Vivemos subnotificação catastrófica de depressão na pandemia, diz Andrew Solomon

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Autor de best-seller sobre a doença diz que há equivoco ao achar que saúde mental é um luxo.

Patrícia Campos Mello – Folha de São Paulo, 22/06/2020

Em “O Demônio do Meio-Dia: Uma Anatomia da Depressão”, premiado best-seller internacional, Andrew Soloman, 56, examina o contexto cutural e científico da doença que o acometeu. Desde a publicação do livro, em 2000, ele virou uma referência mundial no assunto.

Em tempos de pandemia e isolamento social, Solomon acredita que há um grande risco em relação à depressão. Segundo ele, a gravidade da Covid-19 leva as pessoas a acharem que saúde mental é um luxo.

“Vivemos uma subnotificação de problemas de saúde mental em escala catastrófica, e há consequências muito sérias”, diz à Folha o professor de psicologia clínica na Universidade Columbia. Ele afirma que o isolamento social necessário na pandemia pode contribuir para um aumento nos casos de depressão.

Solomon acredita que muita gente não se dá conta que deveria e poderia buscar ajuda.

“Como temos que lidar com uma doença grave, a Covid-19, as pessoas acabam achando que saúde mental é um luxo, algo não essencial no momento. Não é um luxo, as pessoas morrem de depressão, as pessoas deixam de funcionar, há vários problemas físicos que são consequência da depressão”, afirma Solomon, que iria abrir o ciclo de palestras Fronteiras do Pensamento, em maio.

Com a pandemia, as conferências serão realizadas no segundo semestre, em algum formato mais adequado à nova realidade.

O senhor tem conversado com várias pessoas que estão com sintomas de depressão durante o isolamento necessário na epidemia do novo coronavírus. Como uma pessoa pode saber se o que ela tem é uma tristeza normal, dadas as circunstâncias, ou se é uma depressão que requer ajuda?

 É difícil dizer. É bastante racional, no momento, achar tudo muito difícil e incerto e vivenciar algo que parece depressão ou ansiedade. Pode ser uma resposta natural a tudo o que está acontecendo. Um dos fatores-chave é saber como você se sente em relação ao presente e como você se sente em relação ao futuro.

É racional a sensação de que estamos vivendo tempos muito estranhos, que não poder sair de casa e encontrar pessoas é muito ruim e triste. Mas a sensação de que toda a sua vida desapareceu e nunca mais vai voltar ao normal é provavelmente fruto de uma depressão. Essencialmente, seja uma depressão que saiu do nada, como ocorre com muitas pessoas, ou uma depressão decorrente das circunstâncias atuais, as duas são muito incapacitantes. Elas são depressão e provavelmente são tratáveis.

Se você está preocupado, mas ainda está conseguindo funcionar, você provavelmente está apenas lidando com o que está acontecendo. Mas se você chega a um ponto em que não consegue dormir, come o dia inteiro ou não consegue comer nada, sente uma ansiedade enorme quando se senta para fazer coisas rotineiras, tudo isso são indicações de depressão.

O perigo é que as pessoas pensam que estão ansiosas porque estamos vivendo em tempos horríveis e deixam de procurar tratamento. E quando elas vão finalmente se tratar, a depressão já se aprofundou, e quanto mais se aprofunda, mais difícil para a pessoa se recuperar.

Eu disse a muitas pessoas: não quer dizer que não haja razões para você se sentir dessa maneira, mas acho que é muito incapacitante e não ajuda estar assim. Digo a essas pessoas que elas deveriam buscar algum tipo de tratamento, para que possam ficar um pouco mais funcionais.

O senhor acha que há uma subnotificação dos problemas de saúde mental atualmente?

Vivemos uma subnotificação de problemas de saúde mental em escala catastrófica, e há consequências muito sérias. Acabo de falar com um amigo que me contou a história de uma amiga. Ela já estava um pouco deprimida quando tudo isso começou. Morava sozinha em um apartamento em Nova York e disse para o meu amigo que ela estava enlouquecendo, não sabia o que fazer, não via uma única pessoa havia seis semanas. Ela se suicidou.

Isso está acontecendo frequentemente. Como temos que lidar com uma doença grave, a Covid-19, as pessoas acabam achando que saúde mental é um luxo, algo não essencial no momento. Não é um luxo, as pessoas morrem de depressão, as pessoas deixam de funcionar, há vários problemas físicos que são consequência da depressão.

A depressão também afeta o sistema imunológico, o que deixa as pessoas menos capazes de combater o vírus se forem expostas. No momento, a depressão está muito, muito disseminada.

Existe alguma “dieta de saúde mental” que as pessoas podem seguir, ações que nos protegem de alguma forma da possibilidade de depressão e ansiedade neste momento de pandemia? 

Depressão é uma doença muito comum e tratável. Para as pessoas que estejam se sentindo muito pressionadas, sugiro que procurem ajuda profissional, não tenham medo de tomar remédios e fazer terapia. Não é um sinal de fraqueza, é um sinal de coragem.

Em geral, ajuda muito estabelecer rotinas, ter um número adequado de horas de sono, nem muito, nem pouco; não comer demais, não beber demais. Se a pessoa conseguir fazer tudo isso, ótimo.

Acho que o principal problema em relação a essa epidemia é a solidão terrível que ela gerou. Quando você está muito solitário e isolado, a ideia de procurar outras pessoas parece uma coisa enorme e pouco atrativa. Mas é uma medida de saúde muito importante falar com seus amigos, sua família, ou pessoas com as quais você tem conexão. Pode ser pelo Zoom ou outra plataforma online, telefone ou WhatsApp. Use qualquer tecnologia que estiver disponível e fique em contato com outras pessoas.

A depressão, mesmo em circunstâncias normais, é uma doença da solidão. Então se você conseguir sair um pouco dessa solidão, tem mais chances de ficar bem. Alguns dizem é muito trabalho ligar para as pessoas. Pensam: “Talvez não queiram falar comigo”. Meu conselho é: liguem, fiquem em contato.

Quais são os efeitos psicológicos da pandemia sobre as crianças?

O principal a se fazer com as crianças é mantê-las ativas e interessadas. É difícil, porque as crianças querem interagir fisicamente com os amigos, não só conversar pelo Zoom. Quando sugiro ao meu filho George fazer FaceTime com os amigos, ele faz, mas as crianças não têm muito sobre o que falar quando não estão fazendo coisas. E se as crianças não podem ter a companhia de outras crianças, elas precisam ter a companhia de adultos. É preciso que os pais reservem um tempo fora das suas preocupações usuais e foquem a família.

O que é pior, o isolamento social, o medo da doença ou não saber como vai ser a vida em alguns meses? 

Há dois aspectos traumáticos para as pessoas. Uma é o vírus, o medo de morrer e de pessoas que você ama morrerem. O outro aspecto é a sensação de estar desligado das outras pessoas.

Você está trancado em sua casa, com seus filhos, seus pais, ou marido ou mulher, num grupo pequeno. É muito difícil não acabar brigando. E ainda por cima, a pessoa está isolada do contexto social mais amplo onde teria mais pessoas para apoio e amizade.

Ou seja, é tanto o inferno são os outros como o inferno é não ter os outros, ao mesmo tempo. O isolamento é muito difícil tanto pelas pessoas que estão com você, quanto pelas pessoas que não estão com você.

Mas o medo do vírus é muito real, e o fato de não termos um cronograma torna tudo muito difícil. Se todo mundo soubesse que nós temos a pandemia, ela é horrível e vai durar até março, pensariam: bom, março está muito longe, mas pelo menos é possível fazer um cronograma. Dá para dizer às crianças: olha, é muito difícil, mas chegando em março, nós vamos fazer isso, vamos fazer aquilo. Nós sentimos constantemente essa ansiedade e medo por não saber quando vai acabar. O fato de não podermos nos programar é muito ruim.

O senhor trabalhou muitos anos como repórter internacional e escreveu um livro sobre a importância de viajar. Daqui para frente, não será tão fácil viajar. Passagens aéreas poderão ficar muito caras por causa da necessidade de manter assentos vazios. As pessoas podem ser obrigadas a fazer quarentena toda vez que viajem. Qual é o impacto disso em nossas vidas?

Até existir uma vacina, não vamos conseguir viajar como costumávamos. E mesmo quando descobrirem uma vacina, o fato de termos passado por isso e sabermos que há patógenos como esse no mundo vai tornar as pessoas bem menos animadas para embarcar em aviões e viajar ao redor do mundo. Meu medo é que isso também leve a um crescimento do nacionalismo e xenofobia, o que já vem ocorrendo.

A parcela da população que viaja para o exterior é pequena, mas há um efeito multiplicador das experiências dessas pessoas, que cria uma sensação de um mundo conectado. O que temos hoje é uma sensação de um mundo desconectado.

O senhor está escrevendo um novo livro. Pode contar um pouco?

É um livro sobre a expansão da ideia do que é uma família —casais divorciados e enteados, casais interraciais, pais e mães solteiros, reprodução assistida, adoção, acolhimento de órfãos em famílias, casais gays, famílias com vários pais e mães e famílias sem filhos.

O livro é estruturado para espelhar o “Longe da Árvore”, que relatava como pais comuns viviam com filhos extraordinários. Esse livro é sobre como famílias extraordinárias se formam e como tomam conta de seus filhos, o que significa ser uma família incomum, as coisas que igualam todos nós e as maneiras pelas quais não somos iguais.

O senhor tem uma família incomum… 

(Risos) Sim. Meu marido é pai biológico de dois filhos de amigas lésbicas que moram em Minnesota (nos EUA). Eu tenho uma filha com uma amiga da faculdade, que é casada. Eles vivem no Texas. Em circunstâncias normais, nós nos vemos bastante.

Eu e o John [meu marido] queríamos ter um filho para estar conosco o tempo todo e tivemos o George. Eu sou o pai biológico, o John é o pai adotivo, tivemos uma doadora de óvulos e uma barriga de aluguel —que é a mãe biológica dos dois filhos do John.

Seis pais, de quatro filhos, em três estados. Normalmente, passamos o Natal todos juntos, às vezes em Minneapolis. Nosso mais velho, filho biológico do John, veio morar com a gente por um ano no ano passado, quando terminou o ensino médio e ainda não tinha começado a faculdade. Foi ótimo. O livro também é sobre isso. Não existe linguagem que dê conta da complexidade das relações atuais.

Andrew Solomon, 56

Professor de psicologia clínica na Universidade Columbia, em Nova York, é escritor, ativista e conferencista. É autor, entre outros livros, de “Longe da Árvore” e “O Demônio do Meio-Dia”, que venceu o National Book Award de 2001. Escreveu para veículos como a revista The New Yorker e o jornal The New York Times.

 

Thomas Piketty: em face de nosso passado colonial e escravista, ”enfrentar o racismo, reparar a história”

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Após a onda de mobilizações contra a discriminação, é necessário mudar o sistema econômico, tendo como fundamento a redução das desigualdades, argumenta o economista

Por Thomas Piketty – 18/06/2020

Crônica. A onda de mobilizações contra o racismo e a discriminação coloca uma questão crucial: a das reparações diante de um passado colonial e escravista que definitivamente não passa. Qualquer que seja sua complexidade, a questão não pode ser evitada para sempre, nem nos Estados Unidos nem na Europa.

No final da Guerra Civil, em 1865, o republicano Lincoln prometeu aos escravos emancipados que obteriam após a vitória “uma mula e 40 acres de terra” (cerca de 16 hectares). A idéia era compensá-los por décadas de maus-tratos e trabalho não remunerado e permitir-lhes encarar o futuro como trabalhadores livres. Se tivesse sido adotado, este programa representaria uma redistribuição agrária em larga escala, principalmente às custas dos grandes proprietários de escravos.

Mas assim que a luta terminou, a promessa foi esquecida: nenhum texto de compensação foi adotado e os 40 acres e a mula se tornaram o símbolo da decepção e da hipocrisia dos nortistas – tanto que o diretor [de cinema] Spike Lee utilizou a expressão ironicamente para nomear sua empresa de produção. Os democratas retomaram o controle do Sul e impuseram a segregação e discriminação racial por mais um século, até a década de 1960. Novamente, nenhuma compensação foi aplicada.

Estranhamente, no entanto, outros episódios históricos deram origem a tratamentos diferentes. Em 1988, o Congresso aprovou uma lei concedendo US $ 20.000 aos nipo-americanos internados durante a Segunda Guerra Mundial. A indenização foi aplicada às pessoas ainda vivas em 1988 (cerca de 80.000 pessoas em 120.000 nipo-americanos internados de 1942 a 1946), a um custo de US $ 1,6 bilhão. Uma compensação de mesmo tipo paga às vítimas afro-americanas da segregação teria um forte valor simbólico.

O grilhão do Haiti

No Reino Unido e na França, a abolição da escravidão era sempre acompanhada de compensações do Tesouro Nacional [pagas] aos proprietários. Para intelectuais “liberais” como Tocqueville ou Schoelcher, tratava-se de uma obviedade: se privamos esses proprietários de suas propriedades (que, afinal, foram adquiridas em um contexto legal) sem justa compensação, então onde iríamos parar nessa perigosa escalada? Quanto aos ex-escravos, eles deveriam aprender a liberdade trabalhando duro. Não tiveram direito senão à obrigação de estabelecer contratos de trabalho de longo prazo com proprietários, cuja falta ensejaria prisão por vadiagem. Outras formas de trabalho forçado foram aplicadas nas colônias francesas até 1950.

Quando da abolição britânica [da escravatura], em 1833, o equivalente a 5% da renda nacional do Reino Unido (hoje 120 bilhões de euros) foi pago a 4.000 proprietários, com remuneração média de 30 milhões de euros, origem de muitas fortunas ainda hoje visíveis. Uma compensação também foi aplicada em 1848 aos proprietários da [Ilha da] Reunião, da Guadalupe, da Martinica e da Guiana. Em 2001, durante os debates em torno do reconhecimento da escravidão como um crime contra a humanidade, Christiane Taubira tentou, sem sucesso, convencer seus colegas deputados a criar uma comissão encarregada de refletir sobre compensações para os descendentes de escravos, em particular quanto ao acesso à terra e à propriedade, sempre muito concentradas entre os descendentes dos plantadores.

A injustiça mais extrema é, sem dúvida, o caso de Saint-Domingue, que foi a joia das ilhas escravistas francesas no século 18, antes de se revoltar em 1791 e proclamar sua independência em 1804 sob o nome de Haiti. Em 1825, o Estado francês impôs ao país uma dívida considerável (300% do PIB haitiano da época) para compensar os proprietários franceses pela perda de propriedades escravistas. Ameaçada de invasão, a ilha não teve outra escolha a não ser cumprir e pagar essa dívida, que o país arrastou como um grilhão até 1950, depois de muitos refinanciamentos e juros pagos aos banqueiros franceses e americanos.

Herança mínima

O Haiti agora está pedindo à França que devolva esse tributo injusto (30 bilhões de euros hoje, sem contar os juros), e é difícil não concordar. Ao recusar qualquer discussão sobre uma dívida que os haitianos tiveram que pagar à França por querer deixar de ser escravos, quando os pagamentos feitos de 1825 a 1950 estão bem documentados e não são contestados por ninguém, e que se pratica ainda hoje compensações pelas espoliações que ocorreram durante as duas guerras mundiais, corre-se inevitavelmente o risco de criar um imenso sentimento de injustiça.

O mesmo vale para a questão de nomes de ruas e estátuas, como a do comerciante de escravos que foi recentemente derrubada em Bristol. Obviamente, nem sempre será fácil traçar a linha entre estátuas boas e ruins. Mas, assim como para a redistribuição de propriedades, não temos outra escolha senão confiar nas deliberações democráticas para tentar estabelecer regras e critérios justos. Recusar a discussão é perpetuar a injustiça.

Bem além desse debate difícil, mas necessário, sobre reparações, devemos também e acima de tudo olhar para o futuro. Para reparar a sociedade dos danos do racismo e do colonialismo, é necessário mudar o sistema econômico, tendo como fundamento a redução das desigualdades e a igualdade no acesso de todos à educação, emprego e propriedade (inclusive por meio de uma herança mínima), independentemente das origens, tanto para negros quanto para brancos. A mobilização que hoje reúne cidadãos de todo o mundo pode contribuir para isso.

Thomas Piketty é Diretor de Estudos na Ecole des hautes études en sciences sociales, Ecole d’économie de Paris

Publicado originalmente em Le Monde | Tradução de Aluisio Schumacher

Racismo é um impedimento ao desenvolvimento econômico brasileiro

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Além de moralmente degradante, o preconceito é um obstáculo ao crescimento do país; não é um problema dos negros, mas da sociedade como um todo

Antonio Quintella e Lilia Moritz Schwarcz*, Especial para o Estado

20/06/2020 |

Durante muito tempo a “branquitude” – o privilégio que a sociedade colonial e europeia adquiriu e conservou no Brasil – reinou como se fosse verdade e realidade “natural”: inquestionável e, por isso, invisível. Foi assim que nos acostumamos a achar “normal” não encontrar negros e negras nos bancos das nossas melhores escolas, nas redações dos jornais, nos ambientes corporativos, na direção de instituições e até mesmo nas áreas de lazer dos bairros considerados mais nobres. Também defendemos uma suposta “meritocracia” sem atentarmos para os cortes de classe e raça que esse conceito traz; como falar em “mérito”, de uma forma geral, quando o ponto de largada é profundamente desigual? Nos habituamos, ainda, a chamar de “universal”, e sem pejas, uma história que é só europeia, e a uma arte que é eminentemente masculina e ocidental. Se a “nossa” arte e a “nossa” história carecem de adjetivação, já as demais precisam ser qualificadas como se fossem derivações subordinadas: arte africana, arte indígena, história africana, história indígena.

Tal tipo de procedimento, levado a cabo durante tantos séculos, e de forma impune, acabou gerando uma grande cegueira cultural e processos de invisibilidade social muito perversos pois nem sequer nomeados. E, em geral, onde reina o silêncio, sobra contradição. “Raça” só existe uma – a humana –, e aí estão os biólogos para comprovar. Mas desde sempre a humanidade criou outro conceito, “raça social”, e é dele que estamos aqui tratando. Qual seja, das maneiras como as sociedades “driblam a natureza”, e constroem marcadores sociais de diferença como raça, gênero, sexo, região e geração, e, assim, criam novas realidades ensejadas historicamente e ao longo do tempo.

O tema da raça entrou finalmente na agenda da nossa contemporaneidade. No entanto, se os brasileiros podem até assumir a existência do racismo no país, em geral, negam que sejam, eles próprios, racistas, e costumam jogar o preconceito no “outro”: na história, no colega, no parente, no vizinho. No entanto, o racismo existente no país toma todos; sem exceção. Ele está presente no ambiente escolar, com altos níveis de repetência entre os alunos negros; na área da saúde e basta notar como as pessoas negras são as maiores vítimas da Covid-19; na área do trabalho com poucos participando de cargos de direção; na área da cultura e da moda, ainda espaços eminentemente brancos. E não adianta culpar apenas o passado, e maldizer o legado pesado da escravidão. Nos dias de hoje temos reproduzido dados que indicam a existência de um racismo estrutural e institucional, presente nas áreas mais insuspeitas e, também, naquelas muito suspeitas.

É por isso que a questão deixou de ser apenas moral; não adianta mais dizer que não somos racistas, é passada a hora de praticarmos atos antirracistas. Como foram os colonizadores brancos que implementaram o tráfico negreiro e criaram teorias que procuraram naturalizar a diferença – como o darwinismo racial, que determinava que as raças eram ontologicamente diferentes, ou o racismo científico, o qual colocava os brancos no alto de uma pirâmide social e os negros na sua base – é hora de atuarmos como aliados nessa luta que é de todos os brasileiros. Na luta antirracista.

Não teremos uma democracia por aqui, como bem demonstra Sílvio Almeida, enquanto permitirmos que o racismo vigore e de forma tão perversa. Mas, também, jamais teremos no Brasil uma economia tão pujante e produtiva, quanto poderíamos ter e apresentar (e precisamos dela para vencer a extrema pobreza e desigualdade que nos assolam), se o racismo permanecer entre nós. A manutenção do status quo, se não o seu agravamento, não é sustentável. Ademais, essa preocupante trajetória pode colocar em risco a nossa precária estabilidade institucional.

Muito já foi dito sobre fazer crescer o bolo ou, ainda, que a subida da maré levanta todos os barcos, e que esses processos enriquecem as nações. Entretanto, as evidências das últimas décadas demonstram que ao longo desse caminho não somos todos igualmente beneficiados. Aliás, muitos sequer são beneficiados de todo. Na ausência de políticas públicas compensatórias e bem coordenadas, os benefícios vão para uns e não para outros, e, em geral, os maiores benefícios são capturados por muito poucos.

Infelizmente, a pandemia provocada pela disseminação do Covid-19 fez o bolo decrescer e a maré baixar repentina e significativamente. Nesse ambiente, que possivelmente nos fará conviver com altas taxas de desemprego e baixos níveis de ocupação e atividade por muito tempo, as desigualdades tendem a se tornar ainda mais expressivas e as vantagens percebidas por aqueles que detém o capital (seja ele intelectual e/ou financeiro) mais pronunciadas. Essas disparidades não podem ser moralmente toleráveis e, além do mais, comprometerão o desempenho da própria economia brasileira enquanto persistirem.

Diante dos inúmeros desafios introduzidos pela pandemia, em especial os de ordem econômico-social, é necessário resgatar a discussão em torno das opções disponíveis para combater a pobreza no Brasil. Ricardo Paes de Barros (et. al.) propunha, já em 2000 (Desigualdade e Pobreza no Brasil: Retrato de uma Estabilidade Inaceitável, Revista Brasileira de Ciências Sociais), que o foco no crescimento econômico como estratégia central no combate à pobreza deveria ser relativizado. O estudo àquela época apontava para (a despeito dos ciclos, transformações e dos mais variados experimentos econômicos) uma relativa estabilidade na dimensão da pobreza no país, e propunha que políticas que focassem na diminuição da desigualdade precisariam ser combinadas com aquelas que estimulassem o crescimento econômico. Não seriam essas políticas mutuamente excludentes, mas complementares. O diagnóstico feito a partir daquele minucioso estudo demonstrava a existência de uma estreita relação entre a má distribuição dos recursos e a pobreza, situação que permanece até hoje. O estudo sentenciava então que “o Brasil não é um país pobre, mas um país com muitos pobres”.

Devemos adicionar uma nova dimensão a essa discussão. O tema do racismo tem claro impacto no ambiente do trabalho, como vem mostrando Cida Bento, entre outros. As práticas e atitudes racistas alijam uma parcela considerável da nossa população, tolhendo-a de oportunidades indispensáveis e fundamentais na área da educação e ocupacional, por exemplo, impedindo-a de exercer as mais diversas atividades profissionais na plenitude do seu potencial criativo e produtivo. A eliminação do racismo é ainda mais relevante em uma sociedade tão desigual quanto a brasileira, em que, segundo dados e termos do IBGE, negros e pardos correspondem a quase 56% da população.

O Brasil já não mais se beneficia de um bônus demográfico, ao contrário. Na medida em que nossa população envelhece, nosso crescimento econômico depende, sobretudo, de um aumento significativo da produtividade. Vários estudos recentes têm sido feitos a respeito da relativa perda de dinamismo da economia brasileira nos últimos anos, apontando que isso possa estar associado à baixa produtividade do trabalho. O Professor José Pastore em artigo no Estadão (de 27 de fevereiro de 2020) sugeria que a “produtividade não resulta desta ou daquela providência, mas sim de ações orquestradas em vários campos durante muitas décadas”, notadamente no campo da educação. Sem dúvida, o aumento da produtividade também passa pela desburocratização, pela abertura da economia, pelos esforços de privatização, pela racionalização da carga tributária e maior eficiência do Estado.

Mas esses esforços terão sido insuficientes se tivermos deixado para trás metade dos brasileiros.

Se o Brasil pretende crescer de forma sustentável, precisa resgatar uma histórica dívida social. Devemos urgentemente oferecer as condições necessárias para mitigar a desigualdade, em especial a de oportunidades. É necessária uma profunda reflexão sobre a nossa sociedade, reconhecendo a riqueza da sua diversidade e estabelecendo uma agenda de inclusão que desperte, motive, engaje e permita que a população negra ocupe, com destaque e sem constrangimentos, espaço nos meios acadêmicos, culturais e empresariais.

A defesa da pauta antirracista implica, portanto, uma agenda de ações. Mas sua defesa não leva em conta apenas a “culpa” ou o mero ressarcimento; o qual, aliás, nunca foi realizado. Ela pretende mostrar que seremos muito melhores se formos mais diversos. Mais é sempre mais, quando se pretende colocar em relação potencialidades, experiências, percursos e histórias tão distintas como comuns.

Portanto, o antirracismo, além de precisar fazer parte de uma agenda republicana e democrática brasileira, precisa ser incorporado ao pensamento e à formulação da política econômica. O racismo não é apenas moralmente degradante e inaceitável, ele também é um impedimento ao pleno e sustentável desenvolvimento econômico. Não, o problema não é só dos negros, é da sociedade como um todo. E da conscientização e efetiva mobilização das nossas lideranças dependem as soluções.

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ANTONIO QUINTELLA É EMPRESÁRIO, ECONOMISTA PELA PUC-RJ E MBA PELA LONDON BUSINESS SCHOOL/UNIVERSIDADE DE LONDRES

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LILIA M. SCHWARCZ É HISTORIADORA E ANTROPÓLOGA, PROFESSORA DA USP E EM PRINCETON, CURADORA ADJUNTA PARA HISTÓRIAS DO MASP E AUTORA DE VÁRIOS LIVROS, SENDO O MAIS RECENTE ‘SOBRE O AUTORITARISMO BRASILEIRO’ (2019)

Bolsonaro não controla apoiadores mais radicais’, diz pesquisador

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Professor vê presidente como ‘refém do monstro’ que ele próprio criou: o bolsonarismo, que junta até correntes antagônicas

David Nemer, professor da Universidade de Virgínia

Breno Pires, O Estado de S.Paulo 21/06/2020 |

BRASÍLIA – O professor David Nemer, da Universidade de Virgínia, nos Estados Unidos, tem dedicado seus estudos ao funcionamento da rede bolsonarista no WhatsApp. Diferentemente do Twitter e do Facebook, o aplicativo foge do controle social e virou uma arma do presidente para manter o patamar de 30% nas pesquisas de opinião.

Doutor em antropologia da tecnologia, Nemer acompanha, agora, um processo de “desidratação” e “radicalização” do grupo de seguidores que está na mira de um inquérito do Supremo Tribunal Federal (STF). Em entrevista ao Estadão, ele avalia que essa rede diminui e torna-se cada vez mais radical desde a saída de Sérgio Moro do governo, a aliança do Palácio do Planalto com o Centrão e as divergências de movimentos de direita. Ao mesmo tempo, influencia a agenda hostil do presidente ao Estado Democrático. “Hoje o bolsonarismo é maior do que a figura do Bolsonaro”, afirma.

Eram grupos conservadores que já existiam e que se uniram em torno de Bolsonaro pelo antipetismo. Bolsonaro no início não era uma unanimidade entre eles, havia dúvidas, até por ser um nome velho da política. Se você olhar para o bolsonarismo, tem pilares antagônicos. Há o liberal, representado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e o militar, que é nacionalista. São ideias que se confrontam. Evangélicos querem ter presença forte e os liberais são contra a presença da religião no governo.

Os grupos implodiram. Com Bolsonaro eleito, o PT já não é mais a mesma ameaça. As pessoas voltam a priorizar os pilares do bolsonarismo que mais lhe agradam, liberais, militares. Então, os grandes grupos deram lugar aos temáticos. Há o armamentista, há o liberal, há o evangélico. E, depois, com a saída de pessoas importantes da campanha, como Joice Hasselmann, Janaina Paschoal e Sérgio Moro, muitas pessoas deixaram o barco bolsonarista. As que ficaram estão firmes com Bolsonaro. Antes tinha mais pessoas. Agora tem menos pessoas indo para as ruas, mas estas são mais radicais. O número é menor, sem diálogo e barulhento.

  • Como define o bolsonarismo?

É um movimento sociopolítico sustentado por diversas correntes de pensamento que não são necessariamente complementares e às vezes antagônicos, como o liberalismo econômico, o militarismo, o cristianismo conservador e os pensamentos de Olavo de Carvalho. O presidente se utiliza dessas correntes para justificar a militância para o patriotismo, os bons costumes, os valores familiares, a lei e a ordem e a caçada à esquerda. Uma estratégia do bolsonarismo é a criação do inimigo, onde qualquer pessoa ou entidade que se oponha a ele é julgada como antinação, anticristão e comunista. O bolsonarismo também tem uma agenda hostil ao Estado Democrático.

  • A presença do presidente em atos antidemocráticos é uma influência desses grupos radicais?

Sim. O Frankenstein cresceu e agora volta para assombrar. Hoje o bolsonarismo é maior do que a figura do Bolsonaro. O presidente é refém do monstro que criou, que é o bolsonarismo. Outro dia, Olavo de Carvalho disse que, se ele quiser, derruba o presidente. Isso também é fruto do bolsonarismo. O presidente não controla mais a ala radical dele que se alimentou das falas e do pensamento dele.

  • Esses apoiadores mostram obediência ao presidente?

Até que ponto a obediência cega é ao Bolsonaro ou ao bolsonarismo? Nos primeiros atos, por volta de 15 de março, depois de muita crítica, ele pediu para as pessoas não irem mais para as ruas (por causa da pandemia). Não adiantou, as pessoas saíram. Ele viu que não tinha controle. Então, com medo de essas pessoas virarem oposição, o presidente se junta a um potencial inimigo. Esse é um exemplo de que o bolsonarismo está maior que ele.

  • Quando o presidente foi maior que o bolsonarismo?

Talvez na aproximação ao Centrão. Talvez na saída do Moro. Foi interessante porque a saída dele foi rápida, ninguém estava esperando. Foi um baque forte, mas logo os influenciadores superaram. Mas não dá pra enganar: Bolsonaro continua sendo a cara do bolsonarismo.

  • Como se diferenciam os grupos bolsonaristas do WhatsApp e do Twitter?

No WhatsApp, você tem a participação orgânica e coletiva de pessoas reais. No Twitter, por existir forte presença de contas inautênticas, fica difícil ter a sensação real da adesão daquela mensagem. É mais unilateral, e a informação vem de certos hubs, como (o blogueiro) Allan dos Santos, Leandro Ruschel e a deputada Carla Zambelli (PSL-SP).

  • O presidente diz que o inquérito das fake news é inconstitucional. O senhor concorda? 

De jeito nenhum. O que esse inquérito está vendo é o financiamento ilegal das contas. Eles estão verificando sobre a questão das fake news. Se fossem realmente atrás de todo mundo, a lista seria muito maior. Por exemplo, ainda não se vê como alvos integrantes do chamado “gabinete do ódio”. Acredito que os motivos que levam à investigação são concretos. É lógico que tem de esperar a conclusão e o julgamento. Mas isso não é censura. As leis do País ainda se aplicam na internet. Essa ideia de que internet é terra de ninguém, por mais que possa parecer, não é verdade. Alguma hora a gente tem esse choque de realidade.

  • Os grupos bolsonaristas estão diminuindo?

A diminuição dos grupos de WhatsApp ocorre de acordo com as pesquisas de opinião. Quando se fala que sobraram 25% a 30% de aprovação, é o mesmo porcentual lá do início do governo. Não vai dar para mudar opinião desses eleitores. As mudanças para acontecerem nesse grupo devem ser de longo prazo. O bolsonarismo vai permanecer por muito tempo além da figura do Bolsonaro, mesmo que, nas próximas eleições, algum candidato de esquerda ou de centro ganhe. Haverá reações radicais. Estudar e compreender o bolsonarismo não é coisa de momento, é algo que já vem sendo construído por um tempo e que vai ficar por muito tempo.

  • É possível fazer um paralelo entre apoiadores de Bolsonaro e de Donald Trump nas redes? 

Há uma espécie de ciclo da direita avançando nesse aspecto da desinformação por meio das redes sociais. Com o aquecer das eleições dos EUA, estou fazendo pesquisa principalmente em grupos de Telegram. Ainda está muito no início para eu ter algum tipo de achado forte, mas é bem parecido com o que aconteceu no Brasil em 2018 no WhatsApp, que por sua vez se baseou muito no que foi o Trump de 2016 no Facebook. De certa forma, a direita amplifica o que foi feito no outro país no passado recente. WhatsApp e Telegram nunca foram populares nos EUA, mas estão ficando agora. A expectativa é que fiquem ainda mais durante as eleições, pois as campanhas já entenderam o poder da persuasão que esses aplicativos promovem, principalmente, no que tange à distribuição de fake news.

Entrevista: ‘Trump e Bolsonaro não são populistas’

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Para professor de Yale, as estratégias adotadas pelos governos dos dois líderes estão mais voltadas para o fascismo

Paulo Beraldo, O Estado de S.Paulo – 21/06/2020

Acabar com a legitimidade da oposição, elaborar um discurso de vítima do sistema, eleger culpados para problemas estruturais e criticar o intelectualismo: a fórmula é a mesma, mas se repete em países tão distintos quanto ÍndiaHungriaPolôniaEstados Unidos e Brasil. A avaliação é do filósofo Jason Stanley, autor de Como Funciona o Fascismo – A Política do ‘Nós e Eles’, para quem o termo populista não serve para designar o comportamento de líderes como o indiano Narendra Modi, o americano Donald Trump e o presidente Jair Bolsonaro.

Muitas pessoas perderam confiança nas democracias para garantir serviços fundamentais como educação, saúde e segurança. O estudo Democracias sob Tensão, conduzido pela Fondapol, mostrou que 77% das pessoas no Brasil entendem que a democracia aqui não funciona bem. Em todo o mundo, a média de satisfação com o sistema é de 51%. Como restaurar a confiança?

Para que a democracia seja protegida, os jornalistas devem ser capazes de fazer seu trabalho sem assédio de políticos e os sistemas públicos de educação devem ser fortes e estar disponíveis para todos, assim os cidadãos podem participar da formação das políticas pelas quais são governados. Deve haver um caminho visível para reduzir a desigualdade entre os cidadãos para que o ideal de igualdade política democrática não seja visto como vazio e hipócrita. A democracia promete liberdade aos cidadãos, mas quando eles são esmagados por dívidas e trabalho sem fim, sem esperança de que seus filhos terão uma vida mais digna, eles podem ser manipulados por demagogos a jogar a culpa de seus problemas em fontes que não são as responsáveis por eles: os pobres, os homossexuais, os liberais, os ateus, os imigrantes, os negros e outros grupos que não são responsáveis pelas disparidades de riqueza e oportunidade.

Como o sr. vê a valorização das pessoas pelas democracias hoje em dia?

Há o risco de as pessoas verem a democracia como hipócrita, como uma máscara para elites poderosas controlarem o discurso e a sociedade em detrimento da maioria. Os líderes que incentivam essa narrativa e obtêm sucesso por meio dessa estratégia são muito mais corruptos do que os líderes que eles superam, e minam mais a retórica da democracia, alimentando o sentido de que esses líderes são “autênticos”. Jair Bolsonaro, Donald Trump e Narendra Modi nem mesmo inspiram competência e ninguém se inspiraria na existência de autocracias tecnocráticas, como Cingapura, para apoiar alguém como Bolsonaro.

É possível prever as condições que permitem que as democracias se transformem em autocracias e até ditaduras?

Há várias maneiras de as democracias se transformarem em autocracias e vários tipos de autocracia. Depois, existem os tipos de movimentos políticos em questão no meu livro Como o Fascismo Funciona. Esses movimentos políticos acabam frequentemente em incompetência e corrupção em massa, uma vez que seu principal valor político é a lealdade.

Em seu livro, o sr. diz que vitimização, anti-intelectualismo e deslegitimação da oposição são características importantes do fascismo. Por que políticos de países muito diferentes adotam essas estratégias hoje em dia?

O apelo à vitimização permite que os políticos justifiquem comportamentos antiéticos e sem princípios – por exemplo, comportamentos ilegais e antiéticos são justificados porque são os alvos de uma mídia e classe política supostamente injustas. Justifica o sentimento de queixa legítima para seus apoiadores. A vitimização do grupo dominante é muito poderosa, como vemos hoje na Índia, com o apelo do nacionalismo hindu. Os hindus são a maioria (cerca de 80%) e muitos estão convencidos de que seu país está sob ameaça dos muçulmanos. O anti-intelectualismo faz parte do apelo das figuras de autoridade; a autoridade do homem forte tem como base a força. E a deslegitimação da oposição faz parte do impulso antidemocrático.

Muitos desses líderes também fazem uso da religião e tentam se retratar como escolhidos. Há como combater isso?

O bom jornalismo deve revelar que tais afirmações frequentemente têm como base a hipocrisia. Também precisamos de cidadãos com um senso das tradições democráticas do país – a maneira como o Brasil emergiu da ditadura militar para ser a democracia em desenvolvimento mais inspiradora do mundo.

Grandes democracias como Índia, EUA e Brasil são hoje lideradas pelo que muitos analistas definem como políticos populistas. Em seu livro, o sr. prefere evitar esse termo. Poderia explicar o porquê?

Lula era populista. Bernie Sanders é populista. É absurdo ter uma categoria que agrupe Bolsonaro e Lula. Se o objetivo é combater políticos como Trump, Bolsonaro e Modi, que buscam dividir, é preciso ter políticas populistas que transmitam confiança às pessoas. O problema não é o populismo. É o que chamo de fascismo, concorde você ou não com esse rótulo. Muitos políticos que chamamos com naturalidade de populistas nunca empregariam as táticas que descrevo. Então, precisamos de outro termo. Talvez não seja fascista. Mas definitivamente não é populista.

 

Dani Rodrik, economista: “Esta crise nos ensina que nossas prioridades estavam equivocadas”

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Professor em Harvard diz que a pandemia amplificou as tensões econômicas já existentes e afirma que autocratas como Bolsonaro e Trump tem respondido pior ao momento.

Luis Doncel – El país, 20/06/2020

Dani Rodrik passeava com seu cachorro na manhã de quinta-feira passada quando deu uma olhada na sua conta do Twitter. Foi então que soube que havia ganhado o Prêmio Princesa de Astúrias de Ciências Sociais de 2020, um dos mais importantes da Espanha. A esse economista turco-norte-americano, um dos mais influentes da atualidade, não lhe escapa a ironia de ser premiado por seus estudos sobre a globalização justamente quando este fenômeno recebeu o golpe mais duro de sua história. A pandemia do coronavírus, afirma ele no seu gabinete da Escola de Governo John F. Kennedy, da Universidade Harvard, funciona como uma espécie de lupa que amplifica todas as tensões latentes na economia durante décadas.

“Não me surpreende que a hiperglobalização esteja vindo abaixo. Faz anos que digo que não é sustentável. A grande pergunta agora é se criaremos uma globalização mais saudável e inclusiva ou avançaremos para o unilateralismo de Trump, com políticas insensatas que não beneficiam nem ao país que as promove nem aos seus sócios”, diz ao EL PAÍS, por videoconferência, esse professor que é presença habitual nos bolões de aposta do Nobel. Para ele, tanto Trump quanto Jair Bolsonaro são líderes populistas que se gabam de ter todas as respostas, algo que esta crise contribuiu para desmentir. “Não me surpreende que autocratas como Bolsonaro, Trump ou até certo ponto Boris Johnson estejam respondendo pior à crise do coronavírus”, diz (leia mais no quadro abaixo).

Foi sua primeira entrevista desde que foi anunciado como ganhador do prêmio que —se a pandemia não impedir— receberá em 16 de outubro em Oviedo, no norte da Espanha.

Pergunta. As tensões entre a China e os EUA e os problemas na OMC já deixavam antever o declínio da globalização. Mas a pandemia foi o terremoto definitivo. Trata-se de uma sacudida temporária ou deixará rastros mais profundos?

Resposta. Os sinais de que a globalização se desfazia eram evidentes antes de Trump. Mas sua chegada à Casa Branca exacerbou essas tensões. Não voltaremos à era de hiperglobalização dos anos 2000. Haverá mais regionalização no comércio e um uso muito mais ativo de políticas públicas, como a industrialização. E mais tensões em áreas tecnológicas, onde as nações tratarão de construir muros em torno de seus sistemas de inovação. Mas não estamos falando do desmoronamento do comércio global. Não voltaremos para os anos 1930 do século passado.

P. Não estamos então perante o ocaso da globalização.

R. A hiperglobalização era um estado mental. Vamos nos afastando dessa ideia de que cada país devia se adaptar à economia internacional. E devemos entender que é justamente o contrário: que a economia internacional deve servir aos objetivos de cada país.

P. Que parte desta mudança pode ser atribuída a esta crise?

R. Nos EUA, esta crise tornou ainda mais evidente o nível de desigualdade e a falta de um seguro de saúde e a falta de um seguro de saúde para muitas pessoas. No mundo, mostra as incompatibilidades do sistema chinês com os da Europa e EUA. Mostra que devemos criar um novo modus vivendi. A pandemia funciona como uma lupa que amplifica as tensões econômicas já existentes.

P. Que lições devemos extrair desta crise?

R. Ela nos ensina como nossas prioridades estiveram equivocadas nas últimas quatro décadas. Quanto trabalhamos para ter mais globalização econômica, como investimos pouco em assegurar os bens necessários para a saúde pública. Se tivéssemos dado a mesma importância à Organização Mundial da Saúde que à OCDE ou ao FMI, teríamos nos saído melhor. A crise é um aviso de que a melhor globalização seria a que se construísse em torno de bens públicos, como evitar a mudança climática ou lidar com as pandemias no âmbito da saúde pública. E não ter dedicado tanto interesse a assuntos como liberalizar o comércio ou os fluxos internacionais de capital.

P. É também um chamado de atenção a seus colegas, aos quais você critica pela obsessão com os modelos matemáticos?

R. Não acredito que o problema seja usar a matemática, que é apenas uma forma de garantir que não nos enganamos. Mas ela é um problema se fizer que deixemos de nos fazer as perguntas fundamentais. Um bom efeito da crise é que empurra os economistas a nos fazermos essas perguntas importantes. Vemos isso na quantidade de pesquisa acadêmica que está sendo publicada. Acredito que os economistas estejam respondendo ao desafio.

P. Você falou da boa saúde do Estado-nação. Ele sairá fortalecido desta crise? Está de volta? Ou será que na realidade, apesar do declínio tantas vezes prognosticado, nunca foi embora?

R. Sim, a decadência do Estado-nação ocorreu mais em nossa imaginação que na realidade. Quando havia uma crise, quem estava lá? Os Governos nacionais. Mas agora é muito mais evidente. Chama a atenção o papel da política industrial, que parecia ter desaparecido. Os países na verdade se ocupavam dela, mas era algo do que não se falava. E agora tanto nos EUA como na EU estas políticas voltam com muito força. Porque é preciso competir com a China, mas também porque é preciso assegurar a produção para cobrir, por exemplo, as necessidades sanitárias. É uma mudança muito importante na narrativa.

P. Você foi muito crítico com a gestão europeia da crise anterior. Mas o Banco Central Europeu, a Comissão Européia e os Governos nacionais agiram agora com mais rapidez e decisão. Vemos finalmente uma resposta comum à crise?

R. É certo que desta vez foi mais rápida e efetiva, em parte graças à experiência da crise anterior. O fundo de recuperação proposto pela Comissão Europeia é um passo importante. E parece que a ideia de mutualizar a dívida se infiltra na UE. Resta ver se será um primeiro passo em um processo que leve a uma união fiscal e política ou uma resposta única a esta crise. Mas que a França e Alemanha tenham chegado a um acordo e que a Alemanha tenha aceitado o fundo é ótimo sinal. Isso não aconteceu há 12 anos.

P. Isto o deixa mais otimista com o futuro do euro?

R. Honestamente, não sei. A Europa deve escolher entre uma união fiscal e política real, ou recuar em sua integração. Essa é a opção em longo prazo. A única forma de superar feridas como o Brexit é criar uma comunidade política transnacional, onde as pessoas se sintam representadas. É um caminho longo, mas será preciso decidir se se deseja trilhá-lo. Se não, temo que o Brexit será o primeiro passo em um processo de desintegração econômica. Se não se avançar por esse caminho, a união não poderá se manter em sua forma atual.

P. Ao falar de seu famoso trilema, segundo o qual os países têm que escolher dois destes elementos: democracia, hiperglobalização e soberania nacional, você diz que em nenhum lugar isso é tão verdadeiro como a Europa. A qual destas pernas a Europa poderia renunciar?

R. Sempre fui a favor da integração política na Europa. Mas estou consciente de que esse caminho é mais difícil depois das decisões tomadas na crise do euro. Em lugar de ser abordada como uma oportunidade para construir instituições melhores, uns puseram a culpa nos outros, numa história de esforçados trabalhadores alemães frente a gregos indolentes e endividados. Isso inflamou as tensões nacionais e deu força aos populistas. A reposta a essa crise fez que a integração política agora seja mais difícil. O fundo de 750 bilhões [de euros; 4,37 trilhões de reais] tem como mudar isso? Tenho alguma esperança de que haverá a solidariedade de que a Europa necessita para avançar na integração política. Anima-me que a Alemanha tenha aderido. Estou mais otimista, mas ainda há muitas dúvidas.

P. A desindustrialização afeta a países como a Espanha, que assiste ao fechamento de importantes fábricas. E a crise atual agravará esse processo. Que respostas os Governos podem dar?

R. É muito difícil aumentar o emprego na indústria. Talvez seja impossível. Os empregos de qualidade que queremos não virão da indústria, e sim dos serviços. Para um país como a Espanha, virá do turismo, das finanças, da educação, da saúde… Será preciso pôr em marcha regulações que permitam ao mesmo tempo aumentar a produtividade e o emprego de qualidade.

 

“O liberalismo enfraqueceu nossa rede de salvação˜: Entrevista com Richard Senett.

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coronavírus atrapalhou os planos deste incansável defensor do Estado de bem-estar social. Neste ano, o confinamento e as restrições para voar retiveram Richard Sennett (Chicago, 1943) em Londres, onde vive metade do ano com sua esposa, a também socióloga Saskia Sassen, e leciona na London School of Economics.

A entrevista é de Carmen Pérez-Lanzac, publicada por El País, 13-06-2020.

O renomado sociólogo não passará a primavera setentrional (de setembro a dezembro) em Nova York, onde fica mais perto do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), no qual também leciona. No dia desta entrevista, 27 de abril, Sennett estava ansioso para retomar seu trabalho nas Nações Unidas, onde colabora no desenvolvimento de estratégias para que as cidades enfrentem a crise climática. A ONU reabriu após permanecer várias semanas fechada devido à pandemia. O autor de Construir e Habitar: Ética para uma Cidade Aberta (Record, 2018) está impressionado: seus vizinhos londrinos se organizaram e trazem alimentos para ele e sua esposa, assim como para outros moradores de seu edifício. Essa gentileza lhe deu esperança.

Eis a entrevista.

Nesta crise, o que aprenderemos de útil para as futuras transformações que a mudança climática trará?

Que uma das coisas nas quais temos de nos concentrar, em relação à vida nas cidades, é o quanto poderemos viver adensados. Para questões climáticas, a densidade não é algo ruim. É importante que as pessoas vivam de forma mais compacta, usem o transporte público e não ande cada uma isolada em seu carro. Mas a densidade também pode ser uma ameaça. Por isso, a questão é desenvolver formas para que nossas cidades sejam tanto verdes como saudáveis. Esse é o desafio ao qual eu e meus colegas na ONU estamos nos dedicando agora.

E como as cidades mudarão?

A melhor proposta que ouvi para as cidades ricas é de Anne Hidalgo, a prefeita de Paris: criar nós de concentração, o que ela chama de “cidades de 15 minutos”. Nelas, as pessoas podem chegar de bicicleta ou andando em 15 minutos a um centro que não necessite de transporte público, que pode chegar a ser muito perigoso em casos como o que vivemos atualmente. É uma mudança enorme. Em cidades como Paris, significa reconstruir totalmente a urbe. Seria algo mais parecido com Londres, que é uma espécie de acúmulo de muitas cidades entre as quais você pode se deslocar a pé.

E as cidades que não são ricas?

Infelizmente, no sul essa não é uma opção viável. As pessoas vivem em subúrbios ou favelas a horas de distância de onde trabalham. Imaginar que pudessem chegar andando é apenas uma fantasia. A única forma pela qual poderiam conseguir isso seria através do controle estatal de toda a indústria e da descentralização de toda a produção. Economicamente, seria muito complicado. No grupo da ONU em que estou trabalhando estamos imaginando opções para São Paulo. Existem maneiras de, pelo menos, criar redes de comunicação para que as pessoas saibam o que acontece no resto da cidade e possam reagir. Imaginemos que um bairro estivesse muito afetado pela covid-19 ou semelhante. Pelo menos o resto poderia se proteger não passando por esse bairro. Não é uma grande opção, mas há tão pouco dinheiro na maioria das cidades dos países em desenvolvimento que a situação é completamente diferente. A não ser que haja uma mudança maciça na economia e no poder estatal, é mais uma estratégia de adaptação.

E sobre o sistema econômico, que lições aprenderemos?

O liberalismo, como força econômica, enfraqueceu nossa rede de salvação, aquela que nos ajuda em caso de crise. Ele transformou o Estado de bem-estar em algo que não funciona. O Estado está nos ensinando a fazer máscaras porque não pode nos prover delas! Em meu edifício, criamos novas formas de comunicação entre os moradores porque não temos outra maneira de fazer isso através de nenhum órgão público. Nós mesmos tivemos de criar as conexões. O Estado estará fraco demais para enfrentar a mudança climática. Caso houvesse escassez de água, não seria algo que os capitalistas resolveriam. Teremos de mudar a economia e decidir como supriremos a ausência do Estado.

Que diferenças vê entre as duas crises, a provocada pela pandemia e a que está sendo gerada pela mudança climática?

A grande diferença entre a crise que vivemos atualmente e a mudança climática é que a crise atual é abrupta e acentuada. Para tentar frear a pandemia, você pode confinar a população, fazer exames… O problema com a mudança climática é que é algo muito lento, seus efeitos não são dramáticos. A questão do aumento da temperatura no planeta e particularmente nas cidades é algo que vai acontecendo ano após ano. Em uma década, não haverá um momento em que digamos: “Ah, temos um problema” ―ele estará sendo gerado. Devemos começar a nos preparar para algo que vai ocorrer daqui a 20 anos, e custa fazer isso.

O que acredita que, na esteira desta crise, deveríamos fazer para manter um equilíbrio entre nossa segurança e nossa liberdade?

Não podemos ter as duas coisas. Qualquer atividade é um risco. E isso nos leva a tomar decisões concretas em função de quanto risco estivermos dispostos a assumir. Sempre há opções na vida. Você pode anular todo o risco adotando o modelo autoritário, o modelo chinês, mas não queremos viver dessa forma. Filosoficamente, já escrevi muito sobre este assunto. A insegurança é um assunto no qual todos os adultos devem pensar. Em que aspectos você se sente inseguro, e como. No caso da pandemia, não estou preocupado com minha própria morte, mas gostaria que houvesse o máximo de segurança para meus netos, proteção para a família. A liberdade é sempre um risco. Em minha opinião, a melhor maneira de lidar com isso é através do Estado de bem-estar social.

 

 

Ministério da Educação só propôs ações minúsculas na crise da Covid-19, por Priscila Cruz

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Ministro não se engaja por soluções, desrespeita instituições e faz declarações racistas

Priscila Cruz – Folha de São Paulo – 13/06/2020

Encontro no “Livro do Desassossego”, de Fernando Pessoa, uma síntese da dissonância que estamos vivendo: “Uns governam o mundo, outros são o mundo”.

O aumento do isolamento ético, programático e de propósito de autoridades públicas —notem que não é mais possível falarmos em lideranças públicas— em relação à população; o abandono do interesse público em benefício de um projeto de poder, não de país; o populismo do ódio, da negação e da desconstrução, ao invés da formulação de soluções, trabalho duro e busca por resultados.

Alguns políticos nos vêm à cabeça. Entretanto, tratarei aqui dos efeitos desse modo de governar no Ministério da Educação e o que deve ser feito. Nota importante de partida: os efeitos da pandemia são gigantescos. A inação do MEC não pode ser perdoada.

Comecemos com o que deveria ter sido feito pelo governo federal e não foi, tendo como premissa a redução dos efeitos devastadores na segurança alimentar, na aprendizagem e no aumento das desigualdades entre os alunos da educação básica.

Falar do que não foi feito não é pisotear o passado. É fazer um retrato em preto e branco dos últimos 90 dias. Enxergar o escuro nos dá a dimensão do que precisa ser feito se quisermos reconstruir o país a partir do investimento nas pessoas, o que se mostra, pela história de diversos países, ser a melhor estratégia para o desenvolvimento social e econômico duradouros.

Pois bem, em uma República Federativa, com divisão de responsabilidades intrincadas, a primeira ação deveria ter sido a formação de um gabinete tripartite —União, Estados e Municípios— para a definição de respostas imediatas à crise e monitoramento da situação, formulação de soluções e coordenação de esforços de implementação.

Muito poderia ter sido feito, iniciando com a segurança alimentar dos estudantes e apresentação ao Legislativo de medida provisória que autorizasse estados e municípios a usar os recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) de acordo com as condições locais.

No campo da aprendizagem, o gabinete tripartite de gestão federativa poderia ter identificado estratégias para o ensino remoto mais eficazes com base em evidências, ter promovido a troca ágil de melhores experiências nacionais e ter realizado o levantamento da extensão e das experiências de ensino remoto.

Sobre a conectividade, poderia ter buscado junto ao setor privado parcerias e apoio para garantir a ampliação da conexão à internet a estudantes e a redes de ensino.

O MEC poderia, ainda, em articulação com estados e municípios e com o melhor interesse do avanço do ensino público brasileiro, ter se empenhado junto com o Congresso Nacional na aprovação do novo Fundeb e na tramitação da lei que institui o Sistema Nacional de Educação, fundamentais para a acelerar a recuperação da educação e garantir que, no futuro, o sistema esteja melhor preparado para enfrentar crises.

Em vez de engajamento para encontrar soluções, assistimos à distopia espetaculosa de um ministro em ataques a governadores e prefeitos, declarações racistas e desrespeito às instituições —o que parece uma tática para esconder a inoperância escancarada da sua gestão.

Não bastassem as falas desencontradas sobre a realização do Enem, nada empáticas com os alunos, o que produziu foram medidas sem a menor chance de prosperar, como a MP 979, que pretendia lhe dar exclusividade na indicação dos reitores das universidades e institutos federais durante a pandemia; e ações minúsculas frente ao impacto que o um ministério poderia ter, como a série de vídeos Tempo de Aprender.

 

Felizmente temos uma comunidade mobilizada pela educação no país, de educadores, organizações da sociedade civil, gestores estaduais e municipais e gestores escolares, sem esquecer o protagonismo do Conselho Nacional de Educação na formulação das diretrizes de ensino remoto em vista da suspensão das aulas presenciais.

Infelizmente, porém, são esforços insuficientes. Muito terá que ser feito para recuperar impactos desse período e para isso precisamos de competência, coordenação e articulação.

Com uma atuação pífia antes da pandemia e agora escancaradamente desastrosa, a manutenção do atual ministro no cargo não tem razão que não seja satisfazer outros interesses. Se isso ocorrer, entrará para a história como um grave episódio de lesa-humanidade, lesa-brasileiros.

Priscila Cruz é cofundadora e presidente-executiva do Todos Pela Educação, é mestre em administração pública pela Harvard Kennedy School of Government

 

 

Informar mais pobres de maneira incompreensível freia o desenvolvimento, diz Nobel de Economia

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Michael Kremer, professor de Harvard, diz que crise do coronavírus pode servir como empurrão para uso mais intenso de tecnologias simples

Érica Fraga – Folha de São Paulo – 13/06/2020.

A informação transmitida de forma incompreensível para os mais pobres pode ser uma barreira maior ao desenvolvimento econômico do que a falta de tecnologia ou de interesse dos governantes.

Essas são algumas conclusões que o economista norte-americano Michael Kremer, professor da Universidade Harvard, tira de seu trabalho dedicado à avaliação de políticas públicas, que lhe rendeu o Prêmio Nobel de Economia ao lado de Esther Duflo e Abhijit Banerjee, em 2019.

Os três foram reconhecidos por mostrar que experimentos semelhantes aos testes da eficácia de remédios na medicina poderiam ser usados para mensurar o impacto de soluções para problemas como dificuldades de aprendizagem.

Nos últimos anos, Kremer tem focado o desenvolvimento de mecanismos desse tipo para aumentar a eficiência de pequenos produtores rurais em países da África e da Ásia.

Assim como um estudo antigo do economista mostrou que livros didáticos são pouco úteis para alunos pobres se eles não entenderem seu conteúdo, suas pesquisas recentes indicam que muitos agricultores não compreendem a linguagem técnica de orientações oferecidas por governos.

“Houve um caso em que forneciam orientação com base no pH [nível de acidez] do solo. Bem, os agricultores podem não saber o que é pH e, certamente, não sabem qual é o pH do seu solo”, disse Kremer em entrevista à Folha.

Em parceria com o Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA), o economista trará, agora, para a América Latina ferramentas que testou em nações como Quênia e Índia.

Na semana passada, ele participou de uma agenda intensa de reuniões com representantes do IICA e de um debate online com Manuel Otero, presidente da instituição.

Nesses encontros, ressaltou que a crise do coronavírus pode servir como empurrão para o uso mais intenso de tecnologias simples, via celulares, na comunicação com pequenos produtores.

O vencedor do Nobel também está envolvido em uma iniciativa que busca convencer governos e empresas a investir pesadamente na busca por uma vacina contra a Covid-19 assim como em fábricas para a sua produção.

“Esse é um investimento que países de renda média também deveriam estar fazendo”, afirmou o Prêmio
Nobel de Economia.

Quais são os principais fatores que freiam o aumento da produtividade de pequenos agricultores em países pobres e em desenvolvimento?

Muito da pobreza no mundo está concentrada em áreas rurais. Há muitos fatores que impactam a renda na agricultura, como acesso à terra, educação limitada, mas também a informação.

Nesse contexto em que a tecnologia agrícola está mudando, seja pelo surgimento de novos meios de produção, novas pragas e mudanças climáticas, os fazendeiros precisam de acesso à informação e às melhores recomendações científicas.

Tradicionalmente, essa informação é fornecida por agentes de instituições oficiais de extensão [formação] rural, que visitam os fazendeiros pessoalmente. Esse é um canal muito importante, mas muito caro.

A maior parte dos fazendeiros tem telefones pelos quais conseguem pegar informações sobre as mais recentes evidências científicas, formatadas sob medida para os desafios particulares que afetam suas regiões, as sementes que estão usando, as condições meteorológicas, a época da safra.

Os celulares são uma ótima ferramenta para alcançá-los neste momento em que a Covid-19 nos dá um empurrão extra para usarmos as tecnologias disponíveis para interagir remotamente.

A linguagem da ciência é normalmente complicada, e, no meio rural, principalmente o mais pobre, há uma barreira educacional. Como resolver isso?


Temos feito muitos trabalhos em países da África oriental, como Quênia, Etiópia e Ruanda, e, com outros colegas, na Índia e no Paquistão. Há abordagens que incluem mensagens de texto, dependentes do nível de alfabetização, mas outras que incluem mensagens de voz.

É possível ter sistemas pelos quais os fazendeiros recebem mensagens de voz e podem até escolher previamente os tópicos que lhes interessam ou preocupam, a língua que preferem.

Temos evidências científicas, com outros pesquisadores, dos ganhos enormes em termos de custo e benefício que eles podem ter com as tecnologias existentes.

Na conversa com Manuel Otero, o sr. disse que o trabalho dos economistas é buscar evidências e que caberia à ciência política responder sobre como governos reagem a elas. Os economistas não deveriam se preocupar com essa questão do convencimento dos governos também?


Inicialmente, em minha carreira, acho que fui um pouco cínico demais sobre governos, o que pode soar estranho, porque, normalmente, as pessoas começam idealistas, aí deparam com a realidade nos governos e se tornam cínicas.

Mas, nesse caso da agricultura, descobrimos, muito consistentemente, que os governos normalmente são responsivos às evidências.

Bem, para ser um pouco cínico, acho que os governos têm interesse em agradar aos fazendeiros porque há muitos votos nas áreas agrícolas. Mas, se há algo barato, eles se interessam. Se é caro, talvez não.

Mensagens de celular são baratas. E acho que as pessoas nos ministérios da Agricultura realmente se importam, querem transmitir os conteúdos adequados. Mas os funcionários dessas áreas escrevem mensagens muito técnicas, que os fazendeiros têm dificuldade de entender.

Como vocês têm ajudado nisso?

Realizamos muitos grupos focais com os agricultores para descobrir que mensagens eles entendem. Muitos governos tinham dados que nos ajudaram também. Fomos testando ideias para descobrir o que funcionava.

Na Índia, o governo estava prestes a iniciar um programa de larga escala para distribuir informações para os agricultores sobre a qualidade do solo. Fizemos entrevistas com eles e descobrimos que não
entendiam esse conteúdo.

Estavam apresentando muita informação de forma complicada, mencionando unidades que os agricultores não conheciam. Então, trabalhamos com o governo para criar mensagens de telefone muito simples e isso aumentou dramaticamente a compreensão.

Não houve nenhuma resistência da parte do governo, uma vez que eles viram as evidências. Mas tenho certeza de que há outros temas em que é diferente, quando há muitos interesses financeiros envolvidos, corrupção ou algo mais.

Em um estudo antigo, o sr. descobriu que livros didáticos melhoravam o desempenho apenas dos melhores alunos. Pode haver um problema comum, de comunicação incompreensível, atrapalhando áreas diversas como educação e agricultura?

Sim. No trabalho muito inicial com o qual estive envolvido, descobrimos que o livro didático que o Ministério da Educação estava produzindo em escolas muito pobres, no Quênia, ajudava os alunos que já estavam entre os melhores, mas não os estudantes típicos.

Com o tempo, outros pesquisadores mostraram que não é que os alunos não conseguem aprender, mas que você precisa desenvolver materiais baseados no que já sabem. A partir daí, eles conseguirão alcançar os conteúdos mais avançados e progredir na aprendizagem.

Acho que, de fato, há uma analogia com a agricultura. Houve um caso em que o serviço de informação telefônica fornecia orientação sobre o que o agricultor deveria fazer com base no pH do solo. Bem, os agricultores podem não saber o que é pH e, certamente, não sabem qual é o pH do seu solo. Mas, se você desenvolver uma mensagem compreensível, ela terá mais impacto.

No Brasil, pequenos agricultores têm dificuldade em compatibilizar sua produção com o mercado consumidor. Mensagens de texto podem ajudar nisso?

No Quênia, uma empresa grande de açúcar deveria fornecer fertilizantes e sementes aos agricultores. Mas algumas vezes atrasava ou não fazia a entrega por problemas internos de administração. Então, criaram uma linha telefônica cujo objetivo não era enviar conteúdo aos agricultores, mas coletar informações deles. Isso levou a uma queda dramática nas falhas de entregas.

Há um estudo muito interessante de Robert Jensen que olhou o mercado de peixes. Com telefones celulares, os pescadores, ainda no mar, passaram a poder ligar para os mercados e descobrir os preços. Isso permitiu que ganhassem mais dinheiro e beneficiou também os consumidores. Haverá ganhos ainda maiores quando estivermos não só fornecendo informações mas indo além e as integrando, por exemplo, às cadeias de oferta.

Qual é sua expectativa em relação ao trabalho que fará na América Latina?

Já trabalhei na Colômbia, avaliando um programa educacional que fornecia recursos para crianças de áreas pobres irem para a escola secundária. Descobrimos resultados muito bons.

Já fui a conferências no Brasil, que é um país maravilhoso, mas não trabalhei ainda aí.

Minha impressão é que os governos têm dados muito bons na América Latina. Além disso, por serem países com renda média, e não baixa, mais recursos estão disponíveis, há economistas e especialistas em agricultura muito bons, que podem implementar as ferramentas adequadas.

O sr. está envolvido em discussões sobre a busca pela vacina contra o novo coronavírus. Como tem sido isso?

Obviamente, esse é um assunto-chave para o Brasil e para o mundo. Muitas vidas
estão sendo perdidas, e as perdas econômicas são da ordem de US$ 375 bilhões mensais. Se conseguirmos uma vacina semanas ou meses mais cedo, economizaremos bilhões de dólares.

Isso significa que vale a pena investir um montante enorme de recursos para tentar descobrir uma vacina e mesmo para instalar uma fábrica para sua produção antes de termos os resultados dos testes.

Claro que há o risco de você fazer a fábrica, o resultado da vacina não ser efetivo e parte do investimento ser perdida, mas o custo desse risco é muito pequeno relativo ao custo de não ter uma vacina.

Estou particularmente preocupado com a situação dos países de renda média. Em países como os Estados Unidos, já há parcerias com empresas farmacêuticas grandes para a produção. Os países de renda muito baixa, representados pela Gavi (entidade de disseminação de vacinas), levantaram recursos para isso também, pelo menos para a fase inicial.

Esse é um investimento que países de renda média também deveriam estar fazendo.

 

Perigo são patógenos originados dos animais silvestres, diz Jared Diamond

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Biogeógrafo afirma ter cautela ao comparar Covid-19 com pandemias do passado

Reinaldo José Lopes – Folha de São Paulo – 13/06/2020

Autor do best-seller “Armas, Germes e Aço”, uma das análises mais importantes sobre o impacto das doenças infecciosas sobre a história humana, o biogeógrafo americano Jared Diamond, 82, diz que é preciso cautela ao comparar a Covid-19 com outras pandemias do passado.

Além de ser menos letal do que o sarampo e a varíola, que dizimaram boa parte da população indígena do Novo Mundo logo após o contato com os europeus, o novo coronavírus representa também uma fase relativamente recente da história das moléstias emergentes, afirma Diamond.

As doenças infecciosas mais importantes do passado costumavam vir de animais domésticos, enquanto o maior perigo atual são os patógenos vindos de espécies silvestres, por meio do contato gerado pela devastação ambiental e pelo tráfico de animais.

Diamond, que conta ter perdido cinco amigos próximos por causa da Covid-19, afirma ter esperanças de que a doença mostre como a cooperação internacional é imprescindível para enfrentar os grandes desafios globais, em especial a mudança climática.

Muita gente tem comparado o impacto do novo coronavírus ao efeito das doenças infecciosas europeias sobre os povos indígenas na Era dos Descobrimentos. Até que ponto o sr. acha que a analogia é válida?

Por um lado, é verdade que, assim como o mundo inteiro hoje no caso do coronavírus, os povos do
Novo Mundo não tinham defesas naturais contra as doenças trazidas pelos europeus.

Já os habitantes da Europa, por causa de milênios de exposição a esses patógenos, tinham certo nível de imunidade genética a tais doenças, por efeito da seleção natural, e principalmente a imunidade adquirida a elas ao longo da vida. Ou seja, eles também podiam ficar doentes e morrer de sarampo ou varíola, mas alguns já estavam imunes por terem tido essas doenças antes e sobrevivido, e outros sofriam sintomas mais leves, ao contrário dos indígenas.

Por outro lado, a analogia não é muito precisa por dois motivos. A Covid-19 só se espalhou com tanta velocidade graças às viagens de avião de hoje, enquanto em 1500 as doenças dependiam de viagens marítimas ou terrestres lentas para se propagar. E, claro, não há como comparar a letalidade relativamente modesta do corona, de cerca de 1%, com a das doenças da Era dos Descobrimentos. Só o sarampo matou entre 20% e 30% dos indígenas das Américas.

Mas a letalidade de 1% depende do uso de medicina moderna, certo? Sem a tecnologia atual, ela não seria muito maior?

Alguns dados sugerem que na verdade ela não seria muito maior em épocas pré-modernas. A Covid-19 atingiu duramente a população da reserva indígena dos navajos [sudoeste dos EUA], onde não há infraestrutura médica e, em muitos casos, nem água encanada. A mortalidade é alta, mas nem chega perto da causada pelo sarampo na época colonial [de cerca de 6.000 infectados do povo navajo, 300 morreram até agora, uma letalidade de 5%].

O aparecimento de doenças como a gripe aviária, a Sars e agora a Covid-19 na China têm levado o público a enxergar o território como a grande fonte de novas pandemias ao longo da história. Essa impressão é justificável?

Não. Historicamente, a China não desempenhou um papel especial no surgimento de pandemias. Trata-se de algo que surgiu nos últimos 30 anos ou, no máximo, 50 anos. As principais doenças infecciosas do Velho Mundo, como o sarampo, a varíola e a tuberculose, apareceram nos mais variados lugares da Eurásia, e não há razão para acreditar que a China tenha desempenhado um papel na sua origem.

A África Subsaariana provavelmente é a fonte da malária, enquanto a dengue surgiu na Ásia tropical. A China parece ter sido importante na origem da peste bubônica e da gripe, mas durante a maior parte do tempo essas doenças não tiveram impacto significativo no Novo Mundo.

O Velho Mundo como um todo produziu a grande maioria das doenças infecciosas por dois motivos importantes: a presença de animais domésticos de grandes portes como bovinos e suínos, que não existiam nas Américas e foram a principal fonte dessas moléstias; e o fato de que os grandes símios [como chimpanzés e gorilas] e os demais macacos do Velho Mundo são geneticamente muito mais próximos do ser humano do que os macacos do Novo Mundo. Com isso, era mais fácil que as doenças dos primatas do Velho Mundo infectassem também as pessoas.

O que explica a importância da China nos últimos 30 anos é o fato de que a maioria das doenças de animais domésticos que podem nos infectar já saltaram para a população humana faz tempo, de modo que só as vindas de espécies selvagens podem se tornar novas pandemias.

A China se consolidou como mercado importante para animais silvestres vivos e também para produtos derivados deles para a medicina tradicional, o que aumenta o risco. Um fenômeno parecido envolvendo o consumo de carne de caça explica o surgimento de vírus como o HIV, o Ebola e o Marburg na África.

A intensificação da pecuária industrial também não aumenta esse tipo de risco? 

É verdade que a criação de animais em escala industrial aumenta o risco de novas doenças. Empacotar porcos e bois num espaço exíguo aumenta a transmissibilidade de doenças, e novas cepas de gripe muitas vezes vêm de suínos, mas a probabilidade de que algum patógeno fundamentalmente novo venha desses animais é pequena.
Se um visitante maligno do espaço sideral, um ser de seis pernas da galáxia de Andrômeda, resolvesse criar um plano para causar mal à humanidade, ele provavelmente pensaria: “Vou convencer esses terráqueos a criar mercados cheios de animais selvagens”.

O sr. buscou compreender as causas do fim de civilizações em “Colapso”. Há algo na pandemia atual que revele fragilidades da civilização do século 21? 

Acho que podemos dizer que ela é frágil em um aspecto: o que a Covid-19 está fazendo é ameaçar o futuro do comércio internacional. E o paradoxo é que, para ser franco, a taxa de letalidade da doença é baixa, mesmo quando comparada a outras pandemias recentes. A letalidade da Aids foi alta durante muito tempo, mas com efeito no longo prazo. O Ebola e o Marburg matam 50% ou mais dos infectados, mas sua transmissibilidade é baixa, o que impediu o pior. O coronavírus, apesar de efeitos normalmente modestos sobre a saúde individual, afeta a estrutura das conexões internacionais: contatos sociais e tecnologia do transporte moderno baseado em caminhões, ferrovias, aviões.

Em muitos países, parece ter havido um aumento da confiança da população na ciência por causa da pandemia. O sr. concorda que se trata de um sinal positivo?

É claro que é difícil falar de um lado positivo dessa pandemia. Eu e minha mulher perdemos cinco de nossos amigos próximos por causa da Covid-19, tem sido terrível. Mas é um sinal de esperança, sem dúvida. Com exceção do atual governo federal dos EUA, que é anticientífico, ignorante e estúpido, trata-se de um efeito positivo.

Mas o mais importante seria a compreensão sobre como precisamos lidar com problemas em escala global. Não adianta cada país controlar apenas a sua situação interna: se a Mongólia, digamos, continuar com a transmissão do vírus, o mundo inteiro pode acabar sofrendo de novo.

As vacinas vão vir, muito provavelmente, mas o mundo ainda vai ter de lidar coletivamente com os desafios muito maiores da mudança climática e da perda de recursos naturais. Minha esperança é que a Covid-19 ajude as pessoas a reconhecer isso.

E as coisas estão conectadas, certo? A destruição ambiental está diretamente ligada ao surgimento de patógenos. 

Sim, as pandemias recentes mostraram que o contato próximo entre seres humanos e animais selvagens, que é resultado da exploração desenfreada de ambientes naturais, é muito perigoso.

O sr. está escrevendo um novo livro?

Sim, como eu sempre digo, enquanto estou respirando e com o coração batendo, estou escrevendo (risos). Mas prefiro contar qual é o tema numa próxima ocasião.

RAIO-X

Jared Diamond, 82, Biogeógrafo, é professor da Universidade da Califórnia em Los Angeles e escritor; estuda a interface entre teoria da evolução e história da humanidade; é autor de “Armas, Germes e Aço” (1997, ganhador do prêmio Pulitzer) e “Colapso” (2005), entre outros

 

 

‘A pandemia vai reprogramar muitas das nossas cidades’

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Coronavírus acelerou tendências de prazo mais longo, como a digitalização do varejo, a mudança para o trabalho remoto e a ‘pedestrianização’ das cidades, diz diretor do Instituto Igarapé

Pablo Pereira

Estado de São Paulo, 14/06/2020

Ao mesmo tempo em que coloca em xeque o futuro dos “open offices” e, consequentemente, deve levar à revisão de políticas de mobilidade, a pandemia provocada pelo novo corovavírus não significa o fim da densidade populacional ou da forma como vivemos nos grandes centros urbanos no mundo. A opinião é de Robert Muggah, diretor do Instituto Igarapé. “Embora algumas pessoas certamente venham a se afastar das cidades, não veremos uma desconcentração maciça e uma mudança para os subúrbios”, afirma.

Ele também chama de “fictícia” a ideia de que, a partir de agora, veremos cidades mais “verdes”, com menos carros e mais espaço para pedestres e ciclistas. Mas diz que é inegável que muitas das cidades devem ser “reprogramadas” após o período de confinamento. Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista:

Quais são as principais mudanças que devem ocorrer nas cidades após a pandemia?

A pandemia está transformando muitos aspectos da vida das cidades em tempo real, sobrecarregando os hospitais, interrompendo o comércio, forçando as pessoas a ficarem fechadas dentro de casa e restringindo o acesso a espaços públicos. Na ausência de uma vacina ou de antivirais adequados, muitas dessas mudanças poderão se tornar permanentes. As cidades já vinham enfrentando problemas crônicos, déficits e escassez de receitas antes da epidemia. Hoje, sua prioridade no curto prazo é salvar vidas, prestar serviços essenciais e manter a lei e a ordem. Mas no longo prazo necessitarão aprender a fazer mais com menos. Muitos prefeitos e Câmaras Municipais em todo o mundo não estão concentrados apenas em conter a doença, mas estão revendo também os seus planos para evitar um próximo surto. No período mais imediato, introduzirão testes rápidos maciços e sistemas de monitoramento digital dos contatos; prédios e espaços públicos terão de ser reformulados tendo em vista o distanciamento social, e deverão reforçar os sistemas de saúde para enfrentar ameaças futuras. A pandemia da covid-19 também vem acelerando tendências mais profundas de prazo mais longo, como a digitalização do varejo, a mudança para o trabalho remoto, a localização da produção de alimentos, a energia renovável distribuída e a “pedestrianização” das cidades. Seria exagerado dizer que a covid-19 mudará todos os aspectos da vida na cidade. A ideia de que as cidades estão de algum modo condenadas é um exagero. Não vemos uma fuga em massa para os subúrbios ou uma ascensão da distopia. Mas a expectativa de que em breve veremos cidades verdes, livres de carros e com mais espaços para bicicletas também é fictícia. O fato é que haverá fatores empurrando as pessoas a partirem do seu local de origem e também fatores que atrairão uma população para outra área ou lugar. O que sabemos é que a pandemia vai reprogramar muitas das nossas cidades.

Como a distância social afetará o trabalho, o lazer e a movimentação das pessoas nas cidades a partir de agora?

O distanciamento social ou físico terá efeitos de curto e longo prazo na vida cotidiana. Muitas cidades introduzirão testes em massa e até espaços de emergência digitais – essas medidas devem variar, dependendo da intensidade das ondas futuras. O que isso significa em termos práticos é que máscaras faciais, testes biométricos, vistos de imunização e outras restrições serão generalizados. Devemos esperar um aumento de gastos em saúde pública e “cercas virtuais”, além de sistemas de monitoramento de contatos para manter as pessoas resguardadas. Pode-se dizer que a mudança mais significativa é no sentido do trabalho remoto e digitalizado. Isso já vinha ocorrendo, mas vem se acelerando rapidamente por causa do chamado “onboarding” digital em larga escala. Facebook, Apple, Twitter, Microsoft já têm um grande número de empregados trabalhando off-site, alguns deles de modo permanente. Muitas startups já declararam a morte do escritório. Isso tudo obviamente terá grande impacto sobre o espaço de escritório e o futuro dos centros das cidades no mundo todo. Algumas cidades também sofrerão mudanças nos espaços públicos onde as pessoas se reúnem. Devemos esperar reformulações em tudo, desde os edifícios de escritórios aos shopping centers e arenas esportivas. O “open office” acabou neste momento. E também veremos novas rotinas em termos de trabalho e mobilidade, incluindo uma redução do volume de pessoas em linhas de metrô e ônibus próximos a elas.

A pandemia também vem acelerando um boom na virtualização dos espaços público e privado. Galerias, museus e sítios históricos já vinham oferecendo visitas digitais e essas ofertas aumentarão. Isso não é obviamente um substituto para o turismo, mas é o futuro – o modelo de negócio no qual se baseiam e a monetização dessas ofertas não estão ainda claros, mas devemos esperar uma expansão delas. E já estamos observando uma rápida virtualização do sistema de delivery de serviços, especialmente em termos de saúde e educação. Desde o surgimento da covid-19, temos visto uma transição importante no campo dos ensinos primário, secundário e universitário. Este é um teste para o futuro. E também vimos uma explosão dos serviços de telemedicina – agora mais possível de acabar com as divisões digitais. Isso está acelerando uma tendência no sentido de serviços impulsionados pelas pessoas e possibilitados pela Inteligência Artificial. Algumas dessas mudanças de curto prazo permanecerão. A pandemia não está apenas arruinando o turismo em muitas cidades, mas está devastando o modelo de negócio subjacente de grandes novas companhias, como AirBnB e Uber. As duas empresas serão obrigadas a mudar radicalmente seu modelo e pelo menos uma delas talvez não sobreviva. Como cidades que dependem do turismo em todo o mundo vão se recuperar, incluindo o Brasil, é uma grande pergunta. Claramente, haverá um grande foco na promoção do turismo doméstico.

Há uma possibilidade de mudanças reais como a emergência de um novo sistema de transporte urbano, hoje baseado em metrôs, ônibus e carros particulares?

A covid-19 está levantando perguntas fundamentais sobre o futuro do trânsito, incluindo o transporte público e o tráfego de massa. No médio prazo, aviões, trens e ônibus, incluindo os serviços de carona como Lyft e Uber, terão dificuldade para continuar com o mesmo número de passageiros sem ajustes no tocante ao distanciamento social – devemos esperar medidas para melhorar a higiene e reduzir a superlotação. O futuro do automóvel é mais incerto. De um lado, o uso do carro pode aumentar à medida em que as pessoas evitarem usar o transporte público, o que pode gerar aumento perigoso dos congestionamentos e emissões. De outro, há também potencial para uma redução do uso do carro, provocada pelas mudanças no ambiente de trabalho. As empresas de aluguel de carros observaram uma queda dramática da demanda, e os futuros desafios econômicos devem reduzir novas compras de veículos. É possível também que vejamos um florescimento do transporte de massa sustentável e da “pedestrianização”. Medidas temporárias adotadas em algumas cidades, de Milão a Melbourne, para criar pistas para bicicletas e cidades abertas durante a crise da covid-19 se tornaram permanentes. Muitas cidades estão agora pavimentando e convertendo ruas em caminhos para bicicletas. As cidades futuras serão mais “caminháveis” e com mais bikes, cidades onde podemos chegar ao destino em 15 minutos. Isso não reduz apenas o congestionamento, mas melhora a saúde pública, diminui a poluição e até mesmo o crime.

O senhor imagina que, com o isolamento social, as comunicações digitais podem transformar a maneira como os cidadãos interagem? E como o senhor vê questões como a proteção da privacidade digital e dos dados? É possível, por exemplo, estabelecermos uma educação a distância qualificada?

Com a covid-19 forçando as pessoas a trabalhar e interagir online, o mundo viveu em apenas alguns meses o equivalente a dez anos de digitalização. Alguns países e cidades já estavam investindo pesado em serviços eletrônicos e expandindo a banda larga para seus habitantes. E este processo vai continuar em muitos lugares do mundo. Essa virtualização gerou eficiências e melhorias. T também acelerou a adoção de serviços remotos de educação e saúde (embora seja muito cedo para dizer se isso vai dar certo ou não). Ao mesmo tempo, viver em um mundo dominado pelo Zoom e por algoritmos que moldam nossos hábitos de consumo reduz a possibilidade do inesperado e da criatividade – exatamente as coisas que fazem a vida na cidade valer tanto a pena.

A massiva digitalização dos serviços também tem um lado sombrio. Alguns governos (de mentalidade autoritária) estão expandindo a vigilância e implementando tecnologias invasivas em nome da saúde pública. Nos países democráticos, o tema do rastreamento de contatos inspirou um importante debate sobre a natureza da proteção e da privacidade dos dados. Essa discussão está mais avançada na Europa e na América do Norte, mas vem se espalhando pelo resto do mundo. Também estão surgindo questões importantes sobre os efeitos da covid-19 na governança. A doença já está atrapalhando a realização de eleições e manifestações, com consequências para a integridade da democracia e dos direitos humanos. A grande questão não é apenas como fazer campanhas e audiências públicas em um mundo digital, mas também como garantir eleições digitais seguras.

Nos últimos anos, os planejadores urbanos vêm trabalhando para aumentar a densidade populacional nas cidades, com o intuito de reduzir custos e promover uma convivência baseada na proximidade das pessoas. O que vai acontecer agora? É possível tomar a direção oposta?

A densidade é uma grande virtude das cidades. Como observou o economista Paul Romer, vencedor do Prêmio Nobel, a capacidade dos aglomerados de pessoas para agregar inovação e produtividade é uma força irresistível. O fato é que as cidades compactas também conseguem facilitar os serviços sociais e de saúde, reduzir o isolamento social e proporcionar todos os outros “bens” para uma cidade saudável. A covid-19 não significa a morte da densidade. Embora algumas pessoas certamente venham a se afastar das cidades, não veremos uma desconcentração maciça e uma mudança para os subúrbios. Os assentamentos humanos têm sido focos de contágio por milhares de anos. Apesar disso, as pessoas talentosas sempre retornam às cidades, atraídas pela perspectiva de melhores empregos, salários mais altos e estilos de vida mais interessantes do que no interior. Mas o que a covid-19 revelou é como a densidade também pode se reproduzir e intensificar vulnerabilidades em certos segmentos da população – especialmente os pobres, os idosos, os doentes crônicos e os grupos minoritários. O problema são as condições econômicas e sociais estruturais, não a densidade em si. O que a covid-19 também pode fazer, paradoxalmente, é aumentar a disponibilidade de moradias populares, à medida em que os espaços comerciais ficarem vagos e forem reaproveitados e que algumas pessoas se mudem para os subúrbios recém-gentrificados. Muito mais perigosa que a densidade são a superlotação e o acesso desigual aos serviços básicos. Em muitas cidades de baixa e média renda, especialmente nas favelas e assentamentos irregulares, os pobres vivem amontoados em edificações precárias e mal ventiladas, o que facilita a propagação da doença. Muitos não têm acesso a água potável, saneamento básico e nem mesmo eletricidade constante. Essas pessoas muitas vezes se espremem em ônibus lotados para ir e voltar do trabalho. A indeterminação dos direitos de propriedade garante que os pobres urbanos não tenham acesso a muitos serviços públicos básicos ou ferramentas bancárias e de crédito.

Um dos setores mais afetados pela pandemia nas grandes aglomerações urbanas de hoje é o comércio. O senhor acha que as coisas voltarão a ser como antes? Ou teremos o sistema Amazon como modelo para abastecer as famílias?

A pandemia de covid-19 forçou uma pausa na globalização. Desacelerou não apenas o movimento de bens e serviços, mas também o turismo e as viagens. Além disso, apressou o processo de desagregação das cadeias de alguns países, principalmente da China. Vimos muitas empresas adotando medidas para encurtar suas cadeias de suprimentos e deixar a produção mais local. Essas tendências já estavam aparentes antes do surto e provavelmente vão se intensificar nos próximos anos. Isso será particularmente traumático para indústrias, empresas aéreas e grandes redes de hotéis. Além disso, a covid-19 tem sido devastadora para empresas de pequeno e médio portes que não se posicionaram rapidamente na internet. A maioria das lojas do mundo está vendendo seus produtos – de computadores a peças de automóveis – no ciberespaço. Embora algumas delas tenham recursos suficientes para enfrentar a crise (inclusive subsídios do governo), muitas entrarão em colapso porque não conseguirão sobreviver a choques prolongados de oferta e demanda. Grandes varejistas online, como a Amazon, a Shopify e, agora, o Facebook, vão se dar bem. Infelizmente, muitos pontos de venda menores estão correndo risco muito maior, apesar de serem os ativos que dão identidade e personalidade às cidades.

‘Bairros precisam ser mais do que loteamentos, devem ser reinventados’

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Crises tendem a acelerar decisões que em tempos normais demorariam anos ou décadas, como a retomada da vizinhança como referência para as atividades diárias, afirma professor

Pablo Pereira – Estado de São Paulo, 14/06/2020

Jeferson Tavares, professor no Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP (IAU-USP)

O momento atual, na visão do professor Jeferson Tavares, da USP, é uma oportunidade de pensar em uma sociedade mais solidária, que incentive a retomada de políticas públicas voltadas ao combate de desigualdades. Ele também acredita na reconstrução da identidade cidadão-cidade, perdida em bairros sem qualidade urbanística. “Quantos bairros conhecemos que não passam de um aglomerado de casas?”, questiona. “Nesses lugares, o cidadão perdeu a identidade com a cidade, e essa identidade precisa ser reconstruída pela base social”.

O professor também defende, para um futuro próximo, sistemas de cidades baseados na cooperação. “Em vez de espaços isolados, podemos construir cidades que cooperem entre si e por isso sejam mais eficazes no combate dos conflitos comuns”.

Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista:

As cidades mudarão a maneira como funcionam? Ou a vida seguirá no mesmo modelo?

Para entender a difusão do vírus da covid-19 é necessário entender o processo de urbanização do nosso território. No Estado de São Paulo, temos evidências de que o vírus se propagou seguindo a rota das principais rodovias e se difundiu a partir das cidades mais centrais. Ao longo de todo o século 20, o Estado estruturou-se por eixos e polos, e são esses elementos da urbanização que estão na base da interiorização da pandemia. As primeiras e principais cidades atingidas ou são cidades-sede das regiões metropolitanas ou sedes das regiões administrativas, indicando que, mais importante que o adensamento, é a conexão desses polos com outras cidades que tem acentuado a disseminação na escala regional. Ou seja, numa pandemia, compreender o território é elemento central para a prevenção e o combate da doença. É difícil prever exatamente quais mudanças ocorrerão no meio urbano, mas entendo que é uma oportunidade de pensar uma sociedade mais solidária, a começar por romper as barreiras históricas da desigualdade do desenvolvimento territorial que levou à precariedade habitacional e urbana, à vulnerabilidade social e ambiental, e à falta de condições mínimas de moradia. É possível traçarmos um quadro das prioridades e a principal delas, certamente, é retomar políticas públicas que combatam essas desigualdades e respeitem as diversidades regionais.

Como o trabalho, o lazer e a movimentação das pessoas nas cidades vão mudar daqui para a frente?

Crises tendem a acelerar decisões que em tempos normais demorariam anos ou décadas para serem tomadas. Desde o urbanismo racionalista de fins do século 19, a divisão monofuncional instalou-se como regra nas cidades e o lugar de trabalho tornou-se distinto do lugar de morar. As críticas a esse modelo são conhecidas há mais de 50 anos e hoje a mudança parece iminente, mas sem alternativas concretas. Haja vista a improvisação do ambiente doméstico para as atividades profissionais. Por outro lado, um indício importante é a retomada da vizinhança como referência para as atividades diárias. Os deslocamentos mais curtos, a valorização das opções do bairro e a integração social comunitária convergem como possibilidades a serem exploradas. Nesse aspecto, os bairros precisam ser mais que loteamentos, precisam ser reinventados. Quantos bairros conhecemos que não passam de um aglomerado de casas sem nenhuma qualidade urbanística? Nesses lugares, o cidadão perdeu a identidade com a cidade. E essa identidade precisa ser reconstruída pela base social.

São Paulo tem cerca de 8 milhões de usuários por dia no sistema público de transportes. Existe a possibilidade de mudanças no transporte urbano?

O transporte urbano é essencial para a qualidade de vida nas cidades. Se hoje é lugar de aglomerações é porque sua frota e/ou sistema não atendem à demanda. É preciso investimento e planejamento, porque ele interage com a estruturação urbana e sua qualidade e eficiência ajudam a tornar a cidade mais justa ao garantir acesso as infraestruturas urbanas, aos serviços públicos e às ofertas de emprego. É necessário integrar os meios de transportes ativos (caminhadas e bicicleta, por exemplo) aos motorizados e transformar as estações em marcos urbanos, pois em sua maioria – e principalmente nas periferias pobres – essas estações representam um lugar de cruzamentos de fluxos de pessoas e produtos sem representar sua importância para a vida contemporânea.

Durante anos, os urbanistas trabalharam para aumentar a densidade populacional nas cidades para reduzir custos e promover convivência baseada na proximidade das pessoas. O que vai acontecer agora? É possível um caminho no sentido contrário?

As economias de aglomeração como estratégias de ordenamento territorial ajudaram a produzir a cidade do século 20 que conhecemos. Mas estamos vivendo uma tendência à dispersão do tecido urbano com a profusão de condomínios residenciais, industriais e de serviços em áreas rurais, fora da mancha urbana e ao longo de rodovias. Essa dispersão força uma diminuição das densidades populacionais, rompe a dicotomia campo-cidade e centro-periferia, mas não representa uma solução adequada porque esse modelo tem intensificado a segregação social, a dependência do automóvel como principal meio de locomoção e a ocupação de áreas verdes cuja função ambiental é suprimida. Estamos vivendo um dilema entre cidades compactas e cidades dispersas que ofusca a essência do debate: é possível um novo modelo de desenvolvimento urbano?

O senhor acha que haverá uma mudança nas diretrizes, por exemplo, com mudanças sanitárias na infraestrutura de coleta de lixo nas ruas e nas residências?

Sem dúvida. Numa crise sanitária, o saneamento é central, sobretudo nos assentamentos precários. A falta de água potável atinge cerca de 40 milhões de pessoas. O déficit habitacional chega a 6,5 milhões de moradias. Some-se a isso as áreas de risco em encostas ou sobre córregos que são agravadas pelo descarte inadequado de lixo. Nas regiões metropolitanas, a desigualdade social acentua esses problemas nos bairros mais pobres. As soluções devem ser integradas aos projetos de urbanização e são urgentes. Atender à demanda é o mínimo a ser feito, mas dar segurança e qualidade de vida deve ser o principal objetivo.

Um dos setores mais afetados pela pandemia nas grandes aglomerações urbanas de hoje é o comércio, principalmente lojas de rua e empresas locais, como restaurantes e bares. O senhor acredita que isso voltará a ser como antes?

Desde os anos 1980, no Brasil, temos acompanhado o esvaziamento da rua pelo argumento da violência e a emergência de formas alternativas de serviços que quase sempre partem da precarização do trabalho informal. Fato é que a origem da cidade é a aproximação, a reunião e o encontro. Na vida urbana, não podemos abandonar a defesa do uso do espaço público. Ruas, praças, parques e calçadões são os lugares que concretizam a esfera pública do convívio. Ao contrário do que se pensa, valorizá-los é uma estratégia para manter a saúde física e mental dos cidadãos. E a vida econômica urbana está ligada a eles.

Existem pensadores que já planejam cidades com áreas independentes, o que facilitaria qualquer necessidade futura de isolamento em caso de futuras epidemias. O senhor acredita que é possível que tenhamos cidades policêntricas em vez das grandes cidades de hoje no futuro?

A descentralização de serviços e a constituição de uma estrutura policêntrica faz parte das políticas mais progressistas de desenvolvimento urbano e estão no centro da democratização da cidade. Portanto, não necessariamente significa independência, mas melhor redistribuição de estruturas de bem-estar social aproximando-as de seus usuários. Numa escala ainda mais ampla, pesquisadores têm estudado o fenômeno da cidade-região como uma nova forma de compreender a realidade urbana. A análise desse fenômeno no contexto brasileiro leva-nos a sistemas de cidades que estejam baseados na cooperação. Ou seja, em vez de espaços isolados, podemos construir cidades que cooperem entre si e por isso sejam mais eficazes no combate dos conflitos comuns.

Quais seriam as mudanças imediatas em metrópoles gigantes de hoje, como São Paulo, Rio, NY, Tóquio, Londres, Paris?

Vivemos num momento de cidades globais, megacidades e megalópolis como paradigmas atuais do urbanismo mundial. Mas a desigualdade, a precariedade e a segregação social nas grandes cidades brasileiras tornam nossa realidade diferente dos casos estrangeiros. Para combater esses problemas, sintetizo três urgências: formar novas instituições de planejamento a partir de uma visão territorial, sistêmica e interescalar; reconhecer que a dinâmica das cidades não está submetida às divisas municipais e, portanto, as principais soluções exigem um diálogo de cooperação interfederativa; e incorporar as águas urbanas nas diferentes escalas do planejamento. Precisamos tensionar os paradigmas de onde as decisões são tomadas para constituir cidades com mais urbanidade. Advogo pela cidade como artefato inacabado cuja perenidade está vinculada à dignidade do trabalho humano que o construiu.

 

The Economist: Jair Bolsonaro ameaça a democracia?

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Desde que assumiu o governo, em janeiro do ano passado, muitos brasileiros temem o risco que ele representa

The Economist, O Estado de S.Paulo 

13 de junho de 2020

Em muitos fins de semana desde que a covid-19 chegou ao Brasil, os apoiadores do presidente Jair Bolsonaro realizam manifestações em Brasília e São Paulo, para demandar a reabertura da economia, parcialmente submetida a um lockdown, o fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso e o retorno do regime militar dos anos 1964/1985. Alguns estão armados. Em Brasília, Bolsonaro com frequência se junta a eles, distribuindo abraços e apertos de mão e desafiando as regras de saúde estabelecidas. Nem ele e nem as pessoas usam máscaras no rosto.

Desde que Bolsonaro, antigo capitão do Exército com ideias de direita, assumiu o governo, em janeiro de 2019, muitos brasileiros temem a ameaça que ele representa para a democracia. Alguns argumentam que as instituições do País são fortes o bastante para freá-lo. Na verdade, o presidente lotou o seu governo com oficiais militares. Mas eles são vistos como tendo uma influência moderadora e as manifestações são pequenas.

As tensões aumentaram nas últimas semanas. Bolsonaro se tornou mais ameaçador, ao se dirigir ao Congresso afirmando que “o tempo da vilania acabou, agora é o povo no poder”, e ao Poder Judiciário dizendo “acabou, porra!” Alguns ministros militares, a começar pelo vice-presidente Hamilton Mourão, general aposentado, também fizeram ameaças veladas contra o STF, o Congresso e a mídia.

Em uma mensagem pelo WhatsApp vazada no mês passado, o ministro do STF Celso de Mello escreveu: “temos de resistir contra a destruição da ordem democrática para evitar o que ocorreu na República de Weimar “que foi derrubada por Hitler”. “A democracia brasileira está sob uma grave ameaça”, diz Oscar Vilhena Vieira, diretor da faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV). “O presidente não vem tentando apenas criar um conflito institucional, mas também estimulando grupos violentos”.

Deputado durante 28 anos, Bolsonaro nunca mostrou muito respeito pela democracia. E se tornou mais controvertido por duas razões. Em primeiro lugar, o STF iniciou investigações que o envolvem. Uma delas tem a ver com a destituição do diretor da Polícia Federal para proteger um dos seus filhos contra um processo, afirmam seus críticos.

E a outra se refere a apoiadores (incluindo dois filhos dele) suspeitos de orquestrarem acusações falsas e ameaças contra ministros do STF. A segunda razão é que Bolsonaro mostra pouca capacidade para governar. A pandemia amplificou isto. Sua recusa em apoiar os lockdowns e o distanciamento social contribuíram para agravar a propagação da covid-19, com o País registrando hoje quase 40 mil mortes, o terceiro número mais alto do mundo.

Ele vem perdendo apoio popular embora mantenha uma base de 30% de eleitores. Um sinal da sua fragilidade é que ele cada vez mais depende do Exército. Dez dos seus 22 ministros são militares e outros três mil ocupam cargos no governo. “Na verdade, temos um regime miliar”, disse um oficial aposentado. E isto representa um risco para as forças armadas e para a democracia. Bolsonaro tem exacerbado a divisão interna e a politização do Exército, cuja disciplina e hierarquia vêm se desgastando. Muitos oficiais de escalão inferior apoiam Bolsonaro nas redes sociais. Quatro generais com cargos no governo, dois no serviço ativo, têm mais poder do que o comandante das forças armadas, seu superior.

O Exército também coloca em sério risco a sua reputação. Está hoje à frente do ministério da Saúde (onde por um breve período tentou suspender as publicações de dados completos sobre a covid-19), da coordenação política e proteção do Amazonas. “Eles realmente acreditam que sabem como fazer as coisas”, diz um ex-oficial. Eles poderão aprender da maneira difícil, como durante a ditadura, que não sabem. Bolsonaro não parece forte o bastante para desencadear um golpe. Ele enfrenta oposição de muitos governadores.

Embora o vírus tenha temporariamente incapacitado o Congresso, Oscar Vilhena Vieira observa que o STF tem atuado de uma maneira inusitadamente unida. Entretanto, “a democracia pode desaparecer se você não tiver um homem forte”, alerta Matias Spektor, do Centro de Relações Internacionais da FGV. Se Bolsonaro acabar sofrendo um impeachment, Mourão o sucederá, trazendo o Exército para ainda mais perto do poder.

Uma outra ameaça, observa Spektor, é o esvaziamento das instituições democráticas por Bolsonaro, como também a instigação do conflito. Nomeou um procurador geral mais simpático a ele e tem influência sobre as forças de polícia estaduais, como também sobre a Polícia Federal. Uma batida policial silenciou o governador do Rio de Janeiro, que recentemente começou a criticá-lo. Os democratas brasileiros, seus adversários, começam a reunir uma oposição ao presidente. E estão certos em ficar alarmados.

Laura Carvalho fala sobre curto-circuito na política econômica e discute volta do Estado

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Para economista, valorização do papel do governo como indutor do crescimento não é fato consumado

Eduardo Cucolo – Folha de São Paula – 12/06/2020

Dois anos após o lançamento de “Valsa Brasileira: do boom ao caos econômico”, a economista Laura Carvalho (FEA-USP) lança o livro “Curto-circuito: o vírus e a volta do Estado”, no qual defende a necessidade de se repensar as funções do Estado diante de uma crise que tem exigido gastos públicos em níveis sem precedentes em todo o mundo.

Para a economista, a volta do Estado como indutor do crescimento e garantidor de um ambiente de bem-estar social não é um fato consumado. Ela diz também que o elevado nível de endividamento global, inclusive do Brasil, pode gerar uma reação semelhante àquela vista após a crise de 2008-2009, que foi seguida por uma onda de austeridade fiscal e desmonte de políticas públicas em outros países.

Sobre o título do livro, Laura diz que o curto-circuito se refere também à forma como a crise atual obrigou uma equipe econômica alinhada com esse pensamento a agir em sentido contrário e à dúvida sobre como o bolsonarismo irá se colocar diante da possibilidade de que uma política de austeridade atrase a recuperação econômica do Brasil e abale ainda mais a popularidade do presidente da República.

A senhora estruturou o livro em cima de cinco funções do Estado. A pandemia e a recuperação posterior tendem a fortalecer essas funções e a presença estatal?

São cinco funções que a pandemia contribuiu para revelar e para fazer a gente repensar. De forma alguma eu quero dizer que a volta do Estado seja um fato consumado. Não estou anunciando que o Estado voltou. O que eu tento fazer é repensar os papéis do Estado a partir dessa pandemia, muito mais no sentido de propostas do que de uma previsão ou futurologia.

Dessas cinco funções do Estado, quais a sra. considera mais fundamentais hoje e quais serão mais importantes no período de recuperação pós-pandemia?

As duas igualmente importantes hoje são as funções de Estado protetor e prestador de serviços. Eu trato no livro da questão da proteção, da renda básica universal, que é fundamental diante dessa massa de trabalhadores informais e que vêm perdendo sua renda nesse momento e precisam de alguma renda até para conseguir evitar o contágio. Na função de prestador de serviço, principalmente considerando a necessidade de recursos para a área de saúde e de uma gestão mais eficiente. Essas duas são as urgentes. Para o pós-pandemia, para uma recuperação mais rápida da economia, eu colocaria a função de investidor em infraestrutura como aquilo que pode contribuir para dinamizar a economia e, ao mesmo tempo, para superar algumas lacunas históricas que ficaram mais aparentes.

Quando se fala em ação do Estado como investidor e empreendedor, vêm à mente os problemas que ocorreram no governo Dilma Rousseff, o que é usado como argumento por muitos economistas para defender que a recuperação precisa ser puxada pelo setor privado.

A função do Estado como empreendedor tem a ver com uma crítica da política industrial que foi implementada no passado, no governo Dilma, e eu busco refletir sobre um novo modelo de política de desenvolvimento que estivesse ligada às demandas da sociedade e não à ideia de proteger algum setor.

O livro tenta partir de questões da história contemporânea para introduzir conceitos da economia, mas também tentar fazer uma análise crítica do passado mirando uma agenda futura. Em todas essas funções aparece um pouco uma crítica à trajetória e papéis que o Estado veio tendo no Brasil nas últimas décadas, ao mesmo tempo mostrando que alguns dos instrumentos foram importantes para que a gente conseguisse reagir agora, mesmo que de forma insuficiente, como o Cadastro Único, a existência do BNDES, mesmo que não tenha sido aproveitado nessa crise, o SUS. Alguns desses instrumentos vinham sendo desmontados.

A senhora faz um diagnóstico de que a economia brasileira vem, desde a saída de recessão em 2016, em um cenário de estagnação porque se tirou do Estado o papel de indutor do crescimento.

Na situação atual, ou a gente dá sorte de ter o resto do mundo puxando nosso crescimento via exportações ou precisa do Estado. Só tem essas duas maneiras de injetar ânimo em uma situação como essa. Essa pandemia criou uma situação ainda mais dramática por ter vindo sobre uma economia que, ao contrário dos países ricos, não vinha em uma trajetória de expansão, não estava com taxa de desemprego baixa, tinha informalidade recorde. Isso fará com essa crise seja ainda mais grave por aqui e o volume de recursos para responder a isso seja muito maior.

A equipe econômica do governo federal defende uma ideologia econômica que você chama no livro de anacrônica e está tendo de lidar com uma demanda por mais Estado neste momento. A pandemia pode trazer mudanças nessa política econômica?

O título do livro, curto circuito, tem dois sentidos. Um sentido é o curto circuito macroeconômico que a pandemia gerou, o diagnóstico de que as características dessa crise são bem diferentes das crises originadas no setor financeiro, de 1929, de 2008.

Mas o título também vale para a ideia, para a maneira como essas demandas de um Estado maior, muito urgentes, se dão em um ambiente de um governo que não tem essas características e não se preparou para isso. As demandas e as necessidades do momento bateram de frente com essa ideologia da equipe econômica.

O bolsonarismo entrou um pouco em curto circuito na medida em que houve uma ruptura drástica, tanto na política fiscal como na política monetária em relação ao que vinha ocorrendo nos últimos anos. A atuação do Banco Central e da política fiscal é anticíclica, ao contrário do que foi nos últimos anos. Isso em um governo que se propunha a fazer o contrário.

A política econômica continuará nesse caminho nos próximos anos?

Neste ano, a gente teve uma ruptura muito clara. O déficit vai a 7% do PIB, a dívida pública tende a subir para mais de 100% do PIB em alguns anos. Há também uma valorização do papel do Estado pela sociedade.

Agora, dizer que está claro que daqui pra frente haverá uma mudança na postura que incorpore a valorização dessas funções, criando uma agenda econômica nova, que reduza desigualdades, isso a gente não tem como afirmar. Pelo contrário, o Ministério da Economia aponta para uma tentativa de utilizar essa dívida maior para acelerar reformas que reduzam o tamanho do Estado, até de forma mais agressiva do que vinha ocorrendo.

Essa é uma das perguntas do livro. Será que o bolsonarismo abrirá mão daquele fundamentalismo de mercado que ajudou a elegê-lo e a conquistar a maior de parte das elites econômicas desde 2018 ou o manterá, com o risco de perder ainda mais apoio, dado que a gente vai ter um quadro econômico mais difícil daqui pra frente?

A senhora defende no seu livro um sistema de renda básica universal. Qual a sua proposta?

Há duas visões de renda básica.  A ideia do [ganhador do Prêmio Nobel Milton] Friedman de um Imposto de Renda negativo. Abaixo de um certo patamar de renda, as pessoas recebem o benefício e acima pagam imposto. E a renda básica universal, a ideia de que todos têm direito a uma renda mínima.

Isso cria a ideia de que vai transferir para pessoas ricas, porque está dando renda para todos, sem exigir que se comprove nada, assim com no SUS, mas você corrige isso na tributação. A Justiça não vem por tornar os serviços ou direitos mais focalizados, vem ao dar a todos esses direitos de forma universal, mas tributar mais os que ganham mais. É isso o que eu defendo como sistema.

O caminho pode ser gradual, mas é possível financiar um sistema de renda básica para todos, o que substitui os programas existentes, que exigem que se comprove renda. Uma parte do custo sai daí, mas outra parte precisa tirar da tributação progressiva, com a redução de deduções do IR para saúde e educação privadas, isenção para lucros e dividendos e até criando alíquotas mais altas para o topo da pirâmide.

RAIO-X

Laura Carvalho, 36, é professora livre-docente do Departamento de Economia da FEA (Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP) e autora de “Valsa Brasileira: do Boom ao Caos Econômico” (Todavia, 2018). Foi colunista da Folha de 2015 a 2019.

O TCU deve desculpas a Dilma, por Nelson Barbosa.

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Tribunal decidiu fazer apenas uma ressalva às contas de 2019, mudando radicalmente de postura em relação ao que fez durante o governo Dilma Rousseff

Nelson Barbosa – Folha de São Paulo – 11/06/2020

O TCU fez uma “ressalva” às contas do primeiro ano de governo Bolsonaro. Segundo informações da imprensa, em 2019, houve pagamento de R$ 1,5 bilhão em benefícios previdenciários sem respaldo na Lei Orçamentária.

Especificamente, diante do forte contingenciamento de gastos no início de 2019, o governo reavaliou para menos a dotação orçamentária do INSS, de modo a evitar cortes maiores em outras áreas. Porém, com o passar do tempo, a despesa do INSS acabou sendo maior do que o inicialmente esperado, e houve pagamento de R$ 1,5 bilhão de benefícios previdenciários sem autorização do Congresso.

A realização de despesa sem previsão orçamentária viola a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), mas o TCU decidiu fazer apenas uma ressalva às contas de 2019, mudando radicalmente de postura em relação ao que fez durante o governo Dilma Rousseff.

Façamos uma pausa para contar até três e refletir se a atitude do TCU caracteriza ou não dois pesos e duas medidas. Um, dois, três… voltou? Pois bem, prefiro considerar a reviravolta no TCU como aprendizado em vez de má fé. Assim como pessoas, as instituições podem melhorar.

Vou ainda mais longe e parabenizo a todos os envolvidos no TCU pela decisão construtiva em relação do governo Bolsonaro. Ainda bem que agora vocês decidiram poupar o presidente, apontar falha técnica e recomendar sua correção, pois com certeza teria sido pior não pagar R$ 1,5 bilhão a quem tinha direito à aposentadoria no final de 2019.

A mudança no TCU é ainda mais bem-vinda quando lembramos que, em 2016, a presidente Dilma Rousseff sofreu impeachment sob acusação de ter irregularmente realocado verbas orçamentárias por decreto, mas sem gastar um centavo acima do aprovado pelo Congresso!

É verdade que o absurdo processo de impeachment foi do Congresso, não do TCU. Porém, também é verdade que, em 2016, vários membros do corpo técnico do TCU foram ao Congresso acusar a presidente de crime fiscal por realocar verbas sem gasto adicional. Um deles chegou a revelar, em ato falho, que ajudou na redação de um pedido de investigação que ele mesmo avaliou! O referido servidor deveria ter sido afastado, mas no Brasil de 2016… um, dois, três.

Voltando aos dias de hoje, presumo que os mesmos integrantes do TCU que acusaram a presidente Dilma de crime em 2016 tenham mudado de opinião diante da ressalva que deram ao “gasto sem orçamento” de R$ 1,5 bilhão por parte de Bolsonaro. Se for isso, que o bom senso seja eterno enquanto dure e mandem uma carta de desculpas à presidente Dilma.

Também torço para que a reviravolta no TCU seja o início do fim da “idolatria da auditoria e controle” em que nos metemos desde 2005, quando começou a politização da justiça pelo processo do mensalão.

Desde então houve muitas notícias falsas, acusações infundadas na primeira página de jornais e revistas, geralmente por procuradores e auditores em busca de fama, quase sempre só contra pessoas de esquerda, mas sem registro bombástico equivalente quando vários acusados foram inocentados.

Combate à corrupção e maior eficiência na alocação de recursos públicos são deveres de qualquer político, independente de ideologia. Por este motivo relembro que os governos do PT aumentaram a transparência da máquina pública e deram mais poder aos órgãos de controle, mesmo sabendo que isto poderia ser temporariamente desvirtuado por falsos heróis contra o próprio PT. Já tivemos “Batman”, “Super-Homem” e até “Messias”, todos com seu séquito de “minions”, mas no final a verdade sempre aparece.

Nelson Barbosa

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

 

EUA e China podem evoluir para oligarquias, diz Branko Milanovic

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Para economista, há risco de capitalismo liberal caminhar em direção a regime plutocrático

Celso Rocha de Barros – Folha de São Paulo- 31/05/2020

[RESUMO] Nesta entrevista, o economista Branko Milanovic comenta as diferenças e similaridades entre os dois modelos de capitalismo, a relação de ambos com a corrupção e a desigualdade e os efeitos da disputa entre EUA e China sobre a América Latina.

O que aconteceu com o capitalismo desde que ele ficou sozinho no mundo, desde que o único outro “game in town”, o comunismo, desmoronou? Branko Milanovic tenta responder a essa questão em seu livro mais recente, “Capitalismo sem Rivais”, sobre o qual conversou com a Folha em entrevista por email. A editora Todavia lança a obra no país na quarta-feira (3).

Economista, especialista em estudos sobre desigualdade, o autor trabalhou no Banco Mundial e hoje é professor da City University de Nova York. Nas últimas duas décadas, Milanović se consagrou como um dos principais nomes no debate mundial sobre desigualdade —mais especificamente, no debate sobre a desigualdade sobre a desigualdade global.

“As frequentes alusões de Bolsonaro favoráveis ao regime militar brasileiro podem levar a acreditar que uma combinação de capitalismo liberal e político talvez não seja mal vista por alguns”, diz Milanović à Folha.

O senhor escreveu recentemente que a pandemia da Covid-19 poderia ser o “momento Sputnik” da China, o ponto em que o país assumiria a liderança em importantes aspectos mundiais. A analogia com a Guerra Fria ainda faz sentido hoje, quando o mundo está muito mais integrado? A analogia com a Guerra Fria não é perfeita porque a China é muito mais integrada à economia global e mais interdependente dos Estados Unidos que a União Soviética era. Em segundo lugar, a disputa ideológica é muito menos aguda.

Mas também não devemos ser prisioneiros da analogia da Guerra Fria, esquecendo outras disputas entre as grandes potências que provocaram duas guerras mundiais e inúmeros outros conflitos. Penso que é cada vez mais evidente que existe um conflito de interesses real entre a China e os Estados Unidos.

Em algum momento deste século, a China, cuja população é quatro vezes maior que a dos EUA, pode alcançar um desenvolvimento tecnológico inigualável, o que a tornaria o poder econômico supremo.

Nos termos do seu livro, a concorrência entre a China e os EUA é, entre outras coisas, uma competição entre dois tipos de capitalismo, um “meritocrático” (o norte-americano) e um “político” (o chinês). Existem países que poderiam passar de um modelo para o outro em um futuro próximo? Isso dependerá, primeiro, da vontade da China de exportar seu modelo e, segundo, de outros países interessados ​​em aceitá-lo. Acredito que, apesar da relutância histórica da China em impor seus arranjos políticos internos a outros, ela será inexoravelmente levada a fazer exatamente isso devido à grande competição de poder com os Estados Unidos. Agora, quanto à atratividade do “modelo chinês”, acho que é o maior entre as elites modernizadoras nacionalistas.

Tais elites desejam modernizar (desenvolver) seu país e, ao mesmo tempo, ficar isoladas do estrito controle popular. Elas podem achar o modelo chinês atraente. Nesse modelo, podem até aceitar eleições e um sistema multipartidário, mas aos partidos alternativos nunca seria permitido chegar ao poder.

A propósito, a China também possui formalmente vários partidos com assentos pré-designados no Congresso Nacional.

Não são poucos os países que possuem hoje esse sistema: Argélia, Angola, Azerbaijão, Belarus, grande parte da Ásia Central, Etiópia, Rússia, Singapura, Tanzânia, Vietnã. Pode-se até incluir a Turquia e a Hungria.

Qual dos dois modelos acredita ser mais dependente do sucesso da globalização econômica? Eu acho que a China precisa da continuação da globalização ainda mais que os Estados Unidos. Em parte porque ainda é tecnologicamente menos avançada (embora isso esteja mudando rapidamente em algumas áreas) e, portanto, pode se beneficiar mais da globalização e da transferência de tecnologia. Mas as elites nos Estados Unidos também precisam da globalização, pois é uma maneira de enriquecer levando a produção da mão de obra doméstica ocidental, de custo mais elevado, para o resto do mundo.

Costuma-se dizer que o capitalismo foi capaz de absorver pontos fortes dos regimes comunistas (Estado de bem-estar etc.), mas o contrário não aconteceu. Você acha que algo semelhante pode decidir a concorrência entre o capitalismo político e o meritocrático? Essa é uma pergunta interessante. Havia na década de 1960 uma corrente (por exemplo, Jan Tinbergen, John Kenneth Galbraith, Andrei Sakharov) afirmando que os dois sistemas convergiriam: os requisitos tecnológicos em ambos são semelhantes e, argumentou-se, os sistemas socialistas teriam que aceitar uma dose maior dos mercados para crescer mais rapidamente, enquanto o capitalismo teria que aceitar direitos sociais e trabalhistas mais amplos. O último ponto ocorreu, mas não o primeiro. Isso mostrou claramente que o capitalismo era mais flexível.

No final de “Capitalismo sem Rivais”, vislumbro uma possibilidade de convergência entre os dois modelos de capitalismo, mas de uma maneira diferente do que se pensava em relação a uma convergência entre socialismo e o capitalismo. Penso que não se pode descartar a possibilidade de o capitalismo liberal caminhar cada vez mais em direção a uma política plutocrática.

Isso é mais óbvio nos Estados Unidos, onde o dinheiro e os ricos desempenham um papel enorme na política. Isso poderia levar à criação de uma elite político-econômica “unificada” que controlaria tanto a economia quanto a política.

Mas algo semelhante também é visível na China, com a diferença de que lá a elite política tende a tomar para si o poder econômico. No final, ambos os sistemas podem evoluir para uma oligarquia, com a diferença de que, nos Estados Unidos, a oligarquia econômica conquistará o poder político, enquanto na China seria o contrário.

O senhor menciona que a corrupção no capitalismo político não pode ser eliminada, mas tem que ser mantida sob controle. Se a China decidir avançar em direção a um sistema menos corrupto, existe alguma maneira de fazer isso gradualmente? O Brasil recentemente teve um choque anticorrupção que levou a uma intensa turbulência política. Penso que devemos considerar a corrupção como uma característica inerente ao capitalismo político, porque ele se baseia na ausência de Estado de Direito e na capacidade de o Estado tomar decisões que não sejam limitadas pelas regras.

O poder irrestrito do Estado em decisões de importância significativa é uma característica fundamental do capitalismo político e a causa principal da corrupção. Portanto, não vejo como alguém poderia manter o capitalismo político e eliminar a corrupção.

Mas, para preservar a estabilidade política, é importante que o Estado não tome muitas dessas decisões políticas e mantenha a corrupção sob controle (isto é, dentro de alguns limites).

O senhor escreveu que a existência da União Soviética forçou o capitalismo ocidental a se tornar mais igualitário. Acha que concorrência entre os modelos de capitalismo pode afetar os níveis de desigualdade nos dois lados? Não tenho certeza disso, porque os dois sistemas são muito desiguais, portanto a concorrência deles não parece jogar na área da igualdade, mas na área do crescimento econômico.

Na literatura sobre transições pós-socialistas, houve a ideia de “sub-reforma”, o risco de países periféricos ficarem presos na terra de ninguém entre comunismo e capitalismo, com “o pior dos dois mundos”. Pode ocorrer o mesmo com os países da América Latina nesta disputa entre o capitalismo meritocrático e político? Isso não é impossível. Podíamos antes ver os países latino-americanos como democracias consolidadas, mas os recentes acontecimentos na Bolívia, Equador, Venezuela, Nicarágua e El Salvador nos fazem pensar se os sistemas híbridos não podem também reaparecer em outros países da América Latina.

As frequentes alusões de Bolsonaro favoráveis ao regime militar brasileiro, combinadas com a ênfase em destacar o crescimento econômico (que, aliás, foi significativo nesse período), podem levar a acreditar que uma combinação de capitalismo liberal e político talvez não seja mal vista por alguns.

 

Pandemia tirou mundo de rota suicida do sistema econômico tradicional, diz Nobel da Paz

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Muhammad Yunus afirma que crise é oportunidade para livrar humanidade de modelo que cria e sustenta pobreza

Folha de SÃO PAULO – 01/06/2020.

O vencedor do Prêmio Nobal da Paz Muhammad Yunnus vê a crise causada pelo coronavírus como uma oportunidade para o mundo redesenhar o sistema econômico tradicional, que, segundo ele, havia colocado a humanidade em uma rota suicida.

“Tínhamos acabado de começar a década da última chance”, disse o economista em entrevista por email.

Segundo Yunus, o aquecimento global atingiu seu último estágio, e o aumento da desigualdade de renda se transformou em uma “bomba-relógio de raiva e desconfiança”.

Nascido em Bangladesh, país pobre da Ásia, Yunus ganhou notoriedade ao criar, em 1976, o Grameen Bank, instituição dedicada a emprestar recursos a pequenos empreendedores de baixa renda.

Por essa iniciativa, recebeu a alcunha de “pai do microcrédito” e foi laureado —ao lado do banco que fundou— com o Nobel da Paz em 2006, pelo seu papel no combate à pobreza.

Depois disso, uma tentativa de entrar para a vida política colocou Yunus em choque com Sheikh Hasina, atual primeira-ministra de Bangladesh. O economista preferiu não comentar o tema na conversa com a Folha.

Afastado do Grameen desde 2011, Yunus, que fará 80 anos em junho, dedica-se a outros empreendimentos, inclusive no Brasil, onde é sócio da Yunus Negócios Sociais.

O economista disse que seu sonho no país é criar um empreendimento social numa zona “desmilitarizada de intenções agressivas” na Amazônia.

Para Yunus, o mundo espera que o Brasil exerça uma maior liderança em assuntos globais.

Recentemente, participou, ao vivo de Bangladesh, do debate “No going back talks”, promovido pela instituição no Brasil para discutir o mundo pós-pandemia. O evento foi acompanhado por 6.000 pessoas, segundo os organizadores.

O sr. escreveu recentemente que a crise do coronavírus é uma oportunidade para que o mundo se reinvente. O que precisa ser reinventado? 

Antes de essa crise começar, a contagem regressiva para o fim da sobrevivência humana neste planeta já havia começado. Tínhamos acabado de começar a década da última chance. O aquecimento global atingira seu último estágio. A concentração de riqueza chegou a um nível tal que tornou o mundo uma bomba-relógio de raiva e desconfiança.

A inteligência artificial ameaçava criar desemprego em massa. Nós estávamos nos aproximando rapidamente da linha final. A pandemia nos salvou de tudo isso, levando o sistema à paralisia. Criou uma tremenda oportunidade para nos distanciarmos da rota suicida dos dias pré-coronavírus e criarmos um novo mundo livre de todos esses perigos.

O que sugiro é a criação de um novo tipo de negócio que contrabalance o antigo. Um modelo que seja exclusivamente dedicado a solucionar os problemas das pessoas e que não gere lucro para seus donos. É o que chamamos de negócio social.

Mas houve desenvolvimentos positivos também nas últimas décadas?

A tecnologia mudou tudo e estará por trás das mudanças do futuro. Mudou os jovens, tornando-os mais independentes e empreendedores. Graças à tecnologia da comunicação, as distâncias desapareceram. A inteligência artificial está mudando os sistemas de saúde dramaticamente.

Mas a tecnologia também desempenha papéis negativos. Tem ajudado a falsidade a competir com a verdade. A inteligência artificial tem ameaçado a própria existência humana neste planeta. Continua a viabilizar a produção de armas de destruição em massa.

No balanço geral, o mundo vinha se tornando pior?

Podemos fazer uma lista impressionante de coisas que conquistamos para o planeta e as pessoas. Evitamos o holocausto nuclear e a Terceira Guerra Mundial. Conquistamos o espaço. A economia global cresceu a um ritmo sem precedentes. Houve conquistas impressionantes na saúde e na educação. A tecnologia transforma o mundo rapidamente. Todas essas conquistas ainda vão longe.

Mas, enquanto nos orgulhamos delas, simultaneamente, temos de reconhecer que empurramos o mundo ao limite de sua sobrevivência. Todas essas conquistas se tornam sem sentido diante de todas as ameaças. Levamos o mundo a um estágio em que nossos adolescentes são obrigados a nos culpar por privá-los da vida deles.

Uma questão que surge naturalmente é: quem nos dá o direito de destruirmos o futuro das nossas futuras gerações? Não temos resposta aceitável.

Não podemos negar que esse feito é nosso. Mas o ponto importante é que podemos desfazer isso e criar um mundo de felicidade perpétua. É uma questão de escolha. Mas não estamos fazendo essa escolha. Por quê? Isso me intriga.

A desigualdade de renda aumentou, mas a pobreza caiu bastante. Isso é positivo? 

Claro que sim. É uma das conquistas mais gloriosas. Não devemos minimizar sua importância. Milhões de pessoas ultrapassaram a linha da pobreza em tempo recorde, mas elas continuam muito próximas dela. Sua vulnerabilidade aparece agora novamente durante a pandemia da Covid-19. De repente, elas voltam para baixo da linha da pobreza.

Esse sobe e desce não pode ser uma solução sustentável. Elas não merecem isso, para começar. São seres humanos tão criativos como todos os outros. A pobreza não foi criada por elas. É o sistema econômico que cria e sustenta a pobreza. A pobreza torna a injustiça da máquina econômica visível. Ela é facilmente visível porque é muito cruel.

Como a crise do coronavírus incentiva a reinvenção da economia?

Esta crise criou uma oportunidade enorme porque derrubou o sistema atual. Quando uma cidade grande é, inesperadamente, atingida por um terremoto e é totalmente destruída, ela cria a oportunidade para reconstrução a partir do zero. Devemos construir uma cidade como a antiga ou desenhá-la de forma totalmente diferente? É exatamente essa pergunta que precisamos nos fazer agora.

A crise do coronavírus cria uma oportunidade, não um incentivo. O incentivo vem da nossa experiência do mundo pré-corona, quando debatíamos quanto tempo o mundo ainda tinha antes de atingir sua linha final. Era o incentivo para mudar drasticamente e escapar do desastre iminente, que se tornava mais forte a cada dia. Mas havia poucas oportunidades. Agora, a crise cria uma megaoportunidade.

O sr. já identificou mudanças positivas na sociedade desde a eclosão dessa crise?

Nosso principal objetivo é redesenhar o motor econômico que nos trouxe a esse ponto. Temos de criar um mundo que garanta zero emissão líquida de carbono, zero concentração de riqueza, zero desemprego.

No processo de redesenho, temos de fazer o seguinte: o novo sistema começa com mudanças conceituais, fazendo todo negócio que visa ao lucro se tornar social e ambientalmente responsável. O lucro a todo custo não será mais permitido. O sistema novo introduzirá o negócio social.

É quase o inverso dos negócios convencionais. Em vez de maximização de lucros, ele trabalha com zero lucro pessoal. É dedicado a solucionar os problemas das pessoas. Esses negócios sociais têm de estar no centro do nosso novo mundo. Diremos aos jovens que eles não são caçadores de empregos, mas criadores de empregos, empreendedores.

O novo sistema redesenhará todo o sistema financeiro, tornando-o, majoritariamente, baseado em negócios sociais, garantindo que todos os serviços financeiros estarão disponíveis aos 50% dos homens e mulheres da parte inferior da pirâmide social.

Todos os desempregados receberão ativos para começar suas empresas. O sistema educacional será redesenhado para preparar os jovens para começar suas vidas como empreendedores.

Como os governos podem ajudar nesse redesenho? 

O papel dos governos é inspirar e mobilizar os indivíduos e envolver os negócios na construção de outros negócios sociais focados em solucionar os problemas das pessoas; ajudar a criar empreendedorismo entre os jovens; dar apoio legal e regulatório. Sua principal responsabilidade será remover barreiras legais e regulatórias para a criação de novas instituições financeiras e novos negócios.

Com base em sua experiência com a Yunus Negócios Sociais no Brasil, quais são as principais barreiras à inovação no país?

Yunus Negócios Sociais no Brasil enfrenta os mesmos problemas que em outros países. Os sistemas financeiros são construídos para propósitos diferentes dos nossos. O sistema legal, institucional, não foi desenhado para atender os 50% da base, aqueles que realmente precisam de acesso a linhas de crédito para suas iniciativas. Mas não desistimos. Sabemos que o futuro está do nosso lado.

Uma de nossas conquistas no Brasil indica isso. Com apoio do escritório Mattos Filho Advogados e sua sócia Marina Procknor, nosso time criou um fundo de investimento inovador que serve exclusivamente a negócios sociais. Sete investimentos já foram feitos, em setores como educação, reflorestamento e construção.

Continuamos a perseguir nosso projeto dos sonhos no Brasil, que visa à criação de uma empresa social brasileira para transformar um pedaço grande da floresta amazônica numa área protegida de incêndios e outros ataques, criando qualidade de vida para as famílias que morem nessa área. Convidamos empresas brasileiras e internacionais a juntarem-se a nós nesse projeto.

Nosso desejo é fazer desse negócio social uma “zona desmilitarizada” em que todos trabalhem juntos por um propósito comum, não importa o quão antagônicas sejam suas ideias fora dela. Todas as armas e intenções agressivas seriam deixadas de fora dessa zona. Precisamos da ajuda de vocês, brasileiros, para identificar uma área apropriada para esse projeto.

Que aspectos positivos vocês destacariam com base na experiência no Brasil?

Brasil se tornou um poder econômico e social, se transformou muito rapidamente. Ganhou respeito global por suas conquistas, se tornou um líder em transformação social. O mundo acompanha os passos do Brasil com enorme interesse. Debates políticos e sociais do Brasil são de grande interesse para o mundo.

Mas eu tenho a impressão de que o Brasil não está muito ciente de sua influência global. Espero que se torne mais envolvido com o resto do mundo e ofereça a liderança que o mundo espera de vocês. Isso beneficiará ambos os lados.

 

“A ‘economia donut’ satisfaz as necessidades de todas as pessoas, mas dentro dos limites do planeta”, Entrevista com Kate Rayworth.

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Para Kate Rayworth (Londres, 1970), a economia deveria ter a forma de um donut, de uma rosquinha. Esboçou uma teoria que rompe com o mercado da forma como é hoje. Propõe deixar de buscar riqueza à custa dos limites ambientais e da justiça social. Sua teoria foi apresentada como um documento de trabalho para Oxfam, em 2012, depois conquistou protagonismo na Assembleia Geral da ONU e foi uma referência para o movimento social Occupy London.

Defende uma transição da que chama economia do século XX para a do século XXI, na qual o PIB, um índice finito, seria substituído por uma rosquinha que relaciona as necessidades humanas com o impacto ambiental da economia na sociedade e na Terra como ente vivo.

A entrevista é de Belén Kayser, publicada por Rebelión, 16-05-2020. A tradução é do Cepat. Publicado no Brasil 20/05/2020.

Nota do Instituto Humanitas Unisinos IHU: Amanhã, quinta-feira, Kate Raworth proferirá a conferência ‘Designing a regenerative and distributive economy‘ promovida por A Economia de Francisco. On-life seminars. Moving towards a post-Covid better World.

Estudou economia, mas não se sente economista. Por quê?

Defino-me como uma economista renegada e me parece razoável. Acredito no conceito grego de economia como a arte de administrar o lar. A Universidade deveria reconhecer que o sistema de produção e distribuição depende da sociedade e do mundo vivo, onde está integrado, e da saúde de ambos. A economia é interdependente da saúde e dos recursos do planeta, são as fontes às quais recorre. Todos os economistas deveriam repensar os indicadores do mundo em que vivemos e questionar como lidamos com os nossos recursos planetários. Isto deveria ser o ponto de partida: a natureza é inerente à economia.

O que quer dizer, quando pede para abandonar a concepção do século passado?

Nos anos 1870, os economistas fizeram uma analogia entre as leis do movimento de Newton e a economia: assim como a gravidade atraía coisas para ela, os preços iriam atrair a economia para o equilíbrio. O problema é que, enquanto a ciência avançou, a economia ficou no século XIX. Se a questão é administrar seu lar, primeiro você precisa entender como funciona. Aprender da psicologia, da neurociência, da sociologia, da antropologia e da ciência terrestre. É preciso colocar à frente o bem-estar humano e planetário e a saúde de ambos. O indicador do crescimento é o PIB, mas deveria ser a prosperidade humana. É preciso traçar que tipo de mentalidade econômica, instituições, políticas e estruturas são necessárias para isso.

Propõe uma nova estrutura em forma de ‘donut’. O que significa?

É um diagrama que almeja condensar o salto do velho para o novo pensamento econômico. O desafio é criar economias locais e globais que levem a todos o espaço seguro e justo do donut [o anel principal, por baixo do qual estão as carências do sistema e, por cima, os excessos]. Em vez de perseguir um PIB cada vez maior, é hora de descobrir como prosperar de forma equilibrada. A economia donut satisfaz as necessidades de todas as pessoas, mas dentro dos limites do planeta. Que tipo de economia do século XXI poderá fazer isto?

Por que é tão importante o meio ambiente em seu sistema?

O bem-estar humano depende da terra viva. Se quisermos ter comida suficiente, precisamos de solos férteis e um clima estável. Se quisermos viver de forma saudável, precisamos de ar limpo e uma camada de ozônio. Nosso bem-estar depende dos sistemas que suportam a vida na Terra. Estes foram mal compreendidos no século passado e deixados à margem da teoria econômica. É hora de colocá-los no centro de nossa visão de bem-estar.

Como sua teoria propõe repartir a riqueza?

É preciso pré-redistribuir as fontes de crescimento e de conhecimento. Por exemplo, auxiliar para que a propriedade seja distribuída, compartilhada, com energias renováveis, e que as comunidades sejam proprietárias. O crescimento das licenças de código aberto é um conhecimento de forma distributiva. Em relação à moradia, apoiar um modelo mais distributivo, por exemplo, mediante cooperativas. A reforma é profunda. Mais que confiar na redistribuição de renda, é preciso pensar em instituições mais distributivas e pensar em como criar uma economia com tecnologia, com desenho.

Em que a gestão centralizada e a distributiva se diferenciam?

Pensemos na energia fóssil: era extraída, refinada e vendida. Isso era uma gestão centralizada nas mãos de uma empresa que possui os direitos de uma exploração e que gere tudo. No caso da energia, a distribuição por desenho seriam as pequenas estações solares de uma casa. No século XX, a propriedade se tornou muito importante, um campo de batalha entre companhias, com suas patentes e a propriedade intelectual. Haviam boicotes para que a inovação não crescesse. Hoje, temos creative commons, licenças de uso coletivas e padrões abertos, outra forma de distribuição por desenho. Em matéria de instituições, é possível aplicar o mesmo modelo e mudaria seu comportamento.

Como deveríamos mudar, então, a forma de fazer negócios?

Perguntando-nos: Por que uma companhia pode explorar os recursos da Terra com a bandeira de conseguir lucros e aumentar as vendas? Por que tem o direito de minar os direitos sociais? O desenho das empresas do século XXI precisa gerar valor social, ambiental e cultural, compartilhar e beneficiar a criação conjunta e a devolver ao planeta do qual dependemos. Então, rapidamente as empresas velhas ficarão realmente velhas, caducas, não terão lugar. Mas, cuidado, há empresas que querem repensar seus modelos e podem ocorrer casos como a da mal chamada economia colaborativa: que sejam negócios de antes, com o disfarce novo.

Você não acredita na economia compartilhada?

As mudanças de modelo, tecnológicas e de uso sempre trarão consigo possibilidades muito distintas, mas a palavra compartilhar implica outras coisas mais humanas e profundas na natureza. Nunca chamaria o Airbnb de economia compartilhada. Isto é microcapitalismo, continua sendo aluguel, não é compartilhar, ainda que o termo esteja tão ampliado. A tecnologia nem sempre defende distribuir de forma igualitária os recursos. A rede, por exemplo, está dominada pelo Facebook, EbayGoogle… bem poucas empresas levam a vantagem das redes em que estão.

A Internet retrocedeu?

A Internet 2.0 se tornou algo muito concentrado, mas nem sempre foi assim. A Internet 1.0 abrigava redes mais autênticas, com mais valor. Estamos nos inícios da Internet 3.0. As pessoas estão começando a reagir, a se rebelar contra tudo, a entender os efeitos negativos dessas redes, dessa Internet. Preocupam-se com a privacidade, os preços dos aluguéis… A Internet terá um valor diferente se formos capazes de criar, de ter outro tipo de redes de colaboração: menores, melhor conectadas entre si e não dominadas pelos grandes da Internet.

Como acontecerá a transição?

Haverá velhos agentes que se transformarão para fazer parte do novo sistema, mas será difícil. Por exemplo, o redesenho concebido pelo donut consiste em que as companhias poderiam começar a vender serviços em vez de produtos: iluminação em vez de lâmpadas.

Que exemplos você conhece que estão neste novo paradigma?

O diretor executivo de Unilever, Paul Polman, está tentando reinventar a companhia, dar a ela um propósito do século XXI, mas segue nas mãos do mercado, negocia na bolsa, continua sendo regido pelo curto prazo. Patagonia é uma empresa que de base possui um sistema distinto, que trabalha para mudar o sistema em que vivemos. Yvon Chouinard (1938, Lewiston) a fundou sobre valores realmente ambientais – é alpinista e ecologista –, é assim na filosofia da marca. Ou Houdini, fundada com base dos limites planetários.

As empresas podem pensar que seu sistema não é possível ser aplicado ao mundo em que vivemos, onde quase tudo é extrativo ou tem obsolescência. Eu falo também em minha teoria da ética. Suponho que não é muito ético fabricar algo que você sabe que irá quebrar.

As pequenas empresas têm maiores possibilidades de se transformar em empresas do século XXI?

É certo que as startups, a priori, têm maiores possibilidades de mudar suas estruturas ou de nascer com um modelo de negócio mais circular, mas quando falo com elas, o que mais repetem é que precisam crescer. É o que mais lhes importa. Nisso está baseado seu modelo. Todas estão competindo no mesmo terreno, ainda que às vezes em mundos paralelos. Você pode centrar seus esforços em ser sustentável e regenerador, mas em última instância depende da estrutura da companhia. Obter o maior retorno e lucros possíveis deve deixar de ser a meta. E a base deve ser a proteção ambiental, não pode ser algo acessório.

Não é partidária de frear os abusos ambientais com impostos. Por quê?

Os impostos, as cotas e os preços escalonados podem contribuir para aliviar a pressão que a humanidade exerce sobre as fontes da Terra, mas são insuficientes. As empresas exercem pressão para atrasar sua execução ou para reduzir os tipos fiscais, obter bonificações… Os Governos cedem porque temem que seu país possa perder competitividade ou que seu partido perca votos. As cotas e impostos que limitam as existências e reduzem os fluxos de poluição pretendem mudar o comportamento de um sistema, mas são alavancas de baixa influência. Quando a indústria é de fabricar, usar e jogar, os incentivos não evitam que os recursos se esgotem. O que se necessita é um paradigma de desenho regenerativo que mude as empresas.

E por onde começamos?

Por exemplo, para retirar do mercado os plásticos de apenas um uso e os produtos com obsolescência, é preciso criar um ecossistema de materiais diferente do que temos e pelas mãos das empresas. Algumas companhias têm em suas fábricas alguns dos engenheiros e desenhistas mais engenhosos e brilhantes, estou certa de que existiriam desenhos mais efetivos, se fosse o seu objetivo. É preciso pensar que todos os materiais, sejam biológicos ou técnicos, sejam metais, fibras que não se decompõem naturalmente, devem ser desenhados para ser reutilizados ou reacondicionados e, em última instância, reciclados.

Olhe, por exemplo, os telefones móveis: em 2010, só foram reutilizados 6%, 9% foram desmontados para reciclar e 85% foi para o lixo. É preciso outro desenho.

O ‘donut’ acabará com a desigualdade?

Das emissões poluentes, 45% partem da demanda de 10% da população. Existe uma enorme diferença no uso que se faz dos recursos planetários. Um dos principais propósitos do donut é criar uma economia regeneradora e reduzir esta brecha. Eliminar os extremos no bem-estar. E uma das razões pelas quais insisto tanto nos limites planetários é a mudança climática. Sei que é um projeto muito audaz para o século XXI, mas é precisamente este o tipo de projeto que devemos abordar, porque não podemos deixar este legado aos que vierem depois e aos filhos destes. E devemos nos sentir orgulhosos de colocá-los como meta.

 

 

Peste Negra reduziu desigualdades mas o coronavírus vai aumentá-las, diz historiador Walter Scheidel

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Professor da Universidade de Stanford, o pesquisador austríaco lança no Brasil livro sobre a história da desigualdade e fala sobre o impacto da covid-19 no mundo

André Cáceres, O Estado de S.Paulo

23 de maio de 2020

Peste, guerra, fome e morte. Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse podem ter significados variados a depender da crença de cada um, mas para o historiador austríaco e professor da Universidade de Stanford Walter Scheidel essas condições significam uma coisa ao longo dos séculos: redução das desigualdades econômicas.

Em seu mais recente livro, Violência e a História da Desigualdade – Da Idade da Pedra ao Século 21 (ed. Zahar), Scheidel defende que o nivelamento das rendas só se deu, em toda a história humana, por meio dessas grandes catástrofes, que ele chama de Quatro Grandes Niveladores — uma dos poucas exceções, de acordo com o pesquisador, foi a América Latina nos anos 2000, que reduziu disparidades por métodos pacíficos e democráticos, mas esse processo não se provou duradouro.

Scheidel utiliza-se de farta documentação histórica para demonstrar como as guerras, epidemias, crises e revoluções foram eventos niveladores. Após a Peste Negra, por exemplo, o contingente de trabalhadores ficou tão reduzido que a mão-de-obra tornou-se valiosa ao ponto de reduzir as injustiças sociais durante vários séculos. Mas esse tipo de nivelamento não deve acontecer, segundo ele, após a atual pandemia de covid-19.

Há alguma perspectiva de que a atual pandemia provocada pelo novo coronavírus traga efeitos similares de redução de desigualdades ao das grandes epidemias do passado?

Estou muito cético quanto a isso por várias razões. O maior motivo é que a atual pandemia será muito menos severa em termos de mortalidade do que as grandes pestes do passado. Mesmo no pior cenário, a mortalidade será muito menor, em termos de porcentagem da população, e deve afetar ainda menos a força de trabalho, porque a maioria das vítimas são pessoas mais velhas. Salários não devem subir como resultado dessa pandemia, porque a mão-de-obra não se tornará escassa. Então esse efeito não deve aparecer desta vez. Há uma grande quantidade de motivos para crer que a pandemia deve aumentar em vez de reduzir a desigualdade, pelo menos a curto prazo, o que já estamos testemunhando. Há certos grupos de pessoas que estão relativamente protegidas, seus empregos estão seguros, eles podem continuar a trabalhar, e outras pessoas que estão muito mais expostas em determinados setores ou perdendo seus empregos. Então o desemprego está mal-distribuído pela população, como resultado disso a disparidade deve aumentar. Você a vê entre crianças e estudantes, alguns capazes de estudar online e outros sem acesso a esses recursos, e isso deve aumentar as injustiças educacionais também. Na crise de 2008, os ricos perderam inicialmente porque o valor de seus investimentos decaiu, mas eles os recuperaram em um período razoavelmente curto de tempo. Já se vê tendências semelhantes nas bolsas de valores, que não estão indo tão mal, então há uma boa chance que, mais uma vez, os ricos se recuperem mais rapidamente que a maioria da população. Isso deve aumentar a desigualdade. Então ainda que haja algum potencial de nivelamento, isso depende de como políticos, legisladores e eleitores responderão a essa crise e seus efeitos. Qualquer tipo de ruptura tem o potencial de balançar as coisas, e um resultado possível disso é que mais pessoas abracem políticas progressistas de redistribuição de renda, oferecendo mais proteção social e acesso à saúde aos trabalhadores ou aumentando impostos para os ricos. Isso é uma possibilidade, e certamente haverá partidos políticos que tentarão converter a crise em uma motivação para esses programas, mas também haverá uma resistência conservadora considerável, e, no longo prazo, dependerá de quem tem a vantagem. Não é algo que será decidido este ano, mas deve se arrastar por vários anos.

O mundo contemporâneo parece estar repleto de guerras, revoluções, crises e epidemias, mas por que não vemos esse efeito acontecer novamente hoje em dia?

Há muitas guerras, revoluções e epidemias hoje, isso é verdade em certa medida, mas se compararmos com grandes rupturas do passado, o que estamos vivendo atualmente no mundo não chega perto da magnitude do que já passamos. Apenas guerras muito grandes, como as mundiais, reduziram as desigualdades na Europa, América ou Ásia. O fato de a América Latina nunca ter passado por nada como as guerras mundiais ajuda a explicar por que sua disparidade ainda é muito alta. Nunca houve rupturas realmente violentas. O mesmo é verdadeiro para revoluções, não temos nenhuma grande revolução desde a maoista e suas derivadas em meados do século 20. Estados não entram mais em colapso. Eles eventualmente caem em certas partes do mundo, como a África Central e o Oriente Médio, mas em nenhum outro lugar, nem mesmo na Venezuela nesse momento, pelo fato de os Estados serem muito mais resilientes do que eles costumavam ser. E essa pandemia é muito menos severa do que a Gripe Espanhola há um século ou as grandes pragas do passado. Então eu acho que depende muito do quão grave e disruptivo um evento de crise é. Tenho pensado muito sobre isso, porque eu falo em meus livros sobre os quatro grandes niveladores, e eu acho que no mundo temos hoje quatro grandes estabilizadores, que previnem deslocamentos mais traumáticos (que poderiam ter um efeito de redução de desigualdade) de ocorrer. Um é que boa parte do mundo é muito mais rica do que era, o que evita colapsos sociais ou guerras civis, muito mais comuns no passado. O segundo são as redes de seguridade social, que, claro, estão desenvolvidas desproporcionalmente em diferentes partes do mundo, mas mesmo no Brasil há algum grau de segurança que não havia antes, e isso é ainda mais evidente em outros países, evitando que a pobreza chegue a níveis que façam as pessoas se radicalizarem. Também há a habilidade de bancos centrais criarem dinheiro para manter a economia girando, o que não era possível na década de 1930, por exemplo, durante a Grande Depressão, o que provocou um resultado muito diferente. E o quarto fator consiste na ciência moderna e na tecnologia, que ajudam a estabilizar a ordem existente, seja o fato de podermos trabalhar remotamente pela internet, o que não poderíamos fazer há dez ou vinte anos, ou o fato de sermos capazes de sequenciar o RNA do vírus em apenas algumas semanas e termos mais de uma centena de medicamentos ou tratamentos em teste pelo mundo. A ciência é hoje tão poderosa que tem o potencial de nos levar para fora dessa crise em relativamente pouco tempo. E se ela o fizer, então a ordem é novamente estabilizada. Então essa é uma resposta bem longa para a questão de por que não há grandes rupturas hoje como havia no passado. Sociedades, economias e tecnologias evoluíram de modo a manter a ordem existente. Quanto maior a estabilidade, mais a disparidade é favorecida, porque há menos pressão por mudanças. É isso que essencialmente vemos desde o fim da guerra fria, cada vez mais, então creio que a perspectiva de qualquer transformação radical por meio de grandes rupturas está ficando cada vez menos provável.

O sr. menciona brevemente a América Latina dos anos 2000 como um caso bastante único de redução de desigualdades sociais sem grandes choques ou rupturas, mas boa parte das conquistas sociais obtidas no início do século foram se perdendo nos últimos anos. O que o caso latino-americano pode nos dizer sobre desigualdade social no século 21?

O caso latino-americano é fascinante, porque, como eu disse, não houve grandes choques na história recente, o que explica que a desigualdade, que é historicamente alta por conta do colonialismo e outros fatores, tenha se mantido elevada durante o século 20, enquanto reduziu em outras partes do mundo. E depois de 2000 vemos muitos países experimentarem uma redução pacífica de injustiças, o que foi muito interessante, porque parece um contraexemplo à minha tese, de que rupturas violentas são necessárias para que isso ocorra. O que houve na América Latina nesse período foi o resultado de uma combinação incomum de circunstâncias favoráveis. Houve alguma recuperação de crises econômicas anteriores, uma forte desregulamentação nos anos 1990, abrindo as economias para o mundo, mais investimento em educação, transformações políticas e a explosão das commodities na China, então as exportações cresceram e beneficiaram determinados setores da população. E todos esses fatores se alinharam na medida certa para reduzir a disparidade, não drasticamente, mas de forma significativa. E não estava claro naquela época se esse processo era sustentável e poderia se manter por muito tempo. E ele não pôde. Primeiro por causa da guinada econômica no início dessa década, e também por conta da reação política de forças conservadores para derrubar os proponentes de mudanças progressistas no Brasil e em outros países. E, é claro, houve locais em que os próprios progressistas se radicalizaram, como na Venezuela e no Equador, e houve reação política contra isso. Então há muitas razões para explicar por que esse processo não pôde ser sustentado pelos últimos anos, e agora a situação é ainda pior, porque a atual crise deve amplificar esses problemas. Eu não tenho esperanças de ver uma nova redução de desigualdades na América Latina em um futuro próximo, graças às consequências da crise do coronavírus.

É possível haver no futuro mecanismos que favoreçam cenários pacíficos de redução de desigualdades?

É possível teoricamente, mas não parece acontecer muito na prática, então seria ao menos muito difícil. Não é que as pessoas nunca reduziram a disparidade por meios pacíficos, não está limitado ao exemplo latino-americano. Tem acontecido em pequenas proporções por todo o mundo. É possível, mas nunca ocorre em grande escala. Então, se o que você estiver procurando é uma redução maciça da desigualdade em um período curto de tempo, você vai precisar de um choque violento. Se você colocar suas esperanças em mudanças políticas pacíficas, a transformação será gradual e mais lenta, e por isso enfrenta um grande risco de ser desarmada por obstáculos como crise econômica, reação política e outros fatores que interferem nesse processo e o tornam muito mais difícil. Dito isso, há sociedades no mundo que são tão injustas hoje que não é preciso muito esforço para reduzir um pouco de sua disparidade. Se você vive na Suécia, não há muito o que se pode fazer, porque a desigualdade já é muito baixa. Mas se você vive no Brasil, na África do Sul ou nos Estados Unidos, há medidas que se pode tomar pacificamente que teriam um efeito real e não seriam terrivelmente radicais ou dramáticas. E a melhor chance que temos é que tais medidas sejam identificadas e implementadas. Certamente temos um modelo no que ocorreu na América Latina nos anos 2000.

Existe um ponto de equilíbrio no nível de desigualdade de um país que, se atingido, impede ela de voltar a crescer a níveis prejudiciais?

Pode ser que o nível de equilíbrio varie entre países. Nem todos os países são iguais. Se você olhar para países nórdicos que são, ou costumavam ser, muito homogêneos em termos de sua população, poderia ter sido mais fácil há 50 anos estabelecer Estados de bem-estar social altamente redistributivos. Se você vive em sociedades como o Brasil, a África do Sul e os EUA, que são muito mais heterogêneos e diversos, onde há legados de racismo e todo tipo de iniquidade estrutural, o ponto de equilíbrio da desigualdade pode simplesmente ser mais elevado. Talvez não seja possível baixá-lo a níveis escandinavos por causa da maneira pela qual a sociedade está estabelecida. Não quer dizer que seja impossível reduzir disparidades, mas talvez seja necessário ajustar as expectativas do que é politicamente ou socialmente viável em cada contexto. Essa é uma ótima questão que ainda não foi estudada o suficiente, porque não basta apontar para a Dinamarca e perguntar por que não somos como eles, isso não ajuda em nada. Deve-se levar em consideração todas as variáveis. Então a pergunta é: “Qual é o nível realista de desigualdade para o Brasil dadas condições que não mudarão do dia para a noite ou em nossos tempos de vida? O que pode ser conquistado nesse contexto?” Certamente haverá algo a ser feito, apenas não na mesma escala de outros países.

 

 

A economia mainstream sobreviverá à pandemia?

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Economistas neoclássicos não estão acostumados a lidar com pessoas

Folha de São Paulo, 20/05/2020

Marília Bassetti Marcato

 Uma das principais lições da pandemia do novo coronavírus é o risco de eleger lideranças que tenham como hábito ignorar as evidências.

Atualmente, sabemos que idosos e pessoas de qualquer idade com sérias condições médicas subjacentes correm risco maior de contrair doença grave por causa da Covid-19. Pessoas com doença pulmonar crônica ou asma de moderada a grave, pessoas com problemas cardíacos, pessoas imunocomprometidas, pessoas que transplantaram órgãos, pessoas de qualquer idade com obesidade grave, pessoas com diabetes, pessoas com insuficiência renal ou doença hepática. Pessoas.

Os economistas neoclássicos não estão acostumados a lidar com pessoas. Historicamente, eles buscaram artificialmente se separar de outros campos de estudo, isentando-se da exigência de testabilidade empírica tão cara às ciências “duras”. Nesse tortuoso caminho, a economia neoclássica parece ter invertido o objetivo da pesquisa científica de descobrir a realidade sob a aparência, assumindo a forma de uma estrutura analítica cada vez mais formalista, axiomática e dedutiva.

Um “indivíduo sem individualidade” costuma assustar àqueles que não possuem treinamento fornecido em graduações de economia. Em pouco tempo, o aspirante a economista entende que é preciso fazer sacríficos para gerar soluções. Assim, não são incomuns análises econômicas que eliminam o tempo e o espaço, sem qualquer referência às evidências empíricas.

O prodigioso reducionismo da economia neoclássica estabeleceu conceitos e aparato técnico fundamentais para expandir a influência da economia para outras ciências sociais. Segundo Ben Fine e Dimitris Milonakis em “From economics imperialism to freakonomics”, essa característica reducionista teria um caráter triplo. Primeiro, o reducionismo do indivíduo constitui o principal elemento analítico (com o coletivo a partir da simples agregação de indivíduos). Segundo, a economia é reduzida às relações de oferta e demanda de mercado. Por fim, a análise econômica seria baseada em princípios sem apego à história.

Se o mundo real é profundamente diferente, este não parece ser um problema. Para os preocupados com o irrealismo das suposições, Milton Friedman deu a palavra de ordem metodológica: “Não se preocupem com as suposições, apenas observem suas consequências”. Pouco importa se todos os empresários buscam ou não maximizar seus lucros, o que importa é que tudo deve ocorrer como se os mesmos se comportassem de tal forma.

Mas o que restará da economia mainstream após a pandemia?

É certo que se ocupar de problemas concretos é uma virtude rara no meio da ciência econômica dominante, uma vez que não é de hoje que a dita ciência triste escolhe tratar de tópicos com menor probabilidade de suscitar questões de importância fundamental. Mas momentos de crise como o atual incitam perguntas fundamentais sobre a relação entre Estado e mercado que parecem desafiar a nossa compreensão.

A pandemia reforça a necessidade de repensar dogmas sobre o funcionamento da economia. Não há como separar a economia da sociedade e é, portanto, falsa a noção de que o arranjo econômico pode ser analisado independentemente dos processos de saúde pública e das interações sociais. Com isso em mente, não é preciso muito para identificar o descaramento dos sociólogos de mercado brasileiros quando comemoram que o pico da doença nas classes altas já passou.

No entanto, persiste a incapacidade da economia mainstream de considerar o funcionamento e a dinâmica dos sistemas econômicos em seus modelos abstratos e com amnésia histórica. Se todos somos keynesianos em momentos de crise, supor que o mercado é uma máquina autorreguladora certamente contém “um elemento de verdade, um elemento de má-fé e também algum engano” (salve, Braudel!).

Mas há uma esperança. Se a arrogância —traço tão comum aos economistas mainstreams— der lugar ao reencontro da ciência econômica com as demais ciências, em especial as sociais, é possível que os cálculos de quanto vale uma vida sejam deixados de lado.

Caso contrário, caberá à desconfiança popular decretar a morte da ciência econômica antes que a ciência econômica mate o povo.​

Marília Bassetti Marcato

Professora do Instituto de Economia da UFRJ