Saidiya Hartman revela a vida de jovens negras que ousaram buscar o prazer

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‘Vidas Rebeldes, Belos Experimentos’ mergulha na intimidade de mulheres com a audácia de imaginar outro mundo

Yasmin Santos, Jornalista, é pós-graduanda em direitos humanos, responsabilidade social e cidadania global

Folha de São Paulo, 23/04/2022

Lençóis pendurados no varal, torneiras vazando, banheiros imundos e quartos apinhados. Os cortiços representavam a essência dos cinturões negros da Filadélfia e Nova York no início do século 20.
Ou ao menos era isso o que se podia apreender a partir dos registros sociológicos da época. Apenas a feiura, a promiscuidade, a podridão.

Esse reducionismo irritava Saidiya Hartman. Ela queria saber dos corredores, dos degraus da entrada, da laje, das saídas de ar, dos espaços de experimento. “Essas fotografias jamais compreenderam a bela luta pela sobrevivência, vislumbraram os modos alternativos de vida ou iluminaram a ajuda mútua e a riqueza comunal do gueto”, escreve.

Depois de lançar dois livros centrados na escravidão — “Perder a Mãe” e “Cenas de Sujeição”—, Hartman ansiava pela beleza. As pesquisas anteriores tinham sido muito dolorosas psicologicamente para ela.

Mergulha então na intimidade de jovens negras que tiveram a audácia de saírem às ruas em busca do próprio prazer sexual, afetivo, intelectual —mesmo que isso lhes custasse uma temporada na prisão ou no reformatório.

Em “Vidas Rebeldes, Belos Experimentos”, Hartman apresenta a intelectualidade radical de jovens negras que imaginaram incansavelmente outras maneiras de viver e nunca deixaram de considerar como o mundo poderia ser de outra forma.

Não conhecemos heroínas que sacrificaram a própria vida pela de outros. São personagens reais, complexas, que não cabem em definições dualistas. Não eram boas nem más. Eram dançarinas, atrizes, cantoras, prostitutas, empregadas domésticas, lésbicas, bissexuais, mães, filhas, amantes.

A autora mescla uma extensa pesquisa histórica —registros de cobradores de aluguel, estudos sociológicos, transcrições de julgamentos, fotografias, relatórios da delegacia de costumes, autos de prisão— com a fabulação crítica.

A beleza que tanto reivindicava se traduz numa prosa poética que explora as idas e vindas do amor, a (re)descoberta sexual, as relações familiares, os modos de se vestir. Tudo isso costurado a dezenas de imagens que, diferentemente dos registros sociológicos, nos permitem conhecer essas pessoas, olhar em seus olhos, imergir em seu universo.

Hartman adentra um território tão íntimo que às vezes parece que estamos lendo os diários dessas jovens, descobrindo segredos talvez inconfessáveis. Ela concede a dezenas de personagens a plena humanidade, o direito de errar e de não aprender com o erro, de agir por impulso, de trair o marido, de ser amante, de ter muitos parceiros sexuais, de se apaixonar por alguém do mesmo gênero, de sentir ódio, raiva, tristeza, de gozar.

Depois do navio negreiro e da plantation, a terceira revolução da vida íntima negra aconteceu na cidade, caracterizada pela tendência a se casar mais tarde, as dificuldades econômicas, a alta taxa de mortalidade entre os homens negros e as práticas sexuais instáveis. O cortiço mobiliou o laboratório social da classe trabalhadora negra.

O que seria do Harlem Renaissance —movimento artístico do século 20 que mudou a maneira como o negro se expressava nos Estados Unidos— sem essas jovens? Poucas pessoas percebem que a melindrosa é apenas “uma pálida imitação” da menina do gueto.

O trabalho de Hartman é monumental. Os registros da época coagiam os negros à visibilidade como uma condição de policiamento e caridade, fazendo aqueles que eram forçados a aparecer carregarem o fardo da representação.

E continuamos a ver a mesma lógica em filmes e livros que são lançados agora, um século depois. A lógica de ver o modo como negros vivem e onde moram como um problema social, de que a “promiscuidade” é inerente à raça, de que somos animais, seja na cama, seja no trabalho, relegados a atividades braçais. Hartman rebate: é a nossa relação com o mundo dos brancos que é o problema.

Nas conversas de W.E.B. Du Bois com pessoas negras do gueto, elas perguntavam: não seria melhor estudar os brancos, já que são eles que precisam mudar?

“Perguntavam-se que negro seria tão franco ou ingênuo a ponto de acreditar que a simples verdade poderia mudar as pessoas brancas. Como se elas fossem cegas para o mundo que elas mesmas tinham criado. Ou não sabiam tratar os negros de outro jeito que não feito cães?”, provoca Hartman ao buscar entender a hostilidade desses entrevistados.

“Vidas Rebeldes, Belos Experimentos” forma um caleidoscópio do que é ser uma jovem negra no gueto americano do início do século 20. Hartman vai desde personagens sem nome a encrenqueiras da estirpe de Ida B. Wells e Eleanora Fagan, vulgo Billie Holiday. Todas formam um coro que murmura de formas variadas: quero ser livre.

VIDAS REBELDES, BELOS EXPERIMENTOS – Autor Saidiya Hartman

Preço R$ 89,90 (432 págs. – Editora Fósforo – Tradução Floresta

Reação do mundo em desenvolvimento à Guerra da Ucrânia remete a Não Alinhados 2.0, por Tatiana Prazeres..

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Brutalidade do conflito não mobiliza comunidade internacional em torno da resposta de americanos e europeus

Tatiana Prazeres, Analista internacional, foi secretária de comércio exterior e trabalhou na China de 2019 a 2021

Folha de São Paulo, 23/04/2022.

Um meme geopolítico me chamou a atenção recentemente. A imagem: um mapa-múndi esquisito, mostrando tão somente EUA, Canadá, Europa, Japão, Austrália e Nova Zelândia, em suas proporções corretas. O título: “A comunidade internacional da qual você sempre escuta falar”. Toda a vasta massa territorial de África, América Latina, Rússia, China e Índia, por exemplo, simplesmente não apareciam. O resultado era um mapa composto por territórios minguadíssimos na carta do grande globo terrestre.

A provocação faz muito sentido no contexto da Guerra da Ucrânia. Em Washington e Bruxelas, fala-se que o conflito fará da Rússia um Estado pária, que Moscou sofrerá um grande isolamento internacional. Mas talvez se pense diferente em partes do mundo desconsideradas por muitos europeus, americanos e seus principais veículos de imprensa.

Dois terços da população mundial vivem em países cujas autoridades se declaram neutras ou têm uma posição simpática à Rússia no conflito. É difícil falar em isolamento internacional quando, por exemplo, China e Índia recusam-se a implementar sanções contra Moscou.

Da Indonésia à África do Sul, da Turquia à Argentina, muitos resistem a endossar as restrições. Países da África e da América Latina ressentem-se da alta de preços de alimentos e combustíveis, e muitos atribuem esse resultado antes às sanções contra a Rússia do que à agressão perpetrada contra a Ucrânia.

A brutalidade da ação russa certamente choca, mas tem sido incapaz de gerar, no mundo em desenvolvimento, o apoio desejado por europeus e americanos à sua contraofensiva.

No pano de fundo, há também uma fadiga com o que é visto como hipocrisia dos grandes. Precedentes de violação à soberania alheia —como na invasão dos EUA ao Iraque — e, mais recentemente, a distribuição desigual de vacinas contra a Covid e o tratamento mais favorável a refugiados ucranianos em comparação aos de outras origens alimentam ressentimentos. Por mais que as repercussões do conflito sejam globais e por maior que seja a solidariedade ao povo ucraniano, muitos países em desenvolvimento preferem não tomar partido.

Mesmo que por objetivos distintos —comerciais, estratégicos ou mesmo ideológicos—, a opção pela neutralidade no conflito acaba por aproximar os países do chamado Sul Global. A experiência remete ao Movimento dos Não Alinhados, criado na década de 1960, em torno do qual países em desenvolvimento articulavam-se para defender o distanciamento em relação aos blocos opostos da Guerra Fria.

Falar em Não Alinhados 2.0 é tirar a poeira de conceitos de antigamente, mas invasão territorial e guerra estão aí para lembrar que o mundo anda para trás.

Num outro sinal de que muitos querem acreditar no próprio discurso, a Guerra da Ucrânia tem sido apresentada como um confronto entre democracias e autocracias, entre o mundo livre e modelos autoritários. O argumento desconsidera, por exemplo, que a Índia, maior democracia do mundo, resiste a escolher um lado e, principalmente, a endossar sanções.

A invasão russa, vale lembrar, foi condenada pela Assembleia-Geral da ONU, foro que melhor se aproxima do que seja essa tal comunidade internacional. Mas é a resposta de americanos e europeus que não entusiasma o mundo em desenvolvimento. Sanções não tiveram o endosso das Nações Unidas; a expulsão russa de organismos internacionais encontra, acertadamente, resistências entre países que julgam importante manter abertos os canais de diálogo.

Numa guerra que é também de narrativas, o suposto apoio da comunidade internacional tem sido evocado para simplificações que apagam do mapa aquilo que não interessa.

O contrato social está no limite, por Marcos Mendes.

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Enfraquecimento do Executivo e baixo crescimento aumentam risco de crise institucional

Marcos Mendes, Pesquisador associado do Insper, é autor de ‘Por que É Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil?’

Folha de São Paulo, 22/04/2022.

O contrato social desenhado após a redemocratização está se esgotando. As condições de governabilidade estão se deteriorando. Isso sinaliza problemas institucionais à frente.

Um alto grau de conflito distributivo é inerente a uma sociedade desigual, como a brasileira. No topo da pirâmide há pessoas com poder político e econômico para usar o Estado a seu favor, por meio de políticas como crédito subsidiado provido por bancos públicos, proteção contra a concorrência de produtos importados ou contratos privilegiados com a administração pública. No outro extremo, há uma grande pobreza a demandar políticas de assistência social.

Terreno fértil para o populismo redistributivista entrar em choque com a preservação de privilégios. O resultado é instabilidade política, um roteiro conhecido na história da América Latina.

O contrato social da redemocratização brasileira procurou amenizar esse conflito usando o Estado para atender a todos ao mesmo tempo. Foram preservados e ampliados privilégios da elite e se instaurou ampla política de benefícios aos mais pobres e à classe média. O Estado brasileiro distribui para todos: do Bolsa Empresário ao Bolsa Família. O que os grupos de pressão pedem ao Congresso, levam: pisos salariais, subsídios setoriais, alíquotas preferenciais.

Com todos atendidos, diminuiu a tensão social. O custo, porém, é o crescimento da carga tributária, da dívida pública e da despesa com juros. Ademais, políticas para favorecer grupos geram perda de eficiência econômica, reduzindo o potencial de crescimento. O cobertor fica curto e não dá para continuar distribuindo a todos.

As manifestações de 2013, cuja principal característica foi juntar diversos grupos que pediam mais do Estado, já foi um sinal de estresse.

Desde os anos 1990 já se percebeu a insustentabilidade desse modelo. Diferentes governos tentaram limitar o acesso aos cofres e a distorção das decisões regulatórias do Estado, por meio de reformas institucionais.

Para fazer essas reformas avançarem, e manter as finanças públicas sob controle, contava-se com uma divisão de poderes em que o Executivo era forte e tinha instrumentos para manter uma coalizão majoritária no Congresso, facilitando a aprovação de seus projetos. Instrumentos tortos, como a liberação de emendas em troca de votos, somavam-se ao poder de agenda (Medidas Provisórias) e de veto.

Porém, a força do Executivo vem sendo desidratada. A governabilidade, que sempre foi precária, está se tornando impossível.

As MPs, que podiam ser livremente editadas e reeditadas, foram limitadas pelo STF e são frequentemente alteradas ou rejeitadas pelo Congresso. Vetos presidenciais, que não eram contestados, agora caem frequentemente. Projetos de lei do Executivo encalham e as iniciativas dos parlamentares prosperam. Agências reguladoras, instituições de Estado, estão sendo loteadas entre políticos.

As emendas parlamentares se tornaram obrigatórias, perdendo poder de cooptação. Foi necessário criar outra modalidade de emenda, a de relator, para usar como instrumento de cooptação. Com isso, as emendas deixaram de consumir uma franja do orçamento e já representam 24% da despesa não obrigatória, engessando o espaço fiscal do Executivo.

A multiplicação de partidos, financiados por régias transferências públicas, pulverizou a representação política e dificultou ainda mais a formação de coalizões.

Frente às limitações fiscais, as lideranças do Congresso transformaram o modelo de distribuir para todos em distribuir prioritariamente para eles mesmos: financiamento de campanhas eleitorais, dos partidos e das emendas orçamentárias paróquias. Ao fazê-lo, desmoralizam o sistema político e alimentam o discurso de que democracia não dá certo.

Qualquer presidente que assuma em 2023 terá dificuldade em recuperar o controle do orçamento e da agenda política.

Em ambiente polarizado, não será fácil redesenhar o contrato social sem maiores turbulências.

Tive o prazer e o privilégio de trabalhar com Eduardo Guardia. Se tivesse lido esta coluna, ele me diria: “Marcos, você sempre pessimista. Vamos trabalhar e melhorar esse país!”. Edu, obrigado.

As entranhas expostas de uma Lava Jato global, por Ladislau Dowbor.

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Em livro devastador, executivo francês narra pressões políticas, policiais e judiciais que EUA exercem contra seus concorrentes. Relato evoca fatos ocorridos no Brasil e sugere: será preciso ação ousada (inclusive reestatizações) para reconstruir país

Ladislau Dowbor – OUTRAS PALAVRAS – 03/02/2022

É raro um depoimento, por parte de um executivo de uma grande corporação multinacional, no caso a Alstom, gigante francês do nuclear, de energia e transportes, detalhar como funcionam o que chamamos curiosamente de “mercados”, e que na realidade envolve guerra entre os grandes grupos, com uso aparelhado do Judiciário, com envolvimento profundo dos governos, e um conjunto de comportamentos que raramente afloram na mídia ou nas pesquisas. Somente uma pessoa de dentro, e em nível elevado de responsabilidade, poderia escrever como funciona o capitalismo realmente existente

Estamos falando da Alstom, que segundo o autor é um grupo “que tem a maior experiência nuclear do mundo. É a número um no fornecimento de centrais elétricas completas, bem como na sua manutenção, e equipa cerca de 25% do parque mundial. A empresa também é líder mundial na produção de energia hidrelétrica.”(164) O livro relata, capítulo por capítulo, como a General Electric americana, grupo ainda maior, conseguiu comprar a Alstom, usando para isso perseguições judiciais, prisões, e naturalmente este cavaleiro branco da política que é a luta contra a corrupção, em nome da qual podem ser feitas as maiores barbaridades.

Frédéric Pierucci, o próprio executivo da Alstom, escreve em primeira pessoa, com a ajuda do pesquisador e jornalista Matthieu Aron. Li o livro em um dia e meio, porque é muito bem escrito, um relato do dia a dia da guerra, mas pesquisado com muito detalhe, uma janela que nos permite entender como funciona efetivamente o sistema.

Há tempos apareceu um livro semelhante, Confissões de um Assassino Econômico, obra que apesar do título que sugere um policial, constitui também uma explicitação detalhada sobre os grandes contratos internacionais. Foi escrito por John Perkins, economista-chefe de uma grande empresa de construção americana.[1] Teve grande sucesso nos Estados Unidos, justamente por levantar o véu sobre como funcionam as grandes negociações internacionais.

Controlar a energia, a tecnologia do nuclear, grandes infraestruturas que representam imensos recursos e tecnologias de ponta, é vital para a soberania de um país. Como foi que a França, quinta potência econômica mundial, permitiu que este “florão da economia francesa” fosse arrebatado pela General Electric? Imaginamos o mercado como nos ensinam nos cursos de economia, do tipo que “vence quem presta o melhor serviço”, e não quem tem a máquina do poder político, militar e judiciário para abocanhar os concorrentes. Não achei no livro nenhuma simplificação ideológica, e sim um relato, dia a dia, de como funciona a guerra econômica. Com isso, abre-se uma janela sobre o funcionamento da política em geral.

A política se torna compreensível: “Qualquer que seja o ocupante da cadeira de Presidente dos EUA, seja democrata, seja republicano, carismático ou detestável, o governo em Washington sempre atende aos interesses do mesmo grupo de industriais: Boeing, Lockheed Martin, Raytheon, Exxon Mobil, Halliburton, Northrop Grumman, General Dynamics, GE, Bechtel, United Technologies, dentre outros…Os Estados Unidos, que se arvoram em dar lições de moral a todo o planeta, são os primeiros a fechar negócios fraudulentos nos diversos países sob sua zona de influência, a começar pela Arábia Saudita e o Iraque.” (329)

Os Estados Unidos são os primeiros e únicos a aprovar uma Lei Extraterritorial – de 1970, expandida de 1988 – que lhes permite prender uma pessoa de qualquer nacionalidade, por negócios nos mais diversos países, porque a justiça americana – empurrada por uma corporação americana – decide que foram violados interesses americanos. (172, 249, 326) Ou podem processar qualquer empresa que fizer negócios com um país que os Estados Unidos decidem unilateralmente como sendo submetido a um bloqueio. Ou seja, os grupos econômicos norte-americanos dispõem de uma arma de perseguição em escala mundial, com o Judiciário formalmente envolvido (o DOJ). E com o envolvimento, graças à colaboração das grandes plataformas de mídia social, da própria NSA, ou seja, do sistema de inteligência do governo.

O Brasil é mencionado em várias ocasiões, e não há como não fazer o paralelo entre a guerra pelo controle das tecnologias mais avançadas e dos maiores contratos internacionais, com o que foi a Lavajato no Brasil. Também desenvolvida em nome da luta contra a corrupção, com o apoio dos Estados Unidos, ela terminou por quebrar grandes concorrentes da construção como a Odebrecht, e por privatizar grande parte da base energética do país, em particular pedaços da Petrobrás e da Eletrobrás, sem falar de outro florão tecnológico do Brasil que é a Embraer. É guerra, e utilizar o Judiciário americano e brasileiro de forma escandalosa faz parte do sistema. O primeiro passo, como no caso da Alstom, é a privatização, que permite a apropriação externa por mecanismos financeiros. As ameaças e intervenções políticas e policiais fazem o resto. Você magina a China entregando o controle da sua base energética a corporações internacionais? Pela clareza e profundidade da exposição, uma leitura indispensável.

Desglobalização

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Vivemos num momento de grandes incertezas, as estruturas econômicas estão movimentando rapidamente, exigindo comportamentos diferenciados, a competição cresce de forma acelerada, a tecnologia se tornou o grande motor do desenvolvimento das nações, obrigando as nações a repensar as estratégias e retomar o planejamento econômico como forma de se adaptar as novidades e as incertezas da sociedade contemporânea.

O termo globalização ganhou relevância nas últimas décadas e levou as nações a repensarem suas estratégias de desenvolvimento econômico, investindo em capital humano e estimulando a pesquisa científica, renovando a integração entre os setores econômicos, construindo um verdadeiro ecossistema de inovação, fortalecendo as empresas nacionais e consolidando os atores produtivos para se adaptarem a concorrência externa, angariando novos mercados e garantindo espaços de lucratividade.

Os países que conseguiram desenvolver estratégias consistentes de inserção no ambiente globalizado foram os grandes ganhadores da globalização, construindo empresas internacionais, investindo fortemente na capacitação de seu capital humano e garantindo melhoria nas condições de vida da população e, muitos países conseguiram caminhar a passos largos para o desenvolvimento econômico.

Recentemente, percebemos muitas novidades no cenário internacional, a ascensão do modelo chinês, fortemente centrado no planejamento governamental, a crise imobiliária de 2008 que fragilizou os sonhos liberais que defendiam a pouca intervenção estatal e que gerou, ironicamente, um forte intervencionismo dos governos para evitar a bancarrota do capitalismo global, que contribuiu para a fragilização do pensamento neoliberal. Além disso, a pandemia desagregou as estruturas produtivas da economia internacional, gerando rupturas em cadeias de produção, falta de insumos fundamentais, aumento de preços e renascimento da inflação. Para piorar, vivemos uma verdadeira tempestade perfeita da sociedade global, a guerra em curso na Ucrânia está impactando fortemente sobre as nações, perdas de vida e destruições generalizadas, deixando claro a necessidade de repensarmos o paradigma econômico global.

Neste ambiente, percebemos o renascimento do protecionismo em todas as regiões, nações desenvolvidas que preconizavam a abertura econômica e o aumento da competição global passaram a adotar novos receituários econômicos, retomando medidas intervencionistas agressivas, com políticas fiscais expansionistas, incrementando a proteção de suas estruturas produtivas, aumentando os subsídios para seus setores produtivos e impondo barreiras para produtos importados como forma de defender setores nacionais. Vivemos um momento marcado pela construção de novos paradigmas econômicos e produtivos, onde destacamos o retorno do planejamento econômico e da adoção de uma nova forma de intervenção governamental.

As duas primeiras décadas do século XXI estão trazendo novos desafios para a sociedade global, o modelo globalizado nos levou a uma ampla terceirização produtiva que entrou em xeque em decorrência da covid-19, obrigando as nações a buscarem a superação de suas dependências externas, diminuindo a proximidade dos fornecedores externos, construindo novos atores internos competitivos, aumentando os investimentos internos em ciência e tecnologia, priorizando produtores locais que geram empregos qualificados no mercado interno e diminuindo o hiato tecnológico que caracteriza as economias em desenvolvimento.

Os desafios das próximas décadas são imensos e assustadores, mas precisamos compreender que um novo mundo está surgindo, com novas oportunidades, com novos modelos de negócios, com novas perspectivas monetárias, com novas hegemonias que exigem a construção de novos consensos e novos canais políticos, exigindo líderes visionários e competentes. A globalização trouxe grandes vantagens para muitos setores da economia internacional, melhorando a qualidade de vida da população, garantindo avanços substanciais na saúde, incrementando as tecnologias e garantindo alimentos para toda a comunidade internacional, mas infelizmente, não conseguiu garantir que os avanços sejam socializados para toda a sociedade mundial, quem sabe na desglobalização tenhamos mais sucesso.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 20/04/2022.

Brasil, o país das commodities, por Paulo Gala.

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Paulo Gala – 19/04/2022

Nos dois primeiros meses deste 2022 o valor total de nossas exportações foi 36% maior do que no mesmo bimestre de 2021. O volume de bens exportados cresceu 17% e os preços do que exportamos subiram 16% na mesma comparação. Os preços de importação também subiram muito, 34%, mas os volumes importados tiveram queda de quase 3% na comparação entre esses mesmos bimestres. Em março a balança comercial teve superavit de US$ 7,4 bilhões e até a segunda semana de abril registramos superávit de US$ 15,36 bilhões no acumulado do ano. A corrente de comércio, soma de exportações e importações, subiu 20,5% em relação a 2021, para US$ 147,1 bilhões, com as exportações chegando a US$ 81,23 bilhões e as importações a US$ 65,87 bilhões. Os dados que já temos para 2022 apontam para um superávit em nossa balança comercial de mais de US$ 80 bilhões, um feito histórico. Na mente dos investidores estrangeiros, o Brasil se consolida como o paraíso das commodities, o que ajuda a trazer dinheiro ao país. Por tudo isso, o real readquiriu seu status de “commodity-currency”: moedas que se apreciam muito em booms de commodities.

O Brasil já está no time de países com maiores reservas de petróleo do mundo graças à descoberta do pré-sal. Em 2022 estaremos entre as dez maiores produções de petróleo do planeta, com quase 4% da oferta mundial. O custo de exploração se revelou muito menor do que se imaginara e a qualidade do petróleo do pré-sal é ótima. Nosso setor de mineração segue também robusto. Os grandes projetos da Vale se concretizaram, com destaque para o S11D em Carajás, com uma das maiores capacidades produtivas do mundo. Nosso volume de exportação é enorme, além do boom de preços do mineiro de ferro, níquel, litium, cobre, etc. Para se ter ideia da força de Vale e Petrobras hoje, basta observar que em 2021 essas duas companhias distribuíram mais dividendos do que todas as empresas da bolsa brasileira somadas.

No setor agro a situação também é exuberante. O preço da arroba do boi acima de R$ 300, tendo chegado em R$ 350, promoveu grande ganho exportador do mercado da carne. Só para China exportaremos quase US$ 2 bilhões em carnes no primeiro trimestre desse ano, um recorde absoluto. Segundo índice da UN/FAO, só em Março os preços de alimentos subiram mais de 12%. Recorde histórico da série para um único mês. O setor agro brasileiro teve um superávit de U$105 bilhões em 2021, compensando nosso déficit de bens tecnológicos e industriais. Em 2021 o saldo negativo do setor industrial chegou a US$ 53 bilhões, o pior resultado desde 2015, mesmo num ano em que o superávit total da balança fechou em nível recorde. O boom de preços de commodities decorrente da pandemia e do conflito com a Ucrânia acabou favorecendo o Brasil pela via da alta de preços de bens agrícolas e energéticos, apesar do risco de falta de fertilizantes. A alta de preços de commodities sempre nos favoreceu no passado, inclusive quando viramos grau de investimento em 2008. Nesse cenário não teremos falta de dólares e investidores estrangeiros seguirão comprando Brasil. Nosso grande desafio continua sendo, entretanto, gerar empregos de qualidade para 90 milhões de pessoas.

Sem a recuperação de nossa indústria não conseguiremos tamanha façanha. O atual boom de commodities resolve nosso problema de divisas e ajuda no controle da inflação pela via da apreciação da moeda brasileira; fica faltando ainda a essencial retomada de nosso desenvolvimento industrial e tecnológico.

Como a Coreia do Sul tornou-se um país de insones, por BBC Brasil.

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Ritmo selvagem de trabalho e pressões sociais pelo “sucesso” e “produtividade” alimentam adição epidêmica em drogas do sono. À margem do distúrbio, surge uma indústria lucrativa, que vende de apps de meditação a travesseiros “ideais”

BBC Brasil – OUTRAS MÍDIAS – 18/04/2022

Ji-Eun começou a ter dificuldade para dormir quando sua jornada de trabalho ficou tão exaustiva que ela simplesmente não conseguia relaxar. Em média, ela trabalhava das 7h às 22h. Mas a jovem de 29 anos, que trabalha com relações públicas, às vezes ficava até 3h da manhã no escritório. Seu chefe chegava a ligar no meio da noite pedindo que alguma tarefa fosse feita na mesma hora.

“Eu quase esqueci como fazer para relaxar”, ela explica.

E seu caso não é isolado. A Coreia do Sul é um dos países com os maiores índices de privação de sono do mundo, com enormes efeitos sobre sua população.

Na Clínica Dream Sleep, no distrito Gangnam, em Seul, Ji-hyeon Lee, psiquiatra especializada no sono, diz que é comum receber pacientes que tomam até 20 comprimidos de remédios para dormir diariamente.
“Geralmente leva um tempo para pegarmos no sono, mas os coreanos querem dormir rapidamente, então se medicam”, ela conta.

O vício em remédios para dormir se tornou uma epidemia nacional. Não há estatísticas oficiais, mas estima-se que esse vício atinja 100 mil coreanos.

Sem conseguir dormir, muitos recorrem ao álcool misturado à medicação – com consequências potencialmente perigosas.
“As pessoas se tornam sonâmbulas. Vão até a geladeira, comem coisas de modo inconsciente, até comida crua”, diz Lee. “Houve casos de acidentes de carro em Seul causados por pacientes sonâmbulos.”

Lee está acostumada a receber insones crônicos que sofrem do que é conhecido como hiperexcitação (condição que produz ativação cerebral e nos impede de dormir bem). Alguns de seus pacientes lhe dizem que não dormem mais do que algumas horas por noite há décadas.

“Eles choram, mas ainda têm um fio de esperança (quando vêm à consulta). É uma situação muito triste”, diz a psicóloga.

Excesso de trabalho, estressado e privação do sono

A Coreia do Sul é uma das nações com mais privação do sono do mundo. Também tem a maior taxa de suicídio entre os países desenvolvidos, o maior consumo de bebidas destiladas per capita e um grande número de pessoas tomando antidepressivos.

Existem razões históricas que explicam essas estatísticas.
Em apenas algumas décadas, o país passou de um dos mais pobres do mundo para um dos mais tecnologicamente avançados.

Além disso, por meio de sua crescente influência na cultura pop, exerce considerável “soft power” (termo usado nas relações internacionais para descrever a capacidade de influenciar ações ou interesses por meios culturais e ideológicos).

Nações com um histórico semelhante, como a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, poderiam explorar seus recursos naturais, mas a Coreia não tem essa riqueza oculta. O país transformou-se pela pura dedicação de uma população movida por um nacionalismo coletivo que os impelia a trabalhar mais e mais rápido.

O resultado é que os sul-coreanos estão sobrecarregados, estressados e privados de sono.

Agora, toda uma indústria se formou ao redor das pessoas incapazes de dormir – e essa indústria do sono foi estimada em US$ 2,5 bilhões em 2019.
Indústria em crescimento

Na capital Seul, as lojas de departamento são dedicadas a produtos para dormir, desde os lençóis perfeitos até o travesseiro ideal, enquanto as farmácias oferecem prateleiras cheias de medicamentos her/bais.

E há abordagens tecnológicas contra a insônia. Cerca de dois anos atrás, Daniel Tudor lançou um aplicativo de meditação – Kokkiri – focado em ajudar jovens coreanos estressados a dormir.

Embora a Coreia do Sul seja historicamente um país budista, os jovens pensam que a meditação é um passatempo para os mais velhos, não algo que um funcionário de escritório em Seul poderia fazer.

Daniel diz que teve que reimportar e reembalar a meditação como uma ideia ocidental para que os jovens coreanos a achassem atraente.

Instituições mais tradicionais também estão entrando em ação.

Hyerang Sunim é um monge budista que ajuda a organizar retiros em um templo fora de Seul, onde pessoas com privação de sono podem meditar e absorver ensinamentos budistas.

No passado, esses tipos de mini-pausas eram reservados para aposentados que buscavam ensinamentos e oração. Agora, os participantes tendem a ser coreanos mais jovens em idade de trabalhar.

Mas esses mesmos templos budistas também foram criticados por lucrar com esses tipos de retiros.
“É claro que há preocupações. Mas acho que os benefícios as superam”, argumenta Hyerang Sunim.
“Tradicionalmente, era raro ver jovens virem buscar os ensinamentos budistas. E eles têm agora muita interação com o templo.”

“Mudanças fundamentais”

Lee Hye-ri, que participou de um desses retiros budistas quando a pressão no trabalho se tornou intolerável, diz que aprendeu a assumir a responsabilidade por seu estresse.

”Tudo começa comigo; todos os meus problemas começam em mim. Foi o que aprendi aqui”, explica a jovem.
Mas enquadrar a solução para o estresse e a privação de sono como algo a ser tratado em um nível individual pode ser problemático.

Aqueles que acreditam que o problema é causado por uma cultura de trabalho irracional e pressões sociais criticaram essa abordagem individualista, dizendo que isso equivale a culpar as vítimas.

Esses críticos dizem que a meditação ou o relaxamento são uma colcha de retalhos e que soluções reais só podem surgir por meio de mudanças fundamentais na sociedade.

Ji-Eun, a personagem que abre esta reportagem, acabou tão privada de sono e estressada que decidiu deixar o emprego.

Ela agora trabalha horas muito mais razoáveis como freelancer e, devido à pandemia, pode trabalhar em casa. Também procurou ajuda profissional na clínica do sono de Lee para controlar sua insônia.

“Qual é o sentido de trabalhar tanto agora que chegamos ao topo como país?” diz Ji-Eun. “Devemos ser capazes de relaxar.”

O que perpetua a iniquidade brasileira? por César Locatelli.

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Livro analisa a dinâmica da desigualdade no Brasil e seus elos com a questão racial. Revela que o país teve três oportunidades históricas – perdidas – de alterar essa condição. O que aprender com a história para as lutas de hoje e amanhã?

Por César Locatelli

OUTRAS PALAVRAS – 18/04/2022

Parece existir uma força, equiparável à gravitacional, que faz a sociedade desigual sempre retornar ao seu curso secular após fugazes divergências de seu padrão. Três momentos da história brasileira marcam notavelmente essa breve saída do rumo e rápido retorno à reprodução da iniquidade.

Ainda na primeira metade do século XIX, aos africanos libertos, que exerciam a profissão de pedreiros, alfaiates, sapateiros etc., foi instituído um imposto exorbitante, do qual seriam isentos aqueles que se retirassem do Brasil.

A antropóloga e historiadora Manuela Carneiro da Cunha estima que cerca de 8 mil libertos deixaram o país rumo a África. “O Brasil renunciava à criação de uma classe média negra”, revela Mário Theodoro em A Sociedade Desigual. A Lei de Terras (1850) e os estímulos dados aos imigrantes europeus viriam a agir no mesmo sentido.

“Assim, ao final do século XIX, fosse no campo ou na cidade, os negros no Brasil pareciam condenados à pobreza e à miséria. Quando houve a possibilidade de alguma ascensão social, como ocorrido na primeira metade daquele século, ela foi refreada, inclusive com sanções de ordem econômica e jurídica por parte do poder público e incentivo para deixar o país. Progressivamente alijados dos setores mais dinâmicos da economia – a produção exportadora, a indústria e os ramos mais prósperos do comércio –, os negros ficaram restritos aos serviços pessoais e subalternos.
A pobreza urbana no Brasil do século XIX é negra.” (p. 117)

O segundo momento, que continha todos os ingredientes que foram necessários e suficientes para, em outros países, reduzir-se a desigualdade e a pobreza, foi o longo período de industrialização do país, entre 1930 e 1980. O crescimento per capita médio do produto interno brasileiro foi de “impressionantes 3,86% anuais”, por 50 anos!

Mais uma vez os negros foram excluídos. Explica Theodoro que “a concentração de renda observada no período foi reforçada a partir da clivagem racial. A população negra não participou diretamente dessa festa, não logrou compartilhar plenamente os frutos desse que foi um dos períodos de maior crescimento de um país na história recente. Crescer gerando pobreza, miséria e desigualdade: esse foi o preceito do período de maior prosperidade vivenciado pelo Brasil. Um ‘milagre’ para poucos” (p. 138).

Entre 2004 e 2014, os governos Lula e Dilma promoveram a retirada de 30 milhões de pessoas da pobreza. Além do crescimento econômico do período, concorreu para essa redução inédita da pobreza na história brasileira o processo sustentado de redistribuição de renda, pela via de aumentos reais do salário mínimo, do Bolsa Família e da
Previdência Social.

Os benefícios impactaram brancos e negros, entretanto, não o fizeram de modo homogêneo: “Apesar da benfazeja evolução de redução da pobreza, houve um aumento da participação da população negra no grupo que se manteve em situação de pobreza: o percentual de negros entre os 10% mais pobres subiu de 73,2% em 2004 para 76% em 2014” (p. 154).

A despeito dessa “anomalia”, uma década de desvio de rota, a sociedade desigual volta aos trilhos: “desde 2016 adotou-se no país uma estratégia de política econômica e fiscal que terminou por fragilizar os direitos do trabalho e enfraquecer e reduzir a base financeira, contributiva e orçamentária da seguridade social brasileira. Os impactos nocivos aos trabalhadores são evidentes, bem como as consequências para o fortalecimento da informalidade e da precariedade do trabalho”. (p. 164)

Por mais que a sociedade desigual se perpetue como se estivesse sujeita a uma força gravitacional, que sempre a devolve para as condições de reproduzir as desigualdades, é evidente que as forças que a tornam imutável são forças sociais que nada têm de natural. Que força poderosa seria essa, então? Mário Theodoro responde logo na introdução de seu livro:

“A pobreza, a miséria e, principalmente, a desigualdade são fenômenos que remontam à própria criação do Brasil, e têm raízes na questão racial. Os quase quatro séculos de escravidão forjaram as condições para o aparecimento, o fortalecimento e o consequente protagonismo do racismo como fator de organização e estruturação das relações sociais no país. Desse modo, o racismo consolidou-se como a ideologia que diferencia e hierarquiza as pessoas em uma escala de valores que tem como polo positivo o biotipo branco caucasiano e como polo negativo o biotipo negro africano. É sob essa valoração que a sociedade brasileira se organiza e opera — e é nela que se baseia o reconhecimento social do indivíduo, historicamente construído e que explica a perpetuação da desigualdade.” (p. 15)

Em outras palavras, está marcada a ferro nos valores da sociedade brasileira que o que é branco é superior. Ao olhar para a desigualdade, a partir dessa perspectiva superior, parece “natural” que uma parte da sociedade tenha mais direitos que a outra. “O racismo assume, desse modo, papel central como elemento organizador da sociedade desigual”, complementa Theodoro. Desse modo, o que perpetua a sociedade desigual é o racismo e seus desdobramentos.

O profundo trabalho do autor é testar suas premissas, de que a naturalização da desigualdade é funcional e que os grupos hegemônicos têm interesses na existência e na perpetuação do racismo, contra a história do país desde sua constituição escravagista até os dias atuais.

Seu estudo caminha através do mercado de trabalho brasileiro (capítulo 2), com abundantes evidências das limitações da força de trabalho negra à informalidade e ao subemprego. Prossegue com os sistemas de educação e saúde (capítulo 3), que atende privilegiadamente as classes com mais recursos, ou seja, segmentos majoritariamente brancos. A análise da ocupação dos espaços urbanos e rurais (capítulo 4) constata a expulsão dos trabalhadores negros do campo e a semiapartação das cidades, onde à população negra restam as favelas, os mocambos e as periferias.

A violência como prática de Estado (capítulo 5), com amplas evidências de que o racismo marca as decisões do sistema de justiça e seus operadores, é entendida como o elemento aglutinador da sociedade. O aprofundamento analítico da sociedade desigual (capítulo 6) é a tentativa de, ao juntar as partes, desvendar a razão de sua perenidade.

Um de suas constatações fundamentais é que:
“Em resumo, o racismo se desdobra em discriminação e preconceito no cotidiano, nas relações pessoais, no trabalho, nas escolas, nas repartições públicas, nos hospitais e postos de saúde, nos bares e nas esquinas e o combustível para esses comportamentos é a vigência em nível macro de outras facetas desse mesmo racismo: a branquitude, que legitima a ideia de superioridade e de poder do branco; o biopoder, que desincumbe o Estado de qualquer obrigação ou responsabilidade social para com a população negra; e por fim, e mais diretamente letal, a necropolítica, que faz do Estado o executor de uma política de morte e de genocídio.” (p. 335)

Serviço

Livro: A Sociedade Desigual: Racismo e branquitude na formação do Brasil
Autor: Mário Theodoro, economista e mestre pela UFPE e doutor pela Universidade Paris I – Sorbonne. Consultor legislativo aposentado do Senado Federal, foi secretário-executivo da Seppir e diretor da área de estudos internacionais do Ipea. É professor visitante no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da UnB.
Editora: Zahar, 2022

A vitória do SUS, por Márcia Castro.

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Necessidade de um sistema de saúde universal e de qualidade deve ser prioridade nas escolhas eleitorais

Marcia Castro, Professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard

Folha de São Paulo, 18/04/2022.

O Sistema Único de Saúde (SUS), uma conquista de movimentos sociais, é um dos maiores mecanismos de redução de desigualdades em saúde que o Brasil já teve.

Ao longo de 30 anos, o SUS teve papel fundamental na redução da mortalidade infantil, de mortes e hospitalizações evitáveis, de iniquidades raciais na mortalidade, de desigualdades no acesso a atenção primária, na produção de vacinas e imunização da população, e na distribuição de medicamentos sem custo, dentre outras conquistas.

Desde sua criação, o financiamento do SUS não tem sido ideal para permitir a universalidade prevista na Constituição.

A instituição do teto de gastos em 2016 impôs dificuldades ainda maiores. Um estudo publicado na Revista Lancet em 2019 estimou que o teto de gastos não só poderia reverter conquistas do SUS, mas que o retrocesso seria maior em áreas mais vulneráveis, o que aumentaria as desigualdades regionais em saúde. O que era uma estimativa virou realidade.

A chegada da pandemia de Covid-19 no Brasil encontrou o SUS extremamente subfinanciado. A pífia atuação do governo federal na resposta à pandemia tornou a situação ainda pior. Entretanto, não fosse o SUS, muito mais do que 662 mil vidas teriam sido perdidas.

O trabalho de cada pessoa que move a complexa máquina de atenção à saúde (o que inclui portaria, triagem, segurança, transporte, lavanderia, limpeza, cozinha, atendimento médico, exames laboratoriais, enfermagem, cirurgia etc.) foi incansável. Muitos perderam a vida.

Essa realidade do SUS foi brilhantemente retratada no documentário Quando falta o ar. Produzido pelas irmãs Ana e Helena Petta, o documentário foi o vencedor do É Tudo Verdade, o 27º. Festival Internacional de Documentários, o mais importante prêmio do gênero na América Latina.

A morte, tão constante durante a pandemia, é um tema presente no documentário. A genialidade da obra, entretanto, está em ter trazido o dia a dia dos trabalhadores do SUS durante a pandemia, o saber ouvir e cuidar, a empatia e a solidariedade, os gestos de carinho, e a coragem de enfrentar o medo apesar da exaustão emocional.

Ao mostrar os desafios do atendimento a populações ribeirinhas na Amazônia, a rotina de uma UTI, o trabalho em uma unidade prisional e a rotina de agentes comunitários de saúde e médicos de família, o documentário expõe uma realidade ignorada por uma parcela da população brasileira.

Quando falta o ar é um relato humanizado da vitória de um sistema de saúde que remou contra a maré para salvar vidas, é uma obra de arte e de conscientização social. Deve ser visto por todos que se importam com o Brasil.

Durante a vacinação contra a Covid-19 foram comuns as manifestações de apoio ao SUS com cartazes, declarações e postagens orgulhosas de cartões de vacinação em redes sociais. Esse apoio precisa continuar.

As críticas, tão comuns ao SUS antes da pandemia, deveriam se transformar em cobranças da sociedade para que as lideranças priorizem a atenção à saúde com equidade e, portanto, fortaleçam o SUS. Criticar sem buscar mudança é inútil.

Como disse a médica de saúde da família Rafaela Pacheco, no documentário Quando falta o ar, “O SUS é uma política de estado, não é uma política de governo.” Governos ruins vêm e vão. Causam retrocessos. Mas o SUS há de prevalecer. Caso contrário, 160 milhões de pessoas no Brasil não teriam acesso a saúde.

Que a importância do SUS durante a pandemia, apesar das dificuldades, jamais seja esquecida. E que a necessidade de um sistema de saúde universal e de qualidade no Brasil seja uma prioridade nas escolhas eleitorais em outubro.

Ilegalismo autoritário é obra de juristas, por Conrad Hubner Mendes.

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Existe diferença entre instrumentalizar o direito e arrebentá-lo

Conrad Hubner Mendes, Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade – SBPC

Folha de São Paulo, 14/04/2022

Democracias pelo mundo passam por processo gradual de autocratização na última década. Sobretudo algumas emergentes ali pelos anos 90, que buscaram romper, por meio de nova Constituição, com o passado autoritário à esquerda ou à direita.

O Brasil integra esse clube de elite, que reúne Venezuela e Hungria, Polônia e Nicarágua, entre outros. O governo Bolsonaro fez acelerar o processo e virou um dos líderes dessa onda. Um meteoro.

Quem diz isso não é o PT, nem “a esquerda”, nem os cavaleiros da távola comunista, mas relatórios globais produzidos por centros de pesquisa no mundo. Seja por qual ângulo se observa (o da democracia, estado de direito, liberdade de expressão, liberdade acadêmica, liberdade de imprensa etc.), as curvas apontam para baixo.

Um dos esforços empreendidos por estudiosos do fenômeno foi entender qual tem sido o papel ou a contribuição do direito nessa história. De que formas um autocrata pode autocratizar o regime sem chamar atenção até que fique tarde demais e os dispositivos de autodefesa da democracia já estejam dilacerados?

A resposta tem sido: reformando, peça por peça, com aparência de regularidade jurídica e procedimental, a espinha dorsal da arquitetura constitucional. De um modo tão dissimulado que deixe os grilos falantes da mensagem “instituições funcionando” cantando tranquilos. A professora norte-americana Kim Scheppele deu a isso o nome de “legalismo autocrático”. O termo pegou.

Bolsonaro criou seu repertório para se relacionar com o direito. Entre suas técnicas está a hiperprodução de normas clamorosamente ilegais (decretos, resoluções, portarias), ou, a partir da aliança com Arthur Lira, de uma avalanche de projetos de lei de clara inconstitucionalidade.

A estratégia desafia instituições judiciais, que recebem o peso político de fazer seu dever: declarar a ilegalidade ou inconstitucionalidade da norma. Gera estresse e fadiga da legalidade. Podem haver razões jurídicas óbvias para a invalidação, mas faltam a juízes força e vontade de segurar o rojão.

Bolsonaro acrescenta ao repertório um discurso incivil que estimula o desrespeito à lei e promete ao crime organizado (como garimpeiros, grileiros e traficantes de madeira) a leniência fiscalizatória.

O discurso incivil também intimida e estigmatiza grupos sociais, que passam a viver em estado de apreensão (cientistas, professores, jornalistas, artistas, indígenas, defensores de direitos etc.). Alguns desses indivíduos são mortos, outros assediados.

O erro de caracterizar esse repertório da delinquência política como legalismo autocrático ou, na versão brasileira, infralegalismo autoritário, é supor que, em qualquer lugar da operação, haja “legalismo”. Ou que, na manipulação escancarada de procedimentos e na violação explícita da substância de normas constitucionais ou legais, pelo menos a formalidade jurídica está sendo respeitada. Não está. Nunca esteve. Nem a letra, nem o espírito da lei.

Parece uma firula acadêmica, mas não é. O termo “legalismo” tem uma tradição. Filósofos do direito dos mais diversos enxergam no legalismo valores formais que, ainda que insuficientes, são pré-requisitos para a autonomia individual e o governo livre.

O pedigree “legalismo” foi conferido a uma prática que não cumpre sequer exigências formais elementares como publicidade e estabilidade das normas, o limite à discricionariedade manipulativa, ou a congruência entre o conteúdo da lei e o ato do agente público. Parece pouca coisa, mas é pouca coisa que autocrata não respeita. Não dá para dar o nome de “legalismo” à chula ilegalidade.

Melhor, portanto, chamá-lo de “ilegalismo” autoritário. Esse processo não instrumentaliza o direito, apenas o arrebenta. Instrumentaliza, sim, juristas invertebrados que dão seu selo de expertise à violência institucional.

Como cada ministro da Justiça, cada advogado da união e procurador, cada jurista que, dentro ou fora do governo, por meio de pareceres abstrusos, buscou validar juridicamente a corrosão institucional do país (“cupinização”, na metáfora de Cármen Lúcia).

Ou chamá-lo, alternativamente, e com mais exatidão, de “juristismo” autoritário, pois ilumina a face humana e encarnada da operação. É o jurista servil e alpinista, barato e saltitante, que opera a máquina. A legalidade formal, ou legalismo, passa longe desses “técnicos” do direito. Um problema concreto de ética individual e profissional, não só de hermenêutica jurídica.

Juristas sem compromisso com os valores pressupostos pelo estado de direito, valores sem os quais a defesa do estado de direito se torna vazia e desprovida de sentido, são personagens onipresentes na história universal do autoritarismo.

Por onde tenha passado um autocrata, havia no seu bolso um chaveirinho que se dizia jurista. Esse bibelô verborrágico e perverso nunca praticou legalismo.