Momentos preocupantes

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O mês de abril está trazendo grandes movimentações nos cenários nacional e internacional, os agentes econômicos e produtivos estão passando por instantes de grandes preocupações, medos e pouca previsibilidade, desta forma, os investimentos produtivos se reduzem, as incertezas crescem, a insegurança dos trabalhadores aumenta e as organizações passam a repensar suas estratégias e seu planejamento econômico, buscando se adaptarem ao momento de volatilidades e grandes mutações no mundo dos negócios.

Vivemos um momento de conflitos comerciais e geopolíticos entre atores econômicos gigantescos, com impactos generalizados para toda a comunidade internacional, embora percebamos os momentos preocupantes que permeiam a sociedade mundial, sabemos também que nenhum dos grandes estrategistas de mercado, de acadêmicos renomados e de intelectuais que estudam a sociedade global, sabem o que vai acontecer com a sociedade global nos próximos meses, na verdade, atualmente, as modificações estão acontecendo não mais nos próximos meses, mas percebemos que as transformações estão acontecendo diariamente, discursos inflamados, além de publicações nas redes sociais e comentários agressivos e pouco educados, deixando de lado os tradicionais discursos diplomáticos.

Neste momento de crescimento da instabilidade e da volatilidade, percebemos o crescimento de um verdadeiro vale tudo global, onde as regras internacionais foram alteradas, leis criadas e assinadas por inúmeras nações, para fomentar o comércio e as trocas internacionais, estas regras estão sendo deixadas de lado, cada nação busca aumentar seus ganhos imediatos, deixando claro o incremento do individualismo e a sua busca frenética por mais  vantagens comerciais e financeiras, além de ganhos políticos e um melhor posicionamento na nova configuração de poder global.

Vivemos uma verdadeira guerra comercial, onde encontramos uma nação que vem perdendo espaço na estrutura industrial global e busca, de forma agressiva e violenta, retomar sua força e reencontrar seus instrumentos para retomar a liderança global, mesmo que para isso, sejam necessárias uma reestruturação de todo o comércio internacional e as instituições multilaterais. Neste momento, os Estados Unidos da América, grande ganhador das estruturas comercial e industrial do pós-segunda-guerra mundial, tenta alterar as regras e as convenções que eles mesmos foram patrocinadores, desta forma, percebemos que quando as regras não mais garantem sua liderança e sua hegemonia, as regras devem ser reescritas em prol de seus interesses imediatos e seus ganhos materiais.

Neste embate contemporâneo, encontramos resistências crescentes, governos nacionais adotam represálias no comércio internacional, países buscam novos parceiros no mundo das trocas produtivas, atraindo novos fornecedores e, desta forma, criam novos espaços de integração, novos interesses econômicos e produtivos e, neste cenário, ressurgindo novos nacionalismos e novas políticas protecionistas que, no começo do século anterior levou as nações a grandes conflitos militares, guerras fratricidas, além da matança de milhões de pessoas e patrocinaram devastações materiais.

As crises globais, em curso na sociedade contemporânea, as destruições ambientais, o incremento das guerras comerciais, o ressurgimento de nacionalismos exacerbados, a aversão aos imigrantes e a escalada militar que crescem no íntimos dos indivíduos, podem ser vistos como o primórdio de grandes conflitos bélicos e militares ou, o momento crucial para compreendermos que os desafios são gigantescos e a união entre povos e culturas são o começo da resolução da encalacrada que estamos vivendo na contemporaneidade, fruto do crescimento do egoísmo, da ganância, do individualismo e da busca frenética por acumulação material e os prazeres imediatos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

O consenso neoliberal, por Gilberto Maringoni

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Gilberto Maringoni – A Terra é Redonda – 15/04/2025

Há chances mínimas do governo Lula assumir bandeiras claramente de esquerda no que lhe resta de mandato, depois de quase 30 meses de opção neoliberal na economia

No início de março, em evento na sede do BTG Pactual, Edinho Silva, ex-prefeito de Araraquara e candidato a presidente do Partido dos Trabalhadores, debateu a situação do país e do governo Lula com representantes do sistema financeiro. Em meio à defesa de maior aproximação da administração federal com o mercado, o petista enfatizou: “Com a polarização não há racionalidade, com a polarização não se concebe (…) uma agenda de unidade para o país, independentemente de divergências partidárias”.

A “polarização”, tida como grande mal da vida política, tem aparecido em editoriais, artigos de opinião e declarações de líderes políticos e intelectuais brasileiros com ênfase crescente. O que significa acabar com a polarização num dos países mais desiguais do mundo?

Convergências na economia

A defesa do “fim da polarização”, da maneira como colocada pelo dirigente petista, aparenta ter grande contraste com a extrema-direita, mas revela o seu contrário quando o debate chega à economia. A pregação de Edinho Silva tem como meta resolver um problema de médio prazo – articular uma frente eleitoral que se oponha ao neofascismo em 2026 – e não realizar mudanças profundas na estrutura institucional do país. Deveria haver uma continuidade lógica entre as duas iniciativas – eleições e mudanças –, mas não é o que ocorre.

Ao mesmo tempo, ver a polarização com o maior dos males da Terra pode embutir um misto de ilusão, oportunismo e tergiversação diante de um quadro de riscos colocados para a democracia brasileira. Se raciocinarmos que as propostas da extrema-direita são incompatíveis com a institucionalidade, a polarização torna-se necessidade vital. É algo a ser acentuado – e não lamentado – para que a população tenha clareza do que está em jogo e possa fazer escolhas com clareza. A experiência do governo Bolsonaro mostra o caráter golpista, autoritário, elitista, negacionista, excludente e submisso ao imperialismo da extrema direita. Como não polarizar com um regime desses?

A visão de que a polarização deve ser evitada coloca na mesa pelo menos três problemas.

O primeiro denota que apesar de todas as tentativas de se encontrar diferenças na condução econômica entre as principais forças políticas do país, o que se percebe é o contrário. Há grande convergência – num arco que vai do centro à extrema direita – sobre a necessidade de um ajuste fiscal permanente e redentor, que submeta a ação do Estado à alta-finança.

O segundo problema reside no fato de os contrários à polarização não deixarem claras as bases para a construção de uma hipotética unidade de forças. Da parte da grande mídia e da direita, parece haver certo saudosismo dos tempos do chamado “pensamento único”, utopia neoliberal derivada da famosa frase da ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, “Não há alternativa”.

O terceiro é que “polarização” não é algo ou alguém dotado de vontade própria, capaz de impor pontos de vista, como se fosse um ser racional. Reclamar da “polarização” é como lamentar “a briga”, “o desentendimento” ou a “falta de amor” entre as pessoas. “Polarização” é uma relação de oposição entre dois polos, dois pontos de vista, duas condutas.

Com base nesses três pontos, vale perguntar: existe essa oposição real no que interessa – nos projetos econômicos – entre a frente liderada pelo PT e as forças aglutinadas em torno de Jair Bolsonaro? Ambas têm como pedra de toque, em maior ou menor grau, políticas de austeridade.

O consenso neoliberal

A fabricação do consenso neoliberal na sociedade é condição essencial para sua aplicação. Se pensarmos friamente, não é fácil convencer o eleitorado de que cortes em verbas de Educação e Saúde, venda de empresas públicas eficientes e perdas de direitos sociais representam vantagens para as maiorias. Não se trata de uma convergência à qual se chega pelo livre curso de ideias e debates públicos, mas através de uma sólida unidade entre diversos setores do grande capital (o que inclui a mídia e as big techs).

Essa coalizão tem como tarefa principal repetir num uníssono um conjunto de meias verdades e valores duvidosos sem contrapontos. Não falta o uso desmedido da força para sua imposição. Vozes dissonantes foram desqualificadas, ridicularizadas e até eliminadas para a fabricação do grande consenso, que ganhou ares de novo valor civilizatório.

A atual hegemonia neoliberal foi alcançada através da adesão de parte significativa da esquerda. Não nos esqueçamos do papel que tiveram o Partido Trabalhista britânico, o Partido Socialista Operário Espanhol, os Partidos Socialistas francês, italiano e chileno e o peronismo nos anos 1980-90. No caso brasileiro, o modelo neoliberal foi imposto à sociedade a partir do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), tido à época como progressista, e jamais teve suas medidas contestadas na prática pelas administrações do Partido dos Trabalhadores.

O neoliberalismo foi implantado em boa parte do mundo nos anos 1980-90 e vive uma segunda e mais agressiva fase a partir de crise de 2008. Novas modalidades de golpes começaram a surgir na América Latina, através de instâncias do Judiciário e do Legislativo, com auras de legalidade incontestes, como em Honduras (2009), Paraguai (2012) e Brasil (2016). A articulação para a deflagração do impeachment contra a ex-presidenta Dilma Rousseff envolveu múltiplos atores no campo dos três Poderes e a nata do capital financeiro e do agronegócio. Foi a famosa frente “com o Supremo e com tudo”, como bem sintetizou o ex-senador Romero Jucá.

A ponte ampla

Meses antes do golpe, no final de outubro de 2015, a direita brasileira colocou na rua sua síntese programática, centrada na pauta econômica. Apesar de Dilma ter entregue quase todas as exigências do mundo financeiro, como um ajuste fiscal que elevou a taxa de desemprego de 6,6% em dezembro de 2014 para 11,3, em março de 2016 (IBGE), o topo da pirâmide social queria mais. Esse “mais” ficou conhecido sob o título de “Uma ponte para o futuro”.

Embalado num livreto de 20 páginas, seu texto resumia um agressivo programa ortodoxo, que compreendia, entre outras coisas, o seguinte: “É necessário em primeiro lugar acabar com as vinculações constitucionais estabelecidas, como no caso dos gastos com saúde e com educação. (p. 9) (…) Outro elemento para o novo orçamento tem que ser o fim de todas as indexações, seja para salários, benefícios previdenciários e tudo o mais. (p. 10) (…)

“O primeiro objetivo de uma política de equilíbrio fiscal é interromper o crescimento da dívida pública, para, em seguida, iniciar o processo de sua redução como porcentagem do PIB. O instrumento normal para isso é a obtenção de um superávit primário capaz de cobrir as despesas de juros menos o crescimento do próprio PIB. (p. 13) (…) [Será preciso] executar uma política de desenvolvimento centrada na iniciativa privada, por meio de transferências de ativos que se fizerem necessárias, concessões amplas em todas as áreas de logística e infraestrutura, parcerias para complementar a oferta de serviços públicos e retorno a regime anterior de concessões na área de petróleo, dando-se a Petrobras o direito de preferência”.

O “Ponte para o futuro” é uma formulação programática, cujos limites não deveriam ser desrespeitados por governo algum. O arrazoado apresentado pelo PMDB, elaborado por alguns dos melhores cérebros do mundo do dinheiro, funcionou como uma espécie de projeto de constituinte financeira para a reestruturação do Estado brasileiro. É uma obra em andamento, que não admite retrocessos nas medidas adotadas.

Baliza para reformas regressivas

O documento se constituiu na baliza para as reformas trabalhista e previdenciária, o teto de gastos e o arcabouço fiscal, as privatizações da Eletrobrás, da BR Distribuidora, do saneamento, das parcerias público-privadas (PPPs), dos programas de parcerias de investimento (PPIs), das concessões de infraestrutura (portos, aeroportos e estradas), da autonomia do Banco Central etc. São alterações para subordinar o poder público às dinâmicas do mercado financeiro e da agroeconomia de exportação.

A ministra Simone Tebet, do Planejamento, em entrevista à jornalista Míriam Leitão no último 12 de março, mostrou a rota do consenso pretendido para os próximos anos: “Em 2027, seja quem for o próximo presidente, ele não governa com esse arcabouço fiscal sem gerar inflação, dívida pública e detonar a economia. Então nós temos uma janela de oportunidade, que não é agora e nem às vésperas das eleições de 2026”, pois ninguém quer tratar disso às vésperas da disputa, afirma a ministra.

A janela de oportunidade, segundo ela, virá após o pleito, “seja o presidente Lula candidato, seja outro candidato, [a tarefa é] fazer o dever fiscal, cortar gastos, (…) fazer um arcabouço mais rigoroso, que não mate o paciente, mas que garanta sustentabilidade para baixar a dívida, os juros, a inflação e faça a economia crescer”.

Seja qual for o governo eleito, a condução econômica deve permanecer intocada, como se opções de investimentos e alocações de recursos públicos fossem realizadas a partir de obscuras diretrizes “técnicas”, a exemplo do que propagam operadores de mercado e membros da área econômica do governo.

Vale sempre perguntar “Técnicas em favor de quem?”, como observou o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos (1935-2019), num pequeno e profético livro intitulado Quem dará o golpe no Brasil?, lançado em 1962. Simone Tebet na prática propõe um golpe consensual entre as grandes forças políticas com representação parlamentar, para engessar a próxima administração.

Diante dessa abrangente somatória de pressões, esforços, consentimentos e concordâncias na aplicação do programa que embalou o golpe contra Dilma, como se pode falar que o traço principal da vida brasileira seja uma “polarização” que não se revela na política econômica?

Grandes interesses intocados

O consenso – e não a polarização – resulta de escolhas feitas para não se colocarem em risco interesses seculares. Em maior ou menor grau, todas elas, nos últimos 30 anos, aprofundaram medidas liberalizantes, enfraqueceram estruturas de Estado nas áreas sociais e de promoção do desenvolvimento.

Ao mesmo tempo, o consenso pela austeridade fiscal é um gerador de tensões e instabilidades, pois implica a sobreposição dos interesses de uma minoria abastada sobre os da maioria da população. Mais do que tudo, sua imposição acima de orientações partidárias geralmente leva governos eleitos com grande expectativa popular a frustrarem suas bases sociais, contribuindo para o senso comum de que “políticos são todos iguais”.

O terceiro governo Lula é resultado da constituição de uma ampla frente política entre contrários, foi essencial para se derrotar a extrema direita, numa situação delicada da vida nacional. Embora a face visível dessa coalizão seja marcada pela presença de lideranças conservadoras, a convergência real envolveu fatia considerável do PIB brasileiro, um amplo espectro partidário, da esquerda à direita tradicional, passando por golpistas de 2016 e setores desgarrados da extrema direita.

No entanto, ao longo do primeiro ano de gestão, ficou claro que a ampla frente tinha como amálgama unificador um severo programa de cortes de gastos, que se aproxima do “Ponte para o futuro”. Embora o governo seja tomado por interesses privados, em especial no Ministério da Educação, que existam compromissos de não se tocar em setores como Forças Armadas, ou em concessões na área de infraestrutura, que sua política externa seja errática e que a política de comunicação siga priorizando relações com a mídia tradicional, com destaque para a Rede Globo, entre outras iniciativas, o governo Lula tem marcadas diferenças com a gestão Bolsonaro, na esfera política. No que toca à democracia, a gestão petista busca se colocar em terreno oposto ao do ex-capitão.

O golpe como ameaça real

Não se podem minimizar as ameaças que rondam o país, desde a tentativa golpista de 8 de janeiro de 2023, até a permanente presença da extrema direita como fenômeno de massas na sociedade. A vitória de Norte a Sul do reacionarismo radical nas eleições municipais de 2024 é expressão desse enraizamento.

Se a polarização não é estrutural nas disputas, qual o motivo da disseminação do ódio e da ameaça autoritária na sociedade? Tudo indica existir uma espécie de briga de torcidas eleitorais nas redes e nas ruas, estimulada e fortalecida por cúpulas partidárias que buscam a todo custo despolitizar as eleições de 2026, tirando de cena uma real disputa de rumos. O confronto entre o que se pode chamar de neoliberalismo progressista e a extrema-direita é uma disputa para se ver quem aplica de forma mais eficiente e com menos conflito social o programa do financismo.

Diante desse dilema, vem a clássica pergunta: o que fazer? Vale destacar que o presidente Lula – como constata com grande apuro o ex-ministro José Dirceu – comanda um governo de centrodireita, sem qualquer expectativa de transformação da estrutura social brasileira. Ainda assim, para a maioria da população, o atual governo é de esquerda e seus principais oponentes estão na direita. É muito difícil que uma candidatura nucleada pelo lulismo seja ultrapassada pela esquerda, tendência de reduzida expressão na sociedade e nos partidos com representação no Congresso.

O enfrentamento eleitoral de 2026, embalado por inteligência artificial, jogo bruto das big techs e tiktoquização programática se dará no terreno da baixaria, das fake news, das pautas carolas, moralistas e repleta de ataques pessoais. É pouco provável que a política esteja no posto de comando das grandes candidaturas. Ao mesmo tempo, há chances mínimas do governo Lula assumir bandeiras claramente de esquerda no que lhe resta de mandato, depois de quase 30 meses de opção neoliberal na economia.

Apesar disso, se a desaceleração planejada pela equipe econômica não sair do controle e se for ampliado algum tipo de alívio material na base da sociedade, será possível enfrentar com chances a extrema direita. Há dois anos havia condições de mudança e o presente poderia ser diferente, mesmo com o crescimento do neofascismo pelo mundo. Antes de 2026 há que se disputar os dias que correm.

Gilberto Maringoni é jornalista e professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC).

 

‘Nunca vi um pobre’ por Ana Cristina Rosa

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Fiquei estarrecida com o relato sobre a euforia e empolgação de um jovem da elite paulistana diante da miséria

Ana Cristina Rosa, Jornalista especializada em comunicação pública e vice-presidente de gestão e parcerias da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPública).

Folha de São Paulo, 14/04/2025

Quando penso que já vi e ouvi de tudo um pouco, a vida insiste em surpreender. Fiquei estarrecida com o relato sobre a euforia e empolgação de um jovem da elite paulistana diante da miséria. “Nunca vi um pobre”, disse o estudante de uma renomada instituição privada de ensino superior ao participar de uma ação institucional voltada a prestar serviços públicos à população carente e em situação de rua em São Paulo.

Tamanha falta de discernimento e compreensão da realidade brasileira me deixou chocada. Como pode um universitário “bem-nascido, bem-criado, de boa família” e que vive na maior cidade de um dos países mais desiguais do mundo nunca ter visto um pobre?

Não pode. Afinal, a miséria é explícita no Brasil. E, francamente, não deveria empolgar ninguém, mas causar constrangimento e desconforto generalizado (no mínimo). Em Sampa, para “ver um pobre” basta dar uma volta em qualquer quarteirão da avenida Paulista, cartão postal da cidade.

Nem a vida confortável e luxuosa numa mansão (nos Jardins, no Morumbi, na Vila Olímpia ou em qualquer outro bairro nobre) é capaz de “blindar” a elite do contato com a pobreza. Não dá para ignorar que são os pobres que trabalham como babás, empregadas domésticas, cozinheiras, motoristas, jardineiros, porteiros e toda sorte de “eiros” a serviço de quem tem dinheiro de sobra. Pobres e predominantemente negros —é bom que se diga.

Pelas ruas deste país, é impossível deixar de avistar um pobre miserável perambulando, dormindo ao relento, jogado no chão, pedindo esmola ou comida, vendendo alguma quinquilharia ou ‘chapado’ para tolerar a rudeza de um cotidiano privado de esperança.

É desalentador e vergonhoso constatar que a sociedade brasileira continua a formar futuros “líderes” incapazes de sequer enxergar a realidade nacional —que dirá promover a transformação social necessária para fazer deste um país mais justo e menos desigual.

Uma elite que sabe muito, mas entende pouco, por Michael França

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Entre cafezinhos e distinções formais, ela mal compreende seu próprio país

Michael França, Ciclista, vencedor do Prêmio Jabuti Acadêmico, economista pela USP e pesquisador do Insper. Foi visiting scholar nas universidades de Columbia e Stanford.

Folha de São Paulo, 15/04/2025

Em uma manhã qualquer, entre um brunch com avocado e uma conversa sobre alguma viagem à Europa, um membro de uma típica parcela da elite brasileira pode ser flagrado cometendo um erro antigo, mas ainda recorrente: confundir experiências internacionais com sofisticação, e credenciais com educação de excelência.

Já faz algum tempo que se sabe que o acúmulo de conhecimento formal não anda, necessariamente, de mãos dadas com o desenvolvimento integral do ser humano. Ainda assim, quando se trata das elites brasileiras, o tema raramente é considerado à altura de sua importância.

Talvez porque seus protagonistas ocupem posições confortáveis demais para serem questionados. Ou, quem sabe, porque a ala mais esclarecida prefira evitar o desconforto de confrontar seus pares que estão blindados pela própria soberba. No fim, uma parte peca pela ignorância, a outra, pela complacência.

Contudo, essa negligência não é acidental. Ela tem raízes profundas na lógica educacional brasileira, que, mesmo em suas melhores versões, funciona menos como instrumento de formação e mais como ornamento de distinção social.

Em vez de expandir horizontes, a educação das elites tende a ser um subterfúgio para um sofisticado mecanismo de hierarquização social. Um filtro de status. Um verniz técnico que, por vezes, encobre uma brutal ausência de interesse em construir uma nação, em vez de apenas se servir dela.

Nossos melhores colégios e universidades até formam especialistas competentes, mas, em muitos casos, deformam cidadãos. Produzem indivíduos altamente eficazes do ponto de vista técnico, mas com baixa sensibilidade social. O custo disso é alto, pois se cria uma elite treinada para administrar, mas não para compartilhar. Uma elite focada em vencer, mas não em conviver.

Existe no país uma pedagogia do privilégio. Uma pedagogia que ensina, desde cedo, que o mundo é um espaço a ser explorado, não construído coletivamente. Ensina-se a liderar, mas não a escutar. Ensina-se a performar, mas não a refletir. E, não raramente, ensina-se uma arrogância disfarçada de competência, juntamente com um desprezo pelas dores e experiências do país real. Aquele que começa logo após os altos muros dos apartamentos e condomínios fechados.

Mesmo nas franjas mais conscientes dessa elite, o problema não é o excesso de educação, mas a estreiteza com que ela é concebida. Ocorre uma formação instrumental, mas sem densidade moral. E, quando essa elite malformada ocupa os espaços de decisão, tende a perpetuar privilégios, naturalizar desigualdades e reforçar estruturas excludentes, muitas vezes com a convicção sincera de estar fazendo o melhor.

Curiosamente, falta-lhe formação para pensar o país como um todo. Além disso, parte significativa ainda vê o Brasil como uma plataforma de extração, não como uma nação a ser construída. A despeito de sua mobilidade internacional, seu imaginário segue provinciano.

Transformar a educação dessas elites exige muito mais do que reformar currículos, exige reformar consciências. Porque um país com elites mal-educadas está fadado a repetir os mesmos erros, porém em versões cada vez mais disfarçadas de excelência.

 

Reflexões de um neto de Keynes, por Eduardo Giannetti da Fonseca

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Eduardo Giannetti da Fonseca – Folha de São Paulo – 15/10/1998

Existem textos que volta e meia desejo revisitar. Penso neles como penso nas músicas, paisagens e cidades históricas que nos acolhem e surpreendem toda vez que a elas retornamos. São obras dotadas de fecundidade inesgotável. Tesouros de infinita sugestividade.

Ao deleite subterrâneo da repetição -o reencontro periódico com o que nos apraz e comove- junta-se o prazer da surpresa inesperada e reveladora: o arrepio da descoberta de novos ângulos de leitura e possibilidades insuspeitas de fruição. O valor está na química do encontro.

Nesses dias de sombra e apreensão globais, quando o espectro da Grande Depressão dos anos 30 parece rondar a imaginação de tantos, resolvi aproveitar o último feriado para revisitar “As Possibilidades Econômicas para os Nossos Netos” – o belo e provocador ensaio publicado, em 1930, pelo economista britânico John Maynard Keynes e por ele escolhido para encerrar a coletânea “Essays in Persuasion” do ano seguinte.

Não se trata de artigo técnico de economia, mas de uma reflexão abrangente sobre o lugar do econômico e da ambição material na existência humana. O real e o ideal.

Quem nos fala aqui não é o macroeconomista da “Teoria Geral”, mas o filósofo moral e político que sempre dedicou boa parte de seu tempo na Universidade de Cambridge ao convívio e interlocução ativa com filósofos como Bertrand Russell, G.E. Moore e Wittgenstein.

O argumento central do ensaio divide-se em três partes: presente, passado e futuro.

Na primeira, Keynes faz um apanhado do quadro depressivo da época e se insurge contra os dois tipos de pessimismo que percebia ao seu redor: o dos revolucionários (para quem só uma ruptura violenta com o sistema oferecia salvação) e o dos reacionários (para quem qualquer ação inovadora era risco de ruptura do sistema).

A crise, sustenta, não era o reumatismo senil de um mundo caduco, mas sim as dores de crescimento de uma fase de rápida mudança em que as instituições e políticas não puderam acompanhar o ritmo vertiginoso das transformações pelas quais as ações e o ambiente prático vinham passando.

O propósito do ensaio, porém, não era discutir o presente e o futuro imediato. Era imaginar o que poderia vir mais à frente – indagar prospectivamente sobre o tipo de mundo para o qual tenderia a humanidade.

Ultrapassada a tormenta e retomada a trajetória da bonança, inquiria Keynes, “quais são as possibilidades econômicas para os nossos netos?”.

A resposta parte de um retrospecto sinóptico contrastando, de um lado, a estagnação milenar da capacidade produtiva do homem no período que vai da pré-história a meados do século 18 e, de outro, a espantosa expansão verificada a partir de então.

Graças à força combinada da inovação técnica e da acumulação de capital (e apesar do forte crescimento populacional), o padrão médio de vida nos países civilizados havia quadruplicado em apenas dois séculos – um avanço material pelo menos duas vezes superior ao ocorrido em quatro milênios de labuta e evolução histórica até o advento da era moderna.

A continuidade desse avanço, antecipava Keynes, permitiria quadruplicar de novo o padrão de vida do cidadão comum no espaço de mais algumas décadas. Isso significava que “o problema econômico não é, se mirarmos o futuro, o problema permanente da espécie humana”. Tudo indicava que ele poderia ser derrotado, em definitivo, em no máximo duas ou três gerações.

Mas, supondo que isso aconteça, ele pergunta, quais seriam as consequências? Como seria uma sociedade na qual o “problema econômico” – a escassez e a luta no mercado, a ansiedade financeira e a incerteza sobre o amanhã – estivesse de fato em plano secundário, “no assento traseiro que é o seu lugar”, e não mais absorvesse o melhor de nossas energias materiais e morais?

“Quando a acumulação de riqueza já não for mais de alta importância social”, refletia Keynes, “haverá grandes mudanças no código de ética”. O ser humano estará em condições de se desfazer dos falsos princípios morais que o têm acorrentado por séculos a fio e que o levaram a enaltecer alguns dos mais repugnantes atributos, como a avareza, a cobiça e o calculismo financeiro, como se fossem grandes virtudes.

“Estaremos, então”, prosseguia, “em condições de ousar atribuir ao motivo monetário o seu verdadeiro valor: O amor possessivo pelo dinheiro será reconhecido pelo que é, uma morbidez bastante repulsiva, uma dessas propensões semicriminosas e semipatológicas que se conduz com um arrepio para os especialistas em doenças mentais”.

O centro de gravidade da vida humana deixaria de ser o “detestável amor ao dinheiro” e, em seu lugar, a arena dos corações e mentes passaria “a ser ocupada pelos nossos problemas reais – os problemas da vida e das relações humanas, da criação, da conduta e da religião”.

No mundo dos netos de Keynes, os fins valeriam mais que os meios e o bem estaria acima do útil. A busca da melhor vida não se renderia ao sacrifício no altar da prudência.

O valor econômico seria uma estrela menor na constelação dos valores humanos.

Ao terminar a releitura do texto fiquei pensando no que diria Keynes hoje em dia, à luz não só do que se passou desde sua época, mas da crise em que estamos metidos. Fiz uma conta simples: a geração dos netos de Keynes (nascido em 1883, sem filhos) chegaria à idade adulta nos anos 60 e 70.

A prosperidade dos anos dourados do pós-guerra e da globalização triunfante superou as suas mais altas expectativas. Alguns netos de Keynes nos anos 60, é verdade, bem que tentaram, mas o sonho revelou-se anêmico e naufragou.

A impressão que tenho é que estamos mais longe hoje da utopia keynesiana do que quando ela foi formulada. Continuaremos perpetuamente condenados ao túnel da necessidade? Pendurados ao “problema econômico” como preocupação obsessiva e perene da espécie humana?

O mundo clama por um novo Keynes (o economista), que mostre como domar a fera da globalização financeira. Mas o que mais nos falta, suspeito, é um outro Keynes (o filósofo moral) que elucide a natureza da compulsão econômica que a seus netos devora. Ou seria um novo Freud?

A economia para crianças de J. M. Keynes, por Leonardo Boff

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Leonardo Boff – A Terra é Redonda – 11/04/2025

Keynes não via a economia como algo absoluto em si, mas no conjunto das atividades humanas. Mostrou-se muitas vezes um radical humanista e como tal com forte carga utópica

Nos dias atuais devido à subversão feita por Donald Trump em todos os mercados mundiais, o assunto dominante é a economia e os efeitos das políticas tarifárias impostas por ele. São medidas tresloucadas, aplicadas a toda a humanidade, a 180 países, desestruturando as economias nacionais e prejudicando particularmente a população pobre. Só gente sem coração e sem qualquer senso de humanidade pode tomar medidas desta natureza.

É neste contexto que me refiro ao pai da macroeconomia John Maynard Keynes (1883-1946). Considerado um dos maiores economistas dos últimos tempos, cuja função do Estado, para ele, é o de ser promotor do desenvolvimento ajudou a tirar a Europa da devastação da Segunda Guerra Mundial e deu rumo à economia mundial. Não via a economia como algo absoluto em si, mas no conjunto das atividades humanas. Mostrou-se muitas vezes um radical humanista e como tal com forte carga utópica.

Refiro-me a um texto muito pouco citado. Numa palestra em 1926 dizia: “as divindades que presidem a vida econômica não pode ser outra coisa que gênios do mal; de um mal necessário que ao menos, daqui há um século nos obrigará a fazer crer a cada um e a nós mesmos que a lealdade é uma infâmia e que a infâmia é a lealdade, pois a infâmia nos é útil e a lealdade não”. Em outras palavras – completava –, a humanidade chegará ao consenso de considerar a avareza, a usura e a prudência como indispensáveis para nos tirar do túnel da necessidade econômica a nos levar à luz do dia”.[1]

“Só então se alcançará o bem-estar geral e será o momento em que nossas crianças e esse é o sentido do meu ensaio “Perspectivas econômicas para nossas crianças” finalmente compreenderão que o bem é sempre melhor que o útil.

“Então nem precisam mais se lembrar de certos princípios, os mais seguros e os menos ambíguos da religião e da virtude tradicional: que a avareza é um vício, que é maldade extorquir os benefícios da usura, que o amor ao dinheiro é execrável”.

“Os que caminham seguramente pelo caminho da virtude e da sabedoria serão aqueles que se preocupam menos com o amanhã. E uma vez mais chegaremos a valorizar mais os fins que os meios e a preferir o bem ao útil. Honraremos aqueles que nos ensinaram a acolher o momento presente de maneira virtuosa e prazerosa, pessoas excepcionais que sabem saborear as coisas imediatas, como os lírios do campo que não tecem nem fiam”.

Mesmo que a proposta do humanista do eminente economista não se tenha realizado ainda (irá se realizar?) pois vivemos sob a ditadura do vil metal e da economia especulativa que nada produz a não ser mais dinheiro ainda, deixando grande parte da humanidade na pobreza e na miséria. Perceberá e isso vai continuar valendo que a essência da vida não está no acumular ilimitadamente e no consumir desmedidamente. Mas o sentido da vida consiste em viver a vida, gozá-la, reproduzi-la, celebrá-la, compartilhá-la com outros. Isso não é dado pela economia vigente. Em uma palavra, é o inútil que conta e não o que é economicamente útil.

Seguramente o sábio humanista e economista John Maynard Keynes nos tenha revelado a verdadeira natureza da economia, compreensível mais pelas crianças do que pelos adultos.

Hoje perdemos esta perspectiva e somos todos reféns da cultura do capital que nos obriga a gastar nossas vidas e nosso tempo em trabalhar, em produzir e em consumir no contexto de uma sociedade perversa, cujo ideal é a acumulação sem limite e o consumismo, sociedade que transformou tudo em mercadoria, até as coisas mais sagradas ou vitais como órgãos humanos.

A seguir por este caminho, por mais tarifas que o ensandecido Donald Trump castigue a inteira humanidade, iremos, provavelmente, ao encontro de uma grande tragédia, eventualmente de nosso próprio fim. Merecidamente, pois, não cumprimos o fim para o qual temos sido criados: viver a vida e agradecê-la.

Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Cuidar da Casa comum: pistas para protelar o fim do mundo (Vozes)

Indústria e Progresso, por Luiz Gonzaga Belluzzo

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Luiz Gonzaga Belluzzo – A Terra é Redonda – 02/04/2025

A evolução da indústria e seu impacto nas economias contemporâneas

Paul Krugman disparou um post no Substack a respeito das políticas de Donald Trump. “Este post é sobre como as políticas de Donald Trump não poderiam ‘nos tornar uma nação manufatureira novamente’, mesmo que conseguissem reduzir muito os déficits comerciais… As pessoas devem entender que seremos uma economia de serviços, não importa o que aconteça, a fixação na manufatura como a única fonte de bons empregos está desatualizada”. Esta consideração de Paul Krugman está ancorada na concepção que privilegia as relações entre três setores: agricultura, indústria (manufatura) e serviços. Primário, secundário e terciário.

Para cuidar do tema dos três setores, seria oportuno tratar da Revolução Industrial. O historiador Carlo Cipolla escreveu: “A Revolução Industrial transformou o homem agricultor e pastor no manipulador de máquinas movidas por energia inanimada”. A ruptura radical no modo de produzir introduziu profundas alterações no sistema econômico e social.

Aí nascem, de fato, novas forma de sociabilidade, a urbe moderna e seus padrões culturais. A diferença entre a vida moderna e as anteriores decorre do surgimento do sistema industrial, que não só cria bens de consumo e os bens instrumentais para produzi-los, como suscita novos modos de convivência entre agricultura, indústria e serviços. Novas formas de “estar no mundo”.

A ocorrência da Revolução Industrial no fim do século XVIII despertou os devaneios de Alexander Hamilton, nos Estados Unidos, com seu Relatório sobre as Manufaturas ou as truculências de Otto von Bismarck, encantado com os maquinismos e a ferrovia.

A indústria não pode ser concebida como mais um setor ao lado da agricultura e dos serviços. A ideia da revolução industrial trata da constituição histórica de um sistema de produção e de relações sociais que subordinam o desempenho da economia à sua capacidade de gerar renda, empregos e criar novas atividades. O surgimento da indústria como sistema de produção apoiado na maquinaria endogeniza o progresso técnico e impulsiona a divisão social do trabalho, engendrando diferenciações na estrutura produtiva e promovendo encadeamentos intra e intersetoriais.

Em seu movimento revolucionário, o sistema industrial deflagrou mudanças na agricultura e nos serviços.

A agricultura contemporânea não é mais uma atividade “natural”, e os serviços já não correspondem ao papel que cumpriam nas sociedades pré-industriais. O avanço da produtividade geral da economia não é imaginável sem a dominância do sistema industrial no desenvolvimento transformador dos demais setores.

Os autores do século XIX anteciparam a industrialização do campo e perceberam a importância dos novos serviços gestados nas entranhas da expansão da indústria. Não há como ignorar, por exemplo, as relações umbilicais entre a Revolução Industrial, a revolução nos transportes e as transformações dos sistemas financeiros no século XIX. São reconhecidas as interações entre a expansão da ferrovia, do navio a vapor e o desenvolvimento do setor de bens de capital apoiado no avanço da indústria metalúrgica e da metalomecânica e na concentração da capacidade de mobilização de recursos líquidos nos bancos.

A introdução dos métodos “industriais” na agricultura e nos serviços vem promovendo o que convencionamos qualificar de hiperindustrialização. Em seu desenvolvimento, a indústria suscitou o avanço do tecnológico nos demais setores. As técnicas e equipamentos modernos – os métodos industriais – atenuaram a subordinação da agricultura aos caprichos da natureza.

Os serviços, apresentados por Paul Krugman como a vanguarda das economias de hoje, sofrem os benefícios do avanço tecnológico. Aí estão a internet e suas redes de comunicação que permitem o comércio eletrônico e o ensino à distância.

A introdução de métodos ‘industriais’ em serviços e na agricultura promove a “hiperindustrialização”.

Ademais, a manufatura contemporânea é conduzida pelo aumento do volume de dados, ampliação do poder computacional e conectividade, a emergência de capacidades analíticas aplicada aos negócios, novas formas de interação entre homem e máquina, e melhorias na transferência de instruções digitais para o “mundo físico”, como a robótica avançada.

É intenso o movimento de automação baseado na utilização de redes de “máquinas inteligentes”. Nanotecnologia, neurociência, biotecnologia e agora a inteligência artificial formam um bloco de inovações com enorme potencial de revolucionar as bases técnicas das economias contemporâneas.

Os avanços da estrutura técnica supõem a aplicação continuada e sistêmica da pesquisa científica. Um arguto pensador do século XIX criou a figura do General Intellect para designar a relação entre o avanço do conhecimento “socializado” nas universidades e instituições de pesquisa.

General Intellect se institui em uma forma de apropriação dos significados do conhecimento humano, em particular dos códigos da ciência. Para a consecução de seus propósitos, a nova economia toma a educação, cujos métodos e objetivos são ajustados aos requerimentos da aceleração do avanço dos ganhos de produtividade, no mesmo movimento em que impõe critérios de qualificação dos trabalhadores – cada vez mais exclusivos e “excludentes”.

Todos os métodos que nascem dessa base técnica não podem senão confirmar sua razão interna: são métodos de produção destinados a aumentar a produtividade social do trabalho em escala crescente. Isso suscitou a intensificação da introdução dos métodos “industriais” na agricultura e nos serviços, promovendo o que convencionamos qualificar de hiperindustrialização.

Essa expressão – “hiperindustrialização” – cuida de sublinhar a radical transformação das relações entre os setores mencionados acima. Voltamos a Carlo Cipolla: “A Revolução Industrial, transformou o homem agricultor e pastor no manipulador de máquinas movidas por energia inanimada”.

Luiz Gonzaga Belluzzoeconomista, é Professor Emérito da Unicamp. Autor entre outros livros, de O tempo de Keynes nos tempos do capitalismo (Contracorrente).

Cinema: A vertigem da adolescência, por José Geraldo Couto

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Adolescência faz do plano-sequência não um fetiche, mas recurso potente para mostrar atordoamentos, labirintos, embates… E, omitir a catarse (o julgamento do caso) incita a pensar sobre como o mal floresce no mundo contemporâneo, para além de um indivíduo

José Geraldo Couto – OUTRAS PALAVRAS – 10/04/25

Os leitores habituais deste blog sabem que nossa prioridade absoluta são os filmes exibidos nos cinemas, mas excepcionalmente uma obra lançada no streaming justifica, por um ou outro motivo, sua presença aqui. É o caso, agora, de Adolescência, microssérie da Netflix, escrita por Stephen Graham e Jack Thorne e dirigida por Philip Barantini.

Como se sabe, trata-se da história, narrada em quatro episódios, de um garoto inglês de 13 anos condenado pelo assassinato de uma colega de escola. O garoto em questão é Jamie Miller (Owen Cooper), filho do encanador Eddie Miller (Stephen Graham, um dos roteiristas) e estudante de um colégio público de bairro popular. Ao falar dele, alguns spoilers serão inevitáveis.

Usos do plano-sequência

O que torna Adolescência um fenômeno singular, além do apelo urgente e dramático de seu tema e da excelência da produção, é sua opção formal pela tomada contínua, sem cortes, de cada um dos episódios. É o chamado plano-sequência, usado ocasionalmente no cinema em contraposição à habitual decupagem clássica, que fragmenta cada cena em diversos cortes e pontos de vista.

Considerado uma marca do cinema moderno, o plano-sequência tem sido usado desde os anos 1930 com os mais diversos propósitos expressivos. Um caso pioneiro é a esplêndida abertura de Scarface (Howard Hawks, 1932) e a experiência mais radical e paradigmática é Festim diabólico (Alfred Hitchcock, 1948), primeiro longa-metragem que simula (mediante truques engenhosos) uma única tomada contínua. Desde então um punhado de cineastas brilhantes (Welles, Antonioni, De Palma, Altman) adotou o recurso, cada um à sua maneira e com finalidades próprias.

No caso de Adolescência, houve quem acusasse os realizadores de usar o plano-sequência como um fetiche, uma bossa exibicionista e desnecessária. Estou aqui para discordar.

Em Adolescência, a meu ver, cada episódio se serve do plano-sequência com um propósito diferente. No primeiro, que encadeia num único fôlego a invasão da casa de Jamie, sua condução à delegacia e a todos os trâmites e situações que nos apresentam um fato brutal de maneira igualmente brutal, o efeito é de atordoamento e de sufoco. Somos lançados no meio da voragem, sem tempo para respirar e espairecer.

Labirinto de perigos

O segundo episódio, que mostra a visita do inspetor policial Luke Bascombe (Ashley Walters) e sua colega (Faye Marsay) ao colégio de Jamie, retrata a escola como um labirinto fervilhante de surpresas e perigos, feito de bullying, afronta e indisciplina. Ao passar sem cerimônia de um ambiente a outro, de um grupo a outro de personagens, a câmera nos deixa sempre a sensação de que há algo acontecendo às nossas costas, um evento ou sentido que nos escapa. É ali, pressentimos, que nasce o perigo, potencializado pela internet, como indica o filho do policial Bascombe, ele próprio vítima da violência reinante.

Totalmente diversa é a utilização do plano-sequência no terceiro episódio, ocupado em sua maior parte pela entrevista entre Jamie e a psicóloga (Erin Doherty) encarregada de procurar entendê-lo. Aqui a tomada contínua serve a um adensamento quase insuportável da atmosfera de embate entre duas mentes, duas vivências, duas sensibilidades. A percepção do tempo real intensifica a tensão, o desconforto e a imprevisibilidade da cena. É, antes de tudo, um duelo entre duas atuações fabulosas. (Chocante é saber que se trata da primeira experiência cinematográfica do garoto Owen Cooper.)

O quarto e último episódio, dedicado aos efeitos da tragédia na família de Jamie (pai, mãe e irmã) e em sua relação com o entorno, é o único que talvez não perdesse muito de sua eficácia se fosse narrado mediante a montagem tradicional. Mas é possível que, nesse caso, a quebra de coesão formal incomodasse o espectador e soasse como uma rendição ou traição.

Sem catarse

Um mérito adicional de Adolescência está naquilo que ele nos omite: o julgamento do caso. As cenas de tribunal costumam ser o momento catártico em que o público se extasia porque vê a justiça sendo feita ou se indigna por vê-la desrespeitada. Um contra-exemplo como o excepcional Anatomia de uma queda (Justine Triet, 2023) é isso mesmo: excepcional.

Adolescência, ao nos negar a satisfação vicária de ver os maus serem punidos e o bem vencer, nos incita a pensar na natureza e origem do mal, no modo como ele viceja e floresce no mundo contemporâneo, sem reduzir a questão à disfunção moral ou psíquica de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos. Por um momento – ou por quatro horas – somos todos o enigma Jamie, mas também somos seu pai, a psicóloga, o inspetor policial, a menina morta, sua família… todos unidos no espanto e na consciência vertiginosa da fragilidade da

Economia brasileira está presa em círculo vicioso da quase estagnação, Bresser Pereira

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Juros altos e câmbio apreciado desestimulam investimentos, privilegiam rentistas e limitam o desenvolvimento do país

Luiz Carlos Bresser Pereira, Professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (1987, governo Sarney), da Administração e da Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (1995-1998 e 1999, governo FHC).

Folha de São Paulo, 10/12/2024

[RESUMO] Apesar de concessões e privatizações desde os anos 1970, os investimentos privados no país se mantêm em patamar muito baixo, desestimulados pelos juros exorbitantes que, junto à taxa de câmbio valorizada movem o círculo vicioso da quase estagnação que caracteriza a economia brasileira há 30 anos.

Um dia desses, um dos meus filhos me perguntou por que o governo Lula estava privatizando estradas de rodagem que são monopolistas e, por isso, não devem ser privatizadas. Não seria esse governo neoliberal? Ou neoliberal progressista, acrescentei parafraseando a filosofia americana Nancy Fraser.

Não, o presente governo é social-progressista e desenvolvimentista: defende uma diminuição da desigualdade e a intervenção do Estado na economia para aumentar o investimento público e promover o investimento privado. Não obstante, esse governo não tem alternativa senão privatizar as rodovias que exigem investimentos para os quais não tem recursos. O Brasil está preso no círculo vicioso da quase estagnação.

Entendo por quase estagnação o fato de um país não realizar o “catch-up” —o fato de seu crescimento per capita ser quase sempre inferior aos dos Estados Unidos, de forma que o padrão médio de vida dos brasileiros se afasta cada vez mais do padrão americano. Apesar de um desempenho econômico razoável neste ano e nos dois últimos anos, nada aconteceu de novo na economia brasileira que nos permita afirmar que escapamos da quase estagnação, inclusive porque a taxa de investimento continua muito baixa.

A economia brasileira está quase estagnada desde 1980. Hoje, a distância em relação aos Estados Unidos é maior do que era em 1980. A causa direta dessa quase estagnação é a taxa de investimento muito baixa. Tanto o investimento privado quanto o público é sistematicamente inferior a 17% quando deveria girar em torno de 25% do PIB. Oito pontos percentuais é uma diferença muito grande.

Se compararmos a presente situação com meados dos anos 1970 (a última década em que o Brasil cresceu satisfatoriamente e estava realizando o “catch-up”), veremos que o investimento privado, que naquela década estava em torno de 15% do PIB, se manteve nesse nível, embora devesse ter crescido devido às privatizações —deveria ter crescido para pelo menos 20% do PIB.

Já o investimento público, que deveria ter caído um pouco devido às mesmas privatizações, caiu muito; correspondia a aproximadamente 8% do PIB, agora está em torno de 2,5%. Em consequência, o investimento total caiu de 23% para aproximadamente 16% do PIB, e a taxa de crescimento caiu correspondentemente.

A primeira razão para isso é a taxa de juros exorbitante que existe no Brasil desde a abertura financeira (1992). A taxa de juros real vem sendo desde então em média cerca de 6% a 7% ao ano, quando deveria se manter em torno de 3% ao ano, ou seja, igual à taxa de juros real internacional mais um adicional que dê conta do risco dos brasileiros em investir no Brasil (não dos estrangeiros), que eu estimo ser de aproximadamente 1%.

Duas vezes menor, portanto, que a taxa real que o Banco Central pratica e, portanto, uma taxa que desestimula o investimento. Eu falei em risco dos brasileiros, que deve ser menor que o risco Brasil, calculado pelos mercados internacionais para potenciais investidores de fora do país, de cerca de 2,5%.

A segunda razão é a tendência de apreciação da taxa de câmbio no Brasil, que tem por trás quatro motivos: (1) porque a taxa de juros é alta para poder atrair capitais; (2) porque o Brasil incorre sistematicamente em déficits na conta corrente de aproximadamente 2% do PIB, quando deveria mantê-los em torno em zero; (3) porque o Brasil não reconhece e não neutraliza a doença holandesa, não tendo, portanto, uma política que evite que a taxa de câmbio se torne valorizada para as empresas industriais, a qual reduz a competitividade internacional dessas companhias; e (4) porque a taxa de poupança no Brasil é muito baixa, não sendo por isso compensada pelo recurso a financiamento interno ou externo.

Os atores

Para sabermos o porquê das três primeiras razões, precisamos considerar os atores que causam a baixa taxa de investimento e o círculo vicioso da quase estagnação. São eles os capitalistas rentistas e seus financistas, o agronegócio, o Norte Global ao qual os dois primeiros grupos estão associados, os empresários industriais, os eleitores e os políticos. Todos são responsáveis pela taxa de câmbio apreciada, a baixa taxa de investimento e a quase estagnação do Brasil.

Os rentistas e financistas, dominantes, querem uma taxa de juros real (descontada a inflação) alta e uma taxa de inflação baixa (para garantir o objetivo anterior). Os dois grupos são liberais: não querem que o Estado invista ou intervenha na economia; não querem, por exemplo, que o Estado tenha uma política cambial que estabilize a taxa de câmbio e evite que ela seja apreciada.

Assim, estão felizes com um déficit na conta corrente em torno de 2% do PIB e não querem saber da doença holandesa, embora esta surja quando o preço das commodities exportadas pelo Brasil sobe e torna as empresas industriais não competitivas, ainda que sejam competitivas no plano técnico.

Rentistas e financistas estão satisfeitos. Eles têm poder suficiente sobre a sociedade brasileira para capturar indevidamente cerca de 3% do PIB graças à diferença entre a taxa de juros média razoável (de 3% ao ano, como vimos acima) para a taxa praticada de 6% ao ano. Esses juros altos naturalmente desestimulam o investimento, a não ser que a taxa de lucro esperada seja alta e a desigualdade econômica, acentuada.

O agronegócio, embora recebendo altos subsídios do Estado, se afirma liberal e, como os dois grupos anteriores, não quer saber de uma política de neutralização da doença holandesa; quer realizar lucros extraordinários quando há um boom de commodities.

A doença holandesa é uma apreciação de longo prazo e cíclica da taxa de câmbio para a indústria causada por um substancial aumento de preços das commodities exportadas pelo país, que causa uma apreciação da taxa de câmbio geral ou corrente. Enquanto, para o setor exportador de bens primários (agronegócio e exportador de minérios e petróleo), essa taxa de câmbio mais apreciada é satisfatória porque o aumento de seus preços compensa a valorização da moeda nacional, para a indústria essa apreciação é desastrosa. É papel do Estado garantir uma taxa de câmbio competitiva para a indústria.

Nos países exportadores de commodities, a taxa de câmbio é cíclica porque os preços das commodities também tendem a ser cíclicos: ela se deprecia fortemente quando há uma crise financeira e depois se aprecia, chega à taxa de equilíbrio geral (que equilibra a conta corrente do país) e afinal se torna mais apreciada à medida que o déficit na conta corrente aumenta devido à política que os países adotam equivocadamente de incorrer em déficits na conta corrente (“poupança externa”). Começa então o endividamento externo que, afinal, levará o país a nova crise de balanço de pagamentos e a nova depreciação violenta da taxa de câmbio, encerrando-se assim o ciclo.

O Norte Global (o conjunto dos países ricos liderados pelos Estados Unidos) não tem qualquer interesse em uma taxa de investimento alta na sua periferia. Pelo contrário, visa evitar que os países em desenvolvimento se industrializem, porque não querem concorrência no futuro.

Para isso, além de nos recomendarem que tenhamos déficits na conta corrente desde que esses não levem o país a uma crise de balanço de pagamentos, buscam manter economicamente abertos os países em desenvolvimento para a exportar capitais (investimentos diretos e empréstimos) e para manter a troca desigual —a troca entre bens tecnologicamente sofisticados, que pagam bons salários e lucros, e bens pouco sofisticados que se caracterizam por baixo valor adicionado per capita.

As empresas industriais, que não precisam de proteção com base no argumento da indústria infante, precisam dramaticamente de proteção contra a doença holandesa que, em boom de commodities, as tornam não competitivas. Não obstante, seus dirigentes ou empresários não sabem ou não querem saber o que é a doença holandesa, que pode ser mortal para eles.

O setor interno de serviços, muito amplo e diversificado, quer que a taxa de juros seja baixa, mas seus dirigentes não têm poder político capaz de influenciar o Banco Central. Ao contrário, eles acabam sendo corresponsáveis pelos altos juros porque as associações que os representam são ocupadas por economistas neoliberais.

Os eleitores, principalmente a classe trabalhadora e de empregados, criticam a taxa de juros elevada, mas estão satisfeitos com uma taxa de câmbio apreciada que aumenta o poder aquisitivo de seus salários e demais rendimentos.

Os políticos, finalmente, acompanham seus eleitores e estão felizes com uma taxa de câmbio apreciada que facilita sua reeleição.

Os déficits na conta corrente e os investimentos privados

Os liberais afirmam que o principal problema da economia brasileira é o déficit público que causa aumento da dívida pública em relação ao PIB e causaria inflação. De fato, manter o equilíbrio fiscal é importante, mas mais importante é manter a conta corrente do país (a conta externa comercial mais os serviços) equilibrada, algo que só acontece raramente.

Na verdade, rentistas, financistas, agronegócio, interesses estrangeiros, eleitores e os políticos estão todos satisfeitos com um déficit na conta corrente moderado, porque esses déficits aumentam o poder aquisitivo dos seus rendimentos e mantêm tudo como está, inclusive a quase estagnação.

Ora, uma das características do populismo é procurar dar rendimentos artificiais aos eleitores que são, afinal, prejudiciais ao país. Ao aceitarem como bons os déficits na conta corrente (porque implicam acesso à poupança externa), nossos atores são todos populistas. Mas não teriam eles razão? Afinal, seria mais que natural que os países ricos em capitais transfiram seus capitais para países pobres em capitais como é o Brasil.

Não, a política de crescimento com poupança externa ou de déficits na conta corrente é uma política que contém a causa do seu fracasso). Ao incorrer em déficit na conta corrente, as entradas de capitais são maiores que as saídas, a taxa de câmbio se aprecia e, além de estimular indevidamente o consumo, desencoraja o investimento.

Esse caráter autofracassante da política de crescimento com endividamento externo deixa de sê-lo se o país adota uma política cambial capaz de compensar o excesso de entradas de capitais. Tudo, portanto, parece desestimular o investimento privado que, por isso, não aumentou sua participação no PIB como seria de se esperar.

Finalmente, é preciso considerar que a poupança brasileira é muito baixa e, ainda que esse fato possa ser superado pelo recurso ao financiamento interno (por isso keynes e Kalecki disseram nos anos 1930 que o investimento precede a poupança), ela precisa ser considerada. A poupança deveria ser, em princípio, quase igual aos lucros, os quais, para os empresários industriais, são necessariamente baixos, dada a taxa de juros alta e a taxa de câmbio apreciada.

Eles, portanto, não têm recursos necessários para financiar os investimentos de modernização de suas fábricas e de expandir sua produção, o que leva à desindustrialização. Além disso, ao não investirem, ficam atrasados tecnologicamente e a produtividade da economia permanece estagnada.

Já o agronegócio realiza lucros elevados, mas seus empresários investem na própria agricultura e pecuária e se opõem a qualquer política industrial e de neutralização da doença holandesa. Os rentistas e financistas, por sua vez, recebem juros e aluguéis elevados, mas não investem na indústria porque ela não dá o retorno que desejam. Preferem investir seu dinheiro no mercado financeiro e seus altos juros ou em imóveis que rendem bons aluguéis e se valorizam.

Em síntese, a taxa de investimento na indústria em relação ao PIB não aumentou apesar das privatizações que ocorreram desde os anos 1970. Em todo o período, os investimentos foram fortemente desestimulados porque apresentaram uma taxa esperada de lucro insatisfatória, incapaz de motivar os investimentos, dada a taxa elevada de juros que desde 1992 caracteriza a economia brasileira. Foram, portanto, claramente insuficientes para que o país retome o desenvolvimento e volte a realizar o “catch-up”.

A cultura dos juros altos

Além de rentistas e financistas defenderem juros altos e estes serem necessários para atrair capitais que financiem um déficit na conta corrente que não deveria existir, há uma causa subjacente para os juros serem altos: a cultura de juros altos, a acomodação de todos com os juros altos, que decorre do poder estrutural do capital e de um hábito cultural existente há muitos anos.

Duas indicações desse fato. Em 1964, já no quadro do regime militar, garantiu-se para as cadernetas de poupança, além da correção monetária, uma taxa de juros real de 6% ao ano. Em 1988, a nova Constituição limitou a 12% a taxa de juros real. Um limite muito alto, mas foi tanta a pressão do capital contra esse dispositivo que o STF decidiu depender de lei complementar do sistema financeiro internacional. Assim, a Constituição se tornou letra-morta nesse ponto, enquanto o Congresso não se move para discutir a lei necessária.

A falta de poupança pública e o investimento público

Voltando à comparação entre os anos 1970 (a última década em que o crescimento foi satisfatório no Brasil) e o presente, foram os investimentos do setor público que mais sofreram na virada dos anos 1970 para os anos 1980. A poupança pública que girava em torno de 4% do PIB caiu de repente para -2%, uma diferença de seis pontos percentuais.

Dois fatores foram determinantes da queda da poupança pública e do investimento público: a crise da dívida externa e a crise fiscal do Estado, que estudei bastante naquela época. Pergunto agora: seria possível o Estado voltar a realizar uma poupança pública e recuperar pelo menos uma parte daqueles seis pontos percentuais? Isto não parece provável. O Brasil continua com uma poupança pública negativa e a possibilidade de voltar a ter uma poupança pública positiva parece impossível.

Para aumentar a poupança pública, a maneira mais óbvia seria aumentar impostos para, assim, compensar o excesso de juros que são pagos aos rentistas locais e aos do Norte Global. Como vimos que esse excesso é de 3% do PIB, a carga tributária em relação ao PIB deveria aumentar na mesma proporção, mas ninguém quer pagar mais impostos.

A solução dada por rentistas e financistas ou, mais amplamente pelos, neoliberais é reduzir as despesas do Estado exceto os juros. Vimos que os investimentos públicos já foram reduzidos ao mínimo. Quanto às despesas sociais, é impossível reduzi-las. Seria, sim, possível reduzir os penduricalhos que a burocracia pública logra incluir em seus salários. O atual governo vem tentando fazer alguma coisa em relação a esse problema.

Seria também possível reduzir os incríveis e absurdos subsídios e isenções de impostos, como vem tentando o atual ministro da Fazenda, mas além de ter de neutralizar o lobby dos interessados nos subsídios e nas isenções, o Ministério da Fazenda tem que convencer muitos dos próprios membros do governo, que se julgam representantes dos interesses de suas áreas, e o próprio presidente da República que deve ser reeleito. Nessa área, como na dos juros, há bilhões a ser economizados, mas os interesses contrários são poderosos.

Demitir funcionários? No plano federal, não há excesso de servidores públicos. Nos governos estaduais e municipais, o excesso deve ser pequeno e o problema precisa ser enfrentado, mas não fará grande diferença. Onde faria uma grande diferença seria a redução da despesa com juros, que se obteria com a baixa da taxa para um nível civilizado e perfeitamente compatível com o controle da inflação. Mas quem será capaz de dobrar os rentistas e os financistas?

Assim, sem poder reduzir significativamente as despesas e sem conseguir aumentar os impostos para financiar essas despesas, o Estado não consegue realizar a poupança pública que seria necessária para financiar os investimentos públicos, que compensariam o não aumento do investimento do setor privado. Na verdade, o país não consegue zerar seu déficit público, que lhe permitiria realizar alguma poupança pública, a qual permanece negativa.

Os rentistas e financistas, porém, estão satisfeitos, porque não querem que o Estado invista —o que eles denominam “estatização”. Os rentistas e financistas (o “mercado financeiro”) querem que o Estado realize o superávit primário, uma métrica que lhes agrada porque exclui (esconde) os juros e, não obstante, garante que a dívida pública em relação ao PIB não aumente. Mas mesmo esse superávit o governo tem grande dificuldade de conseguir.

O círculo vicioso se fecha

Em consequência de tudo isso, o Brasil está preso no círculo vicioso da quase estagnação. Um círculo que tem alguma semelhança com o fluxo secular de Schumpeter, definido em 1911. Nesse fluxo circular, que decorre da lógica da teoria econômica neoclássica ou ortodoxa e do seu ideal de concorrência perfeita, não há lucros (existe apenas o lucro normal, igual à taxa de juros), os investimentos são iguais à depreciação efetivamente ocorrida e não há crescimento.

Já no caso do círculo vicioso da quase estagnação brasileira, há lucros, mas são baixos para a indústria de transformação; há investimentos e há crescimento porque setores do agronegócio, da indústria e o setor de serviços investem, mas esses são poucos, insuficientes para que o país saia da quase estagnação em que está mergulhado desde os anos 1980.

Por outro lado, o Estado não tem recursos para complementar o setor privado. Nos anos 1970, investia cerca de 8% do PIB. Hoje, investe apenas cerca de 2%. Não consegue nem sequer financiar os investimentos públicos em infraestrutura que são necessários para o país crescer. A solução proposta pela ortodoxia liberal é privatizar. Os governos vêm seguindo essa trilha, mas os resultados são parcos. O apetite e as possibilidades do setor privado são restritos.

Entretanto, alguns investimentos em infraestrutura, cujos lucros são certos, como nas concessões de rodovias, atraem muitos os rentistas e financistas e são relativamente necessários. O governo Lula, portanto, avança nas concessões por falta de alternativa.

Já outros investimentos muito necessários em infraestrutura não atraem o setor privado, a não ser que o Estado subsidie seus investimentos (parcerias públicas privadas). A potencialidade dessas parcerias, porém, é limitada porque envolve gastos do Estado, o qual é mantido no nível de subsistência.

Há 20 anos, afirmo que a economia brasileira está presa na armadilha dos juros altos e do câmbio apreciado. Hoje, apoiado na teoria novo-desenvolvimentista, posso acrescentar que o Brasil está preso ao círculo vicioso da quase estagnação. Um círculo que se fecha com a impotência do Estado de rompê-la.

Ao apresentar o Brasil, sua economia e sua política de uma maneira nova, na qual podemos ver como os diversos atores tratam de manter a economia brasileira presa a esse círculo, sou obrigado a me mostrar pessimista quanto ao futuro do Brasil e do seu povo.

 

Volta da ultradireita é tragédia contratada, por Maria Hermínia Tavares

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Trump do segundo mandato é muito mais radical do que o do primeiro

Maria Hermínia Tavares, Professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, é pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap)

Folha de São Paula, 10/04/2025

Notável pensador alemão do século 19 fraseou que, na história, a tragédia só se repetia como farsa. No caso dos governos populistas de extrema direita dá-se o oposto: seu primeiro mandato é farsa; o segundo, tragédia.

Donald Trump é prova acabada disso. Desde que voltou à Casa Branca tem produzido destruição inigualável. Na mesma semana em que a imposição de tarifas arbitrárias a uma lista enorme de países virou de ponta-cabeça o sistema de comércio mundial, agentes do Doge (sigla em inglês para Departamento de Eficiência Governamental), comandado por Elon Musk, invadiram o Woodrow Wilson Center.

Seu diretor foi forçado a renunciar e no seu lugar foi instalada uma jovem líder da torcida organizada de Trump; chefias e altos executivos foram demitidos; seus funcionários federais colocados em disponibilidade; o reputado programa internacional de pesquisadores visitantes, desativado.

O Wilson Center, como é conhecido, foi criado pelo Congresso dos EUA —e, até a semana passada, era o mais respeitado think thank de política exterior do país. O ataque ao centro de excelência é mais um episódio da investida trumpista para garrotear as instituições que produzem conhecimento, ou financiam a sua produção, ou promovem o debate livre de ideias —universidades, agências públicas de financiamento da ciência, além dos citados think thanks.

Não há dúvida alguma: o Trump do segundo mandato é muito mais radical do que o do primeiro; tem mais clareza sobre os inimigos que quer destruir; forjou instrumentos mais afiados e cevou novos apoios para fazê-lo. E, até agora, seus desígnios não tiveram de se haver com a resistência das instituições democráticas que poderiam freá-los.

A volta da extrema direita a Washington põe em dúvida teorias caras aos cientistas políticos. A primeira sustenta que a participação no jogo democrático tende a moderar partidos e líderes extremados. A segunda supõe que instituições políticas sólidas —e robustecidas com o passar do tempo— criam freios e contrapesos eficazes à ambição de poder dos governantes. Nada disso parece estar acontecendo nos EUA. Até agora, diria um otimista.

São poucos os casos de populistas de extrema direita bem-sucedidos a ponto de se reeleger ou voltar ao governo em pouco tempo. Assim, são escassos os casos que permitam aceitar ou rejeitar aquelas teorias. Por via das dúvidas, é melhor tentar evitar que o retorno ocorra. Para tanto, levem-se a sério tanto as propostas extremistas como a intenção dos proponentes de cumpri-las.

No Brasil, as instituições democráticas formaram barreira eficaz aos intentos golpistas de Jair Bolsonaro. Mas convém não apostar só nelas. Isolar politicamente o ex-capitão é medida necessária —e urgente— nesta quadra que antecede seu julgamento por crimes contra o Estado de Direito e quando, segundo Datafolha, 52% dos brasileiros acham que deveria ser preso por cometê-los.

Eis porque chega a assustar que no último domingo (6), na avenida Paulista, todos os pré-candidatos da direita tenham decidido, pouco importa se por convicção ou cálculo eleitoral, curvar-se à liderança de quem tem Trump como ídolo e o autoritarismo como propósito.