Reforçando o SUS

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Sistema deve ser mais funcional e eficiente para cumprir missão constitucional 

Arminio Fraga

Sócio da Gávea Investimentos, membro do Conselho Consultivo da StoneCo e Fundador do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde

Miguel Lago

É diretor-executivo do IEPS

Rudi Rocha

É diretor de pesquisa do IEPS e professor da FGV-Eaesp

A pandemia trouxe a importância dos sistemas públicos de saúde para o centro do debate. Ao longo dos últimos 30 anos, o Brasil construiu um dos maiores sistemas universais do mundo, com notáveis resultados em várias áreas, a despeito da escassez de recursos e da enorme desigualdade regional e social. No entanto, claramente restam ainda imensas carências, com consequências humanas dramáticas.

Há exatamente um ano lançamos o IEPS, organização apartidária e sem fins lucrativos, que tem por objetivo estudar, avaliar e sugerir melhorias em políticas para a saúde do país. Nesse espírito, apresentamos aqui algumas ideias que poderiam nortear uma agenda de reformas para fortalecer o SUS.

O tema é polêmico. Para alguns, o SUS carece de mais recursos. Para outros falta gestão, tecnologia e capital privado. O setor vive um estado permanente de embate. O quadro fiscal do Brasil é desfavorável. Gasta-se muito, mas nem sempre priorizando bem. Nossa visão é que o Estado gasta pouco com a saúde, e há de fato muito espaço para avanços nas outras frentes citadas. Vejamos por quê.

Países com sistemas de saúde universais e públicos tendem a investir significativamente mais do que o Brasil. Enquanto dedicamos menos de 4% do PIB ao SUS, o Reino Unido investe cerca de 8% do seu bem mais elevado PIB per capita no National Health Service (NHS). O subfinanciamento crônico se reflete em filas que estampam as capas de jornais e tempo de espera inaceitável para exames e cirurgias.

O primeiro estudo institucional do IEPS sugere que nos próximos dez anos o governo precisará aumentar significativamente os aportes ao SUS.

Em função dos imensos desafios que o país enfrenta na área fiscal, essa demanda terá que ser atendida gradualmente, como parte de um esforço maior de revisão das prioridades do gasto público.

Sistemas de saúde têm em essência duas características fundamentais: a repartição de riscos entre as pessoas e um desenho onde os mais ricos subsidiam os mais pobres. No Brasil, a recuperação da função distributiva passa por aumentar os aportes ao SUS e eliminar subsídios regressivos.

Apesar de o SUS oferecer serviços gratuitos a toda a população, o gasto privado com saúde segue maior que o gasto público. O setor que atende 22% dos brasileiros por meio de planos de saúde privados e gastos pessoais é responsável por 58% do gasto total com saúde no país.

Sem dúvida saltam aos olhos subsídios tributários dados pelo governo federal a gastos provados, que representam cerca de um terço do gasto federal com saúde (uns 0,6% do PIB). Adicionalmente, seria possível obter alguma receita com a introdução de tributos saudáveis sobre açúcar e ultraprocessados, como já se faz com álcool e tabaco.

Entendemos que o simples aporte incremental de recursos, embora urgente, não é suficiente. Precisa ser complementado por ganhos de eficiência.

Um primeiro passo seria coordenar melhor a atuação dos estados e municípios, de fato transformando a atenção básica na principal porta de entrada e vetor organizador do fluxo de pacientes dentro do sistema.

Para assegurar que essa integração seja bem-sucedida, é preciso implementar mudanças na organização regional do sistema. Um número muito grande de municípios não tem escala para ter seus próprios hospitais. Cabe desenvolver regiões de saúde dotadas de uma escala capaz de racionalizar a prestação dos serviços. Todo esforço institucional no sentido de promover mais regionalização deve ser encorajado.

Uma segunda área a explorar seria o aperfeiçoamento da colaboração com a iniciativa privada. Quando bem regulada, e com incentivos bem alinhados via contratos transparentes, pode ser uma aliada importante na busca por maior escala e eficiência.

O desempenho das organizações sociais da saúde Brasil afora é muito heterogêneo e precisa ser estudado para que se possa separar o joio do trigo. A falta de transparência de informações impede que tal avaliação seja feita com a profundidade adequada.

No entanto, a limitada evidência existente sugere que há muito espaço para melhorias no sistema. Em última instância, trata-se de um desafio de governança e gestão.

Para acelerar todas essas mudanças, será necessário um choque tecnológico. Destacam-se a criação de um prontuário eletrônico unificado por paciente e o uso da telemedicina pelas equipes de atenção básica em todo o território nacional, conectando-as com especialistas, aumentando sua resolutividade e suprindo assim as lacunas na oferta de médicos e profissionais de saúde que existem em muitas regiões do país. Há muito a se fazer nessa área, muito espaço para saltos de qualidade.

Outro tema relevante é a crescente judicialização da saúde observada no Brasil. Verdade que os processos de judicialização garantem a realização do direito constitucional à saúde, algo inquestionável. No entanto, a experiência internacional demonstra que, mesmo em países mais avançados, diante da finitude dos recursos orçamentários existentes, urge encarar o difícil desafio da priorização dos gastos com saúde.

Cabe reconfigurar a Conitec, transformando essa comissão interministerial em uma agência independente —nos moldes do NICE no Reino Unido— que determine com clareza o rol de procedimentos cobertos pelo SUS, bem como a incorporação de novas tecnologias.

Assim, litígios judiciais seriam reduzidos progressivamente, sobretudo os movidos por demandas nem sempre vinculadas a procedimentos efetivos e seguros para os pacientes.

Por fim, cabe adotar uma abordagem transversal de promoção de saúde em todas as políticas públicas (alimentação, urbanismo, ambiente, educação, cultura), pois será por meio delas que poderemos ter uma população cada vez mais saudável.

Um sistema de saúde que se propõe a cuidar de toda a população precisa estar mais bem preparado, funcional e eficiente para cumprir com sua missão constitucional. Os muitos que sofrem precisam de nossa pressa no reforço ao SUS.

Arminio Fraga

Sócio da Gávea Investimentos, é presidente do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

‘A crise econômica será severa e prolongada’, diz Monica De Bolle

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Professora da Johns Hopkins afirma que é necessário estender incentivos do governo a empresas e cidadãos

Entrevista com Monica Baumgarten De Bolle

Fernando Scheller, O Estado de S.Paulo – 27/09/2020

A economista Monica Baumgarten De Boile mergulha em Ruptura – primeiro livro da série A Pilha de Areia, que analisa os efeitos econômicos da pandemia de covid-19 – nas primeiras reações à crise trazida pela emergência sanitária global. Na obra, Monica defende que é preciso romper com padrões estabelecidos de estratégia econômica – como o teto de gastos públicos no Brasil – para responder aos desafios trazidos pelo coronavírus.

A economista deixa claro que a crise de saúde terá efeitos de prazo muito mais longo do que governos e empresas parecem projetar hoje. Para ela, o auxílio emergencial, que foi prorrogado até dezembro, terá de ser estendido novamente, uma vez que está claro que o emprego e a renda não vão se recompor inteiramente até janeiro de 2021.

“A crise será muito severa e prolongada. É curioso, porque essas noções não foram completamente absorvidas. Já se entendeu que é uma questão severa. O que não aconteceu, pelas projeções que se faz para a economia de 2021, é as pessoas se darem conta de que o processo (de recuperação) será muito prolongado e lento”, disse ela, em entrevista ao Estadão.

Especialmente no Brasil, falta uma visão mais multidisciplinar da análise econômica?

Isso é particularmente marcante na macroeconomia. A microeconomia avançou mais. Juntou-se com a psicologia comportamental para explicar como pessoas fazem escolhas. Num modelo tradicional, as decisões são vistas como racionais, e a gente sabe que não é assim. Na parte aplicada, a microeconomia soube incorporar até técnicas biomédicas para fazer estudos randomizados e testar a efetividade de políticas públicas.

E a macroeconomia?

A macroeconomia é outra história. De muitas formas, parou no tempo. A economia nasceu da filosofia moral, depois virou economia política. Só após os anos 1950 que a economia foi tendo esse caráter mais tecnocrata. E virou um negócio de modelagem, análise quantitativa. O macroeconomista deve ter um olhar abrangente, saber que instituições, política e cultura afetam (a economia).

E como isso fica evidente?

Ficou mais claro depois da crise de 2008. E, agora, mais ainda: porque a pandemia é um desafio muito maior do que o de 2008. Acho que há um atraso completo na macroeconomia. E a ruptura trazida pela pandemia deveria ser uma oportunidade para mudar isso.

Essa limitação de visão atrapalhou a previsão da crise?

Essa foi uma das motivações para meu canal no YouTube: como é que os economistas não estavam conseguindo enxergar a crise? Isso deixou muito visível a limitação a um molde de pensamento. Sempre tive um background na área biomédica, e estou estudando de novo, e ficou muito claro que a gente estava enfrentando uma coisa inédita, para a qual a economia não tinha boas respostas. Entendi também que (a crise) será muito severa e prolongada. É curioso, porque essas noções não foram completamente absorvidas. Já se entendeu que é uma questão severa. O que eu acho que não aconteceu, pelas projeções que se faz para a economia de 2021, é as pessoas se darem conta de que o processo (de recuperação) será muito prolongado e lento.

Sua série de livros trabalha com o tema ‘A Pilha de Areia’. Como se explica o conceito?

Quando você faz um castelo de areia, de uma coisa você tem certeza: em algum momento, ela vai desmoronar. Esse desmoronamento pode acontecer muito rapidamente ou demorar muito. Pensando nas pandemias, em termos da pilha de areia: a gente tinha certeza absoluta de que uma pandemia viria. Era dado, já tínhamos tido algumas – a última foi a de H1N1, em 2009. Aquela, em termos de pilha de areia, foi um desmoronamento pequeno e relativamente rápido. Na grande pandemia de 1918, foi exatamente o contrário: todo mundo achava que a influenza era uma gripe – os cientistas não entendiam como tanta gente estava morrendo. O tamanho e intensidade daquilo foi um choque para o mundo. Então, a gente tem de estar sempre preparado – e foi o grande erro do mundo todo, que ficou anestesiado com a H1N1, de 2009.

Isso atrapalhou a resposta econômica do Brasil à pandemia?

Acho que a gente conseguiu dar alguma resposta, ainda que muito insuficiente. A gente está deixando muita empresa de porte menor falir. Isso vai ter consequências graves para o emprego e para a eficiência dos mercados, porque você vai gerar uma concentração enorme em determinados setores. Isso se resolveria com política de crédito público.

O BNDES deve ser mais ativo?

O BNDES está em uma prisão ideológica. A TLP é uma excelente taxa de referência para o BNDES, mas é ruim em um momento de crise porque tem uma parte pós-fixada. As empresas ficam sem saber quanto vão pagar de juros. Isso seria facilmente corrigido se o BNDES também emprestasse às taxas do Tesouro. Não precisa colocar subsídio nenhum. O que as empresas pedem é uma taxa prefixada. A única explicação (para a estratégia atual) é: ‘nós não vamos fazer o que a Dilma fez’. Mas não convence.

E a distribuição de renda, deve ser mais generosa e longa?

Principalmente, mais longa. (O auxílio emergencial) não ficou tão bom quanto poderia ter ficado, mas ajudou, apesar de muito problema de execução e fraude. Agora, o desafio que está colocado é o seguinte: o benefício foi reduzido e estendido até dezembro. Só que tem o precipício, porque a gente sabe que a pandemia ainda está descontrolada e as pessoas não vão achar emprego até o fim do ano. E a situação da economia em janeiro vai ser de penúria. Então, alguma coisa a mais vai ter de ser feita.

 

América Latina precisa ser agressiva para transferir renda durante a pandemia: entrevista com Andrés Velasco

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Folha de São Paulo, 21/09/2020 – Saúde em Público

Pablo Peña Corrales
Miguel Lago
Fernando Falbel

A América Latina vive um momento extremamente delicado. A região é uma das mais afetadas pela pandemia da Covid-19, com mais de 320 mil mortes confirmadas, quase um terço do número total mundial. Previsões estimam que a economia encolha cerca de 10% neste ano.

Para entender esses múltiplos desafios de ordem sanitária, econômica, social e política na região, o blog Saúde em Público falou com Andrés Velasco, um dos mais influentes intelectuais latino-americanos.

Hoje reitor da escola de políticas públicas da prestigiosa London School of Economics, Velasco foi ministro da Fazenda do Chile (2006-2010, no primeiro governo de Michelle Bachelet) e é pré-candidato à Presidência do país.

*Antes da pandemia do novo coronavírus, a saúde já era uma das grandes preocupações da América Latina. Dos protestos brasileiros em 2013 às manifestações chilenas em 2019, a saúde também tem sido uma demanda frequente. Por que os latino-americanos parecem tão insatisfeitos com seus sistemas de saúde? Sem dúvida, muitas pessoas estão insatisfeitas, e isso não é surpreendente por vários motivos.

Em primeiro lugar, muitos sistemas na região deixam muito a desejar.

Em segundo lugar, se há algo que sabemos sobre as tendências de médio prazo da economia e da sociedade, é que os tratamentos médicos estão se tornando mais caros.

Quando um país é muito pobre, as pessoas morrem de diarreia. Isso pode ser corrigido com gastos públicos limitados. Quando o país eleva seus padrões e as pessoas morrem de câncer, ataques cardíacos ou similares, é mais caro tratar, requer maior infraestrutura, maior nível de sofisticação, maior cobertura, e, nessa dimensão, todos os nossos sistemas ficam aquém.

Terceiro, a saúde é muito difícil de reformar. [O ex-presidente dos Estados Unidos Bill] Clinton, que falhou na tentativa, sabe muito bem disso; [Barack] Obama, que conseguiu fazê-lo —embora com dificuldades que ainda não foram completamente superadas, em parte porque não existe uma receita óbvia e compartilhada—, também o sabe.

Agora, não sejamos unanimemente pessimistas. Nos principais países da região, como Uruguai ou Chile, a expectativa de vida ao nascer é próxima à dos países desenvolvidos, embora gastando cerca de um terço ou um quarto per capita.

Portanto, há algo a partir do qual se pode construir, mas ainda há muito a ser feito. Nos países menos desenvolvidos, alguns da região andina, outros da América Central ou do Caribe, praticamente tudo está por fazer, tanto em termos de cobertura quanto de qualidade.

Especialistas como Ezekiel Emanuel, da Universidade da Pensilvânia, afirmam que muitas vezes exageramos o impacto dos tratamentos médicos sobre a saúde e argumentam que os resultados de saúde são explicados principalmente por fatores exógenos, como pobreza, alimentação ou desigualdade. O sr. acha que falta uma visão ampla da saúde na América Latina? Provavelmente, sim. Existe uma correlação evidente entre a pobreza e o impacto de certos choques, conforme evidenciado pela Covid. E isso não é um problema apenas na América Latina.

No Reino Unido, a taxa de mortalidade entre minorias étnicas é três vezes a taxa de mortalidade do resto da população. No entanto, esse não é um argumento para não melhorar os sistemas de saúde, mas sim para melhorá-los e também avançar em outras direções.

Mas, como governar é priorizar, e não há país que possa fazer tudo ao mesmo tempo, você tem que se perguntar onde estão as prioridades e onde estão os recursos. Desse ponto de vista, melhorar a saúde é provavelmente algo que pode ser alcançado em um prazo mais próximo do que abolir a pobreza ou acabar com a desigualdade.

Em alguns países, como México e Brasil, mais do que se esconderem atrás de especialistas, os líderes políticos parecem ignorá-los por completo. O que os líderes regionais, os cidadãos e a sociedade civil podem fazer para influenciar a resposta nacional? Espero que a sociedade, nas próximas eleições, leve em consideração o desempenho desastroso, catastrófico e patético de alguns desses líderes populistas que não acreditam na ciência.

Expressar um certo ceticismo sobre a sabedoria científica, que é o que acabei de fazer, parece-me inevitável. Mas ir ao extremo de sustentar, como disse o presidente do Brasil, que o vírus foi uma invenção da imprensa para prejudicá-lo, ou ao ponto de fazer como fez o presidente do México, que continua organizando atividades políticas nas quais aperta as mãos e abraça seus correligionários porque é muito macho e o vírus não atinge os machos, é um ato de irresponsabilidade brutal que seria tragicômico se não tivesse provavelmente custado milhares ou dezenas de milhares de mortes.

E o mecanismo que temos nas democracias para punir aqueles que se comportam de forma irresponsável é negar-lhes o voto da próxima vez.

Como a economia da América Latina será afetada? Acho que a crise econômica vai se traduzir em um agravamento de muitas coisas na América Latina. Falemos em termos quantitativos. Em quase todos os países da América Latina, salvo raras exceções, o PIB vai se contrair em 10%, um pouco mais ou um pouco menos, neste ano.

Com isso, esta será a maior crise da América Latina: para alguns países, desde os anos 1980, e, para outros, provavelmente desde a Grande Depressão. É verdade que esperamos um crescimento positivo no próximo ano, mas não podemos esquecer que é um crescimento a partir de um ponto muito inferior.

Portanto, a questão é quanto tempo levará para as economias produzirem a mesma coisa que produziram, digamos, em dezembro do ano passado. E suspeito que esse tempo não será de um ano. Serão dois anos ou mais.

Ademais, essa crise chega em um momento de muitas mudanças tecnológicas. Isso favorece quem tem alto capital humano, porque pode usá-lo em todo o mundo, mas é muito ruim para quem não o tem e precisa ir trabalhar em um restaurante e lavar a louça.

Além disso, alguns empregadores perceberam com esta crise que há coisas que podem ser feitas remotamente ou mesmo que as máquinas podem fazer, e, portanto, não seria surpreendente se, juntamente com a contração cíclica do emprego, houvesse uma contração estrutural do emprego.

Sou economista e otimista e acho que, quando a economia destrói empregos, também cria empregos a longo prazo. O problema é que ambos não acontecem ao mesmo tempo. A destruição é rápida, a criação é lenta e, portanto, eu não ficaria surpreso se tivéssemos um período prolongado de dois, três, quatro anos com taxas de desemprego muito altas na região.

Por fim, essa recessão prolongada afetará muito as finanças públicas. A necessidade de outro ajuste fiscal se tornará, mais cedo ou mais tarde, aguda.

E, portanto, quando os governos têm menos dinheiro, enfim, gastam menos em muitas coisas, não seria estranho que víssemos menos dinheiro indo para a saúde.

Portanto, a combinação de todos esses fatores é catastrófica. E, desse ponto de vista, não me surpreenderia se tivéssemos alguns anos em que os indicadores de saúde na América Latina, que vêm melhorando, diminuíssem fortemente.

Quais medidas econômicas podem ajudar tanto a controlar a pandemia quanto reduzir seu impacto econômico? O economista peruano Roberto Chan sintetizou uma das chaves da pandemia com uma montagem: mostrou uma foto de um ano atrás de um dos principais mercados de Lima [capital do Peru], com a praça repleta de gente. Ele então mostrou uma foto do mesmo lugar no meio da quarentena de Lima. E o que se viu? Uma praça repleta de gente. É triste, mas não é surpreendente. Em muitos lugares de Lima não há geladeira, e mais da metade da força de trabalho é informal.

Em geral, nos países em desenvolvimento, a política econômica, a política de transferências é indissociável da política de saúde. Temos que ser muito agressivos e proativos nas políticas de transferências. Tanto por razões humanitárias, porque há pessoas que não têm o suficiente para alimentar os filhos, como também por questões de saúde, porque é a melhor forma de permitir que as pessoas fiquem em casa.

Agora, qual é a dificuldade? Obviamente, existem governos que não têm dinheiro. Há, pelo menos na América Latina, uma separação muito clara entre países com capacidade de endividamento que conseguiram emitir dívidas e receber fundos e o resto.

Peru e Chile conseguiram empréstimos sem maiores problemas. O Brasil conseguiu, mas alcançando níveis de endividamento que vêm se tornando muito perigosos. A Argentina fez isso emitindo pesos, o que em algum momento trará uma pressão inflacionária.

Há também uma dificuldade prática: quando os sistemas de seguridade social são muito primários, não há um cadastro adequado das famílias, muitas das quais não têm conta em banco. Embora o governo tenha o dinheiro, não é fácil garantir que os recursos cheguem às pessoas.

No Peru, eles tentaram levar dinheiro para as famílias, o governo tinha o dinheiro, mas a única maneira de as pessoas coletarem esses recursos era ficando em uma longa fila do lado de fora de um banco.

Ora, é difícil imaginar algo mais propício ao contágio do que milhares de cidadãos amontoados na porta de um banco tentando receber um cheque ou um pagamento em dinheiro.

Concluindo, duas lições: as emergências são mais um motivo para deixar um espaço fiscal em tempos normais e precisamos regularizar e bancarizar muito mais famílias na região.

O cenário que o senhor descreve é, para dizer o mínimo, desafiador. O que recomendaria aos reformadores e líderes políticos latino-americanos que desejam melhorar a saúde em seus países Primeiro uma recomendação conceitual, depois uma recomendação tática.

O conceito é que você não deve se apegar a sistemas puros. Acho que muitas vezes na América Latina o debate sobre saúde, assim como o debate sobre a previdência, não é muito produtivo porque se discutem abstrações de mercado puro ou somente Estado, que, a bem da verdade, não existem em muitos países ou, quando existem, não funcionam muito bem.

Portanto, seria aconselhável procurar modelos híbridos adaptados às circunstâncias de cada país.

E a recomendação tática é que a saúde é uma área que precisa de reformas mais ou menos extensas. Não apenas porque é bom ser ambicioso mas porque, se o pacote de reformas for muito pequeno e incluir muito pouco, sempre haverá perdedores evidentes.

Mas,0 quando se mudam várias coisas ao mesmo tempo, é possível que, se um grupo perder aqui, ganhará ali, e isso permite fazer compensações que facilitam a viabilidade política dessa reforma.

Andrés Velasco é formado em economia e filosofia na Universidade Yale e doutor em economia pela Universidade Columbia, é reitor da escola de políticas públicas da London School of Economics; foi ministro da Fazenda do Chile (março de 2006 a março de 2010, no primeiro governo de Michelle Bachelet)

 

Os dois modelos, por Mario Vargas Lhosa.

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Assumir o capitalismo é simplesmente impossível para alguns países

Mario Vargas Lhosa, Estado de São Paulo, 20/09/2020.

Uma das teses mais controversas do liberalismo de hoje é que, pela primeira vez na história da humanidade, os países podem escolher ser pobres ou prósperos. Isto nunca fora possível, porque a prosperidade sempre dependeu da quantidade de recursos que uma nação detinha, de sua localização geográfica e de seu poderio militar. Mas, no mundo globalizado de nossos tempos, bem se sabe quais são as políticas que criam empregos e fortalecem o país em termos econômicos – e quais são as políticas que o empobrecem e afundam. Os casos antinômicos da Venezuela e da Alemanha poderiam servir de exemplo.

O caso da Venezuela é conhecido em todo o mundo. Foi um dos países mais ricos do planeta, porque é, em suma, um imenso lago de petróleo e outros minerais que há poucos anos atraiu uma imigração gigantesca, para a qual sobrava trabalho. O país assim avançava a passos de gigante, apesar da corrupção e das atrocidades de seus governos, o que permitiu que o comandante Chávez e seu “socialismo do século 21” conquistassem o poder em eleições que provavelmente foram livres.

Elas nunca mais o seriam, claro. Hoje, a Venezuela está morrendo de fome e se afogando na corrupção. Para sobreviver, pelo menos 5 milhões de venezuelanos fugiram do país, a pé, carregando as malas e as crianças. É claro que o socialismo, do passado ou do presente, não garante prosperidade, mas, sim, miséria, a curto ou longo prazo. Por essa razão, Rússia e China deixaram de ser socialistas para praticar um capitalismo de compadrio, com ampla margem para a iniciativa privada e a competição na vida econômica, mas com uma rigidez muito estrita na esfera política, onde o antigo sistema autoritário persiste quase intacto.

A Alemanha, por outro lado, é um país que prospera a cada dia e em todos os sentidos. Acabo de visitar o país, depois de 7 meses, e mais uma vez fiquei maravilhado com o espetáculo de uma velha Alemanha Oriental em plena efervescência, onde se ressuscitam antigos palácios e se constroem arranha-céus por toda parte, onde ninguém parece morrer de fome, onde a democracia funciona em todos os níveis e onde a maioria dos cidadãos parece feliz com sua sorte.

O governo de coalizão, ainda presidido por Angela Merkel, parece firme, embora haja discrepâncias e disputas internas, e as próximas eleições, apesar do coronavírus, não devem mudar esse quadro que parece perfeitamente controlado, nesse período de estabilidade e progresso que o país vive.

O que a Alemanha fez para ser como é? Escolheu ser próspera, ou seja, integrou sua economia aos mercados mundiais e estimulou a iniciativa privada, a concorrência e a poupança. Além disso, o desenvolvimento econômico que vive há muitos anos lhe permite ser bastante independente – o país mais rico da União Europeia, sem dúvida – mesmo que, em termos energéticos, ainda dependa da Rússia, a quem se une por um tratado preocupante. Mas, em relação ao seu europeísmo, às suas políticas de imigração e ao seu respeito pela legalidade, não há nada a criticar e há muito a se imitar.

É fácil seguir o modelo alemão? Não é. Muitos países que gostariam de ser prósperos não conseguem seguir seus passos. Qual é o problema?

Basicamente, a corrupção. É o caso da América Latina, sem dúvida. A corrupção está tão profundamente arraigada em seus governos, seus ministros e funcionários roubam tanto e o roubo é uma prática tão difundida em quase todos os Estados que é impossível estabelecer uma economia de mercado que funcione de verdade, com uma concorrência séria e genuína.

Para que o modelo do progresso funcione, é preciso eliminar a corrupção, ou reduzi-la na expressão mínima, e isso, para muitos Estados, é simplesmente impossível. Aqueles que tiveram sucesso, como Cingapura, Coreia do Sul, Taiwan ou Hong Kong (antes de voltar a fazer parte da China), progrediram sem medida e acabaram com a fome e o desemprego. E a democracia começou a funcionar nesses países (no caso de Cingapura, de maneira mais limitada).

Por outro lado, a transição de uma economia sequestrada pela corrupção – em que ministros, chefes militares e meros funcionários enchem os bolsos ilegalmente – não é nada fácil. É preciso um apoio popular e jornalístico incessante, um Judiciário que atue de acordo com as leis e lideranças convictas e corajosas que acreditem no modelo e o ponham em prática sem medo nem hesitação. E, acima de tudo, é preciso uma opinião pública que acredite e dê respaldo ao modelo. Nem tudo se passa no campo econômico.

Pelo contrário: a prosperidade econômica não basta para criar magicamente uma sociedade onde a maioria dos cidadãos se sinta confortável. Ao mesmo tempo, é necessária uma verdadeira igualdade de oportunidades, que só pode ser oferecida por uma educação pública de alto nível, que garanta, a cada geração, um ponto de partida uniforme. Isso se realizou na França antes de qualquer outro lugar e também – pasmem – na Argentina do século passado, quando o modelo educacional criado às margens do Rio da Prata pelos herdeiros de Sarmiento despertava a admiração de todo o mundo.

O curioso é que, apesar do óbvio, os ataques ao modelo exitoso estão ficando cada dia mais intensos e vêm, sobretudo, de países que tentaram aplicá-lo e não conseguiram por vários motivos, especialmente por causa de uma classe política populista e demagógica, que questiona esse sistema por motivos supostamente morais. A maior dificuldade para que esses países sigam o modelo do progresso é semântica: um problema de palavras.

Assumir o “capitalismo”, um requisito essencial, é simplesmente impossível para a maioria desses países, uma vez que a esquerda em geral, e a esquerda comunista em particular, hoje minúscula, conseguiu criar em torno dessa palavra – capitalismo – um sentido de injustiça e desigualdade, de patifaria e egoísmo, que a torna impronunciável. Ou, melhor dizendo, associou-se a palavra a um complexo de inferioridade que impede que aqueles que nela acreditam a pronunciem, muito menos a promovam.

Muitas vezes, este é o caso dos próprios empresários, que têm vergonha de ser quem são e do que representam. Esse é um dos grandes paradoxos do nosso tempo: o sistema que trouxe modernidade, prosperidade e, acima de tudo, liberdade aos países mais avançados do mundo costuma ser impronunciável no terceiro mundo, onde nenhum líder político que se preze ousaria promover uma fórmula “capitalista” – palavra amaldiçoada – para seus eleitores, pois o mais provável é que teria muito poucos.

A esquerda conseguiu impor aquela confusão mental que nos dias de hoje, especialmente nos países subdesenvolvidos, impede que se aproveite a extraordinária possibilidade de tirar da pobreza e do subdesenvolvimento dezenas ou centenas de países, os quais, paralisados pelo suposto socialismo que finalmente traria igualdade, solidariedade e boa renda para seus cidadãos, afundam cada vez mais na corrupção e na miséria, como a Venezuela.

A possibilidade de escolher entre pobreza ou riqueza está sempre presente, como possibilidade teórica. Mas, na prática, o socialismo continua triunfando sobre o capitalismo, pelo menos no papel e nos discursos. Este não se importa, pois tem a sensação – a garantia – de que o futuro lhe pertence. Os outros países, enquanto continuam empobrecendo, contentam-se não com o progresso, mas com o triunfo de uma só palavra.  / TRADUÇÃO RENATO PRELORENTZOU

É PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA

 

Ideias de Ruth Cardoso para políticas públicas se perderam com avanço do populismo

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Antropóloga, que faria 90 anos neste sábado (19), lançou propostas inovadoras para terceiro setor

Folha de São Paulo, 20/09/2020 

Augusto de Franco

Autor de obras sobre desenvolvimento local, capital social, democracia e redes sociais. Foi membro do Comitê Executivo do Conselho da Comunidade Solidária (1995-2002)

[RESUMO] Autor comenta legado de Ruth Cardoso, que completaria 90 anos neste sábado (19), no debate acerca do terceiro setor e políticas sociais. Ideias arrojadas da antropóloga se perderam com ondas políticas populistas e regressivas.

Um dos temas submetidos aos debates promovidos pelo Centro Ruth Cardoso e a Fundação Fernando Henrique neste neste mês de setembro é o papel da sociedade civil nas políticas sociais. Ruth (1930-2008) completaria 90 anos neste sábado (19).

Embora tenha escrito com ela e outros autores dois livros sobre o assunto, não quero apenas relembrar nossas ideias durante aquele período de atuação do Conselho da Comunidade Solidária (1995-2002).

Mais interessante, talvez, seja tentar imaginar o que Ruth pensaria e faria hoje, duas décadas depois daquelas reflexões e experiências que tanto nos empolgaram.

Houve naquela época a abertura de uma janela de inovação social. Entre 1989 e 1998, tivemos a queda do Muro de Berlim e o declínio do socialismo real, o surgimento da World Wide Web e da nova ciência das redes, a ascensão do chamado terceiro setor, as teorias do capital social e a experimentação de uma nova geração de políticas sociais, entendidas como indução do desenvolvimento. Ruth não veio de Vênus. Ela floresceu naquela onda.

Quando essa janela se fechou, voltamos à década de 1980. E Ruth, nos seus últimos anos, sofreu “ao assistir à derruição sistemática das bases de um novo padrão de relação entre Estado e sociedade, que tanto se esforçou por construir”. Como escrevi em artigo publicado em 26/06/2008, dia de seu enterro, nesta Folha, “passou-se a tempo de não sofrer mais. Foi poupada do que ainda virá. Pobres de nós que teremos de aguentar sozinhos, por muito tempo ainda, todos os efeitos associados à volta regressiva de um passado do qual ela quis se desvencilhar”.

Pois sim. Esse passado voltou em 2003. E tornou a voltar em 2018, quando a marcha para algum lugar remoto no tempo sofreu uma aceleração ainda maior.

Se uma janela de inovação se fecha, há ondas regressivas sobrevindo. A primeira grande onda regressiva veio após o atentado ao World Trade Center, em 2001, com o unilateralismo, a guerra fria contra o terrorismo e a ascensão dos neopopulismos ditos de esquerda (gente como Chávez e Putin tomou o poder para alterar os regimes que os elegeram e nunca mais sair do governo).

A segunda grande onda regressiva veio com a ascensão dos populismos autoritários, ditos de extrema-direita. Ainda estamos nesta segunda onda, que se avoluma. Bolsonaro foi eleito (e pode ser reeleito) no Brasil; Trump também pode ser reeleito nos EUA; Erdogan, Orbán, e Duda avançam na Europa.

Levantamento do jornal inglês “The Guardian”, no fim do ano passado, revela que, há duas décadas, 7% dos europeus votavam em candidatos populistas, de diferentes espectros, e agora esse número passou para 25%.

Qual o problema? É que o populismo configura ambientes avessos à inovação. Ademais, populismos não promovem políticas sociais, e sim políticas para pobres. Não é a mesma coisa? Não, não é, como veremos adiante.

Fomos assim remetidos, talvez, para muito antes da década de 1980. Pode-se dizer que, em termos de inovação social, não é que estejamos desatualizados, mas sim que o mundo se desatualizou, nos deixou perdidos lá na frente.

Ruth em 2020 está perdida no tempo. Cabe a nós achá-la novamente. Vamos tentar farejar o caminho das ideias e práticas que nos levaram à essa perdição.

AS IDEIAS LÁ NA FRENTE

O Conselho da Comunidade Solidária, sob a presidência de Ruth Cardoso, foi fundado em 1995 como um novo instrumento de diálogo político e de promoção de parcerias entre Estado e sociedade para o enfrentamento da pobreza e da exclusão.

No início de 1996, por iniciativa de parte de seus próprios conselheiros, a Comunidade Solidária resolveu se reinventar. Naquela época foram lançados os fundamentos de um novo referencial para a ação social do Estado e da sociedade, com os quais trabalharíamos nos anos seguintes:

1) Não há contradição entre dever do Estado e responsabilidade do cidadão. 2) Não há contradição entre políticas públicas e dinâmicas comunitárias, entre oferta de serviços e fortalecimento do capital social local. 3) Não há contradição entre políticas de alcance universal e políticas focalizadas. 4) Não há contradição entre políticas assistenciais e políticas de indução ao desenvolvimento. 5) Não deve haver contradição entre política econômica e política social. 6) Não há caminho único nem receita infalível para superar a pobreza. 7) Compartilhar com a sociedade tarefas, formulação e implementação de uma estratégia de desenvolvimento social não é apenas uma possibilidade, mas uma necessidade, na sociedade contemporânea.

Adotando essas referências, o Conselho da Comunidade Solidária redefiniu a sua missão e foi refinando o seu papel ao longo do tempo. Em síntese, achávamos que nosso papel era promover programas inovadores de investimento em capital humano e, sobretudo, em capital social.

Nosso objetivo não era, portanto, fazer programas compensatórios ou assistenciais, conquanto reconhecêssemos que essas iniciativas fossem necessárias. Queríamos induzir o desenvolvimento social despertando as forças vivas e empreendedoras das comunidades, sempre pela ação de organizações da sociedade civil, em parceria com os governos e as empresas.

Ruth acompanhava com atenção os diferentes programas de transferência condicionada de renda, como o Bolsa Escola, tão caro ao nosso amigo Cristovam Buarque, então governador do Distrito Federal, ou o programa de renda mínima ensaiado por Magalhães Teixeira (mais conhecido como o Prefeito Grama de Campinas), a partir de 1994.

Sim, houve um Bolsa Escola federal durante o governo Fernando Henrique, e um Bolsa Família a iniciado pelo governo Lula (consolidando várias iniciativas anteriores). Há uma crença, repetida por quase todo mundo, de que foi Ruth Cardoso quem organizou tudo isso. Não é verdade. Não que ela se opusesse a tais iniciativas, mas simplesmente porque essa não era a sua praia.

Já em meados de 1996, nós, da Comunidade Solidária, estávamos envolvidos com uma nova geração de políticas sociais, uma terceira geração, por assim dizer, que não era, como a primeira, que predominou até o final dos anos 1980, baseada em políticas de intervenção centralizada do Estado, nem como a segunda, inaugurada após a Constituição de 1988, baseada em políticas públicas de oferta governamental descentralizada.

A terceira geração, acreditávamos, era baseada em políticas públicas de parceria entre Estado e sociedade para o investimento no desenvolvimento social.

Para essa terceira geração, o foco era o investimento em ativos (nas potencialidades já existentes em setores e localidades), e não apenas o gasto estatal para satisfazer necessidades setoriais, como destacado nos pontos a seguir.

1) O Estado é tão necessário quanto insuficiente, devendo-se, portanto, lançar mão de parcerias e buscar sinergias entre todos os setores (o Estado, o mercado e a sociedade civil) para promover o desenvolvimento.

2) Política pública não é sinônimo de política governamental, o Estado não detém nem deve deter o monopólio do público; existe uma esfera pública não estatal em expansão, constituída por entes e processos da sociedade civil que podem ser voltados à promoção do desenvolvimento.

3) Promover o desenvolvimento social não constitui uma tarefa lateral e separável das outras tarefas do Estado como indutor do desenvolvimento, na medida em que todo desenvolvimento é desenvolvimento social.

4) Induzir o desenvolvimento significa investir em capacidades permanentes de pessoas e comunidades para que possam afirmar uma nova identidade no mundo ao ensaiar seu próprio caminho de superação de problemas e de satisfação de necessidades, tornando dinâmicas suas potencialidades para antecipar o futuro que almejam.

AS IDEIAS PARA TRÁS

Na compreensão do que é política social, ficamos para trás. Há quem ache que política social é somente política para os pobres. Ou que apenas compensa defasagens de inserção no mundo produtivo.

Outros acreditam que seus objetivos são humanitários (para evitar que as pessoas caiam em extrema pobreza) ou estabilizadores da paz social (para evitar que as pessoas se revoltem violentamente contra o sistema, como no Chile em 2019. Cada uma dessas visões tem, em parte, seus miligramas de verdade. Mas todas estão baseadas em razões diminutivas.

A política social é necessária porque há um desenvolvimento que não é decorrência direta ou automática de crescimento econômico, sobretudo em sociedades altamente desiguais.

Mesmo com o aumento do bolo total de renda e riqueza, sua distribuição não se dará de modo equitativo diante de outras desigualdades, consideradas externalidades econômicas, como as de conhecimento e poder. Assim, não adianta pensar apenas em políticas de geração de emprego e renda.

É necessário pensar em políticas de investimento em capital humano (conhecimento) e em capital social (poder ou empoderamento), sendo este último o fator essencial pelo seu efeito sistêmico. Ora, a distribuição de poder depende do avanço do processo de democratização.

Por isso, políticas sociais não devem ser encaradas apenas como políticas para pobres, de proteção e assistência social, e sim como políticas de promoção ou indução do desenvolvimento social para todos. E o desenvolvimento social é parte (ou fenômeno acompanhante) do processo político de democratização da sociedade, do Estado e do padrão de relação Estado-sociedade.

Hoje, tudo isso que foi expectado, formulado e experimentado há mais de 20 anos parece futurível. Discute-se o valor de uma renda mínima a ser ofertada integralmente pelo Estado, e não a ser gerada pela sociedade e pelo mercado com os incentivos corretos do Estado. Nesta discussão, Ruth está perdida no futuro.

Não que não tenha sido necessário, sobretudo diante da crise econômica agravada pela pandemia, um auxílio emergencial de oferta estatal centralizada. Talvez precisemos manter essa ajuda ainda por muito tempo.

Mas, como brincávamos àquela época, trata-se de “dinheiro jogado de helicóptero”, pois, ainda que possa aquecer as economias locais e resgatar parte das populações da pobreza de renda, não é capaz de fornecer capacidades permanentes que permitam às pessoas e às comunidades mais carentes se emanciparem. ​

A pobreza não é apenas insuficiência de renda, mas principalmente insuficiência de rede. Sim, capital social é rede.

AS IDEIAS AGORA

Se pudéssemos ter saltado diretamente de 2002 para 2020, encontraríamos Ruth dizendo que o desenvolvimento não pode ser levado de fora para dentro, nem de amanhã para ontem. Que ele é um metabolismo da rede no presente.

E que, para tanto, existem apenas dois caminhos: a) aumentar a conectividade geral dos ambientes onde vivem as pessoas (inclusive, mas não só, em condição de pobreza), possibilitando a multiplicação dos laços fracos entre elas; e b) incrementar as relações amistosas que possam surgir entre essas pessoas quando elas se conectam a partir de seus desejos congruentes para fazer qualquer coisa juntas.

É mais simples do que parece para quem não quer usar as políticas sociais para conduzir rebanhos. Mas vá-se lá dizer-lhes!

 

A ilusão de uma recuperação em ‘V’

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Esperada contração nos gastos inviabilizará um avanço mais consistente

Esther Dweck

Professora do Instituto de Economia da UFRJ, coordenadora do Grupo de Economia do Setor Público (Gesp-IE/UFRJ) e ex-secretária de Orçamento Federal (2015-16, governo Dilma)

Thiago de Moraes Moreira

Consultor em planejamento estratégico e professor do Conselho Regional de Economia (Corecon-RJ) e do Ibmec-RJ

Muitos economistas vêm afirmando que o pior da pandemia já ficou para trás e apostam na recuperação em “V”. A letra “V” simbolizaria um cenário de recuperação acelerada, após a forte queda da atividade registrada em abril e que levou à inédita queda do PIB do segundo trimestre de quase 10%.

As últimas pesquisas reforçaram tal visão, mostrando a recuperação da produção industrial e do comércio. Os indicadores de expectativas também mostraram forte reação. A principal referência internacional para a confiança empresarial, o Purchasing Managers’ Index, vem registrando valores acima de 50 para a indústria brasileira desde junho, o marco divisor entre o pessimismo e o otimismo, após ter atingido 36 pontos em abril.

Entretanto, há indícios de superestimação da retomada, o que podemos denominar de “overshooting” das expectativas. Os resultados recentes de recuperação refletem principalmente o afrouxamento do isolamento social e os efeitos positivos sobre o consumo privado decorrentes das políticas de garantia de renda, como o auxílio emergencial e o seguro-desemprego.

O sucesso dessas políticas levou o governo a prorrogá-las, evitando a perda súbita de renda de parte expressiva da população. Vale também lembrar que milhões de trabalhadores formais estão com seus contratos de trabalho temporariamente suspensos ou com jornada (e salários) reduzidos, o que ainda tem evitado um processo de demissão generalizada.

No entanto, a redução do auxílio emergencial, a indefinição sobre a ampliação da cobertura do Bolsa Família para 2021, a retomada do teto de gastos já incorporada no Projeto de Lei Orçamentária (Ploa) 2021 e o fim do programa voltado à sustentação de empregos formais, apontam para uma forte contração econômica, que certamente irá interromper a trajetória em “V”.

O governo brasileiro novamente se recusa a assumir seu papel central na recuperação econômica, baseando-se no velho e ultrapassado argumento de que, sem uma austeridade fiscal rigorosa, a economia caminharia para o caos. Muitos economistas de orientação liberal no exterior estão sugerindo ações expansionistas de política fiscal, como pôde ser verificado nas últimas recomendações do FMI aos países do G20 para o enfrentamento do período pós-pandemia.

Somada a essa contração fiscal e ao aumento do desemprego, não podemos ainda descartar uma possível aceleração da Covid-19 no país, como a experiência recente de muitos países europeus tem sinalizado, o que poderia levar à necessidade de novas medidas de isolamento social.

Ainda não sabemos se o preço da negligência de autoridades no combate à pandemia já foi pago com as milhares de vidas perdidas e com o número ainda elevado de mortes diárias —e se a chamada “imunidade coletiva” já está próxima de ser atingida ou se poderemos assistir ainda a uma piora da situação.

Enfim, as hipóteses sanitárias, de evolução da renda e do mercado de trabalho, bem como as medidas de política fiscal, apontam para diferentes cenários de interrupção da recuperação econômica.

Um recrudescimento da pandemia pode ser o causador dessa interrupção, a qual pode ocorrer ainda neste ou no próximo ano, até que uma vacina efetiva esteja à disposição da população brasileira. No entanto, ainda que descartemos a hipótese de piora das condições sanitárias, há razões econômicas suficientes para a interrupção da retomada.

O esperado impacto negativo na renda decorrente do enfraquecimento dos programas assistenciais e do fim do programa de proteção ao emprego formal devem interromper a recuperação em curso da demanda privada. Acrescente-se a isso o enfraquecimento da demanda governamental com a retomada do recessivo teto de gastos. Em um contexto de evidente insuficiência de demanda agregada, a esperada contração nos gastos (públicos e privados) inviabilizará qualquer recuperação mais consistente, impondo dificuldades ainda maiores para uma economia que mesmo antes da pandemia ainda sequer havia recuperado o nível do PIB de 2014.

 

Não há justificativa razoável para deixar os magistrados de fora da reforma administrativa

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Salário inicial de um juiz federal recém-empossado foi de R$ 32 mil em 2019, 81% do salário de um ministro do STF

O encaminhamento da proposta de reforma administrativa ao Congresso trouxe necessária discussão sobre a adequação dos serviços prestados pelo Estado às demandas da população. Ampla gama de carreiras foi considerada, incluindo o funcionalismo nas suas esferas municipais, estaduais e federais, e em todos os Poderes.

Curiosamente, a proposta abriu exceções, mantendo intactas as regras de algumas carreiras específicas, como juízes, desembargadores, procuradores e promotores. Essas categorias têm participação relevante no Orçamento público, e suas atividades são de enorme importância para a sociedade e para a economia.

No caso do Judiciário, as despesas alcançaram R$ 100 bilhões em 2019, 1,5% do PIB, dos quais 90% são gastos com recursos humanos (Justiça em Números, 2020). Em perspectiva comparada, a alocação de recursos ao Poder Judiciário é elevada, já que países como França e EUA destinam em torno de 0,2% do PIB para essa atividade.

Relativo aos outros Poderes, o salário médio do Judiciário é três vezes maior que os salários do Executivo e do Legislativo (Atlas do Estado Brasileiro, 2019), guiado principalmente pela destinação de recursos que é dada aos magistrados, já que o custo médio mensal é de R$ 51 mil para eles, comparado a R$ 16 mil para os servidores do próprio Judiciário.

A extrema concentração de salários próximo ao teto remuneratório inviabiliza qualquer tipo de promoção por desempenho dos magistrados. Vale lembrar que o salário inicial de um juiz federal recém-empossado foi de R$ 32 mil em 2019 e corresponde a 81% do salário de um ministro do STF. Não surpreende a constante pressão pelas verbas indenizatórias como forma de salário.

Talvez haja entendimento de uma já elevada produtividade dos magistrados, justificando o recebimento do teto remuneratório, mesmo em início de carreira. O Justiça em Números de 2020 dá ênfase ao aumento de 13% da produtividade média do magistrado no último ano, atingindo o maior valor da série histórica, com média de 2.107 processos baixados por magistrado.

Com a máxima venia, cabe análise contraditória. O número de processos baixados é medida superestimada da resolutividade judicial, pois inclui processos remetidos para outros órgãos judiciais ou instâncias superiores. Ou seja, processos que não foram propriamente resolvidos. Mais correto seria considerar o mesmo processo ao longo de toda a sua “vida”, incluindo informações sobre a taxa de reforma das decisões contestadas.

Ademais, causa espécie associar o resultado de todo o Judiciário apenas aos magistrados, já que amplas estruturas administrativas de suporte também estão envolvidas.

O Judiciário conta com apenas 18 mil magistrados, mas tem o apoio de 270 mil servidores e 160 mil auxiliares. A produtividade do magistrado poderia ser muito mais bem mensurada pela avaliação de suas sentenças em comitê externo, incluindo aferição das horas trabalhadas em sistema de ponto, informação que a categoria recusa fornecer à sociedade.

Por outros indicadores, mais amplos, a eficiência do Judiciário não parece ser expressiva. A taxa de congestionamento —o percentual de processos que ficaram represados sem solução— é de 69%. A redundância decisória também é alta. Os percentuais de recursos dirigidos ao órgão que teve sua decisão contestada ou encaminhados à instância superior foram ambos de 11%.

Na Justiça do Trabalho, a recorribilidade a instâncias superiores chega a 51%. Isso sem contar a baixa taxa de resolução de conflitos em instâncias inferiores: 1 a cada 4 casos iniciados nas Varas do Trabalho chega ao Tribunal Superior do Trabalho. O tempo médio que um caso ganha sua primeira decisão é substancial, alcançando 57 meses nas Varas Estaduais.

Ao que tudo indica, nosso Judiciário é composto por magistrados de baixa capacidade resolutiva, apesar de amplo escopo decisório. A morosidade e a redundância da Justiça são prova evidente de enorme desperdício de recursos no setor.

Não há justificativa econômica (nem ética) razoável para deixar os magistrados de fora da reforma administrativa. Afinal, magistrados são servidores públicos como todos os demais outros. A sociedade como um todo ganha com Judiciário menos burocrático, mais rápido e menos imprevisível.

Cecilia Machado

Economista, é professora da EPGE (Escola Brasileira de Economia e Finanças) da FG

Governos usam pandemia para acelerar a guerra contra a Terra, diz ambientalista indiana

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Para Vandana Shiva, gigantes da tecnologia promovem ideia de que natureza precisa ser derrotada

Lígia Mesquita – Folha de São Paulo, 15/09/2020

Há uma nova colonização em andamento realizada pela chamada Big Tech (Amazon, Apple, Google, Facebook), movida pelo combustível da coleta de dados, rezando a um deus chamado tecnologia para fincar suas bandeiras num território chamado mente humana.

Para a indiana Vandana Shiva, 67, doutora em física quântica e uma das ambientalistas mais conhecidas no mundo essa “colonização da mente” pelo modelo de negócio das gigantes de tecnologia perpetua uma visão de mundo que enxerga a natureza como algo a ser derrotado e conquistado. Shiva enxerga a pandemia de coronavírus como um problema ecológico e diz que a nossa saúde está ligada à da natureza.

Uma das vozes atuais mais críticas da economia digital, a qual define como um modelo do “capitalismo de vigilância”, Shiva combate, há anos, a agricultura industrializada e o “cartel do veneno”, formado pelas multinacionais de agrotóxicos.

Expoente do movimento antiglobalização e precursora do ecofeminismo, que vê uma associação entre a degradação da natureza e a marginalização das mulheres, Shiva foi conferencista do ciclo Fronteiras do Pensamento, cujo tema de 2020 é “Reinvenção do humano”.

A ambientalista já esteve muitas vezes no Brasil e chegou a visitar a Amazônia com a então ministra do Ambiente Marina Silva. Vê com preocupação a gestão ambiental do governo Jair Bolsonaro. Segundo ela, políticas que promovem a destruição do ambiente são uma operação militar, uma guerra, e não algo cultural.

A pandemia pode ser um ponto de inflexão para a urgência de políticas pró-sustentabilidade? Nossa relação com a natureza mudará?

É incerto se nossa relação com o mundo natural mudará, ou se a visão de mundo cartesiana, baconiana, baseada na separação e conquista da natureza, se intensificará e nos levará ao precipício. Por um lado, você tem uma maior consciência de que a pandemia é um problema ecológico. Corona, zika, ebola, Sars e boa parte das novas epidemias de doenças infecciosas são resultado da invasão de ecossistemas florestais. Os riscos de mortalidade aumentam, porque o mesmo modelo de agronegócio de agricultura industrializada e globalizada que está levando às queimadas da Amazônia para a plantação de soja transgênica também cria doenças crônicas. E o mesmo modelo é responsável por 50% das emissões de gases de efeito estufa. Ver essas múltiplas crises como interrelacionadas também cria um imperativo para reconhecer que fazemos parte da natureza e que a violência contra ela retorna como um dano à humanidade na forma de pandemias e mudanças climáticas.

Por outro lado, as Big Tech [Amazon, Apple, Facebook e Google] se baseiam na visão de mundo de que devemos derrotar e conquistar a natureza. E estão pressionando para a agricultura digital, o que significa mais soja transgênica, mais queimadas na Amazônia, mais pandemias, mais pessoas doentes. Nossa saúde está ligada à saúde do planeta.

Você já disse que a nova etapa colonial é a da “colonização da nossa mente”. Poderia explicar?

Na primeira colonização das Américas, o cristianismo foi definido como a missão civilizadora para justificar a apropriação dos recursos. No colonialismo britânico, o comércio e o mercado foram transformados em religião, o que justificou toda a violência em nome de se ganhar dinheiro. Hoje, as ferramentas das Big Tech são para a colonização. A imposição delas à sociedade feita sem avaliação, debate e escolha democrática se justifica com o tratamento de nova religião dado à tecnologia, que pode destruir as economias e nossa humanidade e liberdade.

Como isso se dá?

A colonização em andamento é a colonização de nossas mentes em três níveis. Nossas mentes estão sendo colonizadas para deixar de ver a tecnologia como uma ferramenta e passar a enxergá-la como uma nova religião, que nos torna “civilizados”. Em segundo lugar, a matéria-prima para a revolução digital é o Big Data, o novo “petróleo”. Esses dados são extraídos de nossos corpos e mentes como a próxima matéria-prima. Os Googles, Microsoft, Facebooks, Apples e Amazons são exploradores e mineradores de dados. Eles são os “Barões Ladrões” de hoje, como Rockefeller [o americano barão do petróleo John. D. Rockefeller] e sua Standard Oil eram há cem anos. Finalmente, a colonização da mente inclui a manipulação de nossos pensamentos e comportamento para fins comerciais e políticos. A economia está se tornando uma economia de “capitalismo de vigilância”.

Há economistas defendendo que programas de investimento sustentável podem recuperar a economia pós-pandemia e combater a mudança climática. Como derrubar a crença de que desenvolvimento sustentável não é bom para a economia?

Precisamos de um novo Acordo Verde. A primeira coisa que precisamos é parar as invasões em nossas terras e comunidades e reconhecer que a economia global impulsionada pelas corporações é a recolonização baseada no ecocídio e no genocídio. Isso deve ser reconhecido como crime e contido. E parte dessa mudança inclui o reconhecimento de que ganhar dinheiro não é “economia”. A economia é derivada da Oikos [em grego, ‘oikos’ (eco) significa casa; a junção com o sufixo ‘nomos’ (nomia), que significa lei/ordem, fez surgir a palavra economia] e significa o gerenciamento e cuidado de nossa casa, incluindo o planeta como nossa casa comum. Devemos voltar para casa, para a Terra e repensar a maneira como organizamos nossas economias.

Como analisa a afirmação do presidente brasileiro de que o desmatamento e as queimadas “nunca terminarão” porque são algo cultural?

Destruição da natureza e desmatamento não são uma “cultura”. É uma guerra, uma operação militar. E a maioria dos governos está usando a pandemia para acelerar a guerra contra a Terra para criar oportunidades para seus amigos corporativos financiarem suas eleições e ajudá-los a permanecer no poder. É por isso que a globalização foi usada para criar estados corporativos que durante a pandemia estão se transformando em estados de vigilância corporativa.

Como reinventar nossa relação com o planeta?

A mentalidade de estar separado da natureza tem apenas algumas centenas de anos, é parte do colonialismo. A reimaginação de que precisamos é reconhecer que somos parte da Terra, uma visão de mundo que os povos indígenas sustentam e que pode levar a uma reimaginação da humanidade. Os seres humanos estão sendo definidos como uma “tecnologia não aprimorada”, que precisa de um “upgrade” por meio de “nanopartículas e inteligência artificial”. A humanidade tem que escolher o que ser humano significa em um mundo pós-pandêmico. Dessa escolha depende o futuro de nossa espécie.

Vandana Shiva

Nasceu na Índia em 5 de novembro de 1952. Graduou-se em física na Universidade Panjab, em Chandigarh, e tem Ph.D. em filosofia pela Universidade de Western Ontario, Canadá. Tornou-se conhecida pelo ativismo antiglobalização e ambiental, tendo fundado a ONG Navdanya, que promove a biodiversidade de sementes, as plantações orgânicas e os direitos de agricultores. Recebeu em 1993 o Right Livelihood Award, conhecido como “Nobel alternativo”. Foi conferencista do Fronteiras do Pensamento em 2012.

 

Guedes, o açougueiro gourmet, por Thiago Amparo.

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Precarizar administração pública e renomear o que já existe não é reformá-la

FSP, 14/09/2020.

Guedes é uma espécie de açougueiro gourmet. Sem saber o que fazer com a administração pública, Guedes prefere fingir que está cortando na carne, e vende gato por lebre chamando-a de picanha.

PEC da reforma administrativa renomeia o que já existe (cargo de liderança), joga para escanteio debate que importa (avaliação de desempenho, avaliação e gestão de processos), mantém intactos os privilégios das carreiras do alto funcionalismo, e corrói a estabilidade que separa, já com falhas, funcionalismo de pressões políticas e econômicas.

Que fique claro, o país precisa de uma reforma administrativa, mas a de Guedes não é digna deste nome, de tão genérica que é. Como lembrou Lotta (da FGV), uma reforma deveria tratar melhor de gestão de pessoas, estrutura organizacional e relação com organizações não estatais que fornecem serviços. A de Guedes não o faz.

Ao focar em servidores e não em gestão pública, a reforma do CEO Guedes é a faceta “farialimer” de um presidente que une corporativismo de farda com histórico desprezo por políticas sociais.

Por que então mercado, parte da imprensa e governo compram a picanha de gato de Guedes?

Hipótese 1: reforma proposta mantém intactos os incentivos à corrupção dentro do Estado. Literatura internacional esclarece que estabilidade é uma barreira à corrupção (ver Robert Wade sobre Índia e Sarah Brierley sobre Gana). No Brasil, Bugarin e Meneguin mostram que, embora falte inovação, entre 2002 e 2013 maior corrupção ocorreu nos ministérios com maior percentual de cargos de confiança.

Hipótese 2: reforma proposta facilita concentração de poder, logo ineficiência. Cabe a Guedes explicar por que dar mais poder ao presidente para extinguir órgãos e carreiras públicas, sem precisar de lei. Erra a Folha em editorial neste domingo (13) ao escolher um mau exemplo (EUA), para apoiar a reforma, porque é justamente a burocracia dos EUA que protegeu o país dos desmandos de Trump (ver Lewis no livro “O Quinto Risco”).

Por aqui, são Ibama, ICMBio e Funai e seus servidores que não deixam a nossa democracia ou as florestas pegarem ainda mais fogo.

Hipótese 3: reforma atual alimenta fetiche por menos Estado, sem se dar ao trabalho de explicitar com dados o que de fato torna o Estado ineficiente. Reestruturar carreiras para criar incentivos à eficiência, regulamentar avaliação de desempenho, implodir penduricalhos podem ser feitos por lei, não PEC, nos lembra Sundfeld (FGV). Da lei à gestão, ineficiência mora, em parte, na burocracia ocupada por gestores comissionados que não monitoram ou avaliam políticas, nos lembra Graziane (FGV). No primeiro ano do governo Bolsonaro, aliás, dobrou o número de comissionados filiados ao PSL e ao Novo no governo federal segundo dados de agosto divulgados na Piauí.

Hipótese 4: precarizar o Estado é projeto de país. De um lado, nos distrai dos privilégios fardados e togados mantidos pela reforma, nos lembra Grisa (IFRS). De outro lado, precariza os serviços públicos sociais, onde os salários são baixos, criando incentivos para que a população utilize alternativas privadas. Para o PIB que ocupa o Estado, mais planos de saúde e mais escolas privadas de baixa qualidade são melhores do que investir em custo-qualidade do serviço público, debate ao qual o governo é refratário.

Precarização dos sistemas de saúde e educação municipalizados, debate sobre o lado da receita, pouco controle sobre organizações não estatais, muitas delas de cunho religioso, não estão na mesa de Guedes. Modernizar o Estado, para Guedes, é tornar a burocracia pré-moderna.

Mitos e ideologias por trás da reforma de Guedes dirão que o debate é entre Estado maior e engessado, de um lado, e Estado menor e mais eficiente, de outro, num exemplo de “doisladismo” improdutivo. O corte desta carne é mais profundo: há muitos interesses políticos no espectro da esquerda à direita e interesses privados por trás da picanha que é o Estado.

As classes mais pobres, e negras, amargam os ossos que sobram.

Thiago Amparo

Advogado, é professor de políticas de diversidade na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos humanos e discriminação.

 

Se o Brasil achar solução para si, vai salvar o resto do mundo, diz Bruno Latour

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Para o pensador francês, as crises política e ambiental formam uma tempestade perfeita no país, onde as principais questões das próximas décadas estão visíveis

Ana Carolina Amaral, FOLHA DE SÃO PAULO, 13/09/2020

“A ausência de um mundo comum está nos enlouquecendo”, afirma o francês Bruno Latour, um dos mais destacados pensadores da filosofia da natureza e da ecologia política.

Ele conecta as múltiplas crises que vivemos com o dilema ambiental —que para ele não é mais uma crise, mas uma mutação— e defende que o negacionismo climático iniciado nos anos 1990 está na raiz do escapismo da realidade, fenômeno que teria levado às eleições de Donald Trump e de Jair Bolsonaro e que agora se reflete na negação da pandemia.

Suas duas obras mais recentes apresentam essas ideias de forma complementar. “Diante de Gaia: Oito Conferências Sobre a Natureza no Antropoceno” (ed. Ubu, 480 págs.) mune o leitor de ferramentas filosóficas, enquanto “Onde Aterrar? – Como se Orientar Politicamente no Antropoceno” (ed. Bazar do Tempo, 160 págs.) funciona como guia de intervenção sobre a conjunção das crises política e ecológica. Os dois livros foram lançados em julho no Brasil.

Na entrevista por chamada de vídeo de sua casa em Paris, Latour afirma que nenhum outro país enfrenta sobreposição de crises tão extremas quanto o Brasil, “onde está visível tudo aquilo que vai ser importante nas próximas décadas”.

Em “Diante de Gaia”, o sr. aponta o negacionismo climático iniciado nos anos 1990 como raiz para a ascensão da extrema direita, assim como para a negação da ciência e até mesmo da pandemia. Como o sr. chegou a essa relação? 

É bem óbvio que o negacionismo não pode ser justificado por nenhum efeito cognitivo. Há algo por trás da negação da realidade, porque se sua casa está pegando fogo e você diz “não, nada está acontecendo”, sua mente não consegue processar isso. Isso significa, para sua mente, que você terá outra casa para onde você pode se mudar, então você pode deixar essa aqui queimar. Esse negacionismo é como se eu não vivesse no mesmo planeta que você.

Então o desafio climático é chave para entender as múltiplas crises que vivemos hoje? 

Desde os anos 1980 há algo estranho que excede o neoliberalismo. Minha interpretação é bem simples e infelizmente está sendo confirmada pelos acontecimentos no Brasil, na Rússia, nos EUA, na Inglaterra. Trata-se basicamente do escapismo. Uma parte da sociedade decidiu escapar da Terra e isso explica termos essa incrível divisão no mundo. E não tem nada a ver com a clássica divisão entre vermelho e azul, esquerda e direita. A única forma de explicá-la é trazendo para o quadro o que eu chamo de novo regime climático –que não trata só do clima, mas da Terra.

Há uma tendência de se reduzir a pauta do clima à retirada de carbono da atmosfera. Existe o risco de resolvermos a conta climática sem encarar o desafio ecológico?  

Toda vez que alguém tenta limitar a questão do clima à emissão de CO2 acaba falando sobre todo o restante. Pegue só o CO2 e veja onde ele lhe leva. Ele leva a todo lugar.

Quem atua com outras agendas, como a do antirracismo ou do feminismo, também pode entender que essas são as pautas centrais. Como o sr. dialoga com pautas que ganham força? 

É por isso que chamo o que vivemos de novo regime climático: não trata apenas de retirar carbono da atmosfera mas de todas as outras condições da existência. Agora a crise é tamanha que já se entende que o mundo todo vai ser impactado, mas que os mais impactados são aqueles que sofrem com as desigualdades. Fiquei espantado quando soube que seu presidente respondeu que não se importava ou que não podia fazer nada sobre as mortes por coronavírus. Sempre foi básico, até para neandertais, que, se você é um líder, terá que cuidar do seu povo, não pode apenas dizer “que pena, pessoal”. O escapismo é a principal ameaça no mundo. E, comparada a essa ameaça, todas as outras lutas convergem.

Há menos de cinco anos o inimigo para os ecologistas era ainda o modelo de desenvolvimento que ignora os limites planetários. Agora nós percebemos que o modernismo implicava na existência de outro planeta para além deste em que vivemos. Mas o modernismo tratava de desenvolvimento, e ainda tentava liderar o mundo. Suas atitudes hipócritas nunca disseram explicitamente “eu não me importo, dê o fora”.

O que significou a assinatura do Acordo de Paris da ONU [de combate às mudanças climáticas] em 2015? 

Isso impactou uma hierarquia de poderes. Agora, todos que estão no poder têm o limite de 2°C [de aumento da temperatura média global] como um horizonte para a política. Isso é típico do que eu chamo de novo regime climático: você deve se desenvolver submetido a um poder que é também científico e que tem a aceitação da ideia de Gaia. O limite de 2°C vem do reconhecimento de que a Terra é um sistema do qual somos parte. Senão, não haveria razão para haver esse limite, por que não dizer 8°C ou 15°C? Isso não importaria.

Na edição brasileira de “Diante de Gaia”, o sr. diz que se preparava em 2013 para essa tempestade perfeita que hoje é vivida no Brasil. Quais perspectivas o sr. vê hoje para o Brasil? 

É claro que essa é a tempestade perfeita: quando há a mais forte virada na política, que é o novo regime climático, é também quando há a maior catástrofe na política. Ambos estão relacionados: se a política se tornou tão maluca é porque a crise é muito profunda e ela é sobre o clima. Sobre o horizonte para o Brasil, é muito importante para o resto do mundo que vocês encontrem respostas para essa crise.

É que —como posso dizer isso sem parecer desesperado? — se vocês administrarem uma solução, vocês salvam o resto do mundo. Porque em nenhum lugar há a mesma intensidade das duas tempestades se juntando, a ecológica e a política, como há no Brasil.

O Brasil é hoje como a Espanha era em 1936, durante a Guerra Civil: é onde tudo que vai ser importante nas próximas décadas está visível.

A preocupação internacional também é usada para alimentar uma narrativa nacionalista por aqui.  

A guerra cultural é parte disso, não é dissonância cognitiva. Não é coincidência que o governo brasileiro é tão inspirado por atitudes religiosas: se essa casa queimar, não importa, eles levam seus recursos para seu outro planeta, no céu, no paraíso.

A pandemia tem algum potencial de nos provocar essa reflexão sobre não termos outro planeta? 

É um ensaio, mas ele não nos prepara muito bem para as outras crises que estão vindo. Por outro lado, as pessoas ficaram com um pequeno pensamento de que as coisas podem ser diferentes. Então podemos dar a elas algumas ideias de como mudar as coisas.

O sr. propõe um terceiro pólo, o terrestre, como solução para as polarizações entre esquerda e direita, entre global e local. Como sua proposta difere da corrente política da terceira via?

Aqui, Marina Silva foi candidata defendendo que não estava “nem à esquerda e nem à direita de Lula, mas à frente”. Ela foi uma grande ministra e está certa, é mesmo “à frente”, mas não só. É muito diferente da terceira via, ideia britânica que tenta escapar das consequências de ser de esquerda. O que eu chamo de pólo terrestre é uma mudança de horizonte. Minha obsessão é definir o que é essa direção do terrestre.

Esse pólo pode ser representado por aquele mantra que sugere pensar globalmente e agir localmente?

Na intenção, sim; embora a noção do local competindo com o global seja uma tradição colonialista. O que a concepção das palavras diz é: não há forma de desenvolver o mundo com a ideia modernista dos anos 1970. Não há Terra para isso.

Uma última mensagem para os brasileiros? 
Tenho uma relação muito forte com o Brasil. Meu coração está com vocês nesta tempestade perfeita e espero que vocês saiam dela. Todos nós precisamos que vocês saiam dela.

Bruno Latour, 73
Filósofo, antropólogo e sociólogo, é doutor em filosofia pela Université de Tours e em antropologia pela École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, em Paris, onde é professor emérito. Autor de mais de 20 livros, também é tema de dezenas de obras. Recebeu em 2013 o prêmio Holberg. Casado, tem dois filhos e dois neto

 

Globalização e tribalismo: ameaças ou complementos segundo Raghuram Rajan.

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Por Vinícius Miller – Estado da Arte – 09/05/2019

Já se foram algumas décadas desde que o caloroso debate acerca dos efeitos da globalização sobre a cultura e os costumes viveu seu auge. No princípio, o barulho maior vinha daqueles que defendiam que, com a globalização, costumes locais seriam ameaçados pela homogeneidade de uma imposição cultural que acompanhava, em tese, a imposição econômica. Seria, nesta versão, a nova fase do imperialismo. Agora sem pudor nenhum em suprimir culturas locais em nome da imposição dos valores norte-americanos. Nesta hipótese, comer feijoada era uma resistência ao avanço do domínio dos arcos amarelos.

            Passado o tempo, o que se viu foi muito mais uma adaptação aos valores locais por aqueles que se espalhavam pelo globo. Ainda no exemplo culinário, os arcos dourados ponderaram seu cardápio entre seus tradicionais e globalizados sanduíches, de um lado, e ingredientes típicos das localidades onde se instalavam pelo mundo, de outro. Algo não muito diferente do que havia sido feito pelas multinacionais que se instalaram em diversos países ao longo do pós-guerra. Multinacionais como a Unilever se adaptavam aos costumes locais, criando marcas e produtos que refletiam a cultura do país que as recebiam. Ao mesmo tempo em que driblavam, ao menos parcialmente, a defesa protecionista da “produção nacional”.

            Isso precipitou uma inversão da hipótese inicial. Na nova versão, a globalização não era uma ameaça aos costumes locais, mas sim a possibilidade do indivíduo optar. Ou seja, comer feijoada não era mais uma resistência, mas uma opção do indivíduo que poderia escolher sua refeição entre diversos cardápios de diferentes culturas. Assim, um indiano poderia comer na quarta-feira o hambúrguer sem carne bovina oferecido pela filial da lanchonete norte-americana em Déli, enquanto deixaria a culinária local para o almoço da família no sábado. A globalização se transformava de imperialismo em liberdade.

Entre todas as teses, a mais interessante teoria acerca dos efeitos da globalização sobre as culturas e os costumes foi feita pelo sociólogo espanhol Manuel Castells. As identidades culturais, ao mesmo tempo motor e resultado dos costumes e tradições, seriam criadas não mais pelas divisões e critérios tradicionais, como a família, a cidade, a religião e a nacionalidade. Em seus lugares, entraria uma multiplicidade de identidades, variáveis em suas geometrias e potencializadas pela revolução tecnológica que sustenta a globalização. Desta forma, um professor em São Paulo estaria mais próximo de um professor italiano, em seu modo de entender as grandes questões do mundo, do que de um operário em Recife. Ao mesmo tempo, teria uma forte identidade com japoneses por conta do gosto comum que têm por mangá. Maior do que tem, por exemplo, com admiradores da cultura fronteiriça do Rio Grande do Sul. E, certamente, uma identidade qualificada com frequentadores dos clubes de jazz de Nova Iorque, para onde vai a cada biênio. Maior do que aquela que guarda junto aos seus primos, admiradores de música sertaneja-universitária, que vivem na mesma cidade no interior de Minas Gerais na qual o professor de São Paulo nasceu e viveu até o fim da adolescência. E para onde vai todo fim de ano passar o Natal com a família e seus amigos de infância.

Ou seja, as identidades são, segundo Castells, tão múltiplas e variáveis no tempo e no espaço que seria praticamente impossível defini-las como sendo resultados da homogeneidade imposta pela globalização. Tampouco como fruto da adaptação entre o global e o local e, muito menos, como reflexo exclusivo das escolhas individuais. Seriam resultantes de todas elas ao mesmo tempo, assim como, impulsionadas pela revolução tecnológica, representariam a cultura e costumes característicos de um mundo sem fronteiras e globalizado. Em outras palavras, o avanço da globalização econômica e produtiva teria sido acompanhado pela criação de costumes, culturas, comportamentos e identidades também globais.

Contudo, a pertinência desta associação entre uma globalização econômica e a formação de uma cultura global só é convincente se o seu avesso for verdadeiro. Ou seja, se a crise da globalização for acompanhada pela crise da identidade global. E, analogamente, se a revisão crítica à globalização econômica amparada em propostas nacionalistas for acompanhada pela reversão de uma identidade global em uma defesa de costumes locais. Vale notar que o avanço da globalização econômica também foi acompanhado pela ideia de que os valores da democracia liberal seriam fundamentais para que os países pudessem, da melhor maneira possível, participar do fenômeno de expansão dos mercados e das estruturas produtivas. A ascensão da China e seu híbrido entre economia de mercado e estado autoritário, assim como o trilema definido por Dani Rodrik em sua obra sobre os limites da globalização, colocam tal hipótese sob forte pressão e desconfiança. As analogias possíveis são simples: assim como a associação entre expansão global dos mercados e sistemas democráticos, antes vista como essencial, vem sendo questionada, as ideias acerca dos impactos da globalização na cultura e nas identidades também estão sendo desafiadas por algumas novas percepções e resultados concretos.

            Duas delas se entrelaçam no novo livro do economista indiano Raghuram Rajan (The Third Pillar: How Markets and The State Leave The Community Behind). A obra do professor da Universidade de Chicago, que já foi economista chefe do FMI assim como presidente do Banco Central da Índia (seu país de origem), apresenta a possibilidade de, em um efeito muito veloz como a volta de um elástico, a revalorização de identidades comunitárias e costumes tribais ameaçarem a globalização. Isso porque, com os amplos questionamentos feitos nos últimos anos àquilo que costumamos identificar como sendo resultados econômicos do processo de globalização, o que também nos acostumamos a identificar como sendo o resultado cultural da globalização seria, do mesmo modo, questionado. E este questionamento volta-se à legitimidade de uma identidade global, geometricamente variável e múltipla em seus elementos constitutivos, e à defesa de certa pureza dos grupos menores, do sentimento de comunidade e de pertencimento tribal que, mesmo estando em desvantagem ao longo das últimas décadas, não deixou de existir. A imagem, amplamente usada por Rajan, é a que trata de um profissional “globalizado” e local ao mesmo tempo: alguém que obtém sucesso profissional em atividades exercidas em localidades distantes de sua origem e/ou em setores como tecnologia, bancário ou esportivo, mas cujo desejo é mostrar seus resultados aos amigos de infância, aos seus familiares ou à suas paixões juvenis. Ou seja, mesmo global, sua identidade continua sendo parcialmente local, assim como o verdadeiro reconhecimento viria de sua comunidade, de sua tribo.

            Os alertas feitos por Rajan são óbvios. A desconfiança ao processo da globalização estimulada pela persistência e ampliação da desigualdade, pelos conflitos relacionados à imigração e pelo desemprego gerado pelos deslocamentos das atividades produtivas resulta, analogamente, na repulsa às identidades, aos costumes e aos comportamentos identificados como sendo também frutos da globalização. Quem ganha com isso são os sentimentos de pertencimento tribal e comunitário, em tese contrários à globalização. São estes sentimentos que vulgarmente sustentam as hipóteses absurdas sobre os males do globalismo, as teorias de conspiração sobre o plano de dominação mundial do “esquerdista” George Soros, entre outras tantas patéticas considerações. Contudo, também sustentam – e são sustentadas – por governos iliberais, de tendência autoritária e antidemocrática que se multiplicam pelo mundo.

Mas Rajan, também autor da melhor obra sobre a crise de 2008 (Linhas de Falha. Como Rachaduras Ocultas Ainda Ameaçam a Economia Mundial), não é nem um profeta do caos e muito menos um entusiasta dos populismos nacionalistas. Ao contrário, é um defensor nada ingênuo das vantagens da globalização e um intelectual que viveu, e ainda vive, a dualidade entre a identidade global que obteve em sua carreira internacional e suas origens indianas. Por isso, está mais preocupado em apontar como esta identidade comunitária, não obstante ser uma ameaça, pode ser também um elemento de fortalecimento da globalização. O desafio é parecido com aquele do início. O que parecia ser a imposição de uma cultura que homogenizaria as identidades nacionais, se transformou em liberdade, em alternativa e em novas e variadas identidades. Cabe aos verdadeiros defensores da sociedade aberta, global e democrática acharem a fórmula que faça o mesmo com as ameaças representadas pelas identidades comunitárias e tribais. Embora legítimas, tais identidades não estão sendo vistas como propulsoras e participantes da sociedade global. Ao contrário, foram capturadas pelos antidemocráticos, populistas e iliberais. Este é o desafio ao qual Rajan está tentando responder. Mais do que isso, este é o apelo que o economista indiano está nos fazendo.

Vinícius Müller

Vinícius Müller é doutor em História Econômica pela USP e professor do Insper.

 

 Capitalismo, conscientização social e os novos valores humanos

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A sociedade está passando por momentos de grandes transformações sociais, econômicas, políticas e culturais cujos impactos sobre os indivíduos são difícil de mensurar, alguns se debruçam sobre os novos modelos sociais que estão chegando no mundo contemporâneo, gerando constrangimentos, medos e desesperanças crescentes e, ao mesmo tempo, novas oportunidades, novos desafios e novos espaços de empreendedorismo, neste momento de dúvidas e preocupações, novas perspectivas surgem para os indivíduos.

Neste momento de pandemia, os indivíduos estão percebendo que novas construções estão surgindo, alterando modelos constituídos anteriormente e criando novos espaços em construção, com novos desafios, símbolos e características próprias. Nos novos modelos sociais nascentes não conseguimos visualizar e compreender todas as características desta nova sociedade. Algumas características são claras e outras ainda estão obscuras e nebulosas, destas novas perspectivas sociais e culturais da sociedade contemporânea percebemos claramente o crescimento do individualismo, o crescimento da competição, o aumento da concorrência, a busca pelas imagens, pela performance, pelo incremento do empreendedorismo e pela busca crescente do isolamento social,  das transformações dos modelos anteriores de trabalho e sociabilidade, famílias e convivências sociais, caminhando rapidamente para uma construção caracterizado pelo imediatismo, centrados na flexibilidade, das inseguranças, das instabilidades, como se o mundo contemporânea se tornasse um grande cassino, cujos os templos são convertidos em grandes bancos e corretoras globais, os verdadeiros donos do poder da sociedade internacional.

Nesta nova sociedade, como destacou o grande sociólogo Zygmunt Bauman, estamos vivendo uma sociedade marcada pela instabilidade e a insegurança é a tônica da nova sociedade, onde as riquezas crescem de forma acelerada, criando novos espaços de entesouramento sensacionais e, ao mesmo tempo, conduz os indivíduos, rapidamente, a ruína econômica, a falência produtiva e a perda dos sentidos sociais, devastando as reputações, fragilizando os sentimentos centrados em valores éticos e morais.

O referido sociólogo destaca que vivemos em momentos de grandes instabilidades, os valores são flexíveis, os sentimentos morais e éticos são conduzidos de acordo com interesses mercantis, tudo é possível desde que se consiga pagar por seus interesses, perdemos os sentidos mais consistentes e dos valores dos indivíduos, se afastando dos valores coletivos, incentivamos o individualismo e acreditamos que ao estimular o egoísmo e a competição, vamos construir uma sociedade mais decente marcada pelas oportunidades para todos os cidadãos, desta forma estamos nos aproximando de valores bárbaros, marcados pelo culto da morte, da degradação e da falência moral.

Nesta sociedade, os indivíduos se afastam dos relacionamentos amorosos, os namoros estão sendo deixados de lado, as pessoas querem apenas se relacionar sexualmente, sem proximidade, sem envolvimento, querem prazer imediato, gozos sem preocupações, sem convivências afetivas e construções mais consistentes, querem prazer sem ligações maiores, com isso, as famílias estão sendo transformadas, os filhos são postergados, os relacionamentos são frios, os valores são imediatos e a solidão crassa nesta sociedade, os transtornos emocionais e sentimentais crescem de forma acelerada, as depressões crescem e os suicídios aumentam, transformando o suicídio em um problema social, um verdadeiro problema de saúde pública, que leva os gestores públicos passam a investir em conscientização dos cidadãos, aumentando os dispêndios de recursos em um orçamento cada vez mais reduzidos.

As redes sociais passam a contribuir crescentemente a degradação social, como nos disse Umberto Eco, o surgimento de redes sociais deu voz aos idiotas, mostrando os vícios sociais, os medos e misérias dos seres humanos. Nestes novos modelos de comunicação social, os indivíduos postam imagens, fazem comentários de assuntos, analisem perfis variados, julgam atitudes, criticam e comentam sobre as vidas alheias, criando um verdadeiro espaço de julgamento social, um verdadeiro tribunal onde todos se sentem em condições de emitir seus julgamentos, destruindo reputações, matando a ética e degradando os valores mais consistentes. Nesta sociedade, as pessoas são julgadas pelas curtidas, os compartilhamentos e seus seguidores, quanto maior os números de seguidores melhor no mundo das redes sociais.  Zygmunt Bauman destaca, que nesta sociedade das redes sociais, as pessoas percebem tristemente que as amizades, os seguidores e os compartilhamentos não são amigos verdadeiros, indivíduos sem afetos, sem proximidades e sem consistências, uma verdadeira sociedade líquida.

A nova sociedade se característica por novas estruturas sociais, novas configurações familiares, nossos relacionamentos afetivos, nossas proximidades cotidianas, tudo está se tornando mais distantes, sem proximidades, sem afetividades e sempre centradas nos valores monetários e financeiros, sem estas argamassas da sociedade contemporânea, marcadas pelos recursos materiais, estas relações sociais dissipam, as pessoas se afastam e a solidão cresce de forma acelerada. Os valores do capitalismo contemporâneo estão entrando nas mentes dos indivíduos de forma acelerada, transformando as pessoas, alterando seus sentimentos mais íntimos, incrementando as desesperanças e gerando novos transtornos, novos vícios, novas doenças emocionais e afetivas.

No mundo contemporâneo, marcados pelo conhecimento, pelos valores das pesquisas científicas, os valores do capital estão devastando os valores da ciência, os recursos monetários estão definindo as pesquisas, financiando as novas tecnologias com interesses imediatistas e sem contrapartidas sociais para a coletividade. Desta forma, percebendo que as novas tecnologias, os novos produtos, as novas máquinas e as novas descobertas, que servem para aumentar as riquezas de uma pequena parte da sociedade e delegando uma pobreza crescente para uma grande parte da sociedade mundial. Nos anos de 2018, os dados trazidos pelo Oxfam foram assustadores, neste ano, 82% das riquezas mundiais se concentraram em apenas com 1% da população global, algo em torno de 70 milhões de pessoas da sociedade mundial, enquanto os 99% da população global, algo em torno de 6,92 bilhões de pessoas, angariou apenas 18% da riqueza da sociedade internacional.

Os grandes conglomerados da educação, verdadeiros instituições dotadas de somas altíssimas de recursos financeiros, recursos pulverizados em milhares de acionistas das mais variadas regiões do mundo, indivíduos que desconhecem onde seus recursos estão sendo investidos, apenas aguardam seus dividendos e lucros polpudos, sem compromissos com o setor educacional, sem compromisso com os interesses sociais, apenas se interessam com os valores milionários que incrementam suas fortunas pessoais e garantiram a bonança de seus familiares que vivem como verdadeiros sultões, vivendo muito bem, gozam de privilégios que os capitais podem garantir e sem preocupações com os rumos da sociedade, sem os verdadeiros valores sociais que consolidam a existência de uma verdadeira nação.

Nestes novos mercados da educação, percebemos que os diplomas se transformaram em verdadeiros caçam níqueis, cursos de graduação se difundiram por todos os estados, aumentando os graduandos de todas as áreas, desde os cursos tradicionais como os de engenharia, direito, medicina, administração e da pedagogia, além de novos cursos da área da saúde e da tecnologia, aumentando a competição destes novos profissionais em busca de novos modelos de trabalho que estão desaparecendo de forma acelerada, gerando desesperanças, medos crescentes e depressões aviltantes. Nestas verdadeiras empresas educacionais, transnacionais do ensino, percebemos que os professores mais capacitados são perdendo espaço, servem apenas para construir as apostilas e os métodos pedagógicos e, posteriormente, são afastados e substituídos por outros profissionais sem qualificação, sem capacitação, recebendo salários reduzidos, sem perspectivas e se sujeitam a este modelo de trabalho e exploração.

Com o surgimento de ensino a distância, os grandes conglomerados ganham espaço, aumentando seu portfólio de novos cursos e novas plataformas, cobrando valores reduzidos, sem qualificação e se especializam em grupos sociais menos abastados, estudantes que possuem recursos limitados, sem formação consistente e sem compreender a importância do ensino de qualidade, pagam com dificuldades pelos diplomas banais para garantir algum aumento salarial num verdadeiro acordo, onde todos os envolvidos se enganam claramente, as escolas vendem diplomas, os governos não interferem neste mercado e os estudantes acreditam que seu diploma garantirá retornos consideráveis, ledo engano, com estes cursos existentes na sociedade servem apenas para perpetuar sua condição indignidade e de exploração social.

O que acontece no mercado educacional, percebemos em todas as áreas, na saúde também se ressente de projetos consistentes, os hospitais se transformaram em grandes conglomerados econômicos, se utilizam da saúde como slogan charmoso e elegante, marcados por profissionais bem vestidos de ternos bem cortados, falam da qualidade e da eficiência, propagandeando os valores sociais e de humanidade, mas infelizmente, são motivados por interesses imediatistas marcados pelos valores do capital e da acumulação, marcados pelos sentimentos da frieza, pela insensibilidade e pelo imediatismo. Nesta sociedade, marcada pela financiarização, os grandes grupos econômicos que garantiram recursos orçamentários do fundo público, seus subsídios e suas isenções monetárias crescentes e, como tacada final, aumentam os ataques ao sistema social de saúde, abrem guerras ao Sistema Social de Saúde (SUS), degradam as instalações e objetiva diminuir os investimentos na área e posteriormente, comprar seus hospitais, seus laboratórios, seu expertise e garantirem os polpudos investidores na saúde nacional. Na sociedade percebemos uma verdadeira guerra contra o fundo público, uma busca constante para transferir novas instalações para as instituições privadas, aumentando os ganhos monetários de grandes grupos econômicos nacionais e internacionais.

Neste ambiente, marcados pela busca da privatização dos ativos do Estado, muitos grupos sociais abraçam a venda das estruturas estatais e a alienação dos setores públicos como se resolvessem as contradições da sociedade e abrisse espaços para o crescimento e para o desenvolvimento das nações em desenvolvimento. Nesta campanha pública da desestatização de empresas estatais, muitos grupos sociais defendem bandeiras que, num próximo momento, sentirá os custos da venda dos patrimônios públicos, dentre elas, destacamos a classe média, que nos últimos anos vem perdendo espaço na estrutura social, como destaca Christophe Guilluy na obra O fim da classe média. Na sociedade, percebemos, os integrantes destes grupos sociais defendem a desestatização dos serviços públicos, acreditando que, com isso, estes novos serviços garantirão mais eficiência e incrementando a eficácia, ledo engano. Esta crise da sociedade contemporânea se encontra em momentos de grandes instabilidades e incertezas, momento marcado por períodos de grandes inquietações, grande parte da classe média da sociedade contemporânea tende a perder o status acumulado nos anos séculos, reduzindo a importância social, garantindo empregos precários marcados por salários menores, degradados e explorações crescentes, neste ambiente, num futuro próximo seus integrantes devem se candidatar a serviços que eram servidos por agentes públicos mas na atualidade, são ofertados pelas organizações privadas, agora mais degradados, caros e marcados pela desesperança, neste momento percebemos que a classe média, marcada pelo grande capacidade intelectual e moral, percebem como foi usada pelos grupos mais abastados e sem compromissos sociais.

Na pandemia percebemos novas perspectivas na sociedade, neste momento de intranquilidades e desesperanças motivadas pela virulência da pandemia, a necessidade dos investimentos governamentais aumentou de forma acelerada, obrigando muitos grupos econômicos e políticos a rever novos pensamentos, obrigando-os a reconstruir novos espaços de sociabilidade e solidariedade, diante disso, nestes momentos de instabilidades gerados pela pandemia que afetou toda a sociedade internacional, os indivíduos deveriam transformar este momento de novos espaços de reflexão e de reconstrução da coletividade em bases mais sólidas e consistentes, abrindo a coletividade para novos horizontes de crescimento e de desenvolvimento econômico, com mais igualdade, liberdade e fraternidade.

Pandemia: 400 milhões de empregos viraram pó, por César Locatelli.

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César Locatelli – Carta Maior, 09/09/2020

Mesmo assim 32 das maiores empresas do mundo devem faturar R$ 577 bilhões a mais em 2020 do que na média dos quatro anos anteriores, observa novo estudo da Oxfam

“Estamos vivendo tempos de partir o coração. Seis meses após a Organização Mundial da Saúde ter declarado que a COVID-19 é uma pandemia, mais de 800.000 pessoas perderam suas vidas em decorrência da doença. Estima-se que 400 milhões de pessoas, a maioria mulheres, perderam seus empregos. Até meio bilhão de pessoas poderá ter sido empurrado para uma situação de pobreza até a pandemia acabar”. Assim principia o mais recente relatório da Oxfam, que tem ‘titulo: “Poder, Lucros e a Pandemia: da distribuição excessiva de lucros e dividendos de empresas para poucos para uma economia que funcione para todos”.

Para termos uma ideia da disparidade de renda e riqueza, mesmo em países bastante menos desiguais que o Brasil, o estudo mostra que “Jeff Bezos, proprietário da Amazon, lucrou tanto em 2020 que poderia pagar um bônus único de US$ 105 mil para cada um dos seus 876 mil funcionários e ainda assim ser tão rico quanto era no início da pandemia.”

O aprofundamento do desemprego e da informalidade convive, lado a lado, com o gigantesco aumento no patrimônio dos bilionários brasileiros. “No Brasil, os efeitos da pandemia também foram desiguais. Enquanto a maioria da população perdeu emprego e renda (país tem hoje cerca de 13 milhões de desempregados e 40 milhões de trabalhadores informais) e mais de 600 mil micros, pequenas e médias empresas já fecharam as portas, os 42 bilionários brasileiros tiveram sua riqueza aumentada em US$ 34 bilhões (mais de R$ 180 bilhões) durante a pandemia.”

As agruras do modo de produção adotado mundo afora ficaram ainda mais evidentes durante a pandemia: “a COVID-19 deixou claro que um modelo econômico focado na extração de valor não nos permitirá superar os complexos e urgentes desafios dos nossos tempos”.

As recomendações contidas no estudo da Oxfam são estruturadas em três áreas: “1) responder à pandemia e às suas demandas por recursos adotando um imposto sobre lucros excedentes, 2) reformar o setor empresarial em quatro dimensões essenciais: propósito, pessoas, lucros e poder e 3) reconstruir nossas economias com base em modelos de negócios mais sustentáveis”.

Segue o release da Oxfam sobre o estudo, que está disponível em seu site.

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Lucro de grandes empresas dispara em meio à pandemia de coronavírus enquanto os mais pobres pagam o preço

Às vésperas do marco de seis meses de uma das maiores crises sanitárias do mundo, Oxfam lança o relatório Poder, Lucros e Pandemia destacando como o atual modelo econômico tem priorizado o lucro dos mais ricos sobre a vida dos mais pobres.

As 32 empresas mais rentáveis do mundo conseguiram US$ 109 bilhões (mais de R$ 577 bilhões) a mais em lucros durante a pandemia de covid-19 em 2020 do que a média obtida nos quatro anos anteriores (2016-2019), revela o novo relatório da Oxfam Poder, Lucros e a Pandemia, lançado globalmente nesta quinta-feira (10/9).

Publicado na véspera do marco de seis meses da declaração oficial de pandemia no mundo (11 de março), o informe revela como grandes corporações do mundo priorizaram lucros em detrimento da segurança dos trabalhadores. Cortaram custos, não reduziram riscos nas cadeias de fornecimento e usaram toda sua influência política para moldar as ações tomadas pelos governos para conter a crise.

Enquanto isso, a crise econômica global provocada pela pandemia deixa meio bilhão de pessoas no limiar da pobreza. Quatrocentos milhões de empregos não existem mais e 430 milhões de pequenos negócios estão sob risco de falência.

Acionistas protegidos, população à deriva

As 100 empresas campeãs do mercado de ações acrescentaram mais de US$ 3 trilhões ao seu valor de mercado desde o início da pandemia (em março de 2020). Como resultado, os 25 maiores bilionários do mundo aumentaram suas riquezas em quantidades assombrosas. Jeff Bezos, por exemplo, poderia pagar um bônus único de US$ 105 mil (mais de R$ 550 mil) para cada um dos 876 mil funcionários da Amazon e ainda assim ser tão rico quanto era no início da pandemia.

Para Katia Maia, diretora executiva da Oxfam Brasil, vivemos uma situação insustentável e injusta com milhões de pessoas que perderam seus empregos, renda e dignidade, enquanto alguns poucos bilionários aumentavam sua riqueza.

“Não podemos aceitar que esse modelo econômico, que privilegia alguns poucos bilionários em detrimento de toda a sociedade, continue a ditar as regras. Nosso relatório mostra que essa economia só tem funcionado para um pequeno grupo de pessoas, os super-ricos”.

Segundo Gustavo Ferroni, coordenador de Setor Privado e Direitos Humanos da Oxfam Brasil, os recursos fundamentais para garantir o enfrentamento à pandemia e a sustentação socioeconômica das pessoas estão indo parar nas mãos de poucos. “Enquanto isso, mulheres, a população negra, minorias étnicas e migrantes pelo mundo sofrem imensos impactos em suas vidas.”

O relatório destaca ainda como as corporações exacerbaram os impactos econômicos da pandemia ao canalizarem lucros para seus acionistas em vez de investirem em melhores empregos e tecnologias mais limpas, além de pagar sua parte justa em impostos e priorizar as pessoas em vez dos lucros.

No Brasil, pandemia também aumenta fortuna de bilionários

No Brasil, os efeitos da pandemia também foram desiguais. Enquanto a maioria da população perdeu emprego e renda (país tem hoje cerca de 13 milhões de desempregados e 40 milhões de trabalhadores informais) e mais de 600 mil micros, pequenas e médias empresas já fecharam as portas, os 42 bilionários brasileiros tiveram sua riqueza aumentada em US$ 34 bilhões (mais de R$ 180 bilhões) durante a pandemia. O patrimônio líquido desses super-ricos aumentou de US$ 123,1 bilhões (mais de R$ 650 bilhões) em março para US$ 157,1 bilhões (mais de R$ 832 bilhões) em julho – um aumento de US$ 34 bilhões (mais de R$ 80 bilhões) em quatro meses. Quatro meses de pandemia que tiraram muito de milhões.

Alguns dados do relatório que revelam como a pandemia impactou de maneira desigual os super-ricos e os mais pobres:

• 10 das maiores marcas de roupas do mundo usaram 74% de seus lucros (um total de US$ 21 bilhões – mais de R$ 100 bilhões) para pagar dividendos a seus acionistas e recomprar ações em 2019. Em 2020, 2,2 milhões de trabalhadores em Bangladesh foram afetados com o cancelamento de pedidos de produtos têxteis. O fechamento de fábricas causou um prejuízo estimado de US$ 3 bilhões (cerca de R$ 16 bilhões) ao país.

• Jeff Bezos, proprietário da Amazon, lucrou tanto em 2020 que poderia pagar um bônus único de US$ 105 mil (mais de R$ 500 mil) para cada um dos seus 876 mil funcionários e ainda assim ser tão rico quanto era no início da pandemia.

• Nos Estados Unidos, cerca de 27 mil trabalhadores de fábricas de empacotamento de carne testaram positivo para covid-19 – um em cada nove trabalhadores – e mais de 90 morreram devido à doença. A maior empresa de processamento de carne do país, a Tyson Foods, publicou uma carta defendendo a abertura de suas fábricas, apesar de 8,5 mil trabalhadores de suas fábricas terem testado positivo para o virus.

• Na Índia, centenas de trabalhadores das plantações de chá, muitos dos quais são mulheres, ficaram sem seus salários devido às medidas de isolamento social demandadas ao combate ao coronavírus. Ao mesmo tempo, algumas das maiores empresas indianas de chá aumentaram seus lucros ou conseguiram manter margens de lucros cortando empregos.

• Os trabalhos de mineração no Peru continuaram em operação apesar dos altos riscos de infecção entre os trabalhadores do setor.

• A petrolífera americana Chevron anunciou cortes de 10-15% de seus cerca de 45 mil trabalhadores pelo mundo apesar de gastar mais em dividendos e recompras de ações no primeiro trimestre do ano do que arrecadaram em seus negócios.

A Oxfam acredita que a habilidade de muitas empresas em lidar com a crise econômica causada pela pandemia e cuidar de seus trabalhadores foi minada por anos de uma cultura de pagamento de altos valores a acionistas; algumas empresas chegaram a pagar valores mais altos do que seus lucros durante a pandemia.

Entre 2016 e 2019, 59 das empresas mais lucrativas dos Estados Unidos, Europa, Coreia do Sul, Austrália, Índia, Brasil, Nigéria e África do Sul distribuíram quase US$ 2 trilhões (mais de R$ 10 trilhões) a seus acionistas, com pagamentos em média 83% superiores aos ganhos obtidos no período.

As três maiores empresas de planos de saúde da África do Sul – Netcare, Mediclinic e Life Healthcare Group – pagaram 163% de seus lucros para acionistas por meio de dividendos e recompras de ações.

Crise pede resposta urgente e justa

É preciso uma resposta urgente para a crise atual que priorize apoio aos trabalhadores e trabalhadoras e aos pequenos negócios. Isso inclui o estabelecimento de um Imposto sobre Lucros Obtidos com a Pandemia de Covid-19, para assegurar um sacrifício compartilhado na sociedade. Quem está lucrando com a pandemia tem que ajudar aqueles que só perderam com a crise de saúde pública.

No longo prazo, a Oxfam pede a governos e corporações que reequilibrem o propósito corporativo, seus lucros e poder, deixando de beneficiar exclusivamente os executivos e acionistas, passando a dar mais atenção a trabalhadores e trabalhadoras, fornecedores, consumidores e comunidades.

“Estamos em um momento crítico. Temos uma escolha a fazer: voltar ao modelo de negócio de sempre ou aprender com a crise e desenhar uma economia mais justa e sustentável”, afirma Gustavo Ferroni. “A menos que mudemos o curso das coisas, as desigualdades vão aumentar – no Brasil e no mundo

A sociedade dos empregos de merda, por David Graeber.

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Como o capitalismo contemporâneo cria sem cessar ocupações inúteis, enquanto remunera muito mal as mais necessárias. Quais as alternativas? Garantia de trabalho? Ou Renda Cidadã Universal?

David Graeber, entrevistado por Eric Allen Been, em Outras Palavras.

Em 1930, o economista britânico John Maynard Keynes previu que, no final do século 20, países como os Estados Unidos teriam – ou deveriam ter – jornadas de trabalho de 15 horas semanais. Por que? Em grande medida, a tecnologia tiraria de nossas mãos tarefas sem sentido. Claro, isso nunca ocorreu. Ao contrário, muitíssimas pessoas, em todo o mundo, estão submetidas a longas jornadas como advogados corporativos, consultores, operadores de telemarketing e outras ocupações.

Mas enquanto muitos de nós julgamos nossos trabalhos muito aborrecidos, algumas ocupações não fazem sentido algum, segundo o escritor anarquista David Graeber. Em seu novo livro, “Bullshit Jobs: A Theory” [“Trabalhos de Merda: Uma Teoria”], o autor argumenta que os seres humanos consomem suas vidas, muito frequentemente, em atividades assalariadas inúteis. Graeber, que nasceu nos EUA e que já havia escrito, entre outras obras, Dívida: Os Primeiros 5000 anos e The Utopia of Rules e [ainda sem edição em português] é professor de Antropologia na London School of Economics e uma das vozes mais conhecidas do movimento Occupy Wall Street (atribui-se a ele a frase “Somos os 99%”).

A “Vice” encontrou-se há pouco com Graeber para conversar sobre o que ele define como “emprego de merda”; por que os trabalhos socialmente úteis são tão mal pagos, e como uma renda básica assegurada a todos poderia resolver esta enorme injustiça.

Em primeiro lugar, o que são empregos de merda e por que existem?

Basicamente, um emprego de merda é aquele cujo executor pensa secretamente que sua atividade ou é completamente sem sentido, ou não produz nada. E também considera que se aquele emprego desaparecesse, o mundo poderia inclusive converter-se num lugar melhor. Mas o trabalhador não pode admitir isso – daí o elemento de merda. Trata-se, portanto, em essência, de fingir que se está fazendo algo útil, só que não.

Uma série de fatores contribuiu para criar esta situação estranha. Um deles é a filosofia geral de que o trabalho – não importa qual – é sempre bom. Se há algo em que a esquerda e a direita clássicas frequentemente estão de acordo é no fato de ambas concordarem que mais empregos são uma solução para qualquer problema. Não se fala em “bons” trabalhos, que de fato signifiquem algo. Um conservador, para o qual precisamos reduzir impostos para estimular os “criadores de emprego”, não falará sobre que tipo de ocupações quer criar. Mas há também partidários da esquerda insistindo em como precisamos de mais ocupações para apoiar as famílias que trabalham duro. Mas e as famílias que desejam trabalhar moderadamente? Quem as apoiará?

Até mesmo os empregos de merda garantem a renda necessária para que as pessoas sobrevivam. No fim das contas, por que isso é ruim?

Mas a questão é: se a sociedade tem os meios para sustentar todo mundo – o que é verdade – por que insistimos em que os trabalhadores passem sua vida cavando e em seguida tapando buracos? Não faz muito sentido, certo? Em termos sociais, parece sadismo.

Em termos individuais, isso pode ser visto como uma boa troca. Mas, na verdade, as pessoas obrigadas a tais trabalhos estão em situação miserável. Podem considerar: “estou ganhando algo por nada”. Bem, as pessoas que recebem salários bons, muitas vezes de nível executivo, certamente de classe média, quase sempre passam o dia em jogos de computador ou atualizando seus perfis de Facebook. Quem sabe, atendendo o telefone duas vezes por dia. Deveriam estar felizes por ser malandros, certo? Mas não são.

As pessoas contratadas para tais trabalhos relatam, regularmente, que estão deprimidas. E se lamentarão, e praticarão bullying umas contra as outras, e se apavorarão com prazos finais porque são de fato muito raras. Porém, se pudessem buscar uma razão social no trabalho, uma boa parte de suas atividades desapareceria. As doenças psicossomáticas de que as pessoas padecem simplesmente somem, no momento em que elas precisam realizar uma tarefa real, ou em que se demitem e partem para um trabalho de verdade.

Segundo seu livro, a sociedade pressiona os jovens estudantes para buscar alguma experiência de emprego, com o único objetivo de ensiná-los a fingir que trabalham

É interessante. Chamo de trabalho real aquele em que o trabalhador realiza alguma coisa. Se você é estudante, trata-se de escrever. Preparar projetos. Se você é um estudante de Ciências, faz atividades de laboratório. Presta exames. É condicionado pelos resultados e precisa organizar sua atividade da maneira mais efetiva possível para chegar a eles.

Porém, os empregos oferecidos aos estudantes frequentemente implicam não fazer nada. Muitas vezes, são funções administrativas onde eles simplesmente rearranjam papéis o dia inteiro. Na verdade, estão sendo ensinados a não se queixar e a compreender que, assim que terminarem os estudos, não serão mais julgados pelos resultados – mas, essencialmente, pela habilidade em cumprir ordens.

E os empregos tecnológicos ou na mídia. Seriam, também, de merda?

Certamente. Por meio do Twitter, pedi às pessoas que me relatassem seus empregos mais sem sentido. Obtive centenas de respostas. Havia um rapaz, por exemplo, que desenhava bâners publicitários para páginas web. Disse que havia dados demonstrando que ninguém nunca clica nestes anúncios. Mas era preciso manipular os dados para “demonstrar” aos clientes que havia visualizações – para que as pessoas julgassem o trabalho importante.

Na mídia, há um exemplo interessante: revistas e jornais internos, para grandes corporações. Há bastante gente envolvida na produção deste material, que existe principalmente para que os executivos sintam-se bem a respeito de si próprios. Ninguém mais lê estas publicações.

A automação é vista, muitas vezes, como algo negativo. Você discorda deste ponto de vista, não?

Certamente. Não o compreendo. Por que não deveríamos eliminar os trabalhos desagradáveis? Em 1900 ou 1950, quando se imaginava o futuro, pensava-se: “As pessoas estarão trabalhando 15 horas por semana. É ótimo, porque os robôs farão o trabalho por nós”. Hoje, este futuro chegou e dizemos: ”Oh, não. Os robôs estão chegando para roubar nossos trabalhos”. Em parte, é porque não podemos mais imaginar o que faríamos conosco mesmo se tivéssemos um tempo razoável de lazer.

Como antropólogo, sei perfeitamente que tempo abundante de lazer não irá levar a maioria das pessoas à depressão. As pessoas encontram o que fazer. Apenas não sabemos que tipo de atividade seria, porque não temos tempo de lazer suficiente para imaginar.

Pergunto: por que as pessoas agem como se a perspectiva de eliminar o trabalho desnecessário fosse um problema? Deveríamos pensar que um sistema eficiente é aquele em que se pode dizer: “Bem, temos menos necessidade de trabalho. Vamos redistribuir o trabalho necessário de maneira equitativa”. Por que isso é difícil? Se as pessoas simplesmente assumem que é algo completamente impossível, parece-me claro que não estamos em um sistema eficiente.

Um dos pontos mais interessantes do livro são suas observações sobre como os empregos socialmente valiosos são quase sempre menos bem pagos que os empregos de merda.

Foi uma das coisas que, pessoalmente, mais me chocou na fase da pesquisa. Comecei a tentar descobrir se algum economista havia observado o fenômeno e tentado explicá-lo. Houve antecedentes, na verdade. Alguns eram economistas de esquerda; outros, não. Alguns eram totalmente mainstream.

Mas todos chegaram à mesma conclusão. Segundo eles, há uma tendência: quanto mais benefícios sociais um emprego produz, menor tende a ser a remuneração – e também a dignidade, o respeito e os benefícios. É curioso. Há poucas exceções e não são tão excepcionais como se poderia pensar. Os médicos, é claro, são um caso notório: é evidente que são pagos com justiça e oferecem benefícios sociais.

Porém, há um argumento recorrente: “Não seria bom que pessoas interessadas apenas em dinheiro ensinassem as crianças. Não se deve pagar demais aos professores. Se o fizéssemos, teríamos gente gananciosa na profissão, em vez de professores que se sacrificam”. Há também a ideia de que se um trabalhador sabe que sua atividade produz benefícios, isso pode ser o bastante. “Como, você quer dinheiro, além de tudo?” As pessoas tendem a discriminar qualquer um que tenha escolhido um emprego altruísta, sacrificante ou apenas útil.

Aparentemente, você é pouco favorável à ideia de garantia de trabalho, defendida entre outros por Bernie Sanders [candidato de esquerda à presidência dos EUA], por preferir a garantia de renda cidadã.

Sim. Sou alguém que não quer criar mais burocracia e mais empregos de merda. Há um debate sobre garantia de trabalho – que Sanders, de fato, propõe, nos EUA. Significa que os governos deveriam assegurar que todos tenham acesso ao menos a algum tipo de trabalho. Mas a ideia por trás da renda universal da cidadania é outra: simplesmente assegurar às pessoas meios suficientes para viver com dignidade. Além desse patamar, cada um pode definir quanto mais deseja.

Acredito que a garantia de trabalho certamente criaria mais empregos de merda. Historicamente, é o que sempre acontece. E por que deveríamos querer que os governos decidissem o que podemos fazer? Liberdade implica em nossa capacidade de decidir por nós mesmos o que queremos e como queremos contribuir para a sociedade. Mas vivemos como se tivéssemos nos condicionado a pensar que, embora vejamos na liberdade o valor mais alto, na verdade não a desejamos. A renda básica da cidadania ajudaria a garantir exatamente isso. Não seria ótimo dizer: “Você não tem mais que se preocupar com a sobrevivência. Vá e decida o que quer fazer consigo mesmo”?

 

Quem vai pagar os estímulos fiscais e monetários?

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Programas para incentivar atividades econômicas somaram US$ 20 trilhões, ou 25% do PIB mundial.

Paulo Leme* – OESP – 06/09/2020

Todos nós pagaremos a conta dos grandes programas de estímulos fiscais e monetários implementados pelos governos para atenuar os efeitos recessivos da pandemia. Sem entrar no mérito desses programas, a conta a ser paga é da ordem de US$ 20 trilhões (25% do PIB mundial). Dessa quantia, 60% foram financiados com emissão de dívida pública e 40% através da política monetária.

Esses recursos foram utilizados para estimular a demanda agregada, transferir renda aos desempregados, e salvar as empresas diretamente afetadas pelo lockdown, evitando um colapso ainda maior da oferta agregada.

A boa notícia é que junto com as medidas de saúde pública para controlar a pandemia, esses programas de estímulo permitiram que a economia mundial se recuperasse já a partir do segundo trimestre. Mesmo assim, estimo que a pandemia destruiu quase que US$ 10 trilhões do PIB mundial, o que exigirá pelo menos 18 meses para que volte ao seu nível de fevereiro.

O meu objetivo é explicar como e quem vai pagar essa conta de 25% do PIB. Os governos usarão três fontes principais de financiamento. Primeiro, o aumento da dívida pública. Segundo, a senhoriagem, através da emissão de moeda, aproveitando que a crise aumentou a demanda por base monetária: assustados com a crise, investidores resgataram as suas aplicações e se refugiaram em caixa, entregando sua poupança aos bancos centrais. Só nos Estados Unidos e na Europa esse movimento foi equivalente a 3,5% do PIB mundial. Terceiro, os bancos centrais compraram trilhões de dólares de ativos de risco do sistema financeiro, cuja contrapartida foi a expansão das reservas bancárias e papel moeda. Por sua vez, os bancos repassaram parte desses recursos para empresas e famílias através de empréstimos.

As perguntas são quando e como os governos vão repagar o setor privado. Isso dependerá do país, da solidez das suas instituições fiscais e monetárias, e se o país emite ou não (como no caso dos EUA e UE) moeda e dívida que são aceitas como reservas internacionais.

Há quatro caminhos para repagar (ou não) os 25% do PIB. Essas alternativas são complementares e não mutuamente exclusivas. Primeiro, as economias desenvolvidas pagarão esse passivo de forma transparente e orçamentária. Isso quer dizer que nos próximos 30 anos os governos aumentarão os impostos para pagar os juros e o principal da dívida pública. Isso significa que o PIB mundial só não caiu mais graças à transferência intertemporal de crescimento e de recursos de futuras gerações.

Segundo, quando a economia mundial voltar a crescer, haverá um aumento da demanda por instrumentos financeiros, parte da qual será atendida pela venda de ativos hoje encarteirados pelos bancos centrais. Isso reduzirá as reservas bancárias e o tamanho dos balanços dos bancos centrais.

Terceiro, os governos utilizarão instrumentos quase fiscais ou formas indiretas de tributação. O melhor exemplo disso são as taxas de juros reais negativas, que hoje cobrem quase que dois terços de todos os instrumentos de renda fixa no mundo. Juros negativos são um imposto que incide sobre os poupadores e um subsídio aos devedores (governos e empresas). A segunda forma de tributação indireta é o imposto inflacionário: a inflação é equivalente a uma forma de calote porque corrói em termos reais os salários e o valor do principal da dívida. A terceira forma de tributação é desvalorizar a moeda, mas esta é uma arma que só funciona para países que emitem ativos de reserva internacional.

Quarto, o último recurso é simplesmente dar um calote na dívida. Em um processo de reestruturação, o devedor reduz o valor da dívida através de um haircut (corte) no principal. No caso da reestruturação da dívida de uma empresa, ela impõe uma perda aos acionistas da empresa e credores.

Não há almoço grátis. O choque real imposto pela covid-19 exigiu que os governos transferissem rapidamente um volume gigantesco de recursos do setor privado (e de países com uma alta taxa de poupança) para estimular a demanda e a oferta agregada.

Assim como não ter feito nada não era uma opção, no futuro, a conta virá na forma de aumento de impostos e inflação, desvalorizações cambiais, calotes, e queda do crescimento econômico.

*PROFESSOR VISITANTE DE FINANÇAS NA UNIVERSIDADE DE MIAMI

Lições do Vale do Silício chinês devem ser lembradas no atual ajuste de rumo de Pequim

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 PIB de Shenzhen, primeira zona econômica especial do país, ultrapassou o de Hong Kong em 2018

Tatiana Prazeres – FSP, 03/09/2020

Há 40 anos, era impensável que uma vila de pescadores no sul da China pudesse se tornar um polo mundial de tecnologia. Pois nenhuma cidade simboliza melhor a modernização do país do que Shenzhen.

A região então pacata que começou produzindo cópias baratas de calculadoras e toca-fitas passou a ser conhecida como fábrica do mundo e hoje é chamada de Vale do Silício chinês.

Poucos dias atrás, a China comemorou os 40 anos de criação da primeira zona econômica especial do país. Rememora o passado de olho nos desafios atuais.

Quando a China ainda era fechada ao mundo, Deng Xiaoping ousou ao estabelecer quatro áreas-piloto para atrair capital estrangeiro, estimular industrialização e exportações. Shenzhen foi a primeira e a mais bem-sucedida delas.

Diferentemente do restante do país, naqueles enclaves as empresas poderiam buscar lucro, demitir funcionários, remeter divisas para o exterior.

Quatro anos depois, mais 14 cidades replicariam o modelo pioneiro de Shenzhen, localizada na província de Guangdong, que, aliás, tinha o pai de Xi Jinping como chefe do Partido Comunista à época.

A experiência transformou não apenas a China mas também a governança do país. Em primeiro lugar, reforçou a capacidade de o governo chinês experimentar. Atravessa-se um rio sentindo suas pedras —a frase atribuída a Deng simboliza a disposição em aprender fazendo e corrigir rumos.

Em segundo lugar, a experiência deu ímpeto aos esforços de descentralização econômica. Ao contrário do que comumente se pensa, províncias e cidades chinesas têm margem de manobra considerável. O experimento com as zonas econômicas especiais contribuiu para isso.

Shenzhen é hoje sede de empresas de equipamentos de telecomunicações como Huawei e ZTE. Alberga a maior empresa de drones do mundo, a DJI, e o grupo Tencent, dono do superaplicativo WeChat.

Cerca de metade dos pedidos de patente da China vem de Shenzhen. Em 2000, tinha 100 empresas de tecnologia. Hoje, mais de 30 mil.

Em 2018, o PIB de Shenzhen passou o de Hong Kong, que fica a 15 minutos de trem, com quem hoje rivaliza e que lhe serviu como fonte de capital, tecnologia e talento.

Das inúmeras lições sobre Shenzhen, duas são particularmente oportunas hoje: o equilíbrio de forças entre Estado e setor privado, e a abertura para o mundo. Como em nenhum outro lugar da China, o modelo desenvolvido em Shenzhen permitiu liberar a energia do empreendedorismo chinês. Desfez amarras que ainda prosperam em outras partes.

Igualmente, a abertura para comércio e investimentos estrangeiros que se viu em Shenzhen estimulou reformas no plano nacional, fundamentais para a modernização do país.

Hoje, parece estar em curso na China uma atualização do seu modelo econômico. Cunhado de estratégia da dupla circulação, o modelo ainda carece de detalhes, mas sugere mais foco na economia interna e menos na integração global.

Vários temem que a nova linha implique desaceleração dos esforços de abertura e modernização da economia. Receiam que empresas estatais voltem a ganhar maior importância. Nesse contexto, vozes a favor da autossuficiência passam a ser mais influentes, sobretudo depois que os EUA adotaram sanções contra empresas da China —não por acaso, de Shenzhen.

A impressão que se tem é de que a China vai se voltar para dentro, inclusive para diminuir riscos de um ambiente externo mais desfavorável tanto sob ponto de vista político quanto econômico.

A mudança de circunstâncias externas pode exigir ajustes de rumo, mas não justifica abandonar as lições que Shenzhen legou para a China.

Em 2012, quando se tornou líder do Partido Comunista Chinês, Xi Jinping foi a Shenzhen e depositou uma coroa de flores aos pés de uma estátua de Deng Xiaoping, artífice da modernização econômica do país. Hoje, a lembrança parece especialmente oportuna.

Tatiana Prazeres

Senior fellow na Universidade de Negócios Internacionais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheira sênior do diretor-geral da OMC.

 

O desastre anunciado da economia brasileira

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Ontem o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou os dados do produto interno bruto (PIB) no período do segundo trimestre, os dados não trouxeram nenhum estranhamento, queda em 9,7% na economia nacional, mesmo sabendo que a situação econômica retratada pelo instituto é claramente desastrosa, mostrando os impactos do vírus, da quarentena e dos desencontros das políticas governamentais, sem foco, sem planejamento, sem organização e sem estratégias claras e, muitos equívocos, vários conflitos políticos, mentiras generalizadas, hipocrisias crescentes e omissões constantes na gestão da pandemia, os dados mostram uma situação caótica, incremento no desemprego e no subemprego, queda vertiginosa da renda agregada, redução dos salários e uma maior desesperança.

Desde 2014 a economia brasileira está passando por grandes dificuldades de crescimento econômico, desemprego crescente e aumento da degradação social, levando a situação social a situações de desesperanças e desagregação generalizadas, criando na sociedade brasileira um ambiente de caos político, social, econômico e, na atualidade, uma crise sanitária causada pelo coronavírus e que levou a mais de 120 mil mortes de cidadãos.

No ambiente econômico, os dados do IBGE destaca números assustadores da economia brasileira, mais de 9,7% queda do produto interno bruto (PIB), aumento dos desequilíbrios do sistema econômico, gerando novas instabilidades e exigindo dos gestores públicos a uma atitude mais incisiva, utilizando todos os instrumentos econômicos disponíveis para reverter esta situação de degradação, sob pena de um incremento dos desajustes sociais que estão presentes na maior dos lares brasileiros, marcados por desempregos e medos crescentes. Os números desnudados pelo instituto exigem atuações dos agentes governamentais, assim como a grande maioria dos países civilizados estão fazendo, para diminuir os estragos do vírus, reconstruir as estruturas econômicas e produtivas e abrir novas perspectivas econômicas para a sociedade brasileira, sem estas providências urgentes, as condições tendem se degradar de forma acelerada.

Os dados divulgados pelo Instituto só foram piores, porque o auxílio emergencial aprovado pelo governo e incentivado pelo Congresso Nacional de 600 reais, com custos mensais de mais de 56 bilhões de reais. Importante destacar ainda que, segundo as ideias do ministro da economia e da equipe econômica, os valores deveriam ser algo em torno de 200 reais, valores insuficientes para a manutenção das condições de vida digna de uma parcela da sociedade brasileira.

Os recursos destinados pelo governo federal no auxílio emergencial de 600 reais foram fundamentais para que os dados divulgados pelo IBGE não fossem mais negativos e degradantes para a sociedade, neste momento, percebemos novas discussões e novas políticas para a superação deste ambiente marcado por graves desequilíbrios sociais e forte retração da economia nacional, sem novas estratégias claras e consistentes, os desequilíbrios devem crescer de forma mais degradantes, com maior falência de empresas, violência urbanas e incremento da insegurança e da desesperança.

Os indicadores econômicos da economia internacional mostraram que todos as nações estão em recessão, marcadas por incremento do desemprego e caos generalizados, os dados mostraram que o único país que conseguiu apresentar dados positivos no segundo trimestre foi a China, cujos dados chegaram a um crescimento econômico de 11,5%, valores surpreendentes que mostraram o potencial do país asiático, cujo isolamento social, a quarentena e o planejamento foram organizado pelo governo com êxito e grande sucesso.

Observando os dados disponibilizados pelo IBGE, percebemos que o único setor da economia brasileira que apresentou crescimento no período foi o agronegócio, que avançou 0,4% no segundo semestre, mostrando o forte crescimento da produtividade deste setor da economia brasileira, responsável pelo incremento das exportações e o aumento das vendas externas, principalmente, os negócios com o maior parceiro do país, a China, responsável por grandes aquisições e pela manutenção dos superávits comerciais brasileiros, a entrada de recursos externos e o equilíbrio das contas externas.

A conjuntura econômica brasileira está mostrando a queda acentuada dos investimentos (Formação Bruta de Capital Fixo) na estrutura produtiva nacional, chegando a algo em torno de 15% do produto interno bruto, dados muito distantes dos investimentos da economia, que chegaram a quase 22% do PIB no começo do século e garantiram uma taxa de crescimento maior de 3%, além de novos empregos e novas oportunidades de crescimento econômico.

O colapso da economia brasileira neste ano nos leva a ausência de um novo projeto econômico consistente, a ausência de planejamentos e estratégicas de emprego e reformas que ampliam o potencial de crescimento econômico. Neste momento, percebemos que os dados divulgados pelo IBGE não surpreenda todos aqueles que observam a conjuntura econômica, as dificuldades políticas do governo, as fragilidades no legislativo e os embates com o judiciário estão aumentando as dificuldades de gestão, dificultando o gerenciamento da crise, incrementando e degradando a situação econômica que é claramente caótica e seus impactos da crise gerada pelo covid-19 são cada mais maiores e consistentes.

A crise mostra os equívocos da equipe econômica liderada pelo economista Paulo Guedes, muitas versões equivocadas, mentiras crescentes, previsões furadas e falas desnecessárias levam a um ambiente de grave degradação social, instabilidade no mercado financeiro e afastando os investidores externos, que buscam espaços de investimentos consistentes e oportunidades claras de ganhos e melhorias de rentabilidades, todas ausentes da economia brasileira contemporânea, explicando os dados divulgados pelo IBGE.

Embora muitos setores, principalmente os detentores de grandes fortunas, a sociedade brasileira acumula grande ojeriza ao Estado Nacional, colocando-o no centro de todos os desequilíbrios sociais, políticos e culturais. Devemos destacar que o Estado Nacional tem grande papel na sociedade global, os defensores do pensamento liberal devem reconhecer o papel central para o crescimento e para a consolidação dos mercados, já que sem Estado os mercados não teriam formas de garantir os ganhos da acumulação, a acumulação financeira, os aparatos de seguranças públicas e a institucionalidade social, funções estas que tem no Estado seu espaço de atuação na sociedade moderna.

Os desastres geradas pelo coronavírus na economia brasileira e, principalmente, na sociedade nacional, deve ser vista como a ausência de planos concretos, pela fragilidade dos programas em curso, ausência de políticas organizadas em todos os entes federativos, marcados pela dificuldade de lideranças nacionais, visões mais amplas e  elaboradas, que incluam a todos os setores nacionais e todos os grupos sociais, sem estes programas e planos gerados e consolidados pelos governos, os dados trazidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) não são novidades, estamos mergulhados na pior recessão econômica nacional, na verdade, estamos em crescente depressão, cujos impactos sobre a sociedade são assustadores, marcados pela ausência de projeto nacional claro, consistente e ambicioso.

As discussões em curso na economia brasileira são frágeis e desnecessárias, o Estado está perdendo a capacidade de estimular as grandes discussões nacionais, características existentes em décadas anteriores, onde a industrialização era conduzida pelos agentes governamentais e, tendo ao lado os setores industriais, os empresários nacionalistas, os grupos acadêmicos, da mídia e da sociedade civil, grupos interessados no progresso do país e a construção do desenvolvimento nacional. Na atualidade, os poucos grupos políticos estão interessados e dispostos a auxiliar na construção do desenvolvimento de um projeto nacional, querem apenas incrementar a acumulação e o crescimento dos interesses imediatos, atuando como lobistas de seus grupos econômicos e financeiros.

Na sociedade brasileira, os grupos mais abastados insistem em reformas fracassadas que recaem aos mais frágeis e nos setores da classe média, deixando de lado os grandes detentores da riqueza nacional, reformando os holerites dos outros setores e se colocando distante de reformas que atingem os status quo, como grupos dotados de grandes privilégios, pagam poucos recursos, conseguem isenções tributárias, não pagam seus recursos oriundos de lucros e dividendos crescentes e conseguem dominar todas as esferas nacionais de poder, perpetuando o poder e a dominação. No momento que escrevo, o governo federal deposita no Congresso Nacional uma proposta de Reforma Administrativa, uma reforma urgente e necessária para a sociedade, mas infelizmente, na proposta deixa de fora os grandes grupos detentores de salários mais elevados que impacta sobre as contas públicas. Os grandes detentores dos privilégios nacionais se perpetuando no poder e nos privilégios, com isso, o Brasil, mais uma vez, se especializa de perder novas oportunidades para dar um salto na produtividade e estimulando o desenvolvimento econômico e social, perpetuando as desigualdades e a exclusão social.

A economia mundial sente os desajustes gerados pelo coronavírus, seus impactos negativos é global, a pandemia exige atuação de todos os grupos nacionais e concatenação de interesses diversos, onde todos os grandes sociais devem compreender que uma sociedade não se constroem apenas como acumulo de seus ganhos econômicos e financeiros, a sociedade se constrói com ajustes constantes, com trabalho árduo e atuação de todos os grupos sociais, sem trabalhos dignos e decentes, sem crescimento da desigualdade social e do incremento de oportunidades para todos os setores. Desta forma, percebemos que a civilização está avançando lentamente e impulsionando a humanidade, deixando aos nossos herdeiros diretos melhores perspectivas, pela esperança e pela solidariedade.

As ideias liberais são interessantes e devem ser estimuladas na sociedade, para que este pensamento traga mais bem estar para a sociedade, faz-se necessário, construir novos espaços de oportunidades socias e de incremento profissional e emocional, sem estes crescimentos, os grandes beneficiados pelo liberalismo são aqueles que nasceram em grupos mais sociais mais consistentes financeiros e emocionais, perpetuando as desigualdades e consolidando os poderes de uma pequena parte da sociedade, os verdadeiros beneficiados pela iniquidade que crassa na sociedade brasileira. Num momento de pandemia, as discussões são fundamentais, a tributação deve ser centrada em grupo mais abonados, que neste momento de instabilidades e incertezas devem ser tributados mais intensivamente, garantindo o acúmulo de recursos econômicos e financeiros para diminuir os desequilíbrios nacionais, sem estes movimentos de atuação de maior tributação para a todos os grupos mais abastados, as instituições jurídicas e os agentes do Estado Nacional perderão mais legitimidade social, levando a sociedade a movimentos de renovação, a conflitos e reconstrução nacional.

O Brasil está doente, as pulsões mais delirantes vieram à tona, afirma psicanalista Maria Homem.

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Para ela, é preciso encarar o tratamento e identificar os problemas recorrentes nacionais

Emílio Santanna – FOLHA DE SÃO PAULO – 31/08/2020

Um paciente que, por muito tempo, deu pouca importância aos sintomas de um mal maior e, agora, movido pela urgência, precisa se deitar no divã e passar por um profundo processo de análise. A psicanalista Maria Homem vê assim o Brasil.

Um país com suas subjetividades individuais e coletivas pressionadas por mais de 120 mil mortes causadas pela pandemia do novo coronavírus, longe de conseguir baixar as marcas diárias de vítimas e em meio uma crise política e econômica. É preciso fazer uma escolha que leve à aproximação dos polos que se estabeleceram na vida nacional.

Em meio a esse processo, a crise de conceitos como individualismo e liberdade também nos coloca diante de escolhas e reposicionamentos prementes.

Maria Homem falou à Folha sobre algumas dessas mudanças e os desafios da pós-modernidade.

A pandemia e a quarentena colocam em xeque alguns conceitos como os de liberdade e individualismo. Como lidar com isso?

A modernidade toda está embasada na invenção da subjetividade individual. Antes, tínhamos a ideia de sermos parte de um clã, da família, da tradição, de que há um Deus transcendente que sabe o que estou pensando. Grosso modo, você não tinha um espaço de privacidade subjetiva individual, que é uma invenção moderna. É o que vai fundar o Estado democrático de direito, igualmente moderno. Qual o princípio básico? Um sujeito de liberdade e autonomia, cartesiano, kantiano, que diz “penso, logo existo” e “eu sou livre”.

Só que nós estamos numa era de críticas a alguns aspectos dessa modernidade. Estamos quebrando alguns grandes pilares da modernidade, ou ao menos colocando em xeque. A liberdade é do indivíduo? Também. Você quer sair da realidade, injetar, cheirar, fumar, pôr em baixo da língua, beber, tudo o que quiser? Qual é o limite? Não pode fazer isso tendo uma criança para tomar conta, tendo um carro para dirigir, que pode ser uma arma.

A gente tem uma liberdade, a priori inalienável, de ir e vir. Deveria ter, porque também não temos. O capital regula a circulação de pessoas. Também temos grandes narrativas: todos somos iguais perante a lei. É verdade que afirmamos isso, mas não é verdade que realizemos. Estamos há 200, 300 anos tentando executar o projeto iluminista.

A princípio, dentro do quadrado da nação, você pode ir e vir. Mas, mesmo nele, quando você tem um vírus com altíssima mobilidade e que é potencialmente letal, aí temos que fazer o isolamento social. Isso não é contra meu direito.

Eu não sou livre para ir e vir sem ser regulado pelo Estado?

Sim, seria. Por isso que é interessante discutir essa premissa da liberdade individual. É um grande pilar da modernidade. Eu sou livre, autônoma e racional. Não é Deus que vai dizer vá para cá ou vá para lá, não é uma guerra entre deuses e demônios para te fazer ser gay ou heterossexual, ser rei ou não ser. É Hamlet. É a grande questão shakespeariana: “Ser ou não ser, eis a questão”. Isso é o sujeito moderno por excelência.

Isso o século 19 já quebra. Freud cifra o sujeito ultramoderno com a ideia de que não temos plena consciência. Não somos movidos por aquilo que a gente deseja, porque o desejo é sobretudo inconsciente. Desejo, inconsciente, pulsão. É a crítica da subjetividade moderna, é a subversão do “cogito” cartesiano. Você é livre? Não. É escravo? Não, você é livre e escravo. Não é totalmente livre, porque age de acordo com seus impulsos basais. E também é identificado ao outro, é submetido aos imperativos do outro que você introjeta. Superego, “Úber-ich”. Todos carregamos um pedaço que é do outro dentro da gente.

Agora, vou andar cem anos, de Freud até hoje, sobretudo com as redes sociais que dizem o que a gente deve ser ou não e o que os outros aprovam ou não [às vezes] de uma maneira superegóica como a cultura do cancelamento Então a gente vai ser o quê? O que a gente acha, o que o outro acha? É o que eu acho que você acha? O que eu vou postar? O que eu acho que você acha que eu vou gostar? E aí vai, num movimento infinito de suposições, de ideias egóicas que estão sempre fora de mim. E chega um momento em que eu nem sei mais se quero ou não ir para a rua. Nem sei o que eu quero, do que eu gosto, o que eu posso, quem sou eu.

Se você no seu país, se colocou como adulto —a Nova Zelândia é o grande exemplo, governando por uma mulher que não precisa de um estratagema ficcional de governo calcado na fantasia e na mentira, como no Brasil e nos EUA—, nesse momento que você tem um problema, não pode tudo.

E se você não tinha acreditado no Freud, agora observe. Se eu vou mostrar, se quero mostrar, isso é todo esse jogo narcísico das redes sociais. E, se quer mostrar e quer que eu veja, que eu tenha inveja, ótimo.

Você é o sujeito pós-moderno por excelência, que é uma máquina de produzir inveja no olhar do outro para ter o seu valor reconhecido. A gente ampliou a lógica do reconhecimento. Não é sua família, é uma massa anônima que te dá “like”.

Isso nos torna ainda menos livres do que éramos há cem anos? 

Nesse aspecto eu diria que sim. A gente se complicou. Esse avatar que você constrói na rede é libertador? Não, não diria isso. Ou, então, deixaria essa pergunta para o leitor. Quão livre você é, tendo que construir continuamente um avatar para ser amado? Estamos mais livres do paradigma da demanda de amor, de que um Deus nos ame e nos aceite no Juízo Final? Sou otimista? Não diria isso… A gente está é inventando mais trabalho.

Então, no fim, só os preguiçosos serão salvos? 

[Rindo] E os tolos… Não sei se tenho sorte. Eu apanho, claro. Mas eu tenho um grande privilégio de ser muito livre para falar, pensar… A menina de dez anos, o estupro, o aborto, o que o Jair, o que o falou… Tem tanto material no Brasil que, se você deixar, não para de trabalhar.

Em que medida o isolamento social favorece o acirramento da polarização que vivemos?

A quarentena é uma operação gigantesca de desvelamento. Nessa situação de estresse e sofrimento, tudo vem à tona. Você está apertando subjetividades individuais e coletivas, e as estruturas vêm à tona, o Brasil veio à tona. O que é o bolsonarismo, o que são os filhos [de Bolsonaro], o que é a lógica miliciana, da corrupção, da política? Como a gente compra o centrão, o meio, a borda? Está tudo a céu aberto, é como se fosse um declínio da contenção, da inibição, crise do recalque, e todas as potências vêm à tona. Acho interessante como psicanalista. Sem isso você não faz tratamento. Você precisa saber bem o que é o Brasil. Tem racismo, misoginia, exploração, homofobia, desigualdades, tradições escravocratas, autoritária, violenta, assassina, bandida. Tudo isso faz parte da história do Brasil.

Precisa parar de se enganar, de maquiar, de pôr a culpa no outro, porque aí a gente vai fazer uma polarização que diz “Eu tenho o bem, você não tem”. Todo o bem está comigo, a raça superior, o futuro da nação, Novo Reich, todo o mal está com você que tem que ser exterminado. Isso é uma regressão para um mecanismo psíquico muito arcaico.

O racismo é problema nosso. Tivemos séculos de escravidão. Sempre tivemos transformação política via autoritarismo. Foi sempre com golpe. A Independência, a República, acreditamos na força. Milhões de pessoas elegem o cara com o símbolo de arma porque a gente acredita na força. Acreditamos na autoridade suprema e a desejamos para “parar com essa bagunça”. Esse binarismo mental entre o caos, a desordem, a puta zona e a ordem; a força, a violência, o “AI 5 quero, sim”, isso revela crenças, estruturas do que somos.

Temos que saber que são questões constitutivas, têm a ver com o que somos. É um processo analítico. O Brasil deveria entrar agora num processo analítico coletivo, como qualquer sujeito. “Eu estou com insônia, tenho síndrome do pânico’; ou “estou com vontade de matar quatro e já matei dois”. “Estou indo para análise. O que está acontecendo comigo?” É a ponta do iceberg, são problemas de séculos.

Assim, o bolsonarismo não ocorreu por acaso.

Não existe acaso no inconsciente. Nem no consciente. Acaso não existe. Mas existe, sim, o acaso/contingência? Claro. Tem toda uma estrutura por trás para possibilitar esse acaso. A vida é estrutura e acaso. Ela é tudo aquilo que já está montado. Se 58 milhões de pessoas entraram nesse delírio, isso está muito profundamente arraigado. Não existe acaso que eleja uma ficção com um imaginário tão delirante. Assim como o lulismo é outra construção que tem um aspecto profundamente imaginário. Não só, mas também, e é em alguma medida próximo a Bolsonaro —que consegue maior aprovação ao dar esse dinheiro mensal a uma parcela miserável da população.

É isso o que explica o aumento da popularidade do Bolsonaro?

Uma parte são os R$ 600 [do auxílio emergencial]. Outra parte é a ideia do salvador da pátria. Esse caudilhismo autoritário é curioso. Ele é de extrema esquerda porque é desenvolvimentista, estatista, vide o Exército no poder —como Chávez e Maduro, na Venezuela— com o verniz ultraliberal. É tão confuso que a gente tem generais no poder com o Paulo Guedes.

Será que não temos uma potência, uma pluralidade de pensamentos? Mas não estamos sabendo sentar à mesa e falar o que queremos. A gente quer a perpetuação do extrativismo, da miséria, o máximo de desigualdade, o máximo de dinheiro para esse grupo? Essa plutocracia que a gente está exercendo, queremos continuar nessa?

Tem muita gente boa, acho que dá para sentar à mesa e dizer “Olha nós vamos ceder, vamos negociar”.

Há uma disputa entre esses potenciais transformadores e algo como uma pulsão de morte que perpetua essa situação?

Tem muita pulsão de morte, claro. Uma pulsão de morte que, no momento, está vencendo. Quando você leva o pior do estado do Rio de Janeiro para o poder central, você vai ter uma “milicianização” global do poder do Estado. E nós estamos vendo isso. Estamos numa encruzilhada seríssima. Como vamos restaurar um mínimo pacto da lei? Como vamos barrar o gozo do outro? Se não barramos, é pulsão de morte, tânatos.

É isso que queremos? É o que estamos fazendo. É uma pergunta analítica. É realmente isso que você quer? É isso que você, Brasil, está fazendo da sua vida. Ou sentamos à mesa e explicitamos o que estamos fazendo, quem somos nós, ou vamos ser deixados fazer inconscientemente.

Agora que vieram à tona as pulsões mais delirantes, mais doentias, mais loucas do Brasil, vamos escutar e falar. O Brasil está doente. Não tenho dúvidas, o Brasil está doente. É preciso olhar no espelho.

Maria Homem 
Psicanalista, doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, professora da Faap, autora de livros como “No Limiar do Silêncio e da Letra: Traços de Autoria em Clarice Lispector” (Boitempo, 2012) e “Coisa de Menina? Uma Conversa sobre Gênero, Sexualidade, Maternidade e Feminismo” (Papirus 7 Mares, 2019), em parceria com Contardo Calligaris. Seus cursos e palestras, como os que faz na Casa do Saber, se popularizaram nas redes sociais

 

O agronegócio na crise global

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Vendendo comida, o Brasil perdeu menos que outros países no segundo trimestre

Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, 30/08/2020

O mundo precisa comer, com ou sem crise, e o Brasil produz e vende muita comida. Graças a isso a exportação brasileira caiu bem menos que a média mundial na pior fase do ano. O comércio global despencou no segundo trimestre e isso é bem visível no desempenho das maiores economias. Nesse período o Grupo dos 20 (G-20) exportou 17,7% menos que no primeiro trimestre. O valor importado foi 16,7% menor que o de janeiro-março. Países com grande participação da agropecuária nas vendas externas, como Brasil, Argentina e Austrália, perderam muito menos receita que os demais, segundo relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

O Brasil faturou no segundo trimestre 7,2% menos que no primeiro. A despesa com a importação foi 18,2% menor que nos três meses anteriores. Apesar da retração comercial observada na maior parte do mundo, a balança brasileira continuou no azul. Dois fatores contribuíram para isso. Com milhões de famílias fechadas em casa, consumo em queda e economia quase inerte, a demanda de importações foi muito baixa. O segundo fator foi o dinamismo permanente do agronegócio.

A exportação de comida e matérias-primas produzidas pela agropecuária continuou vigorosa no segundo trimestre, embora a economia mundial estivesse afundada em severa recessão. No primeiro semestre o agronegócio exportou produtos no valor de US$ 51,63 bilhões, 9,7% mais que um ano antes. O saldo comercial do setor chegou a US$ 45,40 bilhões e continuou sustentando o saldo positivo da balança comercial brasileira.

Em junho as vendas externas do agronegócio atingiram o recorde de US$ 10,17 bilhões, com crescimento anual de 24,5%, e corresponderam a 56,8% do valor total exportado pelo Brasil. Um ano antes a participação havia sido de 44,4%. O vigor se manteve em julho, quando o setor faturou US$ 10 bilhões com as vendas externas e garantiu 51,2% da receita geral do comércio de bens.

O agronegócio, convém sempre lembrar, mantém forte presença no mercado global apesar de ter sua imagem manchada pela desastrosa política ambiental do presidente Jair Bolsonaro e pela vergonhosa diplomacia do atual governo.

Mesmo com esses fatores adversos, o verdadeiro agronegócio, pouco presente na Amazônia e respeitador do ambiente natural, tem conseguido contornar a má fama do governo brasileiro e evitar o protecionismo baseado em bandeiras ambientalistas.

Mas o risco das campanhas protecionistas permanece, enquanto o presidente e seus piores ministros mantêm tolerância à devastação da Amazônia e de outros biomas e à violação de direitos dos povos indígenas. No mercado financeiro já é sensível o custo das más políticas federais. Grandes investidores cortam aplicações no Brasil ou ameaçam retirar-se. A decisão de três dos maiores bancos – Itaú, Bradesco e Santander – de criar o Conselho Consultivo Amazônia – para incentivar o desenvolvimento sustentável da região – mostra uma nítida percepção do problema ambiental e de seus custos.

Com grande peso da agropecuária na exportação, a Argentina faturou no segundo trimestre 11,8% menos que no primeiro, também com desempenho melhor que a maior parte dos países do G-20. Na Austrália a queda foi de 4,4%.

Na União Europeia o valor exportado caiu 21,3% e o importado diminuiu 19%. No bloco europeu a França teve a maior perda de receita, 29,3%, seguida pela Itália, com redução de 26,5%. Na maior economia do mundo, os Estados Unidos, a receita comercial do segundo trimestre foi 28,2% inferior à do primeiro. O gasto com a importação de bens diminuiu 14,5%.

A exceção no G-20 foi a China. Vendeu 9,1% mais no segundo trimestre, depois de ter perdido 9,3% no primeiro. Mas sua importação continuou em queda no período abril-junho, com recuo de mais 4,9%, mas sem danos para o agronegócio brasileiro. No primeiro semestre o mercado chinês absorveu 39,6% das vendas externas do setor. Em segundo lugar, apesar de alguma redução, ficou a União Europeia, principal núcleo das campanhas protecionistas contra o agro brasileiro.

 

 

O prosador de promessas

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Folha de São Paulo, 30/08/2020.

Como ministro, Guedes é bom contador de causos

VÁRIOS AUTORES (nomes ao final do texto)

Independentemente de qual teoria econômica se siga —ortodoxa ou heterodoxa—, é consenso que a boa condução de expectativas é fundamental para o bom funcionamento da economia. Foi Keynes quem primeiro trouxe essa ideia, e boa parte dos grandes economistas depois dele lidaram com ela —Friedman, Lucas, Skidelsky, Arkelof, Shiller. Trata-se de um instrumento de política econômica chamado de “forward guidance”. A importância de as medidas sempre mirarem o hoje e o amanhã é porque as decisões na economia, quaisquer que forem, acontecem e perduram no tempo. Quanto mais clara e crível for, portanto, a informação sobre o que fará o principal ente econômico —o governo federal—, melhor é para economia.

Alçado ao posto de figura inabalável e concentrando poderes de política econômica com poucos paralelos na história, Paulo Guedes é a voz com maior capacidade de moldar expectativas no país. Não há ministro do Planejamento para lhe fazer contraponto, e os presidentes dos bancos públicos e autarquias da área econômica lhe prestam continência. O presidente da República, aliás, reforça recorrentemente sua submissão —ainda que com deslizes práticos — à agenda do por ele apelidado “Posto Ipiranga”.

Ainda na campanha de 2018, Guedes garantiu, contra todas as evidências, que zeraria o déficit primário de cerca de R$ 130 bilhões já no primeiro ano de governo. Desta forma, ele implicitamente menosprezava todos aqueles que, familiares ao Orçamento, reforçavam a inviabilidade dessa tese. Pois 2019 passou e o déficit permaneceu.

Guedes tem prometido, com frequência, a privatização de todas as estatais, que trariam R$ 2 trilhões, ou seja, 30% do PIB, a serem anunciadas sempre “na semana que vem”. O BNDES apontou em julho que a maioria dos estudos sobre os efeitos de eventuais privatizações sequer foi concluída. Em vez do realismo, o ministro Paulo Guedes opta pelo discurso simples, que encanta quem vive de vender e comprar papeis em cima de promessas e boatos, mas que não altera a realidade das contas públicas ou a vida do cidadão brasileiro médio.

Guedes garantiu em setembro de 2019 que apresentaria a proposta de reforma tributária; claro, “na semana que vem”. Ela só chegou em julho de 2020 — e fatiada. Impressionam, também, as projeções superlativas do impacto das medidas do governo. Redução de 40% no preço da energia com o novo mercado do gás, anunciado em julho de 2019, e que nunca saiu do papel. Aliás, a reforma administrativa, que viria “na semana que vem” em 2019, também não saiu do papel. Geração de 3,7 milhões de empregos com a MP da Liberdade Econômica e outros 4 milhões com a Carteira Verde e Amarela. Investimentos de R$ 800 bilhões com o marco do saneamento. Agora, R$ 630 bilhões com um novo, de novo, marco regulatório do gás.

Em abril, o ministro da Economia disse, em uma live, ter “um amigo inglês” que doaria 40 milhões de testes de Covid-19 por mês ao Brasil. Quem era e onde estão os testes? Aliás, ficará na história a frase de Guedes, em 13 de março: “Com três, quatro ou cinco bilhões” o país “aniquilaria” o coronavírus. Os gastos do governo com a pandemia estão perto do meio trilhão de reais.

Diante da maior crise econômica de sua história, Guedes propaga uma recuperação em “V”, algo que contrasta com o que ocorreu em 2019, quando o PIB reduziu seu ritmo de crescimento —1,1%, contra 1,3% de 2017 e 2018. Isso sem contar a desarticulação da política econômica, que vem ocorrendo desde 2019, e os impactos econômicos negativos do desastre ambiental que é este governo: recuperação em “V”?

Guedes é, como ministro da Economia, um bom contador de causos. Um prosador de promessas: as pronuncia provavelmente com a mesma certeza que tem, em seu íntimo, de que não as entregará. Tendo lido Keynes três vezes no original antes de ir estudar com Friedman em Chicago, Guedes aparentemente pouco aprendeu de ambos os mestres.

Suas promessas confundem a sociedade, o que é sempre danoso à economia —como Keynes e Friedman ensinaram. A economista Esther Duflo, Prêmio Nobel em 2019, cunhou a sina dos três “is” que atrapalham o desenvolvimento: inércia, ideologia e ignorância. É uma pena que o Brasil pareça se encontrar preso nessa tríade, bem em meio à sua maior crise.

Débora Freire
Professora da UFMG

Élida Graziane
Professora da Eaesp-FGV

Fabio Terra
Professor da UFABC e do PPGE-UFU

Gabriel Brasil
Economista pela UFMG

Igor Rocha
Doutor em desenvolvimento econômico pela Universidade Cambridge

João Villaverde
Doutorando em administração pública pela FGV

Laura Carvalho
Professora da USP

Thomas Conti
Professor do Insper e IDP-SP