Redes sociais e o partido digital de massas, entrevista com Bruna Della Torre

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Pesquisadora explora a hipótese de uma indústria cultural digital – entre a vitrine narcisista e a extração de dados. Uma falsa esfera pública que, nas mãos das Big Techs, favorece a ultradireita. Poderá a esquerda se organizar fora desses espaços?

Bruna Della Torre, no Blog da Boitempo – Outras Mídias – 30/04/2025

A entrevista abaixo foi preparada para a mesa redonda “América Latina: linhas de conflito na luta pela democracia”, de que participou a pesquisadora Bruna Della Torre ao lado de Silke Pfeiffer (Brot für die Welt), Pablo de Marinis (Universidad de Buenos Aires) e Jennie Dador Tozzini (ex-diretora executiva da Coordenação Nacional de Direitos Humanos – Peru). O debate fez parte da programação de um evento chamado “Democracia e autoritarismo: desdobramentos autocráticos, análises e contra-estratégias”, que ocorreu em 26 de abril em Frankfurt e foi organizado pela Associação Democracia Transnacional, em cooperação com as seguintes instituições: Instituto de Pesquisa Social; Brot für die Welt; Offenes Haus der Kulturen; mehr als wählen e. V.; World Design Capital 2026; Frankfurter Rundschau e Feira do Livro de Frankfurt. As perguntas são de Silke Pfeiffer e as respostas são de Bruna Della Torre

Depois de superar a ditadura militar nos anos 80, seu país sofreu recentemente uma experiência autoritária muito forte sob o regime de Jair Bolsonaro. Em sua pesquisa, você está investigando a influência da internet e especialmente das mídias sociais na política. Como funciona a propaganda digital da extrema direita e que efeitos está tendo?

Obrigada pela pergunta, Silke, é um prazer estar aqui com vocês neste prédio que Max Horkheimer presenteou aos estudantes para que tivessem um espaço autônomo para promover sua própria formação política (algo inimaginável na universidade hoje em dia). Entre 2021 e 2024, empreendi uma pesquisa motivada pela inquietação que me causou o rumo político do Brasil após a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Aquela eleição foi importante porque produziu, como você mesma disse, um processo de ruptura com a Nova República. Bolsonaro venceu exaltando o passado da ditadura militar e o torturador da ex-presidenta Dilma Rousseff. Durante esse período, analisei como a infraestrutura digital favoreceu formas renovadas de organização neofascista. Investiguei a propaganda dessa extrema direita nas redes ao longo desses anos, especialmente no Instagram, Telegram, TikTok e YouTube. Minha atenção se concentrou principalmente no próprio presidente Jair Bolsonaro e seus filhos Eduardo, Flávio e Carlos (políticos profissionais), mas também em grandes influenciadores de extrema direita. Parte dessa pesquisa também se concentrou na questão de gênero. Investiguei diversas formas de propaganda antifeminista, especialmente a produzida por influenciadoras, pastoras e pela esposa do presidente.
Concretamente, interessa-me explorar a hipótese de que a indústria cultural digital — isto é, o complexo de redes sociais, plataformas e dispositivos tecnológicos — opera hoje como uma nova forma de organização política que substituiu, em muitos casos, o partido de massas na articulação da extrema direita. Ou seja, a indústria cultural digital, tal como hoje configurada, não é simplesmente um meio de comunicação… mas uma forma de organização política do neofascismo. As redes não são apenas o lugar da propaganda, mas da própria política.

De fato, a indústria cultural (como o rádio e o cinema) já havia sido um dos principais instrumentos do fascismo histórico; porém, não chegou a substituir a importância do partido. O desenvolvimento mais recente das forças produtivas modificou substancialmente esse equilíbrio. As redes sociais possuem hoje uma capilaridade social que nenhuma outra organização jamais sonhou alcançar. As campanhas eleitorais hoje se desenvolvem quase exclusivamente por meio delas. O partido de massas foi substituído por uma nova forma: o partido digital de massas, uma estrutura que combina verticalidade — conectando diretamente o líder aos seus seguidores, da propaganda governamental às milícias digitais — e horizontalidade — articulando grupos marginais que antes estavam isolados e gerando nas pessoas (muitas vezes excluídas da política) uma falsa sensação de participação ativa. Nada disso é exatamente novo, mas é importante destacar. No Brasil, muitos influenciadores foram eleitos deputados. O que se observa é que, com esse tipo de propaganda, não há mais uma diferenciação clara entre um agitador de extrema direita e um político — essa mudança é muito importante. A direita está conseguindo o que a esquerda, em muitos casos, não conseguiu: mobilizar pessoas das redes para as ruas em questão de minutos, organizando não apenas manifestações, mas até tentativas de golpe político. Os episódios do Capitólio nos EUA e da invasão do Congresso e do Supremo Tribunal Federal no Brasil por parte de neofascistas são apenas duas manifestações de um potencial muito maior.

Em geral, o que observei nessa propaganda é o que temos visto, em termos de conteúdo, em toda a extrema direita: um discurso contra a chamada “ideologia de gênero” — que inclui um forte e influente movimento antifeminista —, o reforço do racismo estrutural presente na sociedade brasileira, o negacionismo, uma retórica neoliberal favorável às plataformas digitais e à livre circulação de armas, e uma particularidade brasileira que, a meu ver, consiste no reforço da lógica religiosa muito apocalíptica, especialmente das igrejas evangélicas, cuja propaganda é ostensiva nessas redes.

No entanto, em geral, nada disso é verdadeiramente novo. Contém muitos elementos do chamado fascismo histórico. Há bodes expiatórios (o Partido dos Trabalhadores, as feministas, os receptores de benefícios sociais que “não trabalham”); há promessas de que as frustrações e ressentimentos atuais serão eliminados por determinadas políticas; há empoderamento dos seus seguidores, há um constante recurso a agravos econômicos, morais, culturais e políticos; há uma produção sistemática de desconfiança e paranoia generalizada; há uma mobilização dos complexos de dependência das pessoas e uma produção de ansiedade social e psíquica generalizada. O exemplo mais ilustrativo desse fenômeno foi um meme que teve impacto considerável na eleição de Bolsonaro: uma imagem de uma mamadeira com um bico em forma de pênis, amplamente difundida nas redes sociais, acompanhada da afirmação de que o Partido dos Trabalhadores planejava instaurar uma “ditadura gay” no Brasil. Essa propaganda opera em uma complexa rede de inter-relações que torna insuficiente estudar apenas o capitalismo. Ela contém elementos políticos, econômicos, psíquicos, sociais, de gênero, entre outros. O que realmente muda é sua escala e seu alcance. Isso, sim, é novo. E trata-se de uma mudança quantitativa que traz consigo consequências políticas qualitativas. Funciona mobilizando todas essas questões que enumerei anteriormente, mas funciona, acima de tudo, porque é extensiva e ostensiva.

Recentemente você disse em uma entrevista que está tentando decifrar a propaganda digital da extrema direita para “desenvolver estratégias para neutralizá-la, impedi-la ou criar uma brigada contra incêndios.” Como você visualiza tal estratégia? E como vê a esquerda e/ou as organizações da sociedade civil / movimentos sociais reagindo frente a esses desenvolvimentos?

Vou começar respondendo a essa pergunta a partir de uma abordagem teórica, para contar que uma das ideias que inspiraram minha pesquisa foram justamente os estudos sobre a propaganda autoritária realizados por Leo Löwenthal e Norbert Gutermann, publicados no livro Profetas do engano: um estudo das técnicas dos agitadores americanos. Esses estudos tinham uma intenção prática. Max Horkheimer, então diretor do Instituto de Pesquisa Social, dizia-se interessado em criar uma espécie de manual contra a propaganda fascista, uma tentativa que acabou não se concretizando. E quando comecei esta pesquisa, minha ideia era, de certa forma, parecida. Do ponto de vista acadêmico, ainda é, e acredito que não se pode pensar em nenhuma estratégia eficaz contra a extrema direita sem compreender como ela funciona.

Mas hoje sou muito mais cética quanto a soluções puramente educativas, por assim dizer. Primeiro, porque existem duas dificuldades intrínsecas. A primeira é que muita gente não entende que não basta desmentir os agitadores de extrema direita ou fazer campanhas contra “fake news”. É muito difícil contestar esses agitadores na base do conteúdo do que dizem, não só porque seu discurso é um “discurso salsinha” — composto de uma junção fragmentária de vários ingredientes heterogêneos entre si, como dizia Theodor W. Adorno — mas porque, na realidade, esses agitadores não falam de fora, mas geralmente surgem do próprio seio de seu público-alvo: falam de dentro das camadas fascistizadas (ou ao menos conseguem transmitir essa impressão aos seus seguidores). Um exemplo: quando Bolsonaro perdeu apoio entre as mulheres devido ao seu machismo, surgiram diversas influenciadoras mulheres nas redes e a própria esposa de Bolsonaro passou a participar ativamente da propaganda antifeminista. Hoje ela é a figura da extrema direita mais bem posicionada nas pesquisas de intenção de voto para as próximas eleições, dada a magnitude de seu papel no fenômeno do pinkwashing  dentro do bolsonarismo. Atualmente, Trump também escolheu como vice-presidente uma figura que, embora não represente necessariamente esse grupo, vem do chamado “cinturão da ferrugem” e, em sua autobiografia e no filme baseado nela, fala sobre o sofrimento da classe trabalhadora branca.

A segunda dificuldade é imaginar que o principal objetivo do agitador seja conquistar a adesão moral ou intelectual de sua audiência. Se seguirmos essa linha de análise, não entenderemos por que alguém como Trump — que declarou publicamente que gostaria de namorar a própria filha — pode ser visto como defensor da família. Como Gutermann afirma, essa propaganda funciona mais como um lubrificante para a violência: não se trata realmente de proteger a família, mas de viabilizar outros discursos, como a violência contra mulheres ou a população LGBTQIA+. Quando Bolsonaro fala de liberdade de expressão, está, na realidade, legitimando discursos que no Brasil constituem crimes, como o racismo. Ele legitima e autoriza essas atitudes violentas. E muitas pessoas se sentem agradecidas, pois possuem um ressentimento profundo por não poder expressar livremente esse racismo em um país que viveu quase quinhentos anos de escravidão.

Finalmente, há o problema da escala. As redes sociais são, assim como o capital financeiro, em certa medida incontroláveis. E nelas a direita domina o meio muito melhor que nós. Mais ainda: para usar uma ideia de Adorno, a venda de uma ideia política como se fosse uma mercadoria — como faz a extrema direita — ocorre hoje em um ambiente monetizado como nunca antes na história. As Big Tech remuneram a agitação de extrema direita. Isso transforma nossa luta não apenas em uma luta ideológica, mas também econômica. Como sempre, eles contam com o respaldo do grande capital. É complexo. Acredito que uma parte da esquerda, especialmente no Brasil, já se deu conta disso, mas isso não ocorre em outras partes do mundo. As redes sociais ainda são percebidas como uma tecnologia neutra.

O que penso que é a única estratégia válida neste momento seria algo como “abra-te sésamo: queremos sair do mundo digital”. Nossa estratégia deve se orientar para o restabelecimento de vínculos sociais e políticos fora das redes. E, por fim, uma nota materialista, talvez a mais importante: Horkheimer advertia que os agitadores têm um público diferente em tempos de crise econômica. Em tempos de crise, há muito mais espaço para mobilizar o descontentamento em múltiplas direções. Portanto, compreender e transformar o sistema em que vivemos é essencial.

Que influência têm os desenvolvimentos internacionais (Trump e Big Tech nos EUA)?

Hoje, as Big Tech são uma das forças sociais — ou antissociais, se preferirmos — mais poderosas que existem. Há pouco tempo, elas teriam sido classificadas como rackets  (organizações mafiosas). O problema do capitalismo monopolista que estamos experimentando é que ele implica uma concentração de poder enorme — por isso, um dos seus riscos é o neofascismo, ou o autoritarismo, se quisermos empregar um termo mais brando. Poderíamos dizer que não é possível compreender esse fenômeno sem articular economia e política… O capitalismo monopolista tende a concentrar dinheiro e capital, o que, no mundo capitalista em que vivemos, implica uma concentração de poder. Este é o ambiente perfeito para o surgimento de um novo fascismo. Estamos vivendo agora, como fica claro com Trump, sob o neofascismo de plataforma — uma tendência que só se fortalece.

O que acontece com as plataformas é que elas estão demonstrando o quão poderosas são diante das velhas soberanias nacionais ou mesmo diante de blocos como a União Europeia. E agora as Big Tech chegaram ao governo de um dos países mais poderosos do mundo — talvez o mais poderoso. A pressão que estão exercendo sobre a Europa é brutal. Não vejo isso apenas como algo negativo — embora evidentemente o seja —, mas acredito que a posição da Europa já mudou e terá que mudar ainda mais nos próximos anos. A sinofobia, por exemplo, que é muito forte aqui na Alemanha e em outros países, também vai se transformar com a necessidade de negociar com a China. Assim, aquilo que se conhece como “Ocidente” vai se transformar com Trump.

Por outro lado, a vitória de Trump nos Estados Unidos vai empoderar profundamente as direitas europeias — já estamos vendo isso na relação entre Musk e a AfD, e com a visita de J.D. Vance à Alemanha. Agora a Europa terá que demonstrar ao mundo quão fortes são suas democracias. Acho que precisamos reconhecer que a extrema direita está organizada internacionalmente — muito mais do que nós. E isso é um problema, porque historicamente os internacionalistas sempre fomos nós. E apesar dos discursos sobre tarifas e protecionismo, a direita estadunidense está exportando um modelo de governo para muitos outros países.

Mas, para dizer algo em um tom mais otimista — se é que este mundo ainda permite algum tipo de otimismo —, vale lembrar que o Brasil se tornou agora um caso-laboratório — por enquanto — também no que diz respeito à contenção do fascismo, e acredito que isso poderá servir de exemplo para a Europa. Embora Bolsonaro não tenha sido julgado nem sancionado por sua atuação como presidente durante a pandemia de Covid-19, como deveria ter sido, ele foi finalmente declarado inelegível por oito anos por abuso de poder político e econômico nas celebrações do Bicentenário da Independência. Atualmente, também é formalmente acusado em um processo judicial que investiga seu papel na incitação ao episódio de 8 de janeiro, no qual uma multidão invadiu as sedes dos Três Poderes em Brasília. Espero que esse tipo de política leve a Europa a estudar e buscar apoio naqueles lugares que estão conseguindo conter a extrema direita. Líderes como Trump não deveriam poder se candidatar a eleições. E a AfD, com suas propostas racistas e neonazistas, também deveria ser proscrita. Pensar que permitir que movimentos de extrema direita cheguem ao poder é um ato democrático é uma ilusão. Trata-se de uma interpretação extremamente superficial do que significa democracia, e acredito que esta é a lição que a Europa precisa aprender agora se não quiser seguir o mesmo caminho dos Estados Unidos. É claro que isso não é suficiente e temos que derrotar o fascismo no corpo social, porém, devido à força mercantil e política desse movimento, precisamos usar todas as ferramentas que temos, principalmente as jurídicas e institucionais.

As redes sociais não são lugares contraditórios que também abrigam a esquerda?

Acredito que a pergunta sobre o caráter contraditório das redes sociais e sobre como deveríamos ocupá-las é uma das que mais ouço quando falo sobre o tema. Confesso que tenho um ceticismo profundo quanto à possibilidade de que alguma mudança parta da esquerda dentro dessas redes — ceteris paribus, ou seja, tal como elas existem hoje. Embora pareçam constituir uma nova esfera pública, convém lembrar que, na realidade, se tratam de grandes monopólios capitalistas baseados na publicidade — daí a analogia com o que Adorno e Horkheimer chamaram de indústria cultural que guia minha pesquisa. São sistemas fechados, cujo funcionamento desconhecemos e que não estão sob nosso controle, mas sob o controle de algoritmos definidos por essa elite que hoje vemos vinculada a figuras como Trump: Elon Musk, Mark Zuckerberg… apenas para mencionar dois dos Broligarcas.

Mas as redes sociais não têm absolutamente nada de público. São uma mistura de prisão — totalmente baseada na vigilância — e shopping center. E não sei se seria possível, nem sequer desejável, tentarmos disputar um shopping center. Não é porque as redes são digitais que elas não funcionam como uma espécie de shopping. Ainda mais quando, como mostraram diversas pesquisas, hoje mais da metade de nossas interações na internet ocorrem com bots. Imaginemos a quantidade de energia e tempo que precisaríamos investir, como esquerda, para tentar nos tornar hegemônicos nesses espaços. Ou aceitamos a mesma lógica e colocamos nossos próprios bots  para interagir com os deles, ou consumimos toda a nossa energia nessa tarefa.

A indústria cultural hoje não é apenas um espaço, é um processo, uma forma social, se quisermos, que favorece objetiva e subjetivamente a extrema direita. É uma ferramenta de produção de comportamentos, de extração de dados, de trabalho e de imaginação política.

Uma alternativa mais interessante — creio eu — seria, em primeiro lugar, compreender a fundo o fenômeno com que estamos lidando e nos reorganizar coletivamente fora desses espaços. Hoje existe um fetichismo muito forte em torno da tecnologia, mas não devemos esquecer que todas as revoluções do século XX foram feitas sem redes sociais. Precisamos expandir nossa imaginação política além dos limites que o capitalismo impõe. Essa sempre foi a tarefa da esquerda e da teoria crítica: imaginar e agir para além do existente.

Você está morando na Alemanha. Como você enxerga a AfD hoje?

Seria preciso comentar a relação da AfD com a história política da Alemanha, que é complexa e problemática, mas para ser rápida, vou ficar no tema da propaganda e comentar um pouco como acho que a AfD tem atuado em sua propaganda e por que ela tem sido tão eficaz.

Acredito que a AfD possui uma perícia incomparável no campo da propaganda neofascista. Seus memes, que invadiram o Instagram, e seus vídeos no TikTok têm uma estética muito característica — a propaganda da AfD é coerente e bem organizada. Ela possui uma identidade visual própria. Uma primeira observação sobre a AfD: A AfD parece falar a língua dos jovens e conseguiu tornar o neonazismo algo cool. Não se apresenta como um partido, mas como uma “alternativa”. Ao eliminar a palavra “partido” de seu nome, mostra-se como um movimento independente, com forte apelo entre a juventude. Um clássico do fascismo histórico. Sua campanha foi amplamente conduzida pelas redes sociais. O símbolo do partido se assemelha ao da Nike e simboliza o movimento (para a direita).

A propaganda da AfD tem, evidentemente, suas particularidades locais. É, por assim dizer, mais “social” que a extrema direita brasileira, apesar de defender direitos sociais apenas para os alemães, e não para os imigrantes. Vale dizer que, no Brasil, a direita não defende nenhum direito social e apresenta um discurso neoliberal muito mais explícito.

Também é importante comentar a questão da guerra: aqui, a AfD adotou uma posição contrária à guerra na Ucrânia, responsabilizando os chamados partidos da ordem por seu estopim. Outro ponto muito significativo é a questão climática, que ocupa um lugar central no debate público na Alemanha. Um exemplo de como essa propaganda atua em relação ao tema climático, que é um tema muito importante aqui: ela ativa uma série de ansiedades econômicas, associando a transição energética à desindustrialização e ao enfraquecimento da economia alemã. Em resposta a uma tentativa do governo de limitar a poluição proveniente das atividades agrícolas, o agronegócio se organizou e invadiu Berlim com seus tratores. Neles, podia-se ver hasteada uma bandeira com o lema: Farmers for Future [Agricultores pelo Futuro], uma referência distorcida ao movimento Fridays for Future [Sextas-feiras pelo Futuro], um dos maiores movimentos sociais na Alemanha e na Europa hoje (cuja figura mais representativa é Greta Thunberg). Assim como no Brasil, a propaganda vinculada ao agronegócio tenta ressignificá-lo: em vez de apresentá-lo como um empreendimento capitalista ultraliberal e nocivo à natureza, ele é retratado como um setor da economia que preserva as tradições rurais, alimenta a população e cumpre assim até mesmo uma função social. Com isso, a AfD ganha força também nas zonas rurais e reativa o velho ódio nazista às grandes cidades e ao seu cosmopolitismo (vale lembrar, por exemplo, o desprezo de Hitler por Berlim).

Esse tipo de propaganda, em última instância, também é capaz de ampliar a noção do econômico e fazer com que as pessoas o experienciem na vida cotidiana.

Outro exemplo: há um vídeo em que se enumeram várias razões para não votar na AfD — “se você deseja a guerra, não vote na AfD; se você acredita que homens podem engravidar, não vote na AfD” —, e que termina com uma afirmação absurda: “se você gosta de comer insetos, não vote na AfD”. A afirmação, completamente disparatada, associa a questão climática ao fim do prazer de comer, em uma sociedade em que esse prazer está associado ao consumo de carne (não por acaso, o veganismo é também um dos alvos favoritos da direita). Trata-se de uma tática já utilizada no Brasil por Carlos Bolsonaro. Nota-se que eles estão organizados e compartilham numerosos materiais de propaganda. A ideia é levar ao extremo os cenários de sacrifício exigidos pela crise climática e, com isso, fazer com que as pessoas, por medo de perder seu modo de vida, nem sequer reconheçam o problema. É uma espécie de mobilização reacionária do surrealismo, de tão inverossímeis que são os exemplos.

A Alemanha, embora tenha reduzido suas emissões de CO₂ (em 2024 registrou o nível mais baixo em 70 anos), consumiu em apenas quatro meses de 2024 o que, em termos sustentáveis, deveria ter sido consumido em um ano inteiro. Ao contrário do governo, a AfD não exige sacrifícios de seus eleitores e, além disso, promete recompensas imediatas. Uma política de esquerda deve estar consciente desse problema ao formular um programa que tenha no centro a própria sobrevivência, por mais justa e verdadeira que seja a ameaça climática.

Para terminar, já que estamos discutindo também alternativas, aqui, creio que seria necessário discutir como a esquerda precisa ser novamente o movimento que oferece, para usar uma expressão baudelairiana, uma promessa de felicidade — real, tangível, possível. Enquanto não formos capazes de fazer isso, o futuro será deles.

 

Disputa pela hegemonia no mundo integrado, por Tarso Genro

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Tarso Genro – A Terra é Redonda – 04/05/2025

A disputa hegemônica migrou para o controle digital e a financeirização do Estado, com atores globais e elites locais corroendo a democracia em favor de interesses privados

Os protagonistas da disputa pela hegemonia política e cultural na sociedade capitalista dos anos 1980, então conceituada (Adam Schaff) como “sociedade informática” – hoje já selada como “infodigital” – não tinham em mãos um instrumental tecnológico tão diverso e variado, com a capacidade tão ampla de fazer circular dados, opiniões, recursos, com a velocidade e a precisão tão aproximadas das regras espontâneas do mercado, como no fim deste quarto de século.

Na sociedade industrial contemporânea, a partir do rádio e depois da televisão, já predominavam – embora presentes de forma atenuada – as influências dos novos meios e instrumentos tecnológicos, tanto de sedução para concertos e acordos políticos, como de verificação e disseminação de conflitos políticos, embora tudo isso corresse em tempos mais lentos. As técnicas mais adequadas à propagação de produtos para o mercado (como publicidade) predominavam nesta primeira etapa, embora já difundindo informações para semear novos sentidos para a política, numa sociedade com suas classes tradicionais em diluição.

As informações de interesse público ou simplesmente importantes (em diferentes formatos) eram selecionadas pelos grupos empresariais de comunicação locais e nacionais e disputadas, no seu enquadramento, com os partidos políticos, sindicatos, grupos de “interesse” – grupos de pressão de diversas origens – que compunham, à época, sistemas de relacionamento com fontes visíveis de poder para tentar, com seus movimentos rebeldes ou conservadores, mudar a ordem, melhorá-la ou conservá-la, de acordo com seus interesses imediatos.

Pode ser dito que a disputa, neste momento, era principalmente – ainda que anterior às revoluções tecnológicas em curso – determinada pela verticalidade do poder concentrado e que hoje se dá principalmente pela horizontalidade do poder repartido. No atual ciclo de relação das tecnologias informacionais com a política e com a cultura, todavia, há uma nova concentração de poder: externa à nação, ao Estado-nação, ao município e ao território.

Esta concentração de poder também é verticalizada, contudo movida pelos fluxos em rede, com mensagens na velocidade da luz. A sua transferência de mensagens e dados tem também mais precisão, na sua difusão espacial, não só no que refere à parte que penetra na estrutura de classes que ela quer alcançar, como também no que toca aos lugares do território soberano, que as mensagens querem influenciar.

De outra parte, esta transferência de informações planejadas por estes novos centros de poder, só é passível de ser controlada por estes, até o momento da sua dispersão pelas redes sociais, nas quais o poder de transferir e comunicar se socializa. Ali estão organizados os grupos de ação que dominam tecnologias mais fáceis de serem comandadas, embora muito mais complexas para serem produzidas.

Hoje a disputa pela hegemonia no mundo integrado pela circulação do capital financeiro “legal ou ilegal”, passa, portanto por outros caminhos e ocorre internamente ao Estado, como parcerias público-privadas e pactos de privatização de seus serviços essenciais, que integram – cada vez mais – os grandes conglomerados privados globais nos mandos diretos do poder de Estado.

Estes, que passam a prestar serviços públicos essenciais com um monopólio de fácil lucratividade e direcionado para clientelas cativas, instauram – então – nas instituições sua força imperial. E externamente ao Estado, a disputa pela hegemonia passa igualmente pelos processos eleitorais e pelas mobilizações da sociedade civil, através das alianças políticas para atacar ou defender o Estado social e a democracia.

A relação política reformista e democrática com o Estado, com as redes sociais dispersas e com uma intersecção planejada e centralizada de ações políticas digitais, são os novos espaços de disputa que os partidos, governos sociais-democratas e democrático-republicanos, devem ter como prioridade na disputa pela hegemonia. É preciso considerar que este trabalho, para as classes dominantes e facções neoliberais, é feito pela imprensa tradicional e comercial, de maneira “voluntária” (ou paga), mais (ou menos) espontânea, em favor dos seus interesses privatizantes de natureza selvagem.

Os grupos empresariais e os Estados dos países dominantes, vinculados ao novo sistema-mundo da globalização, também em crise de hegemonia, olham este processo com objetivos claros, simplesmente considerando-os como renovação da abertura de uma nova fronteira de acumulação de capital e também de acumulação de força política.

A primeira, para prepararem-se para as guerras inevitáveis, a segunda, para apoiarem os regimes democráticos apenas nos limites dos seus interesses de acumulação.

Os seus pactos políticos de composição de alianças e os seus contratos financeiros de publicidade refletem, abertamente, a aglutinação sistêmica e a força que têm os líderes partidários “das classes altas” – com ou sem partido – que fazem de cada momento de privatização dos serviços públicos um degrau mais avançado de domínio do poder político. Tal conduta dissolve – lenta e seguramente – as fronteiras do público e do privado, asfixiando a democracia eleitoral com o uso da força destes poderes “de fato”.

Esta interação permite fazer, não só a conversão do Estado social em uma estrutura privada de caráter monopolista para prestar serviços essenciais a alto custo, mas também um processo de intervenção permanente nos processos eleitorais, com a proliferação de privatizações selvagens, leniência acrítica com os governos ímprobos e com os cuidados do ambiente natural, bem como na prevenção de catástrofes, gerando dinheiro vivo – com as privatizações – que servem de oxigênio financeiro para as suas alianças contra as formas consagradas do Estado social de direito.

Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).

 

Pessoa em situação de mendigo, por Antonio Prata

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Qualquer corrupção linguística para maquiar sua condição serve só para amenizar nossa culpa

Antonio Prata, Escritor e roteirista, autor de “Por quem as panelas batem”

Folha de São Paulo, 04/05/2025

Tenho ódio sempre que ouço essa aberração do politicamente correto: “Pessoa em situação de rua”. Primeiro porque não existe, em nosso idioma, ninguém “em situação” de nada. Nunca estive ou conheci alguém “em situação de gripe”. Lá pelo meio-dia não estou “em situação de fome” e depois da meia-noite nunca me descreveria “em situação de sono”. Não sei de onde importaram essa frase horrível, só sei que ela não foi bem adaptada à nossa “situação de língua”.

Não é a “situação de aberração”, porém, que me revolta mais ao falarmos “pessoa em situação de rua”. É a mentira que a frase, em sua deliberada assepsia semântica, tenta passar. É como se o sujeito que tá dormindo na calçada, em cima de uma caixa de papelão aberta, coberto com aquela manta de proteger móvel em mudança, com uma garrafa (vazia) de cachaça ao lado, sem tomar banho há semanas, sem laços sociais, familiares, talvez viciado em crack, enfim, é como se essa pessoa ferrada estivesse numa “situação” momentânea que logo, logo, vai ser resolvida. Tipo: o cara perdeu o último ônibus pro seu bairro, ficou em “situação de rua”, mas amanhã pegará o busão e estará “em situação de casa”.

Mendigo é o nome dessa pessoa. Mendigo não é alguém que simplesmente não tem casa. Não tá em “situação de rua” e nem é “sem teto”. É sem tudo. É o fundo do fundo do alçapão no fundo do alçapão do poço. Qualquer corrupção linguística para maquiar sua condição serve só para amenizar nossa culpa. É calhorda. É covarde. Em vez de tentar salvar a pessoa da degradação total, fingimos que ela não está assim tão mal. “Só uma situação”.

Fingir é uma grande habilidade nossa, brasileira. Difícil viver e ser são neste país sem fingir barbaramente um monte de coisa. Finge que o cara tá “em situação de rua”. Finge que não vê os miseráveis nos faróis de trânsito. Finge que não vê o mar de favelas sob o Rodoanel. Finge que não teve tentativa de golpe. Finge que é normal o “o orçamento secreto”.  Finge que a CBF tem algum interesse na melhoria do futebol brasileiro. Pensando bem, não é só um fenômeno brasileiro. O mundo finge que não tá acabando.

Tudo isso pra chegar na grande mágica, no grande fingimento, não só semântico, mas concreto, urbano, proposto pelo vice da prefeitura: trocar mendigos por carros embaixo do Minhocão. Tirar “pessoas em situação de rua” e colocar “carros em situação de estacionamento”.

Se a gambiarra semântica da esquerda parece bizarra, por “amaciar” a existência dos mendigos, o que a direita propõe agora em São Paulo vai muito além. É a metonímia feita ação. É a falta de vergonha: “vamos sumir com esses pobres!”. Vai ter matéria mostrando como a área do Minhocão ficou mais bonita. Mais segura. Vai gerar renda. Não tenho a menor dúvida. Varrer a miséria pra longe sempre melhora o perto. Eu, se morasse ali, não seria hipócrita. Adoraria a medida. A questão é que esses pobres existem. Continuarão na rua, em outra rua. Na frente da casa de outra pessoa. E continuarão sem casa, sem trabalho, sem banho, sem porra nenhuma, “em situação de mendigo”, em algum lugar.

 

O dilema dos bancos centrais após as tarifas, por Ana Paula Vescovi

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Autoridades monetárias enfrentam desafio histórico, sem registro em mais de meio século

Ana Paulo Vescovi, Economista-chefe do Santander Brasil

Folha de São Paulo, 04/05/2025

Estamos testemunhando uma transformação no comércio internacional, na geopolítica e na tecnologia. A expressão “mudança de regime” tem sido muito frequente nos últimos dias. A crença predominante é que estamos diante de uma ruptura nas relações produtivas e políticas que reconfigurarão a economia global nos próximos anos.

A ausência de clareza nunca foi tão alta. O Índice de Incerteza da Política Econômica nos EUA, medido por Baker, Bloom & Davis, atingiu seu ponto mais alto desde 1985, superando em quase 100% o recorde anterior, da pandemia da Covid-19. Esse cenário de imprevisibilidade contaminou o mundo, elevando o Índice Global de Incerteza da Política Econômica de volta ao pico observado na crise sanitária.

Anualmente, na primavera do hemisfério Norte, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial realizam reuniões em Washington (EUA), para discutir a economia global e seus impactos regionais. Paralelamente, ocorrem encontros com gestores públicos, como ministros da Fazenda, secretários do Tesouro e diretores de bancos centrais. Neste ano, a mudança de gestão nos EUA, com a política tarifária do governo, foi o tema central.

O “tarifaço de Trump” é inédito: 10% no geral; 25% em alguns setores; e medidas tarifárias recíprocas “individualizadas”, elevadas em razão do tamanho do déficit comercial dos EUA com outros países. A China, com retaliação, enfrenta alíquotas superiores a 100%. As tarifas médias sairiam de cerca de 2,5%, no final do ano passado, para mais de 20%.

A maioria aposta em um cenário nos EUA de estagflação, quando há baixo crescimento com inflação elevada, devido ao choque de oferta causado pelo aumento das tarifas; e uma desaceleração mais acentuada na China, que enfrenta um choque de demanda.

Segundo o presidente do Federal Reserve (Fed, o banco central dos EUA), Jerome Powell, a política de tarifas é algo nunca visto na história moderna, o que leva a interpretar que o Fed navega em águas desconhecidas. Com taxas de importação elevadas e alta incerteza, o risco é o de crescimento fraco, desemprego alto e inflação acelerada. Recentemente, houve um descolamento entre expectativas de inflação, crescentes, e projeções de crescimento, que indicam desaceleração. Se a desaceleração for brusca, o Fed priorizará seu mandato em relação ao crescimento e poderá reduzir taxas de juros no segundo semestre. Ademais, analistas esperam uma política monetária mais cautelosa e reativa, o que poderá mudar o patamar da inflação nos EUA.

No Brasil, os membros do Copom têm sido cautelosos. Qual será o impacto das tarifas? Haverá recessão ou desaceleração suave? O choque de oferta afetará a inflação?

O Banco Central brasileiro está comprometido com a meta de inflação de 3%, ainda que em um horizonte mais longo. É possível esperar uma “desinflação oportunística” se a desaceleração global, especialmente na China, abrir capacidade ociosa na economia brasileira, ajudando a controlar a inflação por aqui.

Contudo, as medidas fiscais e parafiscais expansionistas anunciadas pelo governo desafiam o Banco Central. Com expectativas de inflação desancoradas e crescentes para o próximo ano, acreditamos que haverá mais uma alta da Selic na próxima semana, antes da pausa em junho. Se a desaceleração global e local se confirmar, o ciclo de corte de juros no Brasil poderá começar ainda neste ano, mais lentamente, considerando dois cortes nos EUA no segundo semestre.

Entretanto, os bancos centrais não podem resolver tudo. Trata-se de um ambiente no qual as instituições edificadas desde o pós-Segunda Guerra Mundial tornam-se mais frágeis.

Se a guerra comercial ganhar contornos mais suaves, com acordos bilaterais de comércio com Índia, Japão, China, União Europeia e Canadá e México (USMCA), as tarifas globais poderão ser mais altas que o padrão anterior, mas mais baixas que as anunciadas no “Liberation Day” — definição dada por Trump ao dia 2 de abril de 2025, quando anunciou as novas alíquotas tarifárias. Isso reduziria os impactos disruptivos nos mercados e na economia real. Caso contrário, as políticas econômicas globais precisarão se reposicionar rapidamente, devido a um possível forte rebalanceamento do fluxo de capitais entre as regiões do planeta.

Há uma quebra de confiança que levará países e regiões a buscar maior autonomia em energia, terras-raras, tecnologia (semicondutores), defesa militar e até em temas sanitários, como medicamentos e equipamentos hospitalares. Essa busca por autonomia tende a estar associada a conflitos geopolíticos.

As rupturas nas cadeias produtivas durante a pandemia deixaram um gosto amargo. Subsídios a setores estratégicos e tarifas irão reconfigurar as cadeias produtivas globais. A Europa já mudou sua abordagem, reforçada pelo estímulo fiscal trilionário anunciado pela Alemanha. A China irá endurecer sua postura comercial e militar e buscar refazer suas alianças, inclusive no Oriente Médio.

Os bancos centrais terão de lidar com temas nunca tratados nos manuais de economia. A quebra de regime tão comentada implica dizer que os incentivos econômicos não mais ditarão as relações comerciais entre as nações, e sim a estratégia de domínio de cadeias produtivas e de tecnologias estratégicas. Antever os possíveis impactos da inteligência artificial generativa sobre a produtividade global ainda se coloca como um desafio.

Em tempos tão incertos, a melhor reação para a política monetária passa por estratégia de reação transparente ao risco inflacionário, gradualismo e moderação.

 

O cérebro ideológico, por Hélio Schwartsman

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Livro de neurocientista política mostra que indivíduos capturados por ideologias passam por transformações neurológicas.

Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”

Folha de São Paulo, 04/05/2025

Uma boa pedida para quem quer entender melhor os tempos estranhos em que vivemos é “The Ideological Brain”, da neurocientista política Leor Zmigrod.

Gostamos de imaginar que aqueles que abraçam ideologias com as quais não concordamos são pessoas rasas, que nem se dão ao trabalho de pensar direito sobre as questões em relação às quais se posicionam. Zmigrod mostra que não é bem assim.

Na mais simples de suas muitas definições, a ideologia é um tipo de narrativa que conta uma história atraente sobre o mundo. Mas, diferentemente das histórias produzidas pela cultura, as da ideologia têm caráter absolutista e cobram adesão dogmática. Não toleram contestação e vêm com prescrições. Quem se torna presa de uma ideologia passa por transformações cerebrais profundas, que deixam marcas físicas. Em casos extremos, a ideologia sequestra o próprio pensamento. A pessoa se torna menos singular, menos curiosa, menos livre.

“The Ideological…” não é um livro difícil, mas não simplifica. As inafastáveis descrições neuroanatômicas estão presentes, mas restritas a poucas passagens. Idem para os vários experimentos (da própria autora e de outros) que tentam mostrar quais são os tipos psicológicos mais vulneráveis à ideologia. A rigidez cognitiva é provavelmente o melhor preditor de suscetibilidade.

Histórica e filosoficamente informada (graduou-se em Cambridge), Zmigrod traça a genealogia do termo ideologia, cunhado por Louis Claude de Tracy no século 18 para designar o que deveria ser a ciência que estuda como temos ideias.

Uma desavença entre De Tracy e Napoleão fez com que, após campanha do corso, a palavra fosse ganhando contornos pejorativos até tornar-se quase que um palavrão com Karl Marx.

Algo que chama a atenção é a transparência com que Zmigrod apresenta as limitações e os pontos fracos de suas pesquisas. Se é o antidogmatismo que caracteriza o pensamento não ideológico, Zmigrod nos oferece uma prova prática de como agir.

 

O socialismo e a excepcionalidade chinesa, por Elias Jabbour

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 Elias Jabbour – A Terra é Redonda – 02/05/2025

Chegou a momento de discutir a excepcionalidade chinesa enquanto um socialismo com as características daquela formação histórica que está impondo vitórias sucessivas ao seu próprio povo e derrotas ao imperialismo

O sério e respeitável intelectual e militante Valerio Arcary nos entregou recentemente sua análise particular do processo em curso na China. O texto chamado de “A excepcionalidade chinesa”, publicado no site A Terra é Redonda é mais uma prova da vasta cultura política e histórica de Valerio. Na verdade, ele não trata de uma única excepcionalidade chinesa, mas de algumas – sendo que a linha de cada uma das excepcionalidades leve à constatação de o país ter restaurado o capitalismo, amiúde não ter transformado o regime político; o que em si já instigaria um estudo.

O núcleo do argumento de Valerio Arcary é muito claro e vai na direção dos riscos da esquerda mundial em abraçar um novo campismo em torno da China. Vamos aqui trocar ideias sobre alguns pontos levantados no texto de forma não de criticar os pressupostos do escrito, mas no sentido de demonstrar que o desenrolar da experiência chinesa nos demanda não somente uma completa reformulação da gramática política sobre as experiências socialistas.

Devemos rediscutir o próprio socialismo diante dos inegáveis avanços à classe trabalhadora chinesa de um projeto que, antes de mais nada, advoga o socialismo. E não outro “ismo” como nos lembra Xi Jinping.

O verdadeiro “campismo”

De imediato não acredito neste risco. Valerio Arcary fala em “o melhor da esquerda mundial” e os riscos dela se alinhar aos chineses. Em primeiro lugar, o que seria esta esquerda mundial? Se for a esquerda baseada em um marxismo que não se livrou da Europa e que hoje é hegemônica em todo o mundo onde PCs não ocupam o poder político, o risco do campismo não existe. Esta esquerda rejeita as experiências socialistas e observam a China com a mesma cosmovisão que os europeus enxergam os negros, índios, latinos etc.

O que deverá ocorrer, e já ocorre, é a crescente simpatia, de forças nacionalistas revolucionárias que hoje pipocam na África e desalojam governos pró-imperialistas, pela experiência chinesa. São bandeiras chinesas que as pessoas empunham no Níger, Burkina-Faso e alhures como inspiração às suas lutas. Neste sentido, o melhor da esquerda mundial não está no Brasil, na Europa e nos EUA e sim na África onde essa esquerda que enfrenta e derrota o imperialismo francês não é financiada por fundações e/ou ONGs de partidos socialdemocratas europeus como vemos no Brasil e na América Latina operando uma tragédia política de grandes proporções.

Logo, o campismo é entre a esquerda “Open Society” e as forças políticas que integraram o marxismo às suas realidades nacionais. Assim ao africanizar o marxismo, forças políticas que operam no campo oposto da “Open Society” nos entrega esperança, não o niilismo da esquerda no ocidente e sua franja.

A China aí é força política com amplo e decisivo papel positivo no fortalecimento da consciência nacional e revolucionária da periferia africana e asiática do sistema. Suas relações “Sul-Sul” via Iniciativa Cinturão e Rota demonstram com clareza as diferenças entre a globalização financeira que “africanizou a África” e as tendências que o desenvolvimento chinês entrega aos povos do mundo.

Equívocos básicos

Valerio Arcary comete equívocos básicos em seu texto. Por exemplo, Deng Xiaoping não foi preso e torturado na Revolução Cultural, nem tampouco existe uma formulação oficial do governo chinês de uma “NEP de longa duração”, “transição ao capitalismo” e em seguida “um novo giro histórico e reiniciar a passagem ao socialismo.

A formulação oficial é simples objetiva: a China encontra-se na etapa primária do socialismo, etapa esta caracterizada pela convivência de diversas formas de propriedade sob a dominância da propriedade pública. Outro equívoco básico é a colocar acento no “modelo econômico que aprofunda a desigualdade social por uma etapa indefinida não pode ser considerada socialista”.

Aliás, concordo com Valerio Arcary nisso, mas os dados dizem o contrário. Uma pesquisa rápida e fácil nos demonstrará a que as desigualdades sociais e territoriais na China está em curva descendente há pelo menos 20 anos e que esta mesma burguesia que, segundo ele, se favorece de uma ilimitada acumulação de capital tem visto seu patrimônio cair em um terço nos últimos cinco anos, fruto de uma operação em que a contabilidade da firma se submete cada vez mais à contabilidade social. Aqui vou dispensar as fontes, apenas sugerindo pesquisar cada afirmação que exponho aqui.

Valerio Arcary não demonstra conhecimento das políticas executadas pela governança chinesa voltadas ao controle da expansão do capital privado, o verdadeiro enquadramento de sua burguesia a uma ordem política que se tem demonstrado cada vez mais hostil a ela e a inexistência de elementos de contabilidade da firma nas decisões de investimentos estratégicos: o capitalismo é incapaz, em qualquer momento histórico, de entregar 45000 km de trens de alta velocidade em apenas vinte anos.

Outro ponto, que não se trata de um equívoco em si, é o fato de no texto não existir nenhum dado que demonstre de fato que houve uma restauração capitalista na China. Valerio Arcary se contradiz ao propor um estudo capaz de entender a tal da “contrarrevolução social” (sic) sem mudança de regime. Qual o regime anterior a 1978? Não podemos tratar, também, como equívoco a sua alusão ao “massacre” da Praça Tiananmen de 1989. Guarda certa ingenuidade não perceber ou mesmo não se dar ao trabalho de ler os relatórios liberados pela CIA sobre aqueles acontecimentos.

O mesmo pode se dizer sobre a comparação entre Deng Xiaoping e Mikhail Gorbachev. São figuras históricas e políticas antagônicas, inclusive na gramática política chinesa o homem que destruiu a URSS é tratado como um traidor e idiota (adjetivo usado por Deng Xiaoping). As reformas econômicas chinesas nada tem a ver com a Perestroika e a Glasnost. A primeira legitimou um Estado Socialista e as outras duas foram funcionais à destruição da primeira experiência socialista de nossa época.

A “burocracia”

Um dos problemas que identifico nas formulações da corrente política a qual se afilia o professor Valerio Arcary é um certo universalismo de noções pari passu a um envelhecimento das mesmas. Por exemplo, o que não se encaixa em um check-list pode ser considerada “restauração capitalista”. O mesmo se aplica ao conceito amplamente utilizado, e de forma muito séria e competente por León Trótsky, de “burocracia”.

É inescapável em trabalhos de trotskistas o refúgio nessas noções. Aqui eu sugiro substituir o universalismo (um desvio claramente liberal) pela categoria de formação econômico-social. O que significa que a burocracia descrita por León Tróstky, herdeira do czarismo, pouco tem a ver com a burocracia herdeira do modo de produção asiático.

Evidente que a tendência da burocratização é o aburguesamento e digo mais, à corrupção. Esse fenômeno também ocorre na China e é inegável. Não proponho passar por cima desta contradição, que não se tornou uma “contradição antagônica” na China, mas observar que essa burocracia simplesmente realiza: retirou 800 milhões de pessoas da linha da pobreza em 40 anos, construiu 45000 km de trens de alta velocidade em 20 anos, construiu uma imensa economia baseada no setor público capaz de rivalizar a colocar de joelhos o capitalismo estadunidense.

E entrega aumentos salariais nos últimos dez anos acima da inflação, do crescimento do PIB e da produtividade do trabalho, enquadra e coloca limites na burguesia, expropria seus bens e delibera pela distribuição ao povo, constrói um sistema de assembleias populares e de comitês de bairros que foram fundamentais na mobilização de quatro milhões de profissionais da saúde voluntários para enfrentar a morte em Wuhan, planeja a destruição criativa schumpeteriana a ponto de deslocar 200 milhões de chineses do campo às cidades em dez anos sem o risco de favelização etc. etc. etc.

Esta burocracia é herdeira da casta de burocratas que exerciam a administração estatal desde antes de Cristo ocupada com o gerenciamento e execução de imensas obras públicas. A perda de capacidade desta burocracia em entregar grandes obras levava massas camponesas influenciadas por Laotsé a derrubar dinastias.

Ao invés de enveredar a discussões abstratas sobre o “substitucionismo social” seria mais interessante entender a dialética entre o papel histórico do camponês chinês, sua capacidade de pressão sobre a burocracia e as razões de a China não ter sucumbido à contrarrevolução de 1989: os camponeses estavam com o socialismo e não ladeando com um levante pró-imperialista. Hoje esses camponeses são trabalhadores urbanos responsáveis por rebeliões de diversa ordem, colocando contra a parede os herdeiros de Mao Zedong.

Não se entende a China sem conhecer profundamente sua história. O que significa que se é atual a velha máxima do “mandato dos céus ser revogável pelo povo”, não é difícil concluir, conhecendo as minúcias de como aquela sociedade funciona, e a história dessas minúcias, que se trata de um país onde ceder a frágeis noções de “país fechado” e “autoritarismo” para descrever um país e sociedade onde o niilismo não comparece e onde se respira futuro.

“Defesa incondicional de realizações”?

Em 1949 a expectativa de vida dos chineses era de 35 anos. Hoje ultrapassou os EUA. As mulheres estavam submetidas ao processo de enfaixar seus pés de forma a criar uma sinistra forma artística para agradar os homens e hoje ocupam postos de destaque em todos os âmbitos da sociedade. O Tibet era uma semicolônia inglesa submetida por uma teocracia escravista e hoje seu padrão de vida melhora de forma mais rápida que as verificadas em outras regiões do país. A China derrotou o imperialismo em sua guerra civil e na Guerra da Coreia e hoje a derrota novamente no campo comercial e tecnológico.

Os avanços sociais incontestes aprofundados desde 1978, não reduzindo à eliminação da pobreza extrema, mas também a possibilidade de um camponês pobre ser submetido a intervenções cirúrgicas complexas e gratuitas há milhares de km de distâncias por um médico mediado por esquemas de inteligência artificial deveria por si ser um desmentido ao despautério de apontar na China uma “contrarrevolução social” quando ocorre simplesmente o oposto e sua realização não se separa do poder político erigido por uma longa luta revolucionária.

Nenhum cidadão chinês minimamente informado concordaria com uma afirmação tão irreal quanto absurda vendo camponeses pobres se transformando em cientistas e uma vibrante democracia de base enviar mais de 3000 emendas às resoluções da última Assembleia Popular Nacional. A decadência da ciência social ocidental, que atinge duramente o marxismo, não está no não reconhecimento dos feitos da revolução chinesa e sim na elaboração de noções sem nenhuma conexão com aquela realidade e a igualando com completa miséria extrema que assola um país, esse sim, de capitalismo dinâmico como a Índia. É o fundo do poço.

Reconhecer os feitos das revoluções socialistas é um ato de humanismo em um mundo onde a miséria, a fome e a guerra se tornam a regra. É negar a tendência ao ceticismo e ao niilismo e uma quase adesão ao racismo; pois é de racismo que se trata quando lemos os veredictos de intelectuais sem nenhum compromisso com o poder político e influenciado pela decadência do marxismo ocidental. Não é o caso de Valerio Arcary, evidente. A humanidade pode vencer e qualquer indicador social chinês nos demonstra isso.

Seria “campismo” o reconhecimento desses feitos? Não. Seria demonstração de fé no futuro. Isso não significa fechar os olhos para as imensas contradições que afetam a sociedade chinesa. A corrupção, a luxuria, a existência (cada vez menor) de bilionários e milionários, crise ambiental, fosso social formado por imensos equívocos de políticas executadas na segunda fase de reformas.

Tudo isso está apontado em meus livros e artigos sobre a China. Mas só se cria contradições onde o Partido Comunista se propõe a ser motor do desenvolvimento. Nada do que ocorreu após 1978 foi planejado milimetricamente. Não, o que veio foi um gigantesco processo de desenvolvimento e suas contradições proporcionais a este processo, além do altíssimo preço deste desenvolvimento.

A “prova do pudim” de um Partido Comunista no poder está no exercício absoluto de seu poder sobre todas as esferas da produção, da finança e impor à burguesia o seu ritmo e objetivos. Afora isso, este teste também se estende à demonstração de capacidade de o Partido Comunista em perceber a contradição e indicar rumos à sua superação.

Desafio alguém me mostrar que o Partido Comunista da China não enfrenta, e está vencendo e apontando rumos, a todas as contradições criadas pelo seu processo de desenvolvimento.

Discutindo o socialismo em nossa época como adultos

A experiência chinesa, imersa tanto em contradições quanto em ferramentas políticas e institucionais para enfrentar suas contradições, deveria nos obrigar não a temer um “campismo” ou nos refugiar em noções criadas na década de 1930 para compreender os limites da URSS sob a ótica de uma corrente política derrotada e sem nenhuma experiência pratica de poder político desde 1917. Deveríamos os render a mais abstrações (visão de processo histórico) e menos prisões no abstrato (visão ideológica e imersa em apriorismos).

Chegou a momento de discutir a excepcionalidade chinesa enquanto um socialismo com as características daquela formação histórica que está impondo vitórias sucessivas ao seu próprio povo e derrotas ao imperialismo vistas somente na 2ª Guerra Mundial.

É preciso encarar o objeto e penetrar nele; descobrir as suas regularidades e coerência interna. Observar como adultos seria colocar todas as contradições daquele processo em perspectiva de movimento real da mesma forma como observamos seus encaminhamentos resultando em um país estranhamente capitalista que nunca passou por uma crise. As estruturas de propriedade baseadas na propriedade pública e crescente participação de conselhos de trabalhadores em decisões de investimento, o amplo controle do Partido Comunista sobre o setor privado.

É descobrir como após 75 anos de poder político exercido no então país mais pobre do mundo, hoje observamos essa forma histórica encaminhando soluções tanto às três questões centrais de nossa época: o desenvolvimento, a paz e a crise climática. É inescapável não colocar, repetindo, que a base dessas realizações é o próprio poder político que se propõe a revolucionar a sua sociedade em saltos qualitativos e fazendo com que a ciência penetre nos poros de seu tecido social.

No detalhe, é ir fundo na investigação de como aquela experiência consegue dar início, meio e fim a todos os projetos as quais ela se propõe. Aqui, percebemos que a ciência do projetamento criada por Ignacio Rangel se realiza na China sob diversas formas. Por exemplo, o sucesso de um grande projeto depende da equalização das estruturas de custo e benefício de todas as cadeias produtivas envolvidas, por exemplo, no projeto de erradicação da pobreza.

A prática de construção de mais de cem anos de socialismo no mundo nos coloca a evidência empírica de que somente o socialismo é capaz de operar essa equalização e que a mesmo sob o capitalismo hoje é impossível e quando foi possível (consenso keynesiano) ocorreu às custas de desperdício imenso de recursos.

O socialismo ainda está no início de sua trajetória histórica, portanto com regularidades ainda em construção. Em nossa época, a experiência chinesa pode nos entregar uma definição de socialismo que a relaciona com a transformação de ciência em instrumento de governo.

Penetrando à fundo na experiência, percebemos que o “socialismo com características chinesas” se distingue dos estados desenvolvimentistas, além da natureza do poder político e da estrutura de propriedade, pelo fato de dar forma a um Estado Socialista que absorve a natureza do Estado Desenvolvimentista e a supera de forma que se demonstre capaz de introduzir contradição no seio do organismo econômico, gerando movimento e corrida da sociedade empenhada no exercício de observar “just in time” a matriz insumo-produto e entregar as soluções institucionais para promover a transferência intersetorial de recursos.

Está aí a excepcionalidade chinesa. O contrário seria admitirmos que o capitalismo – dados os feitos da experiência chinesa – tem um ainda largo caminho civilizatório pela frente. Precisamos sair do jardim da infância que ainda domina o debate sobre o socialismo.

Elias Jabbour é professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ. Autor, entre outros livros, junto com Alberto Gabriele, de China: o socialismo do século XXI (Boitempo) 

A corrosão da cultura acadêmica, por Márcio Luiz Miotto

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Márcio Luiz Miotto – A Terra é Redonda – 01/05/2025

A universidade brasileira está sendo afetada pela ausência, cada vez mais notável, de uma cultura leitora e acadêmica

É notório que a universidade brasileira sofre diversos ataques externos. Mas há algo ocorrendo dentro dela e que talvez ofereça outros perigos para sua própria existência. Trata-se da ausência, cada vez mais notável, de uma cultura leitora e acadêmica.

A falta de cultura leitora diz respeito à notável repulsa (sistemática? crescente?) de muitos universitários em enfrentar os textos, argumentos, deduções de fórmula, memorizações de observação (enfim: desafios, lógicas internas, problemas inerentes aos conteúdos que estudam), fazendo com que o “ensino superior” se transforme numa série de conteúdos e programas rasos, cabíveis em manuais simplificados e plataformas facilmente voltadas ao online.

Essas generalizadas faltas de base e/ou negligência, que provavelmente têm origem fora da universidade (via redes sociais, o “horror ao textão” cultivado nos últimos anos, a pandemia, os problemas de formação etc.), sob certos aspectos tornam-se interiores a ela, pois com frequência as universidades encontram dificuldades para combater certo senso comum não-leitor e atitudes refratárias ao estudo. Na universidade dever-se-ia aprender a ler textos, linguagens e argumentos complexos, a deduzir fórmulas, a (re)construir lógicas e arquiteturas conceituais etc.

Disso advém a corrosão da cultura acadêmica. Sem um senso comum leitor de base ou certa disposição espontânea para uma cultura leitora, as demais práticas constituintes da universidade tendem a esfarelar ou implodir. E a universidade tende a se transformar, ou na melhor das hipóteses a se confundir com outros tipos de ensino não necessariamente universitários, tais como o técnico, o profissionalizante etc.

O resultado visível da erosão da cultura acadêmica é o enfraquecimento da pesquisa, da extensão, da assistência estudantil (a qual permitiria dedicação maior aos afazeres universitários), dos projetos acadêmicos ligados ao ensino (monitorias que deveriam ser iniciações à docência e não meras aulas de reforço, redução das pesquisas monográficas, rarefação dos eventos científicos ou de bolsas de atividades acadêmicas etc.), enfim, daquilo que compõe a universidade no que ela tem de público e universalista.

Essas ameaças à cultura acadêmica talvez sejam reforçadas por algumas reações das próprias universidades a isso. Um exemplo notável é a perspectiva que reduz a pedagogia ao pedagogo, isto é, que individualiza o ensino na simples figura do professor, fazendo dele uma espécie de self made man, de “empresário de si”, enfim, transformando-o em algo como um animador de plateia, alguém cujas estratégias devem necessária e suficientemente garantir a educação (pois a pedagogia, enfim, reduziu-se ao pedagogo).

Se não há um cenário de fundo delimitando o que significa estudar e quais deveriam ser os horizontes de estudo, ou mesmo se esse cenário perdeu seu valor, ao fim resta à figura individual do professor a ingrata tarefa de transformar a pedagogia em picadeiro (sob cenários que, aliás, também são pressionados pelo tema da evasão das universidades). A partir daí, as fórmulas de sucesso e insucesso docente tendem a se resumir em receituários pessoais, convicções de ego, perfis e canais de rede social e expressões do tipo “é, mas comigo (não) é assim”.

A redução da pedagogia ao pedagogo ocorre devido ao apagamento de uma cultura de fundo, aquela que serviria de base para formar eventuais projetos pedagógicos e reunir atuações individuais. E essa redução, bem como esse apagamento, são especialmente vistos nas disciplinas de ciências humanas.

Nas ciências naturais, por exemplo, há debates recorrentes entre aqueles professores que não abrem mão da forma e do rigor (pois afinal, uma fórmula independe de circunstância) e os outros que defendem que o rigor não poderia ser destituído de preocupações pedagógicas ligadas aos perfis dos alunos. Seja qual for o desfecho, ambos os termos desses debates dizem respeito (ou deveriam dizer) a critérios pedagógicos de fundo, os quais presumivelmente servem de horizonte à atuação de qualquer profissional da área, independente de suas escolhas pedagógicas individuais.

Afinal, quer se penda para um ou para o outro lado desse debate, algo permanece o mesmo: um estudante que se depara com uma matéria de ciências exatas sabe que ali haverá questões direta ou indiretamente ligadas a cálculos, experimentos etc., cabendo à pedagogia a pergunta sobre como oferecer melhor essas racionalidades.

Algo correlato poderia ser visto nas matérias de ciências biológicas: a não ser que o professor ludibrie o aluno, independente do cenário uma matéria como a de anatomia, para ser razoavelmente ensinada, sempre exigirá uma racionalidade analítica detalhada, baseada em métodos de observação e certos rituais de análise e memorização. Sem o que, caberia imaginar um oftalmologista que desconhece a anatomia do olho, um neurocientista que desconhece as localizações cerebrais, um fisioterapeuta que desconhece a anatomia do corpo etc.

Em humanidades, entretanto, o apagamento de um horizonte leitor e acadêmico de fundo, e a redução da pedagogia ao pedagogo, por vezes são ainda mais visíveis, dando vazão a práticas – e juízos – bem diversos. É o que alimenta preconceitos como o de que os cursos de humanas seriam sem objetividade, eivados de meras opiniões (“cursos-coxa”, como se diz em algumas gírias paulistas), ou ainda desnecessários ou supérfluos.

Ou em via contrária, há também os juízos de que matérias de humanidades seriam atraentes não devido ao rigor ou ao conteúdo, mas a motivadores ocasionais e arbitrários como as discussões em grupo, os momentos de “descontração” ou o carisma individual do professor, a emulação de memes, a confusão entre a divulgação científica (tão bem feita por gente como Leandro Karnal ou Mario Cortella, dentre outros) e o estudo da ciência etc.

Essa individualização das estratégias, unida ao apagamento da cultura do texto, é muito bem descrita por textos como O método da leitura estrutural, de Ronaldo Macedo (MACEDO, 2007). A simples necessidade de que métodos de leitura sejam ensinados aos ingressantes do estudo superior evidencia que a leitura já não é um item óbvio e natural (como o era na época das fotocópias – pois mesmo se as pessoas apenas fotocopiassem, isso não disfarçava que havia uma injunção materialmente dirigida à leitura generalizada…), e o esforço dos professores para que os alunos leiam significa, mais uma vez, a simples inexistência de uma cultura difundidamente leitora.

Mas há mais: Ronaldo Macedo demonstra em seu texto algumas pesquisas nas quais o Brasil teria ficado entre os últimos lugares no quesito “leitura” (MACEDO, 2007, p. 14). Motivos? Não se trata de sustentar o velho preconceito da diferença entre as escolas “ricas” versus as “pobres”, pois Macedo destaca que os mesmos prejuízos ocorreriam em ambas. Trata-se, sim, de mostrar que quando o brasileiro estuda, e mesmo nas ditas “melhores” escolas, ele não estuda para compreender e articular a lógica de um texto, e sim para resolver questões demandadas por testes (isso quando, pelo contrário, não se abandona à simples opinologia).

Em miúdos: muitos brasileiros lêem textos (quando lêem) de forma apenas provocada e dirigida, isto é, de modo heterônomo e orientado por terceiros, como se respondessem a questões de teste, e isso em áreas nas quais escolheram estudar. Isso não à toa lembra as críticas de Richard Feynman ao ensino de física brasileiro dos anos 1950, nas quais “os estudantes haviam memorizado tudo, mas desconheciam o significado” de suas matérias (FEYNMAN, 2017).

Diante disso, para além do apagamento da cultura do texto e da redução das iniciativas a estratégias pedagógicas individuais, talvez não seja inútil lembrar que as ciências humanas, todas elas, também possuem uma cultura de fundo. Bastaria, para detectar essa cultura, retornar ao século XIX e à querela dos métodos dos alemães – a mesma que instaurou a psicologia científica (como a de Wilhelm Wundt), os debates sobre explicação versus compreensão desde Wilhelm Dilthey, as abordagens explicativas e compreensivas em sociologia, as contra-reações positivistas e assim por diante. Desde seu surgimento, seja subordinando-se às ciências naturais, seja – pelo contrário – apelando à sua irredutibilidade e especificidade, as ciências humanas não deixaram jamais de reclamar para si mesmas um espaço próprio.

E se há alusão a um espaço próprio, isso significaria no mínimo que há algo como um campo (por mais disperso que seja, e é, o que não significa que isso não tenha uma história e uma lógica), com contribuições e racionalidades específicas. Dentro das ditas “ciências humanas”, por mais diferenciado que seja um estudo sobre dança contemporânea, sobre uma tribo originária ou sobre história da filosofia, tem-se o pressuposto mais geral de que tais estudos não implicam imediatamente o mesmo tipo de racionalidade daquele praticado por um físico ou um biólogo. O que não significa dizer que ali não exista um outro rigor, encontrável na especificidade de cada ramo das ciências humanas, com seu estudo, textos e lógicas próprios.

Há, sim, uma cultura de fundo em humanidades, e ela perpassa o rigor conceitual (mesmo que não seja o do cálculo, o do experimento ou o das descrições anatômicas) e a análise textual, bem como outros métodos desenvolvidos em cada área específica. O que, mais uma vez, supõe o seguinte: para além das escolhas individuais dos docentes, há ou deveria haver um cenário de fundo, uma figura de rigor, por mínima e abrangente que seja, está sim a orientar as atuações individuais. Grosso modo, tal como se dizia no início do século XX, independente das ciências humanas desejarem ou contestarem uma objetividade naturalista, elas não deixam de ser, cada qual a seu modo, ciências “de rigor”.

Isso deveria dizer respeito, como se ilustrava mais acima, a uma cultura leitora e acadêmica, aquela que permitiria um estudante apontar o dedo e dizer “isso são humanidades” – sem reduzir a questão ao simples carisma do professor ou aos preconceitos de frouxidão de conteúdo. Se um estudante de exatas reconhece sob o fundo de suas matérias o cálculo como uma das racionalidades inerentes ao campo, e o de biológicas reconhece o raciocínio analítico-anatômico, por que o de humanidades muitas vezes, ao apontar o dedo, aponta ao professor para falar bem ou mal do assunto, e quando aponta ao campo costuma enxergar incertezas (isso quando enxerga algo)?

Não deveria haver um reconhecimento geral de que, diante de uma matéria de humanidades, haveria ali uma racionalidade baseada por baixo em análise de textos e rigor conceitual? Pois estes dois componentes – o rigor frente ao texto e aos conceitos – são, no fim das contas, comuns em todas as áreas.

Um aluno de ciências humanas que vai estudar estatística reconhece espontaneamente que ali haverá cálculo. Sendo isso dado em seu currículo, ele também reconhece que, mesmo que não utilize estatística depois, sua formação será precarizada caso não aprenda, pois aquilo lhe servirá de componente formativo. E o mesmo ocorre para quem precisa estudar peças anatômicas ou observar tecidos e células num microscópio.

Afinal, universidade não se reduz a curso profissionalizante. Mas por que, então, certa dúvida sobre o correlato disso em ciências humanas (e até em alguns cursos de formação)? Por que motivo, quando as matérias são de ciências humanas, a necessidade de ler textos e analisar conceitos (no nível mais amplo e geral, pois sabe-se que não se reduz a isso) aparece em tantos cenários como algo não espontaneamente óbvio? Por que aparece como algo que até poderia ou deveria ser minimizado ou desviado por outros subterfúgios?

De todo modo, conforme sugerido, a crise do rigor, ou da cultura acadêmica, não pertence apenas às humanidades (a citação acima de Feynman que o diga). E a crise das universidades não é apenas interna, embora internamente também diga respeito a certa erosão de uma cultura leitora e acadêmica.

Mas a resolução dessa crise não poderia ser reduzida a critérios individualizantes, pois estes são os mesmos que compõem o problema. Há quem gostaria de desfazer de vez o caráter acadêmico das universidades, reduzi-las a cursos online sob conteúdos pré-formatados, sem pesquisa e extensão.

Igualmente, há quem queira reduzir a atuação docente a uma espécie evolucionismo ingênuo (abandonando cada professor a uma fórmula de “esforço” e “eficácia” individuais, o que inevitavelmente redunda em comportamentos de sobrevivência e manada, cartéis e alianças de ocasião para amenizar o primado da competição), há quem queira reduzir a pedagogia ao pedagogo. Pois aí estão também os vínculos de trabalho precarizados e provisórios, bem como as inviabilizações da pesquisa e da extensão a longo prazo. A redução da pedagogia ao pedagogo e a individualização dos processos de ensino contribuem, enfim, para aquilo mesmo que se deveriam combater.

O reconhecimento de que cada campo tem especificidades próprias, a defesa de cada racionalidade inerente ao campo, a composição de cenários pedagógicos de fundo, talvez não acabem com a erosão da cultura acadêmica e leitora (pois muito dela é, como se disse, exterior à universidade). Mas a universidade, e cada docente, não são passivos diante disso. A maior prova é a de que a escolha mais simples ocorre por vezes sob a via individual. Mas afinal, isso também prova que há escolha

Marcio Luiz Miotto é professor de psicologia na Universidade Federal Fluminense (UFF).

Bibliografia

FEYNMAN, R. Richard Feynman: sobre a educação no BrasilMedium, 2017.

FEYNMAN, R. Surely You’re Joking, Mr. Feyman! [s.l: s.n.].

MACEDO, R. O método de leitura estrutura Cadernos Direito GV, v. 4, n. 2, 2007.

 

 

EUA – o novo paraíso fiscal global? por Joseph Stiglitz

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Joseph Stiglitz – A Terra é Redonda – 01/05/2025

Donald Trump está transformando a América em um paraíso fiscal, segue desmantelando salvaguardas e alimentando a desigualdade por meio da desregulamentação global

1.

Donald Trump está rapidamente transformando os Estados Unidos no maior paraíso fiscal da história. Basta observar quatro ações: (i) a decisão do Departamento do Tesouro de se retirar do regime de transparência que compartilha as identidades reais dos proprietários das empresas; (ii) a retirada do governo das negociações para estabelecer uma Convenção das Nações Unidas sobre Cooperação Tributária Internacional; (iii) a recusa em aplicar a Lei de Práticas de Corrupção no Exterior; (iv) a desregulamentação maciça de criptomoedas.

Isso parece fazer parte de uma estratégia mais ampla para minar 250 anos de história de defesa de salvaguardas institucionais. O governo de Donald Trump violou tratados internacionais, ignorou conflitos de interesse, desmantelou freios e contrapesos, deslocou fundos alocados pelo Congresso. O governo não debate mais políticas, pois, ao contrário, atropela o estado de direito.

Mas Donald Trump adora um tipo de imposto: as tarifas de importação. Ele parece acreditar que os estrangeiros vão pagar a conta que ele cria, fornecendo assim fundos para cortar impostos para bilionários. Ele também parece acreditar que as tarifas eliminarão os déficits comerciais e devolverão a fabricação de bens industriais aos EUA. Não importa que as tarifas sejam de fato pagas pelos importadores, elevando assim os preços domésticos, e estejam sendo cobradas no pior momento possível, quando os EUA estão se recuperando de um episódio inflacionário.

Além disso, a macroeconomia elementar mostra que os déficits comerciais multilaterais refletem a disparidade entre a poupança doméstica e o investimento doméstico. Os cortes de impostos de Donald Trump para bilionários aumentarão essa lacuna já que os déficits reduzem a poupança nacional doméstica. Pode parecer bem irânico, mas as políticas de cortes de impostos para bilionários e corporações tendem a elevar o déficit comercial.

Desde Ronald Reagan, os conservadores afirmam que os cortes de impostos se pagam porque impulsionam o crescimento econômico. Mas isso não funcionou no governo Reagan; não funcionou também durante o primeiro mandato de Donald Trump. A pesquisa empírica confirma que os cortes de impostos para os ricos não têm impacto mensurável no crescimento econômico ou no desemprego, mas aumentam a desigualdade de renda de maneira imediata e persistentemente. A proposta de extensão da Lei de Cortes de Impostos e Empregos de 2017 – quando ocorreram os maiores cortes de impostos corporativos da história dos EUA – vai adicionar cerca de US$ 37 trilhões à dívida nacional dos EUA nos próximos 30 anos, sem entregar o impulso econômico prometido.

2.

Donald Trump também está piorando o déficit comercial no nível microeconômico. Os EUA se tornaram uma economia de serviços. Entre suas maiores exportações estão turismo, educação e saúde. Mas Trump minou sistematicamente cada um deles. Que turista, estudante ou paciente gostaria de vir para os EUA sabendo que poderia ser detido arbitrariamente e mantido por semanas? O enfraquecimento das principais instituições de ensino da América, o cancelamento arbitrário de vistos de estudante e o desfinanciamento da pesquisa científica lançaram uma mortalha profunda sobre esses setores críticos.

A abordagem estrategicamente falha de Donald Trump já está saindo pela culatra. A China é um dos maiores parceiros comerciais dos Estados Unidos; como se sabe, os EUA dependem de importações críticas vinda da China. Sabendo disso, ela já retaliou. O medo do “estagflação” – inflação mais alta combinada com crescimento estagnado – atingiu já os mercados de ações e títulos. E isso é apenas o começo.

Graças ao Departamento de Eficiência Governamental de Elon Musk, as receitas fiscais podem despencar mais de 10% este ano devido ao enfraquecimento da fiscalização. Uma redução de cerca de 50.000 trabalhadores desse departamento resultará provavelmente em US$ 2,4 trilhões em receita perdida nos próximos dez anos, em comparação com o aumento projetado de US$ 637 bilhões sob as disposições da Lei de Redução da Inflação que visava aumentar a força de trabalho desse órgão. A agenda é clara: não apenas taxas de impostos mais baixas para os ricos, mas também uma fiscalização mais fraca.

Em um mundo onde o capital e os indivíduos ricos podem cruzar as fronteiras livremente, a cooperação internacional é a única maneira de os governos garantirem que as corporações multinacionais e as pessoas ultra ricas sejam tributadas de forma justa. Nesse contexto, interromper a aplicação da coleta de dados da propriedade tributável, tolerar mercados de criptomoedas que aumentam o anonimato e abandonar o processo de conclusão de uma nova convenção tributária da ONU, abdicar de um imposto mínimo global, tudo isso revela um padrão deliberado: desmantelar estruturas multilaterais destinadas a combater a evasão fiscal e a lavagem de dinheiro. A “pausa” da aplicação da Lei de Práticas de Corrupção no Exterior indica que os EUA não se importam mais nem mesmo com suborno e suborno.

O que estamos testemunhando é uma aparente tentativa de Donald Trump, Elon Musk e seus comparsas bilionários de forjar uma espécie de capitalismo modelado a partir das zonas sem lei do mundo offshore. Não é apenas uma revolta fiscal; trata-se de um ataque incondicional a qualquer lei que ameace o acúmulo extremo de riqueza e de poder.

Em nenhum ponto isso é mais evidente do que na adoção da criptografia. A explosão do mercado de criptomoedas, cassinos online e plataformas de apostas pouco regulamentadas estão impulsionando a economia ilícita global. Sob Donald Trump, o Departamento do Tesouro suspendeu sanções e regulamentos sobre plataformas que escondem as transações feitas. Trump até assinou uma ordem executiva para estabelecer uma “reserva estratégica de criptomoedas” e realizou a primeira cúpula de criptomoedas da Casa Branca. O Senado dos EUA seguiu o exemplo, matando uma disposição que exigiria que as plataformas de criptomoedas identificassem e denunciassem usuários.

Donald Trump emitiu uma moeda do tipo meme controversa; em breve, ele pode lançar um videogame baseado no jogo conhecido como “Monopólio”; ele instalou um defensor das criptomoedas no comando da Comissão de Valores Mobiliários. Paul Atkins é membro de um grupo de políticas que defende criptoativos e sistemas financeiros não bancários.

As plataformas de criptomoedas têm uma característica central: o sigilo das operações que ali acontecem. O sistema econômico atual se baseia em boas moedas, tais como o dólar, o iene, o euro e outras mais. Há plataformas de negociação eficientes para a compra de bens e serviços. A demanda por criptomoedas vem do desejo de esconder dinheiro e de fazer operações sigilosas com dinheiro. É por isso que as pessoas envolvidas em atividades criminosas, incluindo aí a lavagem de dinheiro e a evasão fiscal, as utilizam: assim, as operações feitas deixam de ser facilmente rastreáveis.

3.

O resto do mundo não pode ficar parado, assistindo a tudo isso.  Vimos que a cooperação global pode funcionar, como mostra o imposto mínimo global de 15% sobre os lucros das multinacionais, que mais de 50 países estão introduzindo agora. Dentro do G20, o consenso forjado no ano passado sob a liderança do Brasil exige que os indivíduos muito ricos paguem sua parte justa.

Os EUA se distanciaram dos acordos internacionais, mas, paradoxalmente, a ausência de sua diplomacia pode ajudar a fortalecer as negociações multilaterais para obter um resultado mais ambicioso. No passado, os EUA primeiro exigiam que um acordo fosse enfraquecido (normalmente para beneficiar um interesse especial), mas no final se recusavam a assiná-lo mesmo assim. Foi o que aconteceu durante as negociações da OCDE para a tributação das empresas multinacionais. Agora, o resto do mundo pode continuar com a tarefa de projetar uma arquitetura tributária global justa e eficiente.

Abordar a desigualdade extrema por meio da cooperação internacional e de instituições inclusivas é a alternativa real ao crescente autoritarismo. O autoisolamento dos Estados Unidos cria uma oportunidade para reconstruir a globalização em bases verdadeiramente multilaterais – criando um G-menos-um para o século XXI.

Joseph E. Stiglitz é ganhador do Prêmio Nobel de economia e professor na Columbia University (New York). Autor, entre outros livros, de O Grande Abismo Sociedades Desiguais e o que Podemos Fazer Sobre Isso (Alta Books)

A Economia de Francisco

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A semana passado trouxe uma grande infelicidade para a grande maioria dos cristãs que comungam os ideais religiosos do catolicismo, algo em torno de dois bilhões de pessoas no globo, a morte do Papa Francisco gerou muitas tristeza e desespero, levando a sociedade mundial a refletir sobre suas encíclicas, seus sermões e escritos que se espalharam para toda a sociedade internacional.

Vivemos numa sociedade marcada pela fragilização da solidariedade humana, onde encontramos a degradação dos laços sociais e sentimentais, nesta sociedade, percebemos o crescimento indiscriminado do individualismo, do imediatismo e da busca frenética pelo lucro monetário, deixando de lado os interesses do humanismo e dos valores mais sólidos e consistentes dos seres humanos. Estamos cultivando diuturnamente os interesses mesquinhos do imediatismo e dos valores do capital, da imagem deturpada das redes sociais e dos interesses centrados dos donos do capital, que controlam as mentes e distorcem a realidade, levando os indivíduos a buscarem os prazeres imediatos, do hedonismo e nos afastando dos valores da civilização.

Nesta sociedade, encontramos discussões equivocadas e desnecessárias, representantes políticos incapazes de compreender os valores e os anseios  mais sólidos da comunidade, o incremento da violência urbana em todas as áreas e setores, o aumento de profissionais incapazes de compreender os desafios da contemporaneidade, empresas e organizações perdidas num ambiente de transformações e mutações constantes, o  crescimento vertiginoso de moradores de ruas e pessoas degradadas numa economia hostil, o aumento dos financistas, economistas e homens de negócios que se ocupam dos discursos da austeridade dos gastos públicos e da redução das políticas públicas, pregando cortes constantes de custos e defendendo um sistema tributário desumano e cruel, com discursos pomposos que servem apenas para esconder seus interesses imediatos, manter seus poderes imediatos e a perpetuação dessa penúria que vive uma população marginalizada e constantemente explorada.

Neste ambiente, marcado pelo crescimento de um capital financeiro, improdutivo e parasitário, dotado de grande poder econômico e força política, que encontra no Papa Francisco novos instrumentos de reflexão, um apóstolo oriundo do mundo subdesenvolvido e dotado de grande capacidade intelectual e moralidade, que propõe uma sociedade mais igualitária, com mais solidariedade, mais acolhedora e menos julgadora, mais centrada no ensinar e no empregar e menos da exploração e da degradação, com isso, ajudando a construir novos valores, novos comportamentos e novos sentimentos, recriando a esperança e novos horizontes, ao contrário de uma sociedade calcada na exploração e na deturpação dos indivíduos.

A economia de Francisco traz novos instrumentos de reflexão e ação imediata, pregando o respeito ao ser humano e uma valorização da mãe natureza e do meio ambiente, trocando a exploração e estimulando a solidariedade humana, fomentando a reflexão individual e a conversação na comunidade, rechaçando o financismo e o capital parasitário que dominam a sociedade global e que prega o individualismo do cotidiano, destruindo os valores do humanismo e da solidariedade.

A economia de Francisco nos traz novos horizontes e um alento para uma sociedade mundial que, infelizmente, estimula o egoísmo e a busca frenética pelos interesses materiais, com isso, percebemos mais claramente a degradação da civilização.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Sociologia do Trabalho e Exclusão Social, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

 

Pejotização e o colapso silencioso da Previdência, por Erik Chiconelli Gomes

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Além de precarizar, a multiplicação de contratos PJ corrói a base de financiamento de uma conquista histórica – e abre espaço para a enésima contrarreforma. Debate no STF, portanto, não é apenas jurídico. Envolve o futuro dos direitos e proteções que constituem a cidadania

Erik Chiconelli Gomes – OUTRAS PALAVRAS – 29/04/2025

A transformação das relações laborais no Brasil tem apresentado uma tendência preocupante desde a implementação da reforma trabalhista. O fenômeno conhecido como “pejotização” – a contratação de trabalhadores como pessoas jurídicas em vez de empregados formais – representa não apenas uma mudança nos arranjos contratuais, mas uma profunda alteração na própria estrutura das relações sociais de produção, revelando novas formas de exploração do trabalho que precisam ser analisadas a partir de uma perspectiva historiográfica que valorize a agência dos trabalhadores e as dimensões morais da economia.

Segundo estudo realizado por pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas, a pejotização custou aos cofres públicos entre R$ 89 bilhões e R$ 144 bilhões entre 2018 e 2023. Como observa Nelson Marconi, coordenador do curso de graduação em administração pública da FGV, “do ponto de vista social, os trabalhadores têm perdas em termos de direitos, como férias, décimo terceiro e aviso prévio. Para o lado da empresa, isso flexibiliza o mercado de trabalho e diminui encargos. Mas, do ponto de vista econômico, tem um impacto muito forte na arrecadação. Diminui o dinheiro para financiar políticas públicas.” (Desidério, 2025).

Esta transformação nas relações de trabalho não pode ser compreendida como um mero ajuste técnico ou jurídico no sistema produtivo brasileiro. Representa, antes, um movimento histórico que ressignifica a própria noção de trabalho, alterando profundamente os laços sociais e a consciência de classe dos trabalhadores. A substituição do vínculo empregatício formal por uma relação comercial entre empresas mascara relações de poder e dominação historicamente constituídas, criando a falsa impressão de autonomia e empreendedorismo.

Como argumenta David Harvey em seu estudo sobre a condição pós-moderna, o que testemunhamos é parte de um processo mais amplo de acumulação flexível, que impõe novas formas de controle do trabalho enquanto dissolve conquistas históricas dos trabalhadores. “A acumulação flexível envolve rápidas mudanças nos padrões de desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado ‘setor de serviços’.” (Harvey, 1992).

A análise das perdas arrecadatórias decorrentes da pejotização revela não apenas um problema fiscal, mas sobretudo uma profunda contradição no projeto econômico vigente. As simulações apresentadas pelos pesquisadores da FGV indicam que, caso metade dos trabalhadores CLT em 2023 se tornassem trabalhadores por conta própria, a perda de arrecadação chegaria a mais de R$ 384 bilhões em apenas um ano. Tal cenário, descrito como “extremo, mas possível” pelos próprios pesquisadores, evidencia o potencial desestabilizador dessa prática para as finanças públicas e, consequentemente, para a manutenção das políticas sociais.

A historiadora Bárbara Weinstein, em seu estudo sobre a formação da classe trabalhadora brasileira, nos lembra que “as transformações nas relações de trabalho nunca são meros reflexos de mudanças econômicas ou tecnológicas, mas constituem processos ativamente disputados, negociados e contestados pelos diversos atores sociais envolvidos.” (Weinstein, 1996). A pejotização contemporânea, portanto, deve ser compreendida como um campo de disputa onde se confrontam interesses antagônicos e visões distintas sobre o valor social do trabalho.

O fenômeno da pejotização emerge não como desenvolvimento natural ou inevitável das relações produtivas, mas como resultado de escolhas políticas deliberadas e de interpretações jurídicas específicas. O crescimento exponencial do número de trabalhadores por conta própria após a reforma trabalhista evidencia o caráter induzido dessa transformação, que responde a interesses econômicos específicos em detrimento da proteção social historicamente construída.

Ricardo Antunes, ao analisar as metamorfoses no mundo do trabalho, argumenta que “o que vemos hoje no Brasil é parte de um processo global de precarização estrutural do trabalho, que combina o desmonte dos direitos sociais com novas formas de gestão e controle da força de trabalho. A pejotização representa uma dessas novas modalidades de precarização, que transfere para o trabalhador individual os riscos e custos anteriormente assumidos pelo capital.” (Antunes, 1999).

A dimensão moral dessa transformação não pode ser subestimada. Ao se reconfigurarem as relações de trabalho sob a aparência de contratos entre pessoas jurídicas, opera-se também uma profunda alteração nas expectativas recíprocas entre empregadores e trabalhadores, nas noções compartilhadas de justiça e nas práticas de solidariedade que tradicionalmente caracterizavam as relações laborais. A economia, como sempre enfatizaram os historiadores sociais britânicos, nunca é apenas uma questão de números, mas também um campo de relações morais historicamente construídas.

Olivia Pasqualeto, professora de Direito da FGV, observa com precisão um dos aspectos mais problemáticos desse processo quando afirma que “quando o STF diz que qualquer relação vai ser lícita, ficamos sem saber qual elemento vai diferenciar uma coisa da outra. Fica nebuloso saber o que deve ser regido pela CLT.” (Desidério, 2025). Esta nebulosa distinção revela-se não apenas um problema técnico-jurídico, mas um sintoma da crescente descaracterização do trabalho como relação social dotada de proteções específicas

O historiador Sidney Chalhoub, em seus estudos sobre trabalho, cidadania e direitos no Brasil, nos oferece uma perspectiva valiosa ao afirmar que “as transformações nas relações de trabalho no Brasil sempre foram mediadas por intensas disputas políticas e jurídicas, nas quais os trabalhadores nunca foram sujeitos passivos, mas agentes que continuamente reinterpretam e contestam as imposições das classes dominantes.” (Chalhoub, 1986).

A análise histórica do fenômeno da pejotização deve considerar não apenas seus impactos econômicos imediatos, mas também suas implicações para a construção da cidadania no Brasil. Ao se substituir a relação empregatícia formal por contratos comerciais, fragilizam-se os mecanismos de proteção social que, historicamente, serviram como porta de entrada para direitos sociais mais amplos na sociedade brasileira.

Mike Davis, em sua análise sobre o trabalho precário global, argumenta que “a informalização e precarização das relações de trabalho não representam um retorno a formas pré-modernas de exploração, mas constituem modalidades inteiramente novas de extração de mais-valor, adaptadas às condições do capitalismo financeirizado contemporâneo.” (Davis, 2006).

O embate jurídico em curso no Supremo Tribunal Federal, que suspendeu todos os processos sobre o tema até um julgamento definitivo, ilustra como as lutas dos trabalhadores por reconhecimento e direitos se deslocaram para a arena judicial. Este deslocamento, contudo, não diminui o caráter essencialmente político e social da questão; apenas reconfigura os termos do conflito e os espaços institucionais onde ele se desenvolve.

A suspensão das quase 460 mil ações sobre reconhecimento de relação trabalhista em 2024 representa não apenas uma questão jurídica, mas um momento crítico para a reconfiguração das relações entre capital e trabalho no Brasil contemporâneo. O resultado deste embate determinará não apenas o futuro imediato de milhares de trabalhadores, mas estabelecerá precedentes para toda a classe trabalhadora brasileira nas próximas décadas.

O impacto da pejotização sobre o sistema previdenciário brasileiro revela uma dimensão particularmente alarmante desse processo. Estamos diante de um desmantelamento silencioso da seguridade social, operado não através de uma reforma aberta e transparente, mas por meio de uma erosão gradual da sua base de financiamento. Quando um trabalhador deixa de contribuir como empregado formal e passa a fazê-lo como microempreendedor individual, a diferença de arrecadação não representa apenas um número nas contas públicas – simboliza o esvaziamento de um pacto social que, por décadas, garantiu dignidade a milhões de brasileiros na velhice, na doença e na incapacidade laboral.

Este esvaziamento ocorre em um contexto demográfico de envelhecimento populacional, no qual a sustentabilidade da Previdência já enfrenta desafios consideráveis. A pejotização, portanto, acelera e agrava uma crise anunciada, comprometendo a viabilidade futura de um sistema que representa uma das maiores conquistas sociais da história brasileira. Não se trata apenas de um problema fiscal, mas de uma questão ética fundamental sobre o tipo de sociedade que estamos construindo e os valores que a orientam.

A história das relações trabalhistas no Brasil revela um padrão recorrente de formalização precária, no qual direitos são concedidos no plano legal, mas continuamente subvertidos na prática cotidiana. A pejotização contemporânea representa um novo capítulo nessa história, com a particularidade de utilizar instrumentos jurídicos formais – como a constituição de pessoas jurídicas – para legitimar a evasão de obrigações trabalhistas e previdenciárias. O verniz de legalidade que recobre essas práticas torna-as particularmente insidiosas, pois dificulta seu reconhecimento como formas de precarização e exploração.

A experiência histórica nos ensina, contudo, que as relações de trabalho nunca são estáticas e que sua configuração depende fundamentalmente das lutas sociais em curso. A pejotização, apesar de sua aparente solidez jurídica e econômica, não está imune à contestação e à resistência dos trabalhadores. Novas formas de organização coletiva já começam a emergir entre trabalhadores “pejotizados” que, apesar da fragmentação de seus vínculos formais, compartilham experiências comuns de precariedade e insegurança.

Este movimento de ressignificação e reapropriação da própria condição de trabalho representa uma continuidade histórica com as tradições de luta da classe trabalhadora brasileira, que sempre encontrou formas criativas de resistência mesmo nos contextos mais adversos. A compreensão desta agência histórica dos trabalhadores – sua capacidade de interpretar, contestar e transformar as condições de sua própria exploração – é fundamental para qualquer análise crítica do fenômeno da pejotização que não se limite a reproduzir determinismos econômicos ou legalismos superficiais.

O que está em jogo, portanto, não é apenas uma questão técnica de classificação jurídica de relações laborais, mas a própria redefinição do horizonte de direitos e proteções que constituem a cidadania social no Brasil contemporâneo. A disputa sobre a pejotização é, em última instância, uma disputa sobre o valor social do trabalho e sobre a responsabilidade coletiva frente aos riscos e vulnerabilidades inerentes à condição humana. Seu desfecho dependerá não apenas de decisões judiciais ou políticas, mas da capacidade de mobilização e organização dos próprios trabalhadores em defesa de um projeto de sociedade que reconcilie desenvolvimento econômico com justiça social e dignidade no trabalho.

Referências

ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho: Ensaio sobre a Afirmação e a Negação do Trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999.

CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: O Cotidiano dos Trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. São Paulo: Brasiliense, 1986.

DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006.

DESIDÉRIO, Mariana. Pejotização custou ao menos R$ 89 bilhões e ameaça Previdência, diz estudo. UOL, São Paulo, 26 abr. 2025.

GOMES, Angela de Castro. A Invenção do Trabalhismo. Rio de Janeiro: FGV, 2005.

HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: Uma Pesquisa sobre as Origens da Mudança Cultural. São Paulo: Loyola, 1992.

VAN DER LINDEN, Marcel. Trabalhadores do Mundo: Ensaios para uma História Global do Trabalho. Campinas: Editora da Unicamp, 2013.

WEINSTEIN, Barbara. For Social Peace in Brazil: Industrialists and the Remaking of the Working Class in São Paulo, 1920-1964. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1996.