Imigração virtual inaugura nova fase da globalização e vai beneficiar emergentes, diz especialista

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Para Richard Baldwin, tecnologias vão impulsionar contratação de estrangeiros e ceifar empregos nos países ricos

Raquel Landim – Folha de São Paulo – 07/04/2019

Um dos principais especialistas do mundo em comércio, Richard Baldwin, professor do Instituto de Graduação de Estudos Internacionais e do Desenvolvimento, em Genebra, na Suíça, vai na contramão dos seus pares.

Ele não acredita que a globalização esteja retrocedendo, mas entrando em uma nova fase ainda mais polêmica: a imigração virtual.

Em linhas gerais, imigração virtual são profissionais que moram num país, mas trabalham em outro, por meio de novas tecnologias: Skype, Facetime, softwares de trabalho coletivo, sala de reuniões online, equipamentos de tradução instantânea e até telerrobôs.

“A diferença de preços dos serviços entre nações ricas e países emergentes chega a 10 a 20 vezes. Veremos muito profissionais de Brasil, Argentina, Quênia, Ucrânia, Índia trabalhando para empresas em Nova York e Londres.”

Autor de “Globotics Upheaval” (A revolução dos robôs globais), Baldwin diz que a nova onda representará enorme oportunidade para trabalhadores das nações emergentes, mas também vai gerar mais revolta nos países ricos, favorecendo movimentos populistas.

O senhor costuma dizer que o futuro da globalização será muito diferente do que ocorreu nos últimos anos. Por quê?

A globalização nada mais é do que uma arbitragem de preços. As empresas exploram as diferenças de preços para produzir ou comprar produtos onde são mais baratos e vender onde são mais caros.

Para lucrar, é preciso levar os produtos de um país ao outro. Por isso, até agora, entendemos a globalização como troca de produtos. Por exemplo: você planta café no Brasil e entrega de navio na Europa.

Vamos focar agora os serviços profissionais. Frequentemente, a diferença de preços de serviços profissionais entre as nações ricas e os países emergentes, como Brasil, Argentina, Quênia, Ucrânia ou Índia é de 10 a 20 vezes.

Até agora não era possível arbitrar esses preços, porque os serviços são vistos como não comercializáveis, pois exigem que as pessoas estejam frente a frente. Só que a tecnologia digital está tornando as pessoas mais próximas.

Como a diferença nos preços dos serviços é muito alta e a tecnologia avança muito rápido, a globalização vai ser transformada pelo que chamo de imigração virtual.

O que é imigração virtual? 
Comecemos por algo já bastante difundido: trabalhar uma ou duas vezes por semana de casa, sem ter de ir ao escritório. A imigração virtual é a mesma coisa, só que a nível internacional. Profissionais que moram num país e trabalham num escritório que fica em outro país.

Esse trabalho freelancer internacional já é relativamente comum em alguns setores, como desenvolvimento de software ou em grandes bancos. Nessas áreas, pessoas de um mesmo time estão situadas em países diferentes e se comunicam pela internet para fazer um projeto em conjunto.

Tenho um amigo na Suíça que desenvolve sites para empresas. Ele trabalha de casa ao lado de alguns computadores. Em uma das telas, está a imagem de um programador do Paquistão; na outra, um especialista em experiência dos usuários do Canadá; em outra tela, um designer uruguaio.

Eles trabalham juntos por alguns dias para fazer determinado site. Conversam o tempo todo e usam um software colaborativo. Mas, como o paquistanês está satisfeito em receber US$ 10 (R$ 39) por hora, o projeto fica muito mais barato do que se todos morassem na Suíça.

Já faz tempo que as empresas instalaram call centers na Índia ou que há colaboradores estrangeiros em empresas de software. Por que o sr. acredita que o fenômeno será mais generalizado e rápido agora?

Em meu livro, explico em detalhes quatro fenômenos que vão colaborar com o processo. O primeiro é a experiência das pessoas de trabalhar em casa. Nos EUA, isso é muito comum.

As empresas estão se adaptando com a adoção de novos softwares para tornar o trabalho de casa mais fácil. Essas mudanças abrem a porta para a imigração virtual, pois rapidamente as companhias vão perceber que dá para contratar um estrangeiro que vai cobrar muito menos.

O segundo ponto é a melhora das telecomunicações: a qualidade do Skype, do Facetime e de outras tecnologias mais sofisticadas. A possibilidade de reuniões virtuais.

Há outra tecnologia bem divertida chamada de telerrobôs. Conto no meu livro a história de uma jornalista de tecnologia que trabalha no escritório em San Francisco, mas mora em Boston. Ela dirige o robô pela Redação e fala com as pessoas como se estivesse lá.

E as barreiras linguísticas? Nem todos falam inglês. 

Este é o terceiro ponto: a tradução por máquinas vai quebrar essas barreiras. Nos últimos tempos, tivemos uma revolução nessa tecnologia.

A ONU deixou online milhões de sentenças traduzidas dos debates em seis idiomas nos últimos 40 anos. Isso facilitou a aprendizagem das máquinas, e o algoritmo agora não traduz palavra por palavra, mas frase por frase, o que melhorou muito o resultado.

Dê uma olhada nesse aplicativo. Vamos testar [Ele abre um app do Google que traduz rapidamente uma frase da repórter para o inglês e outra dele para o português. O resultado é muito bom].

Veja também essa tecnologia [Agora com outro app o professor direciona a câmera do celular para o bloco de anotações da repórter e o texto é traduzido automaticamente do português para o inglês].

Provavelmente, a tradução pela máquina nunca vai ser perfeita, mas, como sabemos, executivos americanos têm discussões com executivos estrangeiros que não falam inglês perfeitamente, todos os dias, e isso é suficiente. Não falar inglês não será uma barreira para prestar serviços no exterior.

E o quarto fator? 

O surgimento de sites que servirão como plataformas de contratação de profissionais. O maior hoje no mundo é o upwork.com, mas há muitos outros.

Esses sites vão tornar mais fácil para as empresas encontrar profissionais estrangeiros. Também vão propiciar o pagamento dos serviços e trazer alguma segurança para quem está contratando.

Gosto de pensar nessas plataformas como um contêiner, que, em vez de produtos, transporta serviços.

Em que profissões a imigração virtual será mais forte? 

É melhor não focar ocupações, mas tarefas. Todo trabalho é uma lista de tarefas. Algumas podem ser feitas por uma pessoa no exterior, outras não.

No caso de um jornalista, alguém pode remotamente marcar suas viagens, digitar suas anotações, ouvir suas gravações. Essa pessoa certamente não pode escrever seu artigo, mas tem condições de fazer todas essas outras coisas.

Um contador brasileiro não conhece a legislação americana. Contudo, tem muito trabalho em contabilidade que é basicamente analisar um monte de números para ver se batem. Pelo preço de um contador medíocre nos EUA, é possível contratar os melhores no Brasil.

Qual será a direção do fluxo de imigrantes virtuais? Das nações emergentes rumo aos países ricos? 

Principalmente. Quando pensamos nas nações emergentes avançadas, temos trabalho de qualidade a baixo custo, sejam médicos, enfermeiras, professores.

Globalização sempre representa oportunidades para os cidadãos e as empresas mais competitivas e desafios para os menos competitivos.

Como nos emergentes o custo do trabalho é menor, esses cidadãos serão mais competitivos. Mas existem pessoas nos países ricos que são competitivas globalmente. Alguns engenheiros americanos, por exemplo, vão exportar seus serviços para o Brasil.

A imigração virtual, portanto, vai funcionar em ambos os sentidos, mas a vantagem competitiva dominante será dos emergentes. Mais especificamente na classe média das nações de renda média.

Infelizmente não é para todos. Para se beneficiar desse fenômeno, o trabalhador precisa de computador e  internet e de qualificações que exigem alguma educação formal. Não vai atingir os países muito pobres nem todos no Brasil.

Essa mudança, portanto, significa enorme oportunidade de exportação para países como Brasil, África do Sul, Quênia. O milagre dos países emergentes vai se espalhar.

Só que o novo modelo de desenvolvimento vai ser mais parecido com a Índia do que com a China. Todos querem se parecer com a China e exportar carros e celulares, mas esse trem já passou. A Índia também se desenvolveu rápido e exporta poucos produtos.

A insatisfação com a globalização e a imigração facilitou a chegada ao poder de grupos de extrema direita. Qual vai ser o impacto dessa nova onda de globalização na política? 

Nos países ricos, vai ser muito disruptivo. Empregos profissionais —os chamados do colarinho branco— serão perdidos rapidamente. Essas pessoas vão se juntar às que perderam seus postos de trabalho na indústria. Será chocante e pode levar a revolta.

Isso dará ainda mais combustível à extrema direita?

Vai encorajar movimentos populistas, mas não necessariamente de extrema direita.

Há, porém, um atenuante. As pessoas que se sentiram deixadas para trás pela globalização e ajudaram a eleger Donald Trump ou a aprovar o brexit vivem em cidades pequenas, onde não há novos postos de trabalho.

Essa nova tendência vai atingir as cidades grandes. Portanto, será mais simples para esses trabalhadores se reinventarem e eventualmente conseguirem novas ocupações. Isso pode tornar o fenômeno menos doloroso.

Os governos deveriam fazer algo a respeito?

Sim. Nos países ricos, a melhor maneira de reagir é ajudar as pessoas a mudar de trabalho. Alguns políticos defendem que deveria existir uma renda mínima universal, mas não explicam como vão pagar por isso.

Nos países emergentes, como o Brasil, os governos podem auxiliar os trabalhadores a aproveitar essa oportunidade. Um exemplo é oferecer certificações para ajudar as empresas lá fora a saber direito quem você é e o que sabe fazer.

No Quênia e nas Filipinas, por exemplo, os governos estão treinando os profissionais mais jovens, porque acreditam que as novas tecnologias são uma solução para o desemprego entre os mais jovens.

As leis internacionais terão que mudar para se adaptar à nova realidade?

Já existe na OMC (Organização Mundial do Comércio) um acordo sobre o comércio de serviços. Também existem regras sobre comércio eletrônico, serviços bancários, etc. Não acredito que será um problema.

A área em que será mais complicado é a taxação. Onde esses trabalhadores vão pagar impostos? Hoje, em lugar nenhum. Os países terão que fazer algo a respeito.

Na reunião de Davos, conversei com o CEO da upwork.com sobre isso. Ele me disse que fornece informações ao governo dos Estados Unidos sobre seus freelancers americanos. Logo, a princípio, as pessoas teriam que declarar essa renda.

Mas também me contou que outros países nem sequer pedem os dados. A princípio, a melhor maneira seria trabalhar por meio das plataformas. Solicitar a elas que informem o quanto as freelancers estão ganhando. Nesse caso, os impostos seriam pagos onde as pessoas vivem e não onde trabalham.

O senhor acredita que o protecionismo poderá interromper essa tendência?

Não acredito. É verdade que algumas medidas, como regulação de privacidade ou restrição de dados, podem desacelerar o fenômeno. Mas, no final das contas, vai escapar pelas frestas.

Os governos têm boas maneiras de controlar o trânsito de produtos e pessoas em suas fronteiras, mas não conseguem fazer quase nada sobre serviços. A não ser que façam como na China e bloqueiem toda a internet.

No entanto, posso lhe dar um exemplo de uma área em que a restrição funciona. Na Suíça, existem leis muita rígidas para sigilo bancário. Se os dados de um cliente deixam o país de propósito, você vai para cadeia. Se acontece por acidente, a multa é de centenas de dólares.

Por causa disso, os bancos suíços não contratam nenhum tipo de serviço no exterior. Neste caso, é uma escolha. Os serviços bancários suíços são excelentes, mas muito caros.

Richard Baldwin Professor do Instituto de Graduação de Estudos Internacionais e do Desenvolvimento, em Genebra; economista formado pela Universidade de Wisconsin-Madison, fez pós-graduação no MIT sob a supervisão do ganhador do Prêmio Nobel Paul Krugman; é autor de “The Globotics Upheaval” (A revolta dos robôs globais)

Desafios da democracia no capitalismo contemporâneo

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A sociedade internacional está envolta em grandes problemas estruturais, cuja resolução exige uma atuação consistente e integrada entre inúmeros países das mais variadas regiões, deixando de lado conflitos e desentendimentos em prol da sustentabilidade do sistema capitalista global, dentre estes desafios destacamos o incremento das imigrações, a degradação do meio ambiente, o incremento acelerado na desigualdade, a perda de espaço da democracia e o crescimento excessivo do mercado financeiro que passou a ditar a agenda e influenciar nas decisões, gerando desequilíbrios e desajustes globais com impactos locais, aumentando a pobreza e fragilizando os Estados Nacionais.

Diante de tantos desafios, alguns países desenvolvidos estão estimulando discussões mais intensas sobre esta nova sociedade, cujas constantes crises podem gerar um degradação cada vez mais acelerado do sistema capitalista, gerando um incremento maior da pobreza e da marginalidade e desnudando um mundo cada vez maior, onde o desenvolvimento tecnológico e o aumento da produtividade estão levando a uma dualidade perigosa, de um lado encontramos ilhas de riquezas, marcadas pelo luxo e pela ostentação e, de outro, regiões inteiras de pobreza, marginalidade e exclusão social.

O aumento da desigualdade internacional veio a tona de uma forma mais intensa, gerando discussões incessantes, quando o economista francês Thomas Piketty publicou a obra O capital no século XXI, onde o autor analisou o crescimento da pobreza na maior parte da comunidade global e o aumento da renda de uma parcela reduzida da população percebendo, com isso, um incremento acelerado na concentração da renda mundial, onde um pequeno grupo de cidadãos passou a controlar o sistema e impor políticas de seus interesses.

Segundo dados contidos na obra do economista francês, a concentração de renda chegou a números assustadores e escandalosos, por estes números se percebeu que 1% da população mundial, algo em torno de 70 milhões de pessoas, controla mais de 50% da renda global, números estes parecidos com a concentração de renda no início do século XX, ou seja, nestes mais de 100 anos mesmo passando por um período de forte crescimento econômico e desenvolvimento tecnológico, os frutos das riquezas acumulados pela sociedade mundial está se concentrando nas mãos de poucos, ou melhor, de muito poucos.

Nesta sociedade marcada por um crescimento da desigualdade e pela concentração de renda, as condições de vida dos indivíduos estão piorando, a geração contemporânea não vai conseguir acumular os recursos de seus antepassados criando, com isso, um incremento da intolerância, das violências generalizadas, dos conflitos e dos constrangimentos, que acontecem em todas os países e regiões, destes os considerados ricos e os descritos como pobres ou em desenvolvimento.

Nesta sociedade marcada pelo crescimento da concorrência e da competição, os desequilíbrios emocionais estão crescendo de forma acelerada, os afastamentos de trabalhadores em decorrência de problemas ocupacionais, estresse, depressão e transtornos generalizados estão crescendo de uma forma jamais vista, levando os organismos internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS), a criar campanhas de esclarecimento  em todas as regiões, objetivando entender e minimizar estes desequilíbrios crescentes, cujos prejuízos ao sistema são crescentes, na casa dos bilhões de dólares.

As alterações no mundo do trabalho estão gerando muito medo e desesperança, a perda do emprego é mais do que a perda de uma fonte de renda monetária, o emprego na sociedade capitalista é uma forma de sobrevivência digna, uma forma de inserção social decente e uma forma de construir uma história marcada por trabalho e ascensão social, com as mudanças na estrutura dos mercados de trabalho marcada pela redução exponencial dos postos de emprego, encontramos um incremento dos desequilíbrios, dos desajustes e das decepções, incrementando xenofobismo e violências crescentes e generalizadas.

O capitalismo internacional está em um momento de grandes incertezas, com isso, os grandes empresários e os governos estão buscando novos instrumentos para evitar um debacle maior, o mainstream se mostra preocupado com os rumos da sociedade global, como nos mostra a fala do economista indiano Raghuram Rajan, professor da Universidade de Chicago e ex-presidente do Banco Central da Índia, no seu novo livro The third pilar: “Se as pessoas perderem a fé em sua capacidade de competir no mercado, se suas comunidades continuarem a declinar, se elas sentirem que a elite se apropriou de todas as oportunidades em benefício próprio […], o ressentimento popular pode se transformar em raiva”.

A situação de degradação do sistema está crescendo de forma generalizada na sociedade internacional, os movimentos sociais estão se organizando para resistir aos avanços desta degradação, na França temos os movimentos dos coletes amarelos, nos países europeus percebemos o desconforto com a chegada de imigrantes de regiões conflagradas e em conflitos militares e de resistência, na Venezuela, um dos maiores produtores mundiais de petróleo, a situação se degrada rapidamente, colocando em lados opostos potências nucleares como os Estados Unidos, a Rússia e a China, nos lembrando de momentos sombrios da chamada Guerra Fria.

Nesta situação de medos e incertezas, percebemos o crescimento nas várias regiões do mundo, a ascensão de governos e grupos políticos de direita ou extrema direita, com fortes traços totalitários, como o do presidente norte-americano Donald Trump, do Hungaro Victor Orbán, do turco Recep Tayyip Endorgan, do italiano Matteo Renzi, do brasileiro Jair Bolsonaro, dentre outros, todos oferecem aos seus compatriotas respostas frágeis e insuficientes aos graves problemas que afetam seus países e amedrontam suas populações, agindo como verdadeiros líderes populistas.

Diante da ascensão destes políticos de direita ou de extrema direita, muitos teóricos discutem se a democracia está sofrendo algum risco na sociedade internacional, este risco sempre existiu, as forças totalitárias existem em todas as regiões e países, sempre buscando subverter a ordem dominante em prol de seus interesses imediatos, defendendo medidas populistas e bradando contra os estrangeiros ou os imigrantes.

O capitalismo globalizado controlado pelas grandes empresas transnacionais subverte a lógica política e transforma as instituições democráticas em espaços de perpetuação de interesses privadas, condenando uma grande parte da população as migalhas dos orçamentos públicos e aos serviços públicos de péssima qualidade, aumentando a insatisfação da população com as elites econômicas e com a classe política, fragilizando as bases da democracia.

Com o desenvolvimento tecnológico e com o incremento da concorrência e da competição, não mais em nível local mas em escalas internacionais, regiões inteiras estão sendo degradadas, estruturas produtivas estão sendo transferidas para outras regiões e condenando a população destas regiões ao desemprego e a indignidade, obrigando governo e comunidades locais a buscarem, em treinamento e políticas de qualificação, novas forma para inserir estes trabalhadores neste universo produtivo, em outras áreas e em outros setores, sob pena de recair sobre os governos novos dispêndios fiscais para resgatar estes cidadãos de exclusão social.

A tecnologia está impondo aos trabalhadores uma nova lógica de qualificação, de treinamento e de constantes atualizações, obrigando-os a se entregarem, cada vez mais, ao mundo do trabalho e da produção, aumentando sua carga de trabalho e deixando tempos cada vez mais restritos a seus familiares e, principalmente, para si próprio, com isso, percebemos novas patologias surgindo, gerando incertezas, medos e desesperanças.

Doenças ocupacionais estão em alta, desequilíbrios emocionais estão em franco crescimento, a depressão atinge mais de 400 milhões de pessoas na sociedade internacional, o suicídio cresce de forma acelerada, a ansiedade se tornou um caso de saúde pública e as drogas ganham força e movimentam mais de 500 bilhões de dólares ao ano, se transformando em um dos negócios mais rentáveis da economia mundial, com cartéis mexicanos controlando espaços antes sob proteção estatal, gerando um estado paralelo, muitas vezes mais organizado e bem quisto pela população do que muitos Estados oficiais.

Desde a grande crise internacional de 2008, está ganhando força na sociedade e nas comunidades mundiais, a convicção generalizada de que o sistema capitalista atual é um grande gerador de privilégios para uma pequena elite endinheirada, banqueiros, acionistas e grandes industriais, onde muitos trabalham em demasia e recebem pouco, enquanto poucos vivem de renda e de aplicações polpudas e generosas, pagas pelos juros investidos em títulos públicos por todos os governos, principalmente pelos governos que apresentam problemas fiscais e grande degradação em suas finanças públicas.

O capitalismo ganhou força na sociedade internacional ao enfraquecer o sistema anterior, o feudalismo, trazendo como vantagem a possibilidade sempre vislumbrada de ascensão social via trabalho honesto e digno, esta possibilidade ganhou força com o crescimento das teses de Martinho Lutero, estas ideias contribuíram para a fragilização do antigo regime e o crescimento do sistema do capital, garantindo aos trabalhadores a possibilidade de ascender socialmente, inaugurando, uma nova organização social, onde o esforço individual seria reconhecido com uma melhora financeira, social e nas condições de vida.

Na sociedade contemporânea, percebemos mudanças bastante assustadoras, a ascensão social via estudo, trabalho e dedicação, que foi inaugurada pelo capitalismo, vem sendo questionada pela organização da nova economia, os empregos estão sendo reduzidos e as regiões estão sendo substituídas facilmente, fragilizando os Estados Nacionais e colocando em xeque a ética protestante, substituindo-a por uma organização social centrado no imediatismo, no individualismo e na indiferença.

Neste ambiente de crises generalizadas e instabilidades constantes, a democracia se encontra ameaçada e pode sucumbir de forma indireta, os governos ascendem democraticamente e governam de forma mais autoritária, como nos mostram Steven Levitsky e Daniel Ziblatt em Como as democracias morrem, fragilizando a imprensa, criminalizando a política, trazendo novas narrativas sobre fatos históricos, garantindo privilégios a setores organizados e adotando políticas populistas que postergam a resolução de problemas estruturais, a reversão desta crise da democracia no cenário mundial só será resolvida com mais democracia, mais educação e mais discussões políticas.

Outro ponto central para entendermos esta crise da democracia mundial é uma análise do poder do grande capital na sociedade global, neste momento os governos estão prostrados perante os donos do poder, as regulações construídas anteriormente foram desbaratadas, assim como está sendo feita nos Estados Unidos na atualidade, gerando um capitalismo financeiro dominante e centrado num negócio que mais parece um grande cassino, sem regras claras e coerentes, onde os grandes ganhadores são os detentores do dinheiro e os excluídos continuam sendo, sempre, a massa degradada, condenada a um trabalho angustiante e com pouquíssimas possibilidades de ascensão social, mas com grandes possibilidades de desenvolver doenças emocionais e espirituais.

O crescimento do poder dos grandes conglomerados levou os donos do capital a comprar a classe política e, através dela, aprovar leis e medidas que melhoravam as condições para estas empresas, subvertendo o sistema econômico em prol dos detentores dos recursos financeiros e transformando a classe política em uma filial dos grupos econômicos, neste ambiente temos uma democracia enfraquecida, onde uma parcela substancial da população mundial vive a margem da sociedade global e não usufrui dos ganhos gerados pela tecnologia e pelos avanços da ciência e do conhecimento, se mantendo na miséria e na indignada, criando espaços para violência e degradação.

A crise do sistema é tão evidente que no âmbito da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), os governos estão estimulando grandes discussões sobre as raízes da crise e as limitações do modelo atual, nestas discussões alguns consensos foram construídos, o crescimento da desigualdade e o incremento da exclusão social é uma realidade contemporânea e uma solução deve ser pensada com urgência, como a possibilidade de maior taxação para estes grandes conglomerados e a reversão destes recursos para uma política pública mais efetiva, onde os mais frágeis sejam beneficiados destes recursos para que consigam estruturar uma vida de maior bem-estar e mais segurança e estabilidade.

Os desafios são gigantescos e exigem uma organização e uma integração global, onde não apenas os países e seus governantes, mas as empresas e os grandes conglomerados, além de sindicatos, partidos políticos e trabalhadores se conscientizem de que a salvação do sistema é fundamental para todos, afinal, um mundo com mais guerras, violências e instabilidades interessa a poucas pessoas e estas devem ser combatidas, sob pena de que uma revolução social generalizada leve a uma destruição em todas as regiões.

Com Estados fracos e sem poderes econômico e político para impor seus interesses aos agentes econômicos, dificilmente a democracia conseguirá se mostrar presente nesta sociedade, impondo ao grande capital uma regulamentação mais rígida e consistente para evitar equívocos que levam a concentração dos mercados e prejuízos aos grupos mais frágeis e deficientes.

O fortalecimento do Estado democrático de Direito e dos canais políticos legítimos de negociação política devem ser consolidados, taxação e regulamentação de grandes empresas e conglomerados econômicos, combate a formas degradantes de trabalho e de exploração no mundo do emprego, uma maior capacitação dos trabalhadores para sobreviverem no mundo contemporâneo e políticas públicas efetivas para reduzir as desigualdades e a exclusão social crescentes nesta sociedade, todas estas políticas devem ser tomadas a nível global, envolvendo todos os grandes atores da geopolítica, Estados, grandes empresas e trabalhadores mas, para isso, as instituições devem abrir mão das rivalidades históricas e pensar na possiblidade de, se a situação continuar da forma como está, uma revolução global terá início nos próximos anos com danos irreversíveis para o planeta Terra e todo o meio ambiente, além de mortes e degradação em todas as regiões do globo.

Reforma da Previdência: o futuro está em jogo

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Guilherme Boulos

O Brasil precisa saber o que está em questão com a reforma da Previdência apresentada pelo governo Bolsonaro. É verdade que o aumento da expectativa de vida traz um debate sobre o financiamento do sistema previdenciário. É verdade que precisamos enfrentar privilégios para assegurar direitos. Mas a proposta do governo não resolve nenhuma dessas questões e ainda cria novos problemas. O marketing de uma “Nova Previdência”, que garanta as aposentadorias no futuro, não para em pé.

O grande objetivo da reforma é fazer uma transição radical de modelo: desmontar a Previdência pública, com suas três fontes de financiamento –trabalhador, empregador e Estado– e colocar em seu lugar o regime de capitalização, financiado unicamente pelos próprios trabalhadores e gerido por bancos privados.

Ao contrário do regime de solidariedade entre gerações, consagrado na Constituição de 88, na capitalização impera o cada um por si.

Quem pode faz poupança individual nos bancos e garante uma aposentadoria com dignidade. Quem não pode estará condenado a condições indignas de aposentadoria ou a trabalhar até morrer.

O argumento de que as pessoas vão poder optar pelo INSS ou a capitalização é uma falácia. Por duas razões. Primeiro, num país com 37 milhões de trabalhadores informais é absurdo supor que a maioria conseguirá comprovar 20 anos de contribuição; 40 anos, então, nem se fale. Já com as regras atuais, apenas 29% se aposentam por tempo de contribuição. As mulheres e trabalhadores rurais serão ainda mais afetados com o endurecimento das regras.

A segunda razão é que o direito de escolha do trabalhador não existe numa economia com alto desemprego. Se quiser optar pelo INSS, a empresa terá de entrar com sua cota de contribuição. Na Previdência privada, ela estará desobrigada. Alguém acredita que uma empresa contratará quem opte pelo regime público?

O objetivo é impor a capitalização como modelo. A questão é que nele não cabem todos. O Chile é um exemplo. Após a implantação da capitalização na ditadura de Pinochet, o país produziu um surto de miséria entre idosos. Hoje, 80% dos aposentados recebem menos de 1 salário mínimo, por não conseguir garantir poupança individual.

A parte mais covarde é a “alternativa” oferecida aos que não consigam entrar no jogo da capitalização: benefícios sociais abaixo do salário mínimo. O Benefício de Prestação Continuada (BPC) garante hoje 1 salário para idosos pobres, a partir dos 65 anos. Atende 5 milhões de pessoas, representando em média 80% de sua renda. É a garantia de comida na mesa para muita gente. A proposta é permitir esse ganho apenas a partir dos 70 anos e, aos 60, garantir um valor pífio de R$ 400.

Os efeitos contra os mais pobres são devastadores. E também afetam a economia do país. As aposentadorias e benefícios previdenciários representam a maior movimentação econômica para 70% dos municípios brasileiros. Como disse reservadamente um prefeito da base bolsonarista a um amigo governador: “Se aprovar isso, na minha cidade não se vende mais nem um quilo de carne”.

Em vez de permitir um equilíbrio da Previdência, a reforma deve piorar a situação. E não apenas pelo efeito depressor na economia, mas também porque –com a Previdência privada– muitos deixarão de contribuir para o INSS. O resultado será uma descapitalização da Previdência pública, podendo, aí sim, criar um rombo insustentável, especialmente na transição. O objetivo de Paulo Guedes não é equilibrar a Previdência, mas entregá-la aos bancos.

Não é verdade que a única saída para o Brasil é fazer uma reforma que ataca direitos. É preciso ter coragem para enfrentar privilégios do poder econômico. Só a renúncia fiscal do INSS, com desonerações e isenções, representa cerca de R$ 57 bilhões ao ano. A taxação de fortunas, grandes heranças e lucros e dividendos –que defendemos nas eleições do ano passado– poderia representar arrecadação de R$ 120 bilhões ao ano para Previdência e políticas sociais. E por que não implementar um Imposto Especial sobre o Lucro dos Bancos, como fez a Hungria em 2010 para sair da crise?

O que está em jogo é que futuro queremos: uma sociedade baseada no princípio da solidariedade, que acolha seus idosos, ou então no “cada um por si”, que leve a maioria deles a uma aposentadoria indigna. A hora de definir é agora. Ainda dá tempo. Vamos hoje às ruas de todo o país em defesa de nossos direitos.

Guilherme Boulos

Ex-candidato à Presidência da República pelo PSOL (2018) e militante da Frente Povo Sem Medo

 

Privatização, abertura econômica e desburocratização: a agenda neoliberal

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Muito se discute do programa econômico do governo do presidente Jair Messias Bolsonaro para a economia brasileira, liderado pelo Ministro da Economia, o economista Paulo Guedes, neste programa as ideias neoliberais ganham força e se espalham pelos arredores de Brasília, marcadas por uma crítica feroz ao Estado brasileiro e sua atuação marcada pela ineficiência, pelo desperdício e muitas vezes pela corrupção, os neoliberais propõem uma abertura econômica acelerada, uma desregulamentação financeira e uma redução do número de empresas estatais, além de uma considerável redução da burocracia e da estrutura tributária.

Analisando o fortalecimento do pensamento neoliberal, percebemos muitas medidas importantes e necessárias que precisam ser tomadas com urgência, visando uma melhoria na estrutura econômica, destravando os investimentos e abrindo espaço para que o ambiente de negócios, termo caro aos adoradores do mercado, se consolide e a economia volte a crescer de forma acelerada, fato este que deixou de acontecer desde os anos 1970, num momento marcado por forte autoritarismo e repressão.

Os economistas neoliberais pregam a urgência das reformas previdenciária, tributária e fiscal, acreditamos que todas estas reformas sejam muito importantes e fundamentais para o crescimento e para o desenvolvimento do país, porém devemos destacar quais os objetivos destas reformas, se são apenas para melhorar as condições fiscais ou se para promover uma melhora considerável na distribuição da renda e na equidade social, estas questões envolvem discussões políticas e devem ser feitas de forma mais ampla e democrática, o que acreditamos que não acontecerá.

Uma das políticas mais efetivas nos discursos dos teóricos neoliberais é com a necessidade urgente de uma desburocratização da economia brasileira, somos uma sociedade que traz nas veias os arroubos burocráticos, nossa experiência fez surgir uma burocracia que tem vida, pessoas sobrevivem e se reproduzem através desta burocracia, toda e qualquer proposta de eliminação gera movimentos organizados em todos os entes federativos, levando os governos a desistirem deste embate, com isso, nossa burocracia se perpetua no tempo e inviabiliza a modernização e a maior eficiência do Estado.

As privatizações são aventadas como forma de melhorar a eficiência do sistema econômico, retirando o Estado de setores produtivos e abrindo espaço para os investimentos privados, vistos pelos neoliberais como mais eficientes e capacitados para melhorar as condições da competitividade e da produtividade do sistema, garantindo uma maior condição para concorrer em um ambiente fortemente marcado pela competição.

Temos mais de 440 empresas estatais passíveis de serem privatizadas, nesta conta inserimos as estatais dos três níveis de governo (União, estados e municípios), destas, 134 são de propriedade do governo federal, dentre elas encontramos grandes empresas que muito interessam aos grandes empresários nacionais e estrangeiros, muitas delas são de difícil privatização, mas outras poderiam, facilmente, ser repassadas a iniciativa privada, gerando recursos para uma agenda de maior competitividade da economia, melhorando sua governança e consolidando seus indicadores econômicos e produtivos.

Segundo os neoliberais, a transferência de empresas estatais para a iniciativa privada traria ao governo, recursos financeiros para uma melhora nas finanças públicas e uma significativa diminuição do número de funcionários públicos, reduzindo, com isso, os espaços de atuação dos grupos políticos que veem nestas empresas um amplo local de indicações de apadrinhados e colaboradores, nem sempre qualificados para o cargo, abrindo espaço para a corrupção e para a ineficiência do Estado brasileiro, como está sendo constatado pelas investigações em torno da Operação Lava Jato, que desbaratou muitas práticas nocivas para a coletividade, prendeu políticos, empresários e conseguiu ressarcir os cofres públicos em alguns bilhões de reais.

Privatizar empresas estatais não é tarefa fácil no Brasil, no governo Fernando Henrique Cardoso muitas foram tentadas sem sucesso, os grupos de pressão, os sindicatos e o corporativismo sempre conseguiram seu intento, com isso, mantêm seus inúmeros privilégios que dominam a estrutura administrativa, perpetuando um ambiente de burocracia e de ineficiência, gerando lentidão, déficits constantes e novos encargos econômicos para o governo, ou melhor, para a sociedade.

Outro ponto central nesta discussão, é que a população tem uma relação paradoxal com o Estado, de um lado querem sua presença ativa no cenário econômico e produtivo, demandam sua constante interlocução, buscam suas fileiras e almejam postos no funcionalismo público e, ao mesmo tempo, rechaçam uma atuação política mais efetiva e denigrem constantemente seus representantes que foram por eles eleitos, detendo assim a legitimidade necessária para representá-los diretamente.

A agenda liberal ou neoliberal, como queiram, é muito charmosa e atrai muitos adeptos, seu discurso encanta os meios de comunicação e o grande empresariado e ganha força na coletividade, de um lado temos a desesperança crescente com a atuação estatal, que consome mais de 34,5% da renda gerada na sociedade e devolve serviços de péssima qualidade, além da ineficiência e da corrupção generalizadas que destroem a classe política; de outro cria um discurso de automatismo das relações sociais, atribuindo ao mercado um papel sobrenatural nesta sociedade, responsável pela alocação e pela eficiência, deixando de lado os conflitos que muitas vezes são por ele criado ou por ele estimulado.

Menos empresas estatais e mais mercado, mais competição e melhoras na qualidade com queda no preço dos produtos é algo muito bem aceito por toda a coletividade, o grande problema desta equação é que, quando analisamos o Estado brasileiro e seu comportamento histórico de subserviência aos grandes capitalistas, ficamos nos indagando: como regular e fiscalizar este mercado sendo que este domina e controla muitos aparatos do Estado?

O Estado brasileiro sempre esteve nas mãos dos grandes conglomerados, sejam eles agricultores, industriais ou banqueiros, cujo poder econômico e financeiro impunham ao governo inúmeras limitações em termos de política econômica, muitas vezes levando-o a adotar políticas que beneficiavam mais aos donos do poder, que moldam a “democracia” de acordo com seus interesses imediatos e, nem sempre, estes interesses são os mesmos da coletividade e dos grupos mais vulneráveis e dependentes do Estado e das políticas públicas.

Na sociedade internacional percebemos uma disseminação destas indagações, com o crescimento acelerado dos grandes conglomerados econômicos, as empresas estão influenciando, cada vez mais, as decisões políticas, comprando leis e isenções fiscais e financeiras, reduzindo a capacidade de atuação dos governos e impondo sua agenda econômica e seus interesses imediatos, diminuindo os benefícios dos trabalhadores, liberalizando a conta capital, desregulamentando e aumentando seus benefícios tributários, a premissa destas ideias é que, neste ambiente de desregulamentação e desburocratização, os investimentos produtivos serão maiores e os benefícios se disseminarão para toda a coletividade, inclusive para os trabalhadores e para os grupos mais vulneráveis.

Nestes momentos de hegemonia do pensamento neoliberal em terras brasileiras, cabe aos partidos políticos de esquerda e aos sindicatos apresentarem alternativas críveis e efetivas, o discurso de críticas ásperas e ofensas, ou em palavras ou expressões para denegrir não devem ser aceitas e nem estimuladas, temos mais de 13 milhões de pessoas desempregadas e mais de 27 milhões na informalidade, totalizando quase 20% da população economicamente ativa, um contingente elevado que poderia estar empregado, contribuindo e construindo uma sociedade mais justa e eficiente, diante disso, cabe aos chamados defensores do povo e da classe trabalhadora uma postura mais efetiva e propositiva.

Destacamos ainda, outra proposta interessante dos economistas neoliberais, a abertura econômica, somos um país que tradicionalmente apresenta, em comércio internacional, uma economia fechada, participamos com menos de 1% do comércio global, número bastante distante de nossa posição econômica, onde nos posicionamos em oitava lugar, a abertura deve ser feita e estimulada pelo governo mas, faz-se necessário, que construamos as bases para esta abertura, sob pena de prejudicarmos ainda mais uma economia depauperada nestes anos recentes de recessão e baixo crescimento.

A concorrência é salutar e deve ser estimulada, mas como competir com um sistema educacional falido, com uma carga tributária elevada, com serviços públicos de baixa qualidade e com uma infraestrutura degradada, todas estas questões devem ser revistas, consertadas e aprimoradas, sem estas medidas mais abertura econômica vai destruir o pouco de empresas e de indústrias que temos e aumentar os gargalos sociais e a violência contemporânea.

Todos os países que conseguiram melhorar sua performance econômica atuaram na abertura de suas economias, ganhando escala e competitividade, construíram estratégias para minimizar seus custos e adotaram uma política protecionista para priorizar seus produtores, esta proteção na atualidade deve ser feita de forma sutil e racional, evitando embates com instituições e organismos multilaterais, se feitas de forma atabalhoada podem correr o risco de serem inviabilizadas e revertidas pelos tribunais superiores de comércio, como a Organização Mundial do Comércio (OMC).

Analisando a história recente do Brasil, percebemos que nossa economia foi fortemente protegida pelo Estado, esta proteção exigiu pouquíssimas contrapartidas e geraram uma grande acomodação por parte dos empresários que, com mercados garantidos, produziam produtos caros, ineficientes e com preços elevados, deixando para os consumidores preços estratosféricos de mercadorias e serviços, reduzindo sua renda agregada e criando empresários ricos e empresas pobres e com pouca eficiência, incapazes de competir no mercado internacional.

Devido a esta proteção, nossas empresas não estão, na sua grande maioria, em condições de concorrer no mercado internacional, participamos e somos ativos em poucas cadeias globais de produção, uma abertura pode aumentar nossa desindustrialização, gerando um incremento no desemprego e uma piora nas condições internas, seus defensores acreditam que o país não tem outras alternativas no curto prazo, sendo necessário pressionar nossa estrutura produtivo para que aumentemos nossa competitividade, sob pena de, ao demorarmos na proteção, destruir ou inviabilizar a sobrevivência da indústria no médio e no longo prazo, perdemos as poucas chances de concorrer com empresas estrangeiras.

São muitas as questões que estão em jogo na economia brasileira, sua inserção sempre foi um dos maiores problemas e desafios da sociedade, se continuarmos fechados ao mundo seremos condenados a produtos caros, ineficientes e de qualidade questionável; ao nos abrir para a concorrência temos que ter em mente que a concorrência global tende a nos causar graves constrangimentos internos, cabe a sociedade construir uma estratégia para minimizar estes custos negativos e potencializar nossas potencialidades, transformando nossas habilidades em vantagens competitivas e aproveitando as brechas do mercado, inovando e empreendendo em busca de novas oportunidades de negócio e de desenvolvimento econômico.

A concessão de parcerias e de apoios da iniciativa privada são vistas com ceticismo por muitos grupos organizados, dividir os investimentos e os riscos fazem parte dos novos modelos de gestão, depois de liderar a industrialização do país, cabe ao Estado um papel mais discreto e efetivo, reduzindo sua exposição direta e atuando na regulação e na construção de estratégias, além de fiscalizar e punir todos os excessos, sempre atuando diretamente, preservando as instituições e construindo um clima de credibilidade, mesmo numa sociedade marcada pela incerteza, pela instabilidade e pela ineficiência.

A parceria Estado e Mercado é fundamental para a construção de uma nova estrutura social e econômica, cada um prescinde do outro, Estado sem Mercado leva a políticas socialistas e estatizantes que levaram, historicamente, ao autoritarismo, ao arbítrio e a opressão, enquanto Mercado sem Estado leva ao incremento da pobreza e da exclusão, criando uma grande quantidade de excluídos e de miseráveis, destas experiências, faz-se necessário compreender que, cada um dos agentes econômicos necessita do outro para sua sobrevivência, dosar as políticas e integrar os interesses é o melhor dos caminhos para conduzir o país para um desenvolvimento econômico, inclusivo e generalizado.

Em todos os países desenvolvidos, o desenvolvimento econômico foi construído com uma intensa parceria entre o Estado e a iniciativa privada, esta parceria sempre existiu, embora muitos não a queira reconhecer, atualmente a Alemanha criou um fundo financeiro para proteger suas empresas das tentativas de compra por parte de empresas chinesas ou asiáticas, o governo dos Estados Unidos vetou a venda de uma grande empresa de tecnologia para seus concorrentes asiáticos, além de comprar grandes empresas com a crise de 2008 para evitar a bancarrota de conglomerados importantes, estas políticas sempre existiram e, na atualidade, estão voltando com mais força e intensidade, embora muitos tentem esconder estes fatos, o neoliberalismo é uma doutrina da burguesia, nasce para defender e estimular os interesses dos donos do capital e, num segundo momento, para empregar e garantir a sobrevivência dos trabalhadores.

O grande trunfo do neoliberalismo foi criar, no imaginário coletivo, a ideia de que suas teses trariam o desenvolvimento e a melhoria social para todos os grupos sociais, esta propaganda foi difundida para todas as regiões do mundo, embora tenham conseguido melhorar a eficiência da economia e incrementar a produtividade, o grande risco destas ideias é que, ao extremo, podem levar muitos grupos a uma situação de degradação e de marginalidade, contribuindo para uma piora dos indicadores sociais, da miséria e da violência urbana.

A sociedade brasileira vive momentos de crise e de desesperança generalizadas, ao governo cabe um papel de construção de novas perspectivas e novos horizontes, melhorando o ambiente macroeconômico para que os investimentos sejam retomados, a articulação entre Estado e Mercado é um dos maiores desafios da economia, onde cada um contribui para o dinamismo econômico com suas potencialidades e expertise, sem esta atuação conjunta, mais uma vez, o país tende a andar contra o gradiente internacional, pois na economia internacional, neste momento de turbulências crescentes, os governos estão atuando diretamente com as empresas, buscando uma sinergia fundamental para navegar em mares revoltos e turbulentos.

O mundo mudou muito e está obrigando os países, empresas e indivíduos a se adaptarem a esta nova organização social, o Brasil mostrou grande flexibilidade desde os anos 80, todos os indicadores econômicos e sociais mostram claramente este progresso, melhoramos economicamente mas ainda não avançamos na lógica política, onde ainda cultivamos hábitos nocivos e degradantes, precisamos passar por novos avanços, melhorando as questões sociais e evoluindo em um novo consenso social, marcados pela inclusão, tolerância e respeito generalizados.

A perestroika brasileira é absolutamente descabida: entrevista especial com Leda Paulani.

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Patrícia Fachin – 12 de março de 2019.

É “difícil” fazer uma avaliação da política econômica conduzida pelo ministro Paulo Guedes, “porque de fato nada de concreto ainda foi feito na área, a não ser o envio da proposta de reforma da previdência ao Congresso”, diz a economista Leda Paulani à IHU On-Line, ao comentar a atuação da equipe econômica nos dois primeiros meses do novo governo. Já no nível do discurso, pontua, “não há nada além daquilo que já era previsto, ou seja, a condução da economia a partir de uma filosofia ultraliberal, que é a marca do economista Paulo Guedes”. Na avaliação de Leda, a declaração do ministro da Economia de que é preciso fazer uma perestroika brasileira, fazendo alusão a uma maior abertura econômica, “traz implícita a ideia de que o país está enredado nas entranhas de uma economia estatizada, com elevado grau de dirigismo”. Mas essa visão, frisa, “é absolutamente descabida quando se olha para a realidade e, principalmente, quando se tem em conta os parâmetros que vêm presidindo a condução da política econômica brasileira desde pelo menos o início dos anos 1990”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, a economista também comenta os três pilares do projeto econômico do novo governo, que são a reforma da previdência, a privatização acelerada e a simplificação, redução ou unificação dos impostos. Segundo ela, “a reforma da previdência e as privatizações são expedientes típicos das receitas de bolo do pensamento convencional neoliberal, pautado pelas máximas dos mercados e pelos imperativos da acumulação, sobretudo da acumulação financeira”. De outro lado, defende, a reforma tributária deveria reduzir os impostos indiretos e elevar os impostos sobre patrimônio, mas por enquanto o governo fala “apenas de simplificar e reduzir ou eliminar impostos.

Assim, na melhor das hipóteses, trata-se apenas de mais uma rodada da série ‘melhorar o ambiente de negócios’ e, na pior delas, de uma tentativa de reduzir a carga tributária, constrangendo ainda mais a capacidade do Estado de agir como poder equilibrador no enfrentamento das desigualdades”. Em resumo, assevera, “nenhuma dessas três medidas tem impactos imediatos e/ou garantidos” sobre o equilíbrio das contas públicas, porque “os efeitos de reformas no sistema previdenciário se dão quase sempre no médio ou longo prazo”.

Na avaliação da economista, a primeira proposta da equipe econômica enviada ao Congresso, a reforma da previdência, não visa reformar o regime previdenciário de repartição em operação no país, mas, sim, destruí-lo. Ela explica que, com a reforma e a introdução do regime de capitalização, a tendência é que os trabalhadores que ganham salários mais elevados e “ajudam a sustentar os benefícios daqueles que contribuem menos e que auferem benefícios muito reduzidos”, possivelmente “ficarão tentados a sair, migrando para outros regimes ou simplesmente para uma poupança pessoal própria, visando sua manutenção na velhice”. Segundo ela, “é evidente que isso não aconteceria se o propósito da reforma fosse de fato preservar a sustentabilidade do regime de repartição, tornando compulsórias a permanência e as alíquotas mais elevadas, mas, como se percebe, não parece ser este o caso”. E acrescenta: “A depender das condições em que será implantado o celebrado regime de capitalização, muitos trabalhadores tenderão a abandonar de vez o regime geral hoje predominante”.

Leda Paulani é graduada em Economia pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo – FEA-USP e em Comunicação Social pela Escola de Comunicações e Artes – ECA-USP. É doutora em Teoria Econômica pelo Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo – IPE/USP. É livre-docente junto ao Departamento de Economia da FEA-USP e professora do Departamento de Economia e da Pós-graduação da FEA/USP. De 2004 a 2008 foi presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política – SEP. De janeiro de 2001 a abril de 2003 foi assessora chefe do gabinete da Secretaria de Finanças da Prefeitura de São Paulo, e de janeiro de 2013 a março de 2015 foi secretária municipal de planejamento, orçamento e gestão da Prefeitura de São Paulo.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que avaliação geral faz da atuação da nova equipe econômica nestes dois primeiros meses do novo governo?

Leda Paulani – Difícil fazer uma avaliação, porque de fato nada de concreto ainda foi feito na área, a não ser o envio da proposta de reforma da previdência ao Congresso. De resto, no nível do discurso, não há nada além daquilo que já era previsto, ou seja, a condução da economia a partir de uma filosofia ultraliberal, que é a marca do economista Paulo Guedes. Exemplos claros disso podem ser encontrados em entrevista dada pelo ministro em meados de fevereiro ao jornal Financial Times. Dentre outras afirmações, tão fortes quanto controversas ([graças ao trabalho dos Chicago boys “o Chile é hoje uma Suíça“]), ele indica que é preciso fazer (e ele fará) no Brasil a perestroika, ou seja, a abertura da economia com concessão de total liberdade ao mercado. A afirmação, que traz implícita a ideia de que o país está enredado nas entranhas de uma economia estatizada, com elevado grau de dirigismo, é absolutamente descabida quando se olha para a realidade e, principalmente, quando se tem em conta os parâmetros que vêm presidindo a condução da política econômica brasileira desde pelo menos o início dos anos 1990. Mas ela evidencia com clareza os princípios que devem orientar a atuação da área econômica no governo de Bolsonaro.

IHU On-Line – Quais serão, na sua avaliação, as principais diferenças da política econômica do novo governo em comparação com a condução da política econômica nos governos Dilma, Lula e FHC?

Leda Paulani – A agenda neoliberal entrou no país pelas mãos de Fernando Collor. Foi seu discurso de “caça aos marajás” que seduziu a classe média brasileira e os endinheirados de sempre. Junto com o mote, vinham as propostas de privatização, de abertura comercial e financeira da economia e de redução do Estado. Já se percebia aí a semente daquilo que, mais tarde, tomaria enormes proporções, a saber, a mistura descarada de princípios universalmente aceitos, como a redução de privilégios, a responsabilidade com os recursos públicos e o combate à corrupção, com as proposições típicas do modelo liberal: para reduzir os privilégios e acabar com a corrupção, é preciso reduzir o tamanho e a influência do Estado; para tornar efetiva a responsabilidade com o dinheiro público, é necessário adotar políticas de austeridade e cortar gastos. O raciocínio simplório tinha poder de convencimento e foi ganhando corações e mentes, alcançando até mesmo aqueles que são os mais prejudicados quando tais assertivas saem do papel e se tornam realidade. O sucesso do neoliberalismo, sua principal vitória (mas não só aqui, no mundo), foi essa: na batalha das ideias, as máximas do mercado saíram vitoriosas.

A reflexão pode parecer um desvio um tanto prolongado da resposta à pergunta propriamente dita, mas, para além da importância em si do tema, ela ajuda a mostrar quão despropositada é a fala do ministro de Bolsonaroao Financial Times. A perestroika com que sonha Guedes começou no início dos anos 1990 e só não foi naquela ocasião mais efetiva porque o país ainda patinava no solo escorregadio do binômio inflação/dívida externa. Mesmo assim, várias e importantes providências foram então tomadas para colocar o país no “novo rumo”. Por exemplo, tão cedo quanto em 1992, no governo de Collor, se promoveu, na surdina, o início da abertura financeira: num movimento absolutamente questionável do ponto de vista jurídico, uma mera carta circular do Banco Central desbancou uma lei federal para permitir a qualquer cidadão a livre disposição de recursos em divisas. Começava aí a transformação do país em plataforma internacional de valorização financeira, movimento que seria consolidado no governo de FHC.

Governo FHC e a potência financeira emergente

Em seus dois mandatos, com o país já estabilizado monetariamente, FHC tratou exclusivamente das medidas necessárias para viabilizar e colocar em prática os ingredientes da fórmula liberal, e para transformar o país em “potência financeira emergente”: melhora do “ambiente de negócios”, concessão de garantias aos credores, oferta de benesses aos investidores financeiros (em particular aos não residentes), privatizações, liberalização dos fluxos internacionais de capital, controle estrito das contas públicas, além de política monetária draconiana e juros estratosféricos.

Governos petistas: do “milagrinho” econômico à política de “austericídio”

A ascensão de Lula e do PT ao poder federal não mudou esse entorno benfazejo à riqueza financeira e à posição do Brasil como dependente de poupança externa e pagador de renda aos capitais internacionais. Ao contrário, logo de início, sob a batuta de Palocci e dos economistas ortodoxos de que se cercou, sua política macroeconômica foi a continuação e, em alguns casos, o aprofundamento da agenda de FHC. Foi só com o lançamento do PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento, no último ano do primeiro mandato de Lula (2006), que esse ideário foi relativamente desobedecido. Esse polpudo pacote de investimentos públicos destinado a garantir a continuidade do crescimento que o bom momento da economia internacional estava possibilitando foi um pequeno ato de rebeldia, pois não combina em nada com um receituário que visa diminuir a dimensão e a importância do Estado. Na leitura da ortodoxia, investimentos públicos sempre “roubam” o espaço (nós dizemos o espaço de acumulação) que deveria ser do mercado.

Além disso, os governos do PT fizeram um bom uso do assim chamado “bônus macroeconômico”. As benesses da alta internacional no volume negociado e nos preços em dólar das commodities que o país exporta, permitiram, sem mexer com os ganhos dos de cima, a adoção de um pacote de políticas e programas sociais de alto impacto, além da elevação acelerada do valor real do salário mínimo. Combinaram-se os efeitos multiplicadores da demanda externa aquecida com aqueles oriundos da redução na desigualdade distributiva e crescimento do emprego, e, na sequência, com o impulso do investimento público, para promover o melhor momento da economia brasileira desde o milagre econômico dos tempos dos militares. A diferença entre esse “milagrinho” como já vem sendo chamado, e aquele de 35 anos antes, é que ele desbancou a máxima de então: não foi preciso esperar o bolo crescer para depois dividir.

O advento da crise vai desmanchar essa conciliação até então possível e, à sua maneira, virtuosa, entre política econômica liberal e programas sociais de alto impacto. Mas suas consequências para nós não apareceram de imediato, tornando-se mais concretas apenas no início da gestão Dilma. O primeiro mandato da presidenta também se caracterizou, de alguma forma, como ato de rebeldia aos imperativos da valorização financeira e do rentismo, pois buscou, como forma de driblar a crise, redução substantiva dos juros e enfrentamento dos obscenos spreads bancários. Mas cometeu, por outro lado, o erro, que depois se revelaria fatal, de apostar no incremento do investimento privado com uma política de desoneração da folha que ganhou, depois de passar pelo Congresso, dimensões descomunais. Para conciliar tudo orçamentariamente, brecou os investimentos públicos, que detêm elevado poder multiplicador, e os investimentos privados, que deveriam assumir o protagonismo, não apareceram. O fracasso da política e a piora das contas públicas abriram o espaço político para o impeachment da presidenta, que, em seu segundo mandato, na esperança de contar com o beneplácito dos mercados, trouxera para o comando econômico ninguém menos que Joaquim Levy, que afundou de vez a economia com sua política de austeridade”.

A agenda econômica de Bolsonaro e a construção da Ponte (para o abismo) iniciada por Temer

Para falar das possíveis diferenças entre a política do atual governo e a sequência que viemos de reportar desde Collor, é preciso lembrar que, entre Dilma 2 e Bolsonaro, houve o governo de ocupação de Temer. O que o presidente ilegítimo tentou fazer foi colocar em prática tudo que estava previsto no programa Ponte para o Futuro, uma “alternativa” de política econômica elaborada pelo PMDB e que, segundo consta, teria sido apresentada à presidenta e por ela recusada. A essência desse documento é o resgate pleno da agenda liberal, sem os arroubos sociais dos governos do PT, agenda, é preciso sublinhar, que estava na mira do governo de FHC e que certamente teria sido implantada, se o PSDB tivesse continuado no poder. Ela envolvia não só a continuidade dos processos de privatização, chegando até à Petrobras, como também uma série de alterações na Constituição Federal – CF de 1988, que, segundo já se dizia à época, era inviável do ponto de vista das contas públicas. Não foi por acaso, nem apenas por querelas político-partidárias, que o PSDB insuflou e apoiou o golpe e depois fez parte do governo Temer.

Essa agenda completamente liberal precisava ser retomada, com a providência adicional de desmontar a política externa ativa e altiva que os governos do PT haviam construído. Lia-se ali, por exemplo, que seria necessário promover “uma verdadeira abertura comercial”, buscando acordos de todos os tipos “com ou sem o Mercosul”. O governo Temer agiu rápido e, a não ser pela incapacidade de mexer no sistema previdenciário, teve pleno sucesso. Desmontou a CLT, com a reforma trabalhista e a lei de terceirizações, e aprovou a PEC 95, do teto dos gastos, que congela por 20 anos o valor real dos gastos públicos, destruindo substantivamente a capacidade do Estado de fazer políticas públicas. Sob a batuta de Guedes, a agenda econômica de Bolsonaro será a continuidade da construção da Ponte (para o abismo) iniciada por Temer, fazendo, de forma mais despudorada, o que ainda não foi feito, a saber, reforma da previdência, retomada das privatizações, enterro final da CF de 1988Guedes é mais celerado que Meirelles (ou Guardia), mas a diferença é de grau, não de conteúdo.

IHU On-Line – Em seu discurso de posse, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que os três pilares do projeto econômico do novo governo serão: 1) reforma da previdência; 2) privatizações aceleradas; 3) simplificação, redução, eliminação e unificação de impostos. Quais são os pontos positivos e negativos desse tripé? Em que medida ele pode garantir o crescimento econômico, a geração de emprego e o equilíbrio das contas públicas?

Leda Paulani – A reforma da previdência reforma da previdência e as privatizações são expedientes típicos das receitas de bolo do pensamento convencional neoliberal, pautado pelas máximas dos mercados e pelos imperativos da acumulação, sobretudo da acumulação financeira. A última perna do tripé poderia estar relacionada à questão tributária e a uma reforma que de fato precisa ser feita, no sentido de elevar o peso dos impostos diretos, sobretudo dos impostos sobre o patrimônio, e reduzir o peso dos indiretos, tornando o sistema menos regressivo. Mas não é esse o tom que sobressai da menção à questão tributária. Ao contrário, fala-se aí apenas de simplificar e reduzir ou eliminar impostos. Assim, na melhor das hipóteses, trata-se apenas de mais uma rodada da série “melhorar o ambiente de negócios” e, na pior delas, de uma tentativa de reduzir a carga tributária, constrangendo ainda mais a capacidade do Estado de agir como poder equilibrador no enfrentamento das desigualdades. Em qualquer dos casos, trata-se de farinha do mesmo saco. Não vejo, portanto, pontos positivos aí. No mais, não acredito que tais medidas possam favorecer a retomada do crescimento e do emprego. A aprovação da reforma da previdência certamente vai causar uma euforia nos mercados financeiros, com elevação dos indicadores de bolsa e valorização do real. Mas esses são impactos que ocorrem no âmbito dos estoques de riqueza, cujo valor se altera por força de movimentos especulativos.

Retomada do crescimento

No que tange aos fluxos de produção e de renda, ou seja, no que concerne à retomada substantiva do crescimento (no último biênio a economia cresceu 2,1%, depois de ter caído 7% no biênio anterior), conviria a retomada dos investimentos privados, que continuam letárgicos, ou um novo impulso nos investimentos públicos, alternativa rifada pela aprovação da PEC dos gastos. Assim, o crescimento continuará a ser pífio, a menos de uma enorme virada favorável no plano internacional, que não parece estar no horizonte (além das especulações em torno da existência de bolhas de ativos, em particular na economia chinesa, os indicadores de perspectiva de comércio da Organização Mundial do Comércio – OMC estão em seu nível mais baixo desde 2010; ademais, um possível acordo entre EUA e China pode roubar do Brasil um mercado de US$ 25 bilhões em soja).

Quanto às contas públicas, nenhuma dessas três medidas tem impactos imediatos e/ou garantidos sobre seu equilíbrio. Os efeitos de reformas no sistema previdenciário se dão quase sempre no médio ou longo prazo. No caso da proposta apresentada, seu impacto pode inclusive ser negativo no curto prazo, a depender de como será regulamentado o regime de capitalização. Combinada com a tal carteira verde-amarela, ela pode aprofundar sobremaneira o desequilíbrio financeiro do sistema.

IHU On-Line – Entre as preocupações da nova equipe econômica, destaca-se a de garantir o equilíbrio das contas públicas. Essa é uma agenda fundamental para o Brasil neste momento? Sim ou não e por quê?

Leda Paulani – É evidente que desfrutar de uma posição confortável nas contas públicas é sempre uma situação desejável. Contudo é também evidente o caráter cíclico da economia capitalista. O Estado tem de poder agir contraciclicamente, impulsionar a economia com investimentos públicos e mitigar as consequências sociais nos períodos de recessão e alto desemprego, e poupar e cortar gastos quando a economia vai bem. Insistir na perpetuidade de resultados primários positivos é negar ao Estado esse papel e fazer o jogo daqueles que buscam tão somente a garantia do valor real e da remuneração de seus estoques de riqueza, em particular da riqueza financeira. Pior ainda, é não perceber que políticas de austeridade, em momentos de retração, complicam de vez o cenário porque, por mais que se cortem gastos, o efeito multiplicador agindo ao contrário faz a receita cair ainda mais, piorando de vez os resultados primários (basta conferir os indicadores do Brasil desde 2015). No afã de preservar as condições de remuneração da riqueza financeira assentada em títulos públicos, cortam-se gastos públicos para melhorar o resultado primário, mas o resultado final é uma piora geral. Em outras palavras, uma boa forma de fazer a relação dívida/PIB crescer é adotar uma política de austeridade em tempos de estagnação.

IHU On-Line – Nos dois primeiros meses de governo, a equipe econômica concentrou-se em apresentar uma proposta de reforma da previdência que propõe mudar o sistema da previdência para um sistema de capitalização. Quais são as vantagens e os riscos dessa proposta?

Leda Paulani – A proposta da assim dita “reforma” da previdência necessita, em primeiro lugar, ser renomeada. Não se trata em absoluto de proposta de reforma do regime previdenciário atualmente em operação no Brasil (o regime de repartição), senão de sua destruição. Estudo do Dieese mostra que, mesmo antes de entrar em funcionamento a reforma trabalhista aprovada no governo Temer, cerca de 40% da força de trabalho já não conseguia comprovar 20 anos de contribuição (atualmente, o exigido são 15 anos para a aposentadoria por idade, com benefício parcial).

Estes, que são a enorme maioria (hoje, apenas 1/3 das aposentadorias são por tempo de serviço), já estarão fora do sistema, porque, se pensarem um minuto que seja, preferirão trabalhar sem contribuir, a contribuir sem ter condição de receber um mínimo que seja, quando terminar sua idade laborativa. A vingar a alíquota progressiva, em princípio algo salutar, aqueles que ganham salários mais elevados (e que atualmente, como o sistema é baseado na solidariedade — geracional, mas também social — ajudam a sustentar os benefícios daqueles que contribuem menos e que auferem benefícios muito reduzidos) também ficarão tentados a sair, migrando para outros regimes ou simplesmente para uma poupança pessoal própria, visando sua manutenção na velhice.

É evidente que isso não aconteceria se o propósito da reforma fosse de fato preservar a sustentabilidade do regime de repartição, tornando compulsórias a permanência e as alíquotas mais elevadas, mas, como se percebe, não parece ser este o caso. A depender das condições em que será implantado o celebrado regime de capitalização (isso não está em absoluto claro na proposta), muitos trabalhadores tenderão a abandonar de vez o regime geral hoje predominante. Por fim, mas não menos importante, a referida carteira de trabalho verde-amarela, que acabará por se transformar em imposição na maior parte dos casos (ou alguém acha que as empresas não implementarão “acordos” com os trabalhadores que, de “livre e espontânea vontade”, abrirão mão de seus direitos para não perderem suas fontes de subsistência?) completa o quadro das condições que destruirão o regime geral.

Quanto ao regime de capitalização, como já adiantei, não há informações suficientes na proposta apresentada para saber como ele funcionará no Brasil. De qualquer forma, os princípios desse regime são opostos aos do regime de repartição: trata-se de contas individuais, não há nenhuma solidariedade no sistema, a vinculação entre contribuições e benefícios é rígida (o que não significa, nota bene, garantia de rendimentos determinados no futuro, pois os benefícios são indefinidos — dependem da rentabilidade auferida pelos recursos ao longo do tempo e da expectativa de vida). Ademais, nesse regime, o trabalhador conta apenas consigo mesmo. Desaparecem as contribuições da empresa e do Estado, que constituem o tripé onde se assenta o regime de repartição. Num país como o Brasil, pejado de desigualdades sociais, com cerca de 50% de seu mercado de trabalho precário e informal, um regime como esse só pode apontar para um futuro ainda mais sombrio. A maior parte dos trabalhadores não conseguirá poupar o suficiente e não terá o que retirar no futuro. Será jogado para o assistencialismo. É o que vem acontecendo no Chile, um dos primeiros países a implantar o regime de capitalização, urdido e imposto à população na ditadura sanguinária de Pinochet. Mas na Suíça original, até onde se sabe, não há a taxa recorde de suicídio entre idosos como na Suíça latino-americana, que Paulo Guedes quer copiar.

IHU On-Line – O que seria um modelo econômico alternativo hoje para o Brasil? O que a esquerda propõe como outra via ao modelo econômico em curso?

Leda Paulani – O modelo hoje seguido é o do Ultraliberalismo, com total liberdade para o mercado, obrigações cada vez menores para as empresas e Estado Mínimo, cuja única atribuição é fornecer as garantias jurídicas necessárias ao funcionamento do sistema. O próprio trabalhador vem sendo instado a se ver cada vez mais como empresário de si mesmo”. Num processo conhecido como “pejotização” da força de trabalho, muitos trabalhadores assalariados abrem mão de seus direitos e se transformam em microempresários (o que vem a calhar para as empresas, que, de uma só tacada, economizam os recursos antes destinados ao pagamento das contribuições e demais encargos incidentes sobre a folha, e simultaneamente despem-se das figuras de exploradoras do trabalho). O mundo do (mal) dito “cada um por si e o Estado por ninguém” (senão pela classe de sempre) será um desastre para um país caracterizado pela fratura social que nos marca desde sempre. O pouco que se conseguiu em termos de redução da desigualdade e da miséria nos últimos anos, mas que já vai se perdendo com a continuidade da crise e das “temerárias” políticas ultraliberais, não ocorreu pelo virtuosismo do mercado ou por obra e graça do divino Espírito Santo. Foi resultado de política deliberada, adotada pelo Estado brasileiro.

Modelo alternativo

Um modelo alternativo passa pelo Estado, mas não só. Ele teria que ser uma espécie de “ultraliberalismo reverso”, um modelo em que a ânima capitalista fosse de alguma forma domada e em que aquilo que é vital ao ser humano, saúde, educação, trabalho, cultura, fosse retirado completamente do domínio do mercado e transferido ao domínio da política. Seria uma espécie de desfetichização de bens essenciais, preservados da sanha mercantil por uma espécie de cordão sanitário social. Colocar sob a égide da política não significa dizer que seriam necessariamente atividades estatizadas, senão que estariam sob os auspícios do conjunto da sociedade e de suas entidades representativas, funcionando em espaços de atuação coletivos, numa configuração institucional em que os processos de democracia direta teriam importância crescente. Se o Estado vem a ter aí importância decisiva, o modelo fica parecido com o Estado de Bem-Estar Social que se criou no pós-guerra na Europa e que ainda existe de alguma forma por lá, em particular nos países nórdicos. Mas o Welfare State foi desenhado dentro de uma moldura keynesiana, que ainda tem no crescimento puro e simples do produto e na preservação do nível de emprego seus principais ingredientes. Isso está hoje em xeque, no primeiro caso pelos problemas ambientais e pela exaustão dos recursos naturais e, no segundo, pela revolução tecnológica de quarta geração, que mundo afora vai insaciavelmente sugando empregos. Não por acaso propostas como o Green New Deal e a Renda Básica de Cidadania ganham interesse crescente. Elas, seguramente, também teriam lugar num modelo alternativo, de política econômica progressista.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Leda Paulani – Gostaria, para finalizar, de fazer duas observações. A primeira é que, implantado o modelo ultraliberal, o Estado ficará completamente amarrado, incapaz de fazer o que quer que seja para minorar o quadro de anomia social, que já existe, mas que se agravará sobremaneira. E esta será a situação, pouco importa quem vier a vencer as eleições a cada quatro anos.

A irrelevância da política, cuja semente o mestre Chico de Oliveira detectou há quase duas décadas, se tornará então plena. O sentido último do ultraliberalismo é, no fundo, este, acabar com a política, que supõe participação, mudança, dinâmica social, luta pela radicalização da democracia e por conquistas sociais crescentes e plenamente inclusivas. A vitória completa do ultraliberalismo implica a fetichização absoluta e absurda da esfera política, a naturalização da periódica troca de bastão pelo voto para comandar uma sociedade em que o poderio crescente do capital e da forma mercadoria é que estará colocado como verdadeiro sujeito.

Em países como o Brasil, o crescimento, nesse contexto, da importância de organizações que atuam em torno do ilícito será apenas o corolário da abolição da política. Muitos dirão de imediato que tal realidade já existe, que o mundo já está assim desde o levante liberal dos anos 1980, que as esquerdas não fazem senão adotar o mesmo programa econômico que criticavam quando na oposição, que o Brasil já é esse cenário distópico. É verdade, mas a situação pode piorar, e muito, solapando por completo os poucos espaços que ainda existem de luta política e social. Por isso é preciso resistir da forma que for possível a essa avalanche devastadora.

Por fim, não é demais lembrar que a agenda liberal, que, como já dito, remonta ao início dos anos 1990, rendeu a nosso país uma posição absolutamente subalterna na divisão internacional do trabalho. Em meio ao clamor mundial cada vez maior pela preservação do meio ambiente, viramos uma economia extrativista, produtora de bens primários, que valoriza como ninguém a riqueza financeira e paga renda régia ao capital internacional. Estamos presos numa sorte de nova dependência, que passa pela movimentação de capitais, mais do que pelas relações de troca, e compromete o sobrevalor futuro a ser extraído de nossa força de trabalho em condições cada vez mais duras.

Em outras palavras, hoje, o que gera a permanente transferência de valor excedente para os países do centro do sistema, não é principalmente o fato de produzirmos bens primários e eles bens de maior conteúdo tecnológico. Há até momentos em que essa situação pode se inverter, como aconteceu nos anos 2000. O fator mais importante é o crescimento desmesurado dos capitais internacionais em operação em nossa economia, com destaque para os investimentos financeiros. Eles precisam ser remunerados e nós decidimos que o seriam regiamente (o Brasil resolveu ser uma potência financeira emergente). Assim, parte significativa da mais-valia aqui extraída transforma-se em renda que os remunera. O movimento é de círculo vicioso porque a entrada em profusão desses capitais impõe pagamentos cada vez maiores, afetando negativamente a conta corrente de nosso balanço de pagamentos e exigindo que eles continuem a entrar no país.

Em poucas palavras, dependemos desses capitais para que continuemos dependentes. A elevada taxa real de juros prevalecente há quase três décadas, elemento central dessa “estratégia”, dificultou o crescimento da economia, desindustrializou o país e impediu a necessária acoplagem tecnológica de seu parque produtivo. É essa a “voz dos mercados”, que ouvimos repetida ad nauseam na imprensa especializada e nos telejornais de cada dia. Os governos do PT não atentaram para a necessidade de alterar esta situação, única possibilidade de assentar em pilares mais firmes as conquistas sociais que seus programas e políticas promoveram. Enquanto isso, no relógio da História, os ponteiros indicam o tempo da indústria 4.0. Não poderíamos estar mais atrasados.

 

 

Estupidez e burrice

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Há relação direta entre o surgimento do PCC e o massacre do Carandiru.

Veja o mal que a estupidez e a burrice são capazes de causar.

Na manhã do dia 2 de outubro de 1992, dei uma aula sobre Aids para um grupo de travestis presas na Casa de Detenção —o Carandiru.

No meio da explicação entrou o diretor do presídio, Ismael Pedrosa, que me convidou para um café na sala dele. Foi o que fiz ao redor do meio-dia, quando a aula terminou.

Na conversa, ele tirou do armário uma teresa, corda improvisada com tiras de cobertor enroladas em fios de arame, descoberta na cela de um ladrão de banco que pretendia galgar a muralha, em busca da liberdade.

Quando dei por conta, conversávamos havia mais de uma hora. Levantei para me despedir:

— Já é tarde, estou atrasado e empatando o senhor, aqui.

— Que nada, respondeu ele. É sexta-feira, dia de faxina nas celas para receber as visitas no fim de semana. É o dia mais tranquilo: ninguém mata, ninguém morre.

No fim da tarde, só acreditei que a rebelião de que falavam era mesmo na Casa de Detenção, quando liguei a televisão e reconheci o Pavilhão Nove no meio da fumaça.

Foram mortos 111 detentos, o maior massacre já ocorrido numa prisão brasileira.

Não havia justificativa para aquele morticínio. Quando começou a confusão, os rebelados se apressaram em expulsar os funcionários de plantão, decisão temerária tomada por presos inexperientes, como eram os do Nove, pavilhão que alojava os mais jovens, encarcerados pela primeira vez.

Homens com muitos anos de cadeia estão cansados de saber que manter reféns numa hora dessas é providência primordial para impedir a entrada das forças de repressão que colocarão em risco a integridade física dos rebelados.

Sem reféns no interior do pavilhão convulsionado, o doutor Pedrosa propôs às autoridades reunidas na sala da diretoria, enfrentar a situação da forma convencional, tantas vezes empregada pelos funcionários: cortar luz, água, comida e voltar na manhã seguinte para negociar.

Homem destemido, acostumado a andar sozinho pela cadeia inteira, foi para o portão que dava acesso ao pátio do Nove, na tentativa de evitar o pior. Mas, assim que o portão foi aberto, ficou espremido na parede, quase esmagado pelo tropel dos policiais que invadiu com os cachorros e as metralhadoras. Deu no que deu.

A culpa caiu nas costas do coronel que comandou a operação. Quem conhece um mínimo da hierarquia militar, no entanto, sabe que um coronel jamais daria uma ordem como “dominar a rebelião a qualquer preço” na véspera de um dia de eleições, sem consultar seus superiores. O nome desses criminosos ele levou para o túmulo.

Ao contrário da repercussão negativa na imprensa brasileira e internacional, muita gente apoiou o massacre. Houve até quem lamentasse a timidez da repressão. O próprio coronel se elegeu deputado estadual duas vezes, com dezenas de milhares de votos, exibindo o número 111 na propaganda eleitoral.

Quais foram as consequências dessa estupidez coletiva?

O nascimento do Primeiro Comando da Capital, organização que comanda com mão de ferro o crime organizado na maior parte do país.

Qual a relação entre o surgimento do PCC e o massacre do Carandiru?

Basta ler o que está escrito no estatuto da fundação do partido, que teria vindo para “combater a repressão dentro do sistema prisional paulista” e “vingar a morte dos 111 no massacre do Carandirú”.

Não conheci um carcereiro sequer que tenha trabalhado numa cadeia sem facções de criminosos. O trabalho era evitar que alguma delas fosse capaz de eliminar as demais, para assumir o comando. O massacre subverteu a disciplina nos presídios e afrouxou perigosamente o controle do Estado.

Hoje o PCC está presente nos 27 estados da Federação, Paraguai, Bolívia, Colômbia, Argentina, Peru e tenta dominar as rotas de tráfico de cocaína dos países andinos para a Europa e a África.

Não tivessem os governantes dado a ordem para a PM invadir o Pavilhão Nove naquele 2 de outubro, é provável que não existissem quadrilhas com milhares de membros, como as atuais. Os inconsequentes que aplaudiram o massacre agora cobram medidas enérgicas para acabar com a violência urbana.

Lamento dizer-lhes que o crime organizado foi longe demais. Não está mais ao alcance das mordidas dos cachorros nem dos disparos das metralhadoras. O combate agora exige inteligência, preparo técnico e intelectual, qualidades raras nos governantes de hoje.

Drauzio Varella

Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

 

Historiador rebate mitos sobre o golpe de 1964

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À esquerda e à direita, Daniel Aarão Reis revê fantasmas que cercam a ditadura

Daniel Aarão Reis

Folha de São Paulo – Ilustríssima – 31 de março de 2019. 

A orientação do presidente Jair Bolsonaro para que unidades militares comemorem neste domingo o golpe de 31 de março de 1964, que iniciou a ditadura no país, suscitou polêmicas que merecem análise mais equilibrada, evitando-se “histórias oficiais” à direita e à esquerda.

Vamos por partes. Em fins de março de 1964 instaurou-se no país uma ditadura através de um golpe de Estado. Trata-se de um fato objetivo. Um presidente legítimo, João Goulart, foi deposto pelas armas, ao que se seguiu um regime de exceção, em que o direito da força prima sobre a força do direito. Em outras palavras: em que a vontade do poder se sobrepõe, ou nega, à existência das leis, (re) criando legislações a seu bel-prazer.

Entretanto, a ditadura não se tornou vitoriosa apenas pela ação militar. Foi um golpe civil-militar. Houve apoio social, que se exprimiu nas Marchas da Família com Deus e pela Liberdade no país, na força das tradições conservadoras e autoritárias.

Naquele momento encontramos as raízes que explicam, ao menos em parte, a ascensão atual da extrema direita no país. Além disso, dirigentes civis, políticos, empresários e religiosos participaram do golpe, além instituições, como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e as principais mídias.

A simpatia suscitada pelo golpe era consequência do medo de uma ditadura comunista. A chamada Guerra Fria, entre os EUA e a União Soviética, estava no auge. Na América Latina, a Revolução Cubana acontecera. No Brasil, um amplo movimento reformista propunha mudanças estruturais, visando a “democratização da democracia”.

Aparentemente, havia ali um equilíbrio de forças, contribuindo para o acirramento das contradições.

Assim, a vitória fulminante do golpe de 1964 foi uma surpresa, mesmo para os golpistas mais otimistas.
Como compreender a derrota das esquerdas? Seria resultado de vacilações de suas lideranças mais importantes, que temeriam enfrentamentos imprevisíveis? De organizações populares muito dependentes do Estado e de suas iniciativas? De dúvidas de militantes acerca de engajar-se ou não numa luta decisiva para defender aquela República? Um pouco de tudo isto? O fato é que, até hoje, a derrota das esquerdas carece de melhor compreensão.

Muitos que apoiaram a instauração da ditadura a desejavam de curta duração. Ela eliminaria as forças de esquerda e as eleições do ano seguinte se realizariam. Aí houve uma surpresa. Os chefes militares apropriaram-se do poder por longo tempo, afirmando a preeminência indisputada das corporações (Exército, Marinha e Aeronáutica). Daí ser exato conceituar o regime como uma ditadura militar.

O primeiro governo ditatorial, chefiado pelo general Castelo Branco, apostou numa orientação liberal. A ideia era enterrar as heranças varguistas e a cultura política nacional-estatista. A aposta foi perdida. A propósito deste governo, brotou a formulação de que teria sido uma ditadura branda, uma “ditabranda”.

Como então classificar, entre outras arbitrariedades, as prisões e cassações de direitos políticos e civis, as torturas acobertadas, a dissolução dos partidos políticos, o fechamento do Congresso e a alteração arbitrária da legislação eleitoral? Recusar evidências não é rever a história, mas negá-la. É negacionismo, a eliminação da história.

Os governos ditatoriais seguintes, principalmente no período Médici-Geisel (1969-1979), retomaram o parâmetro nacional-estatista, mas excluindo o povo. Isso não os impediu de conservar e ampliar apoios civis.

Daí ter surgido a ideia de uma ditadura civil-militar, para aprofundar a reflexão sobre as complexas relações entre a ditadura e a sociedade, e evidenciar as cumplicidades de segmentos civis, inclusive de camadas populares. Muito já se fez para desvendar essas cumplicidades, muito ainda há que se fazer para compreender como se comportaram os cidadãos comuns sob a ditadura. Mais pistas poderão daí advir para entender o “mito Bolsonaro”.

A ditadura, porém, sempre suscitou oposições, moderadas e radicais. No grupo dos moderados estavam muitos apoiadores iniciais do golpe, depois decepcionados com os militares, e os que nunca aceitaram a ditadura, mas também não acreditavam em enfrentamentos violentos. Entre os radicais encontravam-se as correntes revolucionárias, armadas, que tentaram derrotar os militares, destruir o capitalismo e construir uma sociedade alternativa. Almejavam uma ditadura revolucionária que asseguraria a transição nos moldes do socialismo autoritário plasmado pela Revolução Russa e confirmado pelo exemplo cubano.

A ditadura massacrou os radicais —com o uso e o abuso da tortura como política de Estado— e neutralizou os moderados, alguns dos quais também presos e torturados. Mais tarde, muitos destes últimos contribuiriam no processo de transição rumo à restauração democrática.

Entre os críticos da ditadura houve um triplo equívoco. Imaginaram-na destinada à estagnação econômica, à subserviência aos EUA e à pura e simples repressão violenta, exercida por boçais. Não foi o que aconteceu. O capitalismo mudou de patamar, embora à custa de desigualdades sociais e regionais. Recuperou-se o nacional-estatismo como programa. E a própria repressão, sempre impiedosa, combinou-se com políticas de conciliação e de acomodação. Anos de chumbo, certamente. Mas também de ouro, e para não poucos.

A transição começou no início do governo Geisel, em 1974, e foi até a aprovação da Constituição de 1988. Foi transicional, estendendo-se no tempo, e transacional, baseada na negociação. A primeira fase terminou com a extinção dos atos institucionais, em 1979. Estendeu-se, a partir daí, outra etapa, em que já não havia ditadura, mas ainda não surgira um Estado democrático de Direito. A tese, ainda dominante, de que a ditadura terminou com a posse de José Sarney, em 1985, tende a privilegiar a preeminência militar e ocultar a participação civil no processo ditatorial.

É certo que o último general presidente, João Figueiredo, tomou posse ainda nos marcos da ditadura, mas governou sem o apoio dos atos institucionais. Sua gestão se conciliava com os aparelhos repressivos e com atentados terroristas de extrema direita, mas os tribunais agiam com autonomia. Não havia presos políticos. A imprensa não era mais censurada. Os partidos políticos e os sindicatos funcionavam em liberdade.

Nas eleições de 1982, elegeram-se candidatos das oposições, e os resultados não foram questionados. Houve ainda greves parciais e gerais, além do gigantesco movimento pelas eleições diretas para a Presidência da República em 1983 e 1984. Tudo isso aconteceu às claras, nas ruas, sem repressão sangrenta. Como falar, então, em ditadura? Trata-se de uma impropriedade.

Em outubro de 1988, a nova Constituição encerrou a transição, mas não agradou a todos. Conservando a cultura nacional-estatista, irritou os liberais. Desagradou também as esquerdas, ao não priorizar a reforma agrária e reivindicações históricas, como a estabilidade no emprego e a semana de trabalho de 40 horas.

Por outro lado, junto a inovações concernentes aos direitos civis, políticos e sociais, nela permaneceram as marcas da transição longa e negociada, os legados da ditadura. Entre outros, a hegemonia do Poder Executivo e da União, o modelo econômico, o monopólio dos meios de comunicação e da terra, a hegemonia do capital financeiro e a tutela —mal disfarçada— das Forças Armadas. Uma Constituição híbrida. Chamá-la de “cidadã”, como quis Ulysses Guimarães, foi uma licença poética.

De 1988 a 2018, 30 anos se passaram. O que se fez em relação à memória da ditadura? Infelizmente, muito pouco. Como em relação à ditadura do Estado Novo (1937-1945), prevaleceu a ideia de que “olhar pelo retrovisor” revolveria “feridas abertas”. É verdade que pesquisas foram empreendidas nas universidades e que a mídia divulgou controvérsias.

Nada capaz, todavia, de fazer a sociedade ver que a ditadura não era um passado que passara, mas algo que permanecia, através de seus legados. Não se convocaram as Forças Armadas para um debate sobre suas funções numa sociedade democrática. Ao contrário, só foram chamadas para assegurar a ordem pública, cumprindo papel de polícia, o que só fez aumentar seu prestígio. É certo que uma Comissão Nacional da Verdade funcionou, mas suas resoluções cedo caíram no esquecimento.

Enquanto isso políticos e partidos, de esquerda e de direita, compraziam-se em dizer, por motivos variados, que a democracia no país estava consolidada. Seus erros geraram consequências, com o ressurgimento, à luz do dia, das tradições conservadoras e autoritárias que permaneciam subterrâneas, mas vivas.

Compreendê-las e superá-las, através do debate e das lutas políticas, é um desafio e tanto. Esconder evidências históricas ou distorcê-las não será um bom caminho para a sempre necessária “democratização da democracia” brasileira.

Gostaria agora de explicitar de que ponto de vista falo, pois ninguém pensa sem premissas ou princípios. Depois de uma longa trajetória, identifiquei-me com o socialismo democrático, ainda por nascer, a ser alcançado pela persuasão, pela participação e pelo voto, distante do capitalismo, sempre desigual e injusto, e também do socialismo autoritário. Essas referências não devem incidir sobre o que é essencial no ofício do historiador —a busca da evidência e da verdade.

Atento a isto, Nikita Kruschev, secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética entre 1953 e 1964, advertiu que a “história era muito séria para ser deixada nas mãos de historiadores”. Exprimiu a ambição do Estado de controlar a historiografia e fazê-la serva das “histórias oficiais”.

Aos historiadores cabe resistir, afirmando, para além de interpretações que podem e devem variar, os compromissos éticos com as evidências e as verdades —por mais fugazes e provisórias que essas sejam, apenas entrevistas como ruínas sob os relâmpagos das tempestades, na bela metáfora de Walter Benjamin.

Daniel Aarão Reis, professor de história contemporânea da Universidade Federal Fluminense, é autor de “A Revolução que Mudou o Mundo” e “Ditadura e Democracia no Brasil”.

 

Religiões Líquidas na sociedade contemporânea

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A sociedade contemporânea vive um momento de grandes transformações em suas estruturas, as bases que estruturavam o mundo estão em crise, exigindo dos indivíduos grandes alterações em suas formas de vida, seus comportamentos e em suas atitudes cotidianas, o incremento tecnológico, o aumento da concorrência e o crescimento constante do poder do dinheiro, estão gerando hábitos, necessidades e costumes novos, levando os indivíduos e a coletividade a um ambiente de incertezas crescentes, medos e inseguranças.

Todas as bases desta sociedade estão ruindo de forma acelerada, as famílias entraram em crise, os governos perderam força e estão endividados, os indivíduos amedrontados e ansiosos, os relacionamentos perderam força, os sentimentos estão assustados, o trabalho em constante transformação, os mercados alucinados e  marcados por uma instabilidade crescente, a educação se sente incapaz de dar respostas mais sólidas e a democracia se encontra envergonhada, estamos numa sociedade marcada por muitos medos e preocupações, onde as respostas e os paradigmas antigos não conseguem mais responder efetivamente aos anseios e as inseguranças dos cidadãos, nesta situação, até mesmo a religião, que sempre trouxe mensagens de otimismo e perseverança, se encontram em fases de inseguranças e alterações estruturais.

Quando olhamos para as questões religiosas, inúmeras indagações nos vem a mente, passamos de religiões detentoras de toda razão, marcadas pelo conhecimento e pela explicação de tudo o que acontecia na sociedade, para um mundo onde as religiões apresentam graves conflitos internos, marcados pela desagregação, pelo medo e pelo desequilíbrio, onde os religiosos brigam e se expõem em público, deixando a mostra uma religião apodrecida e dilacerada pelas divisões internas e pela busca constante de poder material e dinheiro.

Neste ambiente de dissensões e crises constantes, percebemos novas demandas sociais, com isso, as religiões precisam passar por alterações estruturais, nesta sociedade em transformação, as pessoas exigem mais respostas de suas religiões, as crenças antigas e os medos construídos não mais conseguem “prender” os fiéis, que passam a ler, estudar e a ter acesso a informações, neste ambiente estamos visualizando as grandes transformações das religiões, sendo obrigadas a descer de seu pedestal e falar diretamente com seus fiéis, sob pena de perder um grande contingente de apoiadores, seguidores e financiadores.

Ao analisarmos a tradicional Igreja Católica, uma instituição milenar marcada por grandes serviços prestados à sociedade, pois somos uma nação marcada pela colonização portuguesa, um povo fortemente marcado pelo catolicismo, pelas tradições deste grupo detentor de forte influência na Europa e, principalmente, na Península Ibérica, sendo uma das regiões onde o catolicismo perdurou durante muitos anos e séculos, dificultando a ascensão de outros grupos religiosos.

Portugal foi um dos países em que a Igreja Católica apresentava uma estrutura de poder mais consistente, suas tradições dominaram e influenciaram a população portuguesa durante muitos anos e o brasileiro recebeu estas crenças de seu colonizador e a manteve internamente hegemônica durante muitos séculos, sendo contestados neste momento por outro grupo religioso que cresce, ganha poder dentro da sociedade e apresenta claros interesses de hegemonia, de dominação e de poder, gerando preocupações em outros grupos religiosos.

Com uma estrutura milenar, marcada por uma capilaridade nas várias regiões do globo, a Igreja Católica se encontra em momentos de meditação e reestruturação, depois de escândalos recentes que abalaram as estruturas da Igreja, percebemos movimentos intensos e lutas fratricidas por espaços de poder e de dominação, todos agravados pelas transformações e pelas novas demandas da coletividade, impulsionando mudanças, discussões, discórdias e conflitos, muitos deles acumulados a muitos séculos e que estão sendo colocados abertamente.

Nesta estrutura em transformação, encontramos grandes resistências as ideias e as políticas implementada pelo Papa Francisco, de origem Argentina e fortemente atrelado aos grupos mais a esquerda da Igreja, o Papa representa para uns a certeza de que temas mais ligados aos direitos humanos e a justiça social serão encampados pela mundo católico e, de outro, os grupos mais conservadores que se dizem ameaçados pelas mudanças que estão vindo a tona pelo Papa Francisco, visto por muitos como um agente do comunismo.

Nesta luta por poder dentro desta estrutura, percebemos grandes avanços na Igreja desde o início do século XX, a pouco mais de 100 anos as missas eram rezadas em latim e os padres se colocavam de costa para os fiéis, numa demonstração de distanciamento e arrogância, criando uma relação marcada pela frieza, gerando uma distância entre o representante de Deus e a população em geral. Neste momento percebemos a Igreja Católica fazendo gestos para uma outra direção, depois de anos de afastamento, na atualidade percebemos uma busca cada vez maior por aproximação, uma obsessão por estar próximo, pois o distanciamento leva a uma redução dos fiéis e a um enfraquecimento de seu poder dentro da sociedade, desta forma podemos compreender a estratégia adotada pelo papa atual, com visitas a outras denominações religiosas, desde os ortodoxos russos aos grupos muçulmanos, locais visitados recentemente, construindo pontes entre as religiões e dissipando mágoas e conflitos anteriores.

A eleição de Mário Jorge Bergóglio, o Papa Francisco, para suceder o alemão Joseph Ratzinger, que renunciou ao cargo alegando problemas de saúde e idade avançada, nos parece uma demonstração clara de que os cardeais apostavam no carisma do argentino para reduzir as dissensões na Igreja e prepará-la para novas bases da competição religiosa do século XXI, dando novo gás para uma organização milenar, altamente conservadora, que precisa se modernizar, mas apresenta grandes dificuldades de abrir mão de uma estrutura de poder marcada pelo luxo, pela ostentação e pelos rituais, muitos deles vistos como desnecessários e superados.

Nos anos recentes, percebemos a Igreja se deparando com seus fantasmas mais íntimos, os casos de pedofilia e abusos contra crianças e jovens deixaram marcas muito negativas nesta estrutura religiosa, comprometendo muitas de suas ideias e levando a sociedade a exigir punições exemplares de membros de toda a hierarquia da Igreja, desde os menores na pirâmide hierárquica até os mais elevados, como bispos e cardeais.

As religiões precisam dialogar com a sociedade, mostrar claramente as razões de suas desditas, levar aos indivíduos instrumentos de libertação das dores e dos desequilíbrios da realidade, levá-los a compreender que as crises que os envolvem são crises generalizadas e acontecem todos os dias e tendem a acontecer por muitos e muitos anos se as pessoas não buscarem Deus como instrumento de conscientização, se o indivíduo não se voltar para os ensinos superiores, dificilmente vão sobreviver a este turbilhão de desequilíbrios e desajustes generalizados.

De outro lado encontramos o crescimento dos grupos evangélicos, que passam a garimpar fiéis em todas as estruturas da sociedade, desde escolas, passando por presídios e universidades, com uma estratégia de marketing bastante sólida, consistente e eficiente. Este grupo faz um trabalho social bastante interessante e exitoso, com um crescimento acelerado nos últimos anos, com isso, os evangélicos estão mudando o perfil religioso do brasileiro e trazendo novas demandas para os grupos religiosos.

Muitos destes grupos pregam o fortalecimento de ideias e de políticas empreendedoras, reduzindo com isso, as dependências do Estado e a busca por novos projetos e posicionamentos, buscando empreender novos projetos, acreditando na vinculação religiosa e na força da oração e do pensamento positivo como força inspiradora.

Estes movimentos estão crescendo de forma acelerada na sociedade, ganhando espaço na televisão e em todas as mídias modernas e digitais, com esta exposição passam a angariar mandatos eletivos e a contribuir diretamente nas discussões políticas e eleitorais, intensificando uma agenda conservadora nos costumes, liberal na economia e fortemente centrada na família.

Os grupos evangélicos crescem de forma acelerada nesta sociedade, seus encontros e musicais atraem uma ampla quantidade de pessoas, seus cultos vibrantes atraem energias positivas, suas orações sinceras nos levam a emoção e sua atuação social auxilia na melhoria das necessidades individuais, minorando os desajustes e os desequilíbrios e abrindo oportunidades crescentes para muitos que perderam as esperanças e as expectativas de uma vida melhor e até mesmo na existência de um Deus todo poderoso.

Os grupos evangélicos são muito criticados pela doutrinação rigorosa, muitos apresentam pouco capacidade reflexiva e vivem repetindo falas e doutrinas sem conhecer as bases filosóficas de sua vertente religiosa, com isso, muitas vezes servem como uma grande massa de manobra para interesses escusos e inescrupulosos, a reflexão mais crítica deve ser estimulada e os debates mais consistentes devem se tornar frequentes e continuados, melhorando o perfil dos fiéis e dando-lhes um cabedal maior de conhecimento sociocultural.

As novas religiões estão abarcando novas estruturas, os velhos modelos perderam força e clamam por ser substituídos, exigindo das religiões novas formas de atração dos fiéis, vendo-os muitas vezes como clientes, como consumidores de seus produtos imateriais, neste ponto se mostram muito antenados com as novas estratégias dos mercados, mas abrem espaço para críticas ou reflexões sobre um modelo muito centrado nos interesses econômicos e monetários, sendo vistas como uma religião de bases materialistas e alimentadas pelos recursos monetários e financeiros.

Os espíritas precisam sair de seus casulos e se apresentarem mais na sociedade, segundo o IBGE, o movimento Espírita abarca mais de 3,8 milhões de brasileiros, sendo que muitos outros podem ser descritos como simpatizantes desta religião, uma religião bastante reflexiva e marcada pela leitura e pelo conhecimento, onde muitos a confundem com um movimento elitista e arrogante.

Nesta pesquisa realizada em 2010, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), descobriu-se que o espiritismo é o secto com maior índice de pessoas com ensino superior (31,5%) e a maior taxa de alfabetização (98,6%), descobriu se ainda, que existem no Brasil mais de 15 mil centros, estando fortemente consolidado nas regiões do país, abrindo espaço para que o movimento divulgue a frase cunhada como a essência do Espiritismo: “Fora da caridade não há salvação”.

Depois da morte de seu líder maior, Francisco Cândido Xavier, ocorrida em 2002, o movimento perdeu força e se viu dominado por grupos que pouco conversam entre si, buscando poder e visibilidade, são forças consistentes e consolidadas, mas se deixam dominar pela vaidade, querem falar sobre tudo, opinar sobre os mais variados temas e brigam constantemente pelo controle do movimento, mesmo sabendo que este poder é transitório e que, muitas vezes, nos leva a quedas violentas e desnecessárias, que nos condenam a anos de experiências trágicas em regiões abissais, marcadas por dores e desesperança.

Outro ponto central na doutrina dos espíritos, encontramos nestas fileiras pessoas que estudam e discutem suas ideias e pensamentos, muitas destas pessoas se deixam levar por um melindre exagerado, deixando suas fileiras e confundindo as pessoas que professam esta vertente religiosa e a Doutrina, nestas situações muitos se afastam e buscar outras composições religiosas.

A sociedade está mudando rapidamente e exigindo mudanças nas crenças e nos valores religiosos, todas as religiões que insistirem em permanecer como eram anteriormente verão uma grande debandada de fiéis, verão muitos deles buscando novas crenças, ainda mais numa sociedade globalizada e altamente competitiva, marcada pelo crescimento acelerado da informação e do conhecimento, onde as pessoas passam a acessar o funcionamento e as explicações de cada religião sobre as indagações e as dúvidas de cada indivíduo, a competição está levando a religião a mudanças, mas faz-se fundamental que entendamos estas transformações, evitando que caiam no canto da sereia do poder econômico e financeiro.

O momento atual á bastante propício para o crescimento das religiões, em momentos turbulentos, como os que vivemos, as religiões precisam construir um discurso sólido, coeso e centrado em interesses imateriais, com isso, todos aqueles indivíduos que anteriormente mergulharam no discurso científico e tecnológico, vendo neste as explicações para todas as dúvidas e dificuldades dos seres humanos, passam a exigir novas respostas a suas indagações e preocupações cotidianas.

Outro ponto central, neste ambiente de competição, as doutrinas religiosas precisam unificar as demandas materiais com as de cunho imaterial, discurso centrado apenas nos ganhos materiais terão dificuldades para esclarecer as dúvidas dos indivíduos, ainda mais nesta sociedade que disponibiliza uma grande quantidade de informações e de conhecimentos.

O tema religião é sempre visto com muitas reticências, falar sobre religião leva muitas pessoas a conflitos que evoluem para confrontos e violência, nesta sociedade faz-se importante conversar e debater sobre as visões diferentes e temas variados, sempre com respeito e tolerância, onde as pessoas não queiram impor suas visões e respeitem o pensamento e os sentimentos alheios, afinal, todos temos direito de pensar da forma como quisermos, todos temos um grau de evolução e todos somos seres em constante crescimento.

Como vimos, todas as religiões apresentam os seus desafios, mas acredito que o maior destes desafios seja o de manter a chama de Deus e seus valores eternos e imutáveis, nos corações dos indivíduos e capacitá-los para compreender, que religião nenhuma salva ninguém, todas apresentam vantagens e desvantagens, mas a única salvação está na melhoria constante que empreendemos intimamente, eliminando o homem velho e cultivando o verdadeiro homem novo.

O mundo contemporâneo fez com que o homem concedesse grande poder ao dinheiro que, para muitos, se transformou no grande deus da sociedade, libertando mentes e corações e prometendo conquistas sem esforços continuados, o poder deste dinheiro cresce aceleradamente e passa a conquistar mentes e corações, gerando uma grande massa de desequilibrados, desajustados e depressivos, onde as dores da alma estão cada vez mais presente no corpo físico de cada indivíduo, criando dores severas, dolorosas e intermináveis.

‘Autoritários aprenderam a controlar sem ser opressores’, diz Jan-Werner Mueller

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Guilherme Evelin – O Estado de S. Paulo 23/03/2019

O cientista político alemão Jan-Werner Mueller tornou-se uma referência no debate sobre a ascensão de líderes políticos populistas em vários países depois de publicar, em 2016, ano da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, o livro What Is Populism? (O Que É Populismo?). Ele veio para o Brasil a convite da Embaixada da Alemanha para uma série de conferências e debates. Ele deu entrevista ao Estado na sexta-feira, 15, após palestra na Fundação Fernando Henrique Cardoso. Nela, discutiu suas ideias a respeito de populismo, democracia, imprensa e redes sociais num momento em que há uma série de desafios às formas tradicionais de democracia representativa no mundo. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Como distinguir um líder populista em ação? O presidente Jair Bolsonaro pode ser qualificado como um populista? 

Sou relutante em ser uma espécie de teórico com cartão de milhagem, que viaja de um país a outro e diz que isso é assim, aquilo funciona dessa forma, quando, obviamente, as pessoas no Brasil conhecem muito mais as circunstâncias locais. O que eu posso fazer é dar uma moldura e alguns indicadores para que as pessoas possam decidir por si próprias. No meu ponto de vista, um populista é alguém que diz: “Eu e apenas eu represento o povo” – ou o “verdadeiro povo”, como tipicamente, gostam de dizer. Outros políticos são considerados por eles como ilegítimos, corruptos – e todos os cidadãos que não concordam com os populistas são basicamente excluídos do “verdadeiro povo”. Outra forma de distinguir um líder populista é que eles promovem guerras culturais. Há uma diferença entre populismo e nacionalismo. Você pode ser um nacionalista e dizer: “América em primeiro lugar” ou “Brasil acima de todos”, mas não necessariamente proclamar que “apenas eu represento o povo”. É importante ver a diferença, embora muitos populistas sejam nacionalistas. Como eles têm de proclamar quem é o “verdadeiro povo”, o nacionalismo é a melhor resposta para dizer que um bom americano é isso, um bom alemão é aquilo. Um último ponto é que os populistas, frequentemente, não têm uma política externa previsível. Há uma hostilidade em relação às organizações internacionais. Quando eles chegam ao poder, precisam dar continuidade ao discurso anti-elite – e eles recorrem ao clichê de que existe uma “sombria” elite internacional que age nos bastidores contra os interesses do “verdadeiro povo”. Por isso, frequentemente, mas nem sempre, partilham de um discurso anti-semita.

Em conferência, o senhor afirmou que os líderes populistas desenvolveram uma arte de governar. Da mesma forma que Trump, Bolsonaro gosta de atacar a imprensa pelo Twitter. O uso das redes contra a imprensa faz parte desse ‘kit’ populista?

O que alguns desses líderes tentam alcançar é algo que paradoxalmente pode ser chamado de representação direta, uma conexão com os cidadãos, sem a mediação da imprensa profissional e dos partidos políticos. Em alguns casos, essa é uma promessa explícita. Na Itália, Beppe Grillo (comediante e blogueiro, fundador do Movimento Cinco Estrelas, hoje o maior partido da Itália) dizia que não só os políticos são corruptos, mas os jornalistas também. Ele dizia: “Você não pode confiar em ninguém, fale comigo diretamente que eu vou amplificar o que está acontecendo por meio do meu blog”. Essa é uma espécie de técnica, que acaba sendo copiada por outros. E qual pode ser a consequência disso? Tanto os partidos como a imprensa introduzem um certo grau de pluralismo na forma como as pessoas se relacionam com o sistema político. Obviamente, as pessoas têm suas identificações, mas elas se deparam com outros pontos de vista, ideias e formas de pensar quando há essa mediação. Esse pluralismo desaparece quando você tem uma relação de um para um. Outro perigo do “microtargeting” (a distribuição de mensagem, por meio das redes sociais, para públicos ultrasegmentados) é que ele pode virar uma forma de constantemente reforçar mensagens nas quais o povo deve acreditar. Uma definição básica de democracia é que as pessoas devem ter o direito de mudar de ideia e punir o governo para tirá-lo do poder. Mesmo essa definição básica pode estar em perigo se você pensar que existem hoje instrumentos para que as pessoas não recebam informações confiáveis e decidam por elas próprias.

Como a imprensa tradicional deve reagir quando é hostilizada dessa forma? 

Desde o século 19, nós sabemos que há duas instituições que são cruciais para uma democracia representativa funcionar: partidos políticos e mídia profissional. Ambos estão em crise. A imprensa não deve cair na armadilha de pensar ou mesmo dizer que representa a oposição. A oposição toma assento no Parlamento. Essa é a armadilha que Trump armou para alguns órgãos de imprensa nos EUA e que pode ser muito eficaz porque coincide com a crise da mídia. Alguns veículos tendem a responder: “Nós estamos aqui para salvar a democracia”, e assim passam a se vender como se fossem partidários. É melhor simplesmente dizer: “Não somos a oposição, estamos aqui para fazer o melhor jornalismo investigativo possível nas atuais circunstâncias, vamos cobrir o que realmente acontece”. Além disso, há uma outra armadilha: o ultraje e o escândalo vendem. É muito mais fácil fazer um artigo com muitas opiniões fortes, que causam ultraje, do que fazer uma investigação de dois meses, o que, obviamente, é muito caro e difícil. Uma coisa estranha que está acontecendo na mídia de países ocidentais é que algumas organizações estão se tornando clubes para pessoas com determinadas opiniões, como se fossem organizações partidárias com determinada filiação. Isso precisa de uma reflexão para saber se é algo de bom a ser feito.

A democracia liberal está em perigo por causa da ascensão desses líderes populistas?

Especialmente após a eleição de Trump, havia uma tendência a se homogeneizar todos os casos, mas isso é um engano. As pessoas diziam que ocorreria nos Estados Unidos um processo igual ao que aconteceu na Turquia e na Hungria, mas há diferenças importantes. Para chegar ao poder, os populistas partilham certas formas de agir. Mas para serem bem-sucedidos no governo, as circunstâncias locais pesam. Essa é a resposta pedante. Talvez a resposta menos pedante seja dizer que o perigo é aumentado pelo fato de que alguns desses atores podem aprender um com o outro. Depois do fim da Guerra Fria, houve uma ilusão de que as democracias têm uma vantagem epistemológica em relação aos regimes autoritários, porque as democracias aprendem com os erros, enquanto os sistemas autoritários seriam estúpidos. Todos terminariam como a União Soviética. Nós estamos aprendendo que essa “internacional” de líderes populistas autoritários gerou um conhecimento de governar que pode ser aprendido. Essas técnicas de como reduzir o pluralismo da mídia, de como intimidar a sociedade civil podem ser desenvolvidas, sem necessariamente reproduzir as imagens das ditaduras do século 20 que nós conhecemos. Uma coisa que precisa ser dita é: sim, nós, os democratas, aprendemos com a história. Mas os autoritários também. Eles também aprenderam a exercer um grande controle sobre as sociedades sem ser opressores. Há pessoas que viajam para a Hungria e voltam de lá, dizendo: “Está tudo bem, não parece que estamos numa espécie de país fascista”.

Quão importante é o papel de instituições sólidas para conter o impulso autoritário dos populistas?

As instituições importam muito, é claro – e elas não são apenas as instituições tradicionais como o sistema judiciário e os partidos políticos, mas também incluem a mídia e organizações da sociedade civil. O que importa também é o nível de centralização ou descentralização do poder. Em alguns dos países, o poder é muito centralizado. Se você ganha controle do Parlamento, do Executivo e da Corte, e não há outras instâncias de poderes regionais, é muito difícil resistir. Houve um tempo em que Trump podia ignorar os democratas no Congresso, podia ignorar os protestos nas ruas, mas se a Califórnia dissesse que não iria implementar tal política, ele não podia ignorar, porque o governo federal não tem recursos para executar certas políticas sozinho. Na Alemanha, temos um dispositivo na Constituição que diz que certos direitos fundamentais e o federalismo não podem ser abolidos. Antigamente, achava-se que o federalismo não era tão importante, mas agora percebemos como descentralizar o poder é importante para dar às pessoas meios legais de resistir e de praticar a desobediência civil dentro do sistema político.

Como evitar que populistas se transformem em líderes autoritários que ameaçam a democracia?

É preciso proteger as instituições. É preciso ter uma oposição que saiba comunicar bem quais são as discordâncias em termos de políticas que podem ser consideradas ordinárias das discordâncias de natureza constitucional. Os populistas procuram mudar as regras do jogo para, caso ele produza resultados que não os satisfazem, possam dizer que essas regras são ilegítimas. É importante, em algumas circunstâncias, subsidiar ou mudar a forma de regulação da mídia para que informação confiável continue a ser produzida. Por último, é importante sempre fazer uma distinção entre os populistas e os eleitores, porque sabemos muito pouco a respeito desses eleitores para fazer, do alto, severas condenações a eles. Sim, alguns deles talvez sejam racistas. Sim, alguns deles são convictos anti-pluralistas. Mas há muitos sobre os quais nada sabemos.

Qual foi o peso das redes sociais na ascensão desses líderes populistas?

É uma afirmação muito plausível dizer que elas facilitaram a sugestão de representação direta feita pelos líderes populistas. Mas havia populismo antes das redes sociais. Essa experiência de conexão direta não é totalmente nova. Antigamente, você podia ir à assembleia de um partido e, por quatro horas, todo mundo ficava saudando o grande líder. Ao final, você saía da assembleia com essa sensação de conexão direta. Mas essa era uma experiência extraordinária. Agora, é uma experiência que você pode sentir 24 horas por dia pelo Twitter. Talvez essa mudança quantitativa tenha levado também a uma mudança qualitativa, mas há muitos outros fatores. A política ainda é uma questão de indivíduos fazendo escolhas. A história na Europa Ocidental e nos Estados Unidos mostra que nenhum líder populista de direita, até agora, ascendeu sem a colaboração de elites conservadoras bem estabelecidas. Relativar o peso das mídias sociais é importante para cobrar a responsabilidade dessas elites que conscientemente optaram por esse caminho.

A blasfêmia de Jair Bolsonaro: que “Deus” acima de todos?

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Não queria ter escrito este artigo. Mas a aguda crise política atual e o abuso que se faz do nome de Deus provocam a função pública da teologia. Como qualquer outro saber, ela possui também a sua responsabilidade social. Há momentos em que o teólogo deve descer de sua cátedra e dizer uma palavra no campo do político. Isso implica denunciar abusos e anunciar os bons usos, por mais que esta atitude possa ser incompreendida por alguns grupos ou tida como partidista, o que não é.

Sinto-me, humildemente, na tradição daqueles bispos proféticos como Dom Helder Câmara, dos Cardeais Dom Paulo Evaristo Arns (lembremos o livro que ajudou a derrocar a ditadura “Brasil Nunca Mais”) e de Dom Aloysio Lorscheider, do bispo Dom Waldir Calheiros e de outros que, nos tempos sombrios da ditadura militar de 1964, tiveram a coragem de erguer a sua voz em defesa dos direitos humanos, contra os desaparecimentos e as torturas feitas pelos agentes do Estado.

Vivemos atualmente num país dilacerado por ódios viscerais, por acusações de uns contra os outros, com palavras de baixíssimo calão e por notícias falsas (fake news), produzidas até pela autoridade máxima do país, o atual presidente. Com isso ele mostra a falta de compostura em seu alto cargo e das consequências desastrosas de suas intervenções, além dos despropósitos que profere aqui e no exterior.

Seu lema de campanha era e continua sendo “Deus acima de todos e o Brasil acima de tudo”. Precisamos denunciar a utilização que faz do nome de Deus. O segundo mandamento divino é claro de “não usar o santo nome de Deus em vão”. Só que aqui o uso do nome de Deus não é apenas um abuso mas representa uma verdadeira blasfêmia. Por que?

Porque não há como combinar Deus com ódio, com elogio à tortura e a torturadores e com as ameaças a seus opositores como fazem Bolsonaro e seus filhos. Nos textos sagrados judaico-cristãos, Deus revela sua natureza como “amor” e como “misericórdia”. O “bolsonarismo” conduz uma política como confrontação com os opositores, sem diálogo com o Congresso, política entendida como um conflito, de viés fascista. Isso não tem nada a ver com o Deus-amor e o Deus-misericórdia. Consequentemente propaga e legitima, a partir de cima, uma verdadeira cultura da violência, permitindo que cada cidadão possa possuir até quatro armas. A arma não é um brinquedo para o jardim da infância mas um instrumento para matar ou se defender mutilando ou matando o outro.

Ele se diz religioso, mas é de uma religiosidade rancorosa; ele comparece despojado de sacralidade e com um perturbador vazio espiritual, sem qualquer sentido de compromisso com a vida da natureza e com a vida humana, especialmente daqueles que menos vida têm. Com propriedade afirma a miúdo o Papa Francisco: prefere um ateu de boa vontade e ético que um cristão hipócrita que não ama seu próximo, nem tem empatia por ele, nem cultiva valores humanos.

Cito um texto de um dos maiores teólogos do século passado, no fim da vida, feito Cardeal, o jesuíta francês Henri De Lubac:

“Se eu falto ao amor ou se falto à justiça, afasto-me infalivelmente de Vós, meu Deus, e meu culto não é mais que idolatria. Para crer em Vós devo crer no amor e na justiça. Vale mil vezes mais crer nessas coisas que pronunciar o Vosso nome. Fora delas é impossível que eu Vos encontre. Aqueles que tomam por guia – o amor e a justiça – estão sobre o caminho que os conduz a Vós” (Sur les chemins de Dieu, Aubier 1956, p.125)

Bolsonaro, seu clã e seguidores (nem todos) não se pautam pelo amor nem prezam a justiça. Por isso estão longe do “milieu divin” (T.de Chardin) e seu caminho não conduz a Deus. Por mais que pastores neo-pentecostais veem nele um enviado de Deus, não muda em nada a atitude do presidente, ao contrário agrava ainda mais a ofensa ao santo nome de Deus especialmente ao postar na internet um youtuber pornográfico contra o carnaval.

Que Deus é esse que o leva a tirar direitos dos pobres, a privilegiar as classes abastadas, a humilhar os idosos, a rebaixar as mulheres e a menosprezar os camponeses, sem perspectiva de uma aposentadoria ainda em vida?

O projeto da Previdência cria profundas desigualdades sociais, ainda com a desfaçatez de dizer que está criando igualdade. Desigualdade é um conceito analítico neutro. Eticamente significa injustiça social. Teologicamente, pecado social que nega o desígnio de Deus de todos numa grande comensalidade fraternal.

O economista francês Thomas Piketty, famoso por seu livro O Capital no século XXI (Intrínseca 2014), escreveu também um inteiro livro sobre A economia da desigualdade (Intriseca 2015). O simples fato, segundo ele, de que cerca de 1% de multibilhardários controlarem grande parte das rendas dos povos e no Brasil, segundo o especialista no ramo, Márcio Pochmann, os seis maiores bilionários terem a mesma riqueza que 100 milhões de brasileiros mais pobres (JB 25/9/2017), dão mostras de nossa injustiça social.

Nossa esperança é de que o Brasil é maior que a irracionalidade reinante e que sairemos melhores da atual crise.

Leonardo Boff é teólogo e comentou A oração de São Francisco pela Paz, Vozes 2009.

Previdência de Bolsonaro produzirá massa miserável, avalia economista.

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Para Eduardo Fagnani, professor da Unicamp, governo quer criar ‘colônia exportadora de soja, na qual a população não precisa ter renda’

A Reforma da Previdência ganhou um nome pomposo e marqueteiro sob a caneta de Bolsonaro: Nova Previdência. A missão alardeada pelo governo parece ainda mais nobre, acabar com os privilégios e cobrar mais de quem ganha mais. Mas o texto enviado ao Congresso mostra pouco disso.

Embora corrija certas distorções entre o regime geral e p próprio (dos servidores públicos), as regras ficaram ainda mais duras para os mais pobres. Para se aposentar com 100% da média salarial, será preciso contribuir por 40 anos. A idade mínima subiu e afeta principalmente as mulheres. Também foram cortadas pensão por morte e aposentadoria por invalidez.

Para o economista Eduardo Fagnani, professor da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit), essas mudanças criarão uma massa de miseráveis nas próximas décadas. “Poucos vão conseguir comprovar a idade mínima e o tempo de contribuição. E serão jogados para assistência.”

Um dos pontos mais críticos é o corte no benefício de prestação continuada. Pelas novas regras, os idosos pobres só teriam direito ao salário mínimo a partir dos 70 anos. “No caso dessa população, é muito difícil que eles cheguem aos 70 anos. Haverá uma sobrevida muito curta”, diz.

Ele também rebate os slogans do governo. “Não dá prá dizer que uma reforma é justa se ela deixa de fora os militares. Os policiais civis, federais e agentes penitenciários se aposentam com 55 anos. Porque a mulher rural tem que aposentar com 60 anos, e essas categorias antes?”

Um dos especialistas ouvidos pelas comissões que discutiram a reforma na gestão Temer, Fagnani comenta os principais pontos da nova versão reforma. Confira a seguir.

CartaCapital: O governo fala em previdência justa, com regras iguais para todos. Até que ponto isso é verdade?

Eduardo Fagnani: Não é verdade. O que eu percebo, é que essa reforma continua exigindo muito do INSS e do regime geral. Ela tende a excluir da Previdência muita gente que não vai conseguir chegar na idade mínima e nem comprovar os vinte anos de contribuição. E baixando o benefício assistencial a 400 reais, eles constroem um muro. Vamos sair de um país que tem 80% dos idosos com proteção previdenciária e caminhar para um futuro em que 30% da população terá uma previdência ganhando entre 400 reais e 1000 reais.

CC: Se essa PEC for aprovada como está, quais os efeitos sobre a desigualdade?

EF: Você já tem 50% do mercado de trabalho na informalidade, que não contribui com a Previdência. E com essas regras, que continuam duríssimas, mais uns 20% não irão conseguir e serão lançados à assistência ganhando 400 ou 500 reais. Para que destruir o sistema de proteção social, para que a gente tenha um país indigente daqui a 20 ou 30 anos? País sério faz reforma da Previdência, mas não destrói o sistema de proteção social. Juntando isso com a reforma trabalhista, teremos um capitalismo sem consumidor. Esse é o sonho deles, uma colônia exportadora de soja, na qual a população não precisa ter renda.

CC: Guedes manteve a promessa de economizar 1 trilhão em dez anos. Faz sentido esse cálculo?

EF: Isso é chute. O governo não tem um modelo de projeção atuarial, os economistas não acertam projeções de um ano. Qual o PIB que eles estão projetando para os próximos dez anos? Para dizer isso, é preciso abrir os dados. Eles dizem que só a pensão das Forças Armadas vai gerar uma economia de 92 milhões. Mas eles não têm um projeto para as Forças Armadas. Se não tem projeto, como sabem dessa economia?

CC: Políticos à esquerda e à direita concordam que é preciso reformar a Previdência. Qual seria a reforma ideal?

EF: Nos últimos 30 anos, foram feitas quatro grandes reformas na Previdência. No regime geral, você precisa de correções muito pontuais. A idade mínima existe desde a década de 30, hoje eles dizem que o trabalhador urbano se aposenta com 66 anos. E isso representa 70% das aposentadorias. O restante é por tempo de contribuição. O problema estava aí, mas foi corrigido em 2015 com o fator previdenciário móvel. Isso é padrão de país desenvolvido. Não sei o porquê de mexer de novo nisso.

CC: E a questão dos servidores públicos?

EF: A idade de aposentadoria do servidor público tem que aumentar mesmo, ser pelo menos igual à do INSS. Mas é uma medida pontual. Os problemas da Previdência no setor público são dois. Um é o estoque dos trabalhadores que entraram desde 2012. O outro é a previdência dos estados.

O servidor que entra no serviço público a partir de 2012 tem um teto 5.800 reais do INSS. Porque foi criado o Funpresp [Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal]. Daqui a 35 anos, essa pessoa se aposenta pelo teto. Então o problema também não é quem se aposenta a partir de 2012.

CC: Esse projeto é melhor ou pior do que aquele que o Temer apresentou em 2016?

EF: Os relatores daquela época aprenderam muitas coisas nas discussões, e até tentaram reduzir o problema. Mesmo assim, permanecem aspectos muito críticos. A proposta inicial da reforma era de 25 anos de contribuição. Na versão final, baixou para 15. Agora eles deixaram com 20 anos. Também recuam pouco na questão rural. Mas os problemas permanecem.

CC: Há algum ponto crítico que não esteja recebendo a atenção devida?

EF: O chamado gatilho. A cada quatro anos, sempre que a expectativa de vida subir, a idade mínima aumenta um ano. Em vinte anos, esse limite deve chegar aos 67, 68 anos. É uma coisa doida, porque alguns países capitalistas desenvolvidos passarão a idade para essa faixa etária a partir de 2030. E nós podemos chegar antes deles lá. O Brasil é o nono país mais desigual do mundo [dados da Oxfam]. E além de desigual, é heterogêneo. Não dá prá comparar o Piauí com Santa Catarina.

 

 

 

 

Sexo, desejos e prazeres na sociedade do hedonismo

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Vivemos em uma sociedade marcada por grandes mudanças em todas as áreas e setores, desde o mundo dos relacionamentos, os encontros e os desencontros, todas estas mudanças estão estruturadas numa sociedade centrada na lógica do prazer e do gozo desesperados, estamos assoberbados de vontades e nos esquecemos de nossas responsabilidades, vivemos no mundo onde o prazer ganhou ares de celebridade, se estamos sentindo prazer temos que mostrar aos outros agora, se não estamos sentindo devemos fingir e atuar como atores neste mundo da imaginação.

Sabendo da importância da temática, o médium Francisco Cândido Xavier e seu mentor espiritual Emmanuel, nos trouxeram, no começo dos anos 1970, a obra Vida e Sexo, onde nos trazem informações e mensagens dos tarefeiros benevolentes e sábios que orientaram Allan Kardec nos primórdios da Doutrina Espírita, nesta obra são abordados temas contemporâneos de relevo, como família, namoro, casamento, divórcio, filhos, uniões infelizes, aborto, homossexualidade, dentre outros.

O sexo é fonte criadora, sua importância é central na sociedade, a união entre os seres humanos e sua reprodução é uma grande benção de Deus para o processo de crescimento e desenvolvimento dos indivíduos, esta fonte criadora deve ser utilizada e estimulada como forma de prazer e de reprodução, mas sempre de forma responsável e inteligente, para que isto aconteça, os pais, as famílias e os educadores tem um papel fundamental.

A Doutrina Espírita tem muitas coisas para nos dizer referentes a estas questões ligadas ao sexo, muitos indivíduos são surpreendidos por obsessões e desejos delirantes e destrutivos, muitas obras nos mostram como os espíritos pode se utilizar dos desequilíbrios sexuais para destruir relacionamentos e reputações, quantas pessoas são denegridas e brutalizadas pelos escândalos gerados no mundo do sexo e dos prazeres tresloucados.

É importante destacar, que estes espíritos podem até gerar constrangimentos aos encarnados, mas isto só acontece quando os encarnados são invigilantes e se entregam aos prazeres do sexo  desajustado, com isso se abrem para estes sentimentos e pensamentos desequilibrados, deixando um campo fértil de ação para os desencarnados que ora se comprazem com os desejos desenfreados do sexo de encarnados pouco vigilantes.

Um dos livros mais interessantes com esta temática é Sexo e Destino, psicografia de Francisco Cândido Xavier e ditado pelo espírito André Luiz, este livro faz parte da coleção A vida no Mundo espiritual, uma obra fantástica que nos leva a compreender como os prazeres do sexo desequilibrado levaram duas famílias cariocas a uma situação de vinganças, mortes, desastres, violências e desesperos constantes, histórias que retratam as mazelas dos seres humanos e que nos envolvem a todos nos mais variados momentos da vida.

Falar dos desajustes do sexo e dos prazeres sexuais é falar sobre vontades que afetam uma grande parcela da humanidade, segundo espíritos superiores, a energia sexual é uma das mais importantes existentes nos seres humanos, o poder desta energia é tão violento que, quando desequilibrados podem nos levar a desajustes mentais e, quem sabe, a uma internação em hospitais psiquiátricos, locais estes que antigamente obrigavam pacientes desinformados desta temática sexual a tratamentos terríveis e agressivos, com impactos generalizados no corpo físico por inúmeros anos.

Depois de vivermos em famílias castradoras, pais agressivos e violentos, comunidades caracterizadas por uma alta prole e vontades e desejos castrados de forma agressiva e violenta, partimos para um mundo mais liberal, onde os prazeres sexuais estão a mostra nas emissoras em todas as faixas etárias, expondo jovens e crianças a um mundo de prazeres sem responsabilidade e conhecimento.

O sexo se transformou em um ativo de destaque na sociedade contemporânea, muitos investem seu tempo e seus recursos para adquirir corpos sarados e perfeitos, cheios de curvas e insinuantes, objetivando a sedução e a conquista de prazeres materiais, nesta situação, a Doutrina Espírita nos mostra que todas as conquistas podem nos gerar problemas se não forem acompanhadas de sentimentos e interesses nobres, todos aqueles que estimulamos a se apaixonar pela gente, por vaidade ou interesse escusos, ao fazermos estes irmão sofrerem, podemos estar criando sentimentos de ódio, de rancor e de ressentimento, levando-o a, num outro momento ou numa outra vida, se tornar nosso algoz, nosso perseguidor, um amor que se transformou em ódio, prendendo estes irmãos durante muitos séculos, períodos de dores, mágoas e tristezas mútuas.

Nesta sociedade descontrolada, encontramos religiosos envoltos em crimes sexuais, pessoas que anteriormente fizeram votos de castidade se envolveram intimamente com jovens, abusando e desencaminhando pessoas, utilizando-os para prazeres indecorosos que agridem sua psique e criam nestes indivíduos medos e desequilíbrios que os perseguem por muitos anos, quiçá décadas, de suas exist6encias, gerando dores e ressentimentos.

A Doutrina Espírita nos leva a grandes reflexões sobre as questões do sexo, aos desvarios sexuais e seus desequilíbrios, a reencarnação nos auxilia a compreender muitas coisas desta temática e, principalmente, nos auxilia a não criticar nem julgar estes irmãos, ao nos descortinar as misérias dos seres humanos no campo sexual, nos mostra que todos estamos sujeitos a estes desequilíbrios, todos temos em nossa trajetória de espíritos imortais esta chaga reluzindo no espírito e no períspirito, todos somos pecadores e devemos respeitar, orar e auxiliar a todos que ora passam por esta mazela severa, julguemos menos e oremos mais para que as dores alheias sejam superadas pelos irmão caídos, afinal não sabemos quando seremos nós os caídos.

Muitos espíritos são marcados por fortes desejos e vontades sexuais, quando desencarnam vão para regiões condizentes com suas vontades e necessidades imediatas, nestes locais aprendem com outros indivíduos desencarnados a sentirem os prazeres das pessoas encarnadas, buscando-as e vampirizando-as constantemente, instigam nestes indivíduos suas vontades e seus desejos e se satisfazem da pouca vigilância dos irmãos encarnados que, nem imaginam, que sua intimidade é vista por muitos irmãos desencarnados, num quadro macabro de prazer, orgias e desequilíbrios.

Em locais de encontros sexuais, motéis, becos escuros e quartos mais humildes, estes irmãos fazem morada e são atraídos por estas energias desequilibradas, os encarnados que buscam estes recintos para seus gozos físicos e seus prazeres efêmeros, perpetuam suas necessidades e suas vontades sexuais são por eles acompanhados e por eles influenciados, muitos de seus pensamentos, vontades e desejos não são seus, mas oriundos de companheiros desencarnados, que os controlam muito mais que imaginam.

O prazer sexual deve ser visto com grande responsabilidade, todos que se misturam com estas energias desequilibradas sentem prazeres mas, ao mesmo tempo se veem em situação de constantes buscas, são indivíduos que nunca se satisfazem por completo, buscam estas energias todos os momentos, são afins aos seus pensamentos, vibram no mesmo diapasão, se entregando a um prazer mais rápido e fulgás, deixando de lado a reflexão baseada na ética e na moral, valores fundamentais para a construção de sociedades mais estruturadas e baseadas na vivência do Cristo.

Muitos reinos e governos foram dizimados depois de ver suas estruturas sendo corroídas internamente pelos prazeres imediatos da bebida e do sexo exagerados, cortes e reinados foram substituídos devido a uma forte e consistente degradação moral, onde os governados passam a perder o respeito e a admiração por reis e rainhas que se entregam a promiscuidade e as prazeres desequilibrados.

A Doutrina dos Espíritos nos mostra que todos os indivíduos são dotados destas energias sexuais, uns a utilizam de forma equilibrada, constituem família, constroem laços sólidos e imutáveis, agem como verdadeiros cristãos e levam sua mensagem de respeito aos indivíduos para todos os locais, solidificando sua base moral e consolidando uma ética baseada em valores sólidos e verdadeiros.

Outros se utilizam destas energias sexuais para a busca constante pelo prazer, se utilizam da sedução penhorando corpos saudáveis em prol de uma ascensão social imaginária e temporária, seduzem com as armas do sexo e buscam uma estrutura centrada no transitório, conseguem os prazeres da matéria e muitas vezes os recursos amoedados desejados mas, ao mesmo tempo, penhoram seus espíritos para resgates dolorosos em vidas futuras, muitas vezes marcadas por doenças físicas e incapacidade reprodutivas.

Muitos irmãos, em busca de prazeres tresloucados, se esquecem dos compromissos dos sentimentos mais nobres, se entregam a prazeres sexuais e se veem com filhos indesejados, buscando nesta situação subterfúgios para acobertar estas crianças, muitas foram mortas e outras foram levadas para outras regiões, gerando dores e lágrimas constantes, obrigando-os a, numa próxima experiência física, arcar com esta desventura gerada em corações alheios.

São inúmeros os irmãos que se entregam a vingança de entidades encarnadas, irmãos desencarnados que se dizem vítimas de atitudes equivocadas e se entregam a uma maldade contumaz, buscando nela uma resposta para suas desditas anteriores, estes irmãos acabam numa auto- obsessão, vivem para descobrir falhas em seus perseguidos e, ao descobrir, canalizam suas energias para se vingar, destruindo e degradando sem puder nem solidariedade.

O sexo é uma fonte intensa de prazer, dele os indivíduos nascem, crescem e se desenvolvem, esta energia saudável pode lhe propiciar grandes incrementos morais e éticos, contribuindo para que o indivíduo cresça como espírito e se eduque de desequilíbrios anteriores, angariando novos conhecimentos e sentimentos para um processo de depuração espiritual.

Numa sociedade centrado no dinheiro e no poder do capital financeiro, onde a imagem ganha relevância em todas as discussões sociais, onde os valores monetários compram corpos esculturais e conseguem adquirir um  amor quase verdadeiro, o sexo passa a ter uma importância incomensurável, levando o mercado a perceber e investir neste potencial, com filmes, séries, empreendimentos, boates, motéis, encontros e jogos virtuais, o potencial é imenso e os empreendedores não se furtam de investir e lucrar, onde existe potencial de ganhos econômicos os interesses materiais se instalam e dominam.

O livro Sexo e Destino nos mostra como entidades em situações degradantes se aproximam de casais desavisados e absorvem prazeres animalizados, a proximidade e a sintonia servem como eixo central deste prazer, gozam e se regozijam do encontro de encarnados e, muitos deles, vivem desta forma por décadas e até séculos envoltos em prazeres da sedução e do sexo descontrolados.

Na obra psicografada por Francisco Cândido Xavier e ditada por André Luiz, duas famílias se entrelaçam em um conto de sexo desequilibrado e recursos financeiros abundantes, onde casais se entregam aos prazeres e seus filhos são devorados por uma educação centrada em valores fúteis e materializados, atraindo espíritos com pensamentos e desejos parecidos, a mente é força criadora, seu pensar atrai energias valiosas para seu progresso material ou te leva a uma tempestade de desesperanças e medos.

Outro ponto central e de fundamental importância relacionados aos prazeres do sexo são descritos por André Luiz no livro citado acima, o autor destaca que os casais apaixonados e em sintonia, ao se entregarem aos namoros sexuais são preservados e o fazem sem a presença de entidades de mundos inferiores, estes casais são protegidos em sua intimidade por laços sólidos e verdadeiros de amor e reciprocidade constantes. Ao contrário, todos aqueles casais ou grupos de indivíduos que se entregam a orgia, promiscuidade e sexo desequilibrados, fazem da banalização do sexo seu momento máximo de prazer e dos gozos seus espaços de gritos e desajustes.

Como nos mostra Allan Kardec em O livro dos Espíritos, “…são os mesmos os espíritos que animam os homens e as mulheres”. Com isso, percebemos que o espírito não tem sexo como imaginamos, podem encarnar no corpo masculino ou num corpo feminino, depende de sua missão ou compromisso espiritual, com isso, percebemos a importância de respeitarmos as pessoas e suas escolhas, não as respeitando muitas vezes encontramos inúmeros conflitos na área da sexualidade que poderiam ser, facilmente, evitáveis, afinal nas varias encarnações que tivemos, nascemos com as várias morfologias físicas.

O sexo é algo de muita importância para a humanidade, seus prazeres exigem uma imensa responsabilidade dos indivíduos e das coletividades, nesta sociedade o papel da família ganha relevância e obriga os pais a um compromisso mais efetivo, a educação cristã somada a uma constante referência aos sólidos e consistentes valores deixados pelo Cristo, além de conversas e trocas de informações, somadas a oração e aos pensamentos edificantes, constroem nos indivíduos valores morais e éticos que perpassam o corpo material e se propagam para o espirito e o períspirito, transformando os homens e materializando a centelha divina de amor e solidariedade.

 

Grandes desafios para a economia brasileira

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Depois de três anos de desaceleração e crise econômica, marcadas por alto desemprego, queda considerável da renda e do salário, incremento da inflação e do endividamento público, além de um déficit crescente e de muita instabilidade política, o Brasil inicia um ciclo modesto de recuperação econômica e melhora no ambiente de negócios.

Com a recessão e os desequilíbrios econômicos, os investimentos foram reduzidos, de um lado as empresas acumularam grandes estoques e, com isso, evitavam aumentar seus investimentos produtivos; de outro, o incremento nos trabalhadores desempregados, sem salários e sem rendas, sem empregos estes trabalhadores não possuíam recursos para adquirir seus produtos e mercadorias necessárias para a sobrevivência e de seus familiares, levando uma parte substancial dos trabalhadores a viver em condições degradantes e indignas, com isso, percebemos um aumento na pobreza e na marginalidade.

A crise gerou graves impactos sociais, o incremento do desemprego levou mais de 12 milhões de pessoas para a desesperança, com impactos diretos sobre o consumo e para todo o ciclo econômico, gerando graves consequências sociais, como violência urbana e insegurança pública, com aumento na criminalidade, novos medos e desestruturação familiar, impulsionadas pelo incremento do tráfico, das milícias e no crime organizado.

A situação recessiva da economia brasileira contribuiu para a degradação das finanças dos governos federal, estaduais e municipais, com isso, muitos fornecedores ficaram sem receber seus pagamentos, os trabalhadores tiveram seus salários atrasados e as condições de vida destes pioraram rapidamente, gerando uma espiral de medos e instabilidades, esta situação de desesperança perdura até os dias atuais e as perspectivas de melhora econômica se fazem mais presentes, embora bastante tímidas e insuficientes.

O ambiente econômico se degradava rapidamente devido a crise política, a abertura de um processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff elevou a instabilidade econômica e piorou o comportamento dos setores produtivos, o clima era de grande preocupação e desesperança, a inflação crescia rapidamente, o endividamento público aumentava e o déficit público cresceu rapidamente, as empresas de classificação de risco rebaixaram as notas do país e a situação econômica se degradou de forma acelerada.

Muito se discutiu na época se o impeachment fora motivado por crimes de responsabilidade ou por mero interesse golpista, acredito que o processo esteve atrelado a ambas as justificativas, a contabilidade criativa aconteceu, embora não tenha ocorrido apenas no mandato desta presidente, muitos cometeram as irregularidades e não foram punidos com a mesma rigidez. O processo foi motivado pela fragilidade da presidente em controlar o jogo político e propor uma agenda mais assertiva para todos os agentes produtivos, sem força politica e carisma pessoal, o resultado foi um processo longo e desgastante para a sociedade e com graves impactos econômicos e financeiros para a economia do país.

Com a queda da presidente Dilma Rousseff e a ascensão de Michel Temer, medidas econômicas mais liberais foram introduzidas, a inflação fora controlada, as taxas de juros se reduziram, as perspectivas econômicas melhoraram, mas mesmo assim, o tão desejado crescimento econômico não apareceu, o número de desempregados pouco se reduziu, a violência urbana cresceu de forma acelerada, apenas em 2017 foram registrados mais de 60 mil homicídios, o ambiente de insegurança crescia, levando o governo federal a intervir na segurança pública do estado do Rio de Janeiro, além da péssima situação das contas públicas, que pouco reagiram a nova política econômica.

Depois de uma eleição conturbada, o candidato Jair Bolsonaro assume a presidência e inicia uma nova estratégia política para a nomeação de ministro e subordinados, dentre os nomeados destacamos o Ministro da Economia Paulo Guedes e o Ministro da Justiça e da Segurança Pública, o ex-juiz Sérgio Moro, iniciando uma nova gestão carente de ideias e políticas mas marcado fortemente pelo apoio dos setores militares e da igreja evangélica, dois braços importantes do governo, além do filósofo Olavo de Carvalho, radicado nos Estados Unidos e descrito como o grande ideólogo do presidente.

Depois de pouco mais de 100 dias de governo, tempo insuficiente para uma reflexão mais estruturada e complexa do novo governo, percebemos alguns traços e rabiscos estranhos do novo governo, discussões constantes, comentários exagerados, postagens excessivas e uma grande dose de desastres, principalmente no campo da Educação e das Relações Exteriores, ambos comandados por pessoas pouco expressivas na sociedade e muito vinculadas aos pensamentos ideológicos da direita, descritos como liberais na economia e conservadores nos costumes.

Na educação, percebemos um desgoverno crescente, pouco mais de três meses de mandato, o Ministro Ricardo Velez Rodrigues pouco trouxe de novidades, neste curto período, muitos foram substituídos, confrontos ficaram evidentes entre grupos variados e as políticas efetivas e emergenciais ainda não se fizeram presentes, apenas uma vaga proposta de combate a corrupção aos moldes da Lava a Jato e uma guerra aberta a proposta de escola sem partido e uma tal de ideologia de gênero.

Depois de chegar aos 100 mil pontos, num momento de excitação e grandes expectativas do mercado com as propostas liberais do Ministro Paulo Guedes, a Bolsa de Valores perdeu um pouco do ânimo e os investidores passaram a desconfiar do governo, tudo isto devido as fragilidades da articulação política, marcadas por imaturidades constantes, dificuldades de intermediação política, muitas tuitadas infelizes e pouca efetividade na defesa da proposta, até mesmo o presidente Jair Bolsonaro defende as reformas econômicas de forma constrangida e sem convicções mais sólidas, deixando o mercado em polvorosa e criando expectativas negativas para o futuro próximo.

Depois de duas viagens internacionais, terminamos a semana com o presidente da Câmara dos Deputados fazendo inúmeras críticas ao governo, definindo-o como um deserto de ideias e projetos, segundo este, o presidente precisa sair das redes sociais e passar a governar o país, deixar de falar asneiras e assumir suas responsabilidades como mandatário máximo da nação, somente assim, o país poderá sonhar com uma guinada na situação econômica e um alento a quase 12 milhões de desempregados, que buscam novas oportunidades no mercado a mais de quatro anos, muitos deles sobrevivendo em condições pouco dignas e deploráveis.

Cabe ao governo iniciar as discussões políticas em torno da Reforma da Previdência, conversar, dialogar e negociar com todas as forças e grupos políticos são formas salutares de construir consensos, consensos estes importantes para o sucesso da empreitada, sem esta reforma a economia tende a perder força e os impactos serão sentidos por todos, principalmente pelos grupos mais frágeis e desprovidos de perspectivas da população.

Outro ponto que deve ser destacado, depois que a eleição terminou, cabe ao governo reestruturar o discurso, adotar uma política de inclusão e conversação constantes, afinal, não foi apenas o executivo federal quem foi eleito, mas todos os deputados e senadores, suas demandas devem ser vistas com normalidade e aceitas como parte do jogo democrático. Todas as vezes que o presidente da República, um de seus filhos ou subordinados fazem críticas excessivas a classe política, dizendo que esta quer apenas barganhar cargos e recursos públicos, o resultado é uma criminalização da política, sendo que esta deve ser vista como um instrumento fundamental para a sociedade e para a melhoria das condições sociais, criminalizar a política pode abrir espaço para atitudes negativas e autoritárias, além de retrógrada e desnecessária.

Neste ambiente de instabilidades e medos constantes, cabe aos grupos organizados da sociedade civil diminuírem estes discursos agressivos e inflamados, muitos grupos se digladiam em conflitos constantes em redes sociais, setores da classe média e aficcionados pelo governo deixam de lado seu espírito crítico e passam a defender medidas idiotas como forma de marcar posição, pensam em si e esquecem da situação deplorável do país, suas dificuldades políticas e sua divisão interna.

A reforma da previdência é deveras importante para o país, faz-se fundamental destacar que, com o envelhecimento da população e a maior longevidade dos indivíduos, além das inúmeras mudanças na estrutura do trabalho, onde os entrantes estão diminuindo e os aposentados aumentando, as preocupações com relação a sustentabilidade deste sistema são inúmeras, com isso, a reforma se justifica de forma urgente e necessária.

Para viabilizar esta proposta, cabe ainda ao governo melhorar o Benefício de Prestação Continuada (BPC), evitando um aviltamento tão elevado como foi a proposta original enviada ao Congresso em fevereiro, além disso, em uma situação de desequilíbrios fiscal e orçamentário, o governo comete o equívoco de propor reestruturação salarial para as carreiras militares, deixando claro o corporativismo que envolve a presidência do capitão Bolsonaro, sem um ataque frontal ao corporativismo, dificilmente teremos êxito no reequilíbrio das contas públicas e na superação da crise econômica.

Estamos num momento crucial para nos colocarmos como um país civilizado ou vamos descambar para a barbárie, atender a todas as demandas inviabilizaria o país e levaria a economia a uma situação de degradação, sem fazer a reforma num curto espaço de tempo a situação econômica também se degradará. Diante da inevitabilidade desta reforma, sabendo que é uma medida inexorável, cabe ao governo apertar os fraudadores, cobrar os inadimplentes e taxar aqueles que pouco pagam, somente assim se conseguirá mostrar para a sociedade que o esforço exigido para a confecção desta reforma será de todos, desde aqueles que residem nas favelas e nos sertões até os moradores dos condomínios de luxo e dos bairros de elite, todos os indivíduos, indistintamente, devem contribuir.

Embora saibamos da importância da reforma da previdência, o atual governo ainda não conseguiu propor nada na seara econômica, depois de 100 dias de mandato, conversas desnecessárias, discursos ideológicos, debates e comentários chulos e inapropriados, nos parece claro que a equipe econômica coloca toda suas fichas na Reforma da Previdência, sem ela, dificilmente teremos condições de governabilidade nos próximos anos e todos seremos afetados pela degradação das condições econômicas, embora tenhamos inúmeras restrições ao grupo político que ora controla a administração federal, mais alguns anos de degradação econômica e política trará resultados sociais jamais vistos, embora pacatos e ordeiros, como muitos definem o cidadão brasileiro, a revolta e a indignação tendem a crescer e se transformar em um grande estopim para uma nova primavera, cuja destruição será de grandes proporções.

 

 

 

Inchaço de verba de universidade pública não teve contrapartida, diz Claudio Haddad

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Folha de São Paulo, 24 de março de 2019 – Por Érica Fraga

Claudio é fundador do conselho deliberativo do Insper, que completa duas décadas.

O orçamento das universidades públicas aumentou muito no Brasil sem a contrapartida de resultados, como a presença do país nos rankings das cem melhores instituições do mundo.

A opinião é de Claudio Haddad, 73, fundador e presidente do conselho deliberativo do Insper, instituto de ensino superior e pesquisa sem fins lucrativos, que completa duas décadas neste mês.

“O problema grave de governança” das universidades públicas, diz ele, é apenas parte do panorama ruim do ensino brasileiro, do nível básico ao superior, que indica que a educação é prioridade da “boca para fora” no país.

A falta de responsabilização dos gestores pela baixa aprendizagem, apesar dos investimentos maiores nos últimos anos, ajuda, segundo Haddad, a explicar o cenário.

Numa espécie de círculo vicioso, as deficiências que os alunos herdam da escola limitam a qualidade das faculdades. Por isso, Haddad considera injustas as críticas sobre a natureza da expansão do ensino superior privado:

“Não há faculdade que faça o milagre de resolver todos os problemas da educação passada”, diz ele que, atualmente passa parte do ano em Portugal.

Nesse contexto de tantos problemas, Haddad diz acreditar que atitudes recentes do atual governo —como o anúncio de que haveria uma Lava Jato do ensino superior privado— desviam a atenção do essencial, que é a aprendizagem.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, foi sócio de Haddad nos primeiros anos do Insper, antes de a instituição receber esse nome e se tornar uma entidade sem fins lucrativos. As desavenças dos dois foram, segundo Haddad, um momento preocupante na trajetória do projeto.

Entre as conquistas importantes, ele lista o programa de bolsas para alunos de baixa renda e a expansão contínua do Insper, que chega aos 20 anos com a inauguração de um prédio novo e a contagem regressiva para o início de novos cursos, como graduação em direito e mestrado em jornalismo.

Qual é o seu maior orgulho em relação ao Insper?
Fico orgulhoso de tudo. Foi uma trajetória que envolveu um número grande de pessoas. E educação é um setor em que a tradição conta muito, né? Para um aluno ir para uma escola começando do zero é preciso um voto de confiança muito grande.

Quando o sr. sentiu que tinha decolado?  
A escola foi ficando conhecida, principalmente após a formatura da primeira turma, que acabou em terceiro lugar no provão do país, que era tipo o Enade [Exame Nacional de Desempenho de Estudantes] da época. As pessoas viam que cumpríamos o que prometíamos, procurando inovar não apenas por inovar, mas para melhorar. Aluno bom chama aluno bom, professor bom chama professor bom, e aí a coisa vai andando.

Qual foi o momento que mais preocupou o sr.?
Um evento importante foi minha separação do meu sócio, quando comprei a participação dele. Tínhamos uma cláusula no contrato de compra e venda, tivemos divergências estratégicas.

O sócio do sr. era o Paulo Guedes? Qual era a principal divergência entre vocês? 
Ele queria expandir mais rápido, queria um modelo tipo a FGV, de franquia. E tinham várias outras coisas. Eu estava mais interessado em ter uma entidade de excelência, um modelo de universidade americana privada.

Na época, era com fins lucrativos ainda, mas eu tinha em mente —talvez sem ter muita consciência— ser sem fins lucrativos. Então, exerci a cláusula, dei um preço e ele optou por vender. Isso foi em 2003.

Em 2013, o sr. disse à Folha se incomodar com a visão de que o Insper era uma escola de elite. Acha que isso mudou?
Mudou muito. Os bolsistas, por exemplo, são hoje 12,6% dos alunos.

A ideia é expandir esse percentual?
A ideia é que qualquer aluno que passe no vestibular e queira ficar no Insper, fique, independente de patrimônio ou renda. Claro que o sistema brasileiro é perverso. Os melhores alunos do ciclo básico são de escolas privadas caras. Felizmente há exceções, o mundo é estocástico, não é determinístico.
Então, apesar de as pessoas terem um background familiar complicado, muitos conseguem ir para a frente. O nosso problema é que o aluno olha o Insper e fala “é escola de rico, nem vou fazer vestibular”.

Isso ainda existe?
Existe um pouco. Então a gente diz “olha, tem bolsa, você será acolhido aqui se passar”, e isso está sendo gradualmente disseminado, mas demanda tempo. Ainda temos poucos candidatos de outros estados, gostaríamos de ter mais. Abrimos uma entrada via Enem, justamente para evitar que o candidato precise vir até aqui.

As mudanças no Enem têm ajudado?
Ajudaram em alguns sentidos. O problema é que os resultados saem muito tarde, no início do ano. Isso complica nosso processo de seleção.

O Enem tem sido alvo de polêmicas. O presidente Jair Bolsonaro manifestou a intenção de ler a prova antes de sua aplicação. O que o sr. acha disso?
Acho que cada macaco no seu galho. O presidente precisa presidir o país ao invés de olhar prova de admissão de qualquer lugar.

O Insper está em expansão, mas em um contexto de crise do ensino superior. O ensino privado teve uma expansão problemática. Como o sr. avalia isso?
Acho que não se pode falar do ensino superior sem falar do básico. O panorama do ensino básico ainda é trágico. Estamos lidando com um público que se forma no ensino médio com muitas lacunas. Isso impacta a qualidade do ensino superior.
Quantos alunos que se formam no ensino médio têm condições de cursar um Insper, uma FGV? Poucos.
Mas eles têm que ser atendidos de alguma maneira. O ensino privado surgiu pra atender a essas pessoas.
A qualidade do aluno que vem, em termos acadêmicos, deixa a desejar em função das lacunas que ele teve. Não há faculdade que faça o milagre de resolver todos os problemas da educação passada.
Então, acho a crítica de que se expandiu muito o ensino superior privado com qualidade ruim um pouco superficial. Não acho que foi ruim. Atende a uma necessidade. O aluno sempre ganha alguma coisa fazendo mais quatro anos de um curso.

Há pessoas formadas em vagas de baixa qualificação, fazendo faxina. Estudos feitos para alguns países mostram que o aluno pode nunca recuperar o gasto no ensino superior.
Pode acontecer. Acontece na Europa e nos Estados Unidos também. Tem o problema de certos cursos que efetivamente não acrescentam valor. Se a gente acredita no mercado, eventualmente as pessoas deveriam demandar menos desses cursos.
A universidade pública, por outro lado, sofre um problema grave de governança.
É de graça, o que também é questionável, porque boa parte dos alunos vêm de escolas caras e poderiam contribuir.
Mas quanto à governança, elas recebem dinheiro sem contrapartidas e sem cobrança.
O orçamento das universidades federais aumentou muito. E o que isso gerou em termos de melhor qualidade? Não sei. Acho que continuamos sem nenhuma universidade de peso no Brasil entre as cem melhores do mundo. Mesmo comparadas a outras da América Latina, acho que estamos pra trás.
E temos poucas entidades privadas com qualidade que sejam sem fins lucrativos e entrem em pesquisa. O Insper é uma delas, a FGV é outra, mas são relativamente poucas. Esse é o problema do ensino superior. E não é bom. Há anos se fala que o ensino é prioridade, e tudo mais, mas as coisas evoluem muito devagar.

Se é prioridade, porque não vai mais rápido?
Acho que a prioridade é um pouco da boca pra fora. Acho que é um problema basicamente de gestão. Onde as pessoas querem elas fazem acontecer. Aconteceu em Sobral (CE), em uma ocasião, no Rio de Janeiro, em Foz do Iguaçu. Em Pernambuco está acontecendo. No Espírito Santo também.
Não é querer por querer. É preciso identificar as pessoas que vão tocar, adotar metas, cobranças. Ver o que funcionou e não funcionou.
O problema da educação é que ninguém é responsável por nada. Aumentou-se muito a verba para educação nos últimos anos. E os resultados? Melhoraram? Alguém foi responsabilizado?

Deveria haver responsabilização?
Sim, é o que acontece com uma empresa. O cara fala: eu preciso de tantos milhões para montar o projeto. Aí não acontece o resultado, o que se faz? “Tudo bem, toma mais esses milhões de novo?” Não.

Voltando ao ensino superior, o MEC falou há pouco em uma Lava Jato da educação. Como esse tipo de situação afeta o setor? 
Não tenho conhecimento para falar de Lava Jato na educação. Acho que, se quer fazer alguma coisa, se faz. Não fica anunciando. Acho que isso tudo é muita perda de tempo, muita conversa sobre temas que não são fundamentais. O fundamental é o ensino e o aprendizado.

Como o sr. avalia a economia brasileira?
Tivemos problemas sérios. Precisaríamos retomar o crescimento de maneira rápida, mas não vejo isso acontecendo. Temos muitos problemas na parte fiscal, reformas que precisam ser feitas e não serão fáceis.

O governo parece caminhar na direção certa?
Não sei, acho a coisa ainda bastante confusa. Algumas propostas parecem muito boas.

Como qual? Acho essa proposta mais ambiciosa da Previdência ótima, mas tem que conversar no Congresso porque não é nada trivial. Acho que há clima para alguma reforma da Previdência, nem que seja paliativa por alguns anos.

Tendo trabalhado com o Paulo Guedes, o sr. acha que ele tem o perfil para conduzir o país nesse desafio? Prefiro não falar sobre isso. O Paulo é muito inteligente e articulado.

Claudio Haddad, 73

Formado em engenharia mecânica e industrial pelo Instituto Militar de Engenharia, doutorado em economia na Universidade de Chicago. É fundador e presidente do conselho deliberativo e da assembleia de associados do Insper. Membro do conselho de administração do Instituto Unibanco. Preside o conselho consultivo do escritório brasileiro do David Rockefeller Center para estudos latino-americanos da Universidade Harvard. Foi diretor do Banco Central e sócio do Banco Garantia.

Os invisíveis do sistema

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14.09.2017

Desde 2013, quando foi publicado O Capital no Século XXI, o do economista francês Thomas Piketty, o problema da desigualdade entrou no foco das preocupações com o mundo contemporâneo. 

Para Saskia Sassen, uma referência em sociologia urbana, porém, a desigualdade é apenas um aspecto parcial do problema atual mais profundo: os “perdedores” do sistema econômico são verdadeiramente expulsos, tornam-se invisíveis, deixam de ser contados nas estatísticas e praticamente desaparecem.

Esse é o tema de seu livro Expulsões: Brutalidade e Complexidade na Economia Global, em que a professora da Universidade Columbia descreve as expulsões não apenas das populações desempregadas, refugiadas e carcerárias, mas também da crise ambiental, com a extinção de espécies e a “morte” de terras e águas.

“A terra morta pode ser um terror para quem vive nela. Pense nos milhões de pessoas que querem deixar seus países não só por causa de guerras, mas também porque a terra morreu”, diz em entrevista.

O subtítulo do livro (“Brutalidade e Complexidade na Economia Global”) sugere que os sistemas mais complexos frequentemente levam a efeitos bastante simples e, mais do que isso, brutais. Como se dá esse processo?
Saskia:
 Os maiores exemplos são os seguintes: primeiro, a matemática algorítmica, crucial no setor financeiro.

É o caso da hipoteca subprime, que nunca se destinou a oferecer moradias para famílias de baixa renda, mas a gerar títulos lastreados em ativos, no contexto de um circuito de alto investimento que não aguentava mais derivativos garantidos por outros derivativos.

Segundo o Fed, mais de 14 milhões de famílias perderam suas casas nesse período histórico curto e brutal, que durou oito anos. Outro caso é a exploração de petróleo por fracionamento, uma modalidade de mineração muito complexa, que resulta na destruição selvagem de rochas e no envenenamento de cursos d’água.

Um exemplo simples é a exportação de empregos. Exige uma logística complicadíssima, engenheiros brilhantes, e para quê? Pagar salários baixos e valorizar as empresas no mercado acionário.

Qual é o papel do conhecimento nessa brutalidade? O que se pode mudar na maneira como ele é produzido e disseminado?
Saskia: 
Nos circuitos do capital, o conhecimento raramente é inspirador; é apenas uma ferramenta. O uso dessas formas extremamente complexas de conhecimento para produzir brutalidades elementares é um elemento central do funcionamento do atual sistema econômico.

Desde os anos 1980, com a desregulamentação e a privatização, entramos num período marcado pelo domínio de setores extrativistas; pense no Google e no Facebook: uma vez que criaram suas plataformas digitais, que são brilhantes, tornaram-se extrativistas.

O Google coleta os dados disponíveis sobre todos nós, cria pacotes a partir deles e os vende a outras empresas. Isso é extração. Também penso que muitos componentes da alta finança, hoje, são extrativistas. Esses setores são dominantes, como depois da Segunda Guerra Mundial [1939-1945] o consumo de massa foi dominante.

Em 1990, o filósofo Gilles Deleuze [1925-1995] previu a emergência de “sociedades de controle”, caracterizadas por sistemas informáticos que determinariam automaticamente acessos e bloqueios. Os algoritmos realizaram a “sociedade de controle”?
Saskia: 
Sim e não. Temos que ir além de uma ideia tão ampla. Produzimos os instrumentos que geraram essa situação, e o que me interessa é a variedade de processos e formas de conhecimento necessárias para tanto. Só que o perigo não está só nos sistemas poderosos de controle, mas também na psicologia que resulta deles.

E podemos lutar contra isso. Por fim, em toda sociedade há pessoas e espaços que não podem ser alcançadas mesmo pelo sistema mais poderoso.

O inimigo mais forte não é o próprio sistema, mas nosso conhecimento falho do perigo, até que seja tarde demais e acabemos sendo moldados. É o caso do Facebook e das histórias falsas sobre a eleição americana em que os leitores acreditaram. A incapacidade de entender o que está sendo feito é um enorme perigo.

A senhora introduz o conceito de expulsão para mostrar que a questão no mundo atual é mais do que de desigualdade: os prejudicados estão de fato fora do sistema. Mas eles não deixam de existir. O que acontece com eles?
Saskia: 
Eles se tornam invisíveis para nossas categorias de análise, para nossas medições da economia e das condições gerais da população. Quando o governo americano diz que o desemprego caiu para 4%, deixa de fora um bom número de desempregados que simplesmente não são mais contados, mas existem, são corpos plenamente materiais.

Essa tensão entre o material e o fato de que ele pode tornar-se invisível também pode ser percebida a respeito de condições muito distintas, como a terra morta. Uma vez que a terra está morta, esquecemos dela, ela desaparece de nossas medições padronizadas da economia.

Os expulsos exercem alguma pressão de fora sobre o sistema?
Saskia: 
É uma questão complicada: se os expulsos podem afetar o sistema. São pessoas que continuam vivendo, mesmo que na miséria. E podem estar vivendo bem no meio de um grande centro urbano.

Por exemplo, um homem negro de 33 anos que nunca teve um emprego, que se vira como pode para ter o que comer, que dorme em lugares diferentes a cada noite, para que a polícia não o reconheça. Nas economias avançadas, há milhões de pessoas e famílias inteiras nessa condição.

O mesmo vale para a terra morta?
Saskia: 
No caso da terra morta, ela está ali, mas um governo como o americano não se importa. Nem sequer fazem mapas oficiais mostrando terra morta. Como se o problema não existisse. Mas a terra morta pode ser um terror para quem vive nela.

Pense nos milhões de pessoas que querem deixar seus países não só por causa de guerras, mas também porque a terra morreu. E não há lei que reconheça o refugiado que foge de um país porque não sobrou terra nenhuma.

São refugiados de um tipo particular de “desenvolvimento” econômico. Uma porção cada vez maior da terra pertence a corporações enormes e poderosas.

O crescimento acelerado das favelas e periferias não é acidente. Todo ano, milhões de pequenos agricultores são expulsos de suas terras, substituídos por uma mina, uma nova expansão urbana etc. O único lugar aonde podem ir são as favelas das grandes cidades.

Um sistema baseado em extrativismo e expulsões foi o colonialismo. Muitas de suas descrições fazem pensar na lógica colonial. Como o modelo das expulsões se compara ao colonialismo?
Saskia: 
Entramos em um modo diferente do colonialismo. É provavelmente melhor não usar esse termo para descrever o período atual.

Eis algumas das principais diferenças. Este é um colonialismo puramente extrativista, ao contrário dos antigos impérios, que tinham projetos mais amplos, como a “missão civilizadora” da França, ou os britânicos, que formavam e educavam indianos para compor os estratos médios da burocracia imperial.

Hoje, não há mais nada disso. Uma vez que se extraiu o que era desejado, as corporações simplesmente vão embora. Esta época é governada por uma lógica extrativista, incluindo setores que nunca pensamos como extrativistas.

A senhora crê que o Acordo de Paris e outras resoluções das conferências climáticas da ONU serão eficazes para evitar que mais terra e mais água morram?
Saskia: 
Esse acordo e os outros anteriores nos deixam longe de resolver a destruição ambiental. Mas é uma grande vitória, porque produziu um consenso. Há muito mais pessoas falando em mudança climática e mais empresas tentando se tornar sustentáveis, até onde isso seja possível.

Revoluções precisam de décadas para amadurecer, e esse é um primeiro passo. Ao mesmo tempo, biólogos, ecologistas e outros cientistas estão produzindo inovações que vão bem além do acordo. Gosto de me concentrar nessas inovações, em vez dos acordos gerais, mais tímidos, que têm impacto limitado.

No livro, lemos que a fronteira entre quem permanece no sistema e quem é expulso está se fechando cada vez mais sobre os de dentro, a ponto de atingir as classes médias dos países ricos. Qual é o limite desse fechamento?
Saskia: 
São fronteiras tão brutais que, nas sociedades ocidentais, só afetam os mais pobres ou discriminados, mesmo se hoje até os filhos da classe média estão sendo privados de direitos.

Os números, especialmente nos EUA, deixam claro que setores crescentes das classes trabalhadoras acabaram em situação de pobreza e desespero, principalmente famílias negras. E o mesmo ocorreu a setores das classes médias. Os sistemas complexos da economia e da sociedade tornam muitos trabalhadores irrelevantes.

Minha preocupação, ao identificar essa noção de limites sistêmicos dentro de economias nacionais, também é, em parte, criar uma contrapartida para a noção de que a globalização elimina fronteiras. Ora, ao mesmo tempo, estamos construindo barreiras dentro dos países.

A senhora argumenta que os expulsos se tornam invisíveis, e que só enxergamos o lado positivo do desenvolvimento econômico. O mesmo vale para as partes do mundo em que o crescimento inclui populações no consumo de massas?
Saskia: 
Sim. As fronteiras da expulsão dos sistemas (econômico, social, biosférico) são fundamentalmente diferentes das fronteiras geográficas dos Estados.

O foco na fronteira vem de uma das principais hipóteses do livro: que a passagem da era keynesiana à era das privatizações e da desregulamentação conduziu à passagem de uma dinâmica que incluía para uma dinâmica que exclui.

Ainda falta ver se essa passagem da incorporação à expulsão também está emergindo na China e na Índia, mas já há elementos. Na China, a incorporação de uma massa de pessoas na economia monetária injetou-as numa dinâmica em que são “pobres monetizados”. A desigualdade também está explodindo na China, com novas formas de concentração econômica no topo. Sem falar no bullying corporativo.

No lado mais brilhante da economia global, parece existir uma tendência à monumentalidade, tanto em eventos esportivos quanto em construções de cidades como Dubai e Hong Kong. Como essa monumentalidade se relaciona com o tema das expulsões?
Saskia: 
Existe algo como 30% ou 40% da população que formam classes médias altas e elites com muito dinheiro.

Devemos concentrar menos atenção no 1%, os mais ricos dos ricos, e olhar para essas pessoas que se tornaram bem mais ricas do que jamais puderam imaginar. São eles que tornam a concentração de riqueza visível. Reinventam grandes partes das cidades a partir de seus desejos. Expulsam as classes modestas que viveram naqueles bairros por gerações, porque “precisam” de mais espaço para mais mansões e shoppings de luxo.

As tecnologias inteligentes e o emburrecimento social

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Richard Sennett

A grande história do que está acontecendo na revolução tecnológica hoje, no que se refere às cidades, e suspeito que seja igual em outros campos, é que a tecnologia está se tornando cada vez mais primitiva socialmente.

Podemos usar a tecnologia muito bem. É necessário para lidar com o funcionamento de uma cidade. Mas, agora, estamos usando a tecnologia para dizer às pessoas o que fazer, em vez de proporcionar uma ferramenta que mostre opções.

Coisas como o Google Maps dizem às pessoas para onde ir e como chegar lá. Estamos, em outras palavras, emburrecendo a quantidade de informação à disposição das pessoas. Google Maps é uma operação de emburrecimento.

O que quero é algo que estimule as pessoas a pensarem indutivamente sobre onde estão, sobre o tipo de lugar onde estão — e que dê a elas as ferramentas para fazê-lo. Temos a tecnologia para isso, mas não é uma tecnologia que estamos usando.

Por exemplo, você está em um bairro e quer ir para outro lugar bem diferente. Simplesmente ter um mapa com o caminho mais rápido não é inteligente. Você quer saber que tipo de lugar é esse para o qual você está indo. Se você pegar um caminho, que tipo de experiência terá caminhando até lá, em vez de outra rota?

Para isso, é necessário outro tipo de informação além de apenas desenhar a menor linha entre duas coisas ou mostrar que tipo de transporte público, ou como dirigir até lá. Isso é uma redução de informação. Você não está aprendendo o ambiente.

Portanto, a tecnologia está sendo concebida para entregar um produto social cada vez mais primitivo, elas estão se tornando cada vez mais monopolistas e uniformes. Elas entregam um produto que pode ser padronizado e vendido em todo lugar.

Ao passo que, se você usar o tipo de tecnologia de que gosto, o Linux, que é um kernel de código aberto, você terá diversas formas de se relacionar com as pessoas. Se as coisas continuarem assim, em dez anos você terá na web um recurso desperdiçado. Isso será como se a complexidade regredisse, o que é terrível.

Porém, há uma coisa que vocês podem fazer. Vocês não precisam esperar alguém passar uma lei para começar a se comunicar de formas diferentes uns com os outros. O Linux está aqui e existem diversas outras ferramentas de código aberto que permitem programar de forma que não essa função padronizadora.

Minha noção de cooperação é que, quanto mais as pessoas cooperam uns com os outros, mais problemas encontram quanto mais se aprofundam nas coisas. A forma como o Google entende cooperação é que, quanto mais cooperativo se é, mais as pessoas concordam.

E, de novo, isso é uma espécie de abuso de tecnologia. Nós não enxergamos as coisas apenas como sim ou não. Ou como isso ou aquilo. As pessoas nunca pensam apenas isso ou aquilo, elas pensam tudo.

Contribuição colaborativa é diferente de inteligência coletiva. Contribuição colaborativa é quando você tem uma quantidade enorme de pessoas, especialmente na internet, contribuindo com uma opinião, e pega uma média disso.

A maioria, digamos, dois milhões de pessoas pensam X e um milhão pensa Y. Não há espaço para inteligência nisso. É apenas um concurso de popularidade. Além disso, o milhão de pessoas que pensam Y podem estar certos.

Temos a tecnologia para obter respostas mais complexas e fazer um desenho disso. Sabemos como fazer isso. Mas, novamente, a tecnologia não está sendo usada assim. É por isso que odeio pesquisas de popularidade de políticos.

Isso não é inteligência coletiva. É apenas simplificar uma questão e obter um sim ou um não. E isso é culpa, não do público, é culpa da forma como as questões são apresentadas ao público.

Como eu digo, hoje temos a tecnologia para produzir um retrato muito mais complexo, um retrato muito mais inteligente da opinião pública. Mas não a usamos.

Mídias sociais reduzem a capacidade de aprender, diz Richard Sennett

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por Leandro Cólon/Folha de São Paulo – 11.08.2015

O sociólogo americano Richard Sennett, 72, afirma que a onda das mídias sociais tem reduzido a capacidade das pessoas de adquirir conhecimento externo. Em entrevista à Folha, ele diz que o modelo cada vez mais customizado da internet cria um cenário sem elemento “surpresa” no cotidiano.

Um dos sociólogos mais prestigiados, Sennett publicou em 1977 o clássico O declínio do homem público, em que aborda, entre outras coisas, as mudanças de comportamento do homem desde o século 18, sobretudo em relação a intimidade, individualismo e exposição. O que escreveu há quase 40 anos, diz ele, ainda se aplica hoje, agora num contexto do mundo eletrônico da web.

Nascido em Chicago, Sennett recebeu a reportagem na London School of Economics, onde leciona. É professor também da New York University e entre seus livros está em Juntos, obra de 2012 em que defende o conceito de cooperação entre os indivíduos.

O sociólogo, que integra a comissão de reorganização urbana de Atenas como parte da conferência da ONU de 2016 sobre o futuro das cidades (Habitat), diz que a criação de cooperativas informais é fundamental para países como Grécia e Brasil reagirem às turbulências econômicas. Na entrevista, Sennett critica os shoppings no Brasil e as “cidades inteligentes”.

Richard Sennett estará em Porto Alegre no dia 24 de agosto e em São Paulo no dia 26 para conferências no Fronteiras do Pensamento, copatrocinado pela Folha de S.Paulo. O sociólogo sobe ao palco ao lado de sua esposa, a também socióloga Saskia Sassen.

Como o senhor vê as mudanças no comportamento das pessoas tantos anos depois de publicar O declínio do homem público?
Richard Sennett:
 Há 40 anos, havia muitas questões sobre a transformação da presença física das pessoas em público, e agora temos os mesmos problemas: perguntamo-nos sobre a presença na web. As mídias sociais aumentam a discussão entre o público e o privado.

Não tínhamos nada parecido nos anos 70 e fico impressionado como ainda nos atingem questões sobre a noção do uso de espaço público para autoexposição e interação real. Como analista social, é deprimente para mim que esses problemas persistam, agora no espaço eletrônico.

O senhor acha que atingimos o ápice da falta de privacidade?
Richard Sennett: 
O mais triste sobre o ciberespaço é que há cada vez menos chance para a surpresa. Quando você caminha na rua, coisas que não espera podem acontecer. Quando está no Facebook, isso é feito tão sob medida que fica difícil a ideia de aprender alguma coisa que não soubesse, afinal, tudo é customizado, feito para seu perfil. Isso é um tipo de redução de quão inteligente o público à minha volta pode ser.

Por que o senhor critica as “cidades inteligentes”?
Richard Sennett: 
Elas removeram o elemento indutivo de aprendizado sobre o entorno. Como um dos líderes do Habitat 3, uma de nossas discussões é como evitar o mau uso da tecnologia que envolve a liberdade das pessoas. Essa tecnologia tem feito as pessoas ficarem sem pensar sobre isso.

Os governos autoritários, por exemplo, amam essas cidades, porque sua capacidade de vigilância é incrível. Há cidades americanas que usam os sensores de tráfego, de velocidade para coordenação, para identificar o número de motoristas negros e brancos. Isso acaba usado de forma diferente de seu propósito [original], vira um instrumento de dominação.

Recentemente, o senhor criticou o conceito de shoppings das cidades latino-americanas.
Richard Sennett: 
Fiquei impressionado com tantos estacionamentos nos shoppings no Brasil ocupando espaços públicos. São espaços cosmopolitas mal utilizados. Não há nada para fazer a não ser parar carros, as crianças não podem entrar nem usá-lo. Como na China, são espaços que separam a nova classe média dos pobres. Se você é pobre na China, não pode ir ao shopping.

O que os shoppings também fazem é destruir os negócios locais, isso é um grande problema aqui no Reino Unido, pois os centros das pequenas cidades não podem competir com grandes redes.

Qual sua opinião sobre a cidade de São Paulo?
Richard Sennett: 
É uma cidade muito avançada, com muito capital humano. O grande desafio é como colocar essa capital para trabalhar para todos. Eu adoro São Paulo, é uma cidade de torres, mas também tem problemas de segurança. O trânsito nem me incomoda (risos), porque sou muito paciente, posso ver meus e-mails, ouvir música clássica, um violino de Wagner.

O senhor trabalhou na organização dos Jogos Olímpicos de Londres. A próxima Olimpíada será no Rio. Qual seu conselho para as autoridades?
Richard Sennett: 
Eu me envolvi no planejamento dos locais dos jogos, o que fazer com eles depois da Olimpíada. Queríamos evitar o que ocorreu com a Grécia em 2004 [após os Jogos, várias arenas foram abandonadas]. Os lugares precisam ser utilizados imediatamente após o evento. Se você espera cinco, seis anos, eles começam a se degradar, e é isso que tentamos evitar em Londres.

Passamos por uma crise econômica no Brasil, na Europa temos o exemplo da Grécia nos últimos cinco anos. O senhor acredita que seu conceito de “cooperação” entre as pessoas poderia ajudar esses países a superar tais problemas?
Richard Sennett: 
Não creio que possa ajudar a superar, mas acredito que pode ajudá-los a enfrentar os problemas. Conheço muito bem a questão da Grécia, por causa do Habitat 3. Lá, o governo tem falhado em apoiar isso, e a União Europeia basicamente criou um cenário de punição para o país.

Na Grécia, há cooperativas informais de família dividindo recursos. Uma delas, em Atenas, foi criada para garantir que as crianças tomem café da manhã antes de ir para a escola, porque uma das consequências da austeridade é que muitas famílias não conseguem garantir isso. O governo grego não faz nada.

Uma imagem global é sobre a necessidade da cooperação no local de trabalho. Mas na política econômica, se a estrutura formal de apoio falha, gera situações como a de Grécia, Itália, Portugal.

A cooperativa é a única medida de defesa. Uma coisa terrível no liberalismo [econômico] é que as pessoas são cada vez mais donas de indivíduos em detrimento da cooperação informal.

O senhor acredita que haja uma solução para a Grécia?
Richard Sennett: 
Em 1953, 50% da dívida alemã foi abolida pelo governo grego, mas hoje isso é [usado como] um tipo de hegemonia, uma punição cruel. A Alemanha tem bloqueado qualquer tipo de alívio [aos gregos]. O país nunca vai se recuperar se toda hora tiver que pedir mais dinheiro para pagar dívida. Isso nunca deixará o país ser saudável.

Como vê o drama imigratório da África para a Europa?
Richard Sennett: 
É uma política de combate, sem muita esperança, porque estão mirando nos barcos, nos imigrantes que tentam chegar a Itália e Grécia. Entristece-me ver que a União Europeia está em colapso, não sabe o que fazer com um problema humanitário, como a imigração, e econômico, como as políticas de austeridade que estão falhando.

O senhor defende que as pessoas deveriam cada vez mais ter ações das empresas que trabalham. Isso não é uma contradição do modelo capitalista?
Richard Sennett: 
É um tipo de social capitalismo que contradiz o capitalismo liberal. No Reino Unido, na loja de departamento, John Lewis, os empregados têm ações. Depende de como se manuseia, do quão preocupada a empresa é com isso. Não se espera que o vendedor seja o dono dela, mas que o direito de ter ações lhe dê voz.

No regime liberal, o círculo de controle se reduz, cada vez menos pessoas tomam as decisões. Eu gostaria de ver o monopólio de empresas como Microsoft, Google, Amazon quebrado. Mas quando elas têm um competidor, compram-no ou fecham-no.

Quando começou a crise de 2008, achei que haveria um movimento para destruir isso, mas essas empresas se mostraram mais resistentes e sobreviveram.

 

 

Sem acordo com os partidos, Bolsonaro não vai governar, afirma cientista político

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É assim no mundo inteiro, afirma Limongi; bancadas temáticas, como a da Bíblia, têm poder limitado no Congresso

Mario Cesar Carvalho – Folha de São Paulo – 20/03/2019

Associar o presidencialismo de coalizão a corrupção, como fazem os bolsonaristas, “é um mito, uma bobagem sem tamanho”, diz o cientista político Fernando Limongi, professor aposentado da USP que dá aulas na escola de economia da Fundação Getulio Vargas.

Corrupção, segundo ele, não é uma consequência inevitável da coalizão, prática que presidentes adotam para ter maioria no Congresso, oferecendo cargos a partidos para integrarem uma aliança.

Limongi cita a Dersa como exemplo de corrupção sem coalizão. A estatal paulista de estradas está envolvida numa série de escândalos em governos que não têm relação com partidos.

O discurso de Bolsonaro contra essa prática e a defesa de alianças com bancadas temáticas, como as da bala e da Bíblia, revela o despreparo do presidente, de acordo com o cientista político.

Bancadas temáticas não tem poder de definir a agenda de votações no Congresso; só partidos podem fazer isso. “É muito pouco provável que o governo seja capaz de governar sem costurar acordos com partidos. É assim no mundo inteiro. Partidos organizam o processo político”, disse em entrevista por email à Folha.

Segundo ele, o problema de Bolsonaro é mais grave do que seu discurso contra partidos: o presidente não entendeu que é preciso partilhar o poder para governar.

Bolsonaro começou refutando os partidos e dizia que iria trabalhar com bancadas temáticas, como as da bala e da Bíblia. Por que essa estratégia parece não estar funcionando? Não é possível dizer se está ou não funcionando, pois o governo ainda não começou a governar. Por enquanto, o governo pouco fez ou propôs. O que há na agenda e que depende do Congresso é a reforma da Previdência, que ainda não começou a tramitar. Pouco se sabe sobre como o governo pretende reunir os votos para aprová-la. Mas o governo tem mais matérias para aprovar, como as mais de uma dezena de medidas provisórias herdadas de Temer e as quatro promulgadas pelo próprio Bolsonaro. Uma das herdadas já expirou e não há notícias de que o governo esteja cuidando da aprovação das que emitiu. Se bobear, toda a reformulação ministerial vai para o espaço.

Bolsonaro associa presidencialismo de coalizão e corrupção. É possível fazer coalizão sem recursos espúrios? Isso é um mito, uma bobagem sem tamanho. Não há relação necessária entre governo de coalizão e corrupção. Não há dúvidas de que, no Brasil, as duas coisas conviveram no passado recente, mas daí a concluir que uma coisa leva à outra é a mais pura bobagem. A relação está longe de ser causal. Há corrupção sem o tal do presidencialismo de coalizão.

Tome o caso da Dersa em São Paulo, onde os acusados são governadores e não há nenhum indício de que o dinheiro desviado visasse comprar maioria para aprovar projetos. E os desvios de dinheiro ligados à usina nuclear de Angra? Lá o grosso da corrupção não passou pelos partidos. Mais do que isso, os desvios ocorreram em um modelo insulado da política, no qual quem decidia eram técnicos e militares. Aliás, durante o regime militar, o programa nuclear brasileiro foi amparado pela conta Delta, em um esquema em que as empreiteiras entravam para lavar dinheiro obtido por acordos com o Iraque em que se trocava urânio por petróleo.

No livro que escreveu com Argelina Figueiredo, vocês mostram a importância dos partidos na relação com o Executivo. O governo teria articulação para alterar esse quadro?

É muito pouco provável que o governo seja capaz de governar sem costurar acordos com partidos. É assim no mundo inteiro. Partidos organizam o processo político. Nasceram dessa necessidade.

Além disso, basta ler os regimentos internos do Senado e da Câmara para ver que os partidos são peças-chaves do processo decisório. Por força dos regimentos, líderes partidários definem quais matérias serão votadas, quando e como. Sem a participação dos líderes, as coisas não andam.

Os líderes de bancadas temáticas não têm essas prerrogativas. É simples assim. É básico. Mas Bolsonaro desconhece o elementar porque nunca se interessou pelo processo legislativo, nunca teve interesse em aprovar matérias. Essa visão é um indicador do seu despreparo político.

A Lava Jato expôs o modo como presidentes obtêm apoio no Congresso. É possível retomar o presidencialismo de coalizão após esse desnudamento? Como disse, se a Lava Jato desnudou algo, esse algo não tem nenhuma relação necessária com a formação de coalizão e/ou a forma como presidentes conseguem apoio para aprovar seus projetos. Se essa relação fosse necessária, seríamos forçados a concluir que todos os presidentes brasileiros governaram recorrendo a esses mesmos expedientes.

No Brasil, como em um grande número de países, não se escapa da necessidade de partilhar o poder. Toda e qualquer proposta legislativa do presidente precisa ser aprovada por uma maioria. Se o partido do presidente não controla a maioria das cadeiras, tem que conseguir apoio de parlamentares dos demais partidos. A questão é se vai obter caso a caso ou se vai montar uma base estável. Essa é decisão inicial que o presidente deve tomar. É uma questão de estratégia política e que não tem nada a ver com montar o governo em torno de ideias, competência ou o que for. Nas duas opções, para obter maioria, o governo tem que ampliar sua base, obter apoio da maioria. No primeiro caso, de uma forma limitada, circunstancial. No segundo, de uma maneira estável, permanente.

O governo Bolsonaro parece não ter entendido isso, ou melhor, parece achar que negociar caso a caso, construindo maiorias a cada proposta, seria o mesmo que privilegiar ideias, programa, capacidade ou sei lá o quê. Não é.

Quais são as consequências dessa estratégia? Na verdade, ao privilegiar o caso a caso, o governo diminui o horizonte temporal da negociação e, com isso, exclui quem o apoia dos ganhos de ser governo, dos possíveis retornos que a aprovação da proposta pode vir a gerar. A resistência a apoiar o governo aumenta, o preço em concessões e o tempo gasto em negociações crescem.

Formar uma coalizão é dar base e estabilidade ao governo, é saber que se pode contar com o apoio do partido, nas horas boas e nas más. Com a estabilidade, ambas as partes ganham. Mas isso implica dividir o poder com os demais partidos —e daria no mesmo se esse acordo fosse construído com bancadas temáticas. É esse o problema do governo Bolsonaro, sua incapacidade de entender que precisa partilhar o poder. O problema não é com quem e como se negocia. O xis da questão é saber se o governo está disposto a fazer política, a negociar e partilhar o poder.

O problema, na verdade, é mais sério, pois essa incompreensão política vem do próprio presidente, da sua falta de liderança. Até agora o governo nem sequer foi capaz de organizar o PSL. O partido do presidente é uma bagunça por falta de orientação, pela falta da definição de uma linha política, de propostas concretas.

O sr. acha que é possível governar com coalizão baseada em princípios, como pregam bolsonaristas? A proposição se baseia em uma falsa dicotomia entre princípios e pragmatismo, entre ideais e negociatas. Assume-se que há um governo que tem ideologia e princípios e que esse governo seria forçado a negociar com políticos inescrupulosos e destituídos de ideais.

Se as coisas forem colocadas dessa forma, toda e qualquer negociação será uma distorção ou concessão eticamente censurável. Mas por que devemos assumir que o presidente —e essa premissa foi aplicada aos governos anteriores— tem uma ideologia e os congressistas não? Veja, mesmo que o presidente diga que só se move por princípios, não se deve assumir que saiba como estes mesmos princípios serão traduzidos em políticas públicas. Há uma enorme distância entre o discurso e a implementação das políticas. E é nesta passagem do discurso à prática que os interesses envolvidos atuam, não necessariamente para desvirtuar a proposta. Obviamente, cada um defende o seu e tenta fazer valer os seus interesses.

Mas se o governo sabe o que quer, então tem condições de negociar e rejeitar as contribuições que desfiguram sua proposta inicial. Dizer que é impossível ter princípios e governar não passa de uma desculpa, uma forma conveniente de jogar a culpa nos aliados.

O problema do governo Bolsonaro não decorre da necessidade de formar coalizão ou dos custos envolvidos nessa operação. A dificuldade é anterior e passa pela incapacidade do presidente de entender o que significa fazer politica, de entender que para governar será preciso compartilhar o poder. Essa incompreensão se mostrou de forma nua e crua na demissão de Bebianno. O presidente não se dispõe a compartilhar o poder nem com seus apoiadores de primeira hora. E as razões da demissão pouco tiveram a ver com princípios e ideais.

O governo Bolsonaro passa por vexames semanais. Isso decorre de inexperiência? O maior problema tem nome e RG conhecido. O despreparo de Bolsonaro para o exercício da Previdência é evidente. Esse fator foi minimizado durante a campanha. O atentado, ao retirá-lo de cena, acabou por protegê-lo. Mas a fatura foi entregue e o preço a pagar é o que está aí, uma trapalhada atrás da outra.

Os filhos de Bolsonaro são um entrave à formação de alianças ou o pragmatismo vai imperar em votações importantes? Não é possível separar Bolsonaro de seus filhos. Bebianno sucumbiu a uma operação desencadeada de comum acordo entre o presidente e seu filho Carlos. Resta saber se Mourão terá o mesmo destino. Vice, contudo, não pode ser demitido.

Presidencialismo de coalizão

A expressão “presidencialismo de coalizão” foi criada em artigo publicado em 1988 pelo sociólogo e cientista político Sérgio Abranches para designar os arranjos políticos feitos pelo presidente para obter maioria no Congresso e aprovar as políticas de seu interesse. A estratégia é associada a corrupção, clientelismo e mando das oligarquias que atuam no Congresso.

Ao analisar a política brasileira às vésperas das eleições de 2018, Abranches defendeu que não havia nenhuma indicação de que essa prática política sofreria mudanças. O presidente Jair Bolsonaro (PSL) começou o mandato dizendo que iria privilegiar as bancadas temáticas, mas já começou a fazer acenos a partidos que integravam a base de Lula e Dilma Rousseff, como o MDB

 

“Capitalização transformou adultos de classe média em idosos pobres”

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Economista chileno Andras Uthoff diz que modelo pinochetista, que produziu massa de pobres no Chile, também não dará certo no Brasil

Por Thais Reis Oliveira – Carta capital – 19/03/2019

O economista chileno Andras Uthoff conhece bem o projeto de Previdência que o governo Bolsonaro quer para o Brasil. Professor da Faculdade de Economia e Negócios da Universidade do Chile e conselheiro regional da Organização Social do Trabalho (OIT), ele ajudou a tirar do papel a contrarreforma que, em 2008, tentou corrigir o encolhimento das aposentadorias causado pelos problemas de privatização da previdência chilena.

A reforma imposta em 1981 pelo ditador Augusto Pinochet – com a ajuda de uma patota de economistas formados na Escola de Chicago – acabou com a contribuição do estado e dos patrões, tanto na Previdência quanto na saúde. Cada trabalhador passou a poupar individualmente para a própria velhice, depositando cerca de 10% dos salários em contas administradas por bancos privados.

Trinta e oito anos depois, o fracasso é provado em números. Quando foi apresentada, a capitalização pinochetista prometia um retorno de 70% do salário médio das contribuições. Mas hoje, a primeira leva de aposentados recebe em torno de 35% de sua renda média.

Mesmo após as mudanças da era Bachelet, quase 80% das aposentadorias pagas hoje no Chile estão abaixo do salário mínimo. E 45% dos pensionistas vive abaixo da linha da pobreza (com cerca de 600 reais). A classe média foi a mais afetada, porque passou receber na velhice muito menos do que recebera durante a vida laboral, mas não foi beneficiada pela contrarreforma.

Outra promessa furada, diz Ulthoff, é que os investimentos da Previdência privada impulsionariam a economia chilena. Do fundo de 200 bilhões de dólares em recursos poupados pelos trabalhadores, quase 3/4 do PIB do país, cerca de 40% estão investidos no exterior.

Embora tenha sido apresentada como “alternativa” aos novos ingressantes no mercado de trabalho, a proposta de Guedes levanta campo para a privatização da Previdência. Se for aprovada como está, prevê o economista, vai repetir os dramas chilenos. “O sistema privado caminhou todos esses anos apenas com o aporte dos trabalhadores. Não deu certo lá e não vai dar no Brasil”, diz.

Uthoff esteve em Brasília para participar de um ciclo de debates sobre a Reforma brasileira e falou com exclusividade a CartaCapital sobre as diferenças entre Brasil e Chile.

CartaCapital: Muitos economistas brasileiros acreditam que esta reforma, como está agora, deixará uma massa de idosos ganhando menos que o mínimo. Como esse processo aconteceu no Chile?

Andras Uthoff: No Chile, em 1981, os empresários deixaram de contribuir para a pensão de seus empregados, tanto na Previdência quanto na saúde. O sistema sobreviveu exclusivamente do aporte dos empregados, com uma capitalização e má qualidade de empregos. Não deu certo: 79% das pensões financiadas pelo sistema, mesmo após os subsídios estatais, estão abaixo do salário mínimo chileno (cerca de 1810 reais). E 44% dos aposentados vive abaixo da linha da pobreza, ganhando menos de 600 reais por mês. Isso não foi resolvido no Chile e não será resolvido no Brasil com capitalização individual.

CC: Como reagiu a opinião pública quando Pinochet impôs ou o modelo de capitalização dos anos 80?

AU: Como estávamos em uma ditadura até os anos 90, ninguém podia opinar. Simplesmente houve uma mudança de todo o modelo econômico para um projeto neoliberal. E o mercado financeiro foi introduzido nas pensões e nos planos de saúde. O que aquela reforma fez foi destruir a seguridade social, introduzindo o mercado na jogada. Na Previdência, com a capitalização, e na Saúde, com os seguros individuais, na Saúde. O problema é que ao fazer contratos individuais, você deixou desamparada aqueles que não tiveram a capacidade de pagar uma entrada.

CC: Você pode explicar como o processo de 2008 aconteceu no Chile para corrigir essas distorções?

AU: A reforma de 2008 criou a pensão básica solidária e a contribuição previdenciária, pagas por um fundo público. O primeiro, para quem não conseguiu poupar nada. E o segundo para quem economizou, mas não o suficiente para se manter na velhice. Mas só recebem aqueles cuja renda familiar ficam entre os 60% mais pobres. Portanto, não é universal. A solução de 2008 melhora a cobertura, mas não muda efetivamente as aposentadorias.

CC: Você também diz que a classe média foi a mais prejudicada pela reforma chilena. Por quê?

AU: Sim, a classe média é a mais afetada porque é assalariada e sua renda previdenciária cai substancialmente. Quando a reforma foi implantada, prometia-se uma aposentadoria de 70% da média do salários que a pessoa recebera durante a vida ativa. Hoje em dia, as taxas de reposição são em média de 35%. Quer dizer que a renda dessas pessoas diminuiu 65%, é uma mudança muito grande. Você vive a vida de trabalhador como classe média. Ao sair dela, se torna pobre.

CC: Em outras entrevistas, você disse que não era a favor do retorno de um sistema totalmente público. Qual seria o seu modelo de ideal de Previdência?

AU: Os modelos ideais não existem. Cada país deve construir o seu, de acordo com as limitações impostas pelas restrições e desigualdades orçamentárias, a fim de cumprir o marco regulatório da seguridade social. Existe consenso de que os sistemas devem ser de múltiplos pilares e não apenas de capitalização individual. A OIT propõe a construção da escada de segurança com um piso universal não-contributivo, um pilar coletivo de solidariedade e um suplemento de capitalização individual obrigatório ou voluntário.

O atual sistema brasileiro já tem esse design. Precisa ser melhorado, é verdade. Mas não substituído.

 

As milícias crescem velozmente por dentro do Estado

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José Cláudio Alves frisa que “a estrutura política e econômica das milícias no Rio de Janeiro hoje começa a ganhar vários outros contornos, que não eram perceptíveis e que agora se manifestam”.

A prisão dos dois acusados de estarem envolvidos no assassinato da vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, “é a exceção de uma regra”, diz o sociólogo José Claáudio Alves  à IHU On-Line. “A regra é que membros de milícias são intocáveis, seus negócios se ampliam e eles têm dimensões crescentes desse poder e agora expressam isso a partir do assassinato de pessoas que ocupam cargos no âmbito político e que são contrárias aos seus interesses”, menciona.

Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp, Alves frisa que “a estrutura política e econômica das milícias no Rio de Janeiro  hoje começa a ganhar vários outros contornos, que não eram perceptíveis e que agora se manifestam”. Entre eles, o sociólogo cita a atuação da milícia na construção do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro – Comperj em Itaboraí. “Várias empresas terceirizadas estão atuando na construção da obra e a milícia está controlando quem vai trabalhar nessas empresas. Isso já é um passo à frente em relação à atuação das milícias anteriormente: a milícia detecta onde o capital está se manifestando — nesse caso é um capital público em parceria com empresas privadas — e, ao ficar a par da situação, manipula essa informação e passa a controlar de forma violenta o acesso a esse emprego, cobrando taxas e valores das pessoas que querem trabalhar nessas empresas. Assim esses empregados terão que repassar parte dos seus salários para os milicianos. Essa é uma novidade nesse campo no Rio de Janeiro”, informa.

Outra novidade no Rio de Janeiro é a atuação da milícia marinha, que, segundo Alves, atua a partir de informações de que o Ministério da Pesca e Aquicultura não está fornecendo licenças para pescadores. “Essa milícia aborda os pescadores no mar, quando eles estão pescando, exige a licença que o pescador não tem e passa a exigir valores semanais para permitir que o pescador possa continuar pescando. Então, surgiu na costa do Rio de Janeiro essa milícia marítima que passa a controlar os pescadores”, denuncia.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que avaliação o senhor faz da investigação do assassinato de Marielle e Anderson Gomes, ao longo do último ano, que culminou com a prisão de dois suspeitos de estarem envolvidos com o crime?

José Cláudio Alves – A minha avaliação em relação às apurações e investigação da polícia no caso Marielle é que elas foram muito lentas. Essa demora acaba acarretando uma série de complicações para saber se, de fato, esses são os responsáveis. A princípio parece que os dois presos foram os responsáveis, mas a pergunta que fazemos é quantas pessoas estavam envolvidas nisso e quem são os mandantes envolvidos nesse crime. Muitas questões ficaram soltas e ao longo do tempo elas não foram investigadas nem apuradas, o que gera consequências, como a morosidade da investigação, a dificuldade de ela prosseguir, de averiguar quantos outros suspeitos poderiam ser identificados no processo mas não serão. Paira a dúvida sobre se de fato não haveria indícios mais contundentes e próximos a grupos políticos que hoje ocupam espaço no âmbito federal, se não haveria ligações mais profundas, mas que com a demora da investigação acabam sendo perdidas e apagadas.

Essa demora toda nos faz refletir, mas a prisão dos suspeitos é algo importante e acaba, de outro lado, amortecendo a busca de explicações, acaba sendo uma espécie de cala boca e subterfúgio, e também acaba sendo um alívio para esse sofrimento todo, mas não vejo o processo como algo conclusivo.

IHU On-Line – As notícias divulgadas na imprensa dizem que as investigações do caso Marielle chegaram até o chamado Escritório do Crime, um poderoso grupo miliciano de Rio das Pedras que atua sob encomenda. O senhor tem informações sobre esse grupo?

José Cláudio Alves – Não tenho detalhes sobre como o Escritório do Crime atua. Sei que Rio das Pedras é uma favela histórica, muito grande, de imigração de nordestinos, que está na área da zona Oeste do Rio de Janeiro, onde a milícia tem uma presença extremamente forte. Essa é uma das áreas mais antigas, que está na base da formação das milícias no Rio de Janeiro. As milícias dessa região têm uma forma muito peculiar de atuação no campo da venda de terrenos. Na zona Oeste existe a presença muito grande de um tipo de solo chamado turfa, que é um solo inadequado para a construção de casas porque é muito movediço e não permite a estrutura de alicerce das construções. Por conta disso, há um controle naquela região das áreas em que é possível construir, ou seja, há um limite e uma faixa específica para a compra de terrenos e construção de casas. Esse processo é controlado pela milícia, que tem informações privilegiadas, as quais são obtidas dentro do Estado, já que são os agentes do Estado que circulam nesse âmbito. Esse é um mercado que se expandiu muito naquela região, porque trata-se de uma área onde há muita procura por moradia, porque ela é vinculada a processos migratórios, principalmente de nordestinos.

Os comerciantes daquela região iniciaram o processo de financiamento das milícias para impedir que o tráfico de drogas acessasse aquela comunidade. Logo, aquela é uma área onde a atuação da milícia é muito consolidada e movimenta muitos recursos. A busca por um dos envolvidos no Escritório do Crime, Adriano de Nóbrega, revelou que a mãe e a esposa dele trabalharam como assessoras de Flávio Bolsonaro enquanto ele era deputado estadual no Rio de Janeiro. O próprio Flávio também fez várias comendas de homenagens à atuação de milicianos no estado do Rio de Janeiro. Então, há uma vinculação forte dessa milícia com a estrutura do poder político dos Bolsonaros. Tudo indica isso, haja vista a situação da esposa e da mãe do Adriano de Nóbrega, o qual parece ser uma das lideranças do Escritório do Crime.

Desde o início eu sabia que havia o “dedo da milícia” e a prática típica de execução primária de grupos de extermínio, e que isso levaria aos negócios e aos interesses econômicos de políticos que a milícia estabelece a partir daquela região, mas numa rede que é muito maior do que Rio das Pedras. Então, toda essa rede pode ter algum grau de envolvimento no assassinato de Marielle, na sua organização, na sua proteção e no seu financiamento. Demorou um ano para se dar um retorno muito pífio desse caso, que foi a prisão de duas pessoas. Essa é uma estrutura muito mais ampla e com muito mais relações, uma rede muito maior que deveria ser revelada e apresentada nesse quadro.

IHU On-Line – O governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, disse que os presos pela morte de Marielle e Anderson Gomes serão convidados a fazer delação premiada na nova fase da investigação, que quer chegar aos mandantes do crime. Nos últimos anos há uma série de debates jurídicos e políticos acerca da necessidade ou não da delação premiada na investigação de crimes. Como o senhor avalia esse tipo de medida para este caso específico para se chegar aos mandantes do crime?

José Cláudio Alves – Não tenho uma reflexão muito consolidada sobre o estatuto da delação premiada. O que me impressiona é que existe uma dimensão organizada do crime a partir do Estado e, portanto, parece que facilmente seria possível ter acesso ao que esses grupos fazem, como atuam de forma organizada dentro do Estado, mas o que se vê é que os que investigam e buscam a justiça estão numa ratoeira, como se tivessem que se esconder desses grupos. Ou seja, não se tem uma atuação clara, consistente e firme da conduta das investigações, e aí se buscam subterfúgios, como delações premiadas. Me impressiona muito o poder que esses grupos têm e a fragilidade da estrutura do judiciário frente a esse poder, a ponto de ele próprio se ver encurralado, em busca de delações premiadas para algo que é escancarado, que está nas ruas.

Alega-se que é preciso ter uma delação premiada para poder avançar na investigação e isso virou uma possibilidade. Se os efeitos disso fossem reais e trouxessem à baila toda essa rede e fizessem uma atuação em rede a ponto de dar um baque significativo nessa estrutura e restringi-la… mas até agora não vi nada disso acontecer. Pelo contrário, cada baque que essa estrutura sofre é pequeno, o que permite a sua rápida recomposição muito facilmente.

IHU On-Line – Qual é o poder político das milícias que atuam no Rio de Janeiro hoje? Quem faz parte dessa estrutura?

José Cláudio Alves – O braço político tem se ampliado desde as últimas eleições no campo federal, principalmente, e estadual, com a eleição, se não de milicianos diretamente eleitos, de bancadas de partidos de ultradireitapartidos conservadores e partidos vinculados a uma lógica fundamentalista religiosa, permitindo a eleição de uma bancada fundamentalista, conservadora e voltada para a lógica de que “bandido bom é bandido morto”. Nesse sentido, a bancada da bala se ampliou muito no Rio de Janeiro, projetando figuras simplesmente insignificantes, ignoradas pela população daqueles que atuavam politicamente, que vieram numa onda extremamente conservadora projetadas por esse discurso do aumento da violência, aumento da execução sumária, da prática da eliminação do outro, da lógica do desarmamento, e tudo isso tem ampliado o poder político desses grupos.

Isso é visível no Rio de Janeiro, e os reflexos já estão sendo vistos pelo aumento do número de operações policiais com chacina, com mortes de pessoas, o aumento de desaparecidos forçados. E o mais preocupante são as subnotificações: não está ocorrendo registro de homicídios e desaparecidos; eles não estão sendo registrados por conta da lógica do medo associada à lógica da violência crescente da instituição Estado e do aparato policial. Isso tem um efeito de repressão a todo e qualquer registro de atos violentos e perdas de direitos. A tendência é esse cenário piorar e fortalecer ainda mais esses grupos em termos políticos naquela região. Tenho dito que cinco décadas de grupos de extermínio se reverteram em 70 a 75% da votação que Bolsonaro e a extrema direita que se associou a ele obtiveram na última eleição na Baixada. Isso não é uma surpresa; foi algo construído ao longo das últimas cinco décadas, se contarmos tudo que aconteceu desde a ditadura empresarial militar no Brasil. É sob essa égide que vivemos ainda.

Atuação das milícias

estrutura política e econômica das milícias no Rio de Janeiro hoje começa a ganhar vários outros contornos, que não eram perceptíveis e que agora se manifestam. Vou dar alguns exemplos. Um deles é em Itaboraí, uma cidade metropolitana do Rio de Janeiro, onde está sendo construído o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro – Comperj, cujas obras do governo federal estavam paradas e foram retomadas recentemente. Várias empresas terceirizadas estão atuando na construção da obra e a milícia está controlando quem vai trabalhar nessas empresas. Isso já é um passo à frente em relação à atuação das milícias anteriormente: a milícia detecta onde o capital está se manifestando — nesse caso é um capital público em parceria com empresas privadas — e, ao ficar a par da situação, manipula essa informação e passa a controlar de forma violenta o acesso a esse emprego, cobrando taxas e valores das pessoas que querem trabalhar nessas empresas. Assim esses empregados terão que repassar parte dos seus salários para os milicianos. Essa é uma novidade nesse campo no Rio de Janeiro.

Outra novidade é a milícia marítima, que atua a partir de informações de que o Ministério da Pesca e Aquicultura não está fornecendo licenças para pescadores há três anos ou mais. Essa milícia aborda os pescadores no mar, quando eles estão pescando, exige a licença que o pescador não tem e passa a exigir valores semanais para permitir que o pescador possa continuar pescando. Então, surgiu na costa do Rio de Janeiro essa milícia marítima que passa a controlar os pescadores.

Uma terceira forma de ampliação das milícias é o controle de serviços médicos nos hospitais públicos no Rio de Janeiro. Escutei que no Hospital Geral de Bom Sucesso, um hospital federal, a milícia controla quem acessa e quem tem direito aos serviços do hospital e cobra taxas por isso. Então, isso também é uma inovação. A venda de drogas também passou a ser utilizada pela milícia como uma forma de trabalho e atuação. A milícia não só aluga pontos de drogas para facções do tráfico, mas agora faz a própria venda da droga. Então, o leque de atuação das milícias se amplia e todo esse leque de atuação tem seu braço político.

IHU On-Line – Qual é a relação das milícias com o Estado?

José Cláudio Alves – A relação das milícias com o Estado é determinante para o que ela se transformou nos dias de hoje, uma estrutura de poder absoluta, ampla, autoritária, expressiva e crescente no Rio de Janeiro. Tenho dito que a milícia atua com duas faces que são determinantes: a legal e a ilegal.

face legal da milícia é a condição de ter acesso a informações privilegiadas do Estado a respeito de terras, propriedades, monopólios de comércios, pagamentos de impostos, sobre operações policiais que blindam a milícia de prisões; tudo isso faz parte da dimensão legal. Também faz parte dessa dimensão o fato de a polícia operar o judiciário na sua ponta com investigações, repressões, ou seja, o processo jurídico inicial envolvido na dimensão do judiciário é controlado pela polícia e seus agentes e isso dá mais poder aos milicianos.

face ilegal, que é a face criminosa, assassina, torturadora, totalitária, obstrui qualquer tipo de contestação do seu poder que mata e executa quem se contrapõe a ela. A milícia só tem esse poder todo graças à dimensão legal das informações e dos postos que esses agentes ocupam dentro do Estado.

Assim, a face legal e a ilegal se complementam e se projetam uma na outra, criando uma estrutura totalitária, fechada, blindada, intocável. A prisão desses dois acusados é a exceção de uma regra. A regra é que membros de milícias são intocáveis, seus negócios se ampliam e eles têm dimensões crescentes desse poder e agora expressam isso a partir do assassinato de pessoas que ocupam cargos no âmbito político e que são contrárias aos seus interesses.

A meu ver a milícia tem dimensões mais poderosas e mais amplas do que eu poderia ter imaginado há algum tempo. As milícias crescem velozmente por dentro do Estado e se beneficiam dessa dupla face da mesma moeda, a face legal e a ilegal. O ilegal é o Estado. Por mais que o Estado se reconheça como legal e trabalhe com essa concepção para todos nós, o determinante aqui é a dimensão ilegal, que ultrapassa a dimensão do legal, ampliando os poderes do Estado e dando a ele uma face cada vez mais totalitária, absoluta, irresistível, incontornável e capaz de controlar massas e espaços geográficos ao longo do tempo, de uma forma como nós vivemos hoje. Essa face ilegal amplia o poder do Estado, não restringe o seu poder. Não é o anti-Estado, o poder paralelo, mas sim a presença multidimensional de um Estado autoritáriototalitário e ditatorial. Nós nunca saímos da ditadura; saímos da ditadura oficial para a ditadura dos grupos de extermínio e milícias, que é a forma que opera hoje nessas regiões e no Rio de Janeiro. Essa estrutura submete todos nós a esse controle e poder da tortura e da execução sumária.

IHU On-Line – Como o senhor avalia o pacote anticrime encaminhado à Câmara pelo novo governo, que aposta em três vias: combate a crimes de corrupção, combate ao tráfico de drogas e combate a crimes de violência?

José Cláudio Alves – O pacote de Moro vai na contramão de toda a minha avaliação e de tudo que venho falando ao longo dos anos. O pacote anticrime se insere na lógica totalitária, ditatorial e autoritária da estrutura policial, que é a base de alimentação do crime organizado expresso na milícia. Moro, ao defender os princípios do próprio Bolsonaro, como o excludente de ilicitude, alega que o agente de segurança, numa condição de estresse e sem controle do ambiente e do momento em que está atuando, permite a ele o uso da violência letal, do assassinato e homicídio como forma de solução daquelas questões, eximindo aquele policial de responsabilidade.

Na verdade, isso era tudo que esses grupos apoiadores dessa estrutura política ideológica da extrema direita queriam. Eles não vão mais precisar colocar capuz para matar; vão matar como milicianos. Agora, eles podem matar de cara limpa e vão dizer que estavam no cumprimento do seu dever, sob forte tensão. Trata-se da ampliação e explosão de um processo que já está em crescimento e expansão. É isso que nos assusta, porque irá gerar dimensões mais graves e desrespeitosas dos direitos da população. Esse pacote também aumenta a punitividade, amplia a dimensão de encarceramento, amplia as penas, o que é uma grande ilusão, porque é na dimensão penitenciária que se dá a organização dessas grandes facções.

Encarcerar e prender não vai resolver o problema. Pelo contrário, hoje as facções operam pelo sistema penitenciário. É preciso fazer o contrário: desmontar essas estruturas, esvaziá-las e tratar as drogas não como problema de polícia, mas de saúde e de educação. É preciso desmilitarizar a polícia para que o policial dialogue com a população e construa uma lógica política de proteção, para que o policial não seja o agente que mais mata e que mais morre. Então, é preciso reformular a estrutura e não reforçá-la e ampliá-la. De outro lado, é preciso investir em políticas públicas que possam proteger essa população mais frágil. Não vemos isso. Vemos a perda e a destruição dos direitos dos trabalhadores. Esse pacote do Moro avança no caminho inverso do que deveria ser. Esses grupos vão se fortalecer mais ainda com essas medidas.

IHU On-Line – Como o senhor avalia o fato do caso Marielle ter ocupado outros espaços, chegando até mesmo ao Carnaval?

José Cláudio Alves – O fato de Bolsonaro ter postado imagens quase pornográficas, se referindo ao carnaval nessas dimensões, comprovam o efeito que o carnaval trouxe para o país inteiro em termos da crítica, da afronta, da insubordinação e da resistência a essa dimensão da extrema direita no poder. Bolsonaro expressa isso tentando fazer do carnaval o mesmo discurso de mentira, de dissimulação e destruição que ele fez na época da campanha eleitoral do ano passado, como ele fez com a campanha que as mulheres iniciaram do #Ele Não. Ali foi feita a mesma estratégia: foram montadas fake news com imagens de mulheres nuas e em situações diferenciadas em relação à tradição moral e familiar que esses grupos defendem, para desqualificar as manifestações. Até que ponto ele vai conseguir resultados, mantendo essa estratégia? A impressão que dá é que ele está se lixando para o que a sociedade faz; ele não quer governar. Ele quer dilapidar, quer destruir, assassinar e investir em dimensões conservadoras, em perdas de direitos, em redução do papel da mulher na sociedade, na diminuição de direitos de gays, lésbicas, travestis, quer aprofundar a dimensão do racismo contra as populações negras e indígenas. Ele é uma bomba de hidrogênio de efeito devastador que elimina as divergências e oposições. Ele é a expressão disso.

Enfim, temos a milícia no poder. Ela chegou a se consolidar numa dimensão municipal, estadual e federal, numa dimensão mais crescente. É esse meu diagnóstico. Essa dimensão do que ocorre no carnaval é a expressão da resistência, a expressão aguerrida de luta popular em espaços em que o povo está para expressar a sua inconformidade com tudo que vem acontecendo.

Espero que esses espaços se ampliem na sociedade como um todo, que a verdade vença, supere esse ódio, mentira, covardia e essas execuções sumárias de um Estado totalitário e de uma sociedade que se sujeita a esse totalitarismo. Espero o retorno à consciência, à solidariedade, à lucidez, à compaixão, aos direitos e à proteção dos mais fracos, e não esse Estado dilapidado. Isso não pode ser feito com ilusões: hoje esse Estado é algoz de toda a população brasileira e a milícia é a expressão mais brutal e violenta desse torturador que está na nossa frente. Esse é o dilema que a sociedade terá que enfrentar.