Pandemia, desorganização social e futuro desolador  

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Desde o começo de março a sociedade brasileira se vê à volta com a maior crise sanitária de sua história recente, nesta situação de pandemia as nossas entranhas estão as mostras, a desigualdade assombrosa escancara as dificuldades das questões sociais, nossos medos mais íntimos e pessoais e as expectativas de um futuro melhor e mais convincente se tornam cada vez mais distantes, estamos afogados numa crise sanitária, somada a uma grande crise econômica e, uns falam em uma queda de mais de 5% do produto interno bruto, outros falam em mais de uma queda ainda maior, para piorar as condições sociais, tão degradadas nos anos recentes, uma enorme crise política e rumamos para um risco institucional, cujas repercussões ainda não podem ser mensuradas.

Como a situação atual, percebemos um Estado absurdamente incompetente e sem organização, onde os gestores responsáveis pelas políticas públicas estão dando-nos mostras claras de desculpas esfarrapadas marcadas pela incompetência, com isso, percebemos uma sociedade indefesa e assustada, reféns de um vírus assustador, levando milhares de pessoas ao falecimento iminente, gerando na sociedade marcas e sentimentos sinceros de que as coisas poderiam ser evitadas, desde que as ações fossem organizadas, planejadas e imediatas.

A situação econômica do país é assustadora, o incremento no desemprego é uma realidade cruel, muitos empresários e empreendedores que precisam fechar suas portas marcadas por uma pilha imensa de boletos não pagos e dívidas crescentes, crianças presas em casas e impedidos de suas brincadeiras, levando um aumento da depressão, da ansiedade e de todos os mais violentos transtornos mentais e emocionais, gerando uma coletividade agressiva e desesperança, onde a solidariedade se torna uma forma de uma seleção social, diferenciando pessoas e comportamentos dos indivíduos.

Neste ambiente, percebemos que a grande maioria dos países do mundo estão recorrendo aos recursos do Estado, criando instrumentos monetários para aumentar a quantidade de liquidez, dos créditos e dos investimentos, para evitar que a solução se aprofundem, levando recursos para todos os grupos e coletividades para que morram de inanição e da desesperança. Diante desta situação marcada pelo caos social e econômica, os grupos mais ortodoxos e liberais, defensores do Estado mínimo e a pouca intervenção do Estado na lógica dos defensores dos interesses da superioridade dos Mercados, sendo obrigados a defenderem política que não acreditam, fazendo-as de forma tímida e sem empolgações, passando uma imagem de desorganização e inconsistência, abrindo espaços para instabilidades e incertezas.

Neste ambiente marcado pelas necessidades de isolamento social, quarentena e pouco social, os indivíduos são impulsionados ao medo e para as preocupações de um futuro marcado pelas incertezas, que se somam aos medos contemporâneos já existentes, levando as pessoas a buscar crescentes, gerando desequilíbrios emocionais e problemas variados existenciais, nesta sociedade os seres humanos se encontram em uma grande encruzilhada, onde as escolhas devem ser feitas com calma e paciência, mesmo sabendo que vivemos em uma sociedade que exija respostas rápidas e decisões imediatas e dinâmicas.

A crise do coronavírus, vitimada pelo covid-19, leva a economia global a desequilíbrios crescentes, pela primeira vez, estamos vivenciando um momento marcado por crises que afetam, concomitantemente, os dois lados da teoria econômica, impactando os lados da oferta e da demanda, gerando um grave desequilíbrio nas cadeias globais de produção, gerando desabastecimento na estrutura produtiva, obrigando países e regiões a terem suas produções reduzidas e de forma abruptas, diante disso, a crise local se espalha para todos os polos da economia internacional. Nesta situação de instabilidades, movimentos marcados pelo nacionalismo e pelo populismo ganham espaço na sociedade, gerando o surgimento de movimentos fascistas e autoritários, que passam a enfraquecer as democracias contemporâneas, levando a críticas ácidas e agressivas à ciência e a racionalidade científica, muitos destes movimentos pressionam as forças da globalização e uma defesa pela desglobalização, a um fechamento econômico e de estímulos as políticas protecionistas.

Neste ambiente marcado por milhões de mortes vitimadas pelo covid-19 em escalas internacionais, os governos devem se unir em escala global e ao mesmo tempo, os governos locais devem se fortalecer em prol dos seus concidadãos, aumentando os investimentos em saúde e pela defesa da vida, máquinas e tecnologias médicas, estas devem ser vistas como a situação racional, necessária e urgente de um governo nacional e consciente das necessidades da sua população.

Na sociedade brasileira, percebemos inúmeros desajustes na atuação desta crise sanitária, de um lado governantes que acreditam que o coronavírus deve ser visto como uma gripezinha, mesmo sabendo que o poder de destruição é violento, de outro lado, suas decisões são lentas e inoperantes, recursos canalizados para as micros, pequenas e médias empresas demoram a se efetivar, levando muitos grupos a insolvência e a falência generalizadas, fortalecendo um ambiente marcado pelos generosos privilégios para uma parte da coletividade, enquanto a grande massa da população se encontram chafurdando na degradação e da desesperança, sem créditos, sem empregos e sem futuros, caminhando rapidamente para o caos econômico e pelas insolvências social e moral.

Os socorros chegam rapidamente quando os poucos afortunados estão demandando recursos do governo nacional, neste momento surgem créditos suplementares que brotam em contas correntes de polpudos afiliados dos privilegiados, neste momento bilhões e bilhões de reais abastecem seus negócios, enquanto os mais desprovidos de recursos esperam meses e meses para ter acesso a fundos criados para garantir recursos futuros, que rendem valores irrisórios e vexaminosos, perpetuando uma situação de degradação social e exploração crescente e incessantes.

O Brasil vive uma situação sui generis, percebemos na contemporaneidade um aumento da degradação do meio ambiente, que cresce de forma acelerada e estimulando muitos investidores internacionais a reduzirem os investimentos no nosso país, neste momento percebemos que um grupo de gestores de fundos de investimentos, responsáveis pela administração de mais de 17 trilhões de dólares, publicando uma carta endereçada ao governo federal, com ameaças de diminuir os investimentos na economia brasileira, na carta os fundos criticam fortemente o aumento da devastação da floresta Amazônica, o desprezo com o meio ambiente e o incremento da devastação do clima, com isso, percebemos uma imagem do Brasil no cenário bastante negativo, com fortes prejuízos para a sociedade nacional, ainda mais, no momento de auge da pandemia e das dificuldades econômicas, sanitárias, sociais e políticas.

Recentemente, o Tribunal de Contas da União (TCU), apresentou um relatório da atuação do governo federal diante na situação de pandemia, onde ficamos conhecendo como o quadro é sombrio e assustador, cujas políticas públicas se caracterizaram pelo amadorismo e incompetência, sem organização e ausência de planejamento, gastos desnecessários e políticas ineficiente, neste ambiente de tremendo desastre, o balanço do combate do coronavírus apresenta graves deficiências, que se materializam em mais de 1,2 milhão de infectados e mais de sessenta mil mortos, um verdadeiro genocídio, com impactos devem povoar a sociedade durante muito tempo.

Nesta sociedade, alguns se especializaram na espoliação da esperança da população, na conjuntura de caos generalizado, percebemos projetos que persistem em entrar na pauta dos grupos mais amoedados, persistem em reformas equivocadas, mudanças que aumentam os privilégios de uma minoria em detrimento de uma grande parte da sociedade, uma elite imediatista, hipócrita e degradante que nos conduz para um retrocesso civilizatório, com matanças de populações indígenas, de negros e de pobres.

O grande inimigo é o vírus, a crise está sendo agravada pelas atitudes equivocadas e limitadas, embora percebamos muitas pressões sociais pela abertura das atividades, a abertura sem encontrarmos um pico de infectados, veremos uma situação marcada por abertura alternadas por fechamentos, gerando maiores prejuízos na sociedade, mortalidades em alta, falências generalizadas e apreensão de todos os grupos sociais. Nesta sociedade, o vírus nos mostra, como somos uma sociedade pobre e desigual, embora tenhamos um produto interno bruto algo na casa dos 6,7 trilhões de reais, temos uma estrutura social marcada por fortes desigualdades, neste ambiente, uma parte significativa da sociedade não pode ficar alguns meses em casa, pois correm o risco de morrer sem alimentos, sem esperanças, sem perspectivas e vitimado pela depressão.

Numa sociedade onde o governo federal demora a estruturar formas de socorro da sociedade e, principalmente, dos grupos de menos recursos monetários, percebemos um verdadeiro genocídio, que levam grandes levas de cidadãos a inanição e desesperança. Neste ambiente, uma intervenção governamental é fundamental para evitarmos mortes crescentes, recursos devem ser injetados na economia, políticas públicas devem ser construídas em caráter de emergência, sem estas atuações urgentes e necessárias, o país brevemente se tornará o grande líder dos infectados e seus impactos econômicos, sociais e políticos seriam incomensuráveis.

Estamos vivenciando um grande retrocesso civilizatório, depois de um incremento de políticas direcionadas a grupos e minorias, vivemos uma reversão de políticas inclusivas, reduzindo de investimentos sociais generalizados e uma convicção centrada em austeridades, redução dos gastos sociais e aumento dos gastos de dívidas públicas, uma verdadeira estrutura de criar degradação social, pobrezas crescentes e medos generalizadas. Depois de forte crescimento econômico e políticas inclusivas, que levaram revistas internacionais, dentre elas destacamos a célebre capa da revista The Economist que retratava o Cristo Redentor decolando, percebemos a morte da esperança e do crescimento da desesperança, do medo e da redução da solidariedade, onde uns poucos controlam as estruturas políticas, os recursos econômicos e financeiros, vivemos na atualidade uma tempestade perfeita.

Desde 2015/2016, a economia brasileira vivemos de grande degradação, neste ambiente rumamos para um incremento acelerado do desemprego, cujas perspectivas estamos caminhando para mais de 25 milhões de cidadãos sem empregos, sem políticas claras e emergentes, nosso futuro comem deve ser tornar mais nebuloso, do desemprego rumamos para um incremento no subemprego e na informalidade, cujos impactos são a violência e a exclusão social, uma verdadeira degradação social e emocional, com aumento na depressão, na ansiedade, no suicídio e transtornos variados.

A sociedade está se degradante de forma  acelerada, muitos governos estão querendo terceirizar as suas responsabilidades, empresários gananciosos e imediatistas pressionam para a abertura atabalhoada e uma população fortemente amedrontada, uma sociedade marcada pela ausência da cidadania e de carências crescentes, neste momento precisamos de um norte, um rumo, uma liderança consistente e confiável para buscarmos novas expectativas e maiores perspectivas de uma construção interrompida, sem estes instrumentos políticos, nossa sociedade viverá mais do que uma década perdida, mas um século de atrasos e desesperanças.

 

 

 

 

Se as pessoas não acreditarem na democracia, instituições serão frágeis contra autoritarismo, por Renato Janine.

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É ilusão olhar só as instituições, como fez Yascha Mounk, porque elas não substituem o povo, fonte do poder na democracia

Folha de São Paulo, 27/06/2020.

Depois que caiu a ditadura argentina, nos anos 1980, houve algumas tentativas de golpe militar, quando iam a julgamento os criminosos que haviam exercido o poder. A cada vez, multidões tomavam as ruas e repudiavam a ação subversiva e antidemocrática.

De lá para cá, a Argentina viveu graves crises econômicas —como nós—, mas nunca a democracia esteve em risco. Teve e tem apoio popular.

Digo isso a respeito do artigo de Yascha Mounk, “Brasil já é uma democracia sob supervisão militar”.

Concordo com o título e com a tese principal. Mas estranhei sua alusão a “especialistas brasileiros que consultei alguns anos atrás e que sentiam confiança na força das instituições brasileiras”, porque segundo eles “os militares haviam se afastado de vez da política”.

O problema é que instituições somente são fortes se tiverem apoio popular. Esse apoio pode se chamar cultura política, educação política. Não me deterei na diferença entre esses conceitos, mas insisto: se as pessoas não acreditarem na democracia, as instituições serão frágeis contra o autoritarismo.

Infelizmente, o que nos preservou da ditadura, desde 1985, foi a fraqueza dos antidemocratas, mais que a força dos democratas. A ditadura acabou em fiasco, inclusive econômico, mas não sofreu punições.

Uma comissão da verdade demorou décadas para ser criada. A anistia que o regime de exceção deu a si mesmo, embora condenada internacionalmente, foi mantida pelo STF.

A fraqueza de nossa democracia é a fraqueza da convicção democrática dos brasileiros. Não emplacamos a ideia de que a divergência política é legítima. Na verdade, aumentou a crença de que quem diverge de nós é corrupto. Ora, na política democrática sempre há ao menos duas vias legítimas e diferentes.

Mas nossas últimas campanhas eleitorais, bem como o antipetismo, fundaram-se na deslegitimação do adversário, convertido em inimigo porque seria ladrão.

Além disso, a democracia não resolveu nossos problemas sociais. De Itamar Franco a Dilma Rousseff, diferentes governos o tentaram. O IDH-M (Índice de Desenvolvimento Humano de Municípios) melhorou sensivelmente. Os governos petistas foram mais longe neste rumo, mas a trilha foi aberta por Itamar e FHC.

Porém, não se construiu a consciência de que os avanços se deviam a políticas públicas —ou à política.

Em vez disso, multidões atribuíram sua melhora de vida, nos anos prósperos do começo do século, a Deus ou ao esforço pessoal, esquecendo a dimensão coletiva, pública, que é a da política.

Esse é o problema. Foi e é uma ilusão olhar só as instituições. Podemos vibrar com uma ação do presidente da Câmara ou de alguns ministros do STF, mas eles não substituem a fonte do poder, que na democracia é o povo.

Sem uma convicção e práticas democráticas enraizadas, nossa democracia continuará, como diz a revista britânica The Economist, “flawed”, ferida, defeituosa.

O erro não é de Yascha Mounk, mas de seus informantes brasileiros, que não viram esse déficit inquietante de consciência política.

Renato Janine Ribeiro

Professor titular aposentado de ética e filosofia política da USP e professor visitante na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). Foi ministro da Educação em 2015, durante o governo Dilma Rousseff (PT). Autor de ‘A Pátria Educadora em Colapso’ (ed. Três Estrelas)

 

Eugenia e coronavírus, por Cida Bento.

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Crianças e adolescentes da periferia e das favelas são os mais atingidos pela Covid-19

Folha de São Paulo – 25/06/2020

Inúmeras são as reportagens e estudos apontando que o ocultamento ou manipulação do dado cor/raça nos formulários de notificação da Covid-19 e, acrescente-se a esse contexto, a retirada do CEP dos registros representam um esforço de encobrir uma política eugênica que não investe esforços para estancar a pandemia porque quem está sendo preferencialmente atingido são os pobres, os negros e os favelados.

Assim, o crescimento e a ampliação de vozes contra a ideia de que algumas vidas valem mais do que outras, que caracteriza o fascismo e o racismo, é fundamental como forma de preservar e fortalecer as instituições, que devem se posicionar firmemente protegendo os direitos de sua população, em particular de suas crianças e adolescentes.

No Brasil, o número de mortes e internações de crianças e adolescentes na pandemia está muito acima dos demais países, e a maior parte dessas crianças e adolescentes são negras, vivem em periferias, favelas ou bairros pobres, de acordo com artigo de Julia Dolce, da Agência Pública, de junho de 2020.
No universo dos adolescentes, são 59,4% de negros entre os casos notificados, ante 38,8% dos de brancos.

Dolce destaca ainda que a mortalidade de jovem brasileiro por covid-19 é praticamente dois terços maior do que a verificada em países ricos, segundo pesquisa da Universidade de Paris.

No entanto, o dado cor/raça, fundamental para compreender melhor essa situação, figura como “ignorado” ou mesmo não preenchido em aproximadamente 40% dos formulários de hospitalizações e óbitos, indicando que a lei não vem sendo cumprida e o Estado não desenvolveu campanhas explicativas sobre a importância dessa informação para a definição de políticas públicas a fim de enfrentar os desafios da pandemia.

Importa destacar aqui que a mortalidade de crianças e jovens negros, de indígenas, idosos, quilombolas, seja pela ação, seja pela omissão do estado, pode representar a política eugenista, na atualidade.

A eugenia significa esterilizar, exterminar, invisibilizar, separar os indesejáveis. Assim, se crianças e adolescentes das periferias e favelas são atingidos diferencialmente pela Covid-19, eles também o são pela brutalidade policial, como observamos no aumento de assassinatos de crianças e adolescentes nos últimos anos.

Em 2019, cinco crianças de menos de 12 anos e 43 adolescentes de 12 a 18 anos foram mortos nas favelas do Rio de Janeiro por agentes do Estado brasileiro —policiais.

E, segundo o Atlas da Violência 2019, na idade de 21 anos, quando ocorre o pico dos riscos de uma pessoa ser vítima de homicídio, negros têm 147% mais chances de serem assassinados do que brancos.
Mortos em casa, em parques de diversões, nas escolas, em diferentes lugares das periferias e favelas onde deveriam estar protegidos. Diversos estudos têm revelado que a identificação do local é um dos elementos que legitimam a morte.

A ideia de favela construída como ausência, ilegalidade e desordem, um “problema” a ser solucionado, vem permitindo a entrada abusiva do Estado para lidar com a violência. Então, retirar o CEP de registros não é invisibilizar a política nas periferias e favelas?

Mais do que nunca, precisamos juntar as diferentes vozes da sociedade brasileira na retomada dos pactos civilizatórios que possibilitam o cumprimento do que define a Constituição Federal: a proteção integral de todas as crianças e adolescentes e de segmentos vulnerabilizados da sociedade.

Cida Bento

Diretora-executiva do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), é doutora em psicologia pela USP

 

No mundo de Bolsonaro, neoliberalismo e maluquice servem a mesmo propósito

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A luta contra a corrupção foi apenas o pretexto para uma luta maior: a luta contra a lei

Marcelo Coelho – Folha de São Paulo – 24/06/2020

Não é preciso insistir no que houve de ignorância e despropósito durante a passagem de Abraham Weintraud pelo Ministério da Educação.

Acho interessante outro tipo de comentário. A saber, o de que Weintraub “não fez nada”, deixou tudo parado, não “tocou nenhum projeto”.

Na verdade, o objetivo era esse mesmo. Na famosa reunião ministerial, Weintraub se limitou a expressar o desejo de ver membros do STF na cadeia.

Ele também explicou o que o fizera aderir ao governo Bolsonaro: a “luta pela liberdade”. “Não quero ser escravo neste país”, acrescentou.

O povo não está gritando “por mais projetos”, disse ele. “Está lutando pela liberdade”. Toda essa discussão de “vamos fazer isso, vamos fazer aquilo” não seria capaz de mobilizá-lo. O principal, repetiu, era lutar —e não dialogar— contra os que querem “as tetas” do Estado.

Vieram, como condimento, confissões de “ódio” aos partidos comunistas, às expressões “povos indígenas” e “povo cigano” e, como se sabe, ao STF.

Esse discurso se deu numa ocasião em que se apresentava, justamente, um “plano” para a recuperação econômica do país. Nada de concreto, como se sabe, mas o suficiente para justificar projeções de PowerPoint e palavras de confiança no futuro.

O que deduzir disso?

É possível que exista um setor do governo, composto por ministros militares como o da Infraestrutura, ainda ligado à ideia de que o Estado serve para “fazer alguma coisa”.

O sentido básico do governo Bolsonaro, entretanto, é claramente outro. A ala financeira de Paulo Guedes, assim como a ala dos fanáticos evangélicos e olavistas, está unificada num propósito claro —o de destruir o Estado.

Neoliberalismo feroz e maluquice conspiratória são faces da mesma moeda. O núcleo supostamente técnico de Paulo Guedes e a turma delirante da guerra contra índios, quilombolas e comunistas compartilham da mesma visão de mundo.

Fascismo? O filósofo político Renato Lessa, numa discussão disponível no Youtube (procure por “Simpósio Direitas Brasileiras”), questiona essa caracterização.

Claro que podemos chamar de “fascista” esse governo e seus seguidores. São truculentos, extremistas, vulgares, despreparados, belicosos e idiotas.

Mas o fascismo, lembra Renato Lessa, buscava incorporar todos à máquina do Estado. Havia destacamentos infantis, associações de jovens, alas femininas. Desenvolvo a ideia por minha conta: o plano era criar uma escola fascista, uma arte fascista, uma medicina fascista. A ideologia era totalitária, de fato, porque absorvia toda a sociedade (excluídos os “elementos indesejáveis”) em organizações de Estado.

O plano de Bolsonaro é sem dúvida inverso —embora a mentalidade ativista e truculenta seja comparável à dos camisas-negras. Trata-se de unificar não só os que são contra o Estado, mas também os que estão à margem, ou fora, da lei.

É a ilegalidade no poder: isso unifica milícias, madeireiros, invasores de terra indígena, destruidores de patrimônio histórico, infratores contumazes de trânsito, sonegadores de impostos, policiais torturadores, militantes racistas, compradores de armas de fogo.

Uma ampla parcela de trabalhadores informais, de pequenos empreendedores, de profissionais liberais que acham complicado preencher nota fiscal, de donas de casa revoltadas com os novos direitos das domésticas, alia-se ao clube.

Os antigos representantes do pensamento econômico liberal encontraram, assim, uma base social imprevista.

O Estado brasileiro, que já não funcionava, deixou abandonada uma gente que se acostumou a se virar sozinha, fugindo de fiscais, empregando ou sendo empregada sem respeito à CLT, estudando em faculdades particulares de última categoria.

Estado para quê? “Só serve para atrapalhar”, pensa essa população que, na verdade, é vítima precisamente da falta de um Estado que funcione. “Melhor a milícia! Melhor a gente se armar! Melhor o Guedes!”

Do outro lado, temos os evidentes casos de corrupção, de crise fiscal e de carência nos serviços públicos a alimentar com fatos reais o delírio extremista e destrutivo.

Não é por acaso que o bolsonarismo se volte contra o Judiciário, de cujas ações se beneficiou. A luta contra a corrupção foi apenas o pretexto para uma luta maior: a luta contra a lei.

Marcelo Coelho

Membro do Conselho Editorial da Folha, autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”. É mestre em sociologia pela USP.

 

A intransigência da retórica liberal, por Luiz Guilherme Piva

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Não cabe agora discurso ortodoxo da futilidade, da perversidade e da ameaça3

Luiz Guilherme Piva

Folha de São Paulo – 23/06/2020

A pandemia de Covid-19 está agravando o já alarmante quadro brasileiro, de mais de 12 milhões de desempregados, de 40 milhões de trabalhadores informais, de 6.000 mortes anuais por fome, de 5 milhões de desnutridos e de 24 milhões vivendo em extrema pobreza.

Além disso, milhares de pequenas e médias empresas estão fechando, e boa parte das grandes, quebrando ou entrando em recuperação judicial, com perda de produção e riqueza.

Antes da pandemia, os economistas liberais ortodoxos já se posicionavam, por princípio, contrariamente a ações públicas. Isso porque creem que a obtenção de superávits primários é a panaceia que infunde confiança nos atores privados e os faz agir para suprir as necessidades sociais de investimentos, bens e serviços —daí a pregação pelo Estado mínimo.

Com a destruição vinda com a pandemia, tendo surgido proporções de atuação governamental, até com apoio de economistas liberais, muitos deles, não obstante, reiteraram sua resistência. Faz sentido. Vários dos economistas dessa linha acreditam que, frente a um problema complexo, se ninguém fizer nada, tudo dará certo.

Tal resistência abriga o que o economista Albert Hirschman (1915-2012) denominou retórica da intransigência, associada à aversão a mudanças. Ela contém três teses: a da futilidade, segundo a qual tentativas de promover mudanças são inúteis (porque, no caso aqui tratado, o mercado é quem traria a solução estrutural); a da perversidade, que advoga que elas só agravam o quadro existente (no nosso quadro, piorariam o desemprego, a miséria e a desigualdade); e a da ameaça, que esgrima que o custo de mudanças é elevado e compromete conquistas já obtidas (no caso em tela, os gastos públicos arruinariam o ajuste fiscal, entornando o remédio e seus benefícios).

O debate econômico acerca da linhagem liberal é rico, e há nuances importantes dentro dela, mesmo no cenário brasileiro atual. Mas, em momentos trágicos como o que vivemos, não se entende que muitos de seus membros, mais ortodoxos, questionem a validade de políticas públicas ativas nos campos social e econômico.

Pode-se discutir acerca do alcance da injeção de recursos: a gradação vai desde a escolha de regiões, setores e públicos-alvo até a distribuição irrestrita, que o heterodoxo Nobel de economia Paul Krugman defende e chama de “helicopter money” —imagem, aliás, lançada com viés mais crítico em 1969 pelo ultraliberal e também Nobel de economia Milton Friedman (1912-2006). Mas neste momento não cabe o discurso da futilidade, da perversidade e da ameaça que muitos liberais ortodoxos têm emitido.

E o fazem com alarido, o que cria um paradoxo com o conceito, do mesmo Hirschman, de “voice” (voz), contraposto ao de “exit” (saída). Enquanto esta é a recusa silenciosa, e predominantemente individual, a um produto ou a uma política, aquela se faz pela manifestação ruidosa e coletiva em prol de mudanças e de quebra de padrões.

E o que temos por aqui é, contraditoriamente, a retórica barulhenta de um grupo de economistas ortodoxos que escrevem, palestram e dão entrevistas altissonantes contra ações mudancistas e em defesa da inércia conservadora.

Enquanto isso, a pandemia segue matando, pela doença e pelo desemparo econômico e social, milhares de brasileiros.

Luiz Guilherme Piva

Economista, mestre (UFMG) e doutor (USP) em ciência política e autor de ‘Ladrilhadores e Semeadores’ (Editora 34) e ‘A Miséria da Economia e da Política’ (Manole)

‘Estado brasileiro concentra renda e terá de ser repensado’, diz Eduardo Giannetti

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Para economista, crise provocada pelo coronavírus escancarou o cenário de desigualdade do Brasil. Ele também avalia que o ritmo de recuperação será modesto diante do quadro de incertezas com a evolução da doença.

Por Luiz Guilherme Gerbelli, G1 – 01/06/2020  

O economista Eduardo Giannetti afirma que a crise provocada pelo coronavírus escancarou o cenário de desigualdade do Brasil. Responsável por absorver 39% da renda nacional, o Estado brasileiro, segundo ele, tem atuado na direção de concentrar a renda e terá de ser repensado depois de superada a pandemia.

Num cenário que combina um quadro sanitário grave, aprofundamento da crise econômica e incerteza política, Giannetti avalia que a recuperação da economia será claudicante. “É um período lento de tentativa (de reabertura) e eventuais retrocessos. Os investidores e consumidores vão ficar apreensivos por algum tempo com relação ao futuro, portanto, vão trabalhar com o freio de mão puxado”, diz.

A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao G1.

  • Qual avaliação que o sr. faz do momento atual da economia? 

Essa crise é totalmente diferente do que nós estamos acostumados a ver. Há duas diferenças. Primeiro, a crise vem de fora da economia. É um vírus, que conseguiu pular as espécies e entrar no ser-humano. A segunda característica diferenciadora é que não é uma recessão nem uma depressão. É um colapso. É uma parada súbita. Repentinamente a produção e o consumo se viram dramaticamente tolhidos pela necessidade de conter a propagação de um vírus letal.

  • E qual é o cenário que se desenha para a economia? 

Eu trabalho com três cenários e eles têm probabilidade distintas. Tem o cenário de recuperação vigorosa. Ou seja, ultrapassada a fase crítica da pandemia, a economia rapidamente retoma o nível de atividade pré-crise. O segundo cenário é de uma recuperação claudicante. É um período lento de tentativa (de reabertura) e eventuais retrocessos. Os investidores e consumidores vão ficar por algum tempo apreensivos com relação ao futuro, portanto, vão trabalhar com o freio de mão puxado.

O terceiro cenário é de depressão. Se nós tivermos novas ondas sérias de contaminação, se as coisas pioram, podemos entrar num período longo de confinamento e falta de perspectiva, o que pode levar a economia para um período prolongado e muito abaixo do nível de normalidade.

  • Desses cenários, qual deve ser o mais provável para a economia? 

Os dois cenários extremos, de recuperação vigorosa e a prolongada depressão, são menos prováveis. Eu aposto nesse cenário que está se desenhando, de uma recuperação claudicante.

  • Além da questão sanitária, o Brasil ainda tem um agravamento do quadro econômico e lida com a incerteza política. Como o país sai dessa crise? 

O Brasil tem uma boa notícia na comparação com o mundo emergente: nós estamos com as contas externas muito equilibradas e robustas. Não temos obrigações em moedas estrangeiras que nos deixam vulneráveis. Nosso déficit em conta corrente é pequeno e vem sendo plena e confortavelmente financiado pelo investimento direto estrangeiro. Temos reservas cambiais e as nossas exportações estão se mostrando muito resilientes ao longo do coronavírus.

  • E o que fragiliza o Brasil? 

São duas coisas. Primeiro, a obscena desigualdade que prevalece na sociedade brasileira. São dezenas de milhões de brasileiros que vivem numa situação de extrema vulnerabilidade. São trabalhadores informais que vivem numa situação de completa precariedade, não tem uma situação regular de emprego. Vamos ter de pensar com muito mais seriedade, passada essa crise, como é que nós vamos, para começo de conversar, prevenir ou impedir que dezenas de milhões de brasileiros não tenham sequer uma situação regular de emprego. Isso não é normal, isso é uma aberração institucional brasileira.

  • E a segunda fragilidade? 

Está na política. O Brasil foi pego nessa tremenda emergência com uma presidência da República disfuncional, com um presidente que demite o ministro da Saúde em plena pandemia por discordar dele numa questão técnica. É alguém que acredita em pensamento mágico, alguém que quer resolver as questões na bravata e ainda se vê envolvido numa crise política de enormes proporções.

  • O que será necessário repensar do Estado brasileiro? 

O Estado brasileiro arrecada anualmente 33% do PIB em impostos. A nossa carga tributária bruta está fora do padrão para um país de renda média. O Estado brasileiro também gasta mais do que arrecada. O nosso déficit nominal, antes da crise sanitária, estava em torno de 6% do PIB. Estamos falando de 39% da renda nacional intermediada pelo setor público brasileiro.

  • E o que tem de ser feito para corrigir? 

O sistema brasileiro tributa desproporcionalmente quem menos pode pagar porque está calcado em impostos indiretos, que incidem sobre o consumo e a produção. Nós temos que redesenhar o sistema tributário.

Temos de repensar o modelo de Estado no Brasil, que é altamente centralizado no governo central. O dinheiro vai até Brasília para depois voltar para os entes federativos, que têm as atribuições de interesse dos cidadãos: educação, saúde, saneamento, segurança e transporte. O cidadão não tem a menor ideia de quanto paga de impostos da sua renda, não sabe para onde vai o tributo. Não existe cidadania tributária no Brasil. Não estou questionando o tamanho da carga tributária. Temos de colocar o Estado a serviço da grande maioria desassistida da população. É o grande desafio que temos de enfrentar necessariamente depois dessa crise. Essa crise escancarou essa realidade.

  • Essa vai ser uma cobrança da sociedade? 

Essa questão está amadurecendo na consciência da sociedade brasileira. Não posso garantir, mas eu acho que a sociedade vai ter de acordar para essa desfuncionalidade do Estado. Nesse ponto, a agenda da equipe econômica liderada pelo Paulo Guedes é correta. Menos Brasília, mais Brasil. O cidadão não mora no governo federal, mora no município. Ele tem de pagar impostos no município e receber recursos de volta, cobrando do município.

  • A agenda de reformas saiu do foco por causa da pandemia. Mas qual é o futuro dela? 

O Brasil estava saindo da emergência fiscal no momento em que foi atingido pelo coronavírus. Era o momento de começar a visualizar uma ancoragem fiscal e estava delineado um caminho em que a dívida pública como proporção do PIB se estabilizaria e passaria a declinar lentamente depois de algum tempo. Agora, o que está contratado, em função da crise, é um crescimento da dívida pública. Vamos sair dessa crise com alguma coisa ao redor de 90%, 100% do PIB de dívida pública.

  • É preocupante esse patamar de dívida pública? 

Não é uma situação inadministrável. O que tem de ficar claro é que mudou o patamar da dívida pública, mas ela não pode continuar crescendo no ritmo em que ela cresceu durante a crise. Vamos ter de garantir que ela se estabilize e, a partir daí, vamos repensar para saber como diminuir o tamanho da dívida em relação ao PIB. É uma questão de fluxo, não de estoque. E vai exigir atenção para que o fluxo não continue numa trajetória explosiva para o setor público brasileiro não quebrar.

  • Do que vai depender essa estabilização da dívida? 

Vai depender de uma série de esforços, da eficiência do setor público, manter juros baixos, uma reforma administrativa. Eu acredito que é importante essa contrapartida que o governo federal está exigindo dos estados de não reajustar salário de servidores por um bom tempo daqui para frente.

 

 

Vivemos subnotificação catastrófica de depressão na pandemia, diz Andrew Solomon

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Autor de best-seller sobre a doença diz que há equivoco ao achar que saúde mental é um luxo.

Patrícia Campos Mello – Folha de São Paulo, 22/06/2020

Em “O Demônio do Meio-Dia: Uma Anatomia da Depressão”, premiado best-seller internacional, Andrew Soloman, 56, examina o contexto cutural e científico da doença que o acometeu. Desde a publicação do livro, em 2000, ele virou uma referência mundial no assunto.

Em tempos de pandemia e isolamento social, Solomon acredita que há um grande risco em relação à depressão. Segundo ele, a gravidade da Covid-19 leva as pessoas a acharem que saúde mental é um luxo.

“Vivemos uma subnotificação de problemas de saúde mental em escala catastrófica, e há consequências muito sérias”, diz à Folha o professor de psicologia clínica na Universidade Columbia. Ele afirma que o isolamento social necessário na pandemia pode contribuir para um aumento nos casos de depressão.

Solomon acredita que muita gente não se dá conta que deveria e poderia buscar ajuda.

“Como temos que lidar com uma doença grave, a Covid-19, as pessoas acabam achando que saúde mental é um luxo, algo não essencial no momento. Não é um luxo, as pessoas morrem de depressão, as pessoas deixam de funcionar, há vários problemas físicos que são consequência da depressão”, afirma Solomon, que iria abrir o ciclo de palestras Fronteiras do Pensamento, em maio.

Com a pandemia, as conferências serão realizadas no segundo semestre, em algum formato mais adequado à nova realidade.

O senhor tem conversado com várias pessoas que estão com sintomas de depressão durante o isolamento necessário na epidemia do novo coronavírus. Como uma pessoa pode saber se o que ela tem é uma tristeza normal, dadas as circunstâncias, ou se é uma depressão que requer ajuda?

 É difícil dizer. É bastante racional, no momento, achar tudo muito difícil e incerto e vivenciar algo que parece depressão ou ansiedade. Pode ser uma resposta natural a tudo o que está acontecendo. Um dos fatores-chave é saber como você se sente em relação ao presente e como você se sente em relação ao futuro.

É racional a sensação de que estamos vivendo tempos muito estranhos, que não poder sair de casa e encontrar pessoas é muito ruim e triste. Mas a sensação de que toda a sua vida desapareceu e nunca mais vai voltar ao normal é provavelmente fruto de uma depressão. Essencialmente, seja uma depressão que saiu do nada, como ocorre com muitas pessoas, ou uma depressão decorrente das circunstâncias atuais, as duas são muito incapacitantes. Elas são depressão e provavelmente são tratáveis.

Se você está preocupado, mas ainda está conseguindo funcionar, você provavelmente está apenas lidando com o que está acontecendo. Mas se você chega a um ponto em que não consegue dormir, come o dia inteiro ou não consegue comer nada, sente uma ansiedade enorme quando se senta para fazer coisas rotineiras, tudo isso são indicações de depressão.

O perigo é que as pessoas pensam que estão ansiosas porque estamos vivendo em tempos horríveis e deixam de procurar tratamento. E quando elas vão finalmente se tratar, a depressão já se aprofundou, e quanto mais se aprofunda, mais difícil para a pessoa se recuperar.

Eu disse a muitas pessoas: não quer dizer que não haja razões para você se sentir dessa maneira, mas acho que é muito incapacitante e não ajuda estar assim. Digo a essas pessoas que elas deveriam buscar algum tipo de tratamento, para que possam ficar um pouco mais funcionais.

O senhor acha que há uma subnotificação dos problemas de saúde mental atualmente?

Vivemos uma subnotificação de problemas de saúde mental em escala catastrófica, e há consequências muito sérias. Acabo de falar com um amigo que me contou a história de uma amiga. Ela já estava um pouco deprimida quando tudo isso começou. Morava sozinha em um apartamento em Nova York e disse para o meu amigo que ela estava enlouquecendo, não sabia o que fazer, não via uma única pessoa havia seis semanas. Ela se suicidou.

Isso está acontecendo frequentemente. Como temos que lidar com uma doença grave, a Covid-19, as pessoas acabam achando que saúde mental é um luxo, algo não essencial no momento. Não é um luxo, as pessoas morrem de depressão, as pessoas deixam de funcionar, há vários problemas físicos que são consequência da depressão.

A depressão também afeta o sistema imunológico, o que deixa as pessoas menos capazes de combater o vírus se forem expostas. No momento, a depressão está muito, muito disseminada.

Existe alguma “dieta de saúde mental” que as pessoas podem seguir, ações que nos protegem de alguma forma da possibilidade de depressão e ansiedade neste momento de pandemia? 

Depressão é uma doença muito comum e tratável. Para as pessoas que estejam se sentindo muito pressionadas, sugiro que procurem ajuda profissional, não tenham medo de tomar remédios e fazer terapia. Não é um sinal de fraqueza, é um sinal de coragem.

Em geral, ajuda muito estabelecer rotinas, ter um número adequado de horas de sono, nem muito, nem pouco; não comer demais, não beber demais. Se a pessoa conseguir fazer tudo isso, ótimo.

Acho que o principal problema em relação a essa epidemia é a solidão terrível que ela gerou. Quando você está muito solitário e isolado, a ideia de procurar outras pessoas parece uma coisa enorme e pouco atrativa. Mas é uma medida de saúde muito importante falar com seus amigos, sua família, ou pessoas com as quais você tem conexão. Pode ser pelo Zoom ou outra plataforma online, telefone ou WhatsApp. Use qualquer tecnologia que estiver disponível e fique em contato com outras pessoas.

A depressão, mesmo em circunstâncias normais, é uma doença da solidão. Então se você conseguir sair um pouco dessa solidão, tem mais chances de ficar bem. Alguns dizem é muito trabalho ligar para as pessoas. Pensam: “Talvez não queiram falar comigo”. Meu conselho é: liguem, fiquem em contato.

Quais são os efeitos psicológicos da pandemia sobre as crianças?

O principal a se fazer com as crianças é mantê-las ativas e interessadas. É difícil, porque as crianças querem interagir fisicamente com os amigos, não só conversar pelo Zoom. Quando sugiro ao meu filho George fazer FaceTime com os amigos, ele faz, mas as crianças não têm muito sobre o que falar quando não estão fazendo coisas. E se as crianças não podem ter a companhia de outras crianças, elas precisam ter a companhia de adultos. É preciso que os pais reservem um tempo fora das suas preocupações usuais e foquem a família.

O que é pior, o isolamento social, o medo da doença ou não saber como vai ser a vida em alguns meses? 

Há dois aspectos traumáticos para as pessoas. Uma é o vírus, o medo de morrer e de pessoas que você ama morrerem. O outro aspecto é a sensação de estar desligado das outras pessoas.

Você está trancado em sua casa, com seus filhos, seus pais, ou marido ou mulher, num grupo pequeno. É muito difícil não acabar brigando. E ainda por cima, a pessoa está isolada do contexto social mais amplo onde teria mais pessoas para apoio e amizade.

Ou seja, é tanto o inferno são os outros como o inferno é não ter os outros, ao mesmo tempo. O isolamento é muito difícil tanto pelas pessoas que estão com você, quanto pelas pessoas que não estão com você.

Mas o medo do vírus é muito real, e o fato de não termos um cronograma torna tudo muito difícil. Se todo mundo soubesse que nós temos a pandemia, ela é horrível e vai durar até março, pensariam: bom, março está muito longe, mas pelo menos é possível fazer um cronograma. Dá para dizer às crianças: olha, é muito difícil, mas chegando em março, nós vamos fazer isso, vamos fazer aquilo. Nós sentimos constantemente essa ansiedade e medo por não saber quando vai acabar. O fato de não podermos nos programar é muito ruim.

O senhor trabalhou muitos anos como repórter internacional e escreveu um livro sobre a importância de viajar. Daqui para frente, não será tão fácil viajar. Passagens aéreas poderão ficar muito caras por causa da necessidade de manter assentos vazios. As pessoas podem ser obrigadas a fazer quarentena toda vez que viajem. Qual é o impacto disso em nossas vidas?

Até existir uma vacina, não vamos conseguir viajar como costumávamos. E mesmo quando descobrirem uma vacina, o fato de termos passado por isso e sabermos que há patógenos como esse no mundo vai tornar as pessoas bem menos animadas para embarcar em aviões e viajar ao redor do mundo. Meu medo é que isso também leve a um crescimento do nacionalismo e xenofobia, o que já vem ocorrendo.

A parcela da população que viaja para o exterior é pequena, mas há um efeito multiplicador das experiências dessas pessoas, que cria uma sensação de um mundo conectado. O que temos hoje é uma sensação de um mundo desconectado.

O senhor está escrevendo um novo livro. Pode contar um pouco?

É um livro sobre a expansão da ideia do que é uma família —casais divorciados e enteados, casais interraciais, pais e mães solteiros, reprodução assistida, adoção, acolhimento de órfãos em famílias, casais gays, famílias com vários pais e mães e famílias sem filhos.

O livro é estruturado para espelhar o “Longe da Árvore”, que relatava como pais comuns viviam com filhos extraordinários. Esse livro é sobre como famílias extraordinárias se formam e como tomam conta de seus filhos, o que significa ser uma família incomum, as coisas que igualam todos nós e as maneiras pelas quais não somos iguais.

O senhor tem uma família incomum… 

(Risos) Sim. Meu marido é pai biológico de dois filhos de amigas lésbicas que moram em Minnesota (nos EUA). Eu tenho uma filha com uma amiga da faculdade, que é casada. Eles vivem no Texas. Em circunstâncias normais, nós nos vemos bastante.

Eu e o John [meu marido] queríamos ter um filho para estar conosco o tempo todo e tivemos o George. Eu sou o pai biológico, o John é o pai adotivo, tivemos uma doadora de óvulos e uma barriga de aluguel —que é a mãe biológica dos dois filhos do John.

Seis pais, de quatro filhos, em três estados. Normalmente, passamos o Natal todos juntos, às vezes em Minneapolis. Nosso mais velho, filho biológico do John, veio morar com a gente por um ano no ano passado, quando terminou o ensino médio e ainda não tinha começado a faculdade. Foi ótimo. O livro também é sobre isso. Não existe linguagem que dê conta da complexidade das relações atuais.

Andrew Solomon, 56

Professor de psicologia clínica na Universidade Columbia, em Nova York, é escritor, ativista e conferencista. É autor, entre outros livros, de “Longe da Árvore” e “O Demônio do Meio-Dia”, que venceu o National Book Award de 2001. Escreveu para veículos como a revista The New Yorker e o jornal The New York Times.

 

Thomas Piketty: em face de nosso passado colonial e escravista, ”enfrentar o racismo, reparar a história”

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Após a onda de mobilizações contra a discriminação, é necessário mudar o sistema econômico, tendo como fundamento a redução das desigualdades, argumenta o economista

Por Thomas Piketty – 18/06/2020

Crônica. A onda de mobilizações contra o racismo e a discriminação coloca uma questão crucial: a das reparações diante de um passado colonial e escravista que definitivamente não passa. Qualquer que seja sua complexidade, a questão não pode ser evitada para sempre, nem nos Estados Unidos nem na Europa.

No final da Guerra Civil, em 1865, o republicano Lincoln prometeu aos escravos emancipados que obteriam após a vitória “uma mula e 40 acres de terra” (cerca de 16 hectares). A idéia era compensá-los por décadas de maus-tratos e trabalho não remunerado e permitir-lhes encarar o futuro como trabalhadores livres. Se tivesse sido adotado, este programa representaria uma redistribuição agrária em larga escala, principalmente às custas dos grandes proprietários de escravos.

Mas assim que a luta terminou, a promessa foi esquecida: nenhum texto de compensação foi adotado e os 40 acres e a mula se tornaram o símbolo da decepção e da hipocrisia dos nortistas – tanto que o diretor [de cinema] Spike Lee utilizou a expressão ironicamente para nomear sua empresa de produção. Os democratas retomaram o controle do Sul e impuseram a segregação e discriminação racial por mais um século, até a década de 1960. Novamente, nenhuma compensação foi aplicada.

Estranhamente, no entanto, outros episódios históricos deram origem a tratamentos diferentes. Em 1988, o Congresso aprovou uma lei concedendo US $ 20.000 aos nipo-americanos internados durante a Segunda Guerra Mundial. A indenização foi aplicada às pessoas ainda vivas em 1988 (cerca de 80.000 pessoas em 120.000 nipo-americanos internados de 1942 a 1946), a um custo de US $ 1,6 bilhão. Uma compensação de mesmo tipo paga às vítimas afro-americanas da segregação teria um forte valor simbólico.

O grilhão do Haiti

No Reino Unido e na França, a abolição da escravidão era sempre acompanhada de compensações do Tesouro Nacional [pagas] aos proprietários. Para intelectuais “liberais” como Tocqueville ou Schoelcher, tratava-se de uma obviedade: se privamos esses proprietários de suas propriedades (que, afinal, foram adquiridas em um contexto legal) sem justa compensação, então onde iríamos parar nessa perigosa escalada? Quanto aos ex-escravos, eles deveriam aprender a liberdade trabalhando duro. Não tiveram direito senão à obrigação de estabelecer contratos de trabalho de longo prazo com proprietários, cuja falta ensejaria prisão por vadiagem. Outras formas de trabalho forçado foram aplicadas nas colônias francesas até 1950.

Quando da abolição britânica [da escravatura], em 1833, o equivalente a 5% da renda nacional do Reino Unido (hoje 120 bilhões de euros) foi pago a 4.000 proprietários, com remuneração média de 30 milhões de euros, origem de muitas fortunas ainda hoje visíveis. Uma compensação também foi aplicada em 1848 aos proprietários da [Ilha da] Reunião, da Guadalupe, da Martinica e da Guiana. Em 2001, durante os debates em torno do reconhecimento da escravidão como um crime contra a humanidade, Christiane Taubira tentou, sem sucesso, convencer seus colegas deputados a criar uma comissão encarregada de refletir sobre compensações para os descendentes de escravos, em particular quanto ao acesso à terra e à propriedade, sempre muito concentradas entre os descendentes dos plantadores.

A injustiça mais extrema é, sem dúvida, o caso de Saint-Domingue, que foi a joia das ilhas escravistas francesas no século 18, antes de se revoltar em 1791 e proclamar sua independência em 1804 sob o nome de Haiti. Em 1825, o Estado francês impôs ao país uma dívida considerável (300% do PIB haitiano da época) para compensar os proprietários franceses pela perda de propriedades escravistas. Ameaçada de invasão, a ilha não teve outra escolha a não ser cumprir e pagar essa dívida, que o país arrastou como um grilhão até 1950, depois de muitos refinanciamentos e juros pagos aos banqueiros franceses e americanos.

Herança mínima

O Haiti agora está pedindo à França que devolva esse tributo injusto (30 bilhões de euros hoje, sem contar os juros), e é difícil não concordar. Ao recusar qualquer discussão sobre uma dívida que os haitianos tiveram que pagar à França por querer deixar de ser escravos, quando os pagamentos feitos de 1825 a 1950 estão bem documentados e não são contestados por ninguém, e que se pratica ainda hoje compensações pelas espoliações que ocorreram durante as duas guerras mundiais, corre-se inevitavelmente o risco de criar um imenso sentimento de injustiça.

O mesmo vale para a questão de nomes de ruas e estátuas, como a do comerciante de escravos que foi recentemente derrubada em Bristol. Obviamente, nem sempre será fácil traçar a linha entre estátuas boas e ruins. Mas, assim como para a redistribuição de propriedades, não temos outra escolha senão confiar nas deliberações democráticas para tentar estabelecer regras e critérios justos. Recusar a discussão é perpetuar a injustiça.

Bem além desse debate difícil, mas necessário, sobre reparações, devemos também e acima de tudo olhar para o futuro. Para reparar a sociedade dos danos do racismo e do colonialismo, é necessário mudar o sistema econômico, tendo como fundamento a redução das desigualdades e a igualdade no acesso de todos à educação, emprego e propriedade (inclusive por meio de uma herança mínima), independentemente das origens, tanto para negros quanto para brancos. A mobilização que hoje reúne cidadãos de todo o mundo pode contribuir para isso.

Thomas Piketty é Diretor de Estudos na Ecole des hautes études en sciences sociales, Ecole d’économie de Paris

Publicado originalmente em Le Monde | Tradução de Aluisio Schumacher

Racismo é um impedimento ao desenvolvimento econômico brasileiro

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Além de moralmente degradante, o preconceito é um obstáculo ao crescimento do país; não é um problema dos negros, mas da sociedade como um todo

Antonio Quintella e Lilia Moritz Schwarcz*, Especial para o Estado

20/06/2020 |

Durante muito tempo a “branquitude” – o privilégio que a sociedade colonial e europeia adquiriu e conservou no Brasil – reinou como se fosse verdade e realidade “natural”: inquestionável e, por isso, invisível. Foi assim que nos acostumamos a achar “normal” não encontrar negros e negras nos bancos das nossas melhores escolas, nas redações dos jornais, nos ambientes corporativos, na direção de instituições e até mesmo nas áreas de lazer dos bairros considerados mais nobres. Também defendemos uma suposta “meritocracia” sem atentarmos para os cortes de classe e raça que esse conceito traz; como falar em “mérito”, de uma forma geral, quando o ponto de largada é profundamente desigual? Nos habituamos, ainda, a chamar de “universal”, e sem pejas, uma história que é só europeia, e a uma arte que é eminentemente masculina e ocidental. Se a “nossa” arte e a “nossa” história carecem de adjetivação, já as demais precisam ser qualificadas como se fossem derivações subordinadas: arte africana, arte indígena, história africana, história indígena.

Tal tipo de procedimento, levado a cabo durante tantos séculos, e de forma impune, acabou gerando uma grande cegueira cultural e processos de invisibilidade social muito perversos pois nem sequer nomeados. E, em geral, onde reina o silêncio, sobra contradição. “Raça” só existe uma – a humana –, e aí estão os biólogos para comprovar. Mas desde sempre a humanidade criou outro conceito, “raça social”, e é dele que estamos aqui tratando. Qual seja, das maneiras como as sociedades “driblam a natureza”, e constroem marcadores sociais de diferença como raça, gênero, sexo, região e geração, e, assim, criam novas realidades ensejadas historicamente e ao longo do tempo.

O tema da raça entrou finalmente na agenda da nossa contemporaneidade. No entanto, se os brasileiros podem até assumir a existência do racismo no país, em geral, negam que sejam, eles próprios, racistas, e costumam jogar o preconceito no “outro”: na história, no colega, no parente, no vizinho. No entanto, o racismo existente no país toma todos; sem exceção. Ele está presente no ambiente escolar, com altos níveis de repetência entre os alunos negros; na área da saúde e basta notar como as pessoas negras são as maiores vítimas da Covid-19; na área do trabalho com poucos participando de cargos de direção; na área da cultura e da moda, ainda espaços eminentemente brancos. E não adianta culpar apenas o passado, e maldizer o legado pesado da escravidão. Nos dias de hoje temos reproduzido dados que indicam a existência de um racismo estrutural e institucional, presente nas áreas mais insuspeitas e, também, naquelas muito suspeitas.

É por isso que a questão deixou de ser apenas moral; não adianta mais dizer que não somos racistas, é passada a hora de praticarmos atos antirracistas. Como foram os colonizadores brancos que implementaram o tráfico negreiro e criaram teorias que procuraram naturalizar a diferença – como o darwinismo racial, que determinava que as raças eram ontologicamente diferentes, ou o racismo científico, o qual colocava os brancos no alto de uma pirâmide social e os negros na sua base – é hora de atuarmos como aliados nessa luta que é de todos os brasileiros. Na luta antirracista.

Não teremos uma democracia por aqui, como bem demonstra Sílvio Almeida, enquanto permitirmos que o racismo vigore e de forma tão perversa. Mas, também, jamais teremos no Brasil uma economia tão pujante e produtiva, quanto poderíamos ter e apresentar (e precisamos dela para vencer a extrema pobreza e desigualdade que nos assolam), se o racismo permanecer entre nós. A manutenção do status quo, se não o seu agravamento, não é sustentável. Ademais, essa preocupante trajetória pode colocar em risco a nossa precária estabilidade institucional.

Muito já foi dito sobre fazer crescer o bolo ou, ainda, que a subida da maré levanta todos os barcos, e que esses processos enriquecem as nações. Entretanto, as evidências das últimas décadas demonstram que ao longo desse caminho não somos todos igualmente beneficiados. Aliás, muitos sequer são beneficiados de todo. Na ausência de políticas públicas compensatórias e bem coordenadas, os benefícios vão para uns e não para outros, e, em geral, os maiores benefícios são capturados por muito poucos.

Infelizmente, a pandemia provocada pela disseminação do Covid-19 fez o bolo decrescer e a maré baixar repentina e significativamente. Nesse ambiente, que possivelmente nos fará conviver com altas taxas de desemprego e baixos níveis de ocupação e atividade por muito tempo, as desigualdades tendem a se tornar ainda mais expressivas e as vantagens percebidas por aqueles que detém o capital (seja ele intelectual e/ou financeiro) mais pronunciadas. Essas disparidades não podem ser moralmente toleráveis e, além do mais, comprometerão o desempenho da própria economia brasileira enquanto persistirem.

Diante dos inúmeros desafios introduzidos pela pandemia, em especial os de ordem econômico-social, é necessário resgatar a discussão em torno das opções disponíveis para combater a pobreza no Brasil. Ricardo Paes de Barros (et. al.) propunha, já em 2000 (Desigualdade e Pobreza no Brasil: Retrato de uma Estabilidade Inaceitável, Revista Brasileira de Ciências Sociais), que o foco no crescimento econômico como estratégia central no combate à pobreza deveria ser relativizado. O estudo àquela época apontava para (a despeito dos ciclos, transformações e dos mais variados experimentos econômicos) uma relativa estabilidade na dimensão da pobreza no país, e propunha que políticas que focassem na diminuição da desigualdade precisariam ser combinadas com aquelas que estimulassem o crescimento econômico. Não seriam essas políticas mutuamente excludentes, mas complementares. O diagnóstico feito a partir daquele minucioso estudo demonstrava a existência de uma estreita relação entre a má distribuição dos recursos e a pobreza, situação que permanece até hoje. O estudo sentenciava então que “o Brasil não é um país pobre, mas um país com muitos pobres”.

Devemos adicionar uma nova dimensão a essa discussão. O tema do racismo tem claro impacto no ambiente do trabalho, como vem mostrando Cida Bento, entre outros. As práticas e atitudes racistas alijam uma parcela considerável da nossa população, tolhendo-a de oportunidades indispensáveis e fundamentais na área da educação e ocupacional, por exemplo, impedindo-a de exercer as mais diversas atividades profissionais na plenitude do seu potencial criativo e produtivo. A eliminação do racismo é ainda mais relevante em uma sociedade tão desigual quanto a brasileira, em que, segundo dados e termos do IBGE, negros e pardos correspondem a quase 56% da população.

O Brasil já não mais se beneficia de um bônus demográfico, ao contrário. Na medida em que nossa população envelhece, nosso crescimento econômico depende, sobretudo, de um aumento significativo da produtividade. Vários estudos recentes têm sido feitos a respeito da relativa perda de dinamismo da economia brasileira nos últimos anos, apontando que isso possa estar associado à baixa produtividade do trabalho. O Professor José Pastore em artigo no Estadão (de 27 de fevereiro de 2020) sugeria que a “produtividade não resulta desta ou daquela providência, mas sim de ações orquestradas em vários campos durante muitas décadas”, notadamente no campo da educação. Sem dúvida, o aumento da produtividade também passa pela desburocratização, pela abertura da economia, pelos esforços de privatização, pela racionalização da carga tributária e maior eficiência do Estado.

Mas esses esforços terão sido insuficientes se tivermos deixado para trás metade dos brasileiros.

Se o Brasil pretende crescer de forma sustentável, precisa resgatar uma histórica dívida social. Devemos urgentemente oferecer as condições necessárias para mitigar a desigualdade, em especial a de oportunidades. É necessária uma profunda reflexão sobre a nossa sociedade, reconhecendo a riqueza da sua diversidade e estabelecendo uma agenda de inclusão que desperte, motive, engaje e permita que a população negra ocupe, com destaque e sem constrangimentos, espaço nos meios acadêmicos, culturais e empresariais.

A defesa da pauta antirracista implica, portanto, uma agenda de ações. Mas sua defesa não leva em conta apenas a “culpa” ou o mero ressarcimento; o qual, aliás, nunca foi realizado. Ela pretende mostrar que seremos muito melhores se formos mais diversos. Mais é sempre mais, quando se pretende colocar em relação potencialidades, experiências, percursos e histórias tão distintas como comuns.

Portanto, o antirracismo, além de precisar fazer parte de uma agenda republicana e democrática brasileira, precisa ser incorporado ao pensamento e à formulação da política econômica. O racismo não é apenas moralmente degradante e inaceitável, ele também é um impedimento ao pleno e sustentável desenvolvimento econômico. Não, o problema não é só dos negros, é da sociedade como um todo. E da conscientização e efetiva mobilização das nossas lideranças dependem as soluções.

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ANTONIO QUINTELLA É EMPRESÁRIO, ECONOMISTA PELA PUC-RJ E MBA PELA LONDON BUSINESS SCHOOL/UNIVERSIDADE DE LONDRES

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LILIA M. SCHWARCZ É HISTORIADORA E ANTROPÓLOGA, PROFESSORA DA USP E EM PRINCETON, CURADORA ADJUNTA PARA HISTÓRIAS DO MASP E AUTORA DE VÁRIOS LIVROS, SENDO O MAIS RECENTE ‘SOBRE O AUTORITARISMO BRASILEIRO’ (2019)