Allan Kardec, o Espiritismo e o mundo dos espíritos

0

Em meados do século XIX, a sociedade parisiense foi chacoalhada com as informações trazidas pelo pedagogo francês Hippolyte Leon Denizard Rivail, cujas teses descortinavam o mundo material e trouxeram novos instrumentos de análise, denunciando o materialismo e abrindo novos espaços para o progresso da sociedade global, o teor da novas teorias eram tão transformadoras que o intelectual francês passou a assinar suas obras com um pseudônimo, Allan Kardec, surgia neste momento O livro dos Espíritos, publicado em 1857, cujas questões debatidas se pareciam muito mais com um tratado religioso, moral, ético e científico, uma verdadeira obra multidisciplinar, versando profundamente sobre temas variados.

O século em questão apresentou grandes descobertas científicas e tecnológicas que auxiliaram no progresso da sociedade mundial, muitas das grandes inovações que estão, na atualidade, impulsionando a economia global, tiveram início naquele momento, dentre elas destacamos as descobertas do evolucionismo de Charles Darwin, os debates sobre o capitalismo como modelo dominante e excludente, estimuladas por Karl Marx e Friederich Engels, as revoluções geradas pela energia elétrica, ferrovias, o telefone e o telégrafo, além de outras grandes teorias e pensamentos sociais que impactaram sobre a coletividade.

Neste século, a Igreja ainda detinha poderes na sociedade europeia, embora seu poder estivesse restrito a algumas regiões do continente, dentre estas destacamos a península Ibérica, Portugal e Espanha, países muito afetados pelo poderio da religião católica, que ainda controlava muitas áreas e setores, dominando ainda as obras e os livros que eram publicados nestes países, influenciando tudo que os fiéis liam e pensavam, uma verdadeira política de alienação.

A Igreja detinha poderes especiais nestas regiões da Europa, materializados no chamado Santo Ofício, todos os livros de cunho religioso que, por ventura, fossem publicados na região deveriam passar pelo crivo da Igreja Católica, diante destas exigências a instituição impunha censura a algumas obras que achasse que estavam em desacordos com os seus princípios. Em 1861, num episódio que recebeu o nome de Auto da fé de Barcelona, cerca de 300 obras espíritas, de autoria de Allan Kardec e de outros correligionários, foram confiscadas pelo bispo de Barcelona e queimadas ao ar livre, sem que tenha havido qualquer ressarcimento aos credores. Apesar dos prejuízos financeiros, o atentado acabou por despertar ainda mais interesse do povo da região pela Doutrina Espírita, além de inflamar a já crescente revolta popular contra o absolutismo da Igreja Católica.

As pesquisas do pedagogo francês tiveram início em 1854, quando tomou contato com os fenômenos das mesas girantes, um fenômeno até então inexplicável, onde as pessoas rodeavam as mesas e faziam perguntas que eram prontamente respondidas pelos espíritos, uma situação que levou as elites francesas a grande agitação e movimentou a sociedade da época, gerando curiosidades, medos e interesses variados, atraindo pessoas de várias cortes da Europa. Analisando os fenômenos com grande atenção e reflexão crítica, percebe que os acontecimentos eram deveras complexo e necessitava de grandes estudos, lançando assim as bases para aquilo que viria a ser conhecido como a Doutrina dos Espíritos, unindo a religião, a ciência e a filosofia.

O pedagogo francês nasceu em 1804 e começou seus estudos e contribuições para a codificação apenas em 1854, ou seja, mais de cinco décadas depois de seu nascimento, isto só aconteceu porque neste período os ventos da inquisição e a força da Santa Sé ainda eram fortes e violentos na região, somente com o enfraquecimento destes ventos é que foi possível o surgimento de novas ideias religiosas. Neste instante Hippolyte Leon Denizard Rivail, posteriormente Allan Kardec, inicia seu apostolado como codificador e grande difusor do pensamento espírita, faz-se importante deixar claro que as contribuições do pedagogo foram fundamentais, mas a Doutrina Espírita não é obra de um único homem, a Doutrina é obra de um conjunto de espíritos de alta luminosidade que trouxeram ao mundo a chamada Terceira Revelação prometida por Jesus Cristo.

Num período de quinze anos, 1854/1869, o pedagogo francês se transformou no maior estudioso destes fenômenos sobrenaturais, buscando informações variadas, lendo e pesquisando todos estes movimentos e escrevendo tratados e livros que foram comercializados em todas as regiões do mundo, nascia neste momento, pelas mãos de Allan Kardec, uma nova religião, descrita também como uma ciência e uma filosofia, o Espiritismo, que surge para nos mostrar que existiam muitas coisas invisíveis ao olho dos seres humanos, mas presente de forma inerente nos olhos do espírito.

O escolhido para a missão apresentava características especiais, suas credenciais eram volumosas, seus estudos e pesquisas na área da educação, influenciado pelo pensador suíço Johann Heinrich Pestalozzi lhe garantiram instrumentos teóricos e analíticos para compreender as mudanças em curso na sociedade, no mundo da educação e do conhecimento e conduzir a sociedade neste novo momento histórico, onde o mundo material não mais se tornaria um imenso mistério e, aos poucos, seria descortinado de forma simples, intensa e com grande capacidade analítica e de reflexão.

As obras de Allan Kardec, inicialmente O Livro dos Espíritos (1857), O livro dos Médiuns (1861), O Evangelho Segundo o Espiritismo (1864), Céu e Inferno (1865),  e A Gênese (1868), além destas, destacamos ainda a fundação da Revista Espírita (1868), que nos mostraram que a vida não se encerra na matéria, que todos nós somos irmãos e somos interdependentes, que a morte não existe e que a verdadeira vida se dá no mundo espiritual, a matéria pode ser descrita como um momento de reencontro e progresso conjunto, onde recebemos de acordo com as nossas escolhas individuais, se passamos por dificuldades, é porque plantamos equívocos em vidas anteriores e, nesta encarnação, expiamos os nossos erros e equívocos, todos caminhamos para o progresso, a Doutrina dos Espíritos é progressista, este progredir pode demorar mais ou menos tempo, isto depende de cada indivíduo, uma doutrina que defende a verdadeira meritocracia.

Os ensinamentos trazidos pela doutrina dos espíritos impactaram diretamente em variados setores da sociedade, mexeram com as estruturas de poder e influenciaram decisões, hábitos e comportamentos, levaram indivíduos a se conscientizarem das suas dificuldades e passaram a ver a ciência como uma aliada da religião, restabelecendo uma parceria que tinha sido desfeita pela dominação mantida pela Igreja, que via na ciência um empecilho para seu intenso domínio, alienação mental e controle social.

Ao descortinar uma nova sociedade e mostrar que a morte, sempre tão temida pelas sociedades, não existe, que morrer é, na verdade, uma passagem para um outro mundo, o mundo dos espíritos, uma sociedade nova se abre para os indivíduos. O espiritismo traz uma visão de que Deus é um ser soberanamente justo e bom, que não nos pune por nossos erros e equívocos, quando erramos passamos por um processo de educação, as dificuldades devem ser vistas de forma diferente, não como punição divina, mas como um processo de autoeducação.

Hippolyte Leon Denizard Rivail se impessoalizou para codificar a Doutrina dos Espíritos, abandonou seu nome e adotou um pseudônimo, Allan Kardec, que era um de seus nomes em encarnações anteriores, quando viveu na pele de um druida, na região da Gália, adotou um pseudônimo como forma de se desvencilhar de suas ideias anteriores, mesmo assim, como grande intelectual francês, metódico, disciplinado, respeitado e competente educador, trouxe à nova revelação um caráter de maior credibilidade, respeitabilidade e confiabilidade, angariando para o movimento adeptos respeitados e estudiosos conscientes das novas ideias como instrumento de renovação da sociedade, não apenas a europeia, mas toda a sociedade mundial.

Além das obras e dos artigos que escreveu, Allan Kardec divulgou a Doutrina Espírita por todas as regiões da Europa, fez conferências e seminários em inúmeras salas e salões, participou de debates e entrevistas para jornais e revistas, além destas atividades, e da fundação da primeira casa espírita, o codificador foi o responsável pela primeira livraria espírita e pela primeira revista dedicada inteiramente ao movimento espírita (inaugurada em 1858), seu pioneirismo e exemplo de seriedade e dedicação a causa trouxe para o espiritismo um grande número de adeptos e apoiadores, que mesmo com seu desencarne trouxeram bons frutos que se espalharam para a sociedade mundial, principalmente para o Brasil, atualmente a nação que mais abraçou o movimento espírita, o que motivou o livro clássico de Humberto de Campos, intitulado: Brasil: coração do mundo, pátria do evangelho, que destaca o papel fundamental da nação brasileira neste instante de renovação e de grandes transformações da sociedade mundial.

            O movimento espírita tem em Allan Kardec seu grande divulgador, suas ideias estão apoiadas nas contribuições trazidas pelo espírito da verdade e por um grande contingente de espíritos que participaram da codificação, entidades altamente avançadas nas mais variadas áreas e setores que, ao serem indagados por Kardec, descortinaram assuntos variados e de grande importância para a sociedade, pensamentos estes baseados nos ensinamentos de Jesus Cristo, o maior espírito que passou pelo planeta Terra, considerado pelo movimento espírita o Governador do Planeta Terra, suas contribuições foram tamanhas que a sociedade se dividiu entre o antes e o depois de Jesus Cristo, com isso, percebemos que a Doutrina dos Espíritos tem na religião uma de suas bases mais consistentes, aliando ainda a Ciência e a Filosofia, mas como nos diz o doutor Inácio Ferreira, a base da doutrina está e sempre estará em Jesus Cristo.

Com sua morte precoce, Allan Kardec recebeu bela homenagem e foi seguido por intelectuais de respeito que abraçaram a Doutrina dos Espíritos e deram prosseguimento a suas obras, dentre seus seguidores mais conhecidos, podemos citar Leon Denis, Gabriel Delanne, Arthur Conan Doyle, Camille Flamarion, Cesare Lombroso, entre outros. Todas estas personalidades se destacaram em suas áreas de atuação, todos eram intelectuais e pensadores, além de cientistas que viam no Espiritismo uma doutrina afeita as descobertas científicas, como sempre destacou Kardec: “…Se o Espiritismo disser uma coisa e a Ciência disser outra, fique com a Ciência”.

            Ao contrário de outras crenças e filosofias religiosas, a Doutrina Espírita não cultua santos e personalidades, sabe que todos temos qualidades e defeitos, respeitamos as pessoas, suas ideias e pensamentos, diante disso, percebemos a importância de Allan Kardec para o espiritismo e para a humanidade de uma forma geral, defendemos seu legado, sua história, suas contribuições e todas as informações preciosas que nos trouxe, mas sem cultos exteriores e práticas de canonização como outras o fazem constantemente.

As revelações trazidas em O livro dos Espíritos mostravam uma realidade diferente daquela defendida pela religião dominante, destacava a existência de um Deus amoroso, analisava o sofrimento por uma ótica diferente, defendia a inexistência do céu e do inferno e mostrava claramente a importância das leituras e dos estudos constantes, instrumentos de crescimento e desenvolvimento do ser humano.

Ao matar a morte e defender abertamente a existência do mundo espiritual e a continuidade da vida, a Doutrina mostra a importância do ser bom, do fazer o bem, da oração e do pensamento positivo, somente tendo consciência da importância da vida e do viver é que os seres humanos poderão ter consciência de que tudo que existe no mundo, desde as coisas mais simples as mais complexas, nasceram de um único ser, o Deus todo poderoso que criou o homem a sua imagem e semelhança.

A Doutrina dos Espíritos nos mostra a importância da reencarnação, sem ela temos dificuldades de compreender a bondade de Deus, sem ela temos grande dificuldade de entender a noção e a importância do conceito de meritocracia, se o mundo acaba com a morte do corpo físico, como podemos ser julgados se muitos nascem na bonança e no progresso material e emocional, enquanto outros nascem na miséria e na indigência.

Allan Kardec nos mostra que o verdadeiro homem novo é aquele que está sintonizado nas mudanças do mundo, aquele que busca se analisar constantemente e compreender suas limitações e potencialidades e, constantemente busca sua evolução, pois existem muitas moradas na casa de meu pai e todos temos consciência disso.

No momento de seu sepultamento, os discursos emocionados e as honrarias eram constantes, dentre elas, destacamos a do colega, admirador e astrônomo francês Camille Flamarion, que proferiu um longo discurso, ontem enfatizou: “Voltaste a esse mundo donde viemos e colhes o fruto de teus estudos terrestres. Aos nossos pés dorme o teu envoltório, extinguiu-te o teu cérebro, fecharam-se-te os olhos para não mais se abrirem, não mais ouvida será a sua palavra… Sabemos que todos havemos de mergulhar nesse mesmo último sono, de volver a essa mesma inércia, a esse mesmo pó. Mas, não é nesse envoltório que pomos a nossa glória e a nossa esperança. Tomba o corpo, a alma permanece e retorna ao espaço. Encontrar-nos-emos num mundo melhor e no céu imenso onde usaremos das nossas mais preciosas faculdades, onde continuaremos os estudos para cujo desenvolvimento a Terra é teatro por demais acanhado. (…) Até à vista, meu caro Allan Kardec, até a vista!”

“Os desafios do meio ambiente são urgentes” diz André Trigueiro.

0

Concedida em 14 de novembro de 2015

André Trigueiro, autor do livro Espiritismo e Ecologia (FEB), em entrevista para o site O Reformador, considera que a Lei de Conservação de O Livro dos Espíritos é um tratado de sustentabilidade.

Reformador: Como surgiu seu interesse em relacionar Espiritismo e Ecologia?

Trigueiro: Sou espírita, jornalista interessado em sustentabilidade há pelo menos 20 anos, e tenho uma pós-graduação em Gestão Ambiental pela COPPE/UFRJ. A combinação desses fatores me precipitou na direção dessa linha de investigação. O livro – já na terceira edição – não esgota o assunto, mas deixa clara a razão pela qual nós espíritas devemos ter atenção redobrada nesta encarnação para com os limites do planeta que generosamente nos acolhe. A situação é difícil e a Humanidade é a responsável direta pela crise ambiental sem precedentes que experimentamos no momento. A educação para a sustentabilidade encerra princípios éticos e morais que são caros à Doutrina Espírita. Devo dizer que me incomodava muito uma certa distância que várias casas espíritas mantinham do tema “meio ambiente”, como se a exaltação dos valores espirituais nos eximisse de responsabilidade para com o que acontece aqui e agora em nossa casa planetária. Mas isso está mudando.

Reformador: Que destaque daria, em obras de Kardec, com relação ao tema?

Trigueiro: Bem entendida, a posição assumida pelo Espiritismo em favor da vida – condenando o aborto, a eutanásia e o suicídio alcança também a dimensão planetária na condenação do ecocídio, ou seja, a capacidade de a Humanidade realizar escolhas que reduzem nossas possibilidades de existência nesse plano. Todo o capítulo de O Livro dos Espíritos que versa sobre a Lei de Conservação é um tratado de sustentabilidade. Quando a Doutrina estabelece a diferença entre o que é necessário e o que é supérfluo, e nos orienta em relação ao uso inteligente dos recursos naturais (“A Terra produziria sempre o necessário, se o homem soubesse contentar-se com o necessário”) há sinergia absoluta em relação aos modernos relatórios da ONU que condenam os atuais meios de produção e de consumo. Outro tema que me interessa muito é a influência de nossos sentimentos e pensamentos na qualidade da psicosfera terrena. Temos o poder de influenciar coletivamente a Natureza, através da qualidade e da intensidade de nossas vibrações. A Doutrina Espírita também reconhece o trabalho dos elementais, seres encarregados de proteger a Natureza e sustentar seus processos cíclicos. Outra informação valiosa remete à identificação visceral que temos com a Terra: somos feitos dos mesmos elementos que constituem o planeta, e isso vale para o corpo material ou o perispírito. “Do pó viestes para o pó voltareis” [Gênesis, 3:19] não é poesia bíblica, é Ciência. E o que acontece com a terra, o ar e a água, portanto, fora de nós, reverbera dentro de nós. Estamos todos conectados.

Reformador: Você relaciona eventuais desrespeitos ao meio ambiente às alterações climáticas?

Trigueiro: O livro de nossa autoria traz informações atualizadas sobre a maior crise ambiental da História da Humanidade e como somos responsáveis por isso. Na verdade, somos parte do problema e devemos ser parte da solução. A crise climática é a mais preocupante e demanda soluções urgentes. Mas nossas atenções devem estar voltadas também para a destruição
sistemática da biodiversidade, a produção monumental de lixo, a escassez de recursos hídricos, a transgenia irresponsável, o consumismo desvairado, o crescimento desordenado das cidades e outros problemas que fazem parte do nosso tempo e exigem respostas de nossa parte ainda nesta existência. O espírita está sendo convocado à ação aqui e agora. A maior nação espírita do planeta está situada no único país com nome de árvore, que concentra o maior estoque de água doce (superficial de rio ou subterrânea), a maior quantidade de solo fértil, o maior número de espécies conhecidas e catalogadas. Mera coincidência?

Reformador: Como os espíritas têm reagido ao seu livro e em eventos que participa?

Trigueiro: Percebo enorme receptividade e acolhimento aos assuntos do livro. Tenho recebido muitas manifestações (especialmente em mensagens endereçadas pela Internet) de espíritas que usam o livro para palestras, trabalhos em mocidades, ou para orientar mudanças estruturais nas rotinas da própria instituição. É particularmente interessante a reação das pessoas à forma como abordamos a questão do consumo de carne. Se for verdade que o consumo de carne na alimentação é condizente com o nível evolutivo em que muitos de nós nos encontramos, também é verdade que isso não deve justificar o uso de métodos cruéis, dolorosos, que impõem sofrimento desnecessário aos nossos irmãos menos evoluídos da Criação. O Brasil é o maior produtor de proteína animal do mundo e muitos espíritas se surpreendem com o circo dos horrores que se esconde por detrás dessa indústria. Como eventuais consumidores de carne, devemos zelar pelo bem-estar animal e pelo que se convencionou chamar de “abate humanitário” (o nome é esquisito, mas é assim mesmo).

Reformador: Que ações recomendaria aos espíritas?

Trigueiro: Precisamos fazer agora tudo o que esteja ao nosso alcance em favor do uso responsável e ético dos recursos naturais não renováveis do planeta. Muitos espíritas se acomodam pelo fato de o mundo de regeneração estar a caminho. Supõem que não haja o que fazer em relação ao planeta, pois que o destino do orbe já está selado. Convém recordar as explicações de Santo Agostinho, em O Evangelho segundo o Espiritismo, sobre as diferentes categorias de mundos habitados. Ao explicar o que é o mundo de regeneração, Santo Agostinho confirma a condição de orbe mais evoluído ética e moralmente, entretanto, não há qualquer menção às qualidades ambientais deste mundo. Ou seja, podemos deduzir que os suprimentos de água limpa, solo fértil, ar puro, biodiversidade e as condições climáticas serão definidos a partir das escolhas que realizarmos agora, e que se persistirmos em não nos modificarmos nesta encarnação (hábitos, comportamentos, estilos de vida e padrões de consumo), poderemos determinar uma situação curiosa num futuro próximo: o planeta cuja vibração se eleva para hospedar uma humanidade mais evoluída ética e moralmente seria o mesmo destroçado ambientalmente. Não merecemos isso. Podemos reduzir drasticamente este risco se fizermos o dever de casa já. Sabendo usar, não vai faltar.

Reformador: A criança também poderia ser precocemente educada nesse sentido?

Trigueiro: A criança deve ser educada para lidar com os desafios do mundo em que vive. Uma escola pública ou privada que ignore o senso de urgência que deve reger um projeto pedagógico comprometido com a sustentabilidade, é uma escola que não merece ser chamada de “instituição de ensino”. O mundo mudou muito nas últimas décadas. As escolas e universidades que não estiverem minimamente antenadas com esse novo tempo, não poderão formar cidadãos capacitados para enfrentar o que vem por aí. Convém buscar informação e entender o contexto civilizatório em que estamos inexoravelmente imersos.

Reformador: Uma mensagem ao leitor de Reformador.

Trigueiro: Que o mundo será um dia um lugar melhor e mais justo, não há dúvida alguma. A grande questão ainda sem resposta é: haverá tempo para que esse mundo melhor e mais justo seja também um mundo ambientalmente sadio e agradável? Depende de nós. Qual a sua escolha?

 

 

 

 

Entrevista com André Trigueiro

Concedida em 14 de novembro de 2015

André Trigueiro, autor do livro Espiritismo e Ecologia (FEB), em entrevista para o site O Reformador, considera que a Lei de Conservação de O Livro dos Espíritos é um tratado de sustentabilidade.

Reformador: Como surgiu seu interesse em relacionar Espiritismo e Ecologia?

Trigueiro: Sou espírita, jornalista interessado em sustentabilidade há pelo menos 20 anos, e tenho uma pós-graduação em Gestão Ambiental pela COPPE/UFRJ. A combinação desses fatores me precipitou na direção dessa linha de investigação. O livro – já na terceira edição – não esgota o assunto, mas deixa clara a razão pela qual nós espíritas devemos ter atenção redobrada nesta encarnação para com os limites do planeta que generosamente nos acolhe. A situação é difícil e a Humanidade é a responsável direta pela crise ambiental sem precedentes que experimentamos no momento. A educação para a sustentabilidade encerra princípios éticos e morais que são caros à Doutrina Espírita. Devo dizer que me incomodava muito uma certa distância que várias casas espíritas mantinham do tema “meio ambiente”, como se a exaltação dos valores espirituais nos eximisse de responsabilidade para com o que acontece aqui e agora em nossa casa planetária. Mas isso está mudando.

 

Reformador: Que destaque daria, em obras de Kardec, com relação ao tema?

Trigueiro: Bem entendida, a posição assumida pelo Espiritismo em favor da vida – condenando o aborto, a eutanásia e o suicídio alcança também a dimensão planetária na condenação do ecocídio, ou seja, a capacidade de a Humanidade realizar escolhas que reduzem nossas possibilidades de existência nesse plano. Todo o capítulo de O Livro dos Espíritos que versa sobre a Lei de Conservação é um tratado de sustentabilidade. Quando a Doutrina estabelece a diferença entre o que é necessário e o que é supérfluo, e nos orienta em relação ao uso inteligente dos recursos naturais (“A Terra produziria sempre o necessário, se o homem soubesse contentar-se com o necessário”) há sinergia absoluta em relação aos modernos relatórios da ONU que condenam os atuais meios de produção e de consumo. Outro tema que me interessa muito é a influência de nossos sentimentos e pensamentos na qualidade da psicosfera terrena. Temos o poder de influenciar coletivamente a Natureza, através da qualidade e da intensidade de nossas vibrações. A Doutrina Espírita também reconhece o trabalho dos elementais, seres encarregados de proteger a Natureza e sustentar seus processos cíclicos. Outra informação valiosa remete à identificação visceral que temos com a Terra: somos feitos dos mesmos elementos que constituem o planeta, e isso vale para o corpo material ou o perispírito. “Do pó viestes para o pó voltareis” [Gênesis, 3:19] não é poesia bíblica, é Ciência. E o que acontece com a terra, o ar e a água, portanto, fora de nós, reverbera dentro de nós. Estamos todos conectados.

Reformador: Você relaciona eventuais desrespeitos ao meio ambiente às alterações climáticas?

Trigueiro: O livro de nossa autoria traz informações atualizadas sobre a maior crise ambiental da História da Humanidade e como somos responsáveis por isso. Na verdade, somos parte do problema e devemos ser parte da solução. A crise climática é a mais preocupante e demanda soluções urgentes. Mas nossas atenções devem estar voltadas também para a destruição
sistemática da biodiversidade, a produção monumental de lixo, a escassez de recursos hídricos, a transgenia irresponsável, o consumismo desvairado, o crescimento desordenado das cidades e outros problemas que fazem parte do nosso tempo e exigem respostas de nossa parte ainda nesta existência. O espírita está sendo convocado à ação aqui e agora. A maior nação espírita do planeta está situada no único país com nome de árvore, que concentra o maior estoque de água doce (superficial de rio ou subterrânea), a maior quantidade de solo fértil, o maior número de espécies conhecidas e catalogadas. Mera coincidência?

Reformador: Como os espíritas têm reagido ao seu livro e em eventos que participa?

Trigueiro: Percebo enorme receptividade e acolhimento aos assuntos do livro. Tenho recebido muitas manifestações (especialmente em mensagens endereçadas pela Internet) de espíritas que usam o livro para palestras, trabalhos em mocidades, ou para orientar mudanças estruturais nas rotinas da própria instituição. É particularmente interessante a reação das pessoas à forma como abordamos a questão do consumo de carne. Se for verdade que o consumo de carne na alimentação é condizente com o nível evolutivo em que muitos de nós nos encontramos, também é verdade que isso não deve justificar o uso de métodos cruéis, dolorosos, que impõem sofrimento desnecessário aos nossos irmãos menos evoluídos da Criação. O Brasil é o maior produtor de proteína animal do mundo e muitos espíritas se surpreendem com o circo dos horrores que se esconde por detrás dessa indústria. Como eventuais consumidores de carne, devemos zelar pelo bem-estar animal e pelo que se convencionou chamar de “abate humanitário” (o nome é esquisito, mas é assim mesmo).

Reformador: Que ações recomendaria aos espíritas?

Trigueiro: Precisamos fazer agora tudo o que esteja ao nosso alcance em favor do uso responsável e ético dos recursos naturais não renováveis do planeta. Muitos espíritas se acomodam pelo fato de o mundo de regeneração estar a caminho. Supõem que não haja o que fazer em relação ao planeta, pois que o destino do orbe já está selado. Convém recordar as explicações de Santo Agostinho, em O Evangelho segundo o Espiritismo, sobre as diferentes categorias de mundos habitados. Ao explicar o que é o mundo de regeneração, Santo Agostinho confirma a condição de orbe mais evoluído ética e moralmente, entretanto, não há qualquer menção às qualidades ambientais deste mundo. Ou seja, podemos deduzir que os suprimentos de água limpa, solo fértil, ar puro, biodiversidade e as condições climáticas serão definidos a partir das escolhas que realizarmos agora, e que se persistirmos em não nos modificarmos nesta encarnação (hábitos, comportamentos, estilos de vida e padrões de consumo), poderemos determinar uma situação curiosa num futuro próximo: o planeta cuja vibração se eleva para hospedar uma humanidade mais evoluída ética e moralmente seria o mesmo destroçado ambientalmente. Não merecemos isso. Podemos reduzir drasticamente este risco se fizermos o dever de casa já. Sabendo usar, não vai faltar.

Reformador: A criança também poderia ser precocemente educada nesse sentido?

Trigueiro: A criança deve ser educada para lidar com os desafios do mundo em que vive. Uma escola pública ou privada que ignore o senso de urgência que deve reger um projeto pedagógico comprometido com a sustentabilidade, é uma escola que não merece ser chamada de “instituição de ensino”. O mundo mudou muito nas últimas décadas. As escolas e universidades que não estiverem minimamente antenadas com esse novo tempo, não poderão formar cidadãos capacitados para enfrentar o que vem por aí. Convém buscar informação e entender o contexto civilizatório em que estamos inexoravelmente imersos.

Reformador: Uma mensagem ao leitor de Reformador.

Trigueiro: Que o mundo será um dia um lugar melhor e mais justo, não há dúvida alguma. A grande questão ainda sem resposta é: haverá tempo para que esse mundo melhor e mais justo seja também um mundo ambientalmente sadio e agradável? Depende de nós. Qual a sua escolha?

 

Entrevista com André Trigueiro

Concedida em 14 de novembro de 2015

André Trigueiro, autor do livro Espiritismo e Ecologia (FEB), em entrevista para o site O Reformador, considera que a Lei de Conservação de O Livro dos Espíritos é um tratado de sustentabilidade.

Reformador: Como surgiu seu interesse em relacionar Espiritismo e Ecologia?

Trigueiro: Sou espírita, jornalista interessado em sustentabilidade há pelo menos 20 anos, e tenho uma pós-graduação em Gestão Ambiental pela COPPE/UFRJ. A combinação desses fatores me precipitou na direção dessa linha de investigação. O livro – já na terceira edição – não esgota o assunto, mas deixa clara a razão pela qual nós espíritas devemos ter atenção redobrada nesta encarnação para com os limites do planeta que generosamente nos acolhe. A situação é difícil e a Humanidade é a responsável direta pela crise ambiental sem precedentes que experimentamos no momento. A educação para a sustentabilidade encerra princípios éticos e morais que são caros à Doutrina Espírita. Devo dizer que me incomodava muito uma certa distância que várias casas espíritas mantinham do tema “meio ambiente”, como se a exaltação dos valores espirituais nos eximisse de responsabilidade para com o que acontece aqui e agora em nossa casa planetária. Mas isso está mudando.

 

Reformador: Que destaque daria, em obras de Kardec, com relação ao tema?

Trigueiro: Bem entendida, a posição assumida pelo Espiritismo em favor da vida – condenando o aborto, a eutanásia e o suicídio alcança também a dimensão planetária na condenação do ecocídio, ou seja, a capacidade de a Humanidade realizar escolhas que reduzem nossas possibilidades de existência nesse plano. Todo o capítulo de O Livro dos Espíritos que versa sobre a Lei de Conservação é um tratado de sustentabilidade. Quando a Doutrina estabelece a diferença entre o que é necessário e o que é supérfluo, e nos orienta em relação ao uso inteligente dos recursos naturais (“A Terra produziria sempre o necessário, se o homem soubesse contentar-se com o necessário”) há sinergia absoluta em relação aos modernos relatórios da ONU que condenam os atuais meios de produção e de consumo. Outro tema que me interessa muito é a influência de nossos sentimentos e pensamentos na qualidade da psicosfera terrena. Temos o poder de influenciar coletivamente a Natureza, através da qualidade e da intensidade de nossas vibrações. A Doutrina Espírita também reconhece o trabalho dos elementais, seres encarregados de proteger a Natureza e sustentar seus processos cíclicos. Outra informação valiosa remete à identificação visceral que temos com a Terra: somos feitos dos mesmos elementos que constituem o planeta, e isso vale para o corpo material ou o perispírito. “Do pó viestes para o pó voltareis” [Gênesis, 3:19] não é poesia bíblica, é Ciência. E o que acontece com a terra, o ar e a água, portanto, fora de nós, reverbera dentro de nós. Estamos todos conectados.

Reformador: Você relaciona eventuais desrespeitos ao meio ambiente às alterações climáticas?

Trigueiro: O livro de nossa autoria traz informações atualizadas sobre a maior crise ambiental da História da Humanidade e como somos responsáveis por isso. Na verdade, somos parte do problema e devemos ser parte da solução. A crise climática é a mais preocupante e demanda soluções urgentes. Mas nossas atenções devem estar voltadas também para a destruição
sistemática da biodiversidade, a produção monumental de lixo, a escassez de recursos hídricos, a transgenia irresponsável, o consumismo desvairado, o crescimento desordenado das cidades e outros problemas que fazem parte do nosso tempo e exigem respostas de nossa parte ainda nesta existência. O espírita está sendo convocado à ação aqui e agora. A maior nação espírita do planeta está situada no único país com nome de árvore, que concentra o maior estoque de água doce (superficial de rio ou subterrânea), a maior quantidade de solo fértil, o maior número de espécies conhecidas e catalogadas. Mera coincidência?

Reformador: Como os espíritas têm reagido ao seu livro e em eventos que participa?

Trigueiro: Percebo enorme receptividade e acolhimento aos assuntos do livro. Tenho recebido muitas manifestações (especialmente em mensagens endereçadas pela Internet) de espíritas que usam o livro para palestras, trabalhos em mocidades, ou para orientar mudanças estruturais nas rotinas da própria instituição. É particularmente interessante a reação das pessoas à forma como abordamos a questão do consumo de carne. Se for verdade que o consumo de carne na alimentação é condizente com o nível evolutivo em que muitos de nós nos encontramos, também é verdade que isso não deve justificar o uso de métodos cruéis, dolorosos, que impõem sofrimento desnecessário aos nossos irmãos menos evoluídos da Criação. O Brasil é o maior produtor de proteína animal do mundo e muitos espíritas se surpreendem com o circo dos horrores que se esconde por detrás dessa indústria. Como eventuais consumidores de carne, devemos zelar pelo bem-estar animal e pelo que se convencionou chamar de “abate humanitário” (o nome é esquisito, mas é assim mesmo).

Reformador: Que ações recomendaria aos espíritas?

Trigueiro: Precisamos fazer agora tudo o que esteja ao nosso alcance em favor do uso responsável e ético dos recursos naturais não renováveis do planeta. Muitos espíritas se acomodam pelo fato de o mundo de regeneração estar a caminho. Supõem que não haja o que fazer em relação ao planeta, pois que o destino do orbe já está selado. Convém recordar as explicações de Santo Agostinho, em O Evangelho segundo o Espiritismo, sobre as diferentes categorias de mundos habitados. Ao explicar o que é o mundo de regeneração, Santo Agostinho confirma a condição de orbe mais evoluído ética e moralmente, entretanto, não há qualquer menção às qualidades ambientais deste mundo. Ou seja, podemos deduzir que os suprimentos de água limpa, solo fértil, ar puro, biodiversidade e as condições climáticas serão definidos a partir das escolhas que realizarmos agora, e que se persistirmos em não nos modificarmos nesta encarnação (hábitos, comportamentos, estilos de vida e padrões de consumo), poderemos determinar uma situação curiosa num futuro próximo: o planeta cuja vibração se eleva para hospedar uma humanidade mais evoluída ética e moralmente seria o mesmo destroçado ambientalmente. Não merecemos isso. Podemos reduzir drasticamente este risco se fizermos o dever de casa já. Sabendo usar, não vai faltar.

Reformador: A criança também poderia ser precocemente educada nesse sentido?

Trigueiro: A criança deve ser educada para lidar com os desafios do mundo em que vive. Uma escola pública ou privada que ignore o senso de urgência que deve reger um projeto pedagógico comprometido com a sustentabilidade, é uma escola que não merece ser chamada de “instituição de ensino”. O mundo mudou muito nas últimas décadas. As escolas e universidades que não estiverem minimamente antenadas com esse novo tempo, não poderão formar cidadãos capacitados para enfrentar o que vem por aí. Convém buscar informação e entender o contexto civilizatório em que estamos inexoravelmente imersos.

Reformador: Uma mensagem ao leitor de Reformador.

Trigueiro: Que o mundo será um dia um lugar melhor e mais justo, não há dúvida alguma. A grande questão ainda sem resposta é: haverá tempo para que esse mundo melhor e mais justo seja também um mundo ambientalmente sadio e agradável? Depende de nós. Qual a sua escolha?

Quarenta anos de baixo crescimento e desigualdades crescentes

0

A economia brasileira vive um momento de grande inquietação, marcado por um período de baixo crescimento do produto interno bruto e um incremento da desigualdade e da pobreza, depois de anos de fortes perspectivas positivas, onde o Brasil era descrito como uma sociedade com alto potencial de desenvolvimento e maior presença na sociedade global, atualmente somos uma economia inexpressiva, perdemos espaços duramente conquistados anteriormente e com retrocessos marcantes em vários setores econômicos e produtivos.

O Brasil apresentou uma taxa de crescimento per capita de 4,5% ao ano, de 1950 a 1980, uma taxa extraordinária, se compararmos com os tristes 0,9% ao ano desde então, percebemos uma piora considerável na situação econômica e social do país, criando momento de desequilíbrios e constrangimentos crescentes. O país que se destacou na economia internacional no período posterior a segunda guerra mundial, se caracterizando como o segundo país em crescimento econômico, perdendo apenas para o Japão, perdeu de forma considerável seu motor de crescimento, jogando a economia num período de baixo crescimento, piora nas condições sociais e aumento na degradação da infraestrutura.

O Fundo Monetário Internacional compara o crescimento do Brasil com o dos demais países em desenvolvimento e com os países ricos: no período 1980-2018 “o crescimento do PIB per capita brasileiro foi de 0,9% ao ano, em média, enquanto as outras economias emergentes e as em desenvolvimento cresceram 3% e as economias desenvolvidas apresentaram crescimento de 1,7%”.

Depois de décadas de forte crescimento econômico e forte potencial de desenvolvimento, o país entrou em um ciclo de baixo crescimento e uma piora considerável nos indicadores sociais, com uma redução substancial na classe média, uma forte desindustrialização, uma piora nas condições de vida das cidades e uma situação política degradante e com forte potencial de devastação.

Enquanto, na década de 80, apresentávamos um produto interno bruto per capita duas vezes superior ao da Coréia do Sul, na atualidade o país asiático apresenta um PIB per capita duas vezes maior que o nosso, diante disso, percebemos que nossa sociedade adotou uma postura diferente dos sul coreanos e ficamos para trás na corrida do desenvolvimento econômico, somos um país de renda média sem perspectivas de ascensão para uma economia de alta renda, enquanto os sul coreanos avançaram rapidamente para a posição privilegiada de uma economia desenvolvida.

Nos anos 70/80, o Brasil aprofundou seu modelo de substituição de importação, mesmo depois dos fortes choques do petróleo e dos juros internacionais, que levaram a crise da dívida e a queda do crescimento, fechamos nossa economia, privilegiamos alguns setores mais influentes politicamente e criamos as reservas de mercado para nosso setor industrial, fortemente subsidiado e marcado por grandes e vultosas políticas protecionistas, acreditando que desta forma conseguiríamos alcançar um sucesso maior na corrida do desenvolvimento econômico   e na melhoria das condições de vida das camadas mais necessitadas.

Neste mesmo momento, os sul coreanos adotaram uma política diferente, optaram por uma abertura econômica planejada, fortes investimentos em tecnologias, redução dos subsídios, prudência fiscal, depreciação da moeda para incrementar as exportações e uma reorientação na estratégia de crescimento, que passou de industrialização baseada na substituição das importações à industrialização baseada na exportação de manufaturados, com isso, os asiáticos passaram a ganhar espaços preciosos no comércio internacional, atraindo novos investimentos produtivos e investindo fortemente em capital humano, alcançando melhorias consideráveis para sua população.

Depois de anos de forte crescimento econômico, percebemos grandes conglomerados sul coreanos concorrendo em setores de alta tecnologia e automóveis, com as empresas Samsung, LG, Hyundai e Kia, quatro grandes empresas que concorrem em mercados internacionais de ponta, contrastando com a inexistência de empresas brasileiras nestes setores, as que temos apresentam-se como empresas produtoras de produtos primários, como a Petrobrás e a Vale.

Enquanto o país asiático aumentou fortemente os investimentos em educação, transformando-a em sua prioridade central, revendo políticas ultrapassadas, melhorando a formação dos professores, aumentando a atratividade da carreira docente, introduzindo instrumentos de avaliação e aproximando as escolas e universidades das empresas, com isso, impulsionaram as pesquisas científicas e melhoraram os ambientes de aprendizados, o resultado foi uma forte melhoria no sistema educacional e um avanço nas avaliações internacionais, colocando os alunos do país nas melhores colocações do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA), realizado a cada três anos pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

O modelo de substituição de importação gerou crescimento em muitos países e regiões, o Brasil foi um exemplo exitoso deste crescimento acelerado no período 1950-1980, depois deste período esbarrou nas limitações do mercado interno, um mercado fortemente marcado pela concentração de renda e oligopolizado, que impedem economias de escala e a especialização, essenciais para a manutenção do crescimento. Alguns países transformaram seu modelo, saindo da substituição de importação e passando para um enfoque maior nas exportações, com redução de tarifas de importação e taxas de câmbio apreciada e com mais estabilidade, sem grandes flutuações. Depois passaram a impulsionar o crescimento baseado no mercado doméstico, depreciando a moeda e ganhando mercados internacionais e no desenvolvimento tecnológico, como fizeram Coréia do Sul, Japão e China.

O Brasil seguiu um caminho diferente dos sul coreanos, ao invés de iniciar um novo modelo de industrialização, optou por aprofundar o modelo construído anteriormente, lançando, nos anos 70, a segunda fase do programa de substituição de importações, baseados em bens de capitais, energias e insumos industriais, aumentando as barreiras às importações, mantendo a moeda apreciada e introduzindo políticas fiscais fortemente expansionistas, que resultaram numa piora da situação econômica e na perda do dinamismo produtivo, com graves desequilíbrios sociais e políticos, lembremos que, nesta época vivíamos em um país autoritário governado por militares, baseado num regime iniciado com o golpe de 1964, cuja discussão política inexistia.

Com relação ao Brasil, percebemos uma considerável piora nas condições econômicas do país depois de 1980, diante disso, economistas independentes e organizações internacionais passaram a discutir a situação brasileira, de uma economia marcada por forte crescimento econômico no período 1950-1980, que colocou o país na vanguarda, com grandes perspectivas de desenvolvimento econômico e pretensões hegemônicas, como este crescimento não se efetivou, o  país se transformou em uma economia periférica envolta em variados problemas econômicos e conflitos políticos e sociais, afastando-nos do crescimento econômico almejado e, principalmente, do desenvolvimento, sonho tão alentado em períodos anteriores.

O Fundo Monetário Internacional (FMI), lançou um livro recentemente intitulado “Brazil: boom, bust, and the Road to Recovery” com uma análise de economistas da instituição e acadêmicos brasileiros, nesta publicação, o Fundo propõe uma série de iniciativas de politica econômica, divididas entre aquelas voltadas para o equilíbrio de curto prazo (aperfeiçoar o tripé macroeconômico de 1999, incluindo a autonomia formal do Banco Central, aprofundar a consolidação fiscal, algo que requer a aprovação da reforma da Previdência), além de medidas de longo prazo, como melhorar a competitividade da economia brasileira, simplificar o sistema tributário, aumentar a eficiência do mercado de crédito, reformar o mercado de trabalho, promover a abertura da economia brasileira, combater a corrupção e melhorar a infraestrutura, redução da burocracia, todas estas medidas são vistas como medidas liberais que darão impulso ao sistema econômico e produtivo.

As medidas liberais, ou neoliberais, são bastante atrativas e, vistas de uma forma geral, tendem a convencer os incautos muito rapidamente, algumas delas se caracterizam por uma grande transformação na economia e, nesta transformação, graves desequilíbrios em indicadores sociais, aumento da pobreza e incremento da desigualdade. Estes impactos negativos acontecem porque grande parte dos setores econômicos e produtivos apresentam grandes dificuldades para competir no mercado externo, sobrevivem graças a incentivos e subsídios governamentais crescentes, para isso se utilizam de suas políticas de fortes lobbies, garantindo os benefícios e transferindo aos consumidores nacionais produtos com preços elevados e de menor qualidade quando comparados a similares internacionais.

Como destaca Bresser Pereira, considerado por muitos economistas liberais como um jurássico: “A solução liberal é impensável; falta ao liberalismo econômico a ideia de nação e a capacidade de combinar de forma equilibrada a coordenação econômica do mercado (insubstituível quando este é competitivo) e a do Estado, imprescindível para os setores não competitivos e para os cinco preços macroeconômicos que o mercado não tem capacidade de coordenar. A solução desenvolvimentista é uma alternativa, mas desde que não seja desfigurada pelo populismo fiscal ou por pura incompetência”.

O Brasil não conseguiu garantir um amplo crescimento de sua produtividade, manteve durante muitos anos o modelo de substituição de importação, além de insistir neste modelo quando outros países o tinha abandonado, não investiu a contento na educação e capacitação de sua mão de obra, fechou sua economia e adotou políticas com reserva de mercado para setores ineficientes e de baixa produtividade, além disso adotou uma política de câmbio apreciado para controlar a inflação galopante herdada dos governos militares e, com isso, gerou graves constrangimentos ao setor industrial, que chegou a representar 28% do produto interno bruto e, na atualidade, está na casa dos 11%, um setor importante que sempre gerou bons empregos e potencial de crescimento tecnológico, com esta política cambial os empregos foram gerados em outras economias.

Outro ponto fundamental nesta equação da perda de importância da economia brasileira na economia global, foi a ausência da abertura econômica, o país protegeu de forma excessiva sua estrutura produtiva levando-a a ineficiência, vide como exemplo a indústria automobilística e a indústria dos computadores, setores fortemente protegidos e com baixa capacidade de competição no mercado internacional, ao contrário dos congêneres sul coreanos. Estes setores são importantes para a economia mundial, em ambos o Brasil apresentou bons potenciais de competitividade em décadas anteriores, mas, infelizmente ao se fechar e adotar políticas protecionistas, condenou-os a uma reserva de mercado atrasada e fortemente corporativista, os resultados estão mais nítidos nos dias atuais, sem concorrência nossa economia não vai conseguir ganhar mercado, não estamos defendendo uma abertura acelerada, mas uma política compactuada com os setores, uma redução das alíquotas em 4 ou 5 anos, acompanhada por uma depreciação compensatória, investimentos maciços em infraestrutura e controle dos monopólios no setor de serviços.

Esta abertura econômica pactuada e planejada com os setores produtivos deve priorizar novos acordos comerciais, impulsionando acordos além dos estabelecidos no âmbito do Mercosul, que em anos anteriores vem sendo desprestigiado devido as crises dos países membros, buscar novos acordos e definir um interesse mais efetivo para os mercados externos tende a costurar novos espaços para nossos produtos e para nossos setores econômicos e produtivos, gerando mais empregos e uma maior atração de moedas conversíveis.

A economia brasileira pode ser descrita como uma economia muito fechada, a razão de comércio exterior sobre o produto interno bruto está próxima da 25%, enquanto economias emergentes grandes e dinâmicas, como a China e a Índia, apresentam razões próximas a 40%, mesmo defendendo uma abertura econômica, faz-se necessário um gradualismo, um planejamento e a construção de uma agenda clara de competitividade, sem isto, a abertura tende a gerar constrangimentos maiores e desnecessários.

A temática fiscal é de suma importância para entendermos nosso atraso econômico, como nos explicou o economista britânico J. M. Keynes, a estabilidade macroeconômica requer austeridade fiscal durante expansões econômicas, e expansão fiscal em períodos de contração ou estagnação, nesta questão percebemos que o Brasil adotou um caminho oposto, adotamos políticas fiscais expansionistas quando não eram necessárias e austeridade quando a expansão era necessária, esta austeridade vem sendo adotada desde 2015 e os resultados não estão sendo nada positivos para a estrutura econômica e produtiva.

A direita liberal, que sempre se declarou mais racional e dominada pela razão econômica, na atualidade reflete apenas os interesses dos rentistas e financistas e os interesses estrangeiros, isto nos ajuda a compreender os ganhos astronômicos dos bancos e setores financeiros em uma sociedade destruída pelo baixo crescimento econômico e pelo incremento do desemprego. Já as esquerdas, que sempre defenderam, ou acreditaram defender, que se guiavam pela justiça, mas justiça sem desenvolvimento econômico é a perpetuação da miséria dos pobres e a emigração dos filhos da classe média educada para onde haja emprego.

O Brasil apresenta inúmeros problemas descritos por muitos teóricos e intelectuais como problemas econômicos, nossa economia apresenta algumas limitações, a superação destes problemas e constrangimentos só se efetivará com a construção de um projeto nacional que inclua todos os setores da sociedade, sem este projeto nos aproximaremos de uma fala clara e precisa do nosso maior economista, Celso Furtado, na despretensiosa obra O longo Amanhecer “em nenhum momento de nossa história foi tão grande a distância entre o que somos e o que esperávamos ser”.

O livro descrito acima, “Brazil: boom, bust, and the Road to Recovery publicado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), nos traz inúmeras contribuições para a superação do atraso econômico brasileiro posterior aos anos 1980, nele encontramos várias lições para fazer com que o Brasil volte a crescer de forma acelerada, saber estas lições são fundamentais e relevantes para o futuro da economia brasileira, mas insuficientes, também são necessários uma liderança forte e um compromisso inabalável, ancorados em um senso de responsabilidade e parceria entre todos os grupos interessados (stakeholders)”. Este nos parece um grande problema no momento, os governantes atuais carecem de envergadura para compreender, de forma clara, os grandes desafios a que foram ungidos, sem este reconhecimento estaremos condenados a mais alguns anos ou décadas de baixo crescimento e de piora nos indicadores sociais.

40 anos de quase-estagnação

0

Qualquer solução depende de mudança das elites 

Luiz Carlos Bresser-Pereira

De repente, meus colegas economistas descobriram o que eu gritava indignado há tempo: a economia brasileira está quase-estagnada desde 1981. Em 2001, falei em 20 anos de quase-estagnação; em 2007, quando o Cristo Redentor foi transformado em um foguete espacial, publiquei o livro “Macroeconomia da Estagnação”. Nos anos seguintes, os títulos de alguns dos meus trabalhos começavam com uma contagem progressiva: “Brazil’s 34 years… 35 years… 36 years old quasi-stagnation”.

Neste mês, talvez porque o FMI publicou um livro reconhecendo o problema (“Brazil: Boom, Bust, and the Road to Recovery”), leio no jornal Valor Econômico três artigos de competentes economistas brasileiros, Carlos Luque, Simão Silber e Roberto Zagha, da USP (5.abr), Castelar Pinheiro, da FGV (5.abr), e Mário Mesquita, economista-chefe do Itaú-Unibanco (4.abr), assinalando nosso triste fracasso econômico.

O título mais significativo é o de Mesquita: “Os 40 miseráveis e o FMI”. Mas, leitores, não é o FMI o culpado. A melhor coisa do livro é a definição da quase-estagnação. Eu sempre comparo a taxa de crescimento per capita do Brasil de 4,5% ao ano, de 1950 a 1980, uma taxa extraordinária, com os tristes 0,9% ao ano desde então. O FMI compara o crescimento do Brasil com o dos demais países em desenvolvimento e com os países ricos: nesse período “o crescimento do PIB per capita de 0,9% ao ano, em média, compara-se mal com os 3% das outras economias emergentes e em desenvolvimento e o 1,7% das economias desenvolvidas” (pág. 4).

Como isso pôde acontecer? A explicação de economia política pode ser resumida em uma frase: os trabalhadores, os capitalistas rentistas e a alta burocracia pública preocupam-se apenas com seu consumo imediato: os trabalhadores priorizam o aumento dos salários e veem na expansão da despesa pública o caminho para o desenvolvimento; os rentistas, representados pela ortodoxia liberal, justificam seus juros altos com o fantasma da inflação e veem no corte da despesa pública, inclusive o investimento público, a solução de todos os males; a alta burocracia pública, corporativista, que se legitima pela luta contra a corrupção, ignora o problema do desenvolvimento. Em outras palavras, o Brasil foi dominado nestes 40 anos pelo populismo fiscal (déficits públicos) do primeiro grupo, pelo populismo cambial (crescimento com “poupança externa” ou déficits em conta-corrente) do segundo, e pelo corporativismo do terceiro.

A preferência pelo consumo imediato, que reduz a acumulação de capital e o crescimento, transparece na simples comparação de 2016-2017 com 1976-1978: o investimento público no país caiu brutalmente, de 9,5% para 2,1% do PIB, queda esta não compensada pelo setor privado, que continuou investindo 15% do PIB. Boa parte da queda do investimento público pode ser explicada pelos juros pagos pelo Estado aos rentistas, que subiram de 2,2% para 6,3% do PIB.

Há solução para essa quase-estagnação velha de 40 anos? A solução liberal é impensável; falta ao liberalismo econômico a ideia de nação e a capacidade de combinar de forma equilibrada a coordenação econômica do mercado (insubstituível quando este é competitivo) e a do Estado, imprescindível para os setores não competitivos e para os cinco preços macroeconômicos que o mercado não tem capacidade de coordenar. A solução desenvolvimentista é uma alternativa, mas desde que não seja desfigurada pelo populismo fiscal ou por pura incompetência.

Qualquer solução depende de uma mudança profunda na forma de pensar das elites econômicas, políticas e intelectuais brasileiras. Entre os anos 1930 e os anos 1980, elas foram predominantemente desenvolvimentistas; desde 1990, liberais.

A direita liberal supõe guiar-se pela razão, mas hoje reflete apenas os interesses de rentistas e financistas e os interesses estrangeiros; a esquerda acredita guiar-se pela justiça, mas justiça sem desenvolvimento econômico é a perpetuação da miséria dos pobres e a emigração dos filhos da classe média educada para onde haja emprego.

Luiz Carlos Bresser-Pereira

Professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (1987, governo Sarney), da Administração e da Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (1995-1998 e 1999, governo FHC)

 

Considerações espíritas sobre o obsidiado: vítima ou algoz?

0

A Doutrina Espírita nos foi trazida ao mundo pelos espíritos por intermédio do intelectual francês Allan Kardec, com estas revelações a sociedade mundial tomou contato com uma nova realidade, neste momento se descortina o mundo espiritual, nos mostrando que estagiamos no mundo material, mas a verdadeira vida se dá no mundo espiritual, estas descobertas de caráter revolucionário geraram constrangimentos para muitos e esclarecimentos para outros, as novidades assustavam e geravam preocupações para todos os indivíduos.

O espiritismo nos mostrou casos chocantes de obsessão e de possessão, mostrando ao mundo uma realidade nova e muito mais complexa, os obsessores eram vistos como espíritos maldosos e violentos pela sociedade da época, que escolhiam as suas vítimas aleatoriamente e se compraziam das dores destes obsidiados, vítimas de espíritos atrasados e dotados de sentimentos inferiores, esta visão se mostrou limitada com as ideias e os pensamentos inaugurados pelo movimento espírita, nesta doutrina se descobriu que, no mundo, não existem vilões e nem mocinhos, personagens dos contos de fadas infantis, embora muitos irmãos sofredores se dizem esquecidos e vítimas de perseguições, se colocando como vítimas da maldade alheia, não existem vítimas, somos todos algozes.

Numa conversa com algumas pessoas que vivem momentos de obsessão, a grande maioria se diz vítima de espíritos cruéis, irmãos agressivos que os querem ver mortos e enterrados, para conseguir seu intento, usam de todos os instrumentos de controle e de dominação, levando muitos irmãos ao suicídio, alguns levam os obsidiados a se agredirem fisicamente , com variadas formas de mutilação, além de estimular doenças e comportamentos agressivos, agredindo e maltratando suas vítimas, seus familiares e amigos ou pessoas próximas que queiram auxiliar, enxergando nestas atitudes uma forma de se vingar de desequilíbrios e agressividades de outras encarnações.

Neste ambiente de vinganças e de agressividades entre desencarnados e encarnados, percebemos um laço forte entre estes irmãos, muitos se manifestam nas seções mediúnicas e bradam destruição e constrangimentos aos seus perseguidos, falam alto e tentam intimidar os doutrinadores, querendo mostrar poder e controle da situação, usam termos mais agressivos e, em muitos casos, palavras e expressões deselegantes.

Os espíritos obsidiados não devem ser vistos como vítimas, não existem vítimas, se neste momento estão sendo obsidiados, e Deus autoriza todo este processo, é porque em algum momento cometeram equívocos que justificam esta situação, a justificativa para estas perseguições, muitas vezes, não pode ser encontrada nesta vida atual, mas em outras encarnações, quando em convivência com o atual obsessor cometeu algum abuso que gerou este ressentimento que ora está sendo cobrado de forma veemente, gerando graves constrangimentos e criando laços de rancor que podem perdurar por muitos séculos, tendo casos de obsessão que duram mais de trezentos ou quatrocentos anos, período longo marcado por dores, rancores e intensos ressentimentos.

Joana de Angelis nos mostra que, para o obsidiado, a obsessão é uma prisão interior, uma cela pessoal, onde a grande maioria das pessoas se mantém sem lutar por libertação, acomodada aos vícios, centralizada nos erros. O Espiritismo veio para nos auxiliar a sair desta cela que impomos a nós mesmos, por ignorância e pelas dificuldades que temos de encarar de frente nossas dificuldades e limitações, com seus ensinamentos que consolam, mas, sobretudo, nos libertam e nos auxilia em nosso crescimento moral e espiritual.

A Doutrina Espírita nos mostra que a nossa vida não se restringe a atual vida, somos espíritos imortais e estagiamos no mundo físico a mais de 40 mil anos, como nos mostrou André Luiz, em Nosso Lar, desde então, estamos sujeitos a um processo contínuo de experiências físicas e, com estas, crescemos e evoluímos até nos tornarmos espíritos puros, estas andanças são complexas, mas nos levam a uma visível melhora individual e a uma sociedade mais consistente e renovada.

A obsessão deve ser compreendida como alguma influenciação que os encarnados sofrem dos irmãos que passaram para o mundo espiritual, os desencarnados, num estágio mais elevado o obsessor passa a controlar, de forma tão precisa e violenta que o obsidiado passa a se comportar da forma que o obsessor deseja, levando-o a fazer escolher e definir estratégias, o controle total do obsessor pode levar o obsidiado ao suicídio, neste momento percebemos que de uma simples obsessão, a situação passou para um caso de possessão.

Todos nós fomos ou ainda somos obsidiados, é importante destacarmos esta questão de forma clara e direta, estamos todos obsidiados ou sujeitos a sermos obsidiados e, como nos mostrou Suely Caldas Schubert, no livro Obsessão e Desobsessão: “Desde que não conseguimos a nossa liberdade, desde que ainda não temos a nossa carta de alforria para a eternidade, desde que caminhamos sob o guante de pesadas aflições que nos falam de um passado culposo e que ressumam sombras ao nosso redor… é porque, em realidade, ainda somos prisioneiros de nós mesmos, tendo como carcereiros aqueles a quem devemos”.

O obsidiado deve ser visto como um companheiro de vidas anteriores, muitos deles atuaram em falcatruas ou em trambiques visando lucros fáceis e recursos amoedados, são espíritos bastante próximos, muitos casos nos mostram claramente sentimentos fortes de amor e de admiração, encobertos pelo ressentimento e pela dominação do rancor, das mágoas e da vingança.

Todos estes sentimentos foram construídos ao longo do tempo, muitas parcerias foram consolidadas em experiências anteriores, muitos acordos foram rompidos e muitos prejuízos materiais foram efetivados, gerando uma perseguição intensa e um sentimento forte de revanchismo, levando estes irmãos inconscientes a uma dura realidade da vida, com dores, mágoas e lágrimas escorrendo de seus corpos físico e espiritual.

Muitos desencontros são gerados nos relacionamentos amorosos, muitas conquistas levam a dores, mágoas e ressentimentos, promessas descumpridas, casamentos desfeitos, namoros arruinados e corações partidos, sentimentos antes próximos dos amores terrestres são transformados em agressividades e violências mundanas que muitos irmãos levam por séculos e séculos cravadas no íntimo, são dores que incomodam severamente os corações incautos, que se entregam ao rancor e, com isso, evitam uma reflexão mais íntima e sincera das suas dificuldades emocionais e espirituais.

O obsidiado deve ser visto como um irmão que precisa de auxílio, e mais, deve ser compreendido como uma pessoa que está nos auxiliando muito mais do que imaginamos, afinal, todos os desequilíbrios que este irmão nos mostra são desajustes que temos e que cultivamos, muitos deles durante muitos anos e, até mesmo, séculos. Quando recebemos estes irmãos, mesmo sabendo que eles momentaneamente querem o nosso mal, temos a oportunidade de refletir sobre a nossa conduta ou os nossos comportamentos e hábitos, isto porque, quando nos visita, busca na nossa intimidade situações que precisamos evoluir, sem esta transformação não conseguiremos nos melhorar e galgar novos espaços, mais sólidos e consistentes, nesta nova experiência no mundo material.

No livro Nosso Lar, André Luiz nos mostra uma situação familiar que ilustra de forma precisa esta questão, num determinado momento sua mãe, um espírito de grande desprendimento e evolução espiritual se compromete a reencarnar e, novamente, contrair núpcias com seu pai, mesmo sabendo que este acumulou inúmeros casos e relacionamentos extraconjugais e dentre eles, manteve durante alguns anos duas mulheres que, ao desencarnar o perseguiam obsessivamente, lhe causando graves desequilíbrios emocionais e a permanência em regiões nebulosas por muitos anos, mesmo sabendo de tudo isto, sua mãe aceitou receber estas irmãs como suas filhas numa próxima encarnação, doando seu ventre para que estas nascessem e seus sentimentos para que estas irmãs crescessem e se desenvolvessem, um belo exemplo de evolução, desprendimento e abnegação.

A nossa reflexão íntima nos ajuda a compreender aonde este irmão, ora obsessor, está atuando, uns atuam na sexualidade e nos desejos sexuais, outros se concentram nas questões financeiras e monetárias, outros ainda se comprazem em desequilibrar nossos relacionamentos, incentivando o uso de drogas e o consumo excessivo de bebidas, além de ver outros obsessores buscando desequilibrar as questões profissionais e de saúde. Somos seres em constante evolução e apresentamos desequilíbrios em algumas destas áreas, normalmente em muitas delas, uns são mais propensos a desajustes numa das áreas, enquanto outros apresentam desequilíbrios em outras, mas todos apresentamos estas fragilidades e precisamos vencer tais desequilíbrios, sob pena de nos vermos envoltos em processos obsessivos severos e violentos, com grandes traumas e comprometimentos.

Estas dificuldades todos os indivíduos trazemos transcritos em nossa períspirito, estão inscritas desde muitas encarnações, em alguns momentos evoluímos em uma das áreas e deixamos outras de lado, a evolução, diante disso, demanda tempo, perseverança e muitos esforços, lutar contra nossas dificuldades nos auxilia a encontrar um progresso mais próximo e mais consistente.

Somos os nossos maiores obsessores, estamos constantemente cultivando pensamentos negativos e inferiores, agindo de forma diferente dos valores que aprendemos em nossas experiências cotidianas, somos os nossos maiores algozes e estamos, constantemente, culpando aqueles que momentaneamente querem o nosso mal, precisamos evoluir para que tenhamos maturidade para encarar as realidades da vida de frente, sem esta maturidade emocional e espiritual vamos continuar repisando nossos problemas, criando traumas, angariando inimigos e levando-os para as próximas existências.

Amores mundanos e conquistas centradas em promessas e constrangimentos, podem levar sentimentos sólidos a se transformar em rancores e ressentimentos agressivos, obsessores se julgam vítimas de relacionamentos frustrados e de conquistas vis, prometem vingança e desperdiçam muitos anos ou décadas de suas vidas com perseguição, muitos destes casos são amores mal resolvidos e sentimentos ainda latentes, que unem dois irmãos que conseguiram transformar sentimentos nobres em agressividades, esta obsessão pode levar ambos a desequilíbrios generalizados e até, em casos extremos, a possessão, situação onde o obsessor controla o obsidiado por completo, comandando seus pensamentos, sentimentos, comportamentos e suas atitudes.

Muitas vezes prometemos casamento, relacionamentos sérios ou compromissos futuros para um irmão ou irmã desequilibrados, sabemos que não vamos efetivar esta promessa mas, mesmo assim, a utilizamos para angariar benefícios físicos, financeiros ou sexuais, esta promessa gera uma proximidade entre os dois indivíduos, com o encerramento do relacionamento um destes irmãos não se conforma e passa a perseguir seu eterno amante, em muitos casos vira uma verdadeira paranoia, esta perseguição começa no mundo material e, muitas vezes, continua durante muitos séculos no mundo dos espíritos, gerando dores, mágoas e tentativas variadas de vingança.

Muitos abortos feitos por pessoas imaturas e inconsequentes podem gerar graves processos obsessivos, obsessões agressivas e violentas, se o indivíduo abortado se sentir inferiorizado e, com isso, acumular sentimentos de vingança e ressentimento, a perseguição pode se transformar em um instrumento concreto de destruição, gerando rancores e ressentimentos que podem perdurar por anos, décadas e até séculos, acumulando dores, lágrimas e ranger de dentes que poderiam ser, facilmente, evitados através do perdão verdadeiro.

A Doutrina Espírita nos mostra que somos responsáveis por todos aqueles que cativamos e conquistamos, se nos aproveitarmos de alguém seremos condenados a ressarcir este irmão, todas as promessas que fazemos devem ser efetivadas e quando as fazemos com interesses duvidosos teremos que arcar com as consequências de nossos atos, muitos enxergam isto como uma punição, mas devemos ver não como uma punição de Deus, mas, como um processo de educação do espírito imortal.

A transformação moral, a vivência no bem, a opção pela oração constante, o cultivo dos reais valores da vida aos poucos anulará os condicionamentos para a dor, favorecendo a harmonização interior, que é, sem dúvida, fator de melhor saúde física e espiritual. A Doutrina dos Espíritos nos auxilia para que possamos amenizar as nossas dores mais íntimas, não só pela compreensão de suas causas, mas também por intermédio de todo bem que possamos fazer, diante disso e, com estes esclarecimentos, mais fácil se torna para o ser humano a caminhada, mesmo sabendo que a estrada é esburacada, a certeza da presente de Deus em nossos corações nos dá o alento necessário para alcançar nossa evolução e nosso progresso, transformando a caminha em luzes para nossa evolução moral e espiritual.

 

 

Corrupção, crise econômica e degradação social

0

A sociedade brasileira está envolta em casos assustadores de corrupção, ineficiência e desmandos com o dinheiro público, num país marcado por tanta pobreza e indignidade, os desperdícios aumentam a pobreza e a degradação social e condena uma parte considerável da população a uma miséria crônica e vergonhosa, apesar de sermos a oitava economia do mundo, estamos nas últimas colocações do ranking quando analisamos questões sociais.

A corrupção sempre foi vista como algo estrutural nesta sociedade, segundo cálculos recentes da transparência internacional, instituição de grande respeitabilidade global que analisa esta questão, desvia-se entre 3 e 5% do produto interno bruto (PIB), recursos estes que poderiam minorar as dores e a degradação das condições de vida de milhões de cidadãos que vivem e se reproduzem nas piores condições sociais possíveis e imagináveis.

Ao analisar este fenômeno da corrupção, percebemos inúmeras vertentes de análise, uma que remonta a história do país um comportamento eminentemente corrupto, onde os portugueses construíram em terras locais uma sociedade baseada em compadrio, clientelismo e patrimonialismo, onde os detentores dos poderes econômicos da metrópole, reproduziam na colônia os instrumentos de controle que eram fontes de poder e manutenção do status quo, nesta sociedade, marcada pelo conservadorismo e pela forte influência do catolicismo, os donos do poder mantinham inúmeros privilégios enquanto os cidadãos normais se limitavam a direitos e benefícios sociais e políticos limitados.

Muitos acreditam que a corrupção que vivenciamos internamente tem suas raízes na colonização de Portugal, com isso, deixam de assumir as responsabilidades da população brasileira, afinal, os portugueses foram embora do Brasil a quase duzentos anos, nestes quase dois séculos de independência o país já deveria ter assumido as suas responsabilidades e tomado as rédeas de seu desenvolvimento econômico, social e político, culpar outros países denota claramente a imaturidade que domina uma parte da elite nacional.

Outro ponto importante para se destacar quando debatemos a corrupção é em relação as críticas feitas por boa parte da população aos homens públicos, vendo neles os verdadeiros exemplos da corrupção e da ineficiência do Estado e das políticas públicas, esta nos parece uma tese incompleta para a compreensão do problema em sua essência, muitos preferem colocar a culpa em outros, atribuir a terceiro os motivos do fracasso da sociedade brasileira, com isso se esquecem da responsabilidade de cada pessoa, se esquecem dos comportamentos corruptos e das atitudes inconsequentes de todos os dias na vivência em comunidade, quando passam no sinal vermelho, quando dirigem acima da velocidade permitida, quando cortam fila ou fingem situações para passar na frente de outras pessoas, quando corrompem o guarda ou fazem propostas indecorosas para conseguir benefícios ou prazeres imediatos, ou seja, nestas situações mostramo-nos intimamente, nos desnudamos e deixamos nítido que, se tivéssemos a oportunidade ou o poder, agiríamos da forma como os políticos agem na sociedade e que nós tanto o criticamos.

A corrupção está presente nos lares da população, desde os anos 70 nos comprazemos com a ideia de que devemos tirar proveito de tudo, de que somos adoradores da Lei de Gerson, o chamado jeitinho brasileiro nos acompanha desde os primórdios do nosso íntimo, somos e nos deliciamos com nossa capacidade de tirar vantagem de tudo. Neste ambiente marcado pela corrupção e pela cidadania reduzida, nos lembramos das palavras e das reflexões do grande jurista Rui Barbosa: “De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto”.

A corrupção corrói as estruturas da sociedade, gerando graves desequilíbrios nas estruturas econômicas, sociais e políticas, propala, para toda a sociedade, nacional e internacional, a certeza de que, como disse Charles De Gaulle, grande estadista francês em visita ao país nos anos 60: “O Brasil não é um país sério”. Mesmo rechaçando as palavras do político francês, todos os brasileiros sabemos, na intimidade, que o Brasil precisa passar por um banho de civilização, estamos diante de graves problemas econômicos, políticos e sociais, sem resolver estas questões de cunho moral, dificilmente daremos o salto tão almejado desenvolvimento econômico.

A corrupção perpassa variados grupos sociais, de um lado encontramos um Estado altamente ineficiente, cujos investimentos geram os mais desagradáveis retornos da sociedade global, precisamos caminhar muito em governança, reduzir os desequilíbrios e desperdícios que corroem a renda e geram um rastro de medo, insegurança e incertezas.

A corrupção se associa intimamente com o Estado, no Brasil temos um governo gigantesco, seus investimentos e gastos influenciam imensamente todos os setores econômicos e produtivos, reduzir a atuação governamental em setores marcados pela ineficiência e pelos desperdícios e concentrar sua atuação em setores com menores condições, tanto com relação ao pessoal quanto ao financeiro, garantindo políticas públicas consistentes para que todos os grupos tenham acesso a uma educação inclusiva e de qualidade, que garanta a todos os grupos sociais condições de competir no mercado de trabalho competitivo e altamente individualista.

Destacamos ainda, que devemos rechaçar a tese de que o Estado é corrupto e ineficiente, enquanto os mercados e a iniciativa privada são sempre virtuosos e competentes, Estados e Mercados são agentes centrais para o desenvolvimento do país, se estudarmos a história do desenvolvimento dos países avançados perceberemos que todos eles, no início da industrialização, contaram com o apoio e a participação de políticas industriais ativas lideradas pelos seus respectivos governos, como nos mostrou o esclarecedor livro O Estado Empreendedor, da economista italiana Mariana Mazzucato.

A coordenação entre Estado e Mercado deve ser centrada na transparência, no compartilhamento de decisões e na construção de estratégias claras e consistentes, sem o planejamento conjunto, ainda mais num momento de constante instabilidades e inseguranças, o desenvolvimento econômico e produtivo pode não se efetivar da melhor forma possível, com graves problemas para a coletividade.

Vivemos no Brasil uma situação exemplar, extraordinário e paradoxal, sempre nos caracterizamos como uma sociedade que via a política como um espaço de corrupção e ineficiência, neste mundo a parte os políticos eram o retrato mais nítido e evidente do atraso, os outros setores eram competentes e capacitados, acreditamos nisso durante muitos anos até acordarmos e percebermos que não éramos tão virtuosos como acreditávamos, que os políticos e os homens públicos eram eleitos com os nossos votos, nós os elegíamos mesmo vendo neles um exemplo de ineficiência, despreparo e corrupção.

Outro ponto central para se destacar nesta sociedade é o papel central da educação, além de ser um instrumento fundamental para a melhoria da competitividade e da economia de um país, a educação deve ser vista como um instrumento extremamente relevante para construir cidadãos capacitados e conscientes, não apenas consumidores, ou seja, indivíduos que acreditam que todas as relações sociais dentro de uma coletividade deve ser estruturada dentro das relações comerciais e financeiras, deixando de lado o papel da política como um instrumento de intercâmbio e melhorias sociais e coletivas.

A corrupção é um cancro que degrada toda a coletividade, desvia os recursos que deveriam ser investidos na melhoria das condições sociais e econômicas, gerando mais e melhores empregos e capacitando os trabalhadores para os desafios do mundo globalizado, a corrupção denigre a política e os homens públicos criando e disseminando a máxima “políticos são todos iguais”, com isso, contribui para a perpetuação das condições de iniquidade e desajustes e impulsionando a visão deletéria de que devemos ser, cada vez mais, individualistas, pensarmos primeiro em nossos mais imediatos interesses e depois, muito depois, pensarmos nos interesses de nossa coletividade.

O Brasil precisa combater efetivamente as causas da corrupção, para que isso seja feito, faz-se necessário a construção de estratégias consistentes que abarquem todos os poderes da República, a corrupção que assusta a coletividade está encravada em todos os poderes não apenas o executivo e o legislativo, como muitos querem passar a impressão, a corrupção está gangrenando dentro do judiciário e dentro do ministério público, a corrupção está dentro do mercado financeiro, dos grandes bancos, das corretoras e de outros agentes independentes, a corrupção se alastrou por todas as instituições do Estado Nacional, combater a corrupção é bradar que se está fazendo uma ampla limpeza no país, sem se aprofundar nas entranhas do judiciário e do sistema financeiro, os resultados serão sempre limitados e limitadores.

Depois de vários escândalos nos últimos vinte anos, vamos nos restringir a este período histórico, desde os anões do orçamento, a compra de votos para a reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso, o mensalão, o petróleo e agora a Lava Jato, muitos inquéritos foram abertos, muitos escândalos foram revelados e muita podridão nos foi mostrada em cadeia de rádio e de televisão, mesmo diante destes escândalos, muitos políticos e empresários foram presos, humilhados e suas imagens foram destruídas mas, neste período poucos foram efetivamente condenados e muitos deles, através de delações premiadas já estão em liberdade, sendo que alguns voltaram a delinquir.

A corrupção se manifesta de forma diferente na sociedade contemporânea, a pior forma de corrupção é a corrupção do caráter, a corrupção da moral, esta forma está em ampla ascensão na sociedade, pessoas que conhecem a situação social, intelectuais e homens públicos que se vendem em troca de recursos amoedados, garantindo uma vida de prazer, dinheiro, bens e hedonismo, pesquisadores que vendem descobertas científicas que degradam a vida de milhões de pessoas, destroem as bases da sociedade, se esquecendo dos graves impactos e consequências de suas decisões, com isso, percebemos uma sociedade em alta ebulição, marcadas por crises e desequilíbrios crescentes.

A discussão sobre a corrupção é uma conversa muito mais complexa do que as pessoas imaginam, conversar sobre este tema é refletir sobre as desigualdades que reinam na sociedade, falar sobre corrupção é conversar sobre as formas de educação que estão sendo vendidas nas escolas e nas universidades, falar sobre a corrupção é adentrar na discussão de como as empresas e os empregadores tratam seus funcionários ou como exigem os gestores, os colaboradores, esta discussão é muito pouco comentada na sociedade, esta discussão não interessa apenas aos donos do poder e, sendo assim, esta discussão não aparece nos jornais, nas revistas e nos sites de notícias, aparecem apenas na mente e nos lábios dos professores que ousam pensar e refletir, ou seja, uma pequena e ínfima minoria.

Quando escrevi a minha tese de doutorado, o assunto escolhido foi a corrupção e os custos econômicos para a coletividade, naquela época nos deparamos com as investigações relacionadas ao mensalão, concomitantemente estudava o começo dos anos 90, quando o governo Fernando Collor de Mello sofreu impeachment e foi acusado de corrupção generalizada, nesta época lia os artigos de teóricos e políticos importantes, todos revoltados com a situação de corrupção do país, para minha surpresa, anos depois, estes mesmos que gritavam e bradavam contra a corrupção, estavam no centro das investigações justamente por corrupção e desvios de recursos públicos, neste momento me vinha a mente de forma veemente uma fala do teórico alemão, tão criticado no Brasil contemporâneo Karl Marx: A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa.

 

 

 

 

 

Quem deu o golpe, e contra quem?

0

JESSÉ SOUZA

24/04/2016 – Folha de São Paulo

(RESUMO) Para o autor, decisão da Câmara a favor do processo de impeachment da presidente Dilma ameaça a democracia. Em texto que retoma ideias já expostas aqui e em seu livro mais recente, diz que esta crise, como outras, contou com a manipulação, mediada pela imprensa, da classe média pela “elite de dinheiro”.

O golpe foi contra a democracia como princípio de organização da vida social. Esse foi um golpe comandado pela ínfima elite do dinheiro que nos domina sem ruptura importante desde nosso passado escravocrata.

O ponto de inflexão da história recente do Brasil contra a herança escravocrata foi a revolução comandada por contraelites subordinadas que se uniram em 1930.

A visão pessoal de Getúlio Vargas transformou o que poderia ter sido um mero conflito interno de elites em disputa em uma possibilidade de reinvenção nacional.

O sonho era a transformação do Brasil em potência industrial com forte mercado interno e classe trabalhadora protegida, com capacidade de consumo. Nossa elite do dinheiro jamais sequer “compreendeu” esse sonho, posto que “afetivamente” nunca sentiu compromisso com os destinos do país.

Desde então o Brasil é palco de uma disputa entre esses dois projetos: o sonho de um país grande e pujante para a maioria; e a realidade de uma elite da rapina que quer drenar o trabalho de todos e saquear as riquezas do país para o bolso de meia dúzia.

A elite do dinheiro manda pelo simples fato de poder “comprar” todas as outras elites.

É essa elite, cujo símbolo maior é a bela avenida Paulista, que compra a elite intelectual de modo a construir, com o prestígio da ciência, a lorota da corrupção apenas do Estado, tornando invisível a corrupção legal e ilegal do mercado que ela domina; que compra a política via financiamento privado de eleições; e que compra a imprensa e as redes de TV, cujos próprios donos fazem parte da mesma elite da rapina.

De acordo com a conjuntura histórica, sempre que o Executivo está nas mãos do inimigo, imprensa e Congresso, comprados pelo dinheiro, se aliam a um quarto elemento que é o que suja as mãos de fato no golpe: as Forças Armadas antes, e o complexo jurídico-policial do Estado hoje em dia.

A história do Brasil desde 1930 é um movimento pendular entre esses dois polos. Getúlio caiu, como o desafeto histórico maior desta elite, por um conluio entre Congresso comprado, imprensa manipuladora e Forças Armadas que se imaginavam pairar acima dos conflitos sociais.

O suicídio do presidente adia em dez anos o golpe formal, que acontece em 1964 pela mesma articulação de interesses. O curioso, no entanto, é que dentro das Forças Armadas existia a mesma polarização que existia na sociedade.

INFRAESTRUTURA

O nacionalismo autoritário das Forças Armadas articula, por meio do 2º PND (Plano Nacional de Desenvolvimento) do presidente Geisel, uma versão ambiciosa do sonho getulista: investimento maciço em infraestrutura e setores-chave da vanguarda tecnológica com a disseminação de universidades e centros de pesquisa em todo o país.

Ainda que o capital privado fosse muito bem-vindo, a condução do projeto de longo prazo era do Estado. Foi o bastante para que os jornais se lançassem em uma batalha ideológica contra a “república socialista do Brasil” e os empresários descobrissem, de uma hora para outra, sua inabalável “vocação democrática”.

O processo de redemocratização comandado pela elite do dinheiro tem tal pano de fundo. As Diretas-Já, na verdade, espelham a volta da rapina de curto prazo e uma nova derrota do sonho de um “Brasil grande”.

Aqui já poderia ter ocorrido a conscientização de que a rapina selvagem é o fio condutor, e que a forma autoritária ou democrática que ela assume é mera conveniência. Mas o processo de aprendizado foi abortado. O público ficou sem saber por que o golpe tinha ocorrido e, depois, por que ele havia sido criticado. Criou-se uma anistia do “esquecimento” no mesmo sentido da queima dos papéis da escravidão por Rui Barbosa: para que jamais saibamos quem somos e a quem obedecemos.

Com o governo FHC, essa elite da rapina de curto prazo se insere, enfim, não apenas no mercado mas também, com todas as mãos, no Estado e no Executivo.

A festa da privatização para o bolso da meia dúzia de sempre, da riqueza acumulada pela sociedade durante gerações, se deu a céu aberto. A maior eficiência dos serviços, prometida à sociedade e alardeada pela imprensa, sempre solícita e sócia de todo saque, se deixa esperar até hoje.

Como uma imprensa a serviço do saque e do dinheiro não pode fazer todo mundo de tolo durante todo o tempo, e como ainda existem sonhos que o dinheiro não pode comprar, o Executivo mudou de mãos em 2002.

O novo governo tentou o mesmo projeto desenvolvimentista anterior, de apoio à indústria e à inteligência nacional. Mas seu crime maior foi a ascensão dos setores populares via, antes de tudo, a valorização real do salário mínimo.

Os mais pobres passaram a ocupar espaços antes exclusivos às classes do privilégio.

Parte da classe média sofria profundo incômodo diante dessa nova proximidade em shopping centers e aeroportos, mas “pegava mal” expressar o descontentamento em público. Pior, a classe média temia que essa classe ascendente pudesse vir a disputar os seus privilégios e os seus empregos.

O discurso da “corrupção seletiva” manipulado pela mídia permite que se enfrente agora o medo mais mesquinho com um discurso moralizador e uma atitude de pretenso “campeão da moralidade”. O que antes se dizia a boca pequena entre amigos agora pode ser dito com a camisa do Brasil e empunhando a bandeira nacional. Está criada a “base popular”, produto da mídia servil à elite da rapina.

A luta contra os juros desencadeada pela presidente Dilma em 2012 reedita a eterna crença da esquerda nacionalista brasileira na existência de uma “boa burguesia”, ou seja, a fração industrial supostamente interessada em um projeto de longo prazo de fortalecimento do mercado interno.

Mas todas as frações da elite já mamam na mesma teta dos juros altos que permite transferir recursos de todas as classes para o bolso dos endinheirados de modo invisível, funcionando como uma “taxa” que encarece todos os preços e transfere parte de tudo o que é produzido para os rentistas –inclusive da classe média feita de tola pela imprensa comprada.

Quando em abril de 2013 as taxas de juros voltam a subir, a elite está armada e unida contra a presidente. As “jornadas de junho” daquele ano vêm bem a calhar e, por força de bem urdida campanha midiática, transformam protestos localizados em uma recém-formada coalizão entre a elite endinheirada e a classe média “campeã da moralidade e da decência” contra o projeto inclusivo e desenvolvimentista da esquerda.

Como os votos dos pobres recém-incluídos são mais numerosos, no entanto, perde-se a campanha de 2014. Mas a aliança entre endinheirados e moralistas de ocasião se mantém e se fortalece com um novo aliado: o aparato jurídico-policial do Estado.

Construído pela Constituição de 1988 para funcionar como controle recíproco das atividades investigativas e jurisdicionais, todo esse aparato passa por mudanças expressivas desde então. Altos salários e demanda crescente por privilégios de todo tipo associados ao “sentimento de casta” que os concursos dirigidos aos filhos das classes do privilégio ensejam transformam esses aparelhos que tudo controlam, mas não são controlados por ninguém, em verdadeiros “partidos corporativos” lutando por interesses próprios dentro do aparelho de Estado.

A manipulação da “corrupção seletiva” pela imprensa é o discurso ideal para travestir, também aqui, os mais mesquinhos interesses corporativos em suposto “bem comum”. O troféu de “campeão da moralidade pública” passa a ser disputado por todas as corporações e se estabelece um conluio entre elas e a imprensa, que os vazamentos seletivos cuidadosamente orquestrados comprovam tão bem.

Esse é o elemento novo do velho golpe surrado de sempre. Ainda que o golpe tenha se dado no circo do Congresso em uma palhaçada denunciada por toda a imprensa internacional, sem o trabalho prévio dos justiceiros da “justiça seletiva” ele não teria acontecido.

O Estado policial a cargo da “casta jurídica” já está sendo testado há meses e deve assumir o papel de perseguir, com base na mesma “seletividade midiática”, o princípio: para os inimigos a lei, e para os amigos a “grande pizza”.

A “pizza” para os amigos já está em todos os jornais e acontece à luz do dia. O acirramento da criminalização da esquerda é o próximo passo. Esse é o maior perigo. Muita injustiça será cometida em nome da Justiça.

Mas existe também a oportunidade. Nem toda classe média é o aprendiz de fascista que transforma seu medo irracional em ódio contra os mais fracos, travestindo-o de “coragem cívica”.

Ainda que nossa classe média esteja longe de ser refletida e inteligente como ela se imagina, quem quer que tenha escapado do bombardeio diário de veneno midiático com dois neurônios intactos não deixará de estranhar o mundo que ajudou a criar: um mundo comandado por um sindicato de ladrões na política, uma justiça de “justiceiros” que os protege, uma elite de vampiros e uma sociedade condenada à miséria material e à pobreza espiritual. Esse golpe precisa ser compreendido por todos. Ele é o espelho do que nos tornamos.

JESSÉ SOUZA, 56, autor de “A Tolice da Inteligência Brasileira” (Leya), presidente do Ipea, é professor titular de ciência política da UFF e foi professor convidado na Universidade de Bremen.

Escravidão, e não corrupção, define sociedade brasileira, diz Jessé Souza

0

RESUMO Autor argumenta que a visão do brasileiro como vira-lata, pré-moderno, emotivo e corrupto decorre de uma leitura liberal, conservadora e equivocada de nosso passado. Para ele, é preciso reinterpretar a história do Brasil tomando a escravidão como o elemento definitivo que nos marca como sociedade até hoje.

Quem sintetizou a interpretação dominante do Brasil, que todos aprendemos nas escolas e nas universidades, foi Gilberto Freyre (1900-87). É a ideia de que viemos de Portugal e que de lá herdamos um jeito específico de ser. Para o autor de “Casa-Grande e Senzala” e para seguidores como Darcy Ribeiro (1922-97), essa herança era positiva ou, pelo menos, ambígua.

Sérgio Buarque de Holanda (1902-82), outro filho de Freyre, reinterpreta a ideia como pura negatividade em registro liberal. Cria, assim, o brasileiro como vira-lata, pré-moderno, emotivo e corrupto. Tal visão prevaleceu, e quase todos a seguem, de Raymundo Faoro (1925-2003), Fernando Henrique Cardoso e Roberto DaMatta a Deltan Dallagnol e Sergio Moro.

Essa é a única interpretação totalizante da sociedade brasileira que existe até hoje.

A “esquerda”, entendida como a perspectiva que contempla os interesses da maioria da sociedade, jamais construiu alternativa a essa leitura liberal e conservadora. Existem contribuições tópicas geniais, mas elas esclarecem fragmentos da realidade social, não a sua totalidade, permitindo que, por seus poros e lacunas, penetre a explicação dominante.

A ausência de interpretação própria fez com que a esquerda sempre fosse dominada pelo discurso do adversário. Reescrever essa história é a ambição de meu novo livro, “A Elite do Atraso – Da Escravidão à Lava Jato” [Leya, 240 págs., R$ 44,90]. O fio condutor é a ideia de que a escravidão nos marca como sociedade até hoje —e não a suposta herança de corrupção, como se convencionou sustentar.

Para Faoro, por exemplo, a história do Brasil é a história da corrupção transplantada de Portugal e aqui exercida pela elite do Estado. Nessa narrativa, senhores e escravos raramente aparecem e nunca têm o papel principal.

Essa abordagem seria apenas ridícula se não fosse trágica. Faoro imagina a semente da corrupção já no século 14, em Portugal, quando não havia nem sequer a concepção de soberania popular, que é parteira da noção moderna de bem público. É como ver um filme sobre a Roma antiga cheio de cenas românticas que foram inventadas no século 18. Não obstante, o país inteiro acredita nessa bobagem.

ESCRAVIDÃO

Os adeptos dessa interpretação dominante parecem não se dar conta de que, em uma sociedade, cada indivíduo é criado pela ação diária de instituições concretas, como a família, a escola, o mundo do trabalho.

No Brasil Colônia, a instituição que influenciava todas as outras era a escravidão (que não existia em Portugal, a não ser de modo tópico). Tanto que a (não) família do escravo daquele período sobrevive até hoje, com poucas mudanças, na (não) família das classes excluídas: monoparental, sem construir os papéis familiares mais básicos, refletindo o desprezo e o abandono que existiam em relação ao escravo.

Também no mundo do trabalho a continuidade impressiona. A “ralé de novos escravos”, mais de um terço da população, é explorada pela classe média e pela elite do mesmo modo que o escravo doméstico: pelo uso de sua energia muscular em funções indignas, cansativas e com remuneração abjeta.

Em outras palavras, os estratos de cima roubam o tempo dos de baixo e o investem em atividades rentáveis, ampliando seu próprio capital social e cultural (com cursos de idiomas e pós-graduação, por exemplo) e condenando a outra classe à reprodução de sua miséria.

A classe que chamo provocativamente de ralé é uma continuação direta dos escravos. Ela é hoje em grande parte mestiça, mas não deixa de ser destinatária da superexploração, do ódio e do desprezo que se reservavam ao escravo negro. O assassinato indiscriminado de pobres é atualmente uma política pública informal de todas as grandes cidades brasileiras.

A nossa elite econômica também é uma continuidade perfeita da elite escravagista. Ambas se caracterizam pela rapinagem de curto prazo. Antes, o planejamento era dificultado pela impossibilidade de calcular os fatores de produção. Hoje, como o recente golpe comprova, ainda predomina o “quero o meu agora”, mesmo que a custo do futuro de todos.

É importante destacar essa diferença. Em outros países, as elites também ficam com a melhor fatia do bolo do presente, mas além disso planejam o bolo do futuro. Por aqui, a elite dedica-se apenas ao saque da população via juros ou à pilhagem das riquezas naturais.

INTERMEDIÁRIAS

Historicamente, a polarização entre senhores e escravos em nossa sociedade permaneceu até o alvorecer do século 20, quando surgiram dois novos estratos por força do capitalismo industrial: a classe trabalhadora e a classe média.

Em relação aos trabalhadores, a violência e o engodo sempre foram o tratamento dominante. Com a classe média, porém, a elite se viu contraposta a um desafio novo.

A classe média não é necessariamente conservadora. Tampouco é homogênea. O tenentismo, conhecido como nosso primeiro movimento político de classe média, na década de 1920, já revelava essas características, pois abrigava múltiplas posições ideológicas.

A elite paulistana, tendo perdido o poder político em 1930, precisava fazer com que a heterodoxia rebelde da classe média apontasse para uma única direção, agora em conformidade com os interesses das camadas mais abastadas. Como naquele momento os endinheirados de São Paulo não controlavam o Estado, o caminho foi dominar a esfera pública e usá-la como arma.

O que estava em jogo era a captura intelectual e simbólica da classe média letrada pela elite do dinheiro, para a formação da aliança de classe dominante que marcaria o Brasil dali em diante.

O acesso ao poder simbólico exige a construção de “fábricas de opiniões”: a grande imprensa, as grandes editoras e livrarias, para “convencer” seu público na direção que os proprietários queriam, sob a máscara da “liberdade de imprensa” e de opinião.

A imprensa, todavia, só distribui informação e opinião. Ela não cria conteúdo. A produção de conteúdo é monopólio de especialistas treinados: os intelectuais. A elite paulistana, então, constrói a USP, destinando-a a ser uma espécie de gigantesco “think tank” do liberalismo conservador brasileiro, de onde saem as duas ideias centrais dessa vertente: as noções de patrimonialismo e de populismo.

LAVA JATO

Enquanto conceito, o patrimonialismo procede a uma inversão do poder social real, localizando-o no Estado, não no mercado. Abre-se espaço, assim, para a estigmatização do Estado e da política sempre que se contraponham aos interesses da elite econômica. Nesse esquema, a classe média cooptada escandaliza-se apenas com a corrupção política dos partidos ligados às classes populares.

A noção de populismo, por sua vez, sempre associada a políticas de interesse dos mais pobres, serve para mitigar a importância da soberania popular como critério fundamental de uma sociedade democrática —afinal, como os pobres (“coitadinhos!”) não têm consciência política, a soberania popular sempre pode ser posta em questão.

É impressionante a proliferação dessa ideia na esfera pública a partir da sua “respeitabilidade científica” e, depois, pelo aparato legitimador midiático, que o repercute todos os dias de modos variados.

As noções de patrimonialismo e de populismo, distribuídas em pílulas pelo veneno midiático diariamente, são as ideias-guia que permitem à elite arregimentar a classe média como sua tropa de choque.

Essas noções legitimam a aliança antipopular construída no Brasil do século 20 para preservar o privilégio real: o acesso ao capital econômico por parte da elite e o monopólio do capital cultural valorizado para a classe média. É esse pacto que permite a união dos 20% de privilegiados contra os 80% de excluídos.

A atual farsa da Lava Jato é apenas a máscara nova de um jogo velho que completa cem anos.

Em conluio com a grande mídia, não se atacou apenas a ideia de soberania popular, pela estigmatização seletiva da política e de empresas supostamente ligadas ao PT —o saque real, obra dos oligopólios e da intermediação financeira, que capturam o Estado para seus fins, ficou invisível como sempre. Destruiu-se também, com protagonismo da Rede Globo nesse particular, a validade do próprio princípio da igualdade social entre nós.

O ataque seletivo ao PT, de 2013 a 2016, teve o sentido de transformar a luta por inclusão social e maior igualdade em mero instrumento para um fim espúrio: a suposta pilhagem do Estado.

Desqualificada enquanto fim em si mesma, a demanda pela igualdade se torna suspeita e inadequada para expressar o legítimo ressentimento e a raiva que os excluídos sentem, mas que agora não podem mais expressar politicamente.

Assim, abriu-se caminho para quem surfa na destruição dos discursos de justiça social e de valores democráticos —Jair Bolsonaro como ameaça real é filho do casamento entre a Lava Jato e a Rede Globo.

O pacto antipopular das classes alta e média não significa apenas manter o abandono e a exclusão da maioria da população, eternizando a herança da escravidão. Significa também capturar o poder de reflexão autônoma da própria classe média (assim como da sociedade em geral), que é um recurso social escasso e literalmente impagável.

JESSÉ SOUZA, 57, doutor em sociologia pela Universidade de Heidelberg (Alemanha), é autor de “A Tolice da Inteligência Brasileira” e “A Radiografia do Golpe” (Leya), além de professor de sociologia da UFABC.

Horizonte da elite não é sociedade justa, é economia pujante

0

Para as classes altas, tudo é aceitável, se a locomotiva seguir acelerada

A elite social brasileira é branca, educada e cosmopolita. E assim é desde que o país começou. É também violenta, embora se veja como generosa para com subalternos, todos negros, mas “como se fossem da família”. Não são.

Nem na vida ganham acesso às relações abridoras de portas nem na morte herdam patrimônio. A próxima geração segue onde estava a antecedente, numa estrutura social secular, com os mesmos sobrenomes usufruindo a vista da cobertura, enquanto os sem nome limpam cozinhas e latrinas.

Ao contrário do que pregam a adversários, é raro que membros da elite façam autocrítica de erros políticos, como a eleição de Fernando Collor. Muito menos reconhecem seu papel ativo na reprodução intergeracional da desigualdade. Alguns dos seus, os “bem intencionados”, atuam nas franjas, com iniciativas para premiar o “talento” de alguns humildes, como Carlinhos Brown, que foi da favela ao estrelato.

Esta fresta para o alto não altera os mecanismos de distribuição de recursos e acessos. Mas é o suficiente para os cidadãos de bem, reconfortados pelo argumento liberal de que oportunidades individuais bastam para corrigir problemas estruturais.

É que o horizonte desta elite não é uma sociedade justa, é uma economia pujante. Para obter a segunda, abre mão da primeira. Nunca titubeou em pagar o preço, fosse a escravidão, regimes de trabalho avizinhados ou ditaduras, como a que o presidente comemorou. Tudo aceitável, se a locomotiva seguir acelerada.

Essa gente de bem pensa em si como o vagão que puxa o trem, que carrega o fardo do país e pena o alto custo trabalhista de mão de obra sem qualificação. São empreendedores incansáveis, prejudicados pelo povo caro e ignorante —que reclama de barriga cheia, pois muitos pesam, disse o presidente, várias arrobas.

O raciocínio do “Custo Brasil” omite que as mazelas nacionais sucessivas resultaram de decisões políticas tomadas pelos que estão no alto, enquanto o sacrifício é sempre exigido dos de baixo. Assim foi na reforma trabalhista, assim se anuncia na previdenciária e a tributária não avançará imposto sobre grandes fortunas e transmissão intergeracional de riquezas.

E, convenhamos, não se exige de quem adentra essa elite o refinamento da antiga aristocracia. Veja-se o novo ministro da Educação: é branco, tem diploma superior e renda que garantem moradia em andar alto da pirâmide nacional. E, no entanto, emite juízos explicáveis apenas pela ignorância.

Já havia o precedente do “nazismo de esquerda” mas rotular banqueiro de comunistas compete à altura. Nenhuma destas pérolas ministeriais espanta, considerando a língua presidencial. Mas choca que parcela tão gorda do topo social siga firme no apoio à obscurantista, autoritária e até aqui ineficiente “nova política”.

Apoio registrado no último Datafolha capaz de os banqueiros que o ministro menciona estarem entre os 36% de homens com diploma superior e os 41% com renda acima de dez salários mínimos que acham “ótima” a administração mitológica.

A aprovação (ótimo/bom) é ampla entre os que vivem bem: 47% dos profissionais liberais, 57% dos empresários e 71% dos rentistas, como se dizia antigamente. Os bem postos na vida estão satisfeitos com o governo.

Mesmo com critério exigente, a alegria não se desmancha: 46% do empresariado e 44% dos que vivem de renda dão nota 8 ou mais para a administração bolsonarista. Parte dos eleitores do mito é impenitente e está infenso a três meses de barbaridades. Mas nem todo votante de conveniência, o antipetista, repudia: 54% dos que se declaram PSDBistas seguem achando tudo ótimo. É que se a reforma da Previdência passar, os tuítes ensandecidos do Palácio do Planalto serão perdoados, porque o país —ou parte dele— usufruirá das bênçãos do mercado.

A maioria destes cidadãos de bem apoia também embalada por outra promessa, a da reforma penal.
É preciso mais que comprar armas para se defender de meliantes. Precisa encarcerá-los antes que atinjam a idade adulta. Claro, alguns escaparão de celas de extermínio precoce, e poucos talentosos serão escolhidos, como Brown, para cantar no Lollapalooza.

Aos remanescentes, resta a prontidão das forças da ordem, a postos para abater suspeitos. Suspeitos naturalmente negros, como muitos dos executores, como negros eram tantos capitães do mato.

Estão a serviço, mas tampouco serão admitidos às fortificações medievais onde a gente de bem dorme tranquila. Não se pode acordá-la com choro de órfãos, mães e viúvas, nem com o ruído de 80 tiros.

Angela Alonso

Professora de sociologia da USP, preside o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. É autora de “Flores, Votos e Balas”.

 

Por que o Brasil de Olavo e Bolsonaro vê em Paulo Freire um inimigo

0

Biógrafo analisa hostilidade contra o educador, em alta nos últimos anos

Sérgio Haddad Folha de São Paulo – Ilustríssima – 14/04/2019.

[resumo] Biógrafo de Paulo Freire analisa como o principal educador brasileiro, autor de método de alfabetização que estimula alunos a refletirem sobre sua realidade, passou a ser visto como inimigo público e responsabilizado por maus resultados educacionais do país.

Em 29 de maio de 1994, em longa entrevista publicada no caderno “Mais”, da Folha, Paulo Freire comentou as razões de seu método não ter erradicado o analfabetismo no Brasil.

“Em tese, o analfabetismo poderia ter sido erradicado com ou sem Paulo Freire. O que faltou foi decisão política. A sociedade brasileira é profundamente autoritária e elitista. Nos anos 60 fui considerado um inimigo de Deus e da pátria, um bandido terrível. Pois bem, hoje eu já não seria mais considerado inimigo de Deus. Você veja o que é a história. Hoje diriam apenas que sou um saudosista das esquerdas. O discurso da classe dominante mudou, mas ela continua não concordando, de jeito nenhum, que as massas populares se tornem lúcidas”, afirmou na ocasião.

Passados 25 anos, Paulo Freire voltou a ser alvo de ataques nas redes sociais e nos discursos políticos, consequência da nova onda conservadora que assola o país.

Parece ser essa a sina do mais importante educador brasileiro (1921-1997). Cinco décadas atrás, Freire foi preso e exilado pelos militares após o golpe de 1964. Ele desenvolvia na época um programa nacional de alfabetização que seria implantado por João Goulart, inspirado em projeto que desenvolveu no Rio Grande do Norte com cerca de 400 jovens e adultos.

A experiência na cidade de Angicos ganhou notoriedade internacional por se propor a concluir em 40 horas o processo de alfabetização e a formar cidadãos mais conscientes de seus direitos e dispostos a defendê-los de maneira democrática.

O método partia de palavras selecionadas entre as questões existenciais dos alunos, fazendo com que se alfabetizassem dialogando acerca de suas condições de vida, trabalho, saúde, educação e lazer, por exemplo. Unia, portanto, educação com cultura, ao tomar as experiências dos alunos e seus conhecimentos como parte integrante do ato de educar.

Os golpistas de 64 intuíram que o programa, ganhando dimensão nacional, poderia desestabilizar poderes constituídos ao capacitar, no curto prazo, grande quantidade de pessoas para o voto, então vedado aos analfabetos, permitindo que setores populares influíssem de maneira mais consciente em seus destinos. Seria necessário, portanto, banir e deslegitimar o método e seu autor.

Em 18 de outubro de 1964, alguns dias depois de Paulo Freire ter partido para o exílio, o tenente-coronel Hélio Ibiapina Lima —um dos 377 agentes do Estado apontados pelo relatório da Comissão Nacional da Verdade por violar direitos humanos e cometer crimes durante o regime militar— divulgou o texto final do inquérito que comandou, acusando Paulo Freire de ser “um dos maiores responsáveis pela subversão imediata dos menos favorecidos”.

“Sua atuação no campo da alfabetização de adultos nada mais é que uma extraordinária tarefa marxista de politização das mesmas”, escreveu. Para Ibiapina Lima, Freire não teria criado método algum e sua fama viria da propaganda feita pelos agentes do Partido Comunista da União Soviética. “É um cripto-comunista encapuçado sob a forma de alfabetizador”, informava o relatório.

Na apresentação ao livro de Freire “Educação como Prática da Liberdade”, Francisco Weffort, ministro da Cultura no governo FHC, assim analisou os fatos ocorridos no Brasil: “Nestes últimos anos, o fantasma do comunismo, que as classes dominantes agitam contra qualquer governo democrático da América Latina, teria alcançado feições reais aos olhos dos reacionários na presença política das classes populares… Todos sabiam da formação católica do seu inspirador e do seu objetivo básico: efetivar uma aspiração nacional apregoada, desde 1920, por todos os grupos políticos, a alfabetização do povo brasileiro e a ampliação democrática da participação popular… Preferiram acusar Paulo Freire por ideias que não professa a atacar esse movimento de democratização cultural, pois percebiam nele o gérmen da derrota”.

E acrescentaria: “Se a tomada de consciência abre caminho à expressão das insatisfações sociais, é porque estas são componentes reais de uma situação de opressão”.

Exilado por 15 anos —tendo passado por Bolívia, Chile, EUA e Suíça—, Freire regressaria ao Brasil em 1980, reconhecido internacionalmente como um dos mais importantes educadores do mundo. Havia percorrido diversos países a convite de universidades, igrejas, grupos de base, movimentos sociais e governos. Nos últimos dez anos de seu exílio, trabalhando no Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra, totalizaria cerca de 150 viagens a mais de 30 países.

No seu retorno, começaria a dar aulas na PUC de São Paulo e na Unicamp. Em fins de 1988 seria convidado pela prefeita eleita de São Paulo Luiza Erundina para ser secretário municipal da Educação. As eleições daquele ano marcariam o início da ascensão dos governos de oposição aos grupos que se mantinham no poder desde o golpe militar, com o PT governando vários municípios, posteriormente estados, e, finalmente, assumindo a Presidência da República, nas eleições de Lula e Dilma.

Frente às inúmeras pressões das quais era alvo, Paulo Freire não completou sua gestão como secretário, passando o cargo ao professor Mário Sérgio Cortella, chefe de gabinete, em 1991. Suas orientações, no entanto, foram mantidas até o final da gestão, e acabariam por influenciar outros municípios e governos estaduais no campo da democratização da gestão e das inovações pedagógicas.

Em 1º de maio de 1997, com a saúde fragilizada, Paulo Freire daria entrada no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, para uma angioplastia, mas complicações na reabilitação o levariam à morte no dia seguinte.
Paulo Freire seria agraciado em vida e in memoriam com 48 títulos de doutor honoris causa por diversas universidades no Brasil e no exterior. Instituições de ensino de várias partes do mundo o convidaram para tê-lo no corpo docente. Foi presidente honorário de pelo menos 13 organizações internacionais.

Diversos outros títulos, homenagens e prêmios lhe seriam concedidos ao longo da vida e depois da morte: mais de 350 escolas no Brasil e no exterior receberiam seu nome, assim como diretórios e centros acadêmicos, grêmios estudantis, teatros, bibliotecas, centros de pesquisa, cátedras, ruas, avenidas, praças, monumentos e espaços de movimentos sociais e sindicais.

Em 1995, seria indicado ao Prêmio Nobel da Paz. Em 13 de abril de 2012, foi declarado patrono da educação brasileira por iniciativa da agora deputada federal Luiza Erundina (então no PSB, hoje no Psol).

Seus livros se espalharam pelo mundo. “Pedagogia do Oprimido” ganhou tradução em mais de 20 idiomas. Estudo de junho de 2016 do professor Elliott Green, da London School of Economics, afirma que essa era a terceira obra mais citada em trabalhos da área de humanas em todo o mundo, à frente de trabalhos de pensadores como Michel Foucault e Karl Marx. É também o único título brasileiro a aparecer na lista dos cem livros mais requisitados por universidades de língua inglesa. Em dezembro de 2018, a Revue Internationale d’Éducation de Sèvres, publicação francesa de prestígio, apontou Freire como um dos principais educadores da humanidade.

A despeito de tão vasto reconhecimento, Freire vem sendo reiteradamente desqualificado no debate público brasileiro desde a recente ascensão de setores conservadores.

Na onda intolerante que se formou no país após 2015, a partir da crise do governo Dilma Rousseff (PT), grupos foram às ruas com propostas antidemocráticas, homofóbicas, racistas e machistas. Era comum encontrar nas manifestações frases do tipo “Chega de doutrinação marxista, basta de Paulo Freire!”.

Com a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições do ano passado, as críticas ao educador e ao seu pensamento ganharam reforço contundente, estimuladas pelo escritor Olavo de Carvalho, de quem o presidente é seguidor. Durante a campanha eleitoral, em palestra para empresários no Espírito Santo, o então candidato Bolsonaro afirmou: “A educação brasileira está afundando. Temos que debater a ideologia de gênero e a escola sem partido. Entrar com um lança-chamas no MEC para tirar o Paulo Freire de lá”. E complementou: “Eles defendem que tem que ter senso crítico. Vai lá no Japão, vai ver se eles estão preocupados com o pensamento crítico”.

Em seu discurso de posse, o novo ministro da Educação, Abraham Weintraub, insistiu: “Se o Brasil tem uma filosofia de educação tão boa, Paulo Freire é uma unanimidade, por que a gente tem resultados tão ruins comparativamente a outros países? A gente gasta em patamares do PIB igual aos países ricos”.

A tentativa de banir Freire das escolas angariou forte apoio nas redes sociais desde a campanha. Grupos atacam a qualidade literária dos textos e da pedagogia de Freire, acusando-a de proselitismo político em favor do comunismo; responsabilizam o educador pela piora na qualidade do ensino, argumentando que, quanto mais é estudado e lido nas universidades, mais a educação anda para trás; afirmam que seus escritos estão ultrapassados, que o lugar de fazer política é nos partidos, não nas escolas.

Não há base empírica que comprove essas afirmações. Freire nunca foi comunista, ainda é mais lido nas universidades do exterior do que nas brasileiras, nunca pregou uma educação partidária nas escolas. Do mesmo modo, a crítica à qualidade literária de seus livros não se sustenta. Tais opiniões são proferidas por setores atrasados, que desrespeitam a pluralidade de ideias, sem compromisso com os ideais democráticos de liberdade de opinião. Não reconhecem no educador, tendo lido ou não as suas obras, concordando ou não com o seu pensamento, um interlocutor consagrado e respeitado.

Um dos principais adversários das ideias de Paulo Freire, o movimento Escola Sem Partido se propõe a coibir a doutrinação ideológica nas escolas. Estabeleceu como estratégia política aprovar leis para vigiar as ações de professores nas escolas, produzindo um clima de perseguição política e denuncismo. Em nome de uma inexistente neutralidade, omissos em relação aos verdadeiros dilemas da educação brasileira, tentam desqualificar Freire.

Uma proposta legislativa patrocinada pelo movimento obteve as assinaturas necessárias para que o Senado discutisse retirar o título de patrono da educação brasileira de Freire. Depois de uma intensa batalha, a demanda não foi aprovada.

Freire acreditava no diálogo como método de apreensão do conhecimento e aumento da consciência cidadã. Defendia que os educandos fossem ouvidos, que exprimissem as suas ideias como exercício democrático e de construção de autonomia, de preparação para a vida. Propunha o diálogo efetivo, crítico, respeitoso, sem que o professor abrisse mão de sua responsabilidade como educador no preparo das aulas e no domínio dos conteúdos.

Era contra a educação de uma via só, em que o professor dita aulas e o aluno escuta; em que o primeiro sabe e o segundo, não; em que um é sujeito e o outro, objeto. Para ele, todos tinham o que aportar neste processo de diálogo, assim como todos aprendiam em qualquer processo educativo: “Não há docência sem discência”, afirmaria.

Freire foi criticado também em setores progressistas por ser idealista, por sua linguagem com ênfase no masculino nos primeiros trabalhos, por ser contra o aborto, por desconsiderar os conteúdos nos processos educativos, pela insuficiência do seu método. Nunca foi unanimidade nos corredores das universidades, e nem esperava por isso.

Coerente com o que escrevia e pensava, procurou tratar seus interlocutores e críticos, fossem eles de qualquer espectro, com igual respeito. Aprendia com os diálogos, os debates e as polêmicas nos quais se envolvia, refazendo muitas das suas posições. Olhava a educação como um produto da sociedade, reflexo de projetos políticos em disputa, naturais em qualquer sociedade democrática que aposta no debate de ideias para constituição do seu futuro.

Não acreditava em uma educação neutra, verdade reconhecida há anos pela sociologia da educação, mais uma vez constatada na gestão do ex-ministro da Educação de Bolsonaro Ricardo Vélez Rodríguez. Indicado por Olavo de Carvalho, tentou impor comportamentos e valores para toda a rede de ensino, com propostas de obrigar os alunos a cantarem o hino nacional, controlar as provas do Enem, alterar os livros didáticos para negar que tenha havido golpe militar em 1964, numa clara tentativa de reescrever a história aos moldes do seu grupo político.

Demitido antes de completar cem dias no cargo, Velez apresentava claro apetite para a guerra cultural, mas se mostrava totalmente inoperante para os problemas reais da sua pasta.

O novo ministro, Weintraub, economista com mestrado em administração, atuou por mais de 20 anos no mercado financeiro. A exemplo de Vélez, nunca exerceu cargo de gestor público em educação. É também um seguidor de Olavo de Carvalho e, aparentemente, não deixará de lado o discurso de combate ideológico. Weintraub é mais um que enxerga comunistas em todas as partes, dominando as universidades, os meios de comunicação e, inclusive, setores do mercado.

Em sentido oposto, Paulo Freire, como cristão comprometido com os mais pobres e discriminados, bebeu de diversas teorias para realizar pedagogicamente valores que tinham como fundamento uma profunda crença na capacidade de o ser humano se educar para ser partícipe na construção de um mundo melhor, de acordo com os seus interesses.

Em seu percurso intelectual, não se ateve a uma corrente de pensamento, tendo sido muitas vezes criticado por isso. Escolhia, dentre as diversas teorias, aquelas que melhor ajudassem a realizar o seu compromisso ético de cristão ao lado dos oprimidos, inclusive o marxismo. Em diálogo com Myles Horton, educador norte-americano, no livro “O Caminho se Faz Caminhando”, reafirmaria sua postura: “Minhas reuniões com Marx nunca me sugeriram que parasse de ter reuniões com Cristo”.

Quando perguntado, Freire não se recusava comentar de forma crítica os abusos do regime comunista. Na mesma entrevista citada no início deste artigo, afirmou que o fim do comunismo no Leste Europeu havia representado uma queda necessária não do socialismo, mas de sua “moldura autoritária, reacionária, discricionária, stalinista”.

Freire deixou um texto inacabado, interrompido pela sua morte, posteriormente publicado por Nita, sua segunda esposa, em “Pedagogia da Indignação”. Nele, comentava o assassinato do índio pataxó Galdino Jesus dos Santos, queimado vivo por cinco jovens em Brasília. “Tocaram fogo no corpo do índio como quem queima uma nulidade. Um trapo imprestável”, escreveu. Refletindo sobre quem seriam os jovens, indagou que exemplos, testemunhos e ética os levariam a essa “estranha brincadeira” de matar gente. “Qual a posição do pobre, do mendigo, do negro, da mulher, do camponês, do operário, do índio neste pensar?”

Diante do ocorrido, proclamaria o dever de qualquer pessoa que educa de lutar pelos princípios éticos mais fundamentais. Concluiria afirmando que, “se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”.

Em “Política e Educação Popular”, um dos mais importantes trabalhos sobre Freire, o professor Celso Beisiegel afirma que o seu compromisso do educador com os oprimidos estaria levando a um estreitamento das possibilidades de utilização das suas práticas pedagógicas —referia-se ao tempo dos governos autoritários instalados na América Latina nos anos 1960 e 1970. Beisiegel questionava se o educador não estaria se aproximando da realização daquela imagem do “ser proibido de ser”, concluindo: “Não seria inaceitável dizer que Paulo Freire veio se aproximando da realização da figura do educador proibido de educar”.

Não é muito distante do que está ocorrendo hoje no Brasil.

Sérgio Haddad é doutor em educação pela USP, pesquisador da Ação Educativa e professor da Universidade de Caxias do Sul. Prepara biografia de Paulo Freire a ser lançada pela Editora Todavia.