar a minha frustração ao ver um banco promissor, do qual fui um dos fundadores, passar das mãos de um presidente indiano inerte a um presidente brasileiro aparentemente despreparado para o cargo.

Banco Mundial 

A atuação de Paulo Guedes como governador do Brasil em instituições sediadas em Washington também se mostra altamente problemática, para dizer o mínimo. O caso mais comentado é o da diretoria executiva do Brasil no Banco Mundial. Guedes deixou a posição desocupada por cerca de sete meses para depois, a pedido de Bolsonaro, indicar o ex-ministro Abraham Weintraub, nome escandalosamente inadequado. Desnecessário frisar o rebaixamento do Brasil que resulta dessa indicação. Weintraub como diretor executivo do Banco Mundial é coisa de Quarto Mundo!

O pior é que fizemos, em anos recentes, um esforço considerável, do qual eu mesmo participei, para assegurar a posição de diretor executivo exclusivamente para o Brasil, sem ter que compartilhá-la com outros países do nosso grupo no Banco Mundial.

Explico em poucas palavras. Quando cheguei a Washington, em 2007, para assumir a posição de diretor executivo pelo Brasil e outros países no Fundo Monetário Internacional, o Brasil apresentava uma vulnerabilidade importante: o nosso poder de voto no FMI era insuficiente para garantir com segurança a posição de diretor executivo para o país. A solução encontrada por meus antecessores tinha sido negociar com os países do nosso grupo nas instituições em Washington – grupo que era essencialmente o mesmo no FMI e no Banco Mundial – o seguinte arranjo: o Brasil reteria o comando exclusivo no FMI, mas aceitaria uma rotação na posição de diretor executivo no Banco Mundial com Colômbia e Filipinas. Os meus antecessores acreditavam, com razão, que o FMI era mais importante do que o Banco Mundial, valendo assim a pena aceitar a rotação na diretoria executiva desse último para garantir exclusividade na diretoria do primeiro.

Mas esse arranjo não era satisfatório. Geralmente, eram fracos, às vezes muito fracos, os nomes indicados por Colômbia e Filipinas para a rotação no cargo de diretor executivo, e a nossa atuação no Banco Mundial sofria com isso. No meu período em Washington, negociamos a duras penas, com sacrifício e não sem muitos embates, um aumento sem precedentes do poder de voto do Brasil no FMI. Tudo isso está relatado em detalhes no livro acima referido, que publiquei recentemente. Graças a esse fortalecimento na nossa posição no FMI, foi possível em seguida dispensar a rotação no Banco Mundial com Colômbia e Filipinas – não sem desagradar esses países, claro, que insistiam em conservá-la.

Pois bem, o que faz Paulo Guedes? Primeiro, deixa o cargo desocupado por cerca de 7 meses, como mencionei. E, depois, indica o deplorável Abraham Weintraub. Foi para isso que o Brasil tanto insistiu em manter o comando permanente do nosso grupo de países no Banco Mundial?

Banco Interamericano de Desenvolvimento

Absurda, também, foi a atuação no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Trata-se de banco importante para a América Latina e o Caribe, que tem condições de mobilizar volume expressivo de recursos para projetos de investimento e desenvolvimento econômico e social na região. Haverá em breve eleição para a presidência do BID. Existe uma regra não escrita, mas sempre respeitada desde a criação do BID, em 1959, de que presidência fica com um latino-americano. Da mesma forma, regras não escritas reservam a presidência do Banco Mundial para um americano, e a do FMI para um europeu.

Guedes resolveu apresentar candidato brasileiro, escolhendo um nome praticamente desconhecido da área bancária privada. Contava aparentemente com apoio americano, em razão da relação supostamente especial entre Trump e Bolsonaro. Não funcionou. O governo Trump atropelou a candidatura posta por Guedes e resolveu apresentar candidato próprio, Mauricio Claver-Carone, um cidadão americano, de ultradireita, integrante do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca. Trump mostrou assim disposição de violar a regra sempre respeitada por todos os países membros, inclusive os Estados Unidos, de que a presidência cabia a um latino-americano.

O que faz então Guedes? Cúmulo da indignidade, emite uma nota conjunta com o chanceler Ernesto Araújo, dando boas-vindas à candidatura americana! Ou seja, concordando com a disposição dos Estados Unidos de violar a regra não escrita que favorece a América Latina e, na prática, jogando o candidato brasileiro ao mar. Como observou alguém, a definição de vira-lata foi atualizada com sucesso.

A bem verdade, a metáfora de Nelson Rodrigues – o célebre complexo de vira-lata que caracteriza o comportamento do brasileiro diante de americanos e europeus – já nem mais dá conta do grau de subserviência exibido pelos integrantes do governo brasileiro, a começar pelo próprio Bolsonaro.

Há um agravante, que ainda não foi noticiado no Brasil. Em entrevista à agência EFE, publicada em 17 de junho, Claver-Carone afirmou que a ideia da candidatura americana teria partido, por incrível que pareça, do próprio Bolsonaro: “Em uma chamada telefônica, casual, há duas semanas”, disse ele, “o presidente Bolsonaro havia dito ao presidente Trump que estava pensando em um candidato (para o BID), mas que apoiaria um candidato norte-americano, se fosse apresentado. E com isso começamos a pensar nas circunstâncias, e se era factível fazê-lo nesses momentos excepcionais”.

Talvez não seja verdade, mas faço o registro. Caberia apurar. Custo a crer que um presidente brasileiro, mesmo Bolsonaro, se rebaixe dessa maneira. A ser verdadeira essa informação, já não estaríamos diante de vira-latismo ou complexo de inferioridade, como mencionei, mas da mais pura e abjeta vassalagem.

 

A nossa infelicidade, volto a dizer, é a combinação letal do pior governo da nossa história com a pior crise da nossa história. E ninguém deve se iludir ou tentar iludir outros: Paulo Guedes e sua equipe constituem parte integrante – e destacada – desse desastre.

A parte inicial deste texto foi publicada como artigo na revista Carta Capital, em 26 de junho de 2020.

Paulo Nogueira Batista Jr. é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países. Lançou no final do ano passado, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata.

Pandemia, desorganização social e futuro desolador  

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Desde o começo de março a sociedade brasileira se vê à volta com a maior crise sanitária de sua história recente, nesta situação de pandemia as nossas entranhas estão as mostras, a desigualdade assombrosa escancara as dificuldades das questões sociais, nossos medos mais íntimos e pessoais e as expectativas de um futuro melhor e mais convincente se tornam cada vez mais distantes, estamos afogados numa crise sanitária, somada a uma grande crise econômica e, uns falam em uma queda de mais de 5% do produto interno bruto, outros falam em mais de uma queda ainda maior, para piorar as condições sociais, tão degradadas nos anos recentes, uma enorme crise política e rumamos para um risco institucional, cujas repercussões ainda não podem ser mensuradas.

Como a situação atual, percebemos um Estado absurdamente incompetente e sem organização, onde os gestores responsáveis pelas políticas públicas estão dando-nos mostras claras de desculpas esfarrapadas marcadas pela incompetência, com isso, percebemos uma sociedade indefesa e assustada, reféns de um vírus assustador, levando milhares de pessoas ao falecimento iminente, gerando na sociedade marcas e sentimentos sinceros de que as coisas poderiam ser evitadas, desde que as ações fossem organizadas, planejadas e imediatas.

A situação econômica do país é assustadora, o incremento no desemprego é uma realidade cruel, muitos empresários e empreendedores que precisam fechar suas portas marcadas por uma pilha imensa de boletos não pagos e dívidas crescentes, crianças presas em casas e impedidos de suas brincadeiras, levando um aumento da depressão, da ansiedade e de todos os mais violentos transtornos mentais e emocionais, gerando uma coletividade agressiva e desesperança, onde a solidariedade se torna uma forma de uma seleção social, diferenciando pessoas e comportamentos dos indivíduos.

Neste ambiente, percebemos que a grande maioria dos países do mundo estão recorrendo aos recursos do Estado, criando instrumentos monetários para aumentar a quantidade de liquidez, dos créditos e dos investimentos, para evitar que a solução se aprofundem, levando recursos para todos os grupos e coletividades para que morram de inanição e da desesperança. Diante desta situação marcada pelo caos social e econômica, os grupos mais ortodoxos e liberais, defensores do Estado mínimo e a pouca intervenção do Estado na lógica dos defensores dos interesses da superioridade dos Mercados, sendo obrigados a defenderem política que não acreditam, fazendo-as de forma tímida e sem empolgações, passando uma imagem de desorganização e inconsistência, abrindo espaços para instabilidades e incertezas.

Neste ambiente marcado pelas necessidades de isolamento social, quarentena e pouco social, os indivíduos são impulsionados ao medo e para as preocupações de um futuro marcado pelas incertezas, que se somam aos medos contemporâneos já existentes, levando as pessoas a buscar crescentes, gerando desequilíbrios emocionais e problemas variados existenciais, nesta sociedade os seres humanos se encontram em uma grande encruzilhada, onde as escolhas devem ser feitas com calma e paciência, mesmo sabendo que vivemos em uma sociedade que exija respostas rápidas e decisões imediatas e dinâmicas.

A crise do coronavírus, vitimada pelo covid-19, leva a economia global a desequilíbrios crescentes, pela primeira vez, estamos vivenciando um momento marcado por crises que afetam, concomitantemente, os dois lados da teoria econômica, impactando os lados da oferta e da demanda, gerando um grave desequilíbrio nas cadeias globais de produção, gerando desabastecimento na estrutura produtiva, obrigando países e regiões a terem suas produções reduzidas e de forma abruptas, diante disso, a crise local se espalha para todos os polos da economia internacional. Nesta situação de instabilidades, movimentos marcados pelo nacionalismo e pelo populismo ganham espaço na sociedade, gerando o surgimento de movimentos fascistas e autoritários, que passam a enfraquecer as democracias contemporâneas, levando a críticas ácidas e agressivas à ciência e a racionalidade científica, muitos destes movimentos pressionam as forças da globalização e uma defesa pela desglobalização, a um fechamento econômico e de estímulos as políticas protecionistas.

Neste ambiente marcado por milhões de mortes vitimadas pelo covid-19 em escalas internacionais, os governos devem se unir em escala global e ao mesmo tempo, os governos locais devem se fortalecer em prol dos seus concidadãos, aumentando os investimentos em saúde e pela defesa da vida, máquinas e tecnologias médicas, estas devem ser vistas como a situação racional, necessária e urgente de um governo nacional e consciente das necessidades da sua população.

Na sociedade brasileira, percebemos inúmeros desajustes na atuação desta crise sanitária, de um lado governantes que acreditam que o coronavírus deve ser visto como uma gripezinha, mesmo sabendo que o poder de destruição é violento, de outro lado, suas decisões são lentas e inoperantes, recursos canalizados para as micros, pequenas e médias empresas demoram a se efetivar, levando muitos grupos a insolvência e a falência generalizadas, fortalecendo um ambiente marcado pelos generosos privilégios para uma parte da coletividade, enquanto a grande massa da população se encontram chafurdando na degradação e da desesperança, sem créditos, sem empregos e sem futuros, caminhando rapidamente para o caos econômico e pelas insolvências social e moral.

Os socorros chegam rapidamente quando os poucos afortunados estão demandando recursos do governo nacional, neste momento surgem créditos suplementares que brotam em contas correntes de polpudos afiliados dos privilegiados, neste momento bilhões e bilhões de reais abastecem seus negócios, enquanto os mais desprovidos de recursos esperam meses e meses para ter acesso a fundos criados para garantir recursos futuros, que rendem valores irrisórios e vexaminosos, perpetuando uma situação de degradação social e exploração crescente e incessantes.

O Brasil vive uma situação sui generis, percebemos na contemporaneidade um aumento da degradação do meio ambiente, que cresce de forma acelerada e estimulando muitos investidores internacionais a reduzirem os investimentos no nosso país, neste momento percebemos que um grupo de gestores de fundos de investimentos, responsáveis pela administração de mais de 17 trilhões de dólares, publicando uma carta endereçada ao governo federal, com ameaças de diminuir os investimentos na economia brasileira, na carta os fundos criticam fortemente o aumento da devastação da floresta Amazônica, o desprezo com o meio ambiente e o incremento da devastação do clima, com isso, percebemos uma imagem do Brasil no cenário bastante negativo, com fortes prejuízos para a sociedade nacional, ainda mais, no momento de auge da pandemia e das dificuldades econômicas, sanitárias, sociais e políticas.

Recentemente, o Tribunal de Contas da União (TCU), apresentou um relatório da atuação do governo federal diante na situação de pandemia, onde ficamos conhecendo como o quadro é sombrio e assustador, cujas políticas públicas se caracterizaram pelo amadorismo e incompetência, sem organização e ausência de planejamento, gastos desnecessários e políticas ineficiente, neste ambiente de tremendo desastre, o balanço do combate do coronavírus apresenta graves deficiências, que se materializam em mais de 1,2 milhão de infectados e mais de sessenta mil mortos, um verdadeiro genocídio, com impactos devem povoar a sociedade durante muito tempo.

Nesta sociedade, alguns se especializaram na espoliação da esperança da população, na conjuntura de caos generalizado, percebemos projetos que persistem em entrar na pauta dos grupos mais amoedados, persistem em reformas equivocadas, mudanças que aumentam os privilégios de uma minoria em detrimento de uma grande parte da sociedade, uma elite imediatista, hipócrita e degradante que nos conduz para um retrocesso civilizatório, com matanças de populações indígenas, de negros e de pobres.

O grande inimigo é o vírus, a crise está sendo agravada pelas atitudes equivocadas e limitadas, embora percebamos muitas pressões sociais pela abertura das atividades, a abertura sem encontrarmos um pico de infectados, veremos uma situação marcada por abertura alternadas por fechamentos, gerando maiores prejuízos na sociedade, mortalidades em alta, falências generalizadas e apreensão de todos os grupos sociais. Nesta sociedade, o vírus nos mostra, como somos uma sociedade pobre e desigual, embora tenhamos um produto interno bruto algo na casa dos 6,7 trilhões de reais, temos uma estrutura social marcada por fortes desigualdades, neste ambiente, uma parte significativa da sociedade não pode ficar alguns meses em casa, pois correm o risco de morrer sem alimentos, sem esperanças, sem perspectivas e vitimado pela depressão.

Numa sociedade onde o governo federal demora a estruturar formas de socorro da sociedade e, principalmente, dos grupos de menos recursos monetários, percebemos um verdadeiro genocídio, que levam grandes levas de cidadãos a inanição e desesperança. Neste ambiente, uma intervenção governamental é fundamental para evitarmos mortes crescentes, recursos devem ser injetados na economia, políticas públicas devem ser construídas em caráter de emergência, sem estas atuações urgentes e necessárias, o país brevemente se tornará o grande líder dos infectados e seus impactos econômicos, sociais e políticos seriam incomensuráveis.

Estamos vivenciando um grande retrocesso civilizatório, depois de um incremento de políticas direcionadas a grupos e minorias, vivemos uma reversão de políticas inclusivas, reduzindo de investimentos sociais generalizados e uma convicção centrada em austeridades, redução dos gastos sociais e aumento dos gastos de dívidas públicas, uma verdadeira estrutura de criar degradação social, pobrezas crescentes e medos generalizadas. Depois de forte crescimento econômico e políticas inclusivas, que levaram revistas internacionais, dentre elas destacamos a célebre capa da revista The Economist que retratava o Cristo Redentor decolando, percebemos a morte da esperança e do crescimento da desesperança, do medo e da redução da solidariedade, onde uns poucos controlam as estruturas políticas, os recursos econômicos e financeiros, vivemos na atualidade uma tempestade perfeita.

Desde 2015/2016, a economia brasileira vivemos de grande degradação, neste ambiente rumamos para um incremento acelerado do desemprego, cujas perspectivas estamos caminhando para mais de 25 milhões de cidadãos sem empregos, sem políticas claras e emergentes, nosso futuro comem deve ser tornar mais nebuloso, do desemprego rumamos para um incremento no subemprego e na informalidade, cujos impactos são a violência e a exclusão social, uma verdadeira degradação social e emocional, com aumento na depressão, na ansiedade, no suicídio e transtornos variados.

A sociedade está se degradante de forma  acelerada, muitos governos estão querendo terceirizar as suas responsabilidades, empresários gananciosos e imediatistas pressionam para a abertura atabalhoada e uma população fortemente amedrontada, uma sociedade marcada pela ausência da cidadania e de carências crescentes, neste momento precisamos de um norte, um rumo, uma liderança consistente e confiável para buscarmos novas expectativas e maiores perspectivas de uma construção interrompida, sem estes instrumentos políticos, nossa sociedade viverá mais do que uma década perdida, mas um século de atrasos e desesperanças.

 

 

 

 

Se as pessoas não acreditarem na democracia, instituições serão frágeis contra autoritarismo, por Renato Janine.

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É ilusão olhar só as instituições, como fez Yascha Mounk, porque elas não substituem o povo, fonte do poder na democracia

Folha de São Paulo, 27/06/2020.

Depois que caiu a ditadura argentina, nos anos 1980, houve algumas tentativas de golpe militar, quando iam a julgamento os criminosos que haviam exercido o poder. A cada vez, multidões tomavam as ruas e repudiavam a ação subversiva e antidemocrática.

De lá para cá, a Argentina viveu graves crises econômicas —como nós—, mas nunca a democracia esteve em risco. Teve e tem apoio popular.

Digo isso a respeito do artigo de Yascha Mounk, “Brasil já é uma democracia sob supervisão militar”.

Concordo com o título e com a tese principal. Mas estranhei sua alusão a “especialistas brasileiros que consultei alguns anos atrás e que sentiam confiança na força das instituições brasileiras”, porque segundo eles “os militares haviam se afastado de vez da política”.

O problema é que instituições somente são fortes se tiverem apoio popular. Esse apoio pode se chamar cultura política, educação política. Não me deterei na diferença entre esses conceitos, mas insisto: se as pessoas não acreditarem na democracia, as instituições serão frágeis contra o autoritarismo.

Infelizmente, o que nos preservou da ditadura, desde 1985, foi a fraqueza dos antidemocratas, mais que a força dos democratas. A ditadura acabou em fiasco, inclusive econômico, mas não sofreu punições.

Uma comissão da verdade demorou décadas para ser criada. A anistia que o regime de exceção deu a si mesmo, embora condenada internacionalmente, foi mantida pelo STF.

A fraqueza de nossa democracia é a fraqueza da convicção democrática dos brasileiros. Não emplacamos a ideia de que a divergência política é legítima. Na verdade, aumentou a crença de que quem diverge de nós é corrupto. Ora, na política democrática sempre há ao menos duas vias legítimas e diferentes.

Mas nossas últimas campanhas eleitorais, bem como o antipetismo, fundaram-se na deslegitimação do adversário, convertido em inimigo porque seria ladrão.

Além disso, a democracia não resolveu nossos problemas sociais. De Itamar Franco a Dilma Rousseff, diferentes governos o tentaram. O IDH-M (Índice de Desenvolvimento Humano de Municípios) melhorou sensivelmente. Os governos petistas foram mais longe neste rumo, mas a trilha foi aberta por Itamar e FHC.

Porém, não se construiu a consciência de que os avanços se deviam a políticas públicas —ou à política.

Em vez disso, multidões atribuíram sua melhora de vida, nos anos prósperos do começo do século, a Deus ou ao esforço pessoal, esquecendo a dimensão coletiva, pública, que é a da política.

Esse é o problema. Foi e é uma ilusão olhar só as instituições. Podemos vibrar com uma ação do presidente da Câmara ou de alguns ministros do STF, mas eles não substituem a fonte do poder, que na democracia é o povo.

Sem uma convicção e práticas democráticas enraizadas, nossa democracia continuará, como diz a revista britânica The Economist, “flawed”, ferida, defeituosa.

O erro não é de Yascha Mounk, mas de seus informantes brasileiros, que não viram esse déficit inquietante de consciência política.

Renato Janine Ribeiro

Professor titular aposentado de ética e filosofia política da USP e professor visitante na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). Foi ministro da Educação em 2015, durante o governo Dilma Rousseff (PT). Autor de ‘A Pátria Educadora em Colapso’ (ed. Três Estrelas)

 

Eugenia e coronavírus, por Cida Bento.

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Crianças e adolescentes da periferia e das favelas são os mais atingidos pela Covid-19

Folha de São Paulo – 25/06/2020

Inúmeras são as reportagens e estudos apontando que o ocultamento ou manipulação do dado cor/raça nos formulários de notificação da Covid-19 e, acrescente-se a esse contexto, a retirada do CEP dos registros representam um esforço de encobrir uma política eugênica que não investe esforços para estancar a pandemia porque quem está sendo preferencialmente atingido são os pobres, os negros e os favelados.

Assim, o crescimento e a ampliação de vozes contra a ideia de que algumas vidas valem mais do que outras, que caracteriza o fascismo e o racismo, é fundamental como forma de preservar e fortalecer as instituições, que devem se posicionar firmemente protegendo os direitos de sua população, em particular de suas crianças e adolescentes.

No Brasil, o número de mortes e internações de crianças e adolescentes na pandemia está muito acima dos demais países, e a maior parte dessas crianças e adolescentes são negras, vivem em periferias, favelas ou bairros pobres, de acordo com artigo de Julia Dolce, da Agência Pública, de junho de 2020.
No universo dos adolescentes, são 59,4% de negros entre os casos notificados, ante 38,8% dos de brancos.

Dolce destaca ainda que a mortalidade de jovem brasileiro por covid-19 é praticamente dois terços maior do que a verificada em países ricos, segundo pesquisa da Universidade de Paris.

No entanto, o dado cor/raça, fundamental para compreender melhor essa situação, figura como “ignorado” ou mesmo não preenchido em aproximadamente 40% dos formulários de hospitalizações e óbitos, indicando que a lei não vem sendo cumprida e o Estado não desenvolveu campanhas explicativas sobre a importância dessa informação para a definição de políticas públicas a fim de enfrentar os desafios da pandemia.

Importa destacar aqui que a mortalidade de crianças e jovens negros, de indígenas, idosos, quilombolas, seja pela ação, seja pela omissão do estado, pode representar a política eugenista, na atualidade.

A eugenia significa esterilizar, exterminar, invisibilizar, separar os indesejáveis. Assim, se crianças e adolescentes das periferias e favelas são atingidos diferencialmente pela Covid-19, eles também o são pela brutalidade policial, como observamos no aumento de assassinatos de crianças e adolescentes nos últimos anos.

Em 2019, cinco crianças de menos de 12 anos e 43 adolescentes de 12 a 18 anos foram mortos nas favelas do Rio de Janeiro por agentes do Estado brasileiro —policiais.

E, segundo o Atlas da Violência 2019, na idade de 21 anos, quando ocorre o pico dos riscos de uma pessoa ser vítima de homicídio, negros têm 147% mais chances de serem assassinados do que brancos.
Mortos em casa, em parques de diversões, nas escolas, em diferentes lugares das periferias e favelas onde deveriam estar protegidos. Diversos estudos têm revelado que a identificação do local é um dos elementos que legitimam a morte.

A ideia de favela construída como ausência, ilegalidade e desordem, um “problema” a ser solucionado, vem permitindo a entrada abusiva do Estado para lidar com a violência. Então, retirar o CEP de registros não é invisibilizar a política nas periferias e favelas?

Mais do que nunca, precisamos juntar as diferentes vozes da sociedade brasileira na retomada dos pactos civilizatórios que possibilitam o cumprimento do que define a Constituição Federal: a proteção integral de todas as crianças e adolescentes e de segmentos vulnerabilizados da sociedade.

Cida Bento

Diretora-executiva do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), é doutora em psicologia pela USP

 

No mundo de Bolsonaro, neoliberalismo e maluquice servem a mesmo propósito

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A luta contra a corrupção foi apenas o pretexto para uma luta maior: a luta contra a lei

Marcelo Coelho – Folha de São Paulo – 24/06/2020

Não é preciso insistir no que houve de ignorância e despropósito durante a passagem de Abraham Weintraud pelo Ministério da Educação.

Acho interessante outro tipo de comentário. A saber, o de que Weintraub “não fez nada”, deixou tudo parado, não “tocou nenhum projeto”.

Na verdade, o objetivo era esse mesmo. Na famosa reunião ministerial, Weintraub se limitou a expressar o desejo de ver membros do STF na cadeia.

Ele também explicou o que o fizera aderir ao governo Bolsonaro: a “luta pela liberdade”. “Não quero ser escravo neste país”, acrescentou.

O povo não está gritando “por mais projetos”, disse ele. “Está lutando pela liberdade”. Toda essa discussão de “vamos fazer isso, vamos fazer aquilo” não seria capaz de mobilizá-lo. O principal, repetiu, era lutar —e não dialogar— contra os que querem “as tetas” do Estado.

Vieram, como condimento, confissões de “ódio” aos partidos comunistas, às expressões “povos indígenas” e “povo cigano” e, como se sabe, ao STF.

Esse discurso se deu numa ocasião em que se apresentava, justamente, um “plano” para a recuperação econômica do país. Nada de concreto, como se sabe, mas o suficiente para justificar projeções de PowerPoint e palavras de confiança no futuro.

O que deduzir disso?

É possível que exista um setor do governo, composto por ministros militares como o da Infraestrutura, ainda ligado à ideia de que o Estado serve para “fazer alguma coisa”.

O sentido básico do governo Bolsonaro, entretanto, é claramente outro. A ala financeira de Paulo Guedes, assim como a ala dos fanáticos evangélicos e olavistas, está unificada num propósito claro —o de destruir o Estado.

Neoliberalismo feroz e maluquice conspiratória são faces da mesma moeda. O núcleo supostamente técnico de Paulo Guedes e a turma delirante da guerra contra índios, quilombolas e comunistas compartilham da mesma visão de mundo.

Fascismo? O filósofo político Renato Lessa, numa discussão disponível no Youtube (procure por “Simpósio Direitas Brasileiras”), questiona essa caracterização.

Claro que podemos chamar de “fascista” esse governo e seus seguidores. São truculentos, extremistas, vulgares, despreparados, belicosos e idiotas.

Mas o fascismo, lembra Renato Lessa, buscava incorporar todos à máquina do Estado. Havia destacamentos infantis, associações de jovens, alas femininas. Desenvolvo a ideia por minha conta: o plano era criar uma escola fascista, uma arte fascista, uma medicina fascista. A ideologia era totalitária, de fato, porque absorvia toda a sociedade (excluídos os “elementos indesejáveis”) em organizações de Estado.

O plano de Bolsonaro é sem dúvida inverso —embora a mentalidade ativista e truculenta seja comparável à dos camisas-negras. Trata-se de unificar não só os que são contra o Estado, mas também os que estão à margem, ou fora, da lei.

É a ilegalidade no poder: isso unifica milícias, madeireiros, invasores de terra indígena, destruidores de patrimônio histórico, infratores contumazes de trânsito, sonegadores de impostos, policiais torturadores, militantes racistas, compradores de armas de fogo.

Uma ampla parcela de trabalhadores informais, de pequenos empreendedores, de profissionais liberais que acham complicado preencher nota fiscal, de donas de casa revoltadas com os novos direitos das domésticas, alia-se ao clube.

Os antigos representantes do pensamento econômico liberal encontraram, assim, uma base social imprevista.

O Estado brasileiro, que já não funcionava, deixou abandonada uma gente que se acostumou a se virar sozinha, fugindo de fiscais, empregando ou sendo empregada sem respeito à CLT, estudando em faculdades particulares de última categoria.

Estado para quê? “Só serve para atrapalhar”, pensa essa população que, na verdade, é vítima precisamente da falta de um Estado que funcione. “Melhor a milícia! Melhor a gente se armar! Melhor o Guedes!”

Do outro lado, temos os evidentes casos de corrupção, de crise fiscal e de carência nos serviços públicos a alimentar com fatos reais o delírio extremista e destrutivo.

Não é por acaso que o bolsonarismo se volte contra o Judiciário, de cujas ações se beneficiou. A luta contra a corrupção foi apenas o pretexto para uma luta maior: a luta contra a lei.

Marcelo Coelho

Membro do Conselho Editorial da Folha, autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”. É mestre em sociologia pela USP.

 

A intransigência da retórica liberal, por Luiz Guilherme Piva

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Não cabe agora discurso ortodoxo da futilidade, da perversidade e da ameaça3

Luiz Guilherme Piva

Folha de São Paulo – 23/06/2020

A pandemia de Covid-19 está agravando o já alarmante quadro brasileiro, de mais de 12 milhões de desempregados, de 40 milhões de trabalhadores informais, de 6.000 mortes anuais por fome, de 5 milhões de desnutridos e de 24 milhões vivendo em extrema pobreza.

Além disso, milhares de pequenas e médias empresas estão fechando, e boa parte das grandes, quebrando ou entrando em recuperação judicial, com perda de produção e riqueza.

Antes da pandemia, os economistas liberais ortodoxos já se posicionavam, por princípio, contrariamente a ações públicas. Isso porque creem que a obtenção de superávits primários é a panaceia que infunde confiança nos atores privados e os faz agir para suprir as necessidades sociais de investimentos, bens e serviços —daí a pregação pelo Estado mínimo.

Com a destruição vinda com a pandemia, tendo surgido proporções de atuação governamental, até com apoio de economistas liberais, muitos deles, não obstante, reiteraram sua resistência. Faz sentido. Vários dos economistas dessa linha acreditam que, frente a um problema complexo, se ninguém fizer nada, tudo dará certo.

Tal resistência abriga o que o economista Albert Hirschman (1915-2012) denominou retórica da intransigência, associada à aversão a mudanças. Ela contém três teses: a da futilidade, segundo a qual tentativas de promover mudanças são inúteis (porque, no caso aqui tratado, o mercado é quem traria a solução estrutural); a da perversidade, que advoga que elas só agravam o quadro existente (no nosso quadro, piorariam o desemprego, a miséria e a desigualdade); e a da ameaça, que esgrima que o custo de mudanças é elevado e compromete conquistas já obtidas (no caso em tela, os gastos públicos arruinariam o ajuste fiscal, entornando o remédio e seus benefícios).

O debate econômico acerca da linhagem liberal é rico, e há nuances importantes dentro dela, mesmo no cenário brasileiro atual. Mas, em momentos trágicos como o que vivemos, não se entende que muitos de seus membros, mais ortodoxos, questionem a validade de políticas públicas ativas nos campos social e econômico.

Pode-se discutir acerca do alcance da injeção de recursos: a gradação vai desde a escolha de regiões, setores e públicos-alvo até a distribuição irrestrita, que o heterodoxo Nobel de economia Paul Krugman defende e chama de “helicopter money” —imagem, aliás, lançada com viés mais crítico em 1969 pelo ultraliberal e também Nobel de economia Milton Friedman (1912-2006). Mas neste momento não cabe o discurso da futilidade, da perversidade e da ameaça que muitos liberais ortodoxos têm emitido.

E o fazem com alarido, o que cria um paradoxo com o conceito, do mesmo Hirschman, de “voice” (voz), contraposto ao de “exit” (saída). Enquanto esta é a recusa silenciosa, e predominantemente individual, a um produto ou a uma política, aquela se faz pela manifestação ruidosa e coletiva em prol de mudanças e de quebra de padrões.

E o que temos por aqui é, contraditoriamente, a retórica barulhenta de um grupo de economistas ortodoxos que escrevem, palestram e dão entrevistas altissonantes contra ações mudancistas e em defesa da inércia conservadora.

Enquanto isso, a pandemia segue matando, pela doença e pelo desemparo econômico e social, milhares de brasileiros.

Luiz Guilherme Piva

Economista, mestre (UFMG) e doutor (USP) em ciência política e autor de ‘Ladrilhadores e Semeadores’ (Editora 34) e ‘A Miséria da Economia e da Política’ (Manole)

‘Estado brasileiro concentra renda e terá de ser repensado’, diz Eduardo Giannetti

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Para economista, crise provocada pelo coronavírus escancarou o cenário de desigualdade do Brasil. Ele também avalia que o ritmo de recuperação será modesto diante do quadro de incertezas com a evolução da doença.

Por Luiz Guilherme Gerbelli, G1 – 01/06/2020  

O economista Eduardo Giannetti afirma que a crise provocada pelo coronavírus escancarou o cenário de desigualdade do Brasil. Responsável por absorver 39% da renda nacional, o Estado brasileiro, segundo ele, tem atuado na direção de concentrar a renda e terá de ser repensado depois de superada a pandemia.

Num cenário que combina um quadro sanitário grave, aprofundamento da crise econômica e incerteza política, Giannetti avalia que a recuperação da economia será claudicante. “É um período lento de tentativa (de reabertura) e eventuais retrocessos. Os investidores e consumidores vão ficar apreensivos por algum tempo com relação ao futuro, portanto, vão trabalhar com o freio de mão puxado”, diz.

A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao G1.

  • Qual avaliação que o sr. faz do momento atual da economia? 

Essa crise é totalmente diferente do que nós estamos acostumados a ver. Há duas diferenças. Primeiro, a crise vem de fora da economia. É um vírus, que conseguiu pular as espécies e entrar no ser-humano. A segunda característica diferenciadora é que não é uma recessão nem uma depressão. É um colapso. É uma parada súbita. Repentinamente a produção e o consumo se viram dramaticamente tolhidos pela necessidade de conter a propagação de um vírus letal.

  • E qual é o cenário que se desenha para a economia? 

Eu trabalho com três cenários e eles têm probabilidade distintas. Tem o cenário de recuperação vigorosa. Ou seja, ultrapassada a fase crítica da pandemia, a economia rapidamente retoma o nível de atividade pré-crise. O segundo cenário é de uma recuperação claudicante. É um período lento de tentativa (de reabertura) e eventuais retrocessos. Os investidores e consumidores vão ficar por algum tempo apreensivos com relação ao futuro, portanto, vão trabalhar com o freio de mão puxado.

O terceiro cenário é de depressão. Se nós tivermos novas ondas sérias de contaminação, se as coisas pioram, podemos entrar num período longo de confinamento e falta de perspectiva, o que pode levar a economia para um período prolongado e muito abaixo do nível de normalidade.

  • Desses cenários, qual deve ser o mais provável para a economia? 

Os dois cenários extremos, de recuperação vigorosa e a prolongada depressão, são menos prováveis. Eu aposto nesse cenário que está se desenhando, de uma recuperação claudicante.

  • Além da questão sanitária, o Brasil ainda tem um agravamento do quadro econômico e lida com a incerteza política. Como o país sai dessa crise? 

O Brasil tem uma boa notícia na comparação com o mundo emergente: nós estamos com as contas externas muito equilibradas e robustas. Não temos obrigações em moedas estrangeiras que nos deixam vulneráveis. Nosso déficit em conta corrente é pequeno e vem sendo plena e confortavelmente financiado pelo investimento direto estrangeiro. Temos reservas cambiais e as nossas exportações estão se mostrando muito resilientes ao longo do coronavírus.

  • E o que fragiliza o Brasil? 

São duas coisas. Primeiro, a obscena desigualdade que prevalece na sociedade brasileira. São dezenas de milhões de brasileiros que vivem numa situação de extrema vulnerabilidade. São trabalhadores informais que vivem numa situação de completa precariedade, não tem uma situação regular de emprego. Vamos ter de pensar com muito mais seriedade, passada essa crise, como é que nós vamos, para começo de conversar, prevenir ou impedir que dezenas de milhões de brasileiros não tenham sequer uma situação regular de emprego. Isso não é normal, isso é uma aberração institucional brasileira.

  • E a segunda fragilidade? 

Está na política. O Brasil foi pego nessa tremenda emergência com uma presidência da República disfuncional, com um presidente que demite o ministro da Saúde em plena pandemia por discordar dele numa questão técnica. É alguém que acredita em pensamento mágico, alguém que quer resolver as questões na bravata e ainda se vê envolvido numa crise política de enormes proporções.

  • O que será necessário repensar do Estado brasileiro? 

O Estado brasileiro arrecada anualmente 33% do PIB em impostos. A nossa carga tributária bruta está fora do padrão para um país de renda média. O Estado brasileiro também gasta mais do que arrecada. O nosso déficit nominal, antes da crise sanitária, estava em torno de 6% do PIB. Estamos falando de 39% da renda nacional intermediada pelo setor público brasileiro.

  • E o que tem de ser feito para corrigir? 

O sistema brasileiro tributa desproporcionalmente quem menos pode pagar porque está calcado em impostos indiretos, que incidem sobre o consumo e a produção. Nós temos que redesenhar o sistema tributário.

Temos de repensar o modelo de Estado no Brasil, que é altamente centralizado no governo central. O dinheiro vai até Brasília para depois voltar para os entes federativos, que têm as atribuições de interesse dos cidadãos: educação, saúde, saneamento, segurança e transporte. O cidadão não tem a menor ideia de quanto paga de impostos da sua renda, não sabe para onde vai o tributo. Não existe cidadania tributária no Brasil. Não estou questionando o tamanho da carga tributária. Temos de colocar o Estado a serviço da grande maioria desassistida da população. É o grande desafio que temos de enfrentar necessariamente depois dessa crise. Essa crise escancarou essa realidade.

  • Essa vai ser uma cobrança da sociedade? 

Essa questão está amadurecendo na consciência da sociedade brasileira. Não posso garantir, mas eu acho que a sociedade vai ter de acordar para essa desfuncionalidade do Estado. Nesse ponto, a agenda da equipe econômica liderada pelo Paulo Guedes é correta. Menos Brasília, mais Brasil. O cidadão não mora no governo federal, mora no município. Ele tem de pagar impostos no município e receber recursos de volta, cobrando do município.

  • A agenda de reformas saiu do foco por causa da pandemia. Mas qual é o futuro dela? 

O Brasil estava saindo da emergência fiscal no momento em que foi atingido pelo coronavírus. Era o momento de começar a visualizar uma ancoragem fiscal e estava delineado um caminho em que a dívida pública como proporção do PIB se estabilizaria e passaria a declinar lentamente depois de algum tempo. Agora, o que está contratado, em função da crise, é um crescimento da dívida pública. Vamos sair dessa crise com alguma coisa ao redor de 90%, 100% do PIB de dívida pública.

  • É preocupante esse patamar de dívida pública? 

Não é uma situação inadministrável. O que tem de ficar claro é que mudou o patamar da dívida pública, mas ela não pode continuar crescendo no ritmo em que ela cresceu durante a crise. Vamos ter de garantir que ela se estabilize e, a partir daí, vamos repensar para saber como diminuir o tamanho da dívida em relação ao PIB. É uma questão de fluxo, não de estoque. E vai exigir atenção para que o fluxo não continue numa trajetória explosiva para o setor público brasileiro não quebrar.

  • Do que vai depender essa estabilização da dívida? 

Vai depender de uma série de esforços, da eficiência do setor público, manter juros baixos, uma reforma administrativa. Eu acredito que é importante essa contrapartida que o governo federal está exigindo dos estados de não reajustar salário de servidores por um bom tempo daqui para frente.

 

 

Vivemos subnotificação catastrófica de depressão na pandemia, diz Andrew Solomon

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Autor de best-seller sobre a doença diz que há equivoco ao achar que saúde mental é um luxo.

Patrícia Campos Mello – Folha de São Paulo, 22/06/2020

Em “O Demônio do Meio-Dia: Uma Anatomia da Depressão”, premiado best-seller internacional, Andrew Soloman, 56, examina o contexto cutural e científico da doença que o acometeu. Desde a publicação do livro, em 2000, ele virou uma referência mundial no assunto.

Em tempos de pandemia e isolamento social, Solomon acredita que há um grande risco em relação à depressão. Segundo ele, a gravidade da Covid-19 leva as pessoas a acharem que saúde mental é um luxo.

“Vivemos uma subnotificação de problemas de saúde mental em escala catastrófica, e há consequências muito sérias”, diz à Folha o professor de psicologia clínica na Universidade Columbia. Ele afirma que o isolamento social necessário na pandemia pode contribuir para um aumento nos casos de depressão.

Solomon acredita que muita gente não se dá conta que deveria e poderia buscar ajuda.

“Como temos que lidar com uma doença grave, a Covid-19, as pessoas acabam achando que saúde mental é um luxo, algo não essencial no momento. Não é um luxo, as pessoas morrem de depressão, as pessoas deixam de funcionar, há vários problemas físicos que são consequência da depressão”, afirma Solomon, que iria abrir o ciclo de palestras Fronteiras do Pensamento, em maio.

Com a pandemia, as conferências serão realizadas no segundo semestre, em algum formato mais adequado à nova realidade.

O senhor tem conversado com várias pessoas que estão com sintomas de depressão durante o isolamento necessário na epidemia do novo coronavírus. Como uma pessoa pode saber se o que ela tem é uma tristeza normal, dadas as circunstâncias, ou se é uma depressão que requer ajuda?

 É difícil dizer. É bastante racional, no momento, achar tudo muito difícil e incerto e vivenciar algo que parece depressão ou ansiedade. Pode ser uma resposta natural a tudo o que está acontecendo. Um dos fatores-chave é saber como você se sente em relação ao presente e como você se sente em relação ao futuro.

É racional a sensação de que estamos vivendo tempos muito estranhos, que não poder sair de casa e encontrar pessoas é muito ruim e triste. Mas a sensação de que toda a sua vida desapareceu e nunca mais vai voltar ao normal é provavelmente fruto de uma depressão. Essencialmente, seja uma depressão que saiu do nada, como ocorre com muitas pessoas, ou uma depressão decorrente das circunstâncias atuais, as duas são muito incapacitantes. Elas são depressão e provavelmente são tratáveis.

Se você está preocupado, mas ainda está conseguindo funcionar, você provavelmente está apenas lidando com o que está acontecendo. Mas se você chega a um ponto em que não consegue dormir, come o dia inteiro ou não consegue comer nada, sente uma ansiedade enorme quando se senta para fazer coisas rotineiras, tudo isso são indicações de depressão.

O perigo é que as pessoas pensam que estão ansiosas porque estamos vivendo em tempos horríveis e deixam de procurar tratamento. E quando elas vão finalmente se tratar, a depressão já se aprofundou, e quanto mais se aprofunda, mais difícil para a pessoa se recuperar.

Eu disse a muitas pessoas: não quer dizer que não haja razões para você se sentir dessa maneira, mas acho que é muito incapacitante e não ajuda estar assim. Digo a essas pessoas que elas deveriam buscar algum tipo de tratamento, para que possam ficar um pouco mais funcionais.

O senhor acha que há uma subnotificação dos problemas de saúde mental atualmente?

Vivemos uma subnotificação de problemas de saúde mental em escala catastrófica, e há consequências muito sérias. Acabo de falar com um amigo que me contou a história de uma amiga. Ela já estava um pouco deprimida quando tudo isso começou. Morava sozinha em um apartamento em Nova York e disse para o meu amigo que ela estava enlouquecendo, não sabia o que fazer, não via uma única pessoa havia seis semanas. Ela se suicidou.

Isso está acontecendo frequentemente. Como temos que lidar com uma doença grave, a Covid-19, as pessoas acabam achando que saúde mental é um luxo, algo não essencial no momento. Não é um luxo, as pessoas morrem de depressão, as pessoas deixam de funcionar, há vários problemas físicos que são consequência da depressão.

A depressão também afeta o sistema imunológico, o que deixa as pessoas menos capazes de combater o vírus se forem expostas. No momento, a depressão está muito, muito disseminada.

Existe alguma “dieta de saúde mental” que as pessoas podem seguir, ações que nos protegem de alguma forma da possibilidade de depressão e ansiedade neste momento de pandemia? 

Depressão é uma doença muito comum e tratável. Para as pessoas que estejam se sentindo muito pressionadas, sugiro que procurem ajuda profissional, não tenham medo de tomar remédios e fazer terapia. Não é um sinal de fraqueza, é um sinal de coragem.

Em geral, ajuda muito estabelecer rotinas, ter um número adequado de horas de sono, nem muito, nem pouco; não comer demais, não beber demais. Se a pessoa conseguir fazer tudo isso, ótimo.

Acho que o principal problema em relação a essa epidemia é a solidão terrível que ela gerou. Quando você está muito solitário e isolado, a ideia de procurar outras pessoas parece uma coisa enorme e pouco atrativa. Mas é uma medida de saúde muito importante falar com seus amigos, sua família, ou pessoas com as quais você tem conexão. Pode ser pelo Zoom ou outra plataforma online, telefone ou WhatsApp. Use qualquer tecnologia que estiver disponível e fique em contato com outras pessoas.

A depressão, mesmo em circunstâncias normais, é uma doença da solidão. Então se você conseguir sair um pouco dessa solidão, tem mais chances de ficar bem. Alguns dizem é muito trabalho ligar para as pessoas. Pensam: “Talvez não queiram falar comigo”. Meu conselho é: liguem, fiquem em contato.

Quais são os efeitos psicológicos da pandemia sobre as crianças?

O principal a se fazer com as crianças é mantê-las ativas e interessadas. É difícil, porque as crianças querem interagir fisicamente com os amigos, não só conversar pelo Zoom. Quando sugiro ao meu filho George fazer FaceTime com os amigos, ele faz, mas as crianças não têm muito sobre o que falar quando não estão fazendo coisas. E se as crianças não podem ter a companhia de outras crianças, elas precisam ter a companhia de adultos. É preciso que os pais reservem um tempo fora das suas preocupações usuais e foquem a família.

O que é pior, o isolamento social, o medo da doença ou não saber como vai ser a vida em alguns meses? 

Há dois aspectos traumáticos para as pessoas. Uma é o vírus, o medo de morrer e de pessoas que você ama morrerem. O outro aspecto é a sensação de estar desligado das outras pessoas.

Você está trancado em sua casa, com seus filhos, seus pais, ou marido ou mulher, num grupo pequeno. É muito difícil não acabar brigando. E ainda por cima, a pessoa está isolada do contexto social mais amplo onde teria mais pessoas para apoio e amizade.

Ou seja, é tanto o inferno são os outros como o inferno é não ter os outros, ao mesmo tempo. O isolamento é muito difícil tanto pelas pessoas que estão com você, quanto pelas pessoas que não estão com você.

Mas o medo do vírus é muito real, e o fato de não termos um cronograma torna tudo muito difícil. Se todo mundo soubesse que nós temos a pandemia, ela é horrível e vai durar até março, pensariam: bom, março está muito longe, mas pelo menos é possível fazer um cronograma. Dá para dizer às crianças: olha, é muito difícil, mas chegando em março, nós vamos fazer isso, vamos fazer aquilo. Nós sentimos constantemente essa ansiedade e medo por não saber quando vai acabar. O fato de não podermos nos programar é muito ruim.

O senhor trabalhou muitos anos como repórter internacional e escreveu um livro sobre a importância de viajar. Daqui para frente, não será tão fácil viajar. Passagens aéreas poderão ficar muito caras por causa da necessidade de manter assentos vazios. As pessoas podem ser obrigadas a fazer quarentena toda vez que viajem. Qual é o impacto disso em nossas vidas?

Até existir uma vacina, não vamos conseguir viajar como costumávamos. E mesmo quando descobrirem uma vacina, o fato de termos passado por isso e sabermos que há patógenos como esse no mundo vai tornar as pessoas bem menos animadas para embarcar em aviões e viajar ao redor do mundo. Meu medo é que isso também leve a um crescimento do nacionalismo e xenofobia, o que já vem ocorrendo.

A parcela da população que viaja para o exterior é pequena, mas há um efeito multiplicador das experiências dessas pessoas, que cria uma sensação de um mundo conectado. O que temos hoje é uma sensação de um mundo desconectado.

O senhor está escrevendo um novo livro. Pode contar um pouco?

É um livro sobre a expansão da ideia do que é uma família —casais divorciados e enteados, casais interraciais, pais e mães solteiros, reprodução assistida, adoção, acolhimento de órfãos em famílias, casais gays, famílias com vários pais e mães e famílias sem filhos.

O livro é estruturado para espelhar o “Longe da Árvore”, que relatava como pais comuns viviam com filhos extraordinários. Esse livro é sobre como famílias extraordinárias se formam e como tomam conta de seus filhos, o que significa ser uma família incomum, as coisas que igualam todos nós e as maneiras pelas quais não somos iguais.

O senhor tem uma família incomum… 

(Risos) Sim. Meu marido é pai biológico de dois filhos de amigas lésbicas que moram em Minnesota (nos EUA). Eu tenho uma filha com uma amiga da faculdade, que é casada. Eles vivem no Texas. Em circunstâncias normais, nós nos vemos bastante.

Eu e o John [meu marido] queríamos ter um filho para estar conosco o tempo todo e tivemos o George. Eu sou o pai biológico, o John é o pai adotivo, tivemos uma doadora de óvulos e uma barriga de aluguel —que é a mãe biológica dos dois filhos do John.

Seis pais, de quatro filhos, em três estados. Normalmente, passamos o Natal todos juntos, às vezes em Minneapolis. Nosso mais velho, filho biológico do John, veio morar com a gente por um ano no ano passado, quando terminou o ensino médio e ainda não tinha começado a faculdade. Foi ótimo. O livro também é sobre isso. Não existe linguagem que dê conta da complexidade das relações atuais.

Andrew Solomon, 56

Professor de psicologia clínica na Universidade Columbia, em Nova York, é escritor, ativista e conferencista. É autor, entre outros livros, de “Longe da Árvore” e “O Demônio do Meio-Dia”, que venceu o National Book Award de 2001. Escreveu para veículos como a revista The New Yorker e o jornal The New York Times.

 

Thomas Piketty: em face de nosso passado colonial e escravista, ”enfrentar o racismo, reparar a história”

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Após a onda de mobilizações contra a discriminação, é necessário mudar o sistema econômico, tendo como fundamento a redução das desigualdades, argumenta o economista

Por Thomas Piketty – 18/06/2020

Crônica. A onda de mobilizações contra o racismo e a discriminação coloca uma questão crucial: a das reparações diante de um passado colonial e escravista que definitivamente não passa. Qualquer que seja sua complexidade, a questão não pode ser evitada para sempre, nem nos Estados Unidos nem na Europa.

No final da Guerra Civil, em 1865, o republicano Lincoln prometeu aos escravos emancipados que obteriam após a vitória “uma mula e 40 acres de terra” (cerca de 16 hectares). A idéia era compensá-los por décadas de maus-tratos e trabalho não remunerado e permitir-lhes encarar o futuro como trabalhadores livres. Se tivesse sido adotado, este programa representaria uma redistribuição agrária em larga escala, principalmente às custas dos grandes proprietários de escravos.

Mas assim que a luta terminou, a promessa foi esquecida: nenhum texto de compensação foi adotado e os 40 acres e a mula se tornaram o símbolo da decepção e da hipocrisia dos nortistas – tanto que o diretor [de cinema] Spike Lee utilizou a expressão ironicamente para nomear sua empresa de produção. Os democratas retomaram o controle do Sul e impuseram a segregação e discriminação racial por mais um século, até a década de 1960. Novamente, nenhuma compensação foi aplicada.

Estranhamente, no entanto, outros episódios históricos deram origem a tratamentos diferentes. Em 1988, o Congresso aprovou uma lei concedendo US $ 20.000 aos nipo-americanos internados durante a Segunda Guerra Mundial. A indenização foi aplicada às pessoas ainda vivas em 1988 (cerca de 80.000 pessoas em 120.000 nipo-americanos internados de 1942 a 1946), a um custo de US $ 1,6 bilhão. Uma compensação de mesmo tipo paga às vítimas afro-americanas da segregação teria um forte valor simbólico.

O grilhão do Haiti

No Reino Unido e na França, a abolição da escravidão era sempre acompanhada de compensações do Tesouro Nacional [pagas] aos proprietários. Para intelectuais “liberais” como Tocqueville ou Schoelcher, tratava-se de uma obviedade: se privamos esses proprietários de suas propriedades (que, afinal, foram adquiridas em um contexto legal) sem justa compensação, então onde iríamos parar nessa perigosa escalada? Quanto aos ex-escravos, eles deveriam aprender a liberdade trabalhando duro. Não tiveram direito senão à obrigação de estabelecer contratos de trabalho de longo prazo com proprietários, cuja falta ensejaria prisão por vadiagem. Outras formas de trabalho forçado foram aplicadas nas colônias francesas até 1950.

Quando da abolição britânica [da escravatura], em 1833, o equivalente a 5% da renda nacional do Reino Unido (hoje 120 bilhões de euros) foi pago a 4.000 proprietários, com remuneração média de 30 milhões de euros, origem de muitas fortunas ainda hoje visíveis. Uma compensação também foi aplicada em 1848 aos proprietários da [Ilha da] Reunião, da Guadalupe, da Martinica e da Guiana. Em 2001, durante os debates em torno do reconhecimento da escravidão como um crime contra a humanidade, Christiane Taubira tentou, sem sucesso, convencer seus colegas deputados a criar uma comissão encarregada de refletir sobre compensações para os descendentes de escravos, em particular quanto ao acesso à terra e à propriedade, sempre muito concentradas entre os descendentes dos plantadores.

A injustiça mais extrema é, sem dúvida, o caso de Saint-Domingue, que foi a joia das ilhas escravistas francesas no século 18, antes de se revoltar em 1791 e proclamar sua independência em 1804 sob o nome de Haiti. Em 1825, o Estado francês impôs ao país uma dívida considerável (300% do PIB haitiano da época) para compensar os proprietários franceses pela perda de propriedades escravistas. Ameaçada de invasão, a ilha não teve outra escolha a não ser cumprir e pagar essa dívida, que o país arrastou como um grilhão até 1950, depois de muitos refinanciamentos e juros pagos aos banqueiros franceses e americanos.

Herança mínima

O Haiti agora está pedindo à França que devolva esse tributo injusto (30 bilhões de euros hoje, sem contar os juros), e é difícil não concordar. Ao recusar qualquer discussão sobre uma dívida que os haitianos tiveram que pagar à França por querer deixar de ser escravos, quando os pagamentos feitos de 1825 a 1950 estão bem documentados e não são contestados por ninguém, e que se pratica ainda hoje compensações pelas espoliações que ocorreram durante as duas guerras mundiais, corre-se inevitavelmente o risco de criar um imenso sentimento de injustiça.

O mesmo vale para a questão de nomes de ruas e estátuas, como a do comerciante de escravos que foi recentemente derrubada em Bristol. Obviamente, nem sempre será fácil traçar a linha entre estátuas boas e ruins. Mas, assim como para a redistribuição de propriedades, não temos outra escolha senão confiar nas deliberações democráticas para tentar estabelecer regras e critérios justos. Recusar a discussão é perpetuar a injustiça.

Bem além desse debate difícil, mas necessário, sobre reparações, devemos também e acima de tudo olhar para o futuro. Para reparar a sociedade dos danos do racismo e do colonialismo, é necessário mudar o sistema econômico, tendo como fundamento a redução das desigualdades e a igualdade no acesso de todos à educação, emprego e propriedade (inclusive por meio de uma herança mínima), independentemente das origens, tanto para negros quanto para brancos. A mobilização que hoje reúne cidadãos de todo o mundo pode contribuir para isso.

Thomas Piketty é Diretor de Estudos na Ecole des hautes études en sciences sociales, Ecole d’économie de Paris

Publicado originalmente em Le Monde | Tradução de Aluisio Schumacher

Racismo é um impedimento ao desenvolvimento econômico brasileiro

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Além de moralmente degradante, o preconceito é um obstáculo ao crescimento do país; não é um problema dos negros, mas da sociedade como um todo

Antonio Quintella e Lilia Moritz Schwarcz*, Especial para o Estado

20/06/2020 |

Durante muito tempo a “branquitude” – o privilégio que a sociedade colonial e europeia adquiriu e conservou no Brasil – reinou como se fosse verdade e realidade “natural”: inquestionável e, por isso, invisível. Foi assim que nos acostumamos a achar “normal” não encontrar negros e negras nos bancos das nossas melhores escolas, nas redações dos jornais, nos ambientes corporativos, na direção de instituições e até mesmo nas áreas de lazer dos bairros considerados mais nobres. Também defendemos uma suposta “meritocracia” sem atentarmos para os cortes de classe e raça que esse conceito traz; como falar em “mérito”, de uma forma geral, quando o ponto de largada é profundamente desigual? Nos habituamos, ainda, a chamar de “universal”, e sem pejas, uma história que é só europeia, e a uma arte que é eminentemente masculina e ocidental. Se a “nossa” arte e a “nossa” história carecem de adjetivação, já as demais precisam ser qualificadas como se fossem derivações subordinadas: arte africana, arte indígena, história africana, história indígena.

Tal tipo de procedimento, levado a cabo durante tantos séculos, e de forma impune, acabou gerando uma grande cegueira cultural e processos de invisibilidade social muito perversos pois nem sequer nomeados. E, em geral, onde reina o silêncio, sobra contradição. “Raça” só existe uma – a humana –, e aí estão os biólogos para comprovar. Mas desde sempre a humanidade criou outro conceito, “raça social”, e é dele que estamos aqui tratando. Qual seja, das maneiras como as sociedades “driblam a natureza”, e constroem marcadores sociais de diferença como raça, gênero, sexo, região e geração, e, assim, criam novas realidades ensejadas historicamente e ao longo do tempo.

O tema da raça entrou finalmente na agenda da nossa contemporaneidade. No entanto, se os brasileiros podem até assumir a existência do racismo no país, em geral, negam que sejam, eles próprios, racistas, e costumam jogar o preconceito no “outro”: na história, no colega, no parente, no vizinho. No entanto, o racismo existente no país toma todos; sem exceção. Ele está presente no ambiente escolar, com altos níveis de repetência entre os alunos negros; na área da saúde e basta notar como as pessoas negras são as maiores vítimas da Covid-19; na área do trabalho com poucos participando de cargos de direção; na área da cultura e da moda, ainda espaços eminentemente brancos. E não adianta culpar apenas o passado, e maldizer o legado pesado da escravidão. Nos dias de hoje temos reproduzido dados que indicam a existência de um racismo estrutural e institucional, presente nas áreas mais insuspeitas e, também, naquelas muito suspeitas.

É por isso que a questão deixou de ser apenas moral; não adianta mais dizer que não somos racistas, é passada a hora de praticarmos atos antirracistas. Como foram os colonizadores brancos que implementaram o tráfico negreiro e criaram teorias que procuraram naturalizar a diferença – como o darwinismo racial, que determinava que as raças eram ontologicamente diferentes, ou o racismo científico, o qual colocava os brancos no alto de uma pirâmide social e os negros na sua base – é hora de atuarmos como aliados nessa luta que é de todos os brasileiros. Na luta antirracista.

Não teremos uma democracia por aqui, como bem demonstra Sílvio Almeida, enquanto permitirmos que o racismo vigore e de forma tão perversa. Mas, também, jamais teremos no Brasil uma economia tão pujante e produtiva, quanto poderíamos ter e apresentar (e precisamos dela para vencer a extrema pobreza e desigualdade que nos assolam), se o racismo permanecer entre nós. A manutenção do status quo, se não o seu agravamento, não é sustentável. Ademais, essa preocupante trajetória pode colocar em risco a nossa precária estabilidade institucional.

Muito já foi dito sobre fazer crescer o bolo ou, ainda, que a subida da maré levanta todos os barcos, e que esses processos enriquecem as nações. Entretanto, as evidências das últimas décadas demonstram que ao longo desse caminho não somos todos igualmente beneficiados. Aliás, muitos sequer são beneficiados de todo. Na ausência de políticas públicas compensatórias e bem coordenadas, os benefícios vão para uns e não para outros, e, em geral, os maiores benefícios são capturados por muito poucos.

Infelizmente, a pandemia provocada pela disseminação do Covid-19 fez o bolo decrescer e a maré baixar repentina e significativamente. Nesse ambiente, que possivelmente nos fará conviver com altas taxas de desemprego e baixos níveis de ocupação e atividade por muito tempo, as desigualdades tendem a se tornar ainda mais expressivas e as vantagens percebidas por aqueles que detém o capital (seja ele intelectual e/ou financeiro) mais pronunciadas. Essas disparidades não podem ser moralmente toleráveis e, além do mais, comprometerão o desempenho da própria economia brasileira enquanto persistirem.

Diante dos inúmeros desafios introduzidos pela pandemia, em especial os de ordem econômico-social, é necessário resgatar a discussão em torno das opções disponíveis para combater a pobreza no Brasil. Ricardo Paes de Barros (et. al.) propunha, já em 2000 (Desigualdade e Pobreza no Brasil: Retrato de uma Estabilidade Inaceitável, Revista Brasileira de Ciências Sociais), que o foco no crescimento econômico como estratégia central no combate à pobreza deveria ser relativizado. O estudo àquela época apontava para (a despeito dos ciclos, transformações e dos mais variados experimentos econômicos) uma relativa estabilidade na dimensão da pobreza no país, e propunha que políticas que focassem na diminuição da desigualdade precisariam ser combinadas com aquelas que estimulassem o crescimento econômico. Não seriam essas políticas mutuamente excludentes, mas complementares. O diagnóstico feito a partir daquele minucioso estudo demonstrava a existência de uma estreita relação entre a má distribuição dos recursos e a pobreza, situação que permanece até hoje. O estudo sentenciava então que “o Brasil não é um país pobre, mas um país com muitos pobres”.

Devemos adicionar uma nova dimensão a essa discussão. O tema do racismo tem claro impacto no ambiente do trabalho, como vem mostrando Cida Bento, entre outros. As práticas e atitudes racistas alijam uma parcela considerável da nossa população, tolhendo-a de oportunidades indispensáveis e fundamentais na área da educação e ocupacional, por exemplo, impedindo-a de exercer as mais diversas atividades profissionais na plenitude do seu potencial criativo e produtivo. A eliminação do racismo é ainda mais relevante em uma sociedade tão desigual quanto a brasileira, em que, segundo dados e termos do IBGE, negros e pardos correspondem a quase 56% da população.

O Brasil já não mais se beneficia de um bônus demográfico, ao contrário. Na medida em que nossa população envelhece, nosso crescimento econômico depende, sobretudo, de um aumento significativo da produtividade. Vários estudos recentes têm sido feitos a respeito da relativa perda de dinamismo da economia brasileira nos últimos anos, apontando que isso possa estar associado à baixa produtividade do trabalho. O Professor José Pastore em artigo no Estadão (de 27 de fevereiro de 2020) sugeria que a “produtividade não resulta desta ou daquela providência, mas sim de ações orquestradas em vários campos durante muitas décadas”, notadamente no campo da educação. Sem dúvida, o aumento da produtividade também passa pela desburocratização, pela abertura da economia, pelos esforços de privatização, pela racionalização da carga tributária e maior eficiência do Estado.

Mas esses esforços terão sido insuficientes se tivermos deixado para trás metade dos brasileiros.

Se o Brasil pretende crescer de forma sustentável, precisa resgatar uma histórica dívida social. Devemos urgentemente oferecer as condições necessárias para mitigar a desigualdade, em especial a de oportunidades. É necessária uma profunda reflexão sobre a nossa sociedade, reconhecendo a riqueza da sua diversidade e estabelecendo uma agenda de inclusão que desperte, motive, engaje e permita que a população negra ocupe, com destaque e sem constrangimentos, espaço nos meios acadêmicos, culturais e empresariais.

A defesa da pauta antirracista implica, portanto, uma agenda de ações. Mas sua defesa não leva em conta apenas a “culpa” ou o mero ressarcimento; o qual, aliás, nunca foi realizado. Ela pretende mostrar que seremos muito melhores se formos mais diversos. Mais é sempre mais, quando se pretende colocar em relação potencialidades, experiências, percursos e histórias tão distintas como comuns.

Portanto, o antirracismo, além de precisar fazer parte de uma agenda republicana e democrática brasileira, precisa ser incorporado ao pensamento e à formulação da política econômica. O racismo não é apenas moralmente degradante e inaceitável, ele também é um impedimento ao pleno e sustentável desenvolvimento econômico. Não, o problema não é só dos negros, é da sociedade como um todo. E da conscientização e efetiva mobilização das nossas lideranças dependem as soluções.

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ANTONIO QUINTELLA É EMPRESÁRIO, ECONOMISTA PELA PUC-RJ E MBA PELA LONDON BUSINESS SCHOOL/UNIVERSIDADE DE LONDRES

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LILIA M. SCHWARCZ É HISTORIADORA E ANTROPÓLOGA, PROFESSORA DA USP E EM PRINCETON, CURADORA ADJUNTA PARA HISTÓRIAS DO MASP E AUTORA DE VÁRIOS LIVROS, SENDO O MAIS RECENTE ‘SOBRE O AUTORITARISMO BRASILEIRO’ (2019)

Bolsonaro não controla apoiadores mais radicais’, diz pesquisador

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Professor vê presidente como ‘refém do monstro’ que ele próprio criou: o bolsonarismo, que junta até correntes antagônicas

David Nemer, professor da Universidade de Virgínia

Breno Pires, O Estado de S.Paulo 21/06/2020 |

BRASÍLIA – O professor David Nemer, da Universidade de Virgínia, nos Estados Unidos, tem dedicado seus estudos ao funcionamento da rede bolsonarista no WhatsApp. Diferentemente do Twitter e do Facebook, o aplicativo foge do controle social e virou uma arma do presidente para manter o patamar de 30% nas pesquisas de opinião.

Doutor em antropologia da tecnologia, Nemer acompanha, agora, um processo de “desidratação” e “radicalização” do grupo de seguidores que está na mira de um inquérito do Supremo Tribunal Federal (STF). Em entrevista ao Estadão, ele avalia que essa rede diminui e torna-se cada vez mais radical desde a saída de Sérgio Moro do governo, a aliança do Palácio do Planalto com o Centrão e as divergências de movimentos de direita. Ao mesmo tempo, influencia a agenda hostil do presidente ao Estado Democrático. “Hoje o bolsonarismo é maior do que a figura do Bolsonaro”, afirma.

Eram grupos conservadores que já existiam e que se uniram em torno de Bolsonaro pelo antipetismo. Bolsonaro no início não era uma unanimidade entre eles, havia dúvidas, até por ser um nome velho da política. Se você olhar para o bolsonarismo, tem pilares antagônicos. Há o liberal, representado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e o militar, que é nacionalista. São ideias que se confrontam. Evangélicos querem ter presença forte e os liberais são contra a presença da religião no governo.

Os grupos implodiram. Com Bolsonaro eleito, o PT já não é mais a mesma ameaça. As pessoas voltam a priorizar os pilares do bolsonarismo que mais lhe agradam, liberais, militares. Então, os grandes grupos deram lugar aos temáticos. Há o armamentista, há o liberal, há o evangélico. E, depois, com a saída de pessoas importantes da campanha, como Joice Hasselmann, Janaina Paschoal e Sérgio Moro, muitas pessoas deixaram o barco bolsonarista. As que ficaram estão firmes com Bolsonaro. Antes tinha mais pessoas. Agora tem menos pessoas indo para as ruas, mas estas são mais radicais. O número é menor, sem diálogo e barulhento.

  • Como define o bolsonarismo?

É um movimento sociopolítico sustentado por diversas correntes de pensamento que não são necessariamente complementares e às vezes antagônicos, como o liberalismo econômico, o militarismo, o cristianismo conservador e os pensamentos de Olavo de Carvalho. O presidente se utiliza dessas correntes para justificar a militância para o patriotismo, os bons costumes, os valores familiares, a lei e a ordem e a caçada à esquerda. Uma estratégia do bolsonarismo é a criação do inimigo, onde qualquer pessoa ou entidade que se oponha a ele é julgada como antinação, anticristão e comunista. O bolsonarismo também tem uma agenda hostil ao Estado Democrático.

  • A presença do presidente em atos antidemocráticos é uma influência desses grupos radicais?

Sim. O Frankenstein cresceu e agora volta para assombrar. Hoje o bolsonarismo é maior do que a figura do Bolsonaro. O presidente é refém do monstro que criou, que é o bolsonarismo. Outro dia, Olavo de Carvalho disse que, se ele quiser, derruba o presidente. Isso também é fruto do bolsonarismo. O presidente não controla mais a ala radical dele que se alimentou das falas e do pensamento dele.

  • Esses apoiadores mostram obediência ao presidente?

Até que ponto a obediência cega é ao Bolsonaro ou ao bolsonarismo? Nos primeiros atos, por volta de 15 de março, depois de muita crítica, ele pediu para as pessoas não irem mais para as ruas (por causa da pandemia). Não adiantou, as pessoas saíram. Ele viu que não tinha controle. Então, com medo de essas pessoas virarem oposição, o presidente se junta a um potencial inimigo. Esse é um exemplo de que o bolsonarismo está maior que ele.

  • Quando o presidente foi maior que o bolsonarismo?

Talvez na aproximação ao Centrão. Talvez na saída do Moro. Foi interessante porque a saída dele foi rápida, ninguém estava esperando. Foi um baque forte, mas logo os influenciadores superaram. Mas não dá pra enganar: Bolsonaro continua sendo a cara do bolsonarismo.

  • Como se diferenciam os grupos bolsonaristas do WhatsApp e do Twitter?

No WhatsApp, você tem a participação orgânica e coletiva de pessoas reais. No Twitter, por existir forte presença de contas inautênticas, fica difícil ter a sensação real da adesão daquela mensagem. É mais unilateral, e a informação vem de certos hubs, como (o blogueiro) Allan dos Santos, Leandro Ruschel e a deputada Carla Zambelli (PSL-SP).

  • O presidente diz que o inquérito das fake news é inconstitucional. O senhor concorda? 

De jeito nenhum. O que esse inquérito está vendo é o financiamento ilegal das contas. Eles estão verificando sobre a questão das fake news. Se fossem realmente atrás de todo mundo, a lista seria muito maior. Por exemplo, ainda não se vê como alvos integrantes do chamado “gabinete do ódio”. Acredito que os motivos que levam à investigação são concretos. É lógico que tem de esperar a conclusão e o julgamento. Mas isso não é censura. As leis do País ainda se aplicam na internet. Essa ideia de que internet é terra de ninguém, por mais que possa parecer, não é verdade. Alguma hora a gente tem esse choque de realidade.

  • Os grupos bolsonaristas estão diminuindo?

A diminuição dos grupos de WhatsApp ocorre de acordo com as pesquisas de opinião. Quando se fala que sobraram 25% a 30% de aprovação, é o mesmo porcentual lá do início do governo. Não vai dar para mudar opinião desses eleitores. As mudanças para acontecerem nesse grupo devem ser de longo prazo. O bolsonarismo vai permanecer por muito tempo além da figura do Bolsonaro, mesmo que, nas próximas eleições, algum candidato de esquerda ou de centro ganhe. Haverá reações radicais. Estudar e compreender o bolsonarismo não é coisa de momento, é algo que já vem sendo construído por um tempo e que vai ficar por muito tempo.

  • É possível fazer um paralelo entre apoiadores de Bolsonaro e de Donald Trump nas redes? 

Há uma espécie de ciclo da direita avançando nesse aspecto da desinformação por meio das redes sociais. Com o aquecer das eleições dos EUA, estou fazendo pesquisa principalmente em grupos de Telegram. Ainda está muito no início para eu ter algum tipo de achado forte, mas é bem parecido com o que aconteceu no Brasil em 2018 no WhatsApp, que por sua vez se baseou muito no que foi o Trump de 2016 no Facebook. De certa forma, a direita amplifica o que foi feito no outro país no passado recente. WhatsApp e Telegram nunca foram populares nos EUA, mas estão ficando agora. A expectativa é que fiquem ainda mais durante as eleições, pois as campanhas já entenderam o poder da persuasão que esses aplicativos promovem, principalmente, no que tange à distribuição de fake news.

Entrevista: ‘Trump e Bolsonaro não são populistas’

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Para professor de Yale, as estratégias adotadas pelos governos dos dois líderes estão mais voltadas para o fascismo

Paulo Beraldo, O Estado de S.Paulo – 21/06/2020

Acabar com a legitimidade da oposição, elaborar um discurso de vítima do sistema, eleger culpados para problemas estruturais e criticar o intelectualismo: a fórmula é a mesma, mas se repete em países tão distintos quanto ÍndiaHungriaPolôniaEstados Unidos e Brasil. A avaliação é do filósofo Jason Stanley, autor de Como Funciona o Fascismo – A Política do ‘Nós e Eles’, para quem o termo populista não serve para designar o comportamento de líderes como o indiano Narendra Modi, o americano Donald Trump e o presidente Jair Bolsonaro.

Muitas pessoas perderam confiança nas democracias para garantir serviços fundamentais como educação, saúde e segurança. O estudo Democracias sob Tensão, conduzido pela Fondapol, mostrou que 77% das pessoas no Brasil entendem que a democracia aqui não funciona bem. Em todo o mundo, a média de satisfação com o sistema é de 51%. Como restaurar a confiança?

Para que a democracia seja protegida, os jornalistas devem ser capazes de fazer seu trabalho sem assédio de políticos e os sistemas públicos de educação devem ser fortes e estar disponíveis para todos, assim os cidadãos podem participar da formação das políticas pelas quais são governados. Deve haver um caminho visível para reduzir a desigualdade entre os cidadãos para que o ideal de igualdade política democrática não seja visto como vazio e hipócrita. A democracia promete liberdade aos cidadãos, mas quando eles são esmagados por dívidas e trabalho sem fim, sem esperança de que seus filhos terão uma vida mais digna, eles podem ser manipulados por demagogos a jogar a culpa de seus problemas em fontes que não são as responsáveis por eles: os pobres, os homossexuais, os liberais, os ateus, os imigrantes, os negros e outros grupos que não são responsáveis pelas disparidades de riqueza e oportunidade.

Como o sr. vê a valorização das pessoas pelas democracias hoje em dia?

Há o risco de as pessoas verem a democracia como hipócrita, como uma máscara para elites poderosas controlarem o discurso e a sociedade em detrimento da maioria. Os líderes que incentivam essa narrativa e obtêm sucesso por meio dessa estratégia são muito mais corruptos do que os líderes que eles superam, e minam mais a retórica da democracia, alimentando o sentido de que esses líderes são “autênticos”. Jair Bolsonaro, Donald Trump e Narendra Modi nem mesmo inspiram competência e ninguém se inspiraria na existência de autocracias tecnocráticas, como Cingapura, para apoiar alguém como Bolsonaro.

É possível prever as condições que permitem que as democracias se transformem em autocracias e até ditaduras?

Há várias maneiras de as democracias se transformarem em autocracias e vários tipos de autocracia. Depois, existem os tipos de movimentos políticos em questão no meu livro Como o Fascismo Funciona. Esses movimentos políticos acabam frequentemente em incompetência e corrupção em massa, uma vez que seu principal valor político é a lealdade.

Em seu livro, o sr. diz que vitimização, anti-intelectualismo e deslegitimação da oposição são características importantes do fascismo. Por que políticos de países muito diferentes adotam essas estratégias hoje em dia?

O apelo à vitimização permite que os políticos justifiquem comportamentos antiéticos e sem princípios – por exemplo, comportamentos ilegais e antiéticos são justificados porque são os alvos de uma mídia e classe política supostamente injustas. Justifica o sentimento de queixa legítima para seus apoiadores. A vitimização do grupo dominante é muito poderosa, como vemos hoje na Índia, com o apelo do nacionalismo hindu. Os hindus são a maioria (cerca de 80%) e muitos estão convencidos de que seu país está sob ameaça dos muçulmanos. O anti-intelectualismo faz parte do apelo das figuras de autoridade; a autoridade do homem forte tem como base a força. E a deslegitimação da oposição faz parte do impulso antidemocrático.

Muitos desses líderes também fazem uso da religião e tentam se retratar como escolhidos. Há como combater isso?

O bom jornalismo deve revelar que tais afirmações frequentemente têm como base a hipocrisia. Também precisamos de cidadãos com um senso das tradições democráticas do país – a maneira como o Brasil emergiu da ditadura militar para ser a democracia em desenvolvimento mais inspiradora do mundo.

Grandes democracias como Índia, EUA e Brasil são hoje lideradas pelo que muitos analistas definem como políticos populistas. Em seu livro, o sr. prefere evitar esse termo. Poderia explicar o porquê?

Lula era populista. Bernie Sanders é populista. É absurdo ter uma categoria que agrupe Bolsonaro e Lula. Se o objetivo é combater políticos como Trump, Bolsonaro e Modi, que buscam dividir, é preciso ter políticas populistas que transmitam confiança às pessoas. O problema não é o populismo. É o que chamo de fascismo, concorde você ou não com esse rótulo. Muitos políticos que chamamos com naturalidade de populistas nunca empregariam as táticas que descrevo. Então, precisamos de outro termo. Talvez não seja fascista. Mas definitivamente não é populista.

 

Dani Rodrik, economista: “Esta crise nos ensina que nossas prioridades estavam equivocadas”

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Professor em Harvard diz que a pandemia amplificou as tensões econômicas já existentes e afirma que autocratas como Bolsonaro e Trump tem respondido pior ao momento.

Luis Doncel – El país, 20/06/2020

Dani Rodrik passeava com seu cachorro na manhã de quinta-feira passada quando deu uma olhada na sua conta do Twitter. Foi então que soube que havia ganhado o Prêmio Princesa de Astúrias de Ciências Sociais de 2020, um dos mais importantes da Espanha. A esse economista turco-norte-americano, um dos mais influentes da atualidade, não lhe escapa a ironia de ser premiado por seus estudos sobre a globalização justamente quando este fenômeno recebeu o golpe mais duro de sua história. A pandemia do coronavírus, afirma ele no seu gabinete da Escola de Governo John F. Kennedy, da Universidade Harvard, funciona como uma espécie de lupa que amplifica todas as tensões latentes na economia durante décadas.

“Não me surpreende que a hiperglobalização esteja vindo abaixo. Faz anos que digo que não é sustentável. A grande pergunta agora é se criaremos uma globalização mais saudável e inclusiva ou avançaremos para o unilateralismo de Trump, com políticas insensatas que não beneficiam nem ao país que as promove nem aos seus sócios”, diz ao EL PAÍS, por videoconferência, esse professor que é presença habitual nos bolões de aposta do Nobel. Para ele, tanto Trump quanto Jair Bolsonaro são líderes populistas que se gabam de ter todas as respostas, algo que esta crise contribuiu para desmentir. “Não me surpreende que autocratas como Bolsonaro, Trump ou até certo ponto Boris Johnson estejam respondendo pior à crise do coronavírus”, diz (leia mais no quadro abaixo).

Foi sua primeira entrevista desde que foi anunciado como ganhador do prêmio que —se a pandemia não impedir— receberá em 16 de outubro em Oviedo, no norte da Espanha.

Pergunta. As tensões entre a China e os EUA e os problemas na OMC já deixavam antever o declínio da globalização. Mas a pandemia foi o terremoto definitivo. Trata-se de uma sacudida temporária ou deixará rastros mais profundos?

Resposta. Os sinais de que a globalização se desfazia eram evidentes antes de Trump. Mas sua chegada à Casa Branca exacerbou essas tensões. Não voltaremos à era de hiperglobalização dos anos 2000. Haverá mais regionalização no comércio e um uso muito mais ativo de políticas públicas, como a industrialização. E mais tensões em áreas tecnológicas, onde as nações tratarão de construir muros em torno de seus sistemas de inovação. Mas não estamos falando do desmoronamento do comércio global. Não voltaremos para os anos 1930 do século passado.

P. Não estamos então perante o ocaso da globalização.

R. A hiperglobalização era um estado mental. Vamos nos afastando dessa ideia de que cada país devia se adaptar à economia internacional. E devemos entender que é justamente o contrário: que a economia internacional deve servir aos objetivos de cada país.

P. Que parte desta mudança pode ser atribuída a esta crise?

R. Nos EUA, esta crise tornou ainda mais evidente o nível de desigualdade e a falta de um seguro de saúde e a falta de um seguro de saúde para muitas pessoas. No mundo, mostra as incompatibilidades do sistema chinês com os da Europa e EUA. Mostra que devemos criar um novo modus vivendi. A pandemia funciona como uma lupa que amplifica as tensões econômicas já existentes.

P. Que lições devemos extrair desta crise?

R. Ela nos ensina como nossas prioridades estiveram equivocadas nas últimas quatro décadas. Quanto trabalhamos para ter mais globalização econômica, como investimos pouco em assegurar os bens necessários para a saúde pública. Se tivéssemos dado a mesma importância à Organização Mundial da Saúde que à OCDE ou ao FMI, teríamos nos saído melhor. A crise é um aviso de que a melhor globalização seria a que se construísse em torno de bens públicos, como evitar a mudança climática ou lidar com as pandemias no âmbito da saúde pública. E não ter dedicado tanto interesse a assuntos como liberalizar o comércio ou os fluxos internacionais de capital.

P. É também um chamado de atenção a seus colegas, aos quais você critica pela obsessão com os modelos matemáticos?

R. Não acredito que o problema seja usar a matemática, que é apenas uma forma de garantir que não nos enganamos. Mas ela é um problema se fizer que deixemos de nos fazer as perguntas fundamentais. Um bom efeito da crise é que empurra os economistas a nos fazermos essas perguntas importantes. Vemos isso na quantidade de pesquisa acadêmica que está sendo publicada. Acredito que os economistas estejam respondendo ao desafio.

P. Você falou da boa saúde do Estado-nação. Ele sairá fortalecido desta crise? Está de volta? Ou será que na realidade, apesar do declínio tantas vezes prognosticado, nunca foi embora?

R. Sim, a decadência do Estado-nação ocorreu mais em nossa imaginação que na realidade. Quando havia uma crise, quem estava lá? Os Governos nacionais. Mas agora é muito mais evidente. Chama a atenção o papel da política industrial, que parecia ter desaparecido. Os países na verdade se ocupavam dela, mas era algo do que não se falava. E agora tanto nos EUA como na EU estas políticas voltam com muito força. Porque é preciso competir com a China, mas também porque é preciso assegurar a produção para cobrir, por exemplo, as necessidades sanitárias. É uma mudança muito importante na narrativa.

P. Você foi muito crítico com a gestão europeia da crise anterior. Mas o Banco Central Europeu, a Comissão Européia e os Governos nacionais agiram agora com mais rapidez e decisão. Vemos finalmente uma resposta comum à crise?

R. É certo que desta vez foi mais rápida e efetiva, em parte graças à experiência da crise anterior. O fundo de recuperação proposto pela Comissão Europeia é um passo importante. E parece que a ideia de mutualizar a dívida se infiltra na UE. Resta ver se será um primeiro passo em um processo que leve a uma união fiscal e política ou uma resposta única a esta crise. Mas que a França e Alemanha tenham chegado a um acordo e que a Alemanha tenha aceitado o fundo é ótimo sinal. Isso não aconteceu há 12 anos.

P. Isto o deixa mais otimista com o futuro do euro?

R. Honestamente, não sei. A Europa deve escolher entre uma união fiscal e política real, ou recuar em sua integração. Essa é a opção em longo prazo. A única forma de superar feridas como o Brexit é criar uma comunidade política transnacional, onde as pessoas se sintam representadas. É um caminho longo, mas será preciso decidir se se deseja trilhá-lo. Se não, temo que o Brexit será o primeiro passo em um processo de desintegração econômica. Se não se avançar por esse caminho, a união não poderá se manter em sua forma atual.

P. Ao falar de seu famoso trilema, segundo o qual os países têm que escolher dois destes elementos: democracia, hiperglobalização e soberania nacional, você diz que em nenhum lugar isso é tão verdadeiro como a Europa. A qual destas pernas a Europa poderia renunciar?

R. Sempre fui a favor da integração política na Europa. Mas estou consciente de que esse caminho é mais difícil depois das decisões tomadas na crise do euro. Em lugar de ser abordada como uma oportunidade para construir instituições melhores, uns puseram a culpa nos outros, numa história de esforçados trabalhadores alemães frente a gregos indolentes e endividados. Isso inflamou as tensões nacionais e deu força aos populistas. A reposta a essa crise fez que a integração política agora seja mais difícil. O fundo de 750 bilhões [de euros; 4,37 trilhões de reais] tem como mudar isso? Tenho alguma esperança de que haverá a solidariedade de que a Europa necessita para avançar na integração política. Anima-me que a Alemanha tenha aderido. Estou mais otimista, mas ainda há muitas dúvidas.

P. A desindustrialização afeta a países como a Espanha, que assiste ao fechamento de importantes fábricas. E a crise atual agravará esse processo. Que respostas os Governos podem dar?

R. É muito difícil aumentar o emprego na indústria. Talvez seja impossível. Os empregos de qualidade que queremos não virão da indústria, e sim dos serviços. Para um país como a Espanha, virá do turismo, das finanças, da educação, da saúde… Será preciso pôr em marcha regulações que permitam ao mesmo tempo aumentar a produtividade e o emprego de qualidade.

 

“O liberalismo enfraqueceu nossa rede de salvação˜: Entrevista com Richard Senett.

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coronavírus atrapalhou os planos deste incansável defensor do Estado de bem-estar social. Neste ano, o confinamento e as restrições para voar retiveram Richard Sennett (Chicago, 1943) em Londres, onde vive metade do ano com sua esposa, a também socióloga Saskia Sassen, e leciona na London School of Economics.

A entrevista é de Carmen Pérez-Lanzac, publicada por El País, 13-06-2020.

O renomado sociólogo não passará a primavera setentrional (de setembro a dezembro) em Nova York, onde fica mais perto do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), no qual também leciona. No dia desta entrevista, 27 de abril, Sennett estava ansioso para retomar seu trabalho nas Nações Unidas, onde colabora no desenvolvimento de estratégias para que as cidades enfrentem a crise climática. A ONU reabriu após permanecer várias semanas fechada devido à pandemia. O autor de Construir e Habitar: Ética para uma Cidade Aberta (Record, 2018) está impressionado: seus vizinhos londrinos se organizaram e trazem alimentos para ele e sua esposa, assim como para outros moradores de seu edifício. Essa gentileza lhe deu esperança.

Eis a entrevista.

Nesta crise, o que aprenderemos de útil para as futuras transformações que a mudança climática trará?

Que uma das coisas nas quais temos de nos concentrar, em relação à vida nas cidades, é o quanto poderemos viver adensados. Para questões climáticas, a densidade não é algo ruim. É importante que as pessoas vivam de forma mais compacta, usem o transporte público e não ande cada uma isolada em seu carro. Mas a densidade também pode ser uma ameaça. Por isso, a questão é desenvolver formas para que nossas cidades sejam tanto verdes como saudáveis. Esse é o desafio ao qual eu e meus colegas na ONU estamos nos dedicando agora.

E como as cidades mudarão?

A melhor proposta que ouvi para as cidades ricas é de Anne Hidalgo, a prefeita de Paris: criar nós de concentração, o que ela chama de “cidades de 15 minutos”. Nelas, as pessoas podem chegar de bicicleta ou andando em 15 minutos a um centro que não necessite de transporte público, que pode chegar a ser muito perigoso em casos como o que vivemos atualmente. É uma mudança enorme. Em cidades como Paris, significa reconstruir totalmente a urbe. Seria algo mais parecido com Londres, que é uma espécie de acúmulo de muitas cidades entre as quais você pode se deslocar a pé.

E as cidades que não são ricas?

Infelizmente, no sul essa não é uma opção viável. As pessoas vivem em subúrbios ou favelas a horas de distância de onde trabalham. Imaginar que pudessem chegar andando é apenas uma fantasia. A única forma pela qual poderiam conseguir isso seria através do controle estatal de toda a indústria e da descentralização de toda a produção. Economicamente, seria muito complicado. No grupo da ONU em que estou trabalhando estamos imaginando opções para São Paulo. Existem maneiras de, pelo menos, criar redes de comunicação para que as pessoas saibam o que acontece no resto da cidade e possam reagir. Imaginemos que um bairro estivesse muito afetado pela covid-19 ou semelhante. Pelo menos o resto poderia se proteger não passando por esse bairro. Não é uma grande opção, mas há tão pouco dinheiro na maioria das cidades dos países em desenvolvimento que a situação é completamente diferente. A não ser que haja uma mudança maciça na economia e no poder estatal, é mais uma estratégia de adaptação.

E sobre o sistema econômico, que lições aprenderemos?

O liberalismo, como força econômica, enfraqueceu nossa rede de salvação, aquela que nos ajuda em caso de crise. Ele transformou o Estado de bem-estar em algo que não funciona. O Estado está nos ensinando a fazer máscaras porque não pode nos prover delas! Em meu edifício, criamos novas formas de comunicação entre os moradores porque não temos outra maneira de fazer isso através de nenhum órgão público. Nós mesmos tivemos de criar as conexões. O Estado estará fraco demais para enfrentar a mudança climática. Caso houvesse escassez de água, não seria algo que os capitalistas resolveriam. Teremos de mudar a economia e decidir como supriremos a ausência do Estado.

Que diferenças vê entre as duas crises, a provocada pela pandemia e a que está sendo gerada pela mudança climática?

A grande diferença entre a crise que vivemos atualmente e a mudança climática é que a crise atual é abrupta e acentuada. Para tentar frear a pandemia, você pode confinar a população, fazer exames… O problema com a mudança climática é que é algo muito lento, seus efeitos não são dramáticos. A questão do aumento da temperatura no planeta e particularmente nas cidades é algo que vai acontecendo ano após ano. Em uma década, não haverá um momento em que digamos: “Ah, temos um problema” ―ele estará sendo gerado. Devemos começar a nos preparar para algo que vai ocorrer daqui a 20 anos, e custa fazer isso.

O que acredita que, na esteira desta crise, deveríamos fazer para manter um equilíbrio entre nossa segurança e nossa liberdade?

Não podemos ter as duas coisas. Qualquer atividade é um risco. E isso nos leva a tomar decisões concretas em função de quanto risco estivermos dispostos a assumir. Sempre há opções na vida. Você pode anular todo o risco adotando o modelo autoritário, o modelo chinês, mas não queremos viver dessa forma. Filosoficamente, já escrevi muito sobre este assunto. A insegurança é um assunto no qual todos os adultos devem pensar. Em que aspectos você se sente inseguro, e como. No caso da pandemia, não estou preocupado com minha própria morte, mas gostaria que houvesse o máximo de segurança para meus netos, proteção para a família. A liberdade é sempre um risco. Em minha opinião, a melhor maneira de lidar com isso é através do Estado de bem-estar social.