Carta a elite econômica, por Oded Grajew.

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Diminuir as desigualdades e a pobreza é, também, um ato de inteligência

Folha de São Paulo, 20/04/2021

Oded Grajew, Idealizador do Fórum Social Mundial, é presidente emérito do Instituto Ethos e conselheiro do Instituto Cidades Sustentáveis, da Oxfam Brasil e da Rede Nossa São Paulo

Prezados senhores e senhoras:

Primeiramente, gostaria de relembrar alguns indicadores sociais do nosso país. Apesar de sermos um dos mais ricos e uma das maiores economias do mundo, 52 milhões de brasileiros vivem na pobreza (renda de até R$ 436 mensais) e 13 milhões na extrema pobreza (renda de até R$ 151 mensais).

Mais de metade dos brasileiros de 25 anos ou mais não concluiu a educação básica, e 33,1% não terminaram o ensino fundamental. Cem milhões de brasileiros não têm acesso a sistemas de esgotamento sanitário, e 35%, à água tratada. Quarenta e quatro mil brasileiros são assassinados por ano, a maioria de negros e pobres. O Brasil está em 105º lugar no ranking da mortalidade infantil, o principal indicador da infância.

Somos o sétimo país desigual do mundo, superado apenas por algumas nações africanas. As nossas desigualdades são escandalosas. Entre homens e mulheres, entre brancos e negros. Os 5% mais ricos auferem 95% da renda nacional, e 10% possuem 74% das riquezas. Em São Paulo, a cidade mais rica do Brasil, a diferença da idade média ao morrer entre o distrito mais pobre e o distrito mais rico é de 24 anos! Em plena pandemia, o Brasil tem 20 bilionários à mais (revista Forbes), enquanto a fome atinge 9% da população!

Vários de vocês ajudaram a eleger um presidente que, ainda como candidato, proclamava sua admiração pela ditadura militar e fazia apologia à tortura. Assistiram calados aos desmandos dos dois primeiros anos do seu governo, que nos conduziram à maior calamidade sanitária do mundo e de nossa história.

Países de primeiro mundo que vocês tanto admiram chegaram à simples e óbvia conclusão: para qualquer coletivo dar certo, as empresas ou um país, é fundamental ter uma relação harmoniosa entre as pessoas. E o que causa a desarmonia, os conflitos, é a injustiça, a desigualdade. Portanto, é necessário construir uma sociedade com menores desigualdades possíveis. Para isso, governo e sociedade, com apoio de empresários conscientes, elaboraram uma agenda: democracia participativa (mais democracia, menos desigualdades), educação pública de qualidade para todos, sistema tributário progressivo, políticas públicas que, sem exceção, buscam reduzir as desigualdades etc. Foi isso que, por exemplo, aconteceu nos países escandinavos, que eram muito pobres e hoje lideram todas as classificações mundiais, em qualquer área.

Vocês têm enorme poder econômico e, portanto, político. Têm acesso privilegiado aos políticos. Ações filantrópicas que alguns de vocês praticam são muito bem-vindas. Melhoram a vida dos beneficiários. Mas o que transforma um país, pela escala, são as políticas públicas.

Vocês deveriam usar vosso poder para que sejam implementadas legislações e políticas que reduzam as desigualdades. Por exemplo, poderiam aproveitar a reforma tributária para termos uma renda mínima universal, financiada por um sistema tributário progressivo. No Brasil, pobres pagam proporcionalmente mais impostos que ricos, que vocês!

Diminuir as desigualdades e a pobreza é, também, um ato de inteligência. É uma estupidez não construir um mercado interno muito maior.

Tenho o privilégio de conviver com empresários que têm essa visão. Infelizmente, são uma minoria. Vocês deveriam se juntar a eles.

Vocês, da nossa elite econômica (da qual faço parte), deveriam se sentir constrangidos por nossos indicadores sociais, pelas vergonhosas desigualdades em nosso país. Vossa responsabilidade é proporcional ao vosso poder. Mesmo que tardiamente, é hora de agir para construir um futuro melhor e mais honroso para o nosso país.

Tempos nebulosos e ideias ultrapassadas

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Vivemos um momento de crescimento da desesperança, os grupos sociais estão envoltos em medos e preocupações, a pandemia está incrementando os desesperos dos trabalhadores e dos empresários, principalmente os micros e pequenos, percebendo que as novas transformações tendem a gerar desestruturações, instabilidades e incertezas generalizadas. Para aumentar as preocupações, a pandemia agrava as condições sociais, incrementando as instabilidades econômicas e as incertezas políticas. Diante deste ambiente, a saúde pública pede socorro, as depressões crescem rapidamente, as ansiedades se tornam mais evidentes e os suicídios aumentam, levando a desestruturações familiares e convulsões sociais.

O ambiente destacado anteriormente é um dos mais sombrios da sociedade brasileira nas últimas décadas, desde os anos oitenta, um mercado de forte degradação econômica e inflação em ascensão, precarização social em elevação e variados problemas políticos, o país não passava por uma crise de escala tão surpreendente, com décadas perdidas e atrasos em gerações, preocupações, medos e desesperanças.

O ambiente em curso na sociedade brasileira gera medo no mundo do trabalho, levando pessoas a preocupações constantes, inúmeras reestruturações produtivas e alterações financeiras estão impactando os trabalhadores e gerando mais desempregados estruturais. Empresas transnacionais anunciam o fechamento de unidades seculares, como o encerramento das atividades da Ford Motors, uma montadora tradicional, responsável pela criação do modelo de produção, o Fordismo, que embalou as atividades produtivas em todas as regiões do mundo. Através desta estratégia global da montadora norte-americana, a empresa anunciou a demissão de milhares de profissionais da unidade do ABC, levando muitos trabalhadores ao desespero, ao medo e a revolta silenciosa.

Diante desta situação, os editoriais dos jornais e os pseudoespecialistas, se anteciparam para destacar que as medidas anunciadas pela montadora são geradas pelo péssimo ambiente de negócio, alta carga tributária, mão de obra com baixa produtividade e taxas de juros elevadas, destacando as condições de competitividade sistêmica inexistência na empresa, como se a empresa pouco conhecesse o mercado nacional.

A Ford Motor chegou no país a mais de 100 anos para produzir e criar vínculos duradouros com a sociedade brasileira, estes pseudosespecialistas esquecem que os verdadeiros motivos destas medidas é o empobrecimento da população nacional, o país está ficando cada vez mais pobres, a classe média está diminuindo e perdendo relevância no cenário nacional. Estamos acumulando duas décadas perdidas num período de menos de quarenta anos, numa situação de descalabro que vivenciamos na contemporaneidade, outras empresas tendem a fechar suas unidades, reduzindo investimentos e a geração de empregos e reduzindo os impactos positivos sobre o desenvolvimento do país.

A situação está tão preocupante que, além da Ford Motors, outras empresas anunciaram o fechamento de empresas no Brasil, como a Audi e a Mercedes-Benz. Outras empresas estão desistindo de produzir no mercado nacional, como a japonesa Sony e a sul-coreana LG, empresas de sucesso no mercado global que deixaram um rastro de desemprego, desesperos e degradação social.

O processo de desindustrialização brasileiro está nos acompanhando desde o final dos anos 80 e início dos anos 90, desde então, a economia vem perdendo o dinamismo industrial e, ao mesmo tempo, percebemos que outros países e regiões, ganharam protagonismo no cenário global, onde destacamos os países asiáticos, com um arranjo pragmático envolvendo os governos nacionais fortemente protecionista e empresas privadas estimuladas e empreendedoras. O resultado é o fortalecimento da região como o polo dinamizador da estrutura industrial do mundo, desbancando regiões tradicionais e destruindo indústria em ascensão, como as de países latino-americanos, como os setores industriais brasileiros.

Enquanto os países latino-americanos foram alunos prendados e esforçados na adoção da cartilha de Consenso de Washington, no final dos anos 80, adotando medidas liberalizantes, reduzindo as políticas protecionistas, incrementando as privatizações e diminuindo o papel do Estado na economia, os países asiáticos foram alunos relapsos, abandonando as cartilhas dos países defensores do neoliberalismo e colheram frutos diferentes. Enquanto os seguidores do Consenso colheram destruição industrial, fragilização de suas estruturas econômicas e produtivas, os países asiáticos colheram fortalecimento das estruturas industriais e a construção de empresas fortes e consolidadas no ambiente global.

Neste momento percebemos que grandes grupos nacionais foram vendidos ou desnacionalizados, perderam a autonomia de suas estruturas econômicas e produtivas, os países asiáticos construíram empresas de ponta no capitalismo internacional. Atualmente o capitalismo global passou a conhecer grandes conglomerados produtivos e industriais, tais como as chinesas Tencent, a Baidu, a Chery, a Huawei, a Lenovo, a Alibaba; as sul coreanas Samsung, a LG, a Hyundai, a Kia; as Taiwanesas Acer, HTC, dentre outras. O processo de industrialização gerou grandes conglomerados que competem com os grandes grupos ocidentais, gerando confrontos geopolíticos, como os que estamos observando nos conflitos entre as grandes economias da economia internacional, Estados Unidos e a China, um grande embate na busca pela hegemonia, tendo nos setores de semicondutores um dos setores mais competitivos, onde cada um dos países se organizam para garantir a liderança neste mercado,

As experiências exitosas dos países asiáticos foram fortemente planejadas com os Estados Nacionais, um conluio entre os grandes agentes econômicos e políticos, uma estratégia construída entre Estados e Mercados. Esta atuação conjunto entre os setores está distante de países como o Brasil, vivemos um conflito entre estes entes, gerando instabilidades políticas com impactos negativos dos setores econômicos, reduzindo os investimentos produtivos, criando desconfiança crescente e perpetuando uma condição de subserviência de estratégias bem construídas centradas nos interesses nacionais.

Nesta semana, o criador do Consenso de Washington, John Willianson, morreu nos Estados Unidos, aos 82 anos, suas ideias impulsionaram o pensamento neoliberal. Neste momento da contemporaneidade, o neoliberalismo vem perdendo espaço na agenda dos países desenvolvidos e dos países asiáticos. Infelizmente no Brasil, esta agenda ainda está na ordem do dia, perpetuando o atraso intelectual de uma elite que pensa, primordialmente, nos interesses econômicos imediatistas, deixando de lado os interesses da sociedade nacional.

De um lado, percebemos uma pressão dos grupos empresariais, das mídias corporativas, dos grandes escritórios de advocacias, das grandes consultorias e dos grupos de pensadores do capital que ganham impulsionando as vendas de ativos públicos, dilapidando patrimônio em prol de interesses imediatistas, transformando tudo em verdadeiros negócios. Mesmo sabendo que o pensamento neoliberal vem perdendo espaço, no Brasil esta presente em mentes e corações de muitos teóricos cosmopolita.

A redução do Estado deve ser estimulada em setores ineficientes e pouco estratégicos, vendendo setores que não atuem de forma condigna. Mas precisamos refletir sobre as desestatizações, sem planejamentos e sem pensamentos estratégicos, por este, vem criando verdadeiros vácuos produtivos, transferindo os centros de poder e estruturação globais, contribuindo para a desestruturação da economia nacional.

A pandemia deixou claro que os países que conseguiram preservar setores de centro de tecnologia, pesquisas e conhecimento científico, estão conseguindo sair melhores neste momento e se mostram mais capacitados e qualificados para vacinar sua população, retomando o crescimento da economia e melhorando os indicadores macroeconômicos.

Percebemos que muitos grupos não perceberam que as privatizações e a redução do Estado terão impactos negativos para os grupos privados nacionais, os mesmos setores que bradam menos intervenção do governo na economia serão os mais prejudicados pela redução da atuação do Estado, isto porque, olhando a história brasileira e dos empresários nacionais, percebemos que os grandes grupos privados necessitam dos favores e das benesses dos governos de plantão, sendo de direita, de esquerda e de centro.

Este é o modo de atuação dos capitais privados nacionais, sempre imediatistas e buscam lucros elevados, querem menos intervenção estatal para garantir mais benefícios e direitos sociais reduzidos para os trabalhadores, mas ao mesmo tempo, exigem mais Estados para subsidiar seus recursos financeiros, taxas de juros elevadas para valorizar seus investimentos improdutivos e o protecionismo da concorrência dos grandes grupos globais.

Neste momento de pandemia, faz-se necessário aos grandes grupos sociais, econômicos e políticos, repensarem o que queremos para o Brasil nos próximos anos, reconstruindo as estruturas produtivas que estão sendo destruídas e repensar o papel do país na sociedade internacional, aumentando a autonomia, investindo maiores recursos em saúde, educação e na construção de políticas públicas inclusivas, abrindo espaços para a diversidade. A contemporaneidade exige mais criativa, mais espírito empreendedor e maior capacidade de tomar risco, buscando a transformação que sempre estamos esperando desde a independência nacional, lá se vai uns 200 anos…

Agravado por pandemia, desastre na educação exige mobilização já

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É urgente focar ensino público e combater retrocesso, diz Priscila Cruz

Priscila Cruz, Mestre em administração pública pela Harvard Kennedy School (EUA), é presidente-executiva e cofundadora do movimento Todos Pela Educação

Folha de São Paula, 16/04/2021

Vivemos um desastre silencioso, a morte lenta de uma geração, que será sentida por décadas. Já passamos de um ano de escolas fechadas em razão do descontrole da pandemia, provocado, principalmente, pelo desprezo do atual governo federal. A estimativa mais recente, da FGV (Fundação Getulio Vargas), é de um retrocesso de quatro anos na aprendizagem, mas tenho convicção de que é muito mais que isso.

Acrescento ao cenário a explosão da evasão, a insuficiência alimentar, os impactos perversos no desenvolvimento cognitivo, físico, emocional e social das crianças e dos jovens em idade escolar.

Para aprofundar o fosso, temos um Ministério da Educação liderado por oportunistas de visão curta, acuados pela própria incompetência, que cometem absurdos que levarão anos ou décadas para serem corrigidos: intervenção ideológica em livros didáticos, enfraquecimento das políticas de expansão da educação integral e de implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), apoio ao “homeschooling”, militarização da educação e perseguição a professores. E o mais grave de tudo: a completa omissão no enfrentamento dos efeitos da pandemia na educação básica.

Devemos agir e corrigir estruturalmente os rumos da educação e lançar os alicerces de um projeto para o Brasil que tenha como base a escola pública. Essa base será reforçada por dois pilares muito sólidos: a capacidade da educação de unir os democratas deste país e a clareza que há hoje em relação aos caminhos que devemos percorrer para chegarmos à necessária educação de qualidade para todos.

A educação une porque não compete com nenhuma outra área. Pelo contrário, fortalece cada uma delas: educação pela ciência/ciência pela educação; educação pelo meio ambiente/meio ambiente pela educação; educação pela economia/economia pela educação; educação pela justiça/justiça pela educação —e muitas outras.

O conhecimento do que precisa ser feito nos próximos cinco, dez, 15 anos para assegurar uma educação de qualidade, democrática, antirracista, acolhedora e integral se baseia na evidência consolidada das experiências exitosas efetuadas tanto no Brasil como em outros países. Basicamente, está nos campos da primeira infância; ampliação da educação integral; contínuo aprimoramento curricular e de implementação da BNCC; desenvolvimento profissional docente (atratividade, formação, carreira e condições de trabalho); gestão das escolas e das redes de escola; distribuição mais justa dos recursos educacionais (avançaremos muito com o novo Fundeb); colaboração entre estados e municípios para a alfabetização na idade certa; modernização do ensino médio e expansão da educação profissionalizante; ampliação do uso da tecnologia para fortalecer o trabalho dos professores e da gestão; e governança federativa mais alinhada aos propósitos de qualidade e de equidade educacional.

Esses dois pilares juntos —o engajamento de todos e o compromisso de seguirmos as evidências— constituem a saída para um país próspero para todos e construído pelas e para as pessoas.

Há, portanto, um imperativo moral e estratégico de reconstrução e renovação da educação brasileira. Para isso, precisamos reverter a profunda descrença que temos a respeito de investir nas pessoas e abraçar a ideia de que nós, todos nós, vamos reconstruir este país, superando as consequências brutais da pandemia e da passagem do governo federal mais incompetente da nossa história.

Nenhuma instituição, por melhores que sejam seu desenho e seus propósitos, será capaz de enfrentar esses imensos desafios sem as pessoas. As instituições, públicas ou privadas, não são autômatos; elas são essencialmente constituídas pelas suas pessoas —que formulam, gerem, implementam, corrigem rumos, fazem ciência, ensinam, cuidam, constroem, empreendem, defendem direitos, plantam e colhem, criam.

Observo, entretanto, debates sobre combate à corrupção, retomada do crescimento, prevenção de doenças, proteção do meio ambiente, preservação e fortalecimento da democracia, promoção de maior equidade e justiça social, entre outros, sem que se dê centralidade à necessária solidez na formação das pessoas, à educação.

Creio que a dificuldade em dar centralidade à educação, incluindo este período de pandemia, é nosso maior erro histórico, e explica o atraso no nosso desenvolvimento social e econômico. A origem desse equívoco foi estudada pelo professor Renato Colistete, da FEA-USP. Suas pesquisas mostram que a educação era valorizada pela população de baixa renda tanto no Império quanto na República. Há registros abundantes de escravizados, recém-alforriados e trabalhadores demandando escolas para seus filhos.

O que não havia era interesse nem ação de quem comandava o país em provê-las: a instrução formal dos trabalhadores não era considerada necessária, e os filhos da elite é que usufruíam as poucas —embora suficientes para eles— faculdades de medicina e direito que havia no Brasil, ou até mesmo as universidades europeias.

A estrutura econômica, a arquitetura institucional e federativa, os avanços tecnológicos, o consumo e as demandas sociais mudaram radicalmente desde a escravidão, mas a baixa prioridade dada à educação como vetor de transformação do país resiste, como se fosse possível construirmos uma sociedade mais próspera e justa sem que as pessoas tenham os conhecimentos e competências necessários: vivemos numa sociedade do conhecimento sem dar a devida centralidade à escola pública.

Não há a mais remota chance de crescermos, distribuirmos renda, criarmos mais empregos qualificados, combatermos afrontas democráticas, reduzirmos a violência e a intolerância, desenvolvermos ciência, cuidarmos da natureza e de uns aos outros sem priorizar a educação básica pública. Não é por outra razão que o Brasil está nessa espiral de baixo desenvolvimento há séculos, com suspiros esporádicos.

Manteremos o erro de ter apenas uma ínfima parte da população preparada para o século 21? A pandemia e esse governo federal um dia vão passar. Deixarão muita destruição, e precisamos nos preparar para a reconstrução. Os países que optarem pela educação estarão maiores e melhores em alguns anos. Espero que tenhamos a sabedoria de corrigir o maior erro histórico do nosso país.

Convido o campo democrático, que está refletindo sobre como podemos sair deste pântano em que estamos mergulhados, a formular um projeto de nação que rompa de vez com esse passado e tenha a coragem e a generosidade de dar passos firmes na direção da escola pública como eixo de uma estratégia para um futuro maior, mais justo e mais feliz. Lembro aqui Anísio Teixeira, que faleceu há 50 anos. Ele costumava dizer que a máquina que prepara as democracias é a escola pública.

Vamos honrar Anísio. Acima de tudo, vamos honrar o fato de sermos brasileiros. Que a educação de qualidade para todos ainda tenha seu merecido lugar na história —aquela que queremos contar um dia aos nossos filhos, netos e bisnetos.

Risco fiscal impede que Brasil surfe na onda chinesa

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Responsabilidade fiscal piora desde 2015, mesmo com as amarras de disciplina fiscal como o teto de gastos

Roberto Dumas Damas

É professor de economia do Insper, mestre em economia pela Universidade de Birmingham, na Inglaterra, e mestre em economia pela Universidade Fudan, na China

Folha de São Paulo, 17/04/2021

Ninguém pode dizer que o crescimento de 18,3% da economia chinesa durante o primeiro trimestre desse ano em comparação com igual trimestre do ano passado, quando a economia havia recuado 6, 8%, não foi bom. Foi excelente, se olharmos sob essa perspectiva temporal.

Claro que ao analisar números vindos da China, os analistas acabam ficando mal-acostumados, sempre esperando números estelares —e eles vieram na base de comparação anual, apesar de terem crescido apenas 0,6% se comparado com o quarto trimestre de 2020.

Durante o primeiro trimestre de 2020, enquanto ainda havia expectativas de que a economia mundial cresceria um pouco e a então pandemia seria controlada, a China já sofria pesados efeitos em seu crescimento econômico.

Notadamente e sem muita discussão, o país decretou um lockdown draconiano, sem brainstorming político ou com a população, e um controle enorme sobre os infectados, até que logrou controlar a pandemia em sua casa.

Enquanto isso, outros países batiam cabeça. Avaliavam se deveriam fazer lockdowns, se poderiam se abraçar, afinal esse é um direito de todos, e se poderiam espirrar no rosto dos outros sem máscara, afinal parece que tal proteção causa um certo desconforto. Ah vá!

Enfim, o fato é que a China logrou recuperar rapidamente sua economia, não apenas devido às restrições ditatoriais, mas com uma presença forte do Estado “sugerindo” que os governos locais investissem pesadamente em novos projetos de infraestrutura —para lá de duvidosos em relação às suas verdadeiras necessidades e possibilidades de retorno financeiro.

O setor imobiliário chinês acabou também se beneficiando enormemente desse expansionismo. Com esse impulso monetário e fiscal sutil, canalizado pelos principais bancos chineses nesses investimentos, a produção industrial, principalmente de aço, logrou crescer mais de 24% no ano.

Ponto positivo para as commodities metálicas, como o minério de ferro, cobre, zinco, mas que, provavelmente, não continuará com todo esse ímpeto durante o segundo semestre deste ano.

Além disso, com a peste suína ceifando mais de 350 milhões de cabeças de porcos, a China precisou desesperadamente de proteína animal e grãos para alimentar seus novos plantéis. Novamente, ponto positivo para as commodities agrícolas e proteína animal, como soja, milho, carne bovina e suína.

Do lado das importações, a China também se aproveitou da pandemia e do novo modus operandi do “fique em casa” e aumentou seus bens vendidos para o exterior, como equipamentos de proteção individual e produtos eletrônicos —com uma alta de 31% apenas em março deste ano.

Mas, e o Brasil? Com essa bonança nas commodities, por que será que não estamos surfando essa onda como testemunhada nos anos de 2006 e 2007? Por que nosso câmbio insiste em continuar tendo um dos três piores desempenhos, entre os países emergentes, desde o início da pandemia?

A resposta não poderia ser outra a não ser o nosso crescente risco fiscal.

Enquanto durante os anos de 2006 a 2008, a nossa dívida pública bruta em relação ao PIB não passava de 57% e ainda conseguíamos apresentar superávits primários, hoje em dia estamos um pouco mais arriscados, com uma dívida pública beliscando os 91%, déficits primários e manobras do legislativo para furar o teto de gastos com emendas parlamentares, fazendo uso de PECs para ajustar PECs já aprovadas.

Como diz a economista Zeina Latif: “embora a regra do teto esteja sendo cumprida no momento, o espírito do regime fiscal se perdeu”.

E isso não é de agora. Já vem desde 2015 e continua piorando mesmo com as amarras de disciplina fiscal como o teto de gastos, o qual determina que as despesas e os investimentos públicos fiariam limitados ao mesmo valor gasto no ano anterior, ajustado pela inflação.

Como não parece que as novas coligações com o centrão tem se mostrado muito preocupadas com o espírito da lei, os detentores de títulos da dívida pública e investidores —como eu, você, que temos nosso suado dinheirinho investido em fundos de investimentos, tipo DI, multimercado, seguradoras, previdência privada— acabam pedindo maiores retornos, dado o maior risco que corremos com essa dinâmica explosiva da dívida pública.

Maior risco, maior retorno requerido, maiores juros na ponta do consumidor, limitando mais ainda o consumo das famílias e os investimentos.

Para aqueles não contentes com o retorno observada na curva de juros, acabam fugindo e deixando na porta de saída uma pressão cambial, que para deteriorar o cenário, acaba piorando a nossa inflação “importada”, resultado do aumento do preço de commodities em dólares multiplicado pela cotação cambial.

Para segurar esse repasse dos preços de atacado ou do produtor para o consumidor, tome Selic e sua trajetória de alta, restringindo mais ainda o crescimento econômico do Brasil. O Brasil é nosso e os problemas também.

Josué de Castro mostra o paradoxo mais gritante e obsceno do país

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Gilberto Felisberto Vasconcellos – ESPECIAL PARA A FOLHA – 11/08/2001 – CADERNO ILUSTRADA

Não há entre nós assunto mais baixo astral do que a fome. A miséria da fome. É o paradoxo mais gritante e mais obsceno da civilização brasileira.

Somos o país do alimento, mas a maioria da população não tem o que comer. Resulta daí a nossa tragédia existencial e política, inclusive estética, porque a existência da fome é o fenômeno mais irracional da nossa sociedade.

Médico, marxista, terceiro-mundista, filiado ao PTB vargojanguista, perseguido pelo golpe de 64, Josué de Castro nasceu no Recife, “Hong Kong da América com sua miséria acumulada”, escreve neste livro memorialístico e romanceado sobre a promiscuidade dos homens e caranguejos passando fome na lama dos mangues: um engolindo o outro.

Parafraseando a linguagem dos sociólogos e economistas, Castro fala em “ciclo do caranguejo” ou em “sociedade dos caranguejos”. Mocambos. Polis dos mocambos.
Vindo de família abastada, o Engels de Pernambuco, que em 1935 escreveu “As Condições de Vida das Classes Operárias do Recife”, conceitua a fome pelo ângulo da qualidade, ou seja: a carência dos alimentos indispensáveis ao equilíbrio da saúde. Não é a falta de alimento que leva o indivíduo à morte. Nesse sentido a totalidade da sociedade no Brasil é marcada pela condição esfomeada.

Foi nos mangues do rio Capibaribe que Castro tomou consciência do drama da fome, que é uma praga criada pelos homens e cujas raízes encontram-se no processo da colonização, de modo que o colonialismo é que engendra o fenômeno da fome: latifúndio, monocultura e mercado externo.

A forte impregnação visual e aderência à geografia tem a sua explicação biográfica nesta narrativa dos anos de infância de Castro: “Foi o rio o meu primeiro professor de história do Nordeste, da história desta terra quase sem história. A verdade é que a história dos homens do Nordeste me entrou muito mais pelos olhos do que pelos ouvidos”.

O autor sublinha que compreendeu a angústia da fome, não na Sorbonne parisiense, mas nos mangues e bairros inóspitos do Recife. Pobres coitados alimentados com caranguejo e farinha de mandioca. Mais nada.

Nesse livro aparece a grande loucura da sociedade brasileira, loucura que nos persegue ainda hoje: um povo faminto que não sabe de onde vem a fome e quer ocultá-la ou senão disfarçá-la. E mais: os alimentados não entendem os famintos e vice-versa. E mais: o chamado público letrado não aprecia os intelectuais e artistas que denunciam a irracionalidade da fome popular brasileira.

Novo líder empresarial terá de reduzir foco financeiro e buscar legado, diz diretor de escola de negócios

Para Antonio Batista da Silva Junior, da Fundação Dom Cabral, chefes de empresas devem sair com nova postura da pandemia

Painel Folha de São Paulo, 14/04/2021 – Joana Cunha

Como vocês chegaram à conclusão sobre o perfil de foco financeiro dos líderes atuais?

A gente precisa compreender a evolução da sociedade para poder direcionar nossas ações educacionais. A educação vai para onde vai o mundo.

Uns cinco anos atrás, nós saímos num périplo, conversando com mais de 250 CEOs para entender a angústia, as dores, a percepção deles.

As empresas que vão sobreviver ao final do século 21 são aquelas às quais a sociedade conferir legitimidade para operar. E esse é um mal-estar, porque o executivo que tradicionalmente foi educado e preparado para ser um executivo de entrega de resultado econômico e financeiro, hoje, tem uma nova demanda, que é a de construir legados.

Hoje, o executivo vai ter que ser menos escravo do resultado, e ser mais um agente de progresso. Ele vai ter que saber conciliar performance e progresso, porque as empresas precisam ser produtivas, eficientes e terem lucro, mas não é só isso.

Essa é uma mudança grande no mundo corporativo. É uma demanda nova, um paradigma que está em transição, que vai exigir novos comportamentos.

É um profissional que consegue olhar para as desigualdades?

A pergunta que você faz para um executivo é: ‘através dos produtos e serviços que você faz, qual o problema da humanidade que você tenta resolver?’.

Aí entram problemas de desigualdade social, de clima, de educação, de água, do meio ambiente.
E é possível mudar essa mentalidade? Em quanto tempo?

Claro que eu acho possível. Esse é o nosso papel. A educação é transformadora. E isso é urgente, tem que começar imediatamente.

Fica mais urgente com a pandemia?

Sem dúvida, a pandemia escancarou. Ela aumentou as diferenças sociais e agravou um problema que já era existente no mundo inteiro. Essa dívida social cresce de maneira acelerada. O problema de saúde está rebatendo no problema econômico.

A pandemia vai ter que acelerar essa percepção [de mudança] dos vários setores, do governo e das empresas. Eu acho que o líder não sai incólume dessa pandemia. Ele vai ter que sair com uma nova visão, uma nova postura, uma nova ação.

As novas gerações são muito voltadas para propósito, para emoção, para paixão com ideias. Então, as empresas têm que vincular emocionalmente seu propósito com o propósito da nova geração, que são os funcionários e os consumidores.

É uma tendência no mercado brasileiro e fora?

Acho que sim. É uma tendência mundial. Ainda que o Brasil seja uma economia muito desintegrada do comércio global e que o país tenha perdido sua presença nas grandes pautas como agente protagonista do mundo, o que acontece lá fora acontecerá aqui também mais cedo ou mais tarde, numa velocidade maior ou menor.

Acho que nós temos problemas específicos. Um deles é o grande fosso social. A distribuição da renda no Brasil é criminosa.

com Mariana Grazini e Andressa Motter

A geração dos jovens que não verão país nenhum, por Vinícius Torres Freire.

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Na vida adulta, geração que chega aos 30 só viu país empobrecer e se barbarizar

Folha de São Paulo, 14/04/2021.

As projeções de crescimento da economia para o ano que vem começam a cair para a casa do 1%. É apenas chute vagamente informado, mas essa bola deve cair mesmo no pântano em que vivemos faz tempo. Em 2022, bicentenário da Independência, serão nove anos de pobreza piorada. Ainda estaremos colonizados pelos nossos piores monstros.

Imagine-se uma brasileira que teve a boa sorte de terminar a faculdade no último ano antes da catástrofe, em 2013, nos seus 21 anos. “Boa sorte” porque apenas 1 de cada 4 jovens de 18 a 24 anos está no ensino superior ou concluiu este curso. Há quem tenha largado a escola muito antes e terá vida pior. No ano que vem, essa brasileira fará 30 anos. Terá passado a primeira parte de sua vida adulta em um país em destruição. É apenas um símbolo de uma catástrofe duradoura, uma de várias gerações perdidas.

No ano que vem, o país ainda será mais pobre do que era em 2013: a renda (PIB) per capita deve ser ainda 7,5% menor. Pelas estimativas atuais, voltaremos a 2013 apenas em 2027. Mas chute econômico não é destino. Assistir bestificado à presente destruição vai nos garantir futuro tenebroso.

Mal ou bem, países do centro do mundo planejam a reconstrução depois da epidemia. São grandes projetos de economia verde e pesquisa científica e tecnológica, como biotecnologia e inteligência artificial.

Qual o lugar do Brasil nesse futuro? Uma zona de catástrofe ambiental e sanitária, talvez por isso objeto de sanções econômicas e políticas.

Nossos produtos industriais logo serão ainda mais obsoletos em termos tecnológicos e ambientais. Talvez não queiram também nossos grãos, ferro e petróleo, por prevenção ambiental ou porque a China passou a plantar soja na África ou porque o país é infecto ou avilta o trabalhador. Com o troco que nos sobrar, compraremos produtos “verdes” ou máquinas inteligentes reais e virtuais etc. inventados com pesquisa subsidiada no mundo rico.

O plano Bolsonaro é o avesso podre dos planos de reconstrução: é devastação ambiental e da Educação, sob mando de um adepto do espancamento de crianças. São tempos de dr. Jairzinho e dr. Jairzinho.

Desmontam-se agências e a participação democrática nos conselhos de Estado, avilta-se ou se assedia o corpo técnico de servidores, perseguem-se professores, acelera-se a destruição da pesquisa científica. Capangas oficiais e paramilitares, milícias, talvez colaborem para a implantação de um autoritarismo temperado por farisaísmo, fundamentalismo religioso, patriotada militaresca e ignorância lunática.

Nos acostumamos aos quase nove anos de catástrofe econômica assim como nos acostumamos agora aos 3 mil mortos por dia ou aos crimes de responsabilidade semanais de Jair Bolsonaro. Resta força apenas para combater o regresso autoritário. O Brasil se acostumou a não ter futuro.

É pior do que nos anos perdidos para o horror social e a inflação dos 1980/90. Então se tentava reconstruir um país: Constituição, estabilidade econômica, alguns direitos sociais.

Ainda assim, nossos desastres vêm de longe, pelo menos desde a recessão que começou em 1981, desatino final da ditadura militar. Desde então até 2019, o PIB per capita do Brasil cresceu 36%. O dos países já ricos (OCDE), 85%.
O do mundo, 75%. É o aspecto econômico de um fracasso longo e maior. A diferença agora é que morreu ou está para morrer, sem UTI, a ideia de sucesso ou de progresso.

“Não Verás País Nenhum”, dizia o título do romance presciente de Ignácio de Loyola Brandão (aliás de 1981). Tratava de um Brasil em que a Amazônia se tornou um deserto, em que São Paulo fede a cadáveres e em que militecnos comandam um governo autoritário.

Os invisíveis

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A pandemia está mostrando as marcas das violências que existem na sociedade brasileira, o incremento das desigualdades sociais, o crescimento do desemprego, as desilusões mais íntimas e o aumento dos chamados invisíveis, pessoas que sobrevivem em situação de degradação social, pessoas vivendo nas ruas, comendo alimentos estragados e sem condições sanitárias dignas. Vivemos uma verdadeira contradição, de um lado uma grande parte da população em péssimas condições de vida e, de outro lado, um país marcado por riquezas incalculáveis, espaço geográfico e meio ambiente exuberantes. Vivemos num país que se destaca como o celeiro do mundo, responsável pela produção de grande quantidade de alimentos, alimentando uma parte substancial da população global, mas que mantém, ainda e recorrentemente, uma grande leva de cidadãos na fome e na indignidade.

Os invisíveis brasileiros estão sem ocupação, estão longe dos centros financeiros e dos condomínios de luxo, são pessoas que se alimentam de forma precária, pessoas desesperançadas que percebem do Estado apenas as mãos da repressão, recebendo educação e saúde degradadas, se utilizando de postinhos cheios e sucateados, pessoas esquecidas por uma elite degradada e predatória e uma classe política que se lembra da população mais carente nos momentos eleitorais, fazendo promessas e criando um universo paralelo, distante da maior parte da população. Nesta invisibilidade brasileira destacamos mais de 38 milhões de pessoas, contingente cada vez mais distante do desenvolvimento econômico. Neste momento, estamos cada vez mais próximos dos pelotões intermediários do desenvolvimento, atualmente os dados nos mostram que caímos para 12® lugar dentre as maiores economias do mundo.

A pandemia desmascarou a desigualdade brasileira, muitas pessoas estão acreditando que somos pobres e miseráveis, ledo engano, somos um país rico e dotado de grandes riquezas naturais e uma população empreendedora, somos dotados de sonhos e carecemos de oportunidades. Necessitamos de investimentos públicos em todos os rincões do país, educação de qualidade, estimulando as habilidades socioemocionais, fomentando o pensamento crítico, a diversidade, o respeito pela ciência e pela pesquisa científica.

Precisamos investir na construção de uma sociedade melhor e mais solidária, não apenas a poucos afortunados, dotados de sobrenomes pomposos e heranças garantidas e investimentos improdutivos. Precisamos garantir recursos públicos para os grupos mais fragilizados e garantir serviços para os mais vulneráveis, sabemos que os recursos são escassos, mas para os grupos econômicos os recursos sempre aparecem e aumentam seus lucros e enriquecem seus detentores. Na pandemia percebemos que os grandes desafios deste país são políticos, num mundo marcado pelo desenvolvimento tecnológico e da era da informação, percebemos que para superar as dificuldades precisamos construir um consenso em prol da vida e da solidariedade, deixando os interesses mesquinhos e pensarmos nos grupos mais degradados.

Neste momento estamos próximos de uma convulsão social, as mortes se sucedem em escalas colossais, os pobres e os miseráveis crescem de forma acelerada. A revista Fortune, publicada recentemente, destacou o crescimento do número de bilionários brasileiros, que cresceram de 45 para 65 pessoas, em plena pandemia seus patrimônios cresceram, ao mesmo tempo em que o país ruma para sermos um pária mundial, sem vacinas, sem alimentos, sem perspectivas e sem governos.

A pandemia exige decisões emergenciais, a crise econômica desagregou as cadeias produtivas, levando muitas indústrias a interromperem sua produção. Neste momento, precisamos reconstruir os laços sociais, incrementando o emprego, estimulando os investimentos produtivos e retomando a economia, sem estes, dificilmente conseguiremos nos reconstruir como nação, num momento de desalento, indignidade e desesperança.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Especialista em Economia, Mestre, Doutor em Sociologia/Unesp e Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 14/04/2021.

EUA precisam empoderar trabalhadores novamente, por Paul Krugman.

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Os sindicatos não são obsoletos, e precisamos recuperá-los

PAUL KRUGMAN – THE NEW YORK TIMES – PUBLICADO NO UOL – 12/04/2021.

Os ativistas pró-trabalhadores esperavam que a votação sobre a sindicalização no armazém da Amazon em Bessemer, no Alabama, fosse um ponto de inflexão, uma inversão na tendência de décadas de declínio dos sindicatos. O que a votação mostrou, porém, foi a persistente eficácia das táticas usadas repetidamente pelos empregadores para derrotar os esforços de organização.

Mas os defensores dos sindicatos não devem desistir. O ambiente político que deu espaço livre aos patrões antissindicais pode estar mudando —o declínio da sindicalização foi acima de tudo político, e não uma consequência necessária de uma economia em transformação. E os EUA precisam de um renascimento sindical se quisermos ter alguma esperança de inverter a espiral de desigualdade.

Comecemos falando sobre por que a afiliação aos sindicatos diminuiu, em primeiro lugar, e por que ainda é possível esperar um renascimento.

Os Estados Unidos já tiveram um poderoso movimento trabalhista. A afiliação aos sindicatos cresceu muito entre 1934 e o fim da Segunda Guerra Mundial. Nos anos 1950, aproximadamente um terço dos trabalhadores não agrícolas eram sindicalizados. Ainda em 1980 os sindicatos representavam aproximadamente um quarto da força de trabalho. E os sindicatos fortes tinham um grande impacto mesmo sobre os trabalhadores não sindicalizados, definindo normas de pagamento e colocando os empregadores antissindicais sob aviso de que deviam tratar seus empregados relativamente bem ou enfrentariam o movimento organizado.

Mas a participação nos sindicatos despencou, especialmente no setor privado, durante os anos 1980, e continuou caindo desde então.

Por que isso aconteceu? Muitas vezes encontro afirmativas de que o declínio foi inevitável diante da automação e da globalização —basicamente, que os sindicatos não podiam conseguir salários mais altos quando os patrões tinham a opção de substituir trabalhadores arrogantes por robôs ou mudar a produção para o exterior. Mas a evidência sugere outra coisa.

Apesar de falarmos muito sobre robôs hoje em dia, o progresso tecnológico foi na verdade mais rápido durante a maré alta da sindicalização do que nos últimos anos; a produção por trabalhador-hora aumentou duas vezes mais depressa de 1947 a 1973 do que depois de 2007. Isso não impediu os sindicatos de terem uma grande influência nos salários.

O impacto da globalização também é frequentemente exagerado. Cerca de três quartos do emprego nos países avançados são em atividades que não podem ser transferidas para outros países, proporção que não mudou muito com o tempo.

Na verdade, a Amazon é um caso típico: enquanto muitos dos produtos que se podem comprar online são importados, a posição de mercado da Amazon repousa sobre um enorme sistema de armazéns —como o de Bessemer— que empregam centenas de milhares de trabalhadores. E esses armazéns não podem ser transferidos para o exterior; seu objetivo é manter os estoques próximos dos grandes mercados, para que a Amazon possa entregar as coisas em poucos dias.

Se o setor de serviços fosse sindicalizado, os empregadores não achariam fácil substituir trabalhadores empoderados por robôs ou produção offshore. De fato, outras economias avançadas como a Dinamarca, que são tão globalizadas quanto nós, ainda têm forças de trabalho amplamente sindicalizadas; até o Canadá mantém um movimento sindical muito maior que o nosso.

Por que os sindicatos são tão fracos nos EUA? Enquanto os detalhes são discutíveis, a política americana deu uma virada rápida contra os sindicatos sob Ronald Reagan, incentivando os empregadores a jogar duro contra os sindicalistas. Isso significou que, enquanto o centro de gravidade da economia americana mudava da manufatura para os serviços, os trabalhadores nos setores em crescimento ficaram amplamente desorganizados.

E esse declínio na sindicalização teve consequências terríveis. Em seu momento áureo, os sindicatos foram uma força poderosa a favor da igualdade; sua influência reduziu a desigualdade geral dos salários e também reduziu as disparidades salariais associadas a diferentes níveis de educação e até à raça. O aumento da afiliação aos sindicatos parece ter sido um fator chave na “Grande Compressão”, a rápida redução da desigualdade que ocorreu entre meados dos anos 1930 e 1945, transformando os EUA em um país de classe média.

Inversamente, o declínio dos sindicatos teve um grande papel no aumento da desigualdade e na estagnação dos salários. E os trabalhadores perderam o poder de negociação conforme políticas antitruste permitiram que as corporações ganhassem cada vez mais poder de mercado.

Mais uma coisa: não precisamos de sindicatos fortes só para nivelar o campo de jogo econômico.

Embora seja animador ver o governo Biden propor uma reversão dos presentes dados pelo governo Trump às empresas, ainda é verdade que o dinheiro grande tem enorme influência política. Não é simplesmente uma questão de contribuições de campanha. Os interesses corporativos também conseguem definir os termos do debate por meio de sua capacidade de oferecer empregos lucrativos a ex-políticos e autoridades, apoio generoso a grupos de pensadores amigos, etc.

A força de trabalho organizada costumava oferecer um contrapeso à influência corporativa. Os sindicatos nunca estiveram em posição de se equiparar ao poder do dólar corporativo, mas podiam oferecer às pessoas poder —a capacidade de mobilizar seus membros e seus amigos e vizinhos de um modo que as corporações não podiam. E mais que nunca precisamos desse poder compensador.

Então esperemos que os ativistas trabalhistas tratem Bessemer como uma experiência de aprendizado, e não um motivo de desespero. Ainda precisamos recuperar os sindicatos fortes.

Traduzido originalmente do inglês por Luiz Roberto M. Gonçalves

A pandemia trará o apartheid global? por Joseph Stiglitz.

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Ao Norte, créditos ilimitados e bem-estar social. Ao Sul, endividamento e o inferno da “austeridade”. Mas vírus é ameaça mundial – e saídas devem ser coletivas. Uma delas pode vir de lugar improvável: os bilhões da reserva do FMI

Joseph Stiglitz e outros – Outras Palavras – 31/03/2021

“Os líderes políticos do mundo desenvolvido deveriam reconhecer que ninguém estará seguro até que todos estejam seguros e que uma economia global saudável não é possível sem uma forte recuperação mundo afora.” Um relatório importante do Institute for New Economic Thinking está trazendo a dimensão mundial dos nossos desafios. De certa forma, está em jogo a tradicional estratégia dos países ricos resolverem os seus problemas às custas do resto do mundo:

“Atraso da vacinação das pessoas pelo mundo afora aumenta as possibilidades de mutações do vírus, reduzindo a habilidade de controlar a pandemia até em países ricos que embolsaram as vacinas.”

O artigo curto em português traz o link de relatório em inglês, sobre temas tão chave como repensar patentes, perdoar dívidas e usar o FMI para financiar os mais frágeis. Temos de pensar globalmente.

Os Estados Unidos esperam poder “comemorar a independência” da covid-19 até o dia da Independência (4 de julho), quando as vacinas terão sido disponibilizadas para toda a população adulta. Mas, para muitos países em desenvolvimento e mercados emergentes, o fim da crise ainda está bem distante. Como mostramos em um relatório para a Comissão de Transformação Econômica Global do Instituto do Novo Pensamento Econômico (INET), alcançar uma rápida recuperação global requer que todos os países possam declarar independência do vírus.

Como o coronavírus sofre mutações, se ele continuar se desenvolvendo em qualquer lugar do planeta, colocará o mundo inteiro em risco. Portanto, é fundamental que vacinas, equipamentos de proteção individual e medicamentos terapêuticos sejam distribuídos em todos os lugares, o mais rapidamente possível. E como as atuais restrições de oferta são resultado de um regime de propriedade intelectual internacional muito mal projetado, elas são basicamente artificiais.

Embora a reforma sobre a Propriedade Intelectual (PI) permanece defasada, o mais urgente agora é a suspensão ou agrupamento dos direitos de PI vinculados aos produtos necessários para combater a covid-19. Muitos países imploram por isso, mas os lobbies corporativos nos países ricos resistem — e seus governos sucumbiram à miopia. A ascensão do “nacionalismo pandêmico” expôs uma série de deficiências no comércio global, nos investimentos e regimes de PI (que a Comissão do INET tratará em posterior relatório).

Nações desenvolvidas, especialmente os EUA, agiram com força para restabelecer suas economias e apoiar empresas e famílias vulneráveis. O país aprendeu, mesmo que apenas muito recentemente, que a austeridade é profundamente contraproducente durante crises. A maioria dos países em desenvolvimento, entretanto, luta para obter fundos e manter os programas de apoio existentes, sobretudo para absorver os custos adicionais impostos pela pandemia.

Enquanto os EUA gastaram cerca de 25% do PIB para manter sua economia (e conter em grande parte a magnitude da retração), os países em desenvolvimento só puderam gastar uma pequena fração dessa quantia.

Nossos cálculos, com base nos dados do Banco Mundial mostram que, com quase US$ 17 mil dólares per capita, os gastos dos Estados Unidos foram cerca de oito mil vezes mais altos do que os dos países menos desenvolvidos.

Além de ativar seu poder de fogo fiscal, os países ricos ajudariam a si mesmos e à recuperação global adotando três políticas. Primeira: devem pressionar por uma grande emissão de direitos de saque especiais (DES), o ativo de reserva global do Fundo Monetário Internacional (FMI). Do jeito que as coisas estão, o FMI poderia emitir imediatamente cerca de US$ 650 bilhões em DES, sem precisar da aprovação dos representantes dos estados-membros. E o efeito expansionista poderia ser aumentado significativamente, se os países ricos transferissem suas alocações desproporcionalmente maiores para os países que precisam de dinheiro.

O segundo conjunto de ações também envolve o FMI, dado o seu grande papel na formulação de políticas macroeconômicas no mundo em desenvolvimento, especialmente nos países que buscam ajuda para resolver problemas na balança de pagamentos. Em um sinal encorajador, o FMI tem apoiado ativamente a busca por pacotes fiscais sólidos e prolongados pelos Estados Unidos e pela União Europeia, e até mesmo reconheceu a necessidade de aumentar os gastos públicos nos países em desenvolvimento, apesar das condições externas adversas.

Mas, quando se trata de definir os termos dos empréstimos a países que enfrentam problemas na balança de pagamentos, as ações do FMI nem sempre condizem com suas declarações. Uma análise da Oxfam International sobre recentes acordos em espera e em andamento conclui que, entre março e setembro de 2020, 76 dos 91 empréstimos do FMI negociados com 81 países, exigiram cortes nas despesas públicas que poderiam prejudicar os sistemas de saúde e as pensões, congelar os salários dos trabalhadores do setor público (incluindo médicos, enfermeiras e professores) e reduzir o seguro-desemprego, auxílio-doença e outros benefícios sociais. A austeridade – especialmente, com cortes nessas áreas vitais – não deve funcionar melhor para os países em desenvolvimento do que funcionaria para os desenvolvidos. E mais assistência, incluindo as propostas de DES discutidas acima, daria a esses países um respiro fiscal extra.

Por último, os países desenvolvidos poderiam orquestrar uma resposta abrangente aos enormes problemas de dívida que muitos países enfrentam. O dinheiro gasto com o pagamento da dívida é dinheiro que não está ajudando os países a combater o vírus nem a reiniciar suas economias. Nos estágios iniciais da pandemia, esperava-se que uma suspensão do pagamento da dívida para os países em desenvolvimento e mercados emergentes fosse suficiente. Mas já se passou mais de um ano e alguns países precisam de uma reestruturação abrangente dela, em vez dos habituais curativos que apenas preparam o terreno para outra crise daqui a alguns anos.

Existem várias maneiras pelas quais os governos credores podem facilitar essas reestruturações e induzir uma participação mais ativa do setor privado, que até agora tem sido relativamente recalcitrante. Como o relatório da Comissão do INET enfatiza, se há um momento para reconhecer os princípios de força maior e necessidade, agora é a hora. Os países não devem ser forçados a pagar o que não podem pagar, especialmente porque isso causaria enorme sofrimento.

As políticas descritas aqui seriam de enorme benefício para o mundo em desenvolvimento e teriam pouco ou nenhum custo para os países desenvolvidos. Na verdade, é de interesse próprio desses países fazer o que puderem pelas pessoas nos países em desenvolvimento e nos mercados emergentes, especialmente quando o que eles podem fazer já está disponível imediatamente e traria enormes benefícios para bilhões de pessoas. Os líderes políticos do mundo desenvolvido deveriam reconhecer que ninguém estará seguro até que todos estejam seguros e que uma economia global saudável não é possível sem uma forte recuperação mundo afora.