Corrupção, crise econômica e degradação social

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A sociedade brasileira está envolta em casos assustadores de corrupção, ineficiência e desmandos com o dinheiro público, num país marcado por tanta pobreza e indignidade, os desperdícios aumentam a pobreza e a degradação social e condena uma parte considerável da população a uma miséria crônica e vergonhosa, apesar de sermos a oitava economia do mundo, estamos nas últimas colocações do ranking quando analisamos questões sociais.

A corrupção sempre foi vista como algo estrutural nesta sociedade, segundo cálculos recentes da transparência internacional, instituição de grande respeitabilidade global que analisa esta questão, desvia-se entre 3 e 5% do produto interno bruto (PIB), recursos estes que poderiam minorar as dores e a degradação das condições de vida de milhões de cidadãos que vivem e se reproduzem nas piores condições sociais possíveis e imagináveis.

Ao analisar este fenômeno da corrupção, percebemos inúmeras vertentes de análise, uma que remonta a história do país um comportamento eminentemente corrupto, onde os portugueses construíram em terras locais uma sociedade baseada em compadrio, clientelismo e patrimonialismo, onde os detentores dos poderes econômicos da metrópole, reproduziam na colônia os instrumentos de controle que eram fontes de poder e manutenção do status quo, nesta sociedade, marcada pelo conservadorismo e pela forte influência do catolicismo, os donos do poder mantinham inúmeros privilégios enquanto os cidadãos normais se limitavam a direitos e benefícios sociais e políticos limitados.

Muitos acreditam que a corrupção que vivenciamos internamente tem suas raízes na colonização de Portugal, com isso, deixam de assumir as responsabilidades da população brasileira, afinal, os portugueses foram embora do Brasil a quase duzentos anos, nestes quase dois séculos de independência o país já deveria ter assumido as suas responsabilidades e tomado as rédeas de seu desenvolvimento econômico, social e político, culpar outros países denota claramente a imaturidade que domina uma parte da elite nacional.

Outro ponto importante para se destacar quando debatemos a corrupção é em relação as críticas feitas por boa parte da população aos homens públicos, vendo neles os verdadeiros exemplos da corrupção e da ineficiência do Estado e das políticas públicas, esta nos parece uma tese incompleta para a compreensão do problema em sua essência, muitos preferem colocar a culpa em outros, atribuir a terceiro os motivos do fracasso da sociedade brasileira, com isso se esquecem da responsabilidade de cada pessoa, se esquecem dos comportamentos corruptos e das atitudes inconsequentes de todos os dias na vivência em comunidade, quando passam no sinal vermelho, quando dirigem acima da velocidade permitida, quando cortam fila ou fingem situações para passar na frente de outras pessoas, quando corrompem o guarda ou fazem propostas indecorosas para conseguir benefícios ou prazeres imediatos, ou seja, nestas situações mostramo-nos intimamente, nos desnudamos e deixamos nítido que, se tivéssemos a oportunidade ou o poder, agiríamos da forma como os políticos agem na sociedade e que nós tanto o criticamos.

A corrupção está presente nos lares da população, desde os anos 70 nos comprazemos com a ideia de que devemos tirar proveito de tudo, de que somos adoradores da Lei de Gerson, o chamado jeitinho brasileiro nos acompanha desde os primórdios do nosso íntimo, somos e nos deliciamos com nossa capacidade de tirar vantagem de tudo. Neste ambiente marcado pela corrupção e pela cidadania reduzida, nos lembramos das palavras e das reflexões do grande jurista Rui Barbosa: “De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto”.

A corrupção corrói as estruturas da sociedade, gerando graves desequilíbrios nas estruturas econômicas, sociais e políticas, propala, para toda a sociedade, nacional e internacional, a certeza de que, como disse Charles De Gaulle, grande estadista francês em visita ao país nos anos 60: “O Brasil não é um país sério”. Mesmo rechaçando as palavras do político francês, todos os brasileiros sabemos, na intimidade, que o Brasil precisa passar por um banho de civilização, estamos diante de graves problemas econômicos, políticos e sociais, sem resolver estas questões de cunho moral, dificilmente daremos o salto tão almejado desenvolvimento econômico.

A corrupção perpassa variados grupos sociais, de um lado encontramos um Estado altamente ineficiente, cujos investimentos geram os mais desagradáveis retornos da sociedade global, precisamos caminhar muito em governança, reduzir os desequilíbrios e desperdícios que corroem a renda e geram um rastro de medo, insegurança e incertezas.

A corrupção se associa intimamente com o Estado, no Brasil temos um governo gigantesco, seus investimentos e gastos influenciam imensamente todos os setores econômicos e produtivos, reduzir a atuação governamental em setores marcados pela ineficiência e pelos desperdícios e concentrar sua atuação em setores com menores condições, tanto com relação ao pessoal quanto ao financeiro, garantindo políticas públicas consistentes para que todos os grupos tenham acesso a uma educação inclusiva e de qualidade, que garanta a todos os grupos sociais condições de competir no mercado de trabalho competitivo e altamente individualista.

Destacamos ainda, que devemos rechaçar a tese de que o Estado é corrupto e ineficiente, enquanto os mercados e a iniciativa privada são sempre virtuosos e competentes, Estados e Mercados são agentes centrais para o desenvolvimento do país, se estudarmos a história do desenvolvimento dos países avançados perceberemos que todos eles, no início da industrialização, contaram com o apoio e a participação de políticas industriais ativas lideradas pelos seus respectivos governos, como nos mostrou o esclarecedor livro O Estado Empreendedor, da economista italiana Mariana Mazzucato.

A coordenação entre Estado e Mercado deve ser centrada na transparência, no compartilhamento de decisões e na construção de estratégias claras e consistentes, sem o planejamento conjunto, ainda mais num momento de constante instabilidades e inseguranças, o desenvolvimento econômico e produtivo pode não se efetivar da melhor forma possível, com graves problemas para a coletividade.

Vivemos no Brasil uma situação exemplar, extraordinário e paradoxal, sempre nos caracterizamos como uma sociedade que via a política como um espaço de corrupção e ineficiência, neste mundo a parte os políticos eram o retrato mais nítido e evidente do atraso, os outros setores eram competentes e capacitados, acreditamos nisso durante muitos anos até acordarmos e percebermos que não éramos tão virtuosos como acreditávamos, que os políticos e os homens públicos eram eleitos com os nossos votos, nós os elegíamos mesmo vendo neles um exemplo de ineficiência, despreparo e corrupção.

Outro ponto central para se destacar nesta sociedade é o papel central da educação, além de ser um instrumento fundamental para a melhoria da competitividade e da economia de um país, a educação deve ser vista como um instrumento extremamente relevante para construir cidadãos capacitados e conscientes, não apenas consumidores, ou seja, indivíduos que acreditam que todas as relações sociais dentro de uma coletividade deve ser estruturada dentro das relações comerciais e financeiras, deixando de lado o papel da política como um instrumento de intercâmbio e melhorias sociais e coletivas.

A corrupção é um cancro que degrada toda a coletividade, desvia os recursos que deveriam ser investidos na melhoria das condições sociais e econômicas, gerando mais e melhores empregos e capacitando os trabalhadores para os desafios do mundo globalizado, a corrupção denigre a política e os homens públicos criando e disseminando a máxima “políticos são todos iguais”, com isso, contribui para a perpetuação das condições de iniquidade e desajustes e impulsionando a visão deletéria de que devemos ser, cada vez mais, individualistas, pensarmos primeiro em nossos mais imediatos interesses e depois, muito depois, pensarmos nos interesses de nossa coletividade.

O Brasil precisa combater efetivamente as causas da corrupção, para que isso seja feito, faz-se necessário a construção de estratégias consistentes que abarquem todos os poderes da República, a corrupção que assusta a coletividade está encravada em todos os poderes não apenas o executivo e o legislativo, como muitos querem passar a impressão, a corrupção está gangrenando dentro do judiciário e dentro do ministério público, a corrupção está dentro do mercado financeiro, dos grandes bancos, das corretoras e de outros agentes independentes, a corrupção se alastrou por todas as instituições do Estado Nacional, combater a corrupção é bradar que se está fazendo uma ampla limpeza no país, sem se aprofundar nas entranhas do judiciário e do sistema financeiro, os resultados serão sempre limitados e limitadores.

Depois de vários escândalos nos últimos vinte anos, vamos nos restringir a este período histórico, desde os anões do orçamento, a compra de votos para a reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso, o mensalão, o petróleo e agora a Lava Jato, muitos inquéritos foram abertos, muitos escândalos foram revelados e muita podridão nos foi mostrada em cadeia de rádio e de televisão, mesmo diante destes escândalos, muitos políticos e empresários foram presos, humilhados e suas imagens foram destruídas mas, neste período poucos foram efetivamente condenados e muitos deles, através de delações premiadas já estão em liberdade, sendo que alguns voltaram a delinquir.

A corrupção se manifesta de forma diferente na sociedade contemporânea, a pior forma de corrupção é a corrupção do caráter, a corrupção da moral, esta forma está em ampla ascensão na sociedade, pessoas que conhecem a situação social, intelectuais e homens públicos que se vendem em troca de recursos amoedados, garantindo uma vida de prazer, dinheiro, bens e hedonismo, pesquisadores que vendem descobertas científicas que degradam a vida de milhões de pessoas, destroem as bases da sociedade, se esquecendo dos graves impactos e consequências de suas decisões, com isso, percebemos uma sociedade em alta ebulição, marcadas por crises e desequilíbrios crescentes.

A discussão sobre a corrupção é uma conversa muito mais complexa do que as pessoas imaginam, conversar sobre este tema é refletir sobre as desigualdades que reinam na sociedade, falar sobre corrupção é conversar sobre as formas de educação que estão sendo vendidas nas escolas e nas universidades, falar sobre a corrupção é adentrar na discussão de como as empresas e os empregadores tratam seus funcionários ou como exigem os gestores, os colaboradores, esta discussão é muito pouco comentada na sociedade, esta discussão não interessa apenas aos donos do poder e, sendo assim, esta discussão não aparece nos jornais, nas revistas e nos sites de notícias, aparecem apenas na mente e nos lábios dos professores que ousam pensar e refletir, ou seja, uma pequena e ínfima minoria.

Quando escrevi a minha tese de doutorado, o assunto escolhido foi a corrupção e os custos econômicos para a coletividade, naquela época nos deparamos com as investigações relacionadas ao mensalão, concomitantemente estudava o começo dos anos 90, quando o governo Fernando Collor de Mello sofreu impeachment e foi acusado de corrupção generalizada, nesta época lia os artigos de teóricos e políticos importantes, todos revoltados com a situação de corrupção do país, para minha surpresa, anos depois, estes mesmos que gritavam e bradavam contra a corrupção, estavam no centro das investigações justamente por corrupção e desvios de recursos públicos, neste momento me vinha a mente de forma veemente uma fala do teórico alemão, tão criticado no Brasil contemporâneo Karl Marx: A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa.

 

 

 

 

 

Quem deu o golpe, e contra quem?

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JESSÉ SOUZA

24/04/2016 – Folha de São Paulo

(RESUMO) Para o autor, decisão da Câmara a favor do processo de impeachment da presidente Dilma ameaça a democracia. Em texto que retoma ideias já expostas aqui e em seu livro mais recente, diz que esta crise, como outras, contou com a manipulação, mediada pela imprensa, da classe média pela “elite de dinheiro”.

O golpe foi contra a democracia como princípio de organização da vida social. Esse foi um golpe comandado pela ínfima elite do dinheiro que nos domina sem ruptura importante desde nosso passado escravocrata.

O ponto de inflexão da história recente do Brasil contra a herança escravocrata foi a revolução comandada por contraelites subordinadas que se uniram em 1930.

A visão pessoal de Getúlio Vargas transformou o que poderia ter sido um mero conflito interno de elites em disputa em uma possibilidade de reinvenção nacional.

O sonho era a transformação do Brasil em potência industrial com forte mercado interno e classe trabalhadora protegida, com capacidade de consumo. Nossa elite do dinheiro jamais sequer “compreendeu” esse sonho, posto que “afetivamente” nunca sentiu compromisso com os destinos do país.

Desde então o Brasil é palco de uma disputa entre esses dois projetos: o sonho de um país grande e pujante para a maioria; e a realidade de uma elite da rapina que quer drenar o trabalho de todos e saquear as riquezas do país para o bolso de meia dúzia.

A elite do dinheiro manda pelo simples fato de poder “comprar” todas as outras elites.

É essa elite, cujo símbolo maior é a bela avenida Paulista, que compra a elite intelectual de modo a construir, com o prestígio da ciência, a lorota da corrupção apenas do Estado, tornando invisível a corrupção legal e ilegal do mercado que ela domina; que compra a política via financiamento privado de eleições; e que compra a imprensa e as redes de TV, cujos próprios donos fazem parte da mesma elite da rapina.

De acordo com a conjuntura histórica, sempre que o Executivo está nas mãos do inimigo, imprensa e Congresso, comprados pelo dinheiro, se aliam a um quarto elemento que é o que suja as mãos de fato no golpe: as Forças Armadas antes, e o complexo jurídico-policial do Estado hoje em dia.

A história do Brasil desde 1930 é um movimento pendular entre esses dois polos. Getúlio caiu, como o desafeto histórico maior desta elite, por um conluio entre Congresso comprado, imprensa manipuladora e Forças Armadas que se imaginavam pairar acima dos conflitos sociais.

O suicídio do presidente adia em dez anos o golpe formal, que acontece em 1964 pela mesma articulação de interesses. O curioso, no entanto, é que dentro das Forças Armadas existia a mesma polarização que existia na sociedade.

INFRAESTRUTURA

O nacionalismo autoritário das Forças Armadas articula, por meio do 2º PND (Plano Nacional de Desenvolvimento) do presidente Geisel, uma versão ambiciosa do sonho getulista: investimento maciço em infraestrutura e setores-chave da vanguarda tecnológica com a disseminação de universidades e centros de pesquisa em todo o país.

Ainda que o capital privado fosse muito bem-vindo, a condução do projeto de longo prazo era do Estado. Foi o bastante para que os jornais se lançassem em uma batalha ideológica contra a “república socialista do Brasil” e os empresários descobrissem, de uma hora para outra, sua inabalável “vocação democrática”.

O processo de redemocratização comandado pela elite do dinheiro tem tal pano de fundo. As Diretas-Já, na verdade, espelham a volta da rapina de curto prazo e uma nova derrota do sonho de um “Brasil grande”.

Aqui já poderia ter ocorrido a conscientização de que a rapina selvagem é o fio condutor, e que a forma autoritária ou democrática que ela assume é mera conveniência. Mas o processo de aprendizado foi abortado. O público ficou sem saber por que o golpe tinha ocorrido e, depois, por que ele havia sido criticado. Criou-se uma anistia do “esquecimento” no mesmo sentido da queima dos papéis da escravidão por Rui Barbosa: para que jamais saibamos quem somos e a quem obedecemos.

Com o governo FHC, essa elite da rapina de curto prazo se insere, enfim, não apenas no mercado mas também, com todas as mãos, no Estado e no Executivo.

A festa da privatização para o bolso da meia dúzia de sempre, da riqueza acumulada pela sociedade durante gerações, se deu a céu aberto. A maior eficiência dos serviços, prometida à sociedade e alardeada pela imprensa, sempre solícita e sócia de todo saque, se deixa esperar até hoje.

Como uma imprensa a serviço do saque e do dinheiro não pode fazer todo mundo de tolo durante todo o tempo, e como ainda existem sonhos que o dinheiro não pode comprar, o Executivo mudou de mãos em 2002.

O novo governo tentou o mesmo projeto desenvolvimentista anterior, de apoio à indústria e à inteligência nacional. Mas seu crime maior foi a ascensão dos setores populares via, antes de tudo, a valorização real do salário mínimo.

Os mais pobres passaram a ocupar espaços antes exclusivos às classes do privilégio.

Parte da classe média sofria profundo incômodo diante dessa nova proximidade em shopping centers e aeroportos, mas “pegava mal” expressar o descontentamento em público. Pior, a classe média temia que essa classe ascendente pudesse vir a disputar os seus privilégios e os seus empregos.

O discurso da “corrupção seletiva” manipulado pela mídia permite que se enfrente agora o medo mais mesquinho com um discurso moralizador e uma atitude de pretenso “campeão da moralidade”. O que antes se dizia a boca pequena entre amigos agora pode ser dito com a camisa do Brasil e empunhando a bandeira nacional. Está criada a “base popular”, produto da mídia servil à elite da rapina.

A luta contra os juros desencadeada pela presidente Dilma em 2012 reedita a eterna crença da esquerda nacionalista brasileira na existência de uma “boa burguesia”, ou seja, a fração industrial supostamente interessada em um projeto de longo prazo de fortalecimento do mercado interno.

Mas todas as frações da elite já mamam na mesma teta dos juros altos que permite transferir recursos de todas as classes para o bolso dos endinheirados de modo invisível, funcionando como uma “taxa” que encarece todos os preços e transfere parte de tudo o que é produzido para os rentistas –inclusive da classe média feita de tola pela imprensa comprada.

Quando em abril de 2013 as taxas de juros voltam a subir, a elite está armada e unida contra a presidente. As “jornadas de junho” daquele ano vêm bem a calhar e, por força de bem urdida campanha midiática, transformam protestos localizados em uma recém-formada coalizão entre a elite endinheirada e a classe média “campeã da moralidade e da decência” contra o projeto inclusivo e desenvolvimentista da esquerda.

Como os votos dos pobres recém-incluídos são mais numerosos, no entanto, perde-se a campanha de 2014. Mas a aliança entre endinheirados e moralistas de ocasião se mantém e se fortalece com um novo aliado: o aparato jurídico-policial do Estado.

Construído pela Constituição de 1988 para funcionar como controle recíproco das atividades investigativas e jurisdicionais, todo esse aparato passa por mudanças expressivas desde então. Altos salários e demanda crescente por privilégios de todo tipo associados ao “sentimento de casta” que os concursos dirigidos aos filhos das classes do privilégio ensejam transformam esses aparelhos que tudo controlam, mas não são controlados por ninguém, em verdadeiros “partidos corporativos” lutando por interesses próprios dentro do aparelho de Estado.

A manipulação da “corrupção seletiva” pela imprensa é o discurso ideal para travestir, também aqui, os mais mesquinhos interesses corporativos em suposto “bem comum”. O troféu de “campeão da moralidade pública” passa a ser disputado por todas as corporações e se estabelece um conluio entre elas e a imprensa, que os vazamentos seletivos cuidadosamente orquestrados comprovam tão bem.

Esse é o elemento novo do velho golpe surrado de sempre. Ainda que o golpe tenha se dado no circo do Congresso em uma palhaçada denunciada por toda a imprensa internacional, sem o trabalho prévio dos justiceiros da “justiça seletiva” ele não teria acontecido.

O Estado policial a cargo da “casta jurídica” já está sendo testado há meses e deve assumir o papel de perseguir, com base na mesma “seletividade midiática”, o princípio: para os inimigos a lei, e para os amigos a “grande pizza”.

A “pizza” para os amigos já está em todos os jornais e acontece à luz do dia. O acirramento da criminalização da esquerda é o próximo passo. Esse é o maior perigo. Muita injustiça será cometida em nome da Justiça.

Mas existe também a oportunidade. Nem toda classe média é o aprendiz de fascista que transforma seu medo irracional em ódio contra os mais fracos, travestindo-o de “coragem cívica”.

Ainda que nossa classe média esteja longe de ser refletida e inteligente como ela se imagina, quem quer que tenha escapado do bombardeio diário de veneno midiático com dois neurônios intactos não deixará de estranhar o mundo que ajudou a criar: um mundo comandado por um sindicato de ladrões na política, uma justiça de “justiceiros” que os protege, uma elite de vampiros e uma sociedade condenada à miséria material e à pobreza espiritual. Esse golpe precisa ser compreendido por todos. Ele é o espelho do que nos tornamos.

JESSÉ SOUZA, 56, autor de “A Tolice da Inteligência Brasileira” (Leya), presidente do Ipea, é professor titular de ciência política da UFF e foi professor convidado na Universidade de Bremen.

Escravidão, e não corrupção, define sociedade brasileira, diz Jessé Souza

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RESUMO Autor argumenta que a visão do brasileiro como vira-lata, pré-moderno, emotivo e corrupto decorre de uma leitura liberal, conservadora e equivocada de nosso passado. Para ele, é preciso reinterpretar a história do Brasil tomando a escravidão como o elemento definitivo que nos marca como sociedade até hoje.

Quem sintetizou a interpretação dominante do Brasil, que todos aprendemos nas escolas e nas universidades, foi Gilberto Freyre (1900-87). É a ideia de que viemos de Portugal e que de lá herdamos um jeito específico de ser. Para o autor de “Casa-Grande e Senzala” e para seguidores como Darcy Ribeiro (1922-97), essa herança era positiva ou, pelo menos, ambígua.

Sérgio Buarque de Holanda (1902-82), outro filho de Freyre, reinterpreta a ideia como pura negatividade em registro liberal. Cria, assim, o brasileiro como vira-lata, pré-moderno, emotivo e corrupto. Tal visão prevaleceu, e quase todos a seguem, de Raymundo Faoro (1925-2003), Fernando Henrique Cardoso e Roberto DaMatta a Deltan Dallagnol e Sergio Moro.

Essa é a única interpretação totalizante da sociedade brasileira que existe até hoje.

A “esquerda”, entendida como a perspectiva que contempla os interesses da maioria da sociedade, jamais construiu alternativa a essa leitura liberal e conservadora. Existem contribuições tópicas geniais, mas elas esclarecem fragmentos da realidade social, não a sua totalidade, permitindo que, por seus poros e lacunas, penetre a explicação dominante.

A ausência de interpretação própria fez com que a esquerda sempre fosse dominada pelo discurso do adversário. Reescrever essa história é a ambição de meu novo livro, “A Elite do Atraso – Da Escravidão à Lava Jato” [Leya, 240 págs., R$ 44,90]. O fio condutor é a ideia de que a escravidão nos marca como sociedade até hoje —e não a suposta herança de corrupção, como se convencionou sustentar.

Para Faoro, por exemplo, a história do Brasil é a história da corrupção transplantada de Portugal e aqui exercida pela elite do Estado. Nessa narrativa, senhores e escravos raramente aparecem e nunca têm o papel principal.

Essa abordagem seria apenas ridícula se não fosse trágica. Faoro imagina a semente da corrupção já no século 14, em Portugal, quando não havia nem sequer a concepção de soberania popular, que é parteira da noção moderna de bem público. É como ver um filme sobre a Roma antiga cheio de cenas românticas que foram inventadas no século 18. Não obstante, o país inteiro acredita nessa bobagem.

ESCRAVIDÃO

Os adeptos dessa interpretação dominante parecem não se dar conta de que, em uma sociedade, cada indivíduo é criado pela ação diária de instituições concretas, como a família, a escola, o mundo do trabalho.

No Brasil Colônia, a instituição que influenciava todas as outras era a escravidão (que não existia em Portugal, a não ser de modo tópico). Tanto que a (não) família do escravo daquele período sobrevive até hoje, com poucas mudanças, na (não) família das classes excluídas: monoparental, sem construir os papéis familiares mais básicos, refletindo o desprezo e o abandono que existiam em relação ao escravo.

Também no mundo do trabalho a continuidade impressiona. A “ralé de novos escravos”, mais de um terço da população, é explorada pela classe média e pela elite do mesmo modo que o escravo doméstico: pelo uso de sua energia muscular em funções indignas, cansativas e com remuneração abjeta.

Em outras palavras, os estratos de cima roubam o tempo dos de baixo e o investem em atividades rentáveis, ampliando seu próprio capital social e cultural (com cursos de idiomas e pós-graduação, por exemplo) e condenando a outra classe à reprodução de sua miséria.

A classe que chamo provocativamente de ralé é uma continuação direta dos escravos. Ela é hoje em grande parte mestiça, mas não deixa de ser destinatária da superexploração, do ódio e do desprezo que se reservavam ao escravo negro. O assassinato indiscriminado de pobres é atualmente uma política pública informal de todas as grandes cidades brasileiras.

A nossa elite econômica também é uma continuidade perfeita da elite escravagista. Ambas se caracterizam pela rapinagem de curto prazo. Antes, o planejamento era dificultado pela impossibilidade de calcular os fatores de produção. Hoje, como o recente golpe comprova, ainda predomina o “quero o meu agora”, mesmo que a custo do futuro de todos.

É importante destacar essa diferença. Em outros países, as elites também ficam com a melhor fatia do bolo do presente, mas além disso planejam o bolo do futuro. Por aqui, a elite dedica-se apenas ao saque da população via juros ou à pilhagem das riquezas naturais.

INTERMEDIÁRIAS

Historicamente, a polarização entre senhores e escravos em nossa sociedade permaneceu até o alvorecer do século 20, quando surgiram dois novos estratos por força do capitalismo industrial: a classe trabalhadora e a classe média.

Em relação aos trabalhadores, a violência e o engodo sempre foram o tratamento dominante. Com a classe média, porém, a elite se viu contraposta a um desafio novo.

A classe média não é necessariamente conservadora. Tampouco é homogênea. O tenentismo, conhecido como nosso primeiro movimento político de classe média, na década de 1920, já revelava essas características, pois abrigava múltiplas posições ideológicas.

A elite paulistana, tendo perdido o poder político em 1930, precisava fazer com que a heterodoxia rebelde da classe média apontasse para uma única direção, agora em conformidade com os interesses das camadas mais abastadas. Como naquele momento os endinheirados de São Paulo não controlavam o Estado, o caminho foi dominar a esfera pública e usá-la como arma.

O que estava em jogo era a captura intelectual e simbólica da classe média letrada pela elite do dinheiro, para a formação da aliança de classe dominante que marcaria o Brasil dali em diante.

O acesso ao poder simbólico exige a construção de “fábricas de opiniões”: a grande imprensa, as grandes editoras e livrarias, para “convencer” seu público na direção que os proprietários queriam, sob a máscara da “liberdade de imprensa” e de opinião.

A imprensa, todavia, só distribui informação e opinião. Ela não cria conteúdo. A produção de conteúdo é monopólio de especialistas treinados: os intelectuais. A elite paulistana, então, constrói a USP, destinando-a a ser uma espécie de gigantesco “think tank” do liberalismo conservador brasileiro, de onde saem as duas ideias centrais dessa vertente: as noções de patrimonialismo e de populismo.

LAVA JATO

Enquanto conceito, o patrimonialismo procede a uma inversão do poder social real, localizando-o no Estado, não no mercado. Abre-se espaço, assim, para a estigmatização do Estado e da política sempre que se contraponham aos interesses da elite econômica. Nesse esquema, a classe média cooptada escandaliza-se apenas com a corrupção política dos partidos ligados às classes populares.

A noção de populismo, por sua vez, sempre associada a políticas de interesse dos mais pobres, serve para mitigar a importância da soberania popular como critério fundamental de uma sociedade democrática —afinal, como os pobres (“coitadinhos!”) não têm consciência política, a soberania popular sempre pode ser posta em questão.

É impressionante a proliferação dessa ideia na esfera pública a partir da sua “respeitabilidade científica” e, depois, pelo aparato legitimador midiático, que o repercute todos os dias de modos variados.

As noções de patrimonialismo e de populismo, distribuídas em pílulas pelo veneno midiático diariamente, são as ideias-guia que permitem à elite arregimentar a classe média como sua tropa de choque.

Essas noções legitimam a aliança antipopular construída no Brasil do século 20 para preservar o privilégio real: o acesso ao capital econômico por parte da elite e o monopólio do capital cultural valorizado para a classe média. É esse pacto que permite a união dos 20% de privilegiados contra os 80% de excluídos.

A atual farsa da Lava Jato é apenas a máscara nova de um jogo velho que completa cem anos.

Em conluio com a grande mídia, não se atacou apenas a ideia de soberania popular, pela estigmatização seletiva da política e de empresas supostamente ligadas ao PT —o saque real, obra dos oligopólios e da intermediação financeira, que capturam o Estado para seus fins, ficou invisível como sempre. Destruiu-se também, com protagonismo da Rede Globo nesse particular, a validade do próprio princípio da igualdade social entre nós.

O ataque seletivo ao PT, de 2013 a 2016, teve o sentido de transformar a luta por inclusão social e maior igualdade em mero instrumento para um fim espúrio: a suposta pilhagem do Estado.

Desqualificada enquanto fim em si mesma, a demanda pela igualdade se torna suspeita e inadequada para expressar o legítimo ressentimento e a raiva que os excluídos sentem, mas que agora não podem mais expressar politicamente.

Assim, abriu-se caminho para quem surfa na destruição dos discursos de justiça social e de valores democráticos —Jair Bolsonaro como ameaça real é filho do casamento entre a Lava Jato e a Rede Globo.

O pacto antipopular das classes alta e média não significa apenas manter o abandono e a exclusão da maioria da população, eternizando a herança da escravidão. Significa também capturar o poder de reflexão autônoma da própria classe média (assim como da sociedade em geral), que é um recurso social escasso e literalmente impagável.

JESSÉ SOUZA, 57, doutor em sociologia pela Universidade de Heidelberg (Alemanha), é autor de “A Tolice da Inteligência Brasileira” e “A Radiografia do Golpe” (Leya), além de professor de sociologia da UFABC.

Horizonte da elite não é sociedade justa, é economia pujante

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Para as classes altas, tudo é aceitável, se a locomotiva seguir acelerada

A elite social brasileira é branca, educada e cosmopolita. E assim é desde que o país começou. É também violenta, embora se veja como generosa para com subalternos, todos negros, mas “como se fossem da família”. Não são.

Nem na vida ganham acesso às relações abridoras de portas nem na morte herdam patrimônio. A próxima geração segue onde estava a antecedente, numa estrutura social secular, com os mesmos sobrenomes usufruindo a vista da cobertura, enquanto os sem nome limpam cozinhas e latrinas.

Ao contrário do que pregam a adversários, é raro que membros da elite façam autocrítica de erros políticos, como a eleição de Fernando Collor. Muito menos reconhecem seu papel ativo na reprodução intergeracional da desigualdade. Alguns dos seus, os “bem intencionados”, atuam nas franjas, com iniciativas para premiar o “talento” de alguns humildes, como Carlinhos Brown, que foi da favela ao estrelato.

Esta fresta para o alto não altera os mecanismos de distribuição de recursos e acessos. Mas é o suficiente para os cidadãos de bem, reconfortados pelo argumento liberal de que oportunidades individuais bastam para corrigir problemas estruturais.

É que o horizonte desta elite não é uma sociedade justa, é uma economia pujante. Para obter a segunda, abre mão da primeira. Nunca titubeou em pagar o preço, fosse a escravidão, regimes de trabalho avizinhados ou ditaduras, como a que o presidente comemorou. Tudo aceitável, se a locomotiva seguir acelerada.

Essa gente de bem pensa em si como o vagão que puxa o trem, que carrega o fardo do país e pena o alto custo trabalhista de mão de obra sem qualificação. São empreendedores incansáveis, prejudicados pelo povo caro e ignorante —que reclama de barriga cheia, pois muitos pesam, disse o presidente, várias arrobas.

O raciocínio do “Custo Brasil” omite que as mazelas nacionais sucessivas resultaram de decisões políticas tomadas pelos que estão no alto, enquanto o sacrifício é sempre exigido dos de baixo. Assim foi na reforma trabalhista, assim se anuncia na previdenciária e a tributária não avançará imposto sobre grandes fortunas e transmissão intergeracional de riquezas.

E, convenhamos, não se exige de quem adentra essa elite o refinamento da antiga aristocracia. Veja-se o novo ministro da Educação: é branco, tem diploma superior e renda que garantem moradia em andar alto da pirâmide nacional. E, no entanto, emite juízos explicáveis apenas pela ignorância.

Já havia o precedente do “nazismo de esquerda” mas rotular banqueiro de comunistas compete à altura. Nenhuma destas pérolas ministeriais espanta, considerando a língua presidencial. Mas choca que parcela tão gorda do topo social siga firme no apoio à obscurantista, autoritária e até aqui ineficiente “nova política”.

Apoio registrado no último Datafolha capaz de os banqueiros que o ministro menciona estarem entre os 36% de homens com diploma superior e os 41% com renda acima de dez salários mínimos que acham “ótima” a administração mitológica.

A aprovação (ótimo/bom) é ampla entre os que vivem bem: 47% dos profissionais liberais, 57% dos empresários e 71% dos rentistas, como se dizia antigamente. Os bem postos na vida estão satisfeitos com o governo.

Mesmo com critério exigente, a alegria não se desmancha: 46% do empresariado e 44% dos que vivem de renda dão nota 8 ou mais para a administração bolsonarista. Parte dos eleitores do mito é impenitente e está infenso a três meses de barbaridades. Mas nem todo votante de conveniência, o antipetista, repudia: 54% dos que se declaram PSDBistas seguem achando tudo ótimo. É que se a reforma da Previdência passar, os tuítes ensandecidos do Palácio do Planalto serão perdoados, porque o país —ou parte dele— usufruirá das bênçãos do mercado.

A maioria destes cidadãos de bem apoia também embalada por outra promessa, a da reforma penal.
É preciso mais que comprar armas para se defender de meliantes. Precisa encarcerá-los antes que atinjam a idade adulta. Claro, alguns escaparão de celas de extermínio precoce, e poucos talentosos serão escolhidos, como Brown, para cantar no Lollapalooza.

Aos remanescentes, resta a prontidão das forças da ordem, a postos para abater suspeitos. Suspeitos naturalmente negros, como muitos dos executores, como negros eram tantos capitães do mato.

Estão a serviço, mas tampouco serão admitidos às fortificações medievais onde a gente de bem dorme tranquila. Não se pode acordá-la com choro de órfãos, mães e viúvas, nem com o ruído de 80 tiros.

Angela Alonso

Professora de sociologia da USP, preside o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. É autora de “Flores, Votos e Balas”.

 

Por que o Brasil de Olavo e Bolsonaro vê em Paulo Freire um inimigo

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Biógrafo analisa hostilidade contra o educador, em alta nos últimos anos

Sérgio Haddad Folha de São Paulo – Ilustríssima – 14/04/2019.

[resumo] Biógrafo de Paulo Freire analisa como o principal educador brasileiro, autor de método de alfabetização que estimula alunos a refletirem sobre sua realidade, passou a ser visto como inimigo público e responsabilizado por maus resultados educacionais do país.

Em 29 de maio de 1994, em longa entrevista publicada no caderno “Mais”, da Folha, Paulo Freire comentou as razões de seu método não ter erradicado o analfabetismo no Brasil.

“Em tese, o analfabetismo poderia ter sido erradicado com ou sem Paulo Freire. O que faltou foi decisão política. A sociedade brasileira é profundamente autoritária e elitista. Nos anos 60 fui considerado um inimigo de Deus e da pátria, um bandido terrível. Pois bem, hoje eu já não seria mais considerado inimigo de Deus. Você veja o que é a história. Hoje diriam apenas que sou um saudosista das esquerdas. O discurso da classe dominante mudou, mas ela continua não concordando, de jeito nenhum, que as massas populares se tornem lúcidas”, afirmou na ocasião.

Passados 25 anos, Paulo Freire voltou a ser alvo de ataques nas redes sociais e nos discursos políticos, consequência da nova onda conservadora que assola o país.

Parece ser essa a sina do mais importante educador brasileiro (1921-1997). Cinco décadas atrás, Freire foi preso e exilado pelos militares após o golpe de 1964. Ele desenvolvia na época um programa nacional de alfabetização que seria implantado por João Goulart, inspirado em projeto que desenvolveu no Rio Grande do Norte com cerca de 400 jovens e adultos.

A experiência na cidade de Angicos ganhou notoriedade internacional por se propor a concluir em 40 horas o processo de alfabetização e a formar cidadãos mais conscientes de seus direitos e dispostos a defendê-los de maneira democrática.

O método partia de palavras selecionadas entre as questões existenciais dos alunos, fazendo com que se alfabetizassem dialogando acerca de suas condições de vida, trabalho, saúde, educação e lazer, por exemplo. Unia, portanto, educação com cultura, ao tomar as experiências dos alunos e seus conhecimentos como parte integrante do ato de educar.

Os golpistas de 64 intuíram que o programa, ganhando dimensão nacional, poderia desestabilizar poderes constituídos ao capacitar, no curto prazo, grande quantidade de pessoas para o voto, então vedado aos analfabetos, permitindo que setores populares influíssem de maneira mais consciente em seus destinos. Seria necessário, portanto, banir e deslegitimar o método e seu autor.

Em 18 de outubro de 1964, alguns dias depois de Paulo Freire ter partido para o exílio, o tenente-coronel Hélio Ibiapina Lima —um dos 377 agentes do Estado apontados pelo relatório da Comissão Nacional da Verdade por violar direitos humanos e cometer crimes durante o regime militar— divulgou o texto final do inquérito que comandou, acusando Paulo Freire de ser “um dos maiores responsáveis pela subversão imediata dos menos favorecidos”.

“Sua atuação no campo da alfabetização de adultos nada mais é que uma extraordinária tarefa marxista de politização das mesmas”, escreveu. Para Ibiapina Lima, Freire não teria criado método algum e sua fama viria da propaganda feita pelos agentes do Partido Comunista da União Soviética. “É um cripto-comunista encapuçado sob a forma de alfabetizador”, informava o relatório.

Na apresentação ao livro de Freire “Educação como Prática da Liberdade”, Francisco Weffort, ministro da Cultura no governo FHC, assim analisou os fatos ocorridos no Brasil: “Nestes últimos anos, o fantasma do comunismo, que as classes dominantes agitam contra qualquer governo democrático da América Latina, teria alcançado feições reais aos olhos dos reacionários na presença política das classes populares… Todos sabiam da formação católica do seu inspirador e do seu objetivo básico: efetivar uma aspiração nacional apregoada, desde 1920, por todos os grupos políticos, a alfabetização do povo brasileiro e a ampliação democrática da participação popular… Preferiram acusar Paulo Freire por ideias que não professa a atacar esse movimento de democratização cultural, pois percebiam nele o gérmen da derrota”.

E acrescentaria: “Se a tomada de consciência abre caminho à expressão das insatisfações sociais, é porque estas são componentes reais de uma situação de opressão”.

Exilado por 15 anos —tendo passado por Bolívia, Chile, EUA e Suíça—, Freire regressaria ao Brasil em 1980, reconhecido internacionalmente como um dos mais importantes educadores do mundo. Havia percorrido diversos países a convite de universidades, igrejas, grupos de base, movimentos sociais e governos. Nos últimos dez anos de seu exílio, trabalhando no Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra, totalizaria cerca de 150 viagens a mais de 30 países.

No seu retorno, começaria a dar aulas na PUC de São Paulo e na Unicamp. Em fins de 1988 seria convidado pela prefeita eleita de São Paulo Luiza Erundina para ser secretário municipal da Educação. As eleições daquele ano marcariam o início da ascensão dos governos de oposição aos grupos que se mantinham no poder desde o golpe militar, com o PT governando vários municípios, posteriormente estados, e, finalmente, assumindo a Presidência da República, nas eleições de Lula e Dilma.

Frente às inúmeras pressões das quais era alvo, Paulo Freire não completou sua gestão como secretário, passando o cargo ao professor Mário Sérgio Cortella, chefe de gabinete, em 1991. Suas orientações, no entanto, foram mantidas até o final da gestão, e acabariam por influenciar outros municípios e governos estaduais no campo da democratização da gestão e das inovações pedagógicas.

Em 1º de maio de 1997, com a saúde fragilizada, Paulo Freire daria entrada no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, para uma angioplastia, mas complicações na reabilitação o levariam à morte no dia seguinte.
Paulo Freire seria agraciado em vida e in memoriam com 48 títulos de doutor honoris causa por diversas universidades no Brasil e no exterior. Instituições de ensino de várias partes do mundo o convidaram para tê-lo no corpo docente. Foi presidente honorário de pelo menos 13 organizações internacionais.

Diversos outros títulos, homenagens e prêmios lhe seriam concedidos ao longo da vida e depois da morte: mais de 350 escolas no Brasil e no exterior receberiam seu nome, assim como diretórios e centros acadêmicos, grêmios estudantis, teatros, bibliotecas, centros de pesquisa, cátedras, ruas, avenidas, praças, monumentos e espaços de movimentos sociais e sindicais.

Em 1995, seria indicado ao Prêmio Nobel da Paz. Em 13 de abril de 2012, foi declarado patrono da educação brasileira por iniciativa da agora deputada federal Luiza Erundina (então no PSB, hoje no Psol).

Seus livros se espalharam pelo mundo. “Pedagogia do Oprimido” ganhou tradução em mais de 20 idiomas. Estudo de junho de 2016 do professor Elliott Green, da London School of Economics, afirma que essa era a terceira obra mais citada em trabalhos da área de humanas em todo o mundo, à frente de trabalhos de pensadores como Michel Foucault e Karl Marx. É também o único título brasileiro a aparecer na lista dos cem livros mais requisitados por universidades de língua inglesa. Em dezembro de 2018, a Revue Internationale d’Éducation de Sèvres, publicação francesa de prestígio, apontou Freire como um dos principais educadores da humanidade.

A despeito de tão vasto reconhecimento, Freire vem sendo reiteradamente desqualificado no debate público brasileiro desde a recente ascensão de setores conservadores.

Na onda intolerante que se formou no país após 2015, a partir da crise do governo Dilma Rousseff (PT), grupos foram às ruas com propostas antidemocráticas, homofóbicas, racistas e machistas. Era comum encontrar nas manifestações frases do tipo “Chega de doutrinação marxista, basta de Paulo Freire!”.

Com a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições do ano passado, as críticas ao educador e ao seu pensamento ganharam reforço contundente, estimuladas pelo escritor Olavo de Carvalho, de quem o presidente é seguidor. Durante a campanha eleitoral, em palestra para empresários no Espírito Santo, o então candidato Bolsonaro afirmou: “A educação brasileira está afundando. Temos que debater a ideologia de gênero e a escola sem partido. Entrar com um lança-chamas no MEC para tirar o Paulo Freire de lá”. E complementou: “Eles defendem que tem que ter senso crítico. Vai lá no Japão, vai ver se eles estão preocupados com o pensamento crítico”.

Em seu discurso de posse, o novo ministro da Educação, Abraham Weintraub, insistiu: “Se o Brasil tem uma filosofia de educação tão boa, Paulo Freire é uma unanimidade, por que a gente tem resultados tão ruins comparativamente a outros países? A gente gasta em patamares do PIB igual aos países ricos”.

A tentativa de banir Freire das escolas angariou forte apoio nas redes sociais desde a campanha. Grupos atacam a qualidade literária dos textos e da pedagogia de Freire, acusando-a de proselitismo político em favor do comunismo; responsabilizam o educador pela piora na qualidade do ensino, argumentando que, quanto mais é estudado e lido nas universidades, mais a educação anda para trás; afirmam que seus escritos estão ultrapassados, que o lugar de fazer política é nos partidos, não nas escolas.

Não há base empírica que comprove essas afirmações. Freire nunca foi comunista, ainda é mais lido nas universidades do exterior do que nas brasileiras, nunca pregou uma educação partidária nas escolas. Do mesmo modo, a crítica à qualidade literária de seus livros não se sustenta. Tais opiniões são proferidas por setores atrasados, que desrespeitam a pluralidade de ideias, sem compromisso com os ideais democráticos de liberdade de opinião. Não reconhecem no educador, tendo lido ou não as suas obras, concordando ou não com o seu pensamento, um interlocutor consagrado e respeitado.

Um dos principais adversários das ideias de Paulo Freire, o movimento Escola Sem Partido se propõe a coibir a doutrinação ideológica nas escolas. Estabeleceu como estratégia política aprovar leis para vigiar as ações de professores nas escolas, produzindo um clima de perseguição política e denuncismo. Em nome de uma inexistente neutralidade, omissos em relação aos verdadeiros dilemas da educação brasileira, tentam desqualificar Freire.

Uma proposta legislativa patrocinada pelo movimento obteve as assinaturas necessárias para que o Senado discutisse retirar o título de patrono da educação brasileira de Freire. Depois de uma intensa batalha, a demanda não foi aprovada.

Freire acreditava no diálogo como método de apreensão do conhecimento e aumento da consciência cidadã. Defendia que os educandos fossem ouvidos, que exprimissem as suas ideias como exercício democrático e de construção de autonomia, de preparação para a vida. Propunha o diálogo efetivo, crítico, respeitoso, sem que o professor abrisse mão de sua responsabilidade como educador no preparo das aulas e no domínio dos conteúdos.

Era contra a educação de uma via só, em que o professor dita aulas e o aluno escuta; em que o primeiro sabe e o segundo, não; em que um é sujeito e o outro, objeto. Para ele, todos tinham o que aportar neste processo de diálogo, assim como todos aprendiam em qualquer processo educativo: “Não há docência sem discência”, afirmaria.

Freire foi criticado também em setores progressistas por ser idealista, por sua linguagem com ênfase no masculino nos primeiros trabalhos, por ser contra o aborto, por desconsiderar os conteúdos nos processos educativos, pela insuficiência do seu método. Nunca foi unanimidade nos corredores das universidades, e nem esperava por isso.

Coerente com o que escrevia e pensava, procurou tratar seus interlocutores e críticos, fossem eles de qualquer espectro, com igual respeito. Aprendia com os diálogos, os debates e as polêmicas nos quais se envolvia, refazendo muitas das suas posições. Olhava a educação como um produto da sociedade, reflexo de projetos políticos em disputa, naturais em qualquer sociedade democrática que aposta no debate de ideias para constituição do seu futuro.

Não acreditava em uma educação neutra, verdade reconhecida há anos pela sociologia da educação, mais uma vez constatada na gestão do ex-ministro da Educação de Bolsonaro Ricardo Vélez Rodríguez. Indicado por Olavo de Carvalho, tentou impor comportamentos e valores para toda a rede de ensino, com propostas de obrigar os alunos a cantarem o hino nacional, controlar as provas do Enem, alterar os livros didáticos para negar que tenha havido golpe militar em 1964, numa clara tentativa de reescrever a história aos moldes do seu grupo político.

Demitido antes de completar cem dias no cargo, Velez apresentava claro apetite para a guerra cultural, mas se mostrava totalmente inoperante para os problemas reais da sua pasta.

O novo ministro, Weintraub, economista com mestrado em administração, atuou por mais de 20 anos no mercado financeiro. A exemplo de Vélez, nunca exerceu cargo de gestor público em educação. É também um seguidor de Olavo de Carvalho e, aparentemente, não deixará de lado o discurso de combate ideológico. Weintraub é mais um que enxerga comunistas em todas as partes, dominando as universidades, os meios de comunicação e, inclusive, setores do mercado.

Em sentido oposto, Paulo Freire, como cristão comprometido com os mais pobres e discriminados, bebeu de diversas teorias para realizar pedagogicamente valores que tinham como fundamento uma profunda crença na capacidade de o ser humano se educar para ser partícipe na construção de um mundo melhor, de acordo com os seus interesses.

Em seu percurso intelectual, não se ateve a uma corrente de pensamento, tendo sido muitas vezes criticado por isso. Escolhia, dentre as diversas teorias, aquelas que melhor ajudassem a realizar o seu compromisso ético de cristão ao lado dos oprimidos, inclusive o marxismo. Em diálogo com Myles Horton, educador norte-americano, no livro “O Caminho se Faz Caminhando”, reafirmaria sua postura: “Minhas reuniões com Marx nunca me sugeriram que parasse de ter reuniões com Cristo”.

Quando perguntado, Freire não se recusava comentar de forma crítica os abusos do regime comunista. Na mesma entrevista citada no início deste artigo, afirmou que o fim do comunismo no Leste Europeu havia representado uma queda necessária não do socialismo, mas de sua “moldura autoritária, reacionária, discricionária, stalinista”.

Freire deixou um texto inacabado, interrompido pela sua morte, posteriormente publicado por Nita, sua segunda esposa, em “Pedagogia da Indignação”. Nele, comentava o assassinato do índio pataxó Galdino Jesus dos Santos, queimado vivo por cinco jovens em Brasília. “Tocaram fogo no corpo do índio como quem queima uma nulidade. Um trapo imprestável”, escreveu. Refletindo sobre quem seriam os jovens, indagou que exemplos, testemunhos e ética os levariam a essa “estranha brincadeira” de matar gente. “Qual a posição do pobre, do mendigo, do negro, da mulher, do camponês, do operário, do índio neste pensar?”

Diante do ocorrido, proclamaria o dever de qualquer pessoa que educa de lutar pelos princípios éticos mais fundamentais. Concluiria afirmando que, “se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”.

Em “Política e Educação Popular”, um dos mais importantes trabalhos sobre Freire, o professor Celso Beisiegel afirma que o seu compromisso do educador com os oprimidos estaria levando a um estreitamento das possibilidades de utilização das suas práticas pedagógicas —referia-se ao tempo dos governos autoritários instalados na América Latina nos anos 1960 e 1970. Beisiegel questionava se o educador não estaria se aproximando da realização daquela imagem do “ser proibido de ser”, concluindo: “Não seria inaceitável dizer que Paulo Freire veio se aproximando da realização da figura do educador proibido de educar”.

Não é muito distante do que está ocorrendo hoje no Brasil.

Sérgio Haddad é doutor em educação pela USP, pesquisador da Ação Educativa e professor da Universidade de Caxias do Sul. Prepara biografia de Paulo Freire a ser lançada pela Editora Todavia.

 

É necessário fiscalizar algoritmos e regular empresas de tecnologia, diz especialista

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Americana defende que Facebook e Google, por exemplo, lidem com efeitos que trazem para mundo real

Bruno Benevides – Folha de São Paulo – 15/04/2019 SÃO PAULO  

As grandes empresas de tecnologia ainda seguem um modelo de negócio do século passado, sem se importar com os reflexos de suas atividades, o que dificulta inclusive o surgimento de novos empreendedores. E, para mudar isso, será necessário alguma forma de regulação, afirma a autora americana Kate O’Neill.

“Temos que responsabilizar as plataformas como Facebook, Twitter, Google e outras redes sociais que definem o conteúdo que é mostrado para a população”, diz ela, que defende um mecanismo capaz de supervisionar o modo como os algoritmos decidem o que aparece para os usuários.

Uma das primeiras funcionárias da Netflix e presença constante em palestras no Vale do Silício, O’Neill também considera que as pessoas devem tomar mais cuidado com o que compartilham nas redes sociais, para que seus dados não sejam usados para fins políticos.

“Sempre que alguém chamar para participar de um meme ou de um jogo, o sinal vermelho deve acender. Foi esse o cenário que a Cambridge Analyticaus usou para conseguir os dados de 70 milhões de eleitores norte-americanos.”

No fim de 2018, ela publicou seu terceiro livro, “Tech Humanist”, um manifesto no qual defende que o avanço tecnológico precisa ser acompanhado de preocupação ética com seus efeitos para o ser humano.

Em seus livros, a senhora defende que os avanços tecnológicos devem andar juntos com o valor da humanidade. Qual é esse valor?


É a ideia de que o ser humano deve ficar no centro, de que há valor na vida humana e que ela deve ser respeitada. Há um avanço tecnológico muito grande capitaneado pelas empresas, mas, na verdade, é uma construção coletiva que deve ter como norte ajudar a humanidade.

Conforme as tecnologias avançam e permitem às empresas ampliarem sua atuação, há uma obrigação ética crescente de alinhar os negócios com as consequências que eles geram para o ser humano, de modo a garantir que não exista uma diferença grande demais entre quem tem acesso e quem não tem.

E nós estamos fazendo isso?

Acho que não. Muito do que acontece com as empresas, especialmente as grandes companhias de tecnologia, é simplesmente uma aceleração do mesmo modelo de negócio dos últimos séculos.

A diferença é que, em uma era com inteligência artificial e automação, é possível conseguir cada vez mais dinheiro e mais eficiência com cada vez menos pessoas envolvidas no processo. Os empresários vão ter mais lucro, mas os seres humanos terão menos empregos, então vão ganhar menos da riqueza gerada.

É um cenário no qual é cada vez mais difícil enxergar qualquer tipo de oportunidade para quem já não faz parte da liderança dessas empresas.

Claro que ainda há oportunidades para empreendedorismo e inovação nesse cenário, mas elas são cada vez menores e mais desafiadoras. Devemos fazer um poderoso esforço para criar um sistema que permita às pessoas ter oportunidades conforme os negócios crescem. Não creio que hoje as empresas, em especial as de tecnologia, estejam fornecendo oportunidades suficientes. Elas não pensam nisso.

O que precisa mudar?

Os negócios precisam operar de uma perspectiva que chamo de propósito estratégico. Isso não significa necessariamente propósito em um sentido humanitário ou de caridade.

Significa um entendimento do que a empresa faz e do que quer fazer ao ganhar escala, de modo que possa dialogar com as consequências humanas do negócio. É como um hospital que entende que seu maior objetivo não é lucrar de qualquer maneira, e sim o bem-estar de seus pacientes.

Colocar a perspectiva correta e as prioridades certas ajuda os negócios a tomarem as decisões corretas em relação a cultura, marca, experiência. Cada vez mais é necessário esse alinhamento entre a empresa e as pessoas que ela atende. Porque, do contrário, o negócio cresce de maneira exponencial, mas sem ser acompanhado por valores humanos.

Isso também vale para o mundo político?

São dois modelos bem diferentes. Acho que há um trabalho a ser feito na esfera política para garantir a criação de proteções e regulações necessárias às pessoas, assim como para garantir que os líderes políticos tenham as melhores intenções em relação a seus eleitores.

A tecnologia não é necessariamente a primeira coisa que vem à cabeça quando se pensa em política, mas evidentemente tem um papel importante em transmitir uma mensagem, em mudar a posição da população sobre determinado assunto e em quem votar.

O que mais chamou a atenção recentemente nesse aspecto foi a influência russa na eleição presidencial americana de 2016, mas em qualquer lugar do mundo temos visto um aumento de interesses particulares tentando criar campanhas ou usando o Facebook e outros canais para tentar influenciar o resultado de uma eleição.

Isso com certeza está acontecendo, e é preciso responsabilizar os políticos por suas ações. E também temos que responsabilizar as plataformas como Facebook, Twitter, Google e outras redes sociais que definem o conteúdo que é mostrado para a população.

Devemos regular as atividades dessas plataformas?

É preciso criar um equilíbrio, há uma divisão tripla da responsabilidade. Parte dela é interna das empresas. Companhias como Facebook e Google ajudariam muito se assumissem a responsabilidade de alinhar suas práticas com o que é melhor para a humanidade.

Além disso, sempre é necessário algum grau de regulação, alguma forma de supervisão da sociedade ou do governo.

É possível que a solução seja a criação de uma entidade para acompanhar o funcionamento dos algoritmos, entender qual o tipo de influência que eles geram e analisar quais fatores são levados em conta na hora de decidir qual conteúdo será distribuído e qual não será. Isso é uma discussão que está começando a crescer ao redor do mundo.

Creio que também há uma responsabilidade que recai sobre as pessoas, que precisam desenvolver a capacidade de reconhecer quando algo distribuído não é verdadeiro.

Será cada vez mais fácil manipular fotos, vídeos e áudios, além do uso da inteligência artificial para fazer um vídeo em que uma figura pública fala coisas que não falou de verdade. Então essa capacidade de reconhecer o que é falso precisa aumentar.

Nossas experiências serão cada vez mais influenciadas pelos algoritmos e pela automação. O trabalho precisa ser feito em cada uma dessas esferas: a empresarial, a política e a individual. Não adianta trabalhar em um lado e achar que os outros vão acompanhar.

É possível acabar com a distribuição de fake news durante os ciclos eleitorais?

A necessidade de algum nível de moderação e monitoramento de conteúdo —incluindo material de ódio, violento, alarmante e falso— vai apenas aumentar nos próximos anos, conforme os “deepfakes” se tornam cada vez mais comuns, e tentativas de copiar campanhas nas redes para influenciar questões políticas e sociais se proliferam.

Sempre houve um ciclo em que as pessoas tentam burlar as restrições impostas pela tecnologia, seguido pelas empresas aumentando essas restrições, seguido pelas pessoas quebrando essas novas restrições e assim infinitamente. Esse ciclo não vai mudar.

Em artigo para a revista Wired sobre o “10-year challenge” [brincadeira na qual usuários comparavam autorretratos de dez anos atrás e dos dias de hoje] , do Facebook, a senhora levantou a possibilidade de que as imagens fossem usadas para reconhecimento facial.


Há muitos sites, games e memes que coletam dados que podem ser usados para iniciar uma campanha, para criar um algoritmo ou para fazer outro uso não autorizado.

Então era uma oportunidade para as pessoas que participavam do “10-year challenge” pensar que sempre que alguém chamar para participar de um meme ou de um jogo no qual todos respondem a uma mesma pergunta, o sinal vermelho deve acender.

Foi esse o cenário que a Cambridge Analytica usou para conseguir os dados de 70 milhões de eleitores americanos e criar campanhas que podem ter influenciado a eleição de 2016.

Esse tipo de truque acontece cada vez mais, então as pessoas devem ficar mais atentas ao participar das redes sociais. É realmente importante percebermos as oportunidades que a tecnologia traz para melhorar nossa vida. Ela facilita a comunicação e o acesso à informação. Mas, para isso, também é preciso ficar alerta com os problemas decorrentes dela.

Como manter uma relação saudável com a tecnologia em um mundo em que estamos sempre conectados?

A tecnologia pode ser viciante, mas ela também pode ser transformadora. Pessoas devem ter responsabilidade no modo que usam a tecnologia.

Mas certamente muita coisa depende da maneira que organizações lidam com isso, se elas estimulam esse comportamento perigoso ou se pensam a longo prazo. As empresas devem criar métricas para saber se seus usuários estão seguindo seus valores.

Pegue o Facebook, por exemplo. Se ele realmente segue o que costumava dizer, que sua função é conectar pessoas e conectar o mundo, então deve criar um modo de dimensionar isso. Não pode só estimular os usuários a ficarem o maior tempo possível nele, não é essa a métrica que mede a relação entre as pessoas e o sistema.

O Facebook é um exemplo de empresa que segue apenas seus próprios objetivos e que tem uma noção própria de sucesso. Então eles não estão em uma boa posição para cuidar dos seus dados e métricas. Este é um caso em que deve haver alguma regulação para manter a empresa na linha, e é necessário que as pessoas entendam que o Facebook pode gerar um risco de vício.

Recentemente o Facebook se envolveu em uma polêmica quando o atirador do massacre em Christchurch, na Nova Zelândia, transmitiu o ataque ao vivo na plataforma.


As plataformas se beneficiam do uso e da atenção generalizados gerados por seus usuários, então elas têm a obrigação de lidar, ou pelo menos ajudar a lidar, com as consequências que este uso traz para o mundo real.

O atirador na Nova Zelândia, assim como o de Suzano, no Brasil, frequentava fóruns anônimos na internet. Por que o discurso de ódio se tornou tão comum nesses sites? 

O efeito do anonimato na amplificação de um comportamento já é algo bem compreendido pelos estudos. Todos provavelmente já testemunharam de alguma forma “o efeito de desinibição online”, mesmo sem saber o que ele significa. Nada mais é do que o resultado que a presença virtual, em vez da física, desempenha nas nossas interações online.

Ele explica por que seu colega de trabalho é tão legal no café, mas se torna um idiota raivoso nos comentários de um post. É a dualidade da internet: estamos cada vez mais conectados, mas, ao mesmo tempo, nos sentimos mais desconectados da realidade humana devido ao anonimato.

A senhora acha que a tecnologia se tornou uma vilã nos últimos tempos?

Creio que sim. Em certo grau, isso decorre do aumento do entendimento dos efeitos da tecnologia, algo que precisamos saber cada vez mais. Se pensarmos na capacidade que a inteligência artificial e a automação têm de amplificar qualquer coisa que toca, isso pode gerar experiências positivas e benéficas. Então precisamos ter as regras corretas para garantir que isso aconteça.

As empresas só estão pensando em lucro e crescimento, que é um modo muito limitado de ver a tecnologia. Ela é muito mais poderosa. Então temos uma grande oportunidade aí. As empresas podem unir o lucro a uma busca por melhorar a vida humana. Só quando isso acontecer as pessoas vão encarar a tecnologia de outra forma.

Classe média, endividamento e perda de relevância social

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A Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) publicou recentemente uma pesquisa que destacava as dificuldades da classe média em vários países do mundo, de classe relevante e fundamental para o crescimento das economias, a classe média está se tornando um grande fardo para os países, nesta pesquisa, a organização recomenda que os países atuem diretamente com o intuito de auxiliar este grupo social, que se encontra em um de seus piores momentos da história do capitalismo.

Para entrarmos da discussão sobre a classe média e analisarmos os dados da pesquisa da OCDE, faz-se necessário que definamos o que é classe média para esta instituição que, como trabalha com inúmeros países, precisa de um critério claro para compará-los, para esta instituição, classe média é o grupo de pessoas que vive em lares onde a renda fica entre 75% e 200% da média nacional do país, acima disso, são considerados de renda alta e abaixo, são considerados de baixa renda.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) tem uma definição diferente de classe média, para esta instituição o critério para definir como classe média, é a quantidade de salários mínimos (R$ 998), onde a classe média compreende as classes B (renda entre 10 e 20 salários) e C (renda familiar entre 4 e 10 salários mínimos).

Países desenvolvidos tem uma classe média maior que os países em desenvolvimento, segundo a OCDE, na Brasil temos 44% da população descrita como classe média, na China este número está na casa dos 48% da população, um salto gigantesco em um país que a pouco mais de quarenta anos, quando iniciou sua nova estratégia de desenvolvimento econômico, grande parte da população estava em situação degradante, muitos deles morrendo de fome e inanição.

A sociedade contemporânea está realmente envolta em uma crise complexa e de difícil superação, onde o crescimento econômico se reduz rapidamente, a violência aumenta de forma acelerada, a imigração sofre um incremento diário, o desemprego estrutural avança e gera preocupações e ressentimentos e os governos estão perdidos e fragilizados nestes ambientes de medo e desesperança, o resultado é um incremento dos suicídios, ansiedades, depressões e síndromes variadas.

Segunda pesquisa da OCDE, quase 40% dos lares de classe média em 18 países europeus membros da instituição, estão financeiramente vulneráveis, sendo que este índice varia de 12% na Noruega a 70% na Grécia. Outro dado importante destacado pela pesquisa, mais de um em cada cinco lares de classe média gasta mais do que ganha gerando, com isso, um altíssimo risco de endividamento excessivo, em países como a Estônia e a Polônia este índice esta em 10% enquanto outros países membros, como o Chile e a Grécia, estes valores estão em 50% da população, retratando uma forte vulnerabilidade e riscos prementes.

O Brasil não faz parte da OCDE, recentemente o governo manifestou o interesse em ingressar neste grupo de países, mesmo assim fomos inseridos na pesquisa, com dados que chegam a 27% dos lares de classe média gastando mais do que ganha, diante disso, percebemos o alto endividamento das famílias brasileiras desta classe social, o que preocupa os formuladores de política econômica, pois retarda a recuperação da economia nacional, depois de cinco anos de baixo crescimento econômico e recessão, com perdas de mais de 9% do Produto Interno Bruto (PIB).

As novas tecnologias estão transformando estruturalmente o mundo do trabalho, a inteligência artificial está impactando sobre todos os setores, desde os serviços, o comércio, o setor industrial, a agricultura e outras atividades extrativas, todos estão sendo influenciados e precisam se adaptar a estas novas máquinas inteligentes que estão afetando, principalmente, as classes médias, deslocando seus membros para outras posições sociais, sendo que a maioria está sendo destruída por estas novas tecnologias, criando um contingente imenso de desempregados e subempregados.

Segundo a OCDE, os governos deveriam atuar diretamente para evitar uma redução mais acentuada neste grupo social, a classe média é composta por trabalhadores e profissionais autônomos, com formação mais rebuscada, mais afeitos aos conhecimentos científicos e dotados de uma bagagem cultural mais intensa e estruturada, formando um grupo de compradores de mercados sensíveis e mais elaborados, com os de artes, de teatro, de concertos, de musicais, de museus, de turismo, dentre outros, a fragilização desta classe traria graves impactos sobre setores importantes da economia.

Percebemos este processo de redução da classe média mais nitidamente em países desenvolvidos, muitos destes eram caracterizados por uma economia de base industrial, onde os empregos gerados pagavam salários bastante atrativos, gerando uma massa de trabalhadores bem remunerados e com uma estrutura de consumo e de gastos pessoais mais rebuscados, movimentando variados setores econômicos e produtivos.

Nos últimos vinte anos, percebemos um movimento de diminuição dos setores industriais nestes países, a indústria passou a buscar locais mais vantajosos para produzir seus produtos, com isso, os países asiáticos entraram nos redares destes setores industriais, principalmente devido ao baixo preço de sua mão de obra e facilidades fiscais e tributárias, isto sem falar das fragilidades regulatórias destes países, que facilita a produção de forma e reduz os custos produtivos.

A classe média apresenta um estilo de vida diferenciado, como por exemplo, moradia melhor, boa educação, planos de saúde e melhores condições de vida, estes produtos ou serviços passaram por um forte incremento dos preços, a inflação nestes mercados foi maior, como suas rendas e seus salários não acompanharam este aumento, muitas famílias estão em situação financeira difícil. Outro produto que passou por grande aumento nos preços nos últimos anos foi a moradia, como a classe média sempre teve bons empregos e estes são localizados, na sua grande maioria em cidades e localidades centrais, os alugueis são mais caros e demandam uma parcela substancial da renda, entre os anos de 1995 e 2015, os aluguéis aumentaram de um quarto da renda das famílias para quase um terço, comprometendo a saúde financeira destas famílias.

Por outro lado, as mudanças destas empresas, do ocidente para os países orientais, principalmente a China, gerou um grande impacto sobre os países industrializados do ocidente, gerando uma massa de milhões de desempregados, gerando uma destruição em série no sistema econômico, além de afetar os trabalhadores, os impactos se expandiram para os governos, com quedas assustadoras em suas arrecadações fiscal e tributária, tornando precários os serviços públicos e aumentando o contingente dos trabalhadores que passam a usufruir destes serviços, isto porque com a redução da classe média, muitos trabalhadores passam a demandar mais serviços públicos de saúde, segurança e educação, demandando dispêndios maiores dos prefeitos e dos governos estaduais, justamente num momento de queda na arrecadação dos governos, degradando mais a sociedade e as políticas públicas.

Ao analisarmos as várias crises que afetam as classes médias mundiais, encontramos um incremento de seu endividamento, anteriormente este grupo social destacava recursos para consumos de bens variados, com a freada brusca das economias globais depois da crise imobiliária dos Estados Unidos de 2008, esta classe se viu em situação de insolvência, suas dívidas cresceram demasiadamente e seus empregos foram reduzidos, gerando passivos impagáveis e afastando-os do mercado de consumo, levando muitos governos a adotar políticas específicas para resgatar esta classe social.

A tecnologia da chamada indústria 4.0, marcada por uma automatização cada vez mais acelerada, gera impactos crescentes sobre os indivíduos em escalas internacionais, trabalhadores competem entre si nas mais variadas regiões do mundo, um ambiente de competição e concorrência cresce de forma acelerada, obrigando os indivíduos a se capacitarem exaustivamente, buscando cursos e estudos técnicos e tecnológicos, leituras e atualizações, obrigando-os a mergulharem no mundo da informação, sob pena de serem retirados do mercado de trabalho de forma definitiva e condenados a obsolescência.

A classe média sente de forma acelerada todos estes movimentos da economia globalizada, como uma classe altamente conservadora e centrada em um consumo de parcela substancial de sua renda, seus movimentos impactam diretamente sobre a economia como um todo, com desemprego em alta e renda em queda, seus rendimentos cadentes a levam a reduzir o consumo de forma acelerada e a se voltar para partidos e políticos com pensamentos mais à direita, descritos como mais conservadores, influenciando o crescimento dos partidos de extrema direita na Europa e em outras regiões do mundo, como nos Estados Unidos, com a ascensão de Donald Trump, passando pela Turquia de Recep Tayyp Endorgan  e até mesmo no Brasil de Jair Bolsonaro.

As novas tecnologias, pela primeira vez, estão impactando fortemente sobre esta classe social, anteriormente as tecnologias destruíam empregos em setores marcados por muito dispêndio de força física, eram os chamados trabalhadores braçais, que eram substituídos pelas máquinas e os equipamentos e esta substituição não gerava a comoção e os medos contemporâneos, isto porque esta classe média sempre se consolidou por ser um grupo social organizado, dinâmico, politizado e formador de opinião. Neste momento os trabalhadores sofrem a concorrência não de simples máquinas e tecnologias, mas da chamada inteligência artificial, robôs inteligentes e pensantes, que organizam o pensamento e não se restringem apenas a reproduzir atividades repetitivas e programadas, estes novos equipamentos estão substituindo os trabalhadores que, na maioria das vezes, tem suas origens na chamada classe média.

Segundo especialistas em tecnologia, os novos empregos estão para serem criados, mais de 60% dos empregos da próxima década ainda não existem, serão criados com a rapidez da tecnologia e obrigarão os trabalhadores a se adaptar a esta nova realidade, com isso, seu tempo consigo próprio e com seus familiares tende a se reduzir de forma acelerada, com fortes perspectivas de desequilíbrios emocionais crescentes e acelerados, obrigando a sociedade a repensar este modelo de organização social.

Teóricos das mais variadas correntes do pensamento econômico, desde Joseph Stiglitz, passando por Paul Krugman, ambos norte-americanos e ganhadores do Prêmio Nobel de Economia, ou por teóricos mais liberais e ortodoxos como o indiano Raghuram Rajan e o economista Lawrence Summers, todos acreditam que a economia global está num momento de desaceleração e o capitalismo internacional atravessa um período de instabilidades, incertezas, medos e desesperanças generalizadas.

Neste ambiente internacional marcado por grande liquidez e fortes estímulos monetários, onde os Bancos Centrais se utilizam de políticas monetárias bastante generosos e, mesmo assim, as economias estão presas a um baixo crescimento econômico e a um alto desemprego ou subemprego, onde os cidadãos não consomem, mesmo com incentivos fiscais e monetários abundantes. A explicação para este cenário perturbador pode estar no medo e na insegurança que a Quarta Revolução Industrial está gerando no mundo do trabalho, levando os trabalhadores a reduzir seu consumo e aumentar sua poupança, com medo de momentos de instabilidades e desempregos de um futuro próximo.

Diante deste cenário, a sociedade ruma para um momento crítico, de um lado a tecnologia aumenta de forma acelerada a produção, produz-se em escalas cada vez maiores e, de outra, o consumo cai vertiginosamente em decorrência do desemprego e do medo daqueles que estão empregados, levando a sociedade a uma crise estrutural. O economista norte-americano Lawrence Summers chamou este cenário de estagnação secular, termo novo e bastante significativo para definir uma crise estrutural do sistema, algo que o economista alemão Karl Marx, que no século XIX, em 1867, na sua publicação clássica, O Capital, destacou como tendência inexorável do capitalismo capitalista, esta obra sempre foi rechaçada e muito criticada pelos liberais ou neoliberais de plantão.

Na França, os chamados coletes amarelos estão agitando a sociedade, este movimento começou no final do ano passado, movimenta milhares de pessoas e consegue se mobilizar depois de um tempo considerável, grande parte destes manifestantes são oriundos de cidades que se desindustrializaram no leste e no norte do país, são regiões que vem passando por um período de forte empobrecimento, levando seus cidadãos a insatisfação e levando-os a votarem em políticos de direita ou de extrema esquerda, como Marine Le Pen, presidente do extremista ex-Frente Nacional, agora Reunião Nacional.

A globalização, marcada por um aumento na concorrência global e no desenvolvimento de novos modelos de produção, acabou gerando mais recentemente uma forte resistência em países industrializados, estas resistências estão atreladas a grupos de classe média, setores que perderam seus empregos e viram sua renda e seus salários serem reduzidos de forma generalizada, aumentando a pobreza e a insatisfação social, em alguns casos a sublevação social, com inseguranças, mortes e, em casos extremos, a guerras civis.

Um exemplo interessante para que entendamos as dificuldades do emprego na sociedade contemporânea, se analisarmos a quantidade de empregos gerados pelas maiores empresas da economia mundial, as empresas de tecnologia, e compararmos com as empresas mais importantes dos anos 80 e 90, as montadoras de automóveis e olharmos para seus valores de mercado, perceberemos números assustadores e preocupantes. O valor de mercado da empresa Netflix é de US$ 170 bilhões, esta empresa de streaming possui 5,4 mil funcionários no mundo, quando comparamos com as montadoras FCA, Renault, Mitsubishi e Nissan, que juntas valem US$ 85 bilhões, ou seja, metade do valor da Netflix, e possuem mais de 200 mil funcionários no mundo, percebemos a discrepância entre a terceira e a quarta revolução industrial.

Os tormentos dos trabalhadores são os ecos de uma crise interminável do sistema capitalista de produção, seu motor principal está no crescimento do consumo, que motiva os investimentos e a produção se efetiva, gerando empregos variados e crescentes em toda a cadeia produtiva, a premissa sempre foi de que novos investimentos gerassem empregos em ascensão e, num segundo momento levasse a um incremento da produtividade do trabalho, traduzida pelos economistas como desenvolvimento econômico. Neste momento, o sistema esta reagindo de forma diferente, os investimentos produtivos estão gerando menos empregos na economia, a produção cresce mais com o incremento de máquinas e tecnologias do que da contratação de novos funcionários, gerando na classe trabalhadora mais incertezas e inseguranças que reduzem o consumo imediato e levam as empresas a vendas menores e lucros cadentes.

Existem inúmeras propostas para reverter esta condição degradante da classe média global, onde podemos destacar: tornar o sistema tributário mais justo, lidar com o crescente aumento do custo de vida, principalmente em setores sensíveis aos gastos da classe média, como moradia e educação, melhorar a formação de lares de classe média, reduzir os riscos de excesso de endividamento e melhorar o acesso a oportunidades de negócios, estas medidas auxiliariam na recuperação de uma classe central para a sociedade, para o bom funcionamento da economia e para a estabilidade social.

No caso brasileiro, diante de uma situação de recuperação lenta, uma política importante para melhorar as condições da classe média seria o crescimento econômico e uma melhora nas perspectivas de desenvolvimento econômico. Sem crescimento temos uma piora na concentração da renda e um incremento na desigualdade, faz-se necessário crescermos com urgência e adotarmos as medidas sugeridas pelas instituições, muitas delas medidas políticas severas, mas fundamentais para melhorar o sistema econômico brasileiro.

O ambiente é perturbador, estamos diante de uma classe social fundamental para o crescimento econômico e o equilíbrio social, seus filhos são de uma geração mais educada, mais informada e melhor capacitada intelectualmente, mas as perspectivas futuras são sombrias, seus filhos tem menos chances de conseguir o mesmo padrão de vida de seus pais, estamos diante de um dos mais cruéis paradoxos do sistema capitalista, uma contradição que leva os indivíduos, das mais variadas regiões do globo, a questionar o sistema e a democracia e, sem democracia, os horizontes podem ser assustadores.

Num ambiente de perturbações autoritárias e preocupações com a continuidade democrática, como nos está sendo retratada por inúmeros teóricos na atualidade, desde Steven Levitt, passando por Yascha Mounk, Umberto Eco, Madeleine Albright, dentre outros, uma classe média assustada e amedrontada pode ser uma grande fonte de instabilidades crescentes, cultivando tendências e sentimentos autoritários que podem levar os países a constrangimentos e inseguranças, o grande diferencial do momento, é que estes retrocessos não se restringem a países periféricos, mas estão alicerçados em economias industrializadas, dotadas de conhecimento e de capacitação técnica, o mundo definitivamente não é, na contemporaneidade, um lugar seguro.

Os novos termos do jogo político e social

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Entrevista realizada por Eduardo Rascov com o professor Marco Aurélio Nogueira e publicada na Revista Nossa América, do Memorial da América Latina, nº 53, Ano 2016. 

No primeiro semestre de 2016, a Cátedra Unesco Memorial da América Latina organizou um curso de extensão sobre os processos sócio-políticos contemporâneos, especialmente os do subcontinente latino-americano.

Como professor catedrático convidado, organizei uma programação concentrada na reflexão sobre as novas dinâmicas e os novos protagonistas do jogo político e social no mundo contemporâneo, com destaque para a América Latina e o Brasil. A ideia foi tentar construir uma matriz teórica a partir da qual organizar uma reflexão a respeito do modo como movimentos sociais, redes e ações de protesto estão se projetando na cena latino-americana atual e ajudando a formatar o universo da política e da democracia.

Vários professores e pesquisadores, de diferentes universidades, responsabilizam-se pelas aulas do curso, que teve 40 horas de duração e se estendeu de abril a maio.

O senhor coordenou na Cátedra Unesco Memorial da América Latina um curso que se propôs a discutir a sociabilidade contemporânea, com seus impactos na política e na vida das cidades. Participaram dele diversos pesquisadores que têm refletido sobre esses temas.

A grande questão contemporânea é estabelecer o que mudou ou está mudando na vida a ponto de modificar o modo como as pessoas se relacionam, se comportam, pensam e protestam, participam da política ou se lançam na defesa de determinadas causas. Quando pensamos em termos de “redes e ruas”, abrimo-nos por inteiro para a sociabilidade contemporânea, pois vivemos cada vez mais intensamente em redes sociais e das redes passamos para as ruas, indo, digamos assim, do virtual para o presencial. As redes estão fazendo com que mudemos nossas preferências em relação a muitas coisas. Produzem cultura e alteram o modo como nos comunicamos. São coisas óbvias mas que precisam ser pensadas. Por exemplo, a partir do momento em que se substitui a carta por uma mensagem de whatsapp tem-se a substituição de uma padrão de conduta por outro e de um padrão de temporalidade por outro. Com a carta você tinha que prever dias para a interação. A comunicação hoje é imediata. E os meios que usamos para isso são móveis e cada vez mais portáteis e inteligentes.

Há também uma aceleração absurda do tempo, não?

Sem dúvida. Isso altera a percepção do tempo, cálculos e ansiedades precisam ser pensados de outra maneira. É um fenômeno geral, mas que se manifesta de forma desigual. Não são todos que estão incluídos digitalmente ou que usufruem das mesmas velocidades de conexão, por exemplo. Muitos ainda vivem de forma “tradicional”, com a memória de um mundo que já não existe mais, tendendo a ver o mundo conectado e veloz como se fosse a oficina do diabo. Temos de pensar como essa mudança toda – temporal, emocional, da própria lógica – reverbera nas estruturas da sociedade, na cultura, no Estado, na economia, na movimentação política.

Stella Senra, autora de ”O Último Jornalista”, analisando essa aceleração, dizia que o tempo do jornalismo ficou cada vez menor. Antes ele falava da coisa que aconteceu ontem. Com as transmissões ao vivo, a instantaneidade, fala-se sobre o que está acontecendo agora. O jornal impresso perdeu o sentido. Então o que a imprensa fez? Ela fala do amanhã e ao fazer isso tenta escrever o amanhã, determinar o que vai acontecer. Realmente os jornais nem usam mais o verbo no passado, as manchetes estão sempre tentando adivinhar o futuro. Mas a internet e as redes sociais mudam um pouco isso, não?

No fundo, estamos diante de um grande problema, que é a questão da gestão da vida cotidiana, que se dá por meio da relação com a informação. Esse é um dos grandes nós da nossa época: como não ser soterrado pelas informações? No limite você fica paralisado. Não dá para escapar da massa de informações, que nos alcançam de múltiplas formas. Como processar tudo isso? Todos sofrem para armazenar e selecionar informações. Ninguém se detém muito para pensar em como organizar as informações, evidentemente. O fluxo de informações não vai diminuir, nem é desejável que isso ocorra. Nós é que vamos ter que aprender a gerir melhor a informação.

O fenômeno é brasileiro ou é encontrado em toda a América Latina?

Il mondo è paese, como dizem os italianos, e é cada vez mais uma “aldeia global”. Trata-se de um fenômeno geral, que acompanha a globalização capitalista e a mundialização das relações, da circulação de mercadorias, ideias e informações. A recomposição social também é geral. É claro que cada sociedade tem sua dinâmica: em algumas, por exemplo, as instituições e as identidades políticas são mais fortes, estão mais enraizadas, produziram uma cultura que foi apropriada de forma mais igualitária pelos cidadãos. Elas conseguem transitar de modo mais suave, digamos assim. Em outras, a turbulência é maior, porque as estruturas sociais são mais desiguais, as instituições menos estáveis, a democracia mais imperfeita. Por exemplo, o Brasil nunca foi forte em identidade política e partidária, não está em nosso DNA. Mas isso não ocorre com o DNA argentino, o italiano ou o francês. Provavelmente a crise do peronismo na Argentina seja menos grave do que a crise do lulismo no Brasil, por exemplo.

Uma pessoa que pouco soubesse sobre o país e aqui chegasse no momento atual iria pensar que a sociedade brasileira está vivendo um retrocesso ou um avanço? Se for avanço, para onde estamos indo? Qual o futuro do Brasil?

Nem retrocesso, nem avanço: temos componentes dos dois. Há avanço porque a sociedade está se movimentando, a democracia continua em vigor, a política voltou a frequentar as conversas cotidianas. Mas há retrocesso porque a democracia está pouco qualificada, o debate não flui com facilidade, a classe política não evoluiu, o sistema político dificulta a governança, faltam lideranças e, como se não bastasse, a crise econômica é muito profunda e dificulta uma ação mais ativa do Estado. Mesmo assim, não creio que as políticas sociais de inclusão venham a ser desativadas e nem que qualquer tipo de guinada autoritária ou ditatorial venha a acontecer. O futuro brasileiro tende a ser democrático e, no horizonte, desponta uma reforma política e a recuperação de uma atuação política de maior unidade e entendimento entre as forças democráticas. Quando isso se materializará não dá para afirmar, mas a tendência a meu ver é esta.

O senhor diria que agitações sociais como as que estão vivendo o Brasil e outros países latino-americanos, neste momento, libertaram forças que estavam restritas, ocultas ou aprisionadas? Ou as próprias agitações criaram novas demandas, novas formas de se organizar e forças políticas inovadoras?

As sociedades atuais, de capitalismo reestruturado, maior fragmentação, pluralismo e individualização, são “naturalmente” participativas e dinâmicas. Não é de hoje que se registram agitações sociais na região ou no Brasil. Elas têm acompanhado as acomodações que se processam na estrutura social, no Estado e nas formas da política. Quanto menos, por exemplo, se tem de força dos partidos políticos, mais se tem de efervescência social “fora de controle”, ou seja, espontânea, sem uma direção clara e sem um poder de agenda particularmente expressivo. As pessoas vocalizam intensamente suas demandas e suas postulações de direito hoje, e contam para isso com as redes e as mídias sociais. Há uma pressão social para que se renove a política, para que se modifique o modo de organizar e fazer política. Isso, porém, não é fácil, especialmente se não houver núcleos políticos ativos que façam aquilo que os partidos políticos faziam antes.

Lá em 1967 o filósofo francês Guy Debord (1931-1994) definia a “sociedade do espetáculo” como o conjunto de relações sociais mediadas pela imagem, que segundo ele ameaçava condicionar todas as dimensões da vida. Atualmente as agendas ainda são geradas pelo espetáculo?

Cada vez mais! O espetáculo está em tudo. Hoje qualquer dimensão da vida é pautada pela busca da exposição. As pessoas esperam ser informadas suficientemente, ou seja, espetacularmente, a respeito de tudo. E as próprias pessoas querem se expor, se mostrar, aparecer e fixar seus valores, suas demandas e seus estilos no imaginário público. Tome-se como exemplo a lógica do selfie. O que é o selfie? É você documentar a si mesmo e produzir imagens para se comunicar nas redes, como se você precisasse de uma certificação pública do seu engajamento, da sua presença em algum lugar. Comparecer a um show ou a uma manifestação já não basta, é preciso que se diga a todos que o comparecimento aconteceu, para que as pessoas fiquem sabendo e acreditem.

Se você sai desse plano mais privado do cotidiano e vai para o plano da vida organizada, mais estruturada, por exemplo, para a esfera pública e o plano da política, dos movimentos sociais, dos processos de contestação, de protesto, de manifestação – então essa dimensão fica ainda mais forte. O que talvez nos ajude a entender a “crise” que parece estar rondando o ativismo atual.

Que crise é essa?

Você pode, se quiser, pensar numa crise que deriva do fato de que a ação política de contestação hoje é menos organizada e não se faz por meio da figura do “militante”, de alguém que se dedica full time a uma causa. As pessoas estão muito mais recolhidas à vida privada e não se dispõem a trocar sua privacidade por formas intensas de engajamento. Donde a assim chamada “militância de sofá”, via redes sociais. A própria ida das pessoas às ruas, hoje em dia, não é marcada por um engajamento à moda antiga, um engajamento total, em que você estava convencido de uma causa, se identificava com a bandeira de um partido, etc. Os limites da “entrega” são mais claros.

Em 2013 o slogan era “sem partidos” e continua assim: todos querem distância dos elementos de identificação mais fortes e tradicionais. Isso cria a figura do militante flutuante, que escolhe em que manifestação irá, com que objetivo, quando e com qual grau de disponibilidade. O importante não é tanto o resultado a ser obtido, mas o efeito imagético que se produzirá – ou seja, o espetáculo.

Estou falando de modo genérico. Trata-se de uma tendência, um vetor que organiza o campo das manifestações e dos protestos. Obviamente, muitas pessoas continuam interessadas em obter resultados. Mas a flutuação é um dado real, assim como a dosagem do engajamento e o próprio caráter de certos movimentos e manifestações. A luta pelo “impeachment de Dilma” levou milhões às ruas, mas de um dia para outro as pessoas voltaram para casa, sem que nada de concreto tivessem, a rigor, conquistado. As manifestações contra o aumento do preço das passagens de ônibus tiveram força em 2013-2014 e depois murcharam, levando consigo o Movimento Passe Livre (MPL).

Mas não há um dia sem manifestações. O jornalista e escritor Vicente Villadarga escolheu aleatoriamente sete dias corridos e procurou saber se havia alguma manifestação em algum ponto da cidade. A ideia era provar que atualmente não passa um dia sequer sem manifestação em algum horário e lugar.

É verdade. A movimentação e a “participação” são dados inerentes à vida veloz, conectada e individualizada. Mas delas não está havendo nenhuma convergência para um “ponto ótimo” de contestação.

A divisão clássica entre direita e esquerda perdeu o sentido?

Não perdeu o sentido, de modo algum. Mas como sempre essa divisão só faz sentido se for bem definida. Antes era mais fácil definir direita e esquerda. As agendas eram mais simples, as ideologias vigoravam plenamente, o próprio conflito social e as lutas de classe eram mais transparentes. Os representantes de direita e esquerda eram claramente identificados na plataforma social, digamos assim: você tinha os partidos comunistas, os social-democratas, os socialistas, o centro liberal, os conservadores. Hoje a confusão política e ideológica prevalece, os partidos são menos nítidos e mais mal estruturados. As distinções se tornaram embaçadas. É um quadro que afeta e prejudica mais a esquerda, até por ser ela uma força antissistêmica e minoritária, que depende muito de organização. Como em qualquer definição, pode-se ter uma ideia clara de esquerda, mas não se tem a tradução disso em termos de organização política e social. A ideia fica solta no espaço.

Talvez essa definição de que não existam mais nem direta nem esquerda seja uma conclusão mais da direita…

Na verdade, quem introduziu essa discussão de modo mais consistente foi o sociólogo Anthony Giddens (nascido em 1938), ligado ao Partido Trabalhista inglês, e que teorizou a última versão que se teve de “Terceira Via”. Ele escreveu, para o Labour na época de Tony Blair, livros e ensaios tentando conciliar aspectos econômicos do liberalismo com o socialismo partindo do suposto de que a modernidade mais avançada não fornecia condições de possibilidade para a reprodução dos alinhamentos político-ideológicos tradicionais ou para a contraposição “pura” de forças políticas. Seu principal livro a respeito se chama Para além da esquerda e da direita. Com Giddens, pode-se discutir o problema não só do ponto de vista da lógica do embate político, mas também com uma pegada sociológica: que mudanças estruturais diluíram as imagens tradicionais de esquerda e direita e nos obrigam a ir para além da contraposição pura? Mas não se pode esquecer que o filósofo italiano Norberto Bobbio – que era um liberal-socialista – jamais admitiu que se pudesse pensar em termos de desaparecimento da distinção, que, na visão dele, se reproduz incessantemente.

Esse é um jeito de olhar a sociedade hoje?

Não somente a sociedade. Também é um jeito de olhar o Estado e as relações Estado-sociedade civil. Quais são as possibilidades efetivas, dadas pela realidade da vida, de você ir ao governo com uma plataforma de esquerda? Você tem um capitalismo forte demais, um mercado forte demais e uma sociedade individualizada demais que, pelo fato de ser individualizada, tem muita dificuldade de agir coletivamente. Ela até age coletivamente, mas não consegue atuar de forma a contestar e “subverter” o sistema. Antes, bem ou mal, você tinha as classes econômicas (especialmente a classe trabalhadora, a classe operária), os nichos profissionais que organizavam o coletivo, os sindicatos. Hoje os sindicatos estão mais recolhidos, não têm mais a força que já tiveram. Continuam importantes, não é essa a questão, mas não têm tanta capacidade assim de modelar as classes.

Por quê?

Antes de tudo, porque as classes econômicas típicas (a classe operária) estão perdendo peso relativo em decorrência da automação e da robotização, ou seja, da reestruturação do capitalismo. E há, por extensão, o problema da sua reprodução no tempo, o problema da continuidade e das gerações. Antes essas classes se reproduziam economicamente e também em termos socioculturais: os filhos seguiam os passos do pai: metalúrgico pai, metalúrgico filho, metalúrgico neto. Isso gerava uma identidade de classe fortíssima. Os filhos hoje procuram outros caminhos, em parte porque querem uma vida “pós-industrial” e em parte porque não conseguem empregos industriais.

Como essas mudanças afetam a relação entre os Estados? Na América Latina, em anos recentes o Estado teve importante protagonismo, por exemplo.

A América Latina só faz sentido se for pensada como uma região composta por países muito diferentes entre si, países que vêm buscando nos últimos 20 anos formas melhores de integração regional. Hoje há muitos blocos e esforços de integração. Ao mesmo tempo, há uma crise que repercute a crise geral do capitalismo e que corta alguns países de modo particular, criando a sensação de que toda a região segue as mesmas tendências. Penso que essa visão é incorreta. Não dá, por exemplo, para comparar a crise que está dizimando a sociedade e a democracia na Venezuela com a crise brasileira, que está conseguindo ser administrada. O problema é que a região paga um preço alto pelos longos períodos em que “populismos” vigoraram. Muitos países ainda dependem de líderes salvacionistas, a organização democrática é fraca em várias sociedades e a região, como um todo, continua exposta aos ventos internacionais, por mais que alguns de seus países tenham se tornado potências médias ou emergentes.

Um “bloco latino-americano” é uma construção que avança com dificuldade. Mas as relações entre os países melhoram, seja em decorrência dos processos de integração, seja pela vigência de melhores redes de informação e comunicação. Não me parece que caminharemos para trás neste aspecto. Poderemos até mesmo avançar, sobretudo se puderem ser contornadas as tensões que nascem da dualidade entre interesse comercial e solidariedade política. A política externa dos diferentes Estados mostra-se hoje mais atenta aos riscos de se abandonar o pragmatismo, de condicionar o comércio à ideologia ou de se praticar retóricas “nacionalistas” que incluam algum tipo de veto aos Estados Unidos, por exemplo.

A relação dos cidadãos com o Estado, assim como as funções do Estado e a relação entre os Estados, têm a ver como a força dos Estados. Têm a ver com o modo como o capitalismo está se reorganizando em escala mundial. As novas formas da economia — economia digital, comércio eletrônico, financeirização, robotização — trazem consigo uma espécie de implosão das fronteiras nacionais, que sempre foram uma garantia da força e da soberania dos Estados. A crise dos Estados Nacionais faz com que o Estado tenha menor capacidade de regulação política do mercado, com que os governos governem menos, que os sistemas políticos se mostrem instáveis e sem capacidade de viabilizar a representação política. A própria democracia política é invadida por problemas que roubam sua qualidade. A mesma crise modifica a configuração do sistema internacional de Estados. Os Estados hoje não são os únicos, talvez nem sejam mais os principais protagonistas das relações internacionais. Hoje uma Microsoft, um Google e um conglomerado bancário pesam muito na balança do poder internacional, complicando hegemonias e sem se compor automaticamente com os interesses dos Estados e das sociedades a que estão nominalmente vinculados. São interesses soltos, digamos assim, variáveis independentes dos Estados.

Se fosse assim, o sistema internacional não deveria ser mais pacífico, com menos guerras e conflitos entre Estados?

Não vejo por que. A competição econômica prevê certo tipo de “guerra” e quando ela é exacerbada, como hoje, a “guerra” fica igualmente exacerbada. Os Estados, de alguma maneira, sempre foram mediadores do conflito econômico. Ou tentaram ser, nem sempre conseguiram. Não só os Estados, mas as instituições interestatais e multilaterais, tipo ONU, OMC (Organização Mundial do Comércio), FMI, Banco Mundial, OEA (Organização dos Estados Americanos), que funcionam como uma tentativa de mediação entre os Estados e como mecanismo de regulação da economia. O conflito econômico desencarnado, sem a mediação do Estado, pode estar na origem da guerra, sim. Mas você pode agregar a isso a  visão de que se pode ter conflitos provocados por fatores que não são imediatamente políticos ou econômicos, que são relacionados a identidades, por exemplo, à religião.  Na verdade, você nunca vai poder separar política, economia e religião, como se uma coisa não ligasse à outra, porque isso tudo está conectado.

Veja o fenômeno dos refugiados, por exemplo, na Europa. O que o impulsiona? É um problema econômico? Com certeza é. A leitura mais imediata do refugiado é “eu quero sair daqui porque essa guerra civil acabará comigo”. O sírio vai embora porque não vislumbra possibilidade de viver com o mínimo de paz, digamos, mas junto com isso tem um problema profissional, educacional (as crianças não têm escola), não há como pagar as despesas. Ele pensa “sou opositor do presidente Assad, se ficar vou preso”. Várias questões empurram a pessoa para fora. Quando chega à Europa, os problemas mudam de forma, mas permanecem e chegam mesmo a se ampliar. Os migrantes hoje entram aos milhares e se tornam estrangeiros sem direitos (ou com poucos direitos) em países altamente organizados, ricos, com direitos protegidos. O conflito que nasce desta situação não é somente econômico, é também de cultura, de identidade.

Nestas circunstâncias, como pensar em um mundo mais “pacífico” ou harmonioso? Nosso destino comum de longo prazo passa com certeza por um destino comum de curto prazo que está inteiramente impregnado de tensões, injustiças, violências e contradições.

O conceito de felicidade do capitalismo financeiro

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Jessé Souza – Carta Capital – Julho/2018

A guerra dos donos do dinheiro contra a soberania popular promete não dar tréguas e ser levada a cabo sob a forma insidiosa de guerrilha

Na esfera econômica, o capitalismo financeiro, fase atual do capitalismo, implica, além de outras coisas, o aumento da velocidade de valorização do capital, controle inaudito do regime de trabalho e uma impessoalidade no comando das empresas, unido ao foco na rentabilidade de curto prazo.

O foco no curto prazo é o calcanhar de Aquiles de todo o esquema e o que faz com que novas bolhas sejam mera questão de tempo. Na esfera pública, por sua vez, o ataque à soberania popular é direto. Ainda que não se tenha inventado outro mecanismo para legitimar a obediência social no decorrer do tempo, o capital financeiro, por meio da mídia, banaliza, confunde e coloniza os fundamentos normativos da soberania popular.

O apoio ao governo pelos juízes ao mesmo tempo testemunha essa colonização e mostra sua dificuldade, pois toda legitimidade do poder do magistrado também advém da soberania popular.

No curto prazo, esse viés engana, distorce e funciona por algum período. A guerra contra a soberania popular promete ser sem tréguas e levada a cabo sob a forma insidiosa de uma guerra de guerrilha, destruindo crenças compartilhadas e consensos normativos e não em campo aberto. A raiz do neofascismo brasileiro está aqui.

O que comprova a extraordinária resiliência do capitalismo como forma de dominação socioeconômica foi e é a sua capacidade antropofágica de engolir a crítica, distorcer seu conteúdo e cuspi-la depois segundo seus próprios interesses.

A crítica historicamente mais radical ao capitalismo foi a realizada pelo “expressivismo” e pela ideia do ser humano autêntico e expressivo. Essa ideia tem sua fonte histórica mais importante no romantismo e no “expressivismo alemão”, depois universalizada para todos os países do Ocidente.

Ela reflete as críticas de elites artísticas e intelectuais contra o aspecto produtivista e superficial da ideia de individuo econômico do capitalismo liberal clássico: indivíduo visto meramente como produtor disciplinado e consumidor hedonista de mercadorias em um mundo pobre de sentido.

Ao contrário, a lógica do mercado impede a originalidade individual e tende a massificar não só a produção e o consumo, mas qualquer expressão individual autêntica. Ao contrário da transformação do indivíduo em mais uma mercadoria, o “expressivismo” percebe a vida como um desafio de aprendizado do indivíduo acerca de quem ele é e acerca de tudo que o singulariza como biografia. Mais ainda, como tendo a obrigação normativa viver de acordo com essa descoberta.

A “felicidade” individual é definida aqui como uma construção narrativa, contínua e criativa do próprio “self” que obriga a construção de sentidos novos para a vida privada e social.

Nos anos 60 do século passado, essa ideia sai dos círculos das elites artísticas e intelectuais e ganha as grandes massas sob a forma da contracultura cujo suporte social eram as gerações de jovens do segundo pós-guerra. O grande feito do capitalismo financeiro como embuste ideológico foi se apropriar precisamente dessa concepção de felicidade radical e libertadora segundo seus próprios termos.

Isso não se deu de um dia para o outro. Foi uma guerra ideológica incansável até que criatividade, emancipação e originalidade individual fossem repaginados nos termos do capital financeiro.

Originalidade passa a ser um recurso gerencial pré-definido pelos fins de lucro e a ideia de emancipação se transforma na farsa de que todos são agora empresários de si mesmos. Assim, o domínio do capital financeiro não é algo que se contrapõe de fora aos indivíduos, mas, ao contrário, parte de “dentro”, da alma e das aspirações mais profundas do imaginário individual e social. É isso que explica sua incrível eficácia dissimuladora e insidiosa.

Como não houve por parte da esquerda qualquer veleidade de se disputar a hegemonia do imaginário social, entre nós este discurso campeia praticamente sem oposição. Todos se vêm como empresários de si mesmos, pois o patrão se torna abstrato como as dívidas bancárias e não mais de carne e osso.

Assim, a classe média imagina pertencer a elite por poder comprar um par de ações na Bolsa. E a classe trabalhadora se acha a “nova classe média”, restando na base a ralé de novos escravos que sempre foi a casta dos intocáveis entre nós, servindo de mero contraponto negativo para a luta social definida nos termos dos novos ricos.

Entrevista com Steven Levitsky

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Blog Zahar – 30 de Março de 2019 –

Coautor do best-seller internacional, Como as democracias morrem, na lista de mais vendidos da Vejahá 21 semanas, o cientista político norte-americano Steven Levisky concedeu uma entrevista a este blog sobre a democracia brasileira e os 55 anos do golpe militar no Brasil. Confira!

1) O que é democracia? E a quem interessa?

SL: A democracia é o único sistema já inventado que permite à sociedade mudar o seu governo regularmente, de forma livre e sem violência. Também é o único sistema existente que garante aos cidadãos o direito de fazer oposição ao governo – seja falando, escrevendo ou fazendo protestos. Isso deveria ser importante para qualquer pessoa. No entanto, na prática, isso deveria importar ainda mais para quem não tem muito poder ou dinheiro. Os ricos sempre encontram formas de se proteger em qualquer regime, inclusive em ditaduras. Só a democracia garante proteção para o restante de nós.

2) É democrático – e apenas uma questão de “opinião” – elogiar a tortura e o assassinato dos opositores e prestar homenagem a torturadores e a um regime ditatorial, antidemocrático e assassino, usando para isso a justificativa de que estamos em uma democracia e todos têm liberdade de expressão?

SL: Numa democracia, as pessoas são livres para falar coisas horríveis, inclusive para fazer, em muitos lugares, elogios a ditaduras repressoras do passado. Democracias às vezes precisam tolerar comportamentos terríveis – esse é o preço da liberdade. Mas só porque alguém tem “liberdade” para elogiar a tortura ou a ditadura não significa que isso seja menos condenável e, no caso de políticos, extremamente irresponsável. E quando representantes do próprio governo (o presidente, ministros, oficiais do exército) elogiam a tortura e a ditadura, isso me parece uma irresponsabilidade inacreditável.

3) Por que o senhor acha que no Brasil é tão difícil confrontar o passado? Países vizinhos como Argentina, Uruguai e Chile processaram, julgaram e puniram militares que encabeçaram e participaram das ditaduras de seus países, de todos os escalões – todos envolvidos em crimes contra a vida: assassinatos, fuzilamentos, atentados à bomba, afogamento, tortura física e psicológica, sequestro e roubo de filhos dos opositores; sem contar o favorecimento pessoal com corrupção, desvio de dinheiro (caso comprovado de Pinochet no Chile, por exemplo), tráfico de armas, drogas e crianças (caso de Stroessner no Paraguai, por exemplo).

SL: Eu acho que o principal motivo é que o exército brasileiro foi razoavelmente bem-sucedido. Ele presidiu tempos econômicos relativamente bons nos anos 60 e 70; não foi tão repressivo quanto os regimes da Argentina, Chile e Uruguai, e, como resultado, nunca foi tão impopular quanto os militares nesses outros países. Na Argentina e no Uruguai, os militares foram amplamente desprezados após a ditadura. O Chile ficou mais dividido, mas uma maioria sólida rejeitava Pinochet – e as revelações subsequentes de corrupção e abusos dos direitos humanos criaram uma ampla rejeição social do governo militar também. Isso nunca aconteceu – ou aconteceu em menor grau – no Brasil. O exército brasileiro nunca se tornou o cara mau. Nunca perdeu seu prestígio, e nunca foi totalmente despojado de seu poder como foi na Argentina.

4) O presidente Jair Bolsonaro determinou que as Forças Armadas comemorem no dia 31 de março a “data histórica” do aniversário do golpe militar de 1964 (que ele chama de Revolução). Em um governo que reúne o maior número de militares na Esplanada dos Ministérios desde o período da ditadura (1964-1985), além de entrevistas onde tece elogios ao período, qual o impacto dessa comemoração para a democracia brasileira? 

SL: Vindo de um governante civil numa democracia, é um comportamento abominável – com consequências potencialmente trágicas. O Estado está oficialmente dizendo aos cidadãos que o golpe e a ditadura foram aceitáveis e até mesmo elogiáveis. O Estado está oficialmente aprovando a repressão, a tortura e outras práticas antidemocráticas. Isso, por si só, não torna o Brasil menos democrático, mas pode ter um grande impacto na opinião pública. Ajuda a legitimar – ou tornar aceitável – futuros golpes ou ditaduras. Eu acho vergonhoso.

5) O senhor já afirmou que a polarização política pode acabar com uma democracia muito frágil. Para o senhor, a democracia brasileira é frágil? Quais suas fraquezas? E sua força? Ela está em perigo?

SL: A democracia brasileira tem instituições relativamente fortes, desenvolvidas nos últimos 35 anos. Não tenho certeza se eu diria que é frágil, mas é definitivamente vulnerável. O nível de desigualdade social, econômica e racial torna a democracia brasileira um pouco mais vulnerável do que outras. O recente crescimento do crime violento e do colapso econômico aumentou sua vulnerabilidade. A satisfação do público com a democracia e a confiança nas instituições democráticas caíram para níveis muito baixos. Mas talvez o mais importante, a extrema polarização que o Brasil experimentou desde 2014 definitivamente deixa a democracia vulnerável. Forças de esquerda e direita começaram a ver um ao outro como inimigos, em vez de rivais. Eles começaram a adotar a abordagem “o que for necessário” para derrotar seus rivais. Entre as elites políticas, as normas democráticas parecem mais frágeis hoje do que eram há uma década. Finalmente, sempre que uma sociedade elege um presidente que não está totalmente comprometido com as regras constitucionais e democráticas do jogo, a democracia está em perigo. A democracia do Brasil tem muitos pontos fortes e tem uma boa chance de sobreviver a esse período difícil. Mas os perigos são reais. Há muito o que se preocupar.

 

 

Protestantismo, Religião e a expansão do Capitalismo Industrial

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  O sistema capitalista de produção se consolidou com a Revolução Industrial inglesa do século XVIII, trazendo inúmeras mudanças para a sociedade da época, transformando hábitos, costumes e comportamentos arraigados na sociedade europeia, fazendo da ciência um dos grandes motores da sociedade e impondo a religião uma derrota jamais vista, fragilizando a Igreja romana e abrindo espaço para a consolidação de outras vertentes religiosas mais afeitas e atreladas ao sistema de produção dominante.

A sociedade feudal pode ser descrita como uma época de trevas para a mundo ocidental, nesta época o controle social era feito através das armas e do poderio bélico e militar dos senhores, somados ao poder imaterial da Igreja, que mantinha instrumentos de controle social e de alienação, de outro lado, encontrávamos uma forte degradação da ciência e um fortalecimento da religião, que acreditava ser a grande responsável pelo monopólio com uma força superior.

Neste modelo de organização social, os servos eram vistos apenas como indivíduos dotados de força física, sem direitos e com muitos deveres, impossibilitados de ascensão social e condenados a viverem para o trabalho duro, sem poder ascender a outras classes e grupos sociais organizados, todos que se comportassem teriam acesso aos reinos do céu, enquanto aqueles que deixassem a desejar e se revoltassem contra a organização dita social, seriam condenados ao fogo do inferno ou seriam obrigados a rever ideias, teorias ou pensamentos vistos como reacionários pelos agentes do poder e da ordem.

O poder nas mãos da Igreja era muito consistente, dominava a relação entre os homens e as divindades e controlavam com mãos austeras toda e qualquer ameaça ou suposta ameaça, puniam com rigores extremos todos que se comportavam inadequadamente e ameaçavam o seu domínio, muitos médiuns ou sensitivos foram considerados bruxos e foram mortos com requintes de crueldade para mostrar aos cidadãos o poder temporal mantido pela Igreja e evitar que outros se revoltassem ou se rebelassem contra sua dominação.

Depois de quase mil anos de controle dogmático e sistemático sobre as mentes e os comportamentos, marcados por uma monopolização do conhecimento e do pensamento crítico, que levou a Igreja a construir algumas universidades no continente europeu e a dominar todas as estratégias de educação e de alienação social. A Igreja se enfraquece depois das guerras religiosas e quando fragilizada, perde espaço para novas vertentes religiosas, principalmente o Protestantismo, que nasce pelas mãos do teórico alemão Martinho Lutero, um homem arrojado que se notabilizou com a publicação, em 31 de outubro de 1517, nas portas da capela de Wittemberg, as 95 teses de Lutero, com ásperas críticas as bases da religião dominante.

As críticas emitidas por Martinho Lutero chamam a atenção da sociedade da época, porque o autor era um grande teórico da Igreja, escritor e pesquisador das questões sobrenaturais, sua trajetória sempre foi construída dentro dos pilares desta instituição, suas críticas se mostraram consistentes e obrigaram a Igreja a expulsá-lo de suas fileiras, levando-o a inaugurar um novo movimento religioso que, ao se associar ao pensamento da burguesia nascente, ganha força e relevância no velho continente.

Os ideais da Igreja de renegar a usura e a busca constante por lucro e remunerações crescentes, vistas como instrumentos de estímulos ao individualismo com forte conotação de crítica social, somadas a repulsa pela ciência e pela constante tentativa de tutela do conhecimento científico, colocavam a Igreja em colisão direta com os novos ideais nascentes nesta nova sociedade, centrados no crescimento e no fortalecimento da Ciência e do conhecimento e na busca constante pelo lucro e pelo incremento da produtividade, ambiente favorável ao crescimento da chamada economia de mercado e, posteriormente, do capitalismo.

O Protestantismo foi fundamental para o crescimento do sistema capitalista, depois das teses de Lutero, os capitalistas perceberam no movimento religioso protestante um forte instrumento de fortalecimento de seus ideais em uma sociedade dominada pela força e pelas tradições da Igreja, com isso, foram buscar uma parceria estratégica com o pensamento luterano, financiando sua expansão e consolidando suas teorias como forma de angariar apoio nesta nova sociedade nascente.

Embora apresentasse ideias inovadoras, dentre elas destacamos a possibilidade de ascensão social, até então inexistente, o capitalismo necessitava de um agente externo para angariar o apoio das massas, somente este apoio maciço daria os instrumentos para que a população conhecesse e se encantasse com seus ideários, reduzindo o papel da Igreja e angariando novos quadros para a consolidação de seus princípios econômicos, sociais, políticos e culturais.

As teses da nova religião construídas por Martinho Lutero estimulavam os indivíduos a uma busca constante por melhorias profissionais e econômicas, a liberdade, o dinamismo e o empreendedorismo somados trariam novos espaços para inovação e para o crescimento econômico, com ganhos para todos os integrantes da sociedade, melhorando suas condições de vida e incrementando o bem-estar social.

Pelas ideias de Martinho Lutero, todos os indivíduos que se entregassem a Deus, trabalhassem de forma honesta e dedicada, apresentassem um papel construtivo na sociedade, adotassem a prática constante da caridade e da solidariedade humana seriam bem quistos por Deus e, com isso, poderiam angariar recursos econômicos que os levariam ao entesouramento e a acumulação de riquezas materiais. Segundo esta tradição, os esforços pessoais honestos e edificantes seriam bem vistos por Deus e, com isso, num futuro próximo poderiam lhe trazer vantagens imediatas desde que, este cidadão tivesse a consciência, de que todos os recursos deveriam ser reinvestidos em condições de trabalho melhores e mais possibilidades de estudo e de crescimento para os seus concidadãos, uma forma de devolver para a sociedade os ganhos oriundos destas atitudes empreendedoras.

O Protestantismo traz uma nova visão de Deus e da religião, nesta nova vertente  encontramos um Deus mais amoroso e atencioso, menos rígido e punitivo como aquele criado pela Igreja, um verdadeiro educador de almas, alguém que atende seus filhos com carinho e pede como contrapartida um constante auxílio aos outros irmãos mais necessitados e vulneráveis, encontramos aí no crescimento do conceito de filantropia, que passa a se disseminar em países centrados no modelo capitalista luterano-calvinista.

No período conhecido como iluminismo, encontramos a ascensão do pensamento científico nas mais variadas áreas e setores da ciência, desde a química que passa a desgarrar da alquimia, passando pelo conhecimento dos números até a ascensão da matemática, destacamos o surgimento da Economia, primeiro com os fisiocratas, depois com os mercantilistas até os liberais e seu pensador maior, Adam Smith, todas estas ciências passam a impulsionar a sociedade e colocar o conhecimento no centro da coletividade e fragilizando o pensamento religioso e, principalmente, a Igreja e seus movimentos diretamente vinculados.

Os pensamentos da Igreja limitavam a ascensão dos ideários do capitalismo nascente, a concorrência e a competição eram vistas de forma negativa, os indivíduos respeitavam-na muito e, principalmente, temiam a instituição Igreja, com isso, o enfraquecimento da religião era uma condição fundamental para o progresso das teorias e teses do capitalismo, diante disso, as parcerias empreendidas com os cientistas poderiam ser descritas como uma estratégia interessante e revolucionária, onde todos os envolvidos ganhavam, de um lado, os capitalistas teriam ao seu lado um grupo de pensadores dotados de uma capacidade intelectual privilegiada, servindo como agente de construção de novos produtos, bens e mercadorias; de outro, a parceria traria aos cientistas instrumentos monetários e financeiros para viabilizar as pesquisas científicas, garantindo retornos interessantes para ambos os grupos sociais.

Mesmo tendo ideias fortes e estruturadas, a ascensão de novas teses religiosas em uma sociedade tradicional tende a demorar inúmeros séculos, se desvencilhar de pensamentos estruturados, tradicionais e arraigadas durante tanto tempo é sempre muito difícil, os grupos de resistência trabalham no sentido contrário, usando instrumentos, muitas vezes escusos, para impedir o crescimento dos novos princípios, isto acontece porque este grupo sabe que o novo pensamento tende a lhe tirar poder, diante disso, trabalham para poder reduzir-lhe  as forças e continuar a dominar a situação, continuando a angariar recursos, muitas vezes, escusos para seu prazer e interesses imediatistas e egoístas.

A inquisição, iniciada no século XII na França para combater o sectarismo religioso, se espalha por toda Europa e durante muitos séculos desafia as estruturas de poder, mandando para a fogueira pessoas que questionavam as ideias e as teorias da Igreja, muitos teóricos importantes foram queimados ou tiveram que se retratar, revendo suas descobertas e se retratando com o clero, sob pena de serem mortos de forma agressiva e violenta.

A inquisição pode ser vista como uma das últimas tentativas de reaver os espaços da Igreja que foram perdidos no continente, perseguindo intelectuais e buscando a fragilização das descobertas científicas, em algumas regiões os movimentos inquisitoriais foram mais fortes e perduraram por mais tempo, deixando marcas mais evidentes nestas sociedades como, por exemplo, na península Ibérica, região marcada pela coabitação entre portugueses e espanhóis, nesta região a repressão foi mais intensa, intelectuais foram perseguidos, mortos e obras importantes foram queimadas, objetivando fragilizar novas teorias e novos pensamentos científicos, o resultado destas políticas foram pouco efetivos e mesmo com a proibição o interesse por estas obras cresceu e as vendas foram maiores e mais consistentes.

O poder da Igreja era tão forte na península ibérica que, no século XIX, todos os livros que eram publicados nestes países precisavam passar pelo crivo da Igreja, sem sua autorização a obra era descartada sem justificativas maiores, isto aconteceu com os livros espíritas que foram importados para ser comercializados na Espanha e, sem a autorização do Clero, as obras foram apreendidas e queimadas em praças públicas, este fenômeno recebeu o nome de Auto de Fé de Barcelona, ocorrido em 9 de outubro de 1961, na cidade de Barcelona, Espanha.

Nestas reflexões, percebemos claramente que, nesta sociedade não existem mocinhos e nem bandidos, todos lutam por seus interesses imediatos, todos se utilizam de suas “armas” para garantir ou ampliar seus espaços dentro da sociedade, nesta situação percebemos que os setores tradicionais se acomodaram e, com isso, perderam espaço para novos agentes sociais, que perceberam as demandas da sociedade e se organizaram produtivamente para satisfazer estas novas necessidades, transformando suas ideias em recursos financeiros e em lucros amoedados.

O capitalismo baseado no protestantismo cresceu e se fortaleceu em regiões mais dinâmicas da sociedade capitalista, o incentivo ao empreendedorismo foi fundamental para este crescimento, angariando novos projetos, ideias e pensamentos empreendedores, motivando novas teorias e incentivando o conhecimento, a educação e a filantropia, um exemplo claro destes princípios, brilhantemente retratado pelo sociólogo alemão Max Weber em A ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, que destaca uma relação de integração entre os ideários do sistema capitalista de produção e as bases religiosas do luteranismo ou protestantismo, que pregava uma busca constante baseada em valores e preceitos éticos e morais.

A relação entre religião e sistema econômico sempre existiu, as religiões tem grande importância na sociedade, influenciam o comportamento das pessoas, as culturas e as formas de pensar, com a ascensão do capitalismo e seu poder econômico e financeiro, percebemos grandes alterações nesta sociedade, trazendo conceitos importantes para a berlinda, como empreendedorismos, inovação, metas e competitividade, o grande risco desta nova sociedade é que o sistema capitalista domine de forma tão intensa a sociedade, que passe a ser vista mais como uma religião do que como um instrumento de produção e distribuição de bens, mercadorias e serviços e transforme o ser humano em uma máquina alienada e inconsequente. O risco existe e nos parece mais e cada vez mais uma tendência inexorável, o ser humano está sucumbindo aos interesses e aos prazeres imediatos do capitalismo, do dinheiro e dos poderes materiais.

Pobreza e degradação social no Brasil contemporâneo

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O aumento da pobreza e da desigualdade social é um dos maiores desafios do capitalismo contemporâneo, vivemos em um mundo de constantes mudanças e transformações estruturais com graves impactos sobre as comunidades, gerando medos e desesperanças, esta desigualdade não está mais restrita aos países em desenvolvimento, mas afetam todos os países e regiões, obrigando os governos e as lideranças empresariais a repensarem as estratégias de combate a estes desajustes e melhorar as condições destes grupos mais vulneráveis.

A sociedade brasileira desde meados dos anos 90 passou a conviver com melhoras consideráveis na economia, a redução da inflação, os incrementos dos investimentos na educação, as políticas públicas e os avanços institucionais geraram um período de crescimento mais consistente, criando com isso, as expectativas de que uma nova classe média estivesse em ascensão e o país, felizmente, estaria melhorando suas condições econômicas e ingressando em um novo momento de progresso e de desenvolvimento social.

Depois desta euforia do período 2003/2012, onde o país apresentou crescimento anual na casa dos 4,3%, os avanços obtidos foram sendo perdidos e novos espaços de instabilidades foram sendo construídos de forma acelerada, as reivindicações de 2013 geraram mais instabilidades em um governo fraco e incompetente e contribuíram para mergulhar o país na sua mais intensa e demorada recessão, com forte degradação política e perdas consideráveis na renda agregada e um incremento no desemprego cuja recuperação econômica está se fazendo mais difícil e complicada, como não se imaginava anteriormente.

Dados recentes divulgados pelo Banco Mundial traduzem em números a nossa crise generalizada, segundo esta renomada instituição, entre 2014 e 2017, mais 7,3 milhões de brasileiros caíram na pobreza extrema e passaram a viver com renda mensal de até US$ 5,50 por dia, algo equivalente, pelo câmbio atual, a cerca de R$ 635 por mês, com isso, o grupo dos pobres cresceu de 17,9% para 21% da população nos anos da crise econômica, algo em torno de 40 milhões de pessoas.

A economia brasileira está entre as dez maiores do mundo e, mesmo assim, temos um contingente de pobres e miseráveis de quase 52 milhões de indivíduos, o total de brasileiros vivendo abaixo da linha de extrema pobreza saltou de 5,6 milhões para os 10,1 milhões entre 2014 e 2017, um incremento de 80% ou mais de 4,4 milhões de pessoas, tudo isto nos ajuda a compreender a explosão na área da insegurança e na violência urbana, somente em 2017 foram mais de 62 mil homicídios, um número semelhante a países que vivem em conflitos militares.

A crise econômica iniciada em 2014 foi responsável por grande parte destes números, nestes mais de cinco anos o Brasil conviveu com sua maior recessão, com uma queda no produto interno bruto de mais de 8% e um incremento no desemprego, que levou mais de 13 milhões de pessoa a verem sua renda ser reduzida e as perspectivas de retorno ao mercado de trabalho escasseando, gerando impactos imediatos na economia, reduzindo consumo e obrigando as empresas e os agentes econômicos a diminuir os investimentos.

Desde 2017, a economia não mais se encontra em recessão, o crescimento no último biênio foi de pouco mais de 1,1% ao ano, com isso, nossa renda agregada apresentou uma queda considerável, com previsão de volta aos números de 2013 apenas no ano de 2023, estamos vivendo uma situação sombria com forte degradação social e perdas crescentes para os trabalhadores, uma nova década perdida, diante disso, cabe aos movimentos organizados repensarem suas estratégias e construir alternativas para um futuro próximo, deixando de lado os conflitos por hegemonia e apresentar propostas consistentes para viabilizar novas politicas públicas para o incremento dos indicadores sociais tão devastados nos anos recentes.

Para que tenhamos ideia do tempo perdido pelo Brasil, a taxa média de crescimento econômico na década atual foi de 0,6%, sendo que, nos últimos 30 anos, foi de parcos 2,2%, números muito baixos e insuficientes para uma melhora mais consistente das condições econômicas e produtivas do Brasil. Este período foi marcado por políticas fortemente centradas no combate a inflação que assolava o país, com números na casa do 30% ao mês, onde para vencer os desequilíbrios nos mercados de preços foram adotadas as mais diferentes estratégias, desde congelamento de preços e tablitas a substituição da moeda corrente por uma nova base monetária, além de uma forte valorização cambial.

A trajetória de concentração de renda faz parte da história da sociedade brasileira, nossos números estão nos últimos lugares deste ranking vergonhoso, a população por mais que faça críticas crescentes a esta situação, já se acostumou com esta realidade assustadora e macabra, evitando um discurso político mais estruturado e consistente, fazendo de contas que esta situação está amplamente amparada num determinismo imutável, com isso, vamos vivendo e contribuindo para a perpetuação deste ambiente tenebroso.

Um dos livros mais instigante sobre o tema da desigualdade brasileira foi escrito por Pedro Ferreira de Souza, “Uma História da Desigualdade: a Concentração de Renda entre os Ricos no Brasil (1926-2013)”, uma obra de escol e leitura imprescindível, que retrata nossa histórica desigualdade social e como a população convive com esta chaga aberta na sociedade, para alguns a população é muitas vezes conivente com a desigualdade mas, com certeza, é pouco informada de como esta situação degrada os laços sociais e cria espaços para conflitos e desequilíbrios estruturais, incrementando a violência, a exclusão e a insegurança.

Vivemos em uma sociedade onde a mobilidade social é reduzidíssima, onde as chances de uma criança oriunda de uma favela carioca ou paulista crescer e se transformar em um profissional de destaque é algo desprezível, nesta sociedade somos governados pelos mesmos agentes públicos, com ocupações que passam de pais para filhos como se vivêssemos em um período feudal, onde a ascensão é desprezível, inexistente.

Como retratou Raimundo Faoro, no seu livro clássico Os Donos do poder, o poder público é indutor de nossa desigualdade, já que é exercido por grupos que administram a maquina pública para derivar benefícios do poder, privilégios e riquezas, esta descrição feita pelo ilustre intelectual em 1958, passados mais de sessenta anos, ainda se mantem bastante atual e preocupante, muitas vezes nos condenando a uma condição de indignidade e exclusão social.

A história da sociedade brasileira é uma história de violências constantes, inicialmente contra os indígenas, depois contra a população negra, fomos um dos últimos povos a abolir a escravidão, nossa elite agroexportadora explorou ao máximo os negros cativos e, ainda hoje, percebemos uma grande indiferença em relação a miséria e a violência generalizadas. Com estes atrasos históricos e a persistência nestas políticas, nos distanciamos a passos largos dos países mais civilizados no mundo que deixaram, a muito tempo, estas heranças escravistas e escravocratas nefastas que prejudicam a economia e retardam o desenvolvimento econômico e as melhorias sociais.

Existem muitas políticas para a redução desta pobreza, de um lado encontramos algumas teses interessantes que devem ser consideradas, tais como o aumento da tributação daqueles que auferem lucros elevados dentro do sistema econômico, principalmente dentro do sistema financeiro, temos uma estrutura tributária centrada nos impostos sobre consumo, tributamos muito pouco a renda e isentamos de impostos aplicações financeiras, com isso, estimulamos uma péssima concentração da renda, fazendo com que nossa situação se transforme em algo insustentável, onde uma pequena parte dos cidadãos são beneficiados enquanto uma grande quantidade são condenados a viverem em situação de degradação, incrementando a pobreza e a desigualdade social.

Temos muitas medidas imprescindíveis na pauta do país, desde a reforma da previdência, até as reformas tributária, política e do Estado, mas precisamos ainda, de reformas que estimulem a concorrência e o incremento da produtividade, reduzindo o papel do Estado em várias áreas através de parcerias público-privada, privatizações e a introdução de uma lógica de eficiência no setor público, ou seja, uma medida pró mercado que prescinda do Estado como agente fundamental no sistema econômico e produtivo.

O aumento da produtividade do trabalho pode ser traduzido como o chamado desenvolvimento econômico, sua efetivação leva a uma melhora nas condições sociais e aumenta as oportunidades de emprego e de renda, para isso, fazem-se necessárias uma maior qualificação do capital humano e uma educação de qualidade que capacite os trabalhadores para as grandes transformações da chamada Quarta Revolução Industrial.

Acreditamos fortemente na integração entre Estado e Mercado, cada um dos agentes possui um papel relevante dentro da sociedade, a atuação integrada é fundamental para garantir uma melhora mais consistente nos investimentos, na distribuição da renda, na geração de empregos e na condição social da população, atuando ainda como fiscalizador e regulador de todo o sistema econômico e produtivo, evitando sempre um crescimento exagerado de suas intervenções e seus resultados negativos, como excessos burocráticos e ineficiências generalizadas, além de um incremento da corrupção e fragilidade da democracia e do sistema político.

Um país com níveis de desigualdade como o Brasil, deve ter um projeto humanista de inclusão social, sem viés ideológico e não deve ser indiferente quanto a miséria de nosso povo, sobretudo esta miséria presente entre os descendentes de escravos, africanos e indígenas e, mais recentemente, de trabalhadores estrangeiros que fogem de seus países em busca de novas e melhores oportunidades de emprego e sobrevivência, muitos deles, como haitianos e venezuelanos, a chegada ao Brasil se dá em busca da sobrevivência.

A situação social do país é tão degradante que, segundo a Agência Nacional das Águas (ANA), 45% da população brasileira não tem acesso adequado a esgoto e a saneamento básico, com implicações diretas na saúde da população, ao mesmo tempo, temos uma tecnologia cada vez mais avançada na sociedade global, onde encontramos uma elite com acesso a serviços inimagináveis em países mais ricos e desenvolvidos.

O país vive momentos de grandes transformações e retrocessos evidentes, depois de um forte e consistente crescimento na primeira década do século XXI, os desajustes fiscais e os desequilíbrios criados no pós 2013 levaram o país a uma forte recessão, depois de mais de 8% de queda no produto interno bruto a economia voltou a crescer de forma tímida e insuficiente, este crescimento nos parece frágil em demasia, necessitamos de uma impulso com urgência, sem este, dificilmente conseguiremos melhorar nossa performance, depois de diagnósticos de forte crescimento em 2019, muitos analistas se mostram preocupados e estão refazendo seus cálculos para 2019, antes 3% de crescimento, hoje as previsões estão na casa dos 2%, pra mim o crescimento será menor, algo entre 1,5% e 2%, número insuficiente para melhorar nossa condição de atraso econômico.

A crise econômica degrada as condições sociais, aumenta a informalidade e reduz os trabalhadores formalizados do sistema, desta forma, percebemos uma redução dos repasses para as instituições previdenciárias e um incremento nos gastos públicos, como forma de reduzir os impactos negativos desta crise, levando o Estado a déficits crescentes que reduzem sua credibilidade perante os agentes econômicos locais e internacionais, encarecendo a captação dos recursos e inviabilizando sua atuação efetiva como investidor para impulsionar o crescimento dos investimentos, atitude esta central para turbinar o crescimento econômico.

O brasileiro acostumou com esta paisagem marcada pela desigualdade social, desde os primórdios somos descritos como uma sociedade desigual, os indicadores do IBGE ou de organismos internacionais, como o Banco Mundial ou a Oxfam, nos mostram claramente esta realidade, sem políticas públicas consistentes e efetivas dificilmente conseguiremos uma melhora neste ambiente, outro ponto central para a redução das desigualdades no médio e longo prazo é a educação, cujos resultados a sociedade brasileira deixa muito a desejar, diante disso, os desafios para o Brasil são imensos e devem ser vistos com urgência pela sociedade, unindo os movimentos sociais, a classe política e os grupos empresariais, deixando de lado os confrontos ideológicos e as picuinhas políticas e eleitoreiras.

Manifesto pelo crescimento econômico

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Este país precisa desesperadamente voltar a crescer para dissolução das demais necessidades

Jânio de Freitas – Folha de São Paulo, 07/04/2019

As necessidades deste país são em quantidade descomunal. Uma, acima de todas. Parece bem conhecida, e tanto não é, que não figura entre as prioridades emergenciais. Este país precisa desesperadamente de crescimento econômico. É disso que a dissolução das demais necessidades depende. É do crescimento econômico retomado com urgência que tudo depende neste país, no presente, agora mesmo, e para todo o futuro.

Evitar que este país seja engolfado pela violência que já mudou nossas vidas para muito pior. Salvar a democracia, não de ditaduras militares, que isso se resolve, mas da degradação que corre rumo ao fundo sem volta, onde democracia é impossível. Dar sentido, enquanto há tempo, à riqueza natural e aos potenciais humanos que não faltam aqui, no entanto utilizados em escala mínima e só para negócio proveitoso de uma “elite” que vive de costas para o país.

Salvar os que vivem na miséria, os que vive na pobreza, os da classe média já em decadência geral, salvar tudo e todos do que está acontecendo e se finge não ver. Salvar a vida deste país. Isto, só a partir do crescimento econômico é possível.

Os números terríveis no recente relatório do Banco Mundial, referentes ao Brasil, nem são da atualidade. Retratam o final de 2016: mais 7,3 milhões de pessoas caíram no fosso existencial dos que vivem com menos de US$ 5,50 por dia, ou R$ 21,20. Eram 36,5 milhões em 2014, dois anos depois já chegavam a 44 milhões. Sabemos, embora sem os números, o que lhes aconteceu depois de 2016, nos anos de Michel Temer e Henrique Meirelles.

Os que apenas parecem viver com menos de R$ 7,30 por dia (ou US$ 1,90) passaram, só naqueles dois anos, de 5,6 milhões para 10,1 milhões de seres humanos no que é chamado de “abaixo da linha de pobreza”. Na linguagem de pessoas, miséria extrema.

Naqueles anos, as prioridades foram o “déficit fiscal”, com o corte de gastos governamentais, e a criação do teto de despesas da administração pública. A riqueza de Temer cresceu até na madrugada do Jaburu. A de Meirelles foi de dia mesmo, nas aplicações especulativas protegidas, todas, pelo governo.

Este Brasil mudara, porém. Encontrava-se. Monica de Bolle, diretora de estudos latino-americanos da Johns Hopkins University, antecipa sua identificação política e ideológica, em Época (sem data na página destacada): “Não tenho qualquer simpatia pelo PT, embora credite ao governo Lula a redução da pobreza e a formalização do mercado de trabalho que mudaram o país”.

Pesquisador de economia da Fundação Getulio Vargas e sócio da consultoria Reliance (pronúncia em inglês, por favor), o “liberal” Samuel Pessôa: (…) “no melhor período que tivemos, os anos Lula, quando crescemos 4% em termos reais” (Folha, 31/03/2019).

O autor desses “anos Lula” está completando um ano trancafiado em pequena cela, condenado a 12 anos e 1 mês. Ao encerrar-se, seu governo recebeu 82% de aprovação, índice sem precedente. Por que está preso? Por crime provado não é, se o então juiz Sergio Moro e os desembargadores do TRF-4, em Porto Alegre, não encontraram a prova de que precisavam: atribuíram o alegado suborno a um “fato indeterminado”. Mas se o motivo do suborno não é conhecido, o próprio suborno não é conhecido. E não pode haver condenação pelo que nem se sabe se existiu.

O motivo da prisão foi a combinação lógica de “melhor período que tivemos” e 82% de aprovação. Logo, probabilidade incomparável de vitória na eleição presidencial de 2018. A “elite” econômica, os seus servos e interesses externos temeram que outro governo Lula não fosse tão complacente e mesmo colaborativo quanto o anterior, e avançasse para reformas verdadeiras. Em busca de mais crescimento, soberania de fato, menos injustiça social —mau exemplo na América Latina.

Dizer que o êxito do governo Lula deveu-se sobretudo a condições externas favoráveis é fácil, mas é mentira do elitismo neoliberal. Em 2008, o governo Lula encarou a grave crise internacional difundida pelos Estados Unidos. Os efeitos do crescimento sustentaram o Brasil e o comprovaram na aprovação crescente.

O “melhor período que tivemos” e os 82% ficaram como demonstração definitiva, para todo observador honesto, de que a prioridade ao “crescimento real” independe de falsas reformas preparatórias, é necessário e urgente.

 

Imigração virtual inaugura nova fase da globalização e vai beneficiar emergentes, diz especialista

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Para Richard Baldwin, tecnologias vão impulsionar contratação de estrangeiros e ceifar empregos nos países ricos

Raquel Landim – Folha de São Paulo – 07/04/2019

Um dos principais especialistas do mundo em comércio, Richard Baldwin, professor do Instituto de Graduação de Estudos Internacionais e do Desenvolvimento, em Genebra, na Suíça, vai na contramão dos seus pares.

Ele não acredita que a globalização esteja retrocedendo, mas entrando em uma nova fase ainda mais polêmica: a imigração virtual.

Em linhas gerais, imigração virtual são profissionais que moram num país, mas trabalham em outro, por meio de novas tecnologias: Skype, Facetime, softwares de trabalho coletivo, sala de reuniões online, equipamentos de tradução instantânea e até telerrobôs.

“A diferença de preços dos serviços entre nações ricas e países emergentes chega a 10 a 20 vezes. Veremos muito profissionais de Brasil, Argentina, Quênia, Ucrânia, Índia trabalhando para empresas em Nova York e Londres.”

Autor de “Globotics Upheaval” (A revolução dos robôs globais), Baldwin diz que a nova onda representará enorme oportunidade para trabalhadores das nações emergentes, mas também vai gerar mais revolta nos países ricos, favorecendo movimentos populistas.

O senhor costuma dizer que o futuro da globalização será muito diferente do que ocorreu nos últimos anos. Por quê?

A globalização nada mais é do que uma arbitragem de preços. As empresas exploram as diferenças de preços para produzir ou comprar produtos onde são mais baratos e vender onde são mais caros.

Para lucrar, é preciso levar os produtos de um país ao outro. Por isso, até agora, entendemos a globalização como troca de produtos. Por exemplo: você planta café no Brasil e entrega de navio na Europa.

Vamos focar agora os serviços profissionais. Frequentemente, a diferença de preços de serviços profissionais entre as nações ricas e os países emergentes, como Brasil, Argentina, Quênia, Ucrânia ou Índia é de 10 a 20 vezes.

Até agora não era possível arbitrar esses preços, porque os serviços são vistos como não comercializáveis, pois exigem que as pessoas estejam frente a frente. Só que a tecnologia digital está tornando as pessoas mais próximas.

Como a diferença nos preços dos serviços é muito alta e a tecnologia avança muito rápido, a globalização vai ser transformada pelo que chamo de imigração virtual.

O que é imigração virtual? 
Comecemos por algo já bastante difundido: trabalhar uma ou duas vezes por semana de casa, sem ter de ir ao escritório. A imigração virtual é a mesma coisa, só que a nível internacional. Profissionais que moram num país e trabalham num escritório que fica em outro país.

Esse trabalho freelancer internacional já é relativamente comum em alguns setores, como desenvolvimento de software ou em grandes bancos. Nessas áreas, pessoas de um mesmo time estão situadas em países diferentes e se comunicam pela internet para fazer um projeto em conjunto.

Tenho um amigo na Suíça que desenvolve sites para empresas. Ele trabalha de casa ao lado de alguns computadores. Em uma das telas, está a imagem de um programador do Paquistão; na outra, um especialista em experiência dos usuários do Canadá; em outra tela, um designer uruguaio.

Eles trabalham juntos por alguns dias para fazer determinado site. Conversam o tempo todo e usam um software colaborativo. Mas, como o paquistanês está satisfeito em receber US$ 10 (R$ 39) por hora, o projeto fica muito mais barato do que se todos morassem na Suíça.

Já faz tempo que as empresas instalaram call centers na Índia ou que há colaboradores estrangeiros em empresas de software. Por que o sr. acredita que o fenômeno será mais generalizado e rápido agora?

Em meu livro, explico em detalhes quatro fenômenos que vão colaborar com o processo. O primeiro é a experiência das pessoas de trabalhar em casa. Nos EUA, isso é muito comum.

As empresas estão se adaptando com a adoção de novos softwares para tornar o trabalho de casa mais fácil. Essas mudanças abrem a porta para a imigração virtual, pois rapidamente as companhias vão perceber que dá para contratar um estrangeiro que vai cobrar muito menos.

O segundo ponto é a melhora das telecomunicações: a qualidade do Skype, do Facetime e de outras tecnologias mais sofisticadas. A possibilidade de reuniões virtuais.

Há outra tecnologia bem divertida chamada de telerrobôs. Conto no meu livro a história de uma jornalista de tecnologia que trabalha no escritório em San Francisco, mas mora em Boston. Ela dirige o robô pela Redação e fala com as pessoas como se estivesse lá.

E as barreiras linguísticas? Nem todos falam inglês. 

Este é o terceiro ponto: a tradução por máquinas vai quebrar essas barreiras. Nos últimos tempos, tivemos uma revolução nessa tecnologia.

A ONU deixou online milhões de sentenças traduzidas dos debates em seis idiomas nos últimos 40 anos. Isso facilitou a aprendizagem das máquinas, e o algoritmo agora não traduz palavra por palavra, mas frase por frase, o que melhorou muito o resultado.

Dê uma olhada nesse aplicativo. Vamos testar [Ele abre um app do Google que traduz rapidamente uma frase da repórter para o inglês e outra dele para o português. O resultado é muito bom].

Veja também essa tecnologia [Agora com outro app o professor direciona a câmera do celular para o bloco de anotações da repórter e o texto é traduzido automaticamente do português para o inglês].

Provavelmente, a tradução pela máquina nunca vai ser perfeita, mas, como sabemos, executivos americanos têm discussões com executivos estrangeiros que não falam inglês perfeitamente, todos os dias, e isso é suficiente. Não falar inglês não será uma barreira para prestar serviços no exterior.

E o quarto fator? 

O surgimento de sites que servirão como plataformas de contratação de profissionais. O maior hoje no mundo é o upwork.com, mas há muitos outros.

Esses sites vão tornar mais fácil para as empresas encontrar profissionais estrangeiros. Também vão propiciar o pagamento dos serviços e trazer alguma segurança para quem está contratando.

Gosto de pensar nessas plataformas como um contêiner, que, em vez de produtos, transporta serviços.

Em que profissões a imigração virtual será mais forte? 

É melhor não focar ocupações, mas tarefas. Todo trabalho é uma lista de tarefas. Algumas podem ser feitas por uma pessoa no exterior, outras não.

No caso de um jornalista, alguém pode remotamente marcar suas viagens, digitar suas anotações, ouvir suas gravações. Essa pessoa certamente não pode escrever seu artigo, mas tem condições de fazer todas essas outras coisas.

Um contador brasileiro não conhece a legislação americana. Contudo, tem muito trabalho em contabilidade que é basicamente analisar um monte de números para ver se batem. Pelo preço de um contador medíocre nos EUA, é possível contratar os melhores no Brasil.

Qual será a direção do fluxo de imigrantes virtuais? Das nações emergentes rumo aos países ricos? 

Principalmente. Quando pensamos nas nações emergentes avançadas, temos trabalho de qualidade a baixo custo, sejam médicos, enfermeiras, professores.

Globalização sempre representa oportunidades para os cidadãos e as empresas mais competitivas e desafios para os menos competitivos.

Como nos emergentes o custo do trabalho é menor, esses cidadãos serão mais competitivos. Mas existem pessoas nos países ricos que são competitivas globalmente. Alguns engenheiros americanos, por exemplo, vão exportar seus serviços para o Brasil.

A imigração virtual, portanto, vai funcionar em ambos os sentidos, mas a vantagem competitiva dominante será dos emergentes. Mais especificamente na classe média das nações de renda média.

Infelizmente não é para todos. Para se beneficiar desse fenômeno, o trabalhador precisa de computador e  internet e de qualificações que exigem alguma educação formal. Não vai atingir os países muito pobres nem todos no Brasil.

Essa mudança, portanto, significa enorme oportunidade de exportação para países como Brasil, África do Sul, Quênia. O milagre dos países emergentes vai se espalhar.

Só que o novo modelo de desenvolvimento vai ser mais parecido com a Índia do que com a China. Todos querem se parecer com a China e exportar carros e celulares, mas esse trem já passou. A Índia também se desenvolveu rápido e exporta poucos produtos.

A insatisfação com a globalização e a imigração facilitou a chegada ao poder de grupos de extrema direita. Qual vai ser o impacto dessa nova onda de globalização na política? 

Nos países ricos, vai ser muito disruptivo. Empregos profissionais —os chamados do colarinho branco— serão perdidos rapidamente. Essas pessoas vão se juntar às que perderam seus postos de trabalho na indústria. Será chocante e pode levar a revolta.

Isso dará ainda mais combustível à extrema direita?

Vai encorajar movimentos populistas, mas não necessariamente de extrema direita.

Há, porém, um atenuante. As pessoas que se sentiram deixadas para trás pela globalização e ajudaram a eleger Donald Trump ou a aprovar o brexit vivem em cidades pequenas, onde não há novos postos de trabalho.

Essa nova tendência vai atingir as cidades grandes. Portanto, será mais simples para esses trabalhadores se reinventarem e eventualmente conseguirem novas ocupações. Isso pode tornar o fenômeno menos doloroso.

Os governos deveriam fazer algo a respeito?

Sim. Nos países ricos, a melhor maneira de reagir é ajudar as pessoas a mudar de trabalho. Alguns políticos defendem que deveria existir uma renda mínima universal, mas não explicam como vão pagar por isso.

Nos países emergentes, como o Brasil, os governos podem auxiliar os trabalhadores a aproveitar essa oportunidade. Um exemplo é oferecer certificações para ajudar as empresas lá fora a saber direito quem você é e o que sabe fazer.

No Quênia e nas Filipinas, por exemplo, os governos estão treinando os profissionais mais jovens, porque acreditam que as novas tecnologias são uma solução para o desemprego entre os mais jovens.

As leis internacionais terão que mudar para se adaptar à nova realidade?

Já existe na OMC (Organização Mundial do Comércio) um acordo sobre o comércio de serviços. Também existem regras sobre comércio eletrônico, serviços bancários, etc. Não acredito que será um problema.

A área em que será mais complicado é a taxação. Onde esses trabalhadores vão pagar impostos? Hoje, em lugar nenhum. Os países terão que fazer algo a respeito.

Na reunião de Davos, conversei com o CEO da upwork.com sobre isso. Ele me disse que fornece informações ao governo dos Estados Unidos sobre seus freelancers americanos. Logo, a princípio, as pessoas teriam que declarar essa renda.

Mas também me contou que outros países nem sequer pedem os dados. A princípio, a melhor maneira seria trabalhar por meio das plataformas. Solicitar a elas que informem o quanto as freelancers estão ganhando. Nesse caso, os impostos seriam pagos onde as pessoas vivem e não onde trabalham.

O senhor acredita que o protecionismo poderá interromper essa tendência?

Não acredito. É verdade que algumas medidas, como regulação de privacidade ou restrição de dados, podem desacelerar o fenômeno. Mas, no final das contas, vai escapar pelas frestas.

Os governos têm boas maneiras de controlar o trânsito de produtos e pessoas em suas fronteiras, mas não conseguem fazer quase nada sobre serviços. A não ser que façam como na China e bloqueiem toda a internet.

No entanto, posso lhe dar um exemplo de uma área em que a restrição funciona. Na Suíça, existem leis muita rígidas para sigilo bancário. Se os dados de um cliente deixam o país de propósito, você vai para cadeia. Se acontece por acidente, a multa é de centenas de dólares.

Por causa disso, os bancos suíços não contratam nenhum tipo de serviço no exterior. Neste caso, é uma escolha. Os serviços bancários suíços são excelentes, mas muito caros.

Richard Baldwin Professor do Instituto de Graduação de Estudos Internacionais e do Desenvolvimento, em Genebra; economista formado pela Universidade de Wisconsin-Madison, fez pós-graduação no MIT sob a supervisão do ganhador do Prêmio Nobel Paul Krugman; é autor de “The Globotics Upheaval” (A revolta dos robôs globais)

Desafios da democracia no capitalismo contemporâneo

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A sociedade internacional está envolta em grandes problemas estruturais, cuja resolução exige uma atuação consistente e integrada entre inúmeros países das mais variadas regiões, deixando de lado conflitos e desentendimentos em prol da sustentabilidade do sistema capitalista global, dentre estes desafios destacamos o incremento das imigrações, a degradação do meio ambiente, o incremento acelerado na desigualdade, a perda de espaço da democracia e o crescimento excessivo do mercado financeiro que passou a ditar a agenda e influenciar nas decisões, gerando desequilíbrios e desajustes globais com impactos locais, aumentando a pobreza e fragilizando os Estados Nacionais.

Diante de tantos desafios, alguns países desenvolvidos estão estimulando discussões mais intensas sobre esta nova sociedade, cujas constantes crises podem gerar um degradação cada vez mais acelerado do sistema capitalista, gerando um incremento maior da pobreza e da marginalidade e desnudando um mundo cada vez maior, onde o desenvolvimento tecnológico e o aumento da produtividade estão levando a uma dualidade perigosa, de um lado encontramos ilhas de riquezas, marcadas pelo luxo e pela ostentação e, de outro, regiões inteiras de pobreza, marginalidade e exclusão social.

O aumento da desigualdade internacional veio a tona de uma forma mais intensa, gerando discussões incessantes, quando o economista francês Thomas Piketty publicou a obra O capital no século XXI, onde o autor analisou o crescimento da pobreza na maior parte da comunidade global e o aumento da renda de uma parcela reduzida da população percebendo, com isso, um incremento acelerado na concentração da renda mundial, onde um pequeno grupo de cidadãos passou a controlar o sistema e impor políticas de seus interesses.

Segundo dados contidos na obra do economista francês, a concentração de renda chegou a números assustadores e escandalosos, por estes números se percebeu que 1% da população mundial, algo em torno de 70 milhões de pessoas, controla mais de 50% da renda global, números estes parecidos com a concentração de renda no início do século XX, ou seja, nestes mais de 100 anos mesmo passando por um período de forte crescimento econômico e desenvolvimento tecnológico, os frutos das riquezas acumulados pela sociedade mundial está se concentrando nas mãos de poucos, ou melhor, de muito poucos.

Nesta sociedade marcada por um crescimento da desigualdade e pela concentração de renda, as condições de vida dos indivíduos estão piorando, a geração contemporânea não vai conseguir acumular os recursos de seus antepassados criando, com isso, um incremento da intolerância, das violências generalizadas, dos conflitos e dos constrangimentos, que acontecem em todas os países e regiões, destes os considerados ricos e os descritos como pobres ou em desenvolvimento.

Nesta sociedade marcada pelo crescimento da concorrência e da competição, os desequilíbrios emocionais estão crescendo de forma acelerada, os afastamentos de trabalhadores em decorrência de problemas ocupacionais, estresse, depressão e transtornos generalizados estão crescendo de uma forma jamais vista, levando os organismos internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS), a criar campanhas de esclarecimento  em todas as regiões, objetivando entender e minimizar estes desequilíbrios crescentes, cujos prejuízos ao sistema são crescentes, na casa dos bilhões de dólares.

As alterações no mundo do trabalho estão gerando muito medo e desesperança, a perda do emprego é mais do que a perda de uma fonte de renda monetária, o emprego na sociedade capitalista é uma forma de sobrevivência digna, uma forma de inserção social decente e uma forma de construir uma história marcada por trabalho e ascensão social, com as mudanças na estrutura dos mercados de trabalho marcada pela redução exponencial dos postos de emprego, encontramos um incremento dos desequilíbrios, dos desajustes e das decepções, incrementando xenofobismo e violências crescentes e generalizadas.

O capitalismo internacional está em um momento de grandes incertezas, com isso, os grandes empresários e os governos estão buscando novos instrumentos para evitar um debacle maior, o mainstream se mostra preocupado com os rumos da sociedade global, como nos mostra a fala do economista indiano Raghuram Rajan, professor da Universidade de Chicago e ex-presidente do Banco Central da Índia, no seu novo livro The third pilar: “Se as pessoas perderem a fé em sua capacidade de competir no mercado, se suas comunidades continuarem a declinar, se elas sentirem que a elite se apropriou de todas as oportunidades em benefício próprio […], o ressentimento popular pode se transformar em raiva”.

A situação de degradação do sistema está crescendo de forma generalizada na sociedade internacional, os movimentos sociais estão se organizando para resistir aos avanços desta degradação, na França temos os movimentos dos coletes amarelos, nos países europeus percebemos o desconforto com a chegada de imigrantes de regiões conflagradas e em conflitos militares e de resistência, na Venezuela, um dos maiores produtores mundiais de petróleo, a situação se degrada rapidamente, colocando em lados opostos potências nucleares como os Estados Unidos, a Rússia e a China, nos lembrando de momentos sombrios da chamada Guerra Fria.

Nesta situação de medos e incertezas, percebemos o crescimento nas várias regiões do mundo, a ascensão de governos e grupos políticos de direita ou extrema direita, com fortes traços totalitários, como o do presidente norte-americano Donald Trump, do Hungaro Victor Orbán, do turco Recep Tayyip Endorgan, do italiano Matteo Renzi, do brasileiro Jair Bolsonaro, dentre outros, todos oferecem aos seus compatriotas respostas frágeis e insuficientes aos graves problemas que afetam seus países e amedrontam suas populações, agindo como verdadeiros líderes populistas.

Diante da ascensão destes políticos de direita ou de extrema direita, muitos teóricos discutem se a democracia está sofrendo algum risco na sociedade internacional, este risco sempre existiu, as forças totalitárias existem em todas as regiões e países, sempre buscando subverter a ordem dominante em prol de seus interesses imediatos, defendendo medidas populistas e bradando contra os estrangeiros ou os imigrantes.

O capitalismo globalizado controlado pelas grandes empresas transnacionais subverte a lógica política e transforma as instituições democráticas em espaços de perpetuação de interesses privadas, condenando uma grande parte da população as migalhas dos orçamentos públicos e aos serviços públicos de péssima qualidade, aumentando a insatisfação da população com as elites econômicas e com a classe política, fragilizando as bases da democracia.

Com o desenvolvimento tecnológico e com o incremento da concorrência e da competição, não mais em nível local mas em escalas internacionais, regiões inteiras estão sendo degradadas, estruturas produtivas estão sendo transferidas para outras regiões e condenando a população destas regiões ao desemprego e a indignidade, obrigando governo e comunidades locais a buscarem, em treinamento e políticas de qualificação, novas forma para inserir estes trabalhadores neste universo produtivo, em outras áreas e em outros setores, sob pena de recair sobre os governos novos dispêndios fiscais para resgatar estes cidadãos de exclusão social.

A tecnologia está impondo aos trabalhadores uma nova lógica de qualificação, de treinamento e de constantes atualizações, obrigando-os a se entregarem, cada vez mais, ao mundo do trabalho e da produção, aumentando sua carga de trabalho e deixando tempos cada vez mais restritos a seus familiares e, principalmente, para si próprio, com isso, percebemos novas patologias surgindo, gerando incertezas, medos e desesperanças.

Doenças ocupacionais estão em alta, desequilíbrios emocionais estão em franco crescimento, a depressão atinge mais de 400 milhões de pessoas na sociedade internacional, o suicídio cresce de forma acelerada, a ansiedade se tornou um caso de saúde pública e as drogas ganham força e movimentam mais de 500 bilhões de dólares ao ano, se transformando em um dos negócios mais rentáveis da economia mundial, com cartéis mexicanos controlando espaços antes sob proteção estatal, gerando um estado paralelo, muitas vezes mais organizado e bem quisto pela população do que muitos Estados oficiais.

Desde a grande crise internacional de 2008, está ganhando força na sociedade e nas comunidades mundiais, a convicção generalizada de que o sistema capitalista atual é um grande gerador de privilégios para uma pequena elite endinheirada, banqueiros, acionistas e grandes industriais, onde muitos trabalham em demasia e recebem pouco, enquanto poucos vivem de renda e de aplicações polpudas e generosas, pagas pelos juros investidos em títulos públicos por todos os governos, principalmente pelos governos que apresentam problemas fiscais e grande degradação em suas finanças públicas.

O capitalismo ganhou força na sociedade internacional ao enfraquecer o sistema anterior, o feudalismo, trazendo como vantagem a possibilidade sempre vislumbrada de ascensão social via trabalho honesto e digno, esta possibilidade ganhou força com o crescimento das teses de Martinho Lutero, estas ideias contribuíram para a fragilização do antigo regime e o crescimento do sistema do capital, garantindo aos trabalhadores a possibilidade de ascender socialmente, inaugurando, uma nova organização social, onde o esforço individual seria reconhecido com uma melhora financeira, social e nas condições de vida.

Na sociedade contemporânea, percebemos mudanças bastante assustadoras, a ascensão social via estudo, trabalho e dedicação, que foi inaugurada pelo capitalismo, vem sendo questionada pela organização da nova economia, os empregos estão sendo reduzidos e as regiões estão sendo substituídas facilmente, fragilizando os Estados Nacionais e colocando em xeque a ética protestante, substituindo-a por uma organização social centrado no imediatismo, no individualismo e na indiferença.

Neste ambiente de crises generalizadas e instabilidades constantes, a democracia se encontra ameaçada e pode sucumbir de forma indireta, os governos ascendem democraticamente e governam de forma mais autoritária, como nos mostram Steven Levitsky e Daniel Ziblatt em Como as democracias morrem, fragilizando a imprensa, criminalizando a política, trazendo novas narrativas sobre fatos históricos, garantindo privilégios a setores organizados e adotando políticas populistas que postergam a resolução de problemas estruturais, a reversão desta crise da democracia no cenário mundial só será resolvida com mais democracia, mais educação e mais discussões políticas.

Outro ponto central para entendermos esta crise da democracia mundial é uma análise do poder do grande capital na sociedade global, neste momento os governos estão prostrados perante os donos do poder, as regulações construídas anteriormente foram desbaratadas, assim como está sendo feita nos Estados Unidos na atualidade, gerando um capitalismo financeiro dominante e centrado num negócio que mais parece um grande cassino, sem regras claras e coerentes, onde os grandes ganhadores são os detentores do dinheiro e os excluídos continuam sendo, sempre, a massa degradada, condenada a um trabalho angustiante e com pouquíssimas possibilidades de ascensão social, mas com grandes possibilidades de desenvolver doenças emocionais e espirituais.

O crescimento do poder dos grandes conglomerados levou os donos do capital a comprar a classe política e, através dela, aprovar leis e medidas que melhoravam as condições para estas empresas, subvertendo o sistema econômico em prol dos detentores dos recursos financeiros e transformando a classe política em uma filial dos grupos econômicos, neste ambiente temos uma democracia enfraquecida, onde uma parcela substancial da população mundial vive a margem da sociedade global e não usufrui dos ganhos gerados pela tecnologia e pelos avanços da ciência e do conhecimento, se mantendo na miséria e na indignada, criando espaços para violência e degradação.

A crise do sistema é tão evidente que no âmbito da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), os governos estão estimulando grandes discussões sobre as raízes da crise e as limitações do modelo atual, nestas discussões alguns consensos foram construídos, o crescimento da desigualdade e o incremento da exclusão social é uma realidade contemporânea e uma solução deve ser pensada com urgência, como a possibilidade de maior taxação para estes grandes conglomerados e a reversão destes recursos para uma política pública mais efetiva, onde os mais frágeis sejam beneficiados destes recursos para que consigam estruturar uma vida de maior bem-estar e mais segurança e estabilidade.

Os desafios são gigantescos e exigem uma organização e uma integração global, onde não apenas os países e seus governantes, mas as empresas e os grandes conglomerados, além de sindicatos, partidos políticos e trabalhadores se conscientizem de que a salvação do sistema é fundamental para todos, afinal, um mundo com mais guerras, violências e instabilidades interessa a poucas pessoas e estas devem ser combatidas, sob pena de que uma revolução social generalizada leve a uma destruição em todas as regiões.

Com Estados fracos e sem poderes econômico e político para impor seus interesses aos agentes econômicos, dificilmente a democracia conseguirá se mostrar presente nesta sociedade, impondo ao grande capital uma regulamentação mais rígida e consistente para evitar equívocos que levam a concentração dos mercados e prejuízos aos grupos mais frágeis e deficientes.

O fortalecimento do Estado democrático de Direito e dos canais políticos legítimos de negociação política devem ser consolidados, taxação e regulamentação de grandes empresas e conglomerados econômicos, combate a formas degradantes de trabalho e de exploração no mundo do emprego, uma maior capacitação dos trabalhadores para sobreviverem no mundo contemporâneo e políticas públicas efetivas para reduzir as desigualdades e a exclusão social crescentes nesta sociedade, todas estas políticas devem ser tomadas a nível global, envolvendo todos os grandes atores da geopolítica, Estados, grandes empresas e trabalhadores mas, para isso, as instituições devem abrir mão das rivalidades históricas e pensar na possiblidade de, se a situação continuar da forma como está, uma revolução global terá início nos próximos anos com danos irreversíveis para o planeta Terra e todo o meio ambiente, além de mortes e degradação em todas as regiões do globo.

Reforma da Previdência: o futuro está em jogo

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Guilherme Boulos

O Brasil precisa saber o que está em questão com a reforma da Previdência apresentada pelo governo Bolsonaro. É verdade que o aumento da expectativa de vida traz um debate sobre o financiamento do sistema previdenciário. É verdade que precisamos enfrentar privilégios para assegurar direitos. Mas a proposta do governo não resolve nenhuma dessas questões e ainda cria novos problemas. O marketing de uma “Nova Previdência”, que garanta as aposentadorias no futuro, não para em pé.

O grande objetivo da reforma é fazer uma transição radical de modelo: desmontar a Previdência pública, com suas três fontes de financiamento –trabalhador, empregador e Estado– e colocar em seu lugar o regime de capitalização, financiado unicamente pelos próprios trabalhadores e gerido por bancos privados.

Ao contrário do regime de solidariedade entre gerações, consagrado na Constituição de 88, na capitalização impera o cada um por si.

Quem pode faz poupança individual nos bancos e garante uma aposentadoria com dignidade. Quem não pode estará condenado a condições indignas de aposentadoria ou a trabalhar até morrer.

O argumento de que as pessoas vão poder optar pelo INSS ou a capitalização é uma falácia. Por duas razões. Primeiro, num país com 37 milhões de trabalhadores informais é absurdo supor que a maioria conseguirá comprovar 20 anos de contribuição; 40 anos, então, nem se fale. Já com as regras atuais, apenas 29% se aposentam por tempo de contribuição. As mulheres e trabalhadores rurais serão ainda mais afetados com o endurecimento das regras.

A segunda razão é que o direito de escolha do trabalhador não existe numa economia com alto desemprego. Se quiser optar pelo INSS, a empresa terá de entrar com sua cota de contribuição. Na Previdência privada, ela estará desobrigada. Alguém acredita que uma empresa contratará quem opte pelo regime público?

O objetivo é impor a capitalização como modelo. A questão é que nele não cabem todos. O Chile é um exemplo. Após a implantação da capitalização na ditadura de Pinochet, o país produziu um surto de miséria entre idosos. Hoje, 80% dos aposentados recebem menos de 1 salário mínimo, por não conseguir garantir poupança individual.

A parte mais covarde é a “alternativa” oferecida aos que não consigam entrar no jogo da capitalização: benefícios sociais abaixo do salário mínimo. O Benefício de Prestação Continuada (BPC) garante hoje 1 salário para idosos pobres, a partir dos 65 anos. Atende 5 milhões de pessoas, representando em média 80% de sua renda. É a garantia de comida na mesa para muita gente. A proposta é permitir esse ganho apenas a partir dos 70 anos e, aos 60, garantir um valor pífio de R$ 400.

Os efeitos contra os mais pobres são devastadores. E também afetam a economia do país. As aposentadorias e benefícios previdenciários representam a maior movimentação econômica para 70% dos municípios brasileiros. Como disse reservadamente um prefeito da base bolsonarista a um amigo governador: “Se aprovar isso, na minha cidade não se vende mais nem um quilo de carne”.

Em vez de permitir um equilíbrio da Previdência, a reforma deve piorar a situação. E não apenas pelo efeito depressor na economia, mas também porque –com a Previdência privada– muitos deixarão de contribuir para o INSS. O resultado será uma descapitalização da Previdência pública, podendo, aí sim, criar um rombo insustentável, especialmente na transição. O objetivo de Paulo Guedes não é equilibrar a Previdência, mas entregá-la aos bancos.

Não é verdade que a única saída para o Brasil é fazer uma reforma que ataca direitos. É preciso ter coragem para enfrentar privilégios do poder econômico. Só a renúncia fiscal do INSS, com desonerações e isenções, representa cerca de R$ 57 bilhões ao ano. A taxação de fortunas, grandes heranças e lucros e dividendos –que defendemos nas eleições do ano passado– poderia representar arrecadação de R$ 120 bilhões ao ano para Previdência e políticas sociais. E por que não implementar um Imposto Especial sobre o Lucro dos Bancos, como fez a Hungria em 2010 para sair da crise?

O que está em jogo é que futuro queremos: uma sociedade baseada no princípio da solidariedade, que acolha seus idosos, ou então no “cada um por si”, que leve a maioria deles a uma aposentadoria indigna. A hora de definir é agora. Ainda dá tempo. Vamos hoje às ruas de todo o país em defesa de nossos direitos.

Guilherme Boulos

Ex-candidato à Presidência da República pelo PSOL (2018) e militante da Frente Povo Sem Medo

 

Privatização, abertura econômica e desburocratização: a agenda neoliberal

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Muito se discute do programa econômico do governo do presidente Jair Messias Bolsonaro para a economia brasileira, liderado pelo Ministro da Economia, o economista Paulo Guedes, neste programa as ideias neoliberais ganham força e se espalham pelos arredores de Brasília, marcadas por uma crítica feroz ao Estado brasileiro e sua atuação marcada pela ineficiência, pelo desperdício e muitas vezes pela corrupção, os neoliberais propõem uma abertura econômica acelerada, uma desregulamentação financeira e uma redução do número de empresas estatais, além de uma considerável redução da burocracia e da estrutura tributária.

Analisando o fortalecimento do pensamento neoliberal, percebemos muitas medidas importantes e necessárias que precisam ser tomadas com urgência, visando uma melhoria na estrutura econômica, destravando os investimentos e abrindo espaço para que o ambiente de negócios, termo caro aos adoradores do mercado, se consolide e a economia volte a crescer de forma acelerada, fato este que deixou de acontecer desde os anos 1970, num momento marcado por forte autoritarismo e repressão.

Os economistas neoliberais pregam a urgência das reformas previdenciária, tributária e fiscal, acreditamos que todas estas reformas sejam muito importantes e fundamentais para o crescimento e para o desenvolvimento do país, porém devemos destacar quais os objetivos destas reformas, se são apenas para melhorar as condições fiscais ou se para promover uma melhora considerável na distribuição da renda e na equidade social, estas questões envolvem discussões políticas e devem ser feitas de forma mais ampla e democrática, o que acreditamos que não acontecerá.

Uma das políticas mais efetivas nos discursos dos teóricos neoliberais é com a necessidade urgente de uma desburocratização da economia brasileira, somos uma sociedade que traz nas veias os arroubos burocráticos, nossa experiência fez surgir uma burocracia que tem vida, pessoas sobrevivem e se reproduzem através desta burocracia, toda e qualquer proposta de eliminação gera movimentos organizados em todos os entes federativos, levando os governos a desistirem deste embate, com isso, nossa burocracia se perpetua no tempo e inviabiliza a modernização e a maior eficiência do Estado.

As privatizações são aventadas como forma de melhorar a eficiência do sistema econômico, retirando o Estado de setores produtivos e abrindo espaço para os investimentos privados, vistos pelos neoliberais como mais eficientes e capacitados para melhorar as condições da competitividade e da produtividade do sistema, garantindo uma maior condição para concorrer em um ambiente fortemente marcado pela competição.

Temos mais de 440 empresas estatais passíveis de serem privatizadas, nesta conta inserimos as estatais dos três níveis de governo (União, estados e municípios), destas, 134 são de propriedade do governo federal, dentre elas encontramos grandes empresas que muito interessam aos grandes empresários nacionais e estrangeiros, muitas delas são de difícil privatização, mas outras poderiam, facilmente, ser repassadas a iniciativa privada, gerando recursos para uma agenda de maior competitividade da economia, melhorando sua governança e consolidando seus indicadores econômicos e produtivos.

Segundo os neoliberais, a transferência de empresas estatais para a iniciativa privada traria ao governo, recursos financeiros para uma melhora nas finanças públicas e uma significativa diminuição do número de funcionários públicos, reduzindo, com isso, os espaços de atuação dos grupos políticos que veem nestas empresas um amplo local de indicações de apadrinhados e colaboradores, nem sempre qualificados para o cargo, abrindo espaço para a corrupção e para a ineficiência do Estado brasileiro, como está sendo constatado pelas investigações em torno da Operação Lava Jato, que desbaratou muitas práticas nocivas para a coletividade, prendeu políticos, empresários e conseguiu ressarcir os cofres públicos em alguns bilhões de reais.

Privatizar empresas estatais não é tarefa fácil no Brasil, no governo Fernando Henrique Cardoso muitas foram tentadas sem sucesso, os grupos de pressão, os sindicatos e o corporativismo sempre conseguiram seu intento, com isso, mantêm seus inúmeros privilégios que dominam a estrutura administrativa, perpetuando um ambiente de burocracia e de ineficiência, gerando lentidão, déficits constantes e novos encargos econômicos para o governo, ou melhor, para a sociedade.

Outro ponto central nesta discussão, é que a população tem uma relação paradoxal com o Estado, de um lado querem sua presença ativa no cenário econômico e produtivo, demandam sua constante interlocução, buscam suas fileiras e almejam postos no funcionalismo público e, ao mesmo tempo, rechaçam uma atuação política mais efetiva e denigrem constantemente seus representantes que foram por eles eleitos, detendo assim a legitimidade necessária para representá-los diretamente.

A agenda liberal ou neoliberal, como queiram, é muito charmosa e atrai muitos adeptos, seu discurso encanta os meios de comunicação e o grande empresariado e ganha força na coletividade, de um lado temos a desesperança crescente com a atuação estatal, que consome mais de 34,5% da renda gerada na sociedade e devolve serviços de péssima qualidade, além da ineficiência e da corrupção generalizadas que destroem a classe política; de outro cria um discurso de automatismo das relações sociais, atribuindo ao mercado um papel sobrenatural nesta sociedade, responsável pela alocação e pela eficiência, deixando de lado os conflitos que muitas vezes são por ele criado ou por ele estimulado.

Menos empresas estatais e mais mercado, mais competição e melhoras na qualidade com queda no preço dos produtos é algo muito bem aceito por toda a coletividade, o grande problema desta equação é que, quando analisamos o Estado brasileiro e seu comportamento histórico de subserviência aos grandes capitalistas, ficamos nos indagando: como regular e fiscalizar este mercado sendo que este domina e controla muitos aparatos do Estado?

O Estado brasileiro sempre esteve nas mãos dos grandes conglomerados, sejam eles agricultores, industriais ou banqueiros, cujo poder econômico e financeiro impunham ao governo inúmeras limitações em termos de política econômica, muitas vezes levando-o a adotar políticas que beneficiavam mais aos donos do poder, que moldam a “democracia” de acordo com seus interesses imediatos e, nem sempre, estes interesses são os mesmos da coletividade e dos grupos mais vulneráveis e dependentes do Estado e das políticas públicas.

Na sociedade internacional percebemos uma disseminação destas indagações, com o crescimento acelerado dos grandes conglomerados econômicos, as empresas estão influenciando, cada vez mais, as decisões políticas, comprando leis e isenções fiscais e financeiras, reduzindo a capacidade de atuação dos governos e impondo sua agenda econômica e seus interesses imediatos, diminuindo os benefícios dos trabalhadores, liberalizando a conta capital, desregulamentando e aumentando seus benefícios tributários, a premissa destas ideias é que, neste ambiente de desregulamentação e desburocratização, os investimentos produtivos serão maiores e os benefícios se disseminarão para toda a coletividade, inclusive para os trabalhadores e para os grupos mais vulneráveis.

Nestes momentos de hegemonia do pensamento neoliberal em terras brasileiras, cabe aos partidos políticos de esquerda e aos sindicatos apresentarem alternativas críveis e efetivas, o discurso de críticas ásperas e ofensas, ou em palavras ou expressões para denegrir não devem ser aceitas e nem estimuladas, temos mais de 13 milhões de pessoas desempregadas e mais de 27 milhões na informalidade, totalizando quase 20% da população economicamente ativa, um contingente elevado que poderia estar empregado, contribuindo e construindo uma sociedade mais justa e eficiente, diante disso, cabe aos chamados defensores do povo e da classe trabalhadora uma postura mais efetiva e propositiva.

Destacamos ainda, outra proposta interessante dos economistas neoliberais, a abertura econômica, somos um país que tradicionalmente apresenta, em comércio internacional, uma economia fechada, participamos com menos de 1% do comércio global, número bastante distante de nossa posição econômica, onde nos posicionamos em oitava lugar, a abertura deve ser feita e estimulada pelo governo mas, faz-se necessário, que construamos as bases para esta abertura, sob pena de prejudicarmos ainda mais uma economia depauperada nestes anos recentes de recessão e baixo crescimento.

A concorrência é salutar e deve ser estimulada, mas como competir com um sistema educacional falido, com uma carga tributária elevada, com serviços públicos de baixa qualidade e com uma infraestrutura degradada, todas estas questões devem ser revistas, consertadas e aprimoradas, sem estas medidas mais abertura econômica vai destruir o pouco de empresas e de indústrias que temos e aumentar os gargalos sociais e a violência contemporânea.

Todos os países que conseguiram melhorar sua performance econômica atuaram na abertura de suas economias, ganhando escala e competitividade, construíram estratégias para minimizar seus custos e adotaram uma política protecionista para priorizar seus produtores, esta proteção na atualidade deve ser feita de forma sutil e racional, evitando embates com instituições e organismos multilaterais, se feitas de forma atabalhoada podem correr o risco de serem inviabilizadas e revertidas pelos tribunais superiores de comércio, como a Organização Mundial do Comércio (OMC).

Analisando a história recente do Brasil, percebemos que nossa economia foi fortemente protegida pelo Estado, esta proteção exigiu pouquíssimas contrapartidas e geraram uma grande acomodação por parte dos empresários que, com mercados garantidos, produziam produtos caros, ineficientes e com preços elevados, deixando para os consumidores preços estratosféricos de mercadorias e serviços, reduzindo sua renda agregada e criando empresários ricos e empresas pobres e com pouca eficiência, incapazes de competir no mercado internacional.

Devido a esta proteção, nossas empresas não estão, na sua grande maioria, em condições de concorrer no mercado internacional, participamos e somos ativos em poucas cadeias globais de produção, uma abertura pode aumentar nossa desindustrialização, gerando um incremento no desemprego e uma piora nas condições internas, seus defensores acreditam que o país não tem outras alternativas no curto prazo, sendo necessário pressionar nossa estrutura produtivo para que aumentemos nossa competitividade, sob pena de, ao demorarmos na proteção, destruir ou inviabilizar a sobrevivência da indústria no médio e no longo prazo, perdemos as poucas chances de concorrer com empresas estrangeiras.

São muitas as questões que estão em jogo na economia brasileira, sua inserção sempre foi um dos maiores problemas e desafios da sociedade, se continuarmos fechados ao mundo seremos condenados a produtos caros, ineficientes e de qualidade questionável; ao nos abrir para a concorrência temos que ter em mente que a concorrência global tende a nos causar graves constrangimentos internos, cabe a sociedade construir uma estratégia para minimizar estes custos negativos e potencializar nossas potencialidades, transformando nossas habilidades em vantagens competitivas e aproveitando as brechas do mercado, inovando e empreendendo em busca de novas oportunidades de negócio e de desenvolvimento econômico.

A concessão de parcerias e de apoios da iniciativa privada são vistas com ceticismo por muitos grupos organizados, dividir os investimentos e os riscos fazem parte dos novos modelos de gestão, depois de liderar a industrialização do país, cabe ao Estado um papel mais discreto e efetivo, reduzindo sua exposição direta e atuando na regulação e na construção de estratégias, além de fiscalizar e punir todos os excessos, sempre atuando diretamente, preservando as instituições e construindo um clima de credibilidade, mesmo numa sociedade marcada pela incerteza, pela instabilidade e pela ineficiência.

A parceria Estado e Mercado é fundamental para a construção de uma nova estrutura social e econômica, cada um prescinde do outro, Estado sem Mercado leva a políticas socialistas e estatizantes que levaram, historicamente, ao autoritarismo, ao arbítrio e a opressão, enquanto Mercado sem Estado leva ao incremento da pobreza e da exclusão, criando uma grande quantidade de excluídos e de miseráveis, destas experiências, faz-se necessário compreender que, cada um dos agentes econômicos necessita do outro para sua sobrevivência, dosar as políticas e integrar os interesses é o melhor dos caminhos para conduzir o país para um desenvolvimento econômico, inclusivo e generalizado.

Em todos os países desenvolvidos, o desenvolvimento econômico foi construído com uma intensa parceria entre o Estado e a iniciativa privada, esta parceria sempre existiu, embora muitos não a queira reconhecer, atualmente a Alemanha criou um fundo financeiro para proteger suas empresas das tentativas de compra por parte de empresas chinesas ou asiáticas, o governo dos Estados Unidos vetou a venda de uma grande empresa de tecnologia para seus concorrentes asiáticos, além de comprar grandes empresas com a crise de 2008 para evitar a bancarrota de conglomerados importantes, estas políticas sempre existiram e, na atualidade, estão voltando com mais força e intensidade, embora muitos tentem esconder estes fatos, o neoliberalismo é uma doutrina da burguesia, nasce para defender e estimular os interesses dos donos do capital e, num segundo momento, para empregar e garantir a sobrevivência dos trabalhadores.

O grande trunfo do neoliberalismo foi criar, no imaginário coletivo, a ideia de que suas teses trariam o desenvolvimento e a melhoria social para todos os grupos sociais, esta propaganda foi difundida para todas as regiões do mundo, embora tenham conseguido melhorar a eficiência da economia e incrementar a produtividade, o grande risco destas ideias é que, ao extremo, podem levar muitos grupos a uma situação de degradação e de marginalidade, contribuindo para uma piora dos indicadores sociais, da miséria e da violência urbana.

A sociedade brasileira vive momentos de crise e de desesperança generalizadas, ao governo cabe um papel de construção de novas perspectivas e novos horizontes, melhorando o ambiente macroeconômico para que os investimentos sejam retomados, a articulação entre Estado e Mercado é um dos maiores desafios da economia, onde cada um contribui para o dinamismo econômico com suas potencialidades e expertise, sem esta atuação conjunta, mais uma vez, o país tende a andar contra o gradiente internacional, pois na economia internacional, neste momento de turbulências crescentes, os governos estão atuando diretamente com as empresas, buscando uma sinergia fundamental para navegar em mares revoltos e turbulentos.

O mundo mudou muito e está obrigando os países, empresas e indivíduos a se adaptarem a esta nova organização social, o Brasil mostrou grande flexibilidade desde os anos 80, todos os indicadores econômicos e sociais mostram claramente este progresso, melhoramos economicamente mas ainda não avançamos na lógica política, onde ainda cultivamos hábitos nocivos e degradantes, precisamos passar por novos avanços, melhorando as questões sociais e evoluindo em um novo consenso social, marcados pela inclusão, tolerância e respeito generalizados.

A perestroika brasileira é absolutamente descabida: entrevista especial com Leda Paulani.

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Patrícia Fachin – 12 de março de 2019.

É “difícil” fazer uma avaliação da política econômica conduzida pelo ministro Paulo Guedes, “porque de fato nada de concreto ainda foi feito na área, a não ser o envio da proposta de reforma da previdência ao Congresso”, diz a economista Leda Paulani à IHU On-Line, ao comentar a atuação da equipe econômica nos dois primeiros meses do novo governo. Já no nível do discurso, pontua, “não há nada além daquilo que já era previsto, ou seja, a condução da economia a partir de uma filosofia ultraliberal, que é a marca do economista Paulo Guedes”. Na avaliação de Leda, a declaração do ministro da Economia de que é preciso fazer uma perestroika brasileira, fazendo alusão a uma maior abertura econômica, “traz implícita a ideia de que o país está enredado nas entranhas de uma economia estatizada, com elevado grau de dirigismo”. Mas essa visão, frisa, “é absolutamente descabida quando se olha para a realidade e, principalmente, quando se tem em conta os parâmetros que vêm presidindo a condução da política econômica brasileira desde pelo menos o início dos anos 1990”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, a economista também comenta os três pilares do projeto econômico do novo governo, que são a reforma da previdência, a privatização acelerada e a simplificação, redução ou unificação dos impostos. Segundo ela, “a reforma da previdência e as privatizações são expedientes típicos das receitas de bolo do pensamento convencional neoliberal, pautado pelas máximas dos mercados e pelos imperativos da acumulação, sobretudo da acumulação financeira”. De outro lado, defende, a reforma tributária deveria reduzir os impostos indiretos e elevar os impostos sobre patrimônio, mas por enquanto o governo fala “apenas de simplificar e reduzir ou eliminar impostos.

Assim, na melhor das hipóteses, trata-se apenas de mais uma rodada da série ‘melhorar o ambiente de negócios’ e, na pior delas, de uma tentativa de reduzir a carga tributária, constrangendo ainda mais a capacidade do Estado de agir como poder equilibrador no enfrentamento das desigualdades”. Em resumo, assevera, “nenhuma dessas três medidas tem impactos imediatos e/ou garantidos” sobre o equilíbrio das contas públicas, porque “os efeitos de reformas no sistema previdenciário se dão quase sempre no médio ou longo prazo”.

Na avaliação da economista, a primeira proposta da equipe econômica enviada ao Congresso, a reforma da previdência, não visa reformar o regime previdenciário de repartição em operação no país, mas, sim, destruí-lo. Ela explica que, com a reforma e a introdução do regime de capitalização, a tendência é que os trabalhadores que ganham salários mais elevados e “ajudam a sustentar os benefícios daqueles que contribuem menos e que auferem benefícios muito reduzidos”, possivelmente “ficarão tentados a sair, migrando para outros regimes ou simplesmente para uma poupança pessoal própria, visando sua manutenção na velhice”. Segundo ela, “é evidente que isso não aconteceria se o propósito da reforma fosse de fato preservar a sustentabilidade do regime de repartição, tornando compulsórias a permanência e as alíquotas mais elevadas, mas, como se percebe, não parece ser este o caso”. E acrescenta: “A depender das condições em que será implantado o celebrado regime de capitalização, muitos trabalhadores tenderão a abandonar de vez o regime geral hoje predominante”.

Leda Paulani é graduada em Economia pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo – FEA-USP e em Comunicação Social pela Escola de Comunicações e Artes – ECA-USP. É doutora em Teoria Econômica pelo Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo – IPE/USP. É livre-docente junto ao Departamento de Economia da FEA-USP e professora do Departamento de Economia e da Pós-graduação da FEA/USP. De 2004 a 2008 foi presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política – SEP. De janeiro de 2001 a abril de 2003 foi assessora chefe do gabinete da Secretaria de Finanças da Prefeitura de São Paulo, e de janeiro de 2013 a março de 2015 foi secretária municipal de planejamento, orçamento e gestão da Prefeitura de São Paulo.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que avaliação geral faz da atuação da nova equipe econômica nestes dois primeiros meses do novo governo?

Leda Paulani – Difícil fazer uma avaliação, porque de fato nada de concreto ainda foi feito na área, a não ser o envio da proposta de reforma da previdência ao Congresso. De resto, no nível do discurso, não há nada além daquilo que já era previsto, ou seja, a condução da economia a partir de uma filosofia ultraliberal, que é a marca do economista Paulo Guedes. Exemplos claros disso podem ser encontrados em entrevista dada pelo ministro em meados de fevereiro ao jornal Financial Times. Dentre outras afirmações, tão fortes quanto controversas ([graças ao trabalho dos Chicago boys “o Chile é hoje uma Suíça“]), ele indica que é preciso fazer (e ele fará) no Brasil a perestroika, ou seja, a abertura da economia com concessão de total liberdade ao mercado. A afirmação, que traz implícita a ideia de que o país está enredado nas entranhas de uma economia estatizada, com elevado grau de dirigismo, é absolutamente descabida quando se olha para a realidade e, principalmente, quando se tem em conta os parâmetros que vêm presidindo a condução da política econômica brasileira desde pelo menos o início dos anos 1990. Mas ela evidencia com clareza os princípios que devem orientar a atuação da área econômica no governo de Bolsonaro.

IHU On-Line – Quais serão, na sua avaliação, as principais diferenças da política econômica do novo governo em comparação com a condução da política econômica nos governos Dilma, Lula e FHC?

Leda Paulani – A agenda neoliberal entrou no país pelas mãos de Fernando Collor. Foi seu discurso de “caça aos marajás” que seduziu a classe média brasileira e os endinheirados de sempre. Junto com o mote, vinham as propostas de privatização, de abertura comercial e financeira da economia e de redução do Estado. Já se percebia aí a semente daquilo que, mais tarde, tomaria enormes proporções, a saber, a mistura descarada de princípios universalmente aceitos, como a redução de privilégios, a responsabilidade com os recursos públicos e o combate à corrupção, com as proposições típicas do modelo liberal: para reduzir os privilégios e acabar com a corrupção, é preciso reduzir o tamanho e a influência do Estado; para tornar efetiva a responsabilidade com o dinheiro público, é necessário adotar políticas de austeridade e cortar gastos. O raciocínio simplório tinha poder de convencimento e foi ganhando corações e mentes, alcançando até mesmo aqueles que são os mais prejudicados quando tais assertivas saem do papel e se tornam realidade. O sucesso do neoliberalismo, sua principal vitória (mas não só aqui, no mundo), foi essa: na batalha das ideias, as máximas do mercado saíram vitoriosas.

A reflexão pode parecer um desvio um tanto prolongado da resposta à pergunta propriamente dita, mas, para além da importância em si do tema, ela ajuda a mostrar quão despropositada é a fala do ministro de Bolsonaroao Financial Times. A perestroika com que sonha Guedes começou no início dos anos 1990 e só não foi naquela ocasião mais efetiva porque o país ainda patinava no solo escorregadio do binômio inflação/dívida externa. Mesmo assim, várias e importantes providências foram então tomadas para colocar o país no “novo rumo”. Por exemplo, tão cedo quanto em 1992, no governo de Collor, se promoveu, na surdina, o início da abertura financeira: num movimento absolutamente questionável do ponto de vista jurídico, uma mera carta circular do Banco Central desbancou uma lei federal para permitir a qualquer cidadão a livre disposição de recursos em divisas. Começava aí a transformação do país em plataforma internacional de valorização financeira, movimento que seria consolidado no governo de FHC.

Governo FHC e a potência financeira emergente

Em seus dois mandatos, com o país já estabilizado monetariamente, FHC tratou exclusivamente das medidas necessárias para viabilizar e colocar em prática os ingredientes da fórmula liberal, e para transformar o país em “potência financeira emergente”: melhora do “ambiente de negócios”, concessão de garantias aos credores, oferta de benesses aos investidores financeiros (em particular aos não residentes), privatizações, liberalização dos fluxos internacionais de capital, controle estrito das contas públicas, além de política monetária draconiana e juros estratosféricos.

Governos petistas: do “milagrinho” econômico à política de “austericídio”

A ascensão de Lula e do PT ao poder federal não mudou esse entorno benfazejo à riqueza financeira e à posição do Brasil como dependente de poupança externa e pagador de renda aos capitais internacionais. Ao contrário, logo de início, sob a batuta de Palocci e dos economistas ortodoxos de que se cercou, sua política macroeconômica foi a continuação e, em alguns casos, o aprofundamento da agenda de FHC. Foi só com o lançamento do PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento, no último ano do primeiro mandato de Lula (2006), que esse ideário foi relativamente desobedecido. Esse polpudo pacote de investimentos públicos destinado a garantir a continuidade do crescimento que o bom momento da economia internacional estava possibilitando foi um pequeno ato de rebeldia, pois não combina em nada com um receituário que visa diminuir a dimensão e a importância do Estado. Na leitura da ortodoxia, investimentos públicos sempre “roubam” o espaço (nós dizemos o espaço de acumulação) que deveria ser do mercado.

Além disso, os governos do PT fizeram um bom uso do assim chamado “bônus macroeconômico”. As benesses da alta internacional no volume negociado e nos preços em dólar das commodities que o país exporta, permitiram, sem mexer com os ganhos dos de cima, a adoção de um pacote de políticas e programas sociais de alto impacto, além da elevação acelerada do valor real do salário mínimo. Combinaram-se os efeitos multiplicadores da demanda externa aquecida com aqueles oriundos da redução na desigualdade distributiva e crescimento do emprego, e, na sequência, com o impulso do investimento público, para promover o melhor momento da economia brasileira desde o milagre econômico dos tempos dos militares. A diferença entre esse “milagrinho” como já vem sendo chamado, e aquele de 35 anos antes, é que ele desbancou a máxima de então: não foi preciso esperar o bolo crescer para depois dividir.

O advento da crise vai desmanchar essa conciliação até então possível e, à sua maneira, virtuosa, entre política econômica liberal e programas sociais de alto impacto. Mas suas consequências para nós não apareceram de imediato, tornando-se mais concretas apenas no início da gestão Dilma. O primeiro mandato da presidenta também se caracterizou, de alguma forma, como ato de rebeldia aos imperativos da valorização financeira e do rentismo, pois buscou, como forma de driblar a crise, redução substantiva dos juros e enfrentamento dos obscenos spreads bancários. Mas cometeu, por outro lado, o erro, que depois se revelaria fatal, de apostar no incremento do investimento privado com uma política de desoneração da folha que ganhou, depois de passar pelo Congresso, dimensões descomunais. Para conciliar tudo orçamentariamente, brecou os investimentos públicos, que detêm elevado poder multiplicador, e os investimentos privados, que deveriam assumir o protagonismo, não apareceram. O fracasso da política e a piora das contas públicas abriram o espaço político para o impeachment da presidenta, que, em seu segundo mandato, na esperança de contar com o beneplácito dos mercados, trouxera para o comando econômico ninguém menos que Joaquim Levy, que afundou de vez a economia com sua política de austeridade”.

A agenda econômica de Bolsonaro e a construção da Ponte (para o abismo) iniciada por Temer

Para falar das possíveis diferenças entre a política do atual governo e a sequência que viemos de reportar desde Collor, é preciso lembrar que, entre Dilma 2 e Bolsonaro, houve o governo de ocupação de Temer. O que o presidente ilegítimo tentou fazer foi colocar em prática tudo que estava previsto no programa Ponte para o Futuro, uma “alternativa” de política econômica elaborada pelo PMDB e que, segundo consta, teria sido apresentada à presidenta e por ela recusada. A essência desse documento é o resgate pleno da agenda liberal, sem os arroubos sociais dos governos do PT, agenda, é preciso sublinhar, que estava na mira do governo de FHC e que certamente teria sido implantada, se o PSDB tivesse continuado no poder. Ela envolvia não só a continuidade dos processos de privatização, chegando até à Petrobras, como também uma série de alterações na Constituição Federal – CF de 1988, que, segundo já se dizia à época, era inviável do ponto de vista das contas públicas. Não foi por acaso, nem apenas por querelas político-partidárias, que o PSDB insuflou e apoiou o golpe e depois fez parte do governo Temer.

Essa agenda completamente liberal precisava ser retomada, com a providência adicional de desmontar a política externa ativa e altiva que os governos do PT haviam construído. Lia-se ali, por exemplo, que seria necessário promover “uma verdadeira abertura comercial”, buscando acordos de todos os tipos “com ou sem o Mercosul”. O governo Temer agiu rápido e, a não ser pela incapacidade de mexer no sistema previdenciário, teve pleno sucesso. Desmontou a CLT, com a reforma trabalhista e a lei de terceirizações, e aprovou a PEC 95, do teto dos gastos, que congela por 20 anos o valor real dos gastos públicos, destruindo substantivamente a capacidade do Estado de fazer políticas públicas. Sob a batuta de Guedes, a agenda econômica de Bolsonaro será a continuidade da construção da Ponte (para o abismo) iniciada por Temer, fazendo, de forma mais despudorada, o que ainda não foi feito, a saber, reforma da previdência, retomada das privatizações, enterro final da CF de 1988Guedes é mais celerado que Meirelles (ou Guardia), mas a diferença é de grau, não de conteúdo.

IHU On-Line – Em seu discurso de posse, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que os três pilares do projeto econômico do novo governo serão: 1) reforma da previdência; 2) privatizações aceleradas; 3) simplificação, redução, eliminação e unificação de impostos. Quais são os pontos positivos e negativos desse tripé? Em que medida ele pode garantir o crescimento econômico, a geração de emprego e o equilíbrio das contas públicas?

Leda Paulani – A reforma da previdência reforma da previdência e as privatizações são expedientes típicos das receitas de bolo do pensamento convencional neoliberal, pautado pelas máximas dos mercados e pelos imperativos da acumulação, sobretudo da acumulação financeira. A última perna do tripé poderia estar relacionada à questão tributária e a uma reforma que de fato precisa ser feita, no sentido de elevar o peso dos impostos diretos, sobretudo dos impostos sobre o patrimônio, e reduzir o peso dos indiretos, tornando o sistema menos regressivo. Mas não é esse o tom que sobressai da menção à questão tributária. Ao contrário, fala-se aí apenas de simplificar e reduzir ou eliminar impostos. Assim, na melhor das hipóteses, trata-se apenas de mais uma rodada da série “melhorar o ambiente de negócios” e, na pior delas, de uma tentativa de reduzir a carga tributária, constrangendo ainda mais a capacidade do Estado de agir como poder equilibrador no enfrentamento das desigualdades. Em qualquer dos casos, trata-se de farinha do mesmo saco. Não vejo, portanto, pontos positivos aí. No mais, não acredito que tais medidas possam favorecer a retomada do crescimento e do emprego. A aprovação da reforma da previdência certamente vai causar uma euforia nos mercados financeiros, com elevação dos indicadores de bolsa e valorização do real. Mas esses são impactos que ocorrem no âmbito dos estoques de riqueza, cujo valor se altera por força de movimentos especulativos.

Retomada do crescimento

No que tange aos fluxos de produção e de renda, ou seja, no que concerne à retomada substantiva do crescimento (no último biênio a economia cresceu 2,1%, depois de ter caído 7% no biênio anterior), conviria a retomada dos investimentos privados, que continuam letárgicos, ou um novo impulso nos investimentos públicos, alternativa rifada pela aprovação da PEC dos gastos. Assim, o crescimento continuará a ser pífio, a menos de uma enorme virada favorável no plano internacional, que não parece estar no horizonte (além das especulações em torno da existência de bolhas de ativos, em particular na economia chinesa, os indicadores de perspectiva de comércio da Organização Mundial do Comércio – OMC estão em seu nível mais baixo desde 2010; ademais, um possível acordo entre EUA e China pode roubar do Brasil um mercado de US$ 25 bilhões em soja).

Quanto às contas públicas, nenhuma dessas três medidas tem impactos imediatos e/ou garantidos sobre seu equilíbrio. Os efeitos de reformas no sistema previdenciário se dão quase sempre no médio ou longo prazo. No caso da proposta apresentada, seu impacto pode inclusive ser negativo no curto prazo, a depender de como será regulamentado o regime de capitalização. Combinada com a tal carteira verde-amarela, ela pode aprofundar sobremaneira o desequilíbrio financeiro do sistema.

IHU On-Line – Entre as preocupações da nova equipe econômica, destaca-se a de garantir o equilíbrio das contas públicas. Essa é uma agenda fundamental para o Brasil neste momento? Sim ou não e por quê?

Leda Paulani – É evidente que desfrutar de uma posição confortável nas contas públicas é sempre uma situação desejável. Contudo é também evidente o caráter cíclico da economia capitalista. O Estado tem de poder agir contraciclicamente, impulsionar a economia com investimentos públicos e mitigar as consequências sociais nos períodos de recessão e alto desemprego, e poupar e cortar gastos quando a economia vai bem. Insistir na perpetuidade de resultados primários positivos é negar ao Estado esse papel e fazer o jogo daqueles que buscam tão somente a garantia do valor real e da remuneração de seus estoques de riqueza, em particular da riqueza financeira. Pior ainda, é não perceber que políticas de austeridade, em momentos de retração, complicam de vez o cenário porque, por mais que se cortem gastos, o efeito multiplicador agindo ao contrário faz a receita cair ainda mais, piorando de vez os resultados primários (basta conferir os indicadores do Brasil desde 2015). No afã de preservar as condições de remuneração da riqueza financeira assentada em títulos públicos, cortam-se gastos públicos para melhorar o resultado primário, mas o resultado final é uma piora geral. Em outras palavras, uma boa forma de fazer a relação dívida/PIB crescer é adotar uma política de austeridade em tempos de estagnação.

IHU On-Line – Nos dois primeiros meses de governo, a equipe econômica concentrou-se em apresentar uma proposta de reforma da previdência que propõe mudar o sistema da previdência para um sistema de capitalização. Quais são as vantagens e os riscos dessa proposta?

Leda Paulani – A proposta da assim dita “reforma” da previdência necessita, em primeiro lugar, ser renomeada. Não se trata em absoluto de proposta de reforma do regime previdenciário atualmente em operação no Brasil (o regime de repartição), senão de sua destruição. Estudo do Dieese mostra que, mesmo antes de entrar em funcionamento a reforma trabalhista aprovada no governo Temer, cerca de 40% da força de trabalho já não conseguia comprovar 20 anos de contribuição (atualmente, o exigido são 15 anos para a aposentadoria por idade, com benefício parcial).

Estes, que são a enorme maioria (hoje, apenas 1/3 das aposentadorias são por tempo de serviço), já estarão fora do sistema, porque, se pensarem um minuto que seja, preferirão trabalhar sem contribuir, a contribuir sem ter condição de receber um mínimo que seja, quando terminar sua idade laborativa. A vingar a alíquota progressiva, em princípio algo salutar, aqueles que ganham salários mais elevados (e que atualmente, como o sistema é baseado na solidariedade — geracional, mas também social — ajudam a sustentar os benefícios daqueles que contribuem menos e que auferem benefícios muito reduzidos) também ficarão tentados a sair, migrando para outros regimes ou simplesmente para uma poupança pessoal própria, visando sua manutenção na velhice.

É evidente que isso não aconteceria se o propósito da reforma fosse de fato preservar a sustentabilidade do regime de repartição, tornando compulsórias a permanência e as alíquotas mais elevadas, mas, como se percebe, não parece ser este o caso. A depender das condições em que será implantado o celebrado regime de capitalização (isso não está em absoluto claro na proposta), muitos trabalhadores tenderão a abandonar de vez o regime geral hoje predominante. Por fim, mas não menos importante, a referida carteira de trabalho verde-amarela, que acabará por se transformar em imposição na maior parte dos casos (ou alguém acha que as empresas não implementarão “acordos” com os trabalhadores que, de “livre e espontânea vontade”, abrirão mão de seus direitos para não perderem suas fontes de subsistência?) completa o quadro das condições que destruirão o regime geral.

Quanto ao regime de capitalização, como já adiantei, não há informações suficientes na proposta apresentada para saber como ele funcionará no Brasil. De qualquer forma, os princípios desse regime são opostos aos do regime de repartição: trata-se de contas individuais, não há nenhuma solidariedade no sistema, a vinculação entre contribuições e benefícios é rígida (o que não significa, nota bene, garantia de rendimentos determinados no futuro, pois os benefícios são indefinidos — dependem da rentabilidade auferida pelos recursos ao longo do tempo e da expectativa de vida). Ademais, nesse regime, o trabalhador conta apenas consigo mesmo. Desaparecem as contribuições da empresa e do Estado, que constituem o tripé onde se assenta o regime de repartição. Num país como o Brasil, pejado de desigualdades sociais, com cerca de 50% de seu mercado de trabalho precário e informal, um regime como esse só pode apontar para um futuro ainda mais sombrio. A maior parte dos trabalhadores não conseguirá poupar o suficiente e não terá o que retirar no futuro. Será jogado para o assistencialismo. É o que vem acontecendo no Chile, um dos primeiros países a implantar o regime de capitalização, urdido e imposto à população na ditadura sanguinária de Pinochet. Mas na Suíça original, até onde se sabe, não há a taxa recorde de suicídio entre idosos como na Suíça latino-americana, que Paulo Guedes quer copiar.

IHU On-Line – O que seria um modelo econômico alternativo hoje para o Brasil? O que a esquerda propõe como outra via ao modelo econômico em curso?

Leda Paulani – O modelo hoje seguido é o do Ultraliberalismo, com total liberdade para o mercado, obrigações cada vez menores para as empresas e Estado Mínimo, cuja única atribuição é fornecer as garantias jurídicas necessárias ao funcionamento do sistema. O próprio trabalhador vem sendo instado a se ver cada vez mais como empresário de si mesmo”. Num processo conhecido como “pejotização” da força de trabalho, muitos trabalhadores assalariados abrem mão de seus direitos e se transformam em microempresários (o que vem a calhar para as empresas, que, de uma só tacada, economizam os recursos antes destinados ao pagamento das contribuições e demais encargos incidentes sobre a folha, e simultaneamente despem-se das figuras de exploradoras do trabalho). O mundo do (mal) dito “cada um por si e o Estado por ninguém” (senão pela classe de sempre) será um desastre para um país caracterizado pela fratura social que nos marca desde sempre. O pouco que se conseguiu em termos de redução da desigualdade e da miséria nos últimos anos, mas que já vai se perdendo com a continuidade da crise e das “temerárias” políticas ultraliberais, não ocorreu pelo virtuosismo do mercado ou por obra e graça do divino Espírito Santo. Foi resultado de política deliberada, adotada pelo Estado brasileiro.

Modelo alternativo

Um modelo alternativo passa pelo Estado, mas não só. Ele teria que ser uma espécie de “ultraliberalismo reverso”, um modelo em que a ânima capitalista fosse de alguma forma domada e em que aquilo que é vital ao ser humano, saúde, educação, trabalho, cultura, fosse retirado completamente do domínio do mercado e transferido ao domínio da política. Seria uma espécie de desfetichização de bens essenciais, preservados da sanha mercantil por uma espécie de cordão sanitário social. Colocar sob a égide da política não significa dizer que seriam necessariamente atividades estatizadas, senão que estariam sob os auspícios do conjunto da sociedade e de suas entidades representativas, funcionando em espaços de atuação coletivos, numa configuração institucional em que os processos de democracia direta teriam importância crescente. Se o Estado vem a ter aí importância decisiva, o modelo fica parecido com o Estado de Bem-Estar Social que se criou no pós-guerra na Europa e que ainda existe de alguma forma por lá, em particular nos países nórdicos. Mas o Welfare State foi desenhado dentro de uma moldura keynesiana, que ainda tem no crescimento puro e simples do produto e na preservação do nível de emprego seus principais ingredientes. Isso está hoje em xeque, no primeiro caso pelos problemas ambientais e pela exaustão dos recursos naturais e, no segundo, pela revolução tecnológica de quarta geração, que mundo afora vai insaciavelmente sugando empregos. Não por acaso propostas como o Green New Deal e a Renda Básica de Cidadania ganham interesse crescente. Elas, seguramente, também teriam lugar num modelo alternativo, de política econômica progressista.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Leda Paulani – Gostaria, para finalizar, de fazer duas observações. A primeira é que, implantado o modelo ultraliberal, o Estado ficará completamente amarrado, incapaz de fazer o que quer que seja para minorar o quadro de anomia social, que já existe, mas que se agravará sobremaneira. E esta será a situação, pouco importa quem vier a vencer as eleições a cada quatro anos.

A irrelevância da política, cuja semente o mestre Chico de Oliveira detectou há quase duas décadas, se tornará então plena. O sentido último do ultraliberalismo é, no fundo, este, acabar com a política, que supõe participação, mudança, dinâmica social, luta pela radicalização da democracia e por conquistas sociais crescentes e plenamente inclusivas. A vitória completa do ultraliberalismo implica a fetichização absoluta e absurda da esfera política, a naturalização da periódica troca de bastão pelo voto para comandar uma sociedade em que o poderio crescente do capital e da forma mercadoria é que estará colocado como verdadeiro sujeito.

Em países como o Brasil, o crescimento, nesse contexto, da importância de organizações que atuam em torno do ilícito será apenas o corolário da abolição da política. Muitos dirão de imediato que tal realidade já existe, que o mundo já está assim desde o levante liberal dos anos 1980, que as esquerdas não fazem senão adotar o mesmo programa econômico que criticavam quando na oposição, que o Brasil já é esse cenário distópico. É verdade, mas a situação pode piorar, e muito, solapando por completo os poucos espaços que ainda existem de luta política e social. Por isso é preciso resistir da forma que for possível a essa avalanche devastadora.

Por fim, não é demais lembrar que a agenda liberal, que, como já dito, remonta ao início dos anos 1990, rendeu a nosso país uma posição absolutamente subalterna na divisão internacional do trabalho. Em meio ao clamor mundial cada vez maior pela preservação do meio ambiente, viramos uma economia extrativista, produtora de bens primários, que valoriza como ninguém a riqueza financeira e paga renda régia ao capital internacional. Estamos presos numa sorte de nova dependência, que passa pela movimentação de capitais, mais do que pelas relações de troca, e compromete o sobrevalor futuro a ser extraído de nossa força de trabalho em condições cada vez mais duras.

Em outras palavras, hoje, o que gera a permanente transferência de valor excedente para os países do centro do sistema, não é principalmente o fato de produzirmos bens primários e eles bens de maior conteúdo tecnológico. Há até momentos em que essa situação pode se inverter, como aconteceu nos anos 2000. O fator mais importante é o crescimento desmesurado dos capitais internacionais em operação em nossa economia, com destaque para os investimentos financeiros. Eles precisam ser remunerados e nós decidimos que o seriam regiamente (o Brasil resolveu ser uma potência financeira emergente). Assim, parte significativa da mais-valia aqui extraída transforma-se em renda que os remunera. O movimento é de círculo vicioso porque a entrada em profusão desses capitais impõe pagamentos cada vez maiores, afetando negativamente a conta corrente de nosso balanço de pagamentos e exigindo que eles continuem a entrar no país.

Em poucas palavras, dependemos desses capitais para que continuemos dependentes. A elevada taxa real de juros prevalecente há quase três décadas, elemento central dessa “estratégia”, dificultou o crescimento da economia, desindustrializou o país e impediu a necessária acoplagem tecnológica de seu parque produtivo. É essa a “voz dos mercados”, que ouvimos repetida ad nauseam na imprensa especializada e nos telejornais de cada dia. Os governos do PT não atentaram para a necessidade de alterar esta situação, única possibilidade de assentar em pilares mais firmes as conquistas sociais que seus programas e políticas promoveram. Enquanto isso, no relógio da História, os ponteiros indicam o tempo da indústria 4.0. Não poderíamos estar mais atrasados.

 

 

Estupidez e burrice

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Há relação direta entre o surgimento do PCC e o massacre do Carandiru.

Veja o mal que a estupidez e a burrice são capazes de causar.

Na manhã do dia 2 de outubro de 1992, dei uma aula sobre Aids para um grupo de travestis presas na Casa de Detenção —o Carandiru.

No meio da explicação entrou o diretor do presídio, Ismael Pedrosa, que me convidou para um café na sala dele. Foi o que fiz ao redor do meio-dia, quando a aula terminou.

Na conversa, ele tirou do armário uma teresa, corda improvisada com tiras de cobertor enroladas em fios de arame, descoberta na cela de um ladrão de banco que pretendia galgar a muralha, em busca da liberdade.

Quando dei por conta, conversávamos havia mais de uma hora. Levantei para me despedir:

— Já é tarde, estou atrasado e empatando o senhor, aqui.

— Que nada, respondeu ele. É sexta-feira, dia de faxina nas celas para receber as visitas no fim de semana. É o dia mais tranquilo: ninguém mata, ninguém morre.

No fim da tarde, só acreditei que a rebelião de que falavam era mesmo na Casa de Detenção, quando liguei a televisão e reconheci o Pavilhão Nove no meio da fumaça.

Foram mortos 111 detentos, o maior massacre já ocorrido numa prisão brasileira.

Não havia justificativa para aquele morticínio. Quando começou a confusão, os rebelados se apressaram em expulsar os funcionários de plantão, decisão temerária tomada por presos inexperientes, como eram os do Nove, pavilhão que alojava os mais jovens, encarcerados pela primeira vez.

Homens com muitos anos de cadeia estão cansados de saber que manter reféns numa hora dessas é providência primordial para impedir a entrada das forças de repressão que colocarão em risco a integridade física dos rebelados.

Sem reféns no interior do pavilhão convulsionado, o doutor Pedrosa propôs às autoridades reunidas na sala da diretoria, enfrentar a situação da forma convencional, tantas vezes empregada pelos funcionários: cortar luz, água, comida e voltar na manhã seguinte para negociar.

Homem destemido, acostumado a andar sozinho pela cadeia inteira, foi para o portão que dava acesso ao pátio do Nove, na tentativa de evitar o pior. Mas, assim que o portão foi aberto, ficou espremido na parede, quase esmagado pelo tropel dos policiais que invadiu com os cachorros e as metralhadoras. Deu no que deu.

A culpa caiu nas costas do coronel que comandou a operação. Quem conhece um mínimo da hierarquia militar, no entanto, sabe que um coronel jamais daria uma ordem como “dominar a rebelião a qualquer preço” na véspera de um dia de eleições, sem consultar seus superiores. O nome desses criminosos ele levou para o túmulo.

Ao contrário da repercussão negativa na imprensa brasileira e internacional, muita gente apoiou o massacre. Houve até quem lamentasse a timidez da repressão. O próprio coronel se elegeu deputado estadual duas vezes, com dezenas de milhares de votos, exibindo o número 111 na propaganda eleitoral.

Quais foram as consequências dessa estupidez coletiva?

O nascimento do Primeiro Comando da Capital, organização que comanda com mão de ferro o crime organizado na maior parte do país.

Qual a relação entre o surgimento do PCC e o massacre do Carandiru?

Basta ler o que está escrito no estatuto da fundação do partido, que teria vindo para “combater a repressão dentro do sistema prisional paulista” e “vingar a morte dos 111 no massacre do Carandirú”.

Não conheci um carcereiro sequer que tenha trabalhado numa cadeia sem facções de criminosos. O trabalho era evitar que alguma delas fosse capaz de eliminar as demais, para assumir o comando. O massacre subverteu a disciplina nos presídios e afrouxou perigosamente o controle do Estado.

Hoje o PCC está presente nos 27 estados da Federação, Paraguai, Bolívia, Colômbia, Argentina, Peru e tenta dominar as rotas de tráfico de cocaína dos países andinos para a Europa e a África.

Não tivessem os governantes dado a ordem para a PM invadir o Pavilhão Nove naquele 2 de outubro, é provável que não existissem quadrilhas com milhares de membros, como as atuais. Os inconsequentes que aplaudiram o massacre agora cobram medidas enérgicas para acabar com a violência urbana.

Lamento dizer-lhes que o crime organizado foi longe demais. Não está mais ao alcance das mordidas dos cachorros nem dos disparos das metralhadoras. O combate agora exige inteligência, preparo técnico e intelectual, qualidades raras nos governantes de hoje.

Drauzio Varella

Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

 

Historiador rebate mitos sobre o golpe de 1964

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À esquerda e à direita, Daniel Aarão Reis revê fantasmas que cercam a ditadura

Daniel Aarão Reis

Folha de São Paulo – Ilustríssima – 31 de março de 2019. 

A orientação do presidente Jair Bolsonaro para que unidades militares comemorem neste domingo o golpe de 31 de março de 1964, que iniciou a ditadura no país, suscitou polêmicas que merecem análise mais equilibrada, evitando-se “histórias oficiais” à direita e à esquerda.

Vamos por partes. Em fins de março de 1964 instaurou-se no país uma ditadura através de um golpe de Estado. Trata-se de um fato objetivo. Um presidente legítimo, João Goulart, foi deposto pelas armas, ao que se seguiu um regime de exceção, em que o direito da força prima sobre a força do direito. Em outras palavras: em que a vontade do poder se sobrepõe, ou nega, à existência das leis, (re) criando legislações a seu bel-prazer.

Entretanto, a ditadura não se tornou vitoriosa apenas pela ação militar. Foi um golpe civil-militar. Houve apoio social, que se exprimiu nas Marchas da Família com Deus e pela Liberdade no país, na força das tradições conservadoras e autoritárias.

Naquele momento encontramos as raízes que explicam, ao menos em parte, a ascensão atual da extrema direita no país. Além disso, dirigentes civis, políticos, empresários e religiosos participaram do golpe, além instituições, como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e as principais mídias.

A simpatia suscitada pelo golpe era consequência do medo de uma ditadura comunista. A chamada Guerra Fria, entre os EUA e a União Soviética, estava no auge. Na América Latina, a Revolução Cubana acontecera. No Brasil, um amplo movimento reformista propunha mudanças estruturais, visando a “democratização da democracia”.

Aparentemente, havia ali um equilíbrio de forças, contribuindo para o acirramento das contradições.

Assim, a vitória fulminante do golpe de 1964 foi uma surpresa, mesmo para os golpistas mais otimistas.
Como compreender a derrota das esquerdas? Seria resultado de vacilações de suas lideranças mais importantes, que temeriam enfrentamentos imprevisíveis? De organizações populares muito dependentes do Estado e de suas iniciativas? De dúvidas de militantes acerca de engajar-se ou não numa luta decisiva para defender aquela República? Um pouco de tudo isto? O fato é que, até hoje, a derrota das esquerdas carece de melhor compreensão.

Muitos que apoiaram a instauração da ditadura a desejavam de curta duração. Ela eliminaria as forças de esquerda e as eleições do ano seguinte se realizariam. Aí houve uma surpresa. Os chefes militares apropriaram-se do poder por longo tempo, afirmando a preeminência indisputada das corporações (Exército, Marinha e Aeronáutica). Daí ser exato conceituar o regime como uma ditadura militar.

O primeiro governo ditatorial, chefiado pelo general Castelo Branco, apostou numa orientação liberal. A ideia era enterrar as heranças varguistas e a cultura política nacional-estatista. A aposta foi perdida. A propósito deste governo, brotou a formulação de que teria sido uma ditadura branda, uma “ditabranda”.

Como então classificar, entre outras arbitrariedades, as prisões e cassações de direitos políticos e civis, as torturas acobertadas, a dissolução dos partidos políticos, o fechamento do Congresso e a alteração arbitrária da legislação eleitoral? Recusar evidências não é rever a história, mas negá-la. É negacionismo, a eliminação da história.

Os governos ditatoriais seguintes, principalmente no período Médici-Geisel (1969-1979), retomaram o parâmetro nacional-estatista, mas excluindo o povo. Isso não os impediu de conservar e ampliar apoios civis.

Daí ter surgido a ideia de uma ditadura civil-militar, para aprofundar a reflexão sobre as complexas relações entre a ditadura e a sociedade, e evidenciar as cumplicidades de segmentos civis, inclusive de camadas populares. Muito já se fez para desvendar essas cumplicidades, muito ainda há que se fazer para compreender como se comportaram os cidadãos comuns sob a ditadura. Mais pistas poderão daí advir para entender o “mito Bolsonaro”.

A ditadura, porém, sempre suscitou oposições, moderadas e radicais. No grupo dos moderados estavam muitos apoiadores iniciais do golpe, depois decepcionados com os militares, e os que nunca aceitaram a ditadura, mas também não acreditavam em enfrentamentos violentos. Entre os radicais encontravam-se as correntes revolucionárias, armadas, que tentaram derrotar os militares, destruir o capitalismo e construir uma sociedade alternativa. Almejavam uma ditadura revolucionária que asseguraria a transição nos moldes do socialismo autoritário plasmado pela Revolução Russa e confirmado pelo exemplo cubano.

A ditadura massacrou os radicais —com o uso e o abuso da tortura como política de Estado— e neutralizou os moderados, alguns dos quais também presos e torturados. Mais tarde, muitos destes últimos contribuiriam no processo de transição rumo à restauração democrática.

Entre os críticos da ditadura houve um triplo equívoco. Imaginaram-na destinada à estagnação econômica, à subserviência aos EUA e à pura e simples repressão violenta, exercida por boçais. Não foi o que aconteceu. O capitalismo mudou de patamar, embora à custa de desigualdades sociais e regionais. Recuperou-se o nacional-estatismo como programa. E a própria repressão, sempre impiedosa, combinou-se com políticas de conciliação e de acomodação. Anos de chumbo, certamente. Mas também de ouro, e para não poucos.

A transição começou no início do governo Geisel, em 1974, e foi até a aprovação da Constituição de 1988. Foi transicional, estendendo-se no tempo, e transacional, baseada na negociação. A primeira fase terminou com a extinção dos atos institucionais, em 1979. Estendeu-se, a partir daí, outra etapa, em que já não havia ditadura, mas ainda não surgira um Estado democrático de Direito. A tese, ainda dominante, de que a ditadura terminou com a posse de José Sarney, em 1985, tende a privilegiar a preeminência militar e ocultar a participação civil no processo ditatorial.

É certo que o último general presidente, João Figueiredo, tomou posse ainda nos marcos da ditadura, mas governou sem o apoio dos atos institucionais. Sua gestão se conciliava com os aparelhos repressivos e com atentados terroristas de extrema direita, mas os tribunais agiam com autonomia. Não havia presos políticos. A imprensa não era mais censurada. Os partidos políticos e os sindicatos funcionavam em liberdade.

Nas eleições de 1982, elegeram-se candidatos das oposições, e os resultados não foram questionados. Houve ainda greves parciais e gerais, além do gigantesco movimento pelas eleições diretas para a Presidência da República em 1983 e 1984. Tudo isso aconteceu às claras, nas ruas, sem repressão sangrenta. Como falar, então, em ditadura? Trata-se de uma impropriedade.

Em outubro de 1988, a nova Constituição encerrou a transição, mas não agradou a todos. Conservando a cultura nacional-estatista, irritou os liberais. Desagradou também as esquerdas, ao não priorizar a reforma agrária e reivindicações históricas, como a estabilidade no emprego e a semana de trabalho de 40 horas.

Por outro lado, junto a inovações concernentes aos direitos civis, políticos e sociais, nela permaneceram as marcas da transição longa e negociada, os legados da ditadura. Entre outros, a hegemonia do Poder Executivo e da União, o modelo econômico, o monopólio dos meios de comunicação e da terra, a hegemonia do capital financeiro e a tutela —mal disfarçada— das Forças Armadas. Uma Constituição híbrida. Chamá-la de “cidadã”, como quis Ulysses Guimarães, foi uma licença poética.

De 1988 a 2018, 30 anos se passaram. O que se fez em relação à memória da ditadura? Infelizmente, muito pouco. Como em relação à ditadura do Estado Novo (1937-1945), prevaleceu a ideia de que “olhar pelo retrovisor” revolveria “feridas abertas”. É verdade que pesquisas foram empreendidas nas universidades e que a mídia divulgou controvérsias.

Nada capaz, todavia, de fazer a sociedade ver que a ditadura não era um passado que passara, mas algo que permanecia, através de seus legados. Não se convocaram as Forças Armadas para um debate sobre suas funções numa sociedade democrática. Ao contrário, só foram chamadas para assegurar a ordem pública, cumprindo papel de polícia, o que só fez aumentar seu prestígio. É certo que uma Comissão Nacional da Verdade funcionou, mas suas resoluções cedo caíram no esquecimento.

Enquanto isso políticos e partidos, de esquerda e de direita, compraziam-se em dizer, por motivos variados, que a democracia no país estava consolidada. Seus erros geraram consequências, com o ressurgimento, à luz do dia, das tradições conservadoras e autoritárias que permaneciam subterrâneas, mas vivas.

Compreendê-las e superá-las, através do debate e das lutas políticas, é um desafio e tanto. Esconder evidências históricas ou distorcê-las não será um bom caminho para a sempre necessária “democratização da democracia” brasileira.

Gostaria agora de explicitar de que ponto de vista falo, pois ninguém pensa sem premissas ou princípios. Depois de uma longa trajetória, identifiquei-me com o socialismo democrático, ainda por nascer, a ser alcançado pela persuasão, pela participação e pelo voto, distante do capitalismo, sempre desigual e injusto, e também do socialismo autoritário. Essas referências não devem incidir sobre o que é essencial no ofício do historiador —a busca da evidência e da verdade.

Atento a isto, Nikita Kruschev, secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética entre 1953 e 1964, advertiu que a “história era muito séria para ser deixada nas mãos de historiadores”. Exprimiu a ambição do Estado de controlar a historiografia e fazê-la serva das “histórias oficiais”.

Aos historiadores cabe resistir, afirmando, para além de interpretações que podem e devem variar, os compromissos éticos com as evidências e as verdades —por mais fugazes e provisórias que essas sejam, apenas entrevistas como ruínas sob os relâmpagos das tempestades, na bela metáfora de Walter Benjamin.

Daniel Aarão Reis, professor de história contemporânea da Universidade Federal Fluminense, é autor de “A Revolução que Mudou o Mundo” e “Ditadura e Democracia no Brasil”.