Grandes desafios para a economia brasileira

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Depois de três anos de desaceleração e crise econômica, marcadas por alto desemprego, queda considerável da renda e do salário, incremento da inflação e do endividamento público, além de um déficit crescente e de muita instabilidade política, o Brasil inicia um ciclo modesto de recuperação econômica e melhora no ambiente de negócios.

Com a recessão e os desequilíbrios econômicos, os investimentos foram reduzidos, de um lado as empresas acumularam grandes estoques e, com isso, evitavam aumentar seus investimentos produtivos; de outro, o incremento nos trabalhadores desempregados, sem salários e sem rendas, sem empregos estes trabalhadores não possuíam recursos para adquirir seus produtos e mercadorias necessárias para a sobrevivência e de seus familiares, levando uma parte substancial dos trabalhadores a viver em condições degradantes e indignas, com isso, percebemos um aumento na pobreza e na marginalidade.

A crise gerou graves impactos sociais, o incremento do desemprego levou mais de 12 milhões de pessoas para a desesperança, com impactos diretos sobre o consumo e para todo o ciclo econômico, gerando graves consequências sociais, como violência urbana e insegurança pública, com aumento na criminalidade, novos medos e desestruturação familiar, impulsionadas pelo incremento do tráfico, das milícias e no crime organizado.

A situação recessiva da economia brasileira contribuiu para a degradação das finanças dos governos federal, estaduais e municipais, com isso, muitos fornecedores ficaram sem receber seus pagamentos, os trabalhadores tiveram seus salários atrasados e as condições de vida destes pioraram rapidamente, gerando uma espiral de medos e instabilidades, esta situação de desesperança perdura até os dias atuais e as perspectivas de melhora econômica se fazem mais presentes, embora bastante tímidas e insuficientes.

O ambiente econômico se degradava rapidamente devido a crise política, a abertura de um processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff elevou a instabilidade econômica e piorou o comportamento dos setores produtivos, o clima era de grande preocupação e desesperança, a inflação crescia rapidamente, o endividamento público aumentava e o déficit público cresceu rapidamente, as empresas de classificação de risco rebaixaram as notas do país e a situação econômica se degradou de forma acelerada.

Muito se discutiu na época se o impeachment fora motivado por crimes de responsabilidade ou por mero interesse golpista, acredito que o processo esteve atrelado a ambas as justificativas, a contabilidade criativa aconteceu, embora não tenha ocorrido apenas no mandato desta presidente, muitos cometeram as irregularidades e não foram punidos com a mesma rigidez. O processo foi motivado pela fragilidade da presidente em controlar o jogo político e propor uma agenda mais assertiva para todos os agentes produtivos, sem força politica e carisma pessoal, o resultado foi um processo longo e desgastante para a sociedade e com graves impactos econômicos e financeiros para a economia do país.

Com a queda da presidente Dilma Rousseff e a ascensão de Michel Temer, medidas econômicas mais liberais foram introduzidas, a inflação fora controlada, as taxas de juros se reduziram, as perspectivas econômicas melhoraram, mas mesmo assim, o tão desejado crescimento econômico não apareceu, o número de desempregados pouco se reduziu, a violência urbana cresceu de forma acelerada, apenas em 2017 foram registrados mais de 60 mil homicídios, o ambiente de insegurança crescia, levando o governo federal a intervir na segurança pública do estado do Rio de Janeiro, além da péssima situação das contas públicas, que pouco reagiram a nova política econômica.

Depois de uma eleição conturbada, o candidato Jair Bolsonaro assume a presidência e inicia uma nova estratégia política para a nomeação de ministro e subordinados, dentre os nomeados destacamos o Ministro da Economia Paulo Guedes e o Ministro da Justiça e da Segurança Pública, o ex-juiz Sérgio Moro, iniciando uma nova gestão carente de ideias e políticas mas marcado fortemente pelo apoio dos setores militares e da igreja evangélica, dois braços importantes do governo, além do filósofo Olavo de Carvalho, radicado nos Estados Unidos e descrito como o grande ideólogo do presidente.

Depois de pouco mais de 100 dias de governo, tempo insuficiente para uma reflexão mais estruturada e complexa do novo governo, percebemos alguns traços e rabiscos estranhos do novo governo, discussões constantes, comentários exagerados, postagens excessivas e uma grande dose de desastres, principalmente no campo da Educação e das Relações Exteriores, ambos comandados por pessoas pouco expressivas na sociedade e muito vinculadas aos pensamentos ideológicos da direita, descritos como liberais na economia e conservadores nos costumes.

Na educação, percebemos um desgoverno crescente, pouco mais de três meses de mandato, o Ministro Ricardo Velez Rodrigues pouco trouxe de novidades, neste curto período, muitos foram substituídos, confrontos ficaram evidentes entre grupos variados e as políticas efetivas e emergenciais ainda não se fizeram presentes, apenas uma vaga proposta de combate a corrupção aos moldes da Lava a Jato e uma guerra aberta a proposta de escola sem partido e uma tal de ideologia de gênero.

Depois de chegar aos 100 mil pontos, num momento de excitação e grandes expectativas do mercado com as propostas liberais do Ministro Paulo Guedes, a Bolsa de Valores perdeu um pouco do ânimo e os investidores passaram a desconfiar do governo, tudo isto devido as fragilidades da articulação política, marcadas por imaturidades constantes, dificuldades de intermediação política, muitas tuitadas infelizes e pouca efetividade na defesa da proposta, até mesmo o presidente Jair Bolsonaro defende as reformas econômicas de forma constrangida e sem convicções mais sólidas, deixando o mercado em polvorosa e criando expectativas negativas para o futuro próximo.

Depois de duas viagens internacionais, terminamos a semana com o presidente da Câmara dos Deputados fazendo inúmeras críticas ao governo, definindo-o como um deserto de ideias e projetos, segundo este, o presidente precisa sair das redes sociais e passar a governar o país, deixar de falar asneiras e assumir suas responsabilidades como mandatário máximo da nação, somente assim, o país poderá sonhar com uma guinada na situação econômica e um alento a quase 12 milhões de desempregados, que buscam novas oportunidades no mercado a mais de quatro anos, muitos deles sobrevivendo em condições pouco dignas e deploráveis.

Cabe ao governo iniciar as discussões políticas em torno da Reforma da Previdência, conversar, dialogar e negociar com todas as forças e grupos políticos são formas salutares de construir consensos, consensos estes importantes para o sucesso da empreitada, sem esta reforma a economia tende a perder força e os impactos serão sentidos por todos, principalmente pelos grupos mais frágeis e desprovidos de perspectivas da população.

Outro ponto que deve ser destacado, depois que a eleição terminou, cabe ao governo reestruturar o discurso, adotar uma política de inclusão e conversação constantes, afinal, não foi apenas o executivo federal quem foi eleito, mas todos os deputados e senadores, suas demandas devem ser vistas com normalidade e aceitas como parte do jogo democrático. Todas as vezes que o presidente da República, um de seus filhos ou subordinados fazem críticas excessivas a classe política, dizendo que esta quer apenas barganhar cargos e recursos públicos, o resultado é uma criminalização da política, sendo que esta deve ser vista como um instrumento fundamental para a sociedade e para a melhoria das condições sociais, criminalizar a política pode abrir espaço para atitudes negativas e autoritárias, além de retrógrada e desnecessária.

Neste ambiente de instabilidades e medos constantes, cabe aos grupos organizados da sociedade civil diminuírem estes discursos agressivos e inflamados, muitos grupos se digladiam em conflitos constantes em redes sociais, setores da classe média e aficcionados pelo governo deixam de lado seu espírito crítico e passam a defender medidas idiotas como forma de marcar posição, pensam em si e esquecem da situação deplorável do país, suas dificuldades políticas e sua divisão interna.

A reforma da previdência é deveras importante para o país, faz-se fundamental destacar que, com o envelhecimento da população e a maior longevidade dos indivíduos, além das inúmeras mudanças na estrutura do trabalho, onde os entrantes estão diminuindo e os aposentados aumentando, as preocupações com relação a sustentabilidade deste sistema são inúmeras, com isso, a reforma se justifica de forma urgente e necessária.

Para viabilizar esta proposta, cabe ainda ao governo melhorar o Benefício de Prestação Continuada (BPC), evitando um aviltamento tão elevado como foi a proposta original enviada ao Congresso em fevereiro, além disso, em uma situação de desequilíbrios fiscal e orçamentário, o governo comete o equívoco de propor reestruturação salarial para as carreiras militares, deixando claro o corporativismo que envolve a presidência do capitão Bolsonaro, sem um ataque frontal ao corporativismo, dificilmente teremos êxito no reequilíbrio das contas públicas e na superação da crise econômica.

Estamos num momento crucial para nos colocarmos como um país civilizado ou vamos descambar para a barbárie, atender a todas as demandas inviabilizaria o país e levaria a economia a uma situação de degradação, sem fazer a reforma num curto espaço de tempo a situação econômica também se degradará. Diante da inevitabilidade desta reforma, sabendo que é uma medida inexorável, cabe ao governo apertar os fraudadores, cobrar os inadimplentes e taxar aqueles que pouco pagam, somente assim se conseguirá mostrar para a sociedade que o esforço exigido para a confecção desta reforma será de todos, desde aqueles que residem nas favelas e nos sertões até os moradores dos condomínios de luxo e dos bairros de elite, todos os indivíduos, indistintamente, devem contribuir.

Embora saibamos da importância da reforma da previdência, o atual governo ainda não conseguiu propor nada na seara econômica, depois de 100 dias de mandato, conversas desnecessárias, discursos ideológicos, debates e comentários chulos e inapropriados, nos parece claro que a equipe econômica coloca toda suas fichas na Reforma da Previdência, sem ela, dificilmente teremos condições de governabilidade nos próximos anos e todos seremos afetados pela degradação das condições econômicas, embora tenhamos inúmeras restrições ao grupo político que ora controla a administração federal, mais alguns anos de degradação econômica e política trará resultados sociais jamais vistos, embora pacatos e ordeiros, como muitos definem o cidadão brasileiro, a revolta e a indignação tendem a crescer e se transformar em um grande estopim para uma nova primavera, cuja destruição será de grandes proporções.

 

 

 

Inchaço de verba de universidade pública não teve contrapartida, diz Claudio Haddad

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Folha de São Paulo, 24 de março de 2019 – Por Érica Fraga

Claudio é fundador do conselho deliberativo do Insper, que completa duas décadas.

O orçamento das universidades públicas aumentou muito no Brasil sem a contrapartida de resultados, como a presença do país nos rankings das cem melhores instituições do mundo.

A opinião é de Claudio Haddad, 73, fundador e presidente do conselho deliberativo do Insper, instituto de ensino superior e pesquisa sem fins lucrativos, que completa duas décadas neste mês.

“O problema grave de governança” das universidades públicas, diz ele, é apenas parte do panorama ruim do ensino brasileiro, do nível básico ao superior, que indica que a educação é prioridade da “boca para fora” no país.

A falta de responsabilização dos gestores pela baixa aprendizagem, apesar dos investimentos maiores nos últimos anos, ajuda, segundo Haddad, a explicar o cenário.

Numa espécie de círculo vicioso, as deficiências que os alunos herdam da escola limitam a qualidade das faculdades. Por isso, Haddad considera injustas as críticas sobre a natureza da expansão do ensino superior privado:

“Não há faculdade que faça o milagre de resolver todos os problemas da educação passada”, diz ele que, atualmente passa parte do ano em Portugal.

Nesse contexto de tantos problemas, Haddad diz acreditar que atitudes recentes do atual governo —como o anúncio de que haveria uma Lava Jato do ensino superior privado— desviam a atenção do essencial, que é a aprendizagem.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, foi sócio de Haddad nos primeiros anos do Insper, antes de a instituição receber esse nome e se tornar uma entidade sem fins lucrativos. As desavenças dos dois foram, segundo Haddad, um momento preocupante na trajetória do projeto.

Entre as conquistas importantes, ele lista o programa de bolsas para alunos de baixa renda e a expansão contínua do Insper, que chega aos 20 anos com a inauguração de um prédio novo e a contagem regressiva para o início de novos cursos, como graduação em direito e mestrado em jornalismo.

Qual é o seu maior orgulho em relação ao Insper?
Fico orgulhoso de tudo. Foi uma trajetória que envolveu um número grande de pessoas. E educação é um setor em que a tradição conta muito, né? Para um aluno ir para uma escola começando do zero é preciso um voto de confiança muito grande.

Quando o sr. sentiu que tinha decolado?  
A escola foi ficando conhecida, principalmente após a formatura da primeira turma, que acabou em terceiro lugar no provão do país, que era tipo o Enade [Exame Nacional de Desempenho de Estudantes] da época. As pessoas viam que cumpríamos o que prometíamos, procurando inovar não apenas por inovar, mas para melhorar. Aluno bom chama aluno bom, professor bom chama professor bom, e aí a coisa vai andando.

Qual foi o momento que mais preocupou o sr.?
Um evento importante foi minha separação do meu sócio, quando comprei a participação dele. Tínhamos uma cláusula no contrato de compra e venda, tivemos divergências estratégicas.

O sócio do sr. era o Paulo Guedes? Qual era a principal divergência entre vocês? 
Ele queria expandir mais rápido, queria um modelo tipo a FGV, de franquia. E tinham várias outras coisas. Eu estava mais interessado em ter uma entidade de excelência, um modelo de universidade americana privada.

Na época, era com fins lucrativos ainda, mas eu tinha em mente —talvez sem ter muita consciência— ser sem fins lucrativos. Então, exerci a cláusula, dei um preço e ele optou por vender. Isso foi em 2003.

Em 2013, o sr. disse à Folha se incomodar com a visão de que o Insper era uma escola de elite. Acha que isso mudou?
Mudou muito. Os bolsistas, por exemplo, são hoje 12,6% dos alunos.

A ideia é expandir esse percentual?
A ideia é que qualquer aluno que passe no vestibular e queira ficar no Insper, fique, independente de patrimônio ou renda. Claro que o sistema brasileiro é perverso. Os melhores alunos do ciclo básico são de escolas privadas caras. Felizmente há exceções, o mundo é estocástico, não é determinístico.
Então, apesar de as pessoas terem um background familiar complicado, muitos conseguem ir para a frente. O nosso problema é que o aluno olha o Insper e fala “é escola de rico, nem vou fazer vestibular”.

Isso ainda existe?
Existe um pouco. Então a gente diz “olha, tem bolsa, você será acolhido aqui se passar”, e isso está sendo gradualmente disseminado, mas demanda tempo. Ainda temos poucos candidatos de outros estados, gostaríamos de ter mais. Abrimos uma entrada via Enem, justamente para evitar que o candidato precise vir até aqui.

As mudanças no Enem têm ajudado?
Ajudaram em alguns sentidos. O problema é que os resultados saem muito tarde, no início do ano. Isso complica nosso processo de seleção.

O Enem tem sido alvo de polêmicas. O presidente Jair Bolsonaro manifestou a intenção de ler a prova antes de sua aplicação. O que o sr. acha disso?
Acho que cada macaco no seu galho. O presidente precisa presidir o país ao invés de olhar prova de admissão de qualquer lugar.

O Insper está em expansão, mas em um contexto de crise do ensino superior. O ensino privado teve uma expansão problemática. Como o sr. avalia isso?
Acho que não se pode falar do ensino superior sem falar do básico. O panorama do ensino básico ainda é trágico. Estamos lidando com um público que se forma no ensino médio com muitas lacunas. Isso impacta a qualidade do ensino superior.
Quantos alunos que se formam no ensino médio têm condições de cursar um Insper, uma FGV? Poucos.
Mas eles têm que ser atendidos de alguma maneira. O ensino privado surgiu pra atender a essas pessoas.
A qualidade do aluno que vem, em termos acadêmicos, deixa a desejar em função das lacunas que ele teve. Não há faculdade que faça o milagre de resolver todos os problemas da educação passada.
Então, acho a crítica de que se expandiu muito o ensino superior privado com qualidade ruim um pouco superficial. Não acho que foi ruim. Atende a uma necessidade. O aluno sempre ganha alguma coisa fazendo mais quatro anos de um curso.

Há pessoas formadas em vagas de baixa qualificação, fazendo faxina. Estudos feitos para alguns países mostram que o aluno pode nunca recuperar o gasto no ensino superior.
Pode acontecer. Acontece na Europa e nos Estados Unidos também. Tem o problema de certos cursos que efetivamente não acrescentam valor. Se a gente acredita no mercado, eventualmente as pessoas deveriam demandar menos desses cursos.
A universidade pública, por outro lado, sofre um problema grave de governança.
É de graça, o que também é questionável, porque boa parte dos alunos vêm de escolas caras e poderiam contribuir.
Mas quanto à governança, elas recebem dinheiro sem contrapartidas e sem cobrança.
O orçamento das universidades federais aumentou muito. E o que isso gerou em termos de melhor qualidade? Não sei. Acho que continuamos sem nenhuma universidade de peso no Brasil entre as cem melhores do mundo. Mesmo comparadas a outras da América Latina, acho que estamos pra trás.
E temos poucas entidades privadas com qualidade que sejam sem fins lucrativos e entrem em pesquisa. O Insper é uma delas, a FGV é outra, mas são relativamente poucas. Esse é o problema do ensino superior. E não é bom. Há anos se fala que o ensino é prioridade, e tudo mais, mas as coisas evoluem muito devagar.

Se é prioridade, porque não vai mais rápido?
Acho que a prioridade é um pouco da boca pra fora. Acho que é um problema basicamente de gestão. Onde as pessoas querem elas fazem acontecer. Aconteceu em Sobral (CE), em uma ocasião, no Rio de Janeiro, em Foz do Iguaçu. Em Pernambuco está acontecendo. No Espírito Santo também.
Não é querer por querer. É preciso identificar as pessoas que vão tocar, adotar metas, cobranças. Ver o que funcionou e não funcionou.
O problema da educação é que ninguém é responsável por nada. Aumentou-se muito a verba para educação nos últimos anos. E os resultados? Melhoraram? Alguém foi responsabilizado?

Deveria haver responsabilização?
Sim, é o que acontece com uma empresa. O cara fala: eu preciso de tantos milhões para montar o projeto. Aí não acontece o resultado, o que se faz? “Tudo bem, toma mais esses milhões de novo?” Não.

Voltando ao ensino superior, o MEC falou há pouco em uma Lava Jato da educação. Como esse tipo de situação afeta o setor? 
Não tenho conhecimento para falar de Lava Jato na educação. Acho que, se quer fazer alguma coisa, se faz. Não fica anunciando. Acho que isso tudo é muita perda de tempo, muita conversa sobre temas que não são fundamentais. O fundamental é o ensino e o aprendizado.

Como o sr. avalia a economia brasileira?
Tivemos problemas sérios. Precisaríamos retomar o crescimento de maneira rápida, mas não vejo isso acontecendo. Temos muitos problemas na parte fiscal, reformas que precisam ser feitas e não serão fáceis.

O governo parece caminhar na direção certa?
Não sei, acho a coisa ainda bastante confusa. Algumas propostas parecem muito boas.

Como qual? Acho essa proposta mais ambiciosa da Previdência ótima, mas tem que conversar no Congresso porque não é nada trivial. Acho que há clima para alguma reforma da Previdência, nem que seja paliativa por alguns anos.

Tendo trabalhado com o Paulo Guedes, o sr. acha que ele tem o perfil para conduzir o país nesse desafio? Prefiro não falar sobre isso. O Paulo é muito inteligente e articulado.

Claudio Haddad, 73

Formado em engenharia mecânica e industrial pelo Instituto Militar de Engenharia, doutorado em economia na Universidade de Chicago. É fundador e presidente do conselho deliberativo e da assembleia de associados do Insper. Membro do conselho de administração do Instituto Unibanco. Preside o conselho consultivo do escritório brasileiro do David Rockefeller Center para estudos latino-americanos da Universidade Harvard. Foi diretor do Banco Central e sócio do Banco Garantia.

Os invisíveis do sistema

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14.09.2017

Desde 2013, quando foi publicado O Capital no Século XXI, o do economista francês Thomas Piketty, o problema da desigualdade entrou no foco das preocupações com o mundo contemporâneo. 

Para Saskia Sassen, uma referência em sociologia urbana, porém, a desigualdade é apenas um aspecto parcial do problema atual mais profundo: os “perdedores” do sistema econômico são verdadeiramente expulsos, tornam-se invisíveis, deixam de ser contados nas estatísticas e praticamente desaparecem.

Esse é o tema de seu livro Expulsões: Brutalidade e Complexidade na Economia Global, em que a professora da Universidade Columbia descreve as expulsões não apenas das populações desempregadas, refugiadas e carcerárias, mas também da crise ambiental, com a extinção de espécies e a “morte” de terras e águas.

“A terra morta pode ser um terror para quem vive nela. Pense nos milhões de pessoas que querem deixar seus países não só por causa de guerras, mas também porque a terra morreu”, diz em entrevista.

O subtítulo do livro (“Brutalidade e Complexidade na Economia Global”) sugere que os sistemas mais complexos frequentemente levam a efeitos bastante simples e, mais do que isso, brutais. Como se dá esse processo?
Saskia:
 Os maiores exemplos são os seguintes: primeiro, a matemática algorítmica, crucial no setor financeiro.

É o caso da hipoteca subprime, que nunca se destinou a oferecer moradias para famílias de baixa renda, mas a gerar títulos lastreados em ativos, no contexto de um circuito de alto investimento que não aguentava mais derivativos garantidos por outros derivativos.

Segundo o Fed, mais de 14 milhões de famílias perderam suas casas nesse período histórico curto e brutal, que durou oito anos. Outro caso é a exploração de petróleo por fracionamento, uma modalidade de mineração muito complexa, que resulta na destruição selvagem de rochas e no envenenamento de cursos d’água.

Um exemplo simples é a exportação de empregos. Exige uma logística complicadíssima, engenheiros brilhantes, e para quê? Pagar salários baixos e valorizar as empresas no mercado acionário.

Qual é o papel do conhecimento nessa brutalidade? O que se pode mudar na maneira como ele é produzido e disseminado?
Saskia: 
Nos circuitos do capital, o conhecimento raramente é inspirador; é apenas uma ferramenta. O uso dessas formas extremamente complexas de conhecimento para produzir brutalidades elementares é um elemento central do funcionamento do atual sistema econômico.

Desde os anos 1980, com a desregulamentação e a privatização, entramos num período marcado pelo domínio de setores extrativistas; pense no Google e no Facebook: uma vez que criaram suas plataformas digitais, que são brilhantes, tornaram-se extrativistas.

O Google coleta os dados disponíveis sobre todos nós, cria pacotes a partir deles e os vende a outras empresas. Isso é extração. Também penso que muitos componentes da alta finança, hoje, são extrativistas. Esses setores são dominantes, como depois da Segunda Guerra Mundial [1939-1945] o consumo de massa foi dominante.

Em 1990, o filósofo Gilles Deleuze [1925-1995] previu a emergência de “sociedades de controle”, caracterizadas por sistemas informáticos que determinariam automaticamente acessos e bloqueios. Os algoritmos realizaram a “sociedade de controle”?
Saskia: 
Sim e não. Temos que ir além de uma ideia tão ampla. Produzimos os instrumentos que geraram essa situação, e o que me interessa é a variedade de processos e formas de conhecimento necessárias para tanto. Só que o perigo não está só nos sistemas poderosos de controle, mas também na psicologia que resulta deles.

E podemos lutar contra isso. Por fim, em toda sociedade há pessoas e espaços que não podem ser alcançadas mesmo pelo sistema mais poderoso.

O inimigo mais forte não é o próprio sistema, mas nosso conhecimento falho do perigo, até que seja tarde demais e acabemos sendo moldados. É o caso do Facebook e das histórias falsas sobre a eleição americana em que os leitores acreditaram. A incapacidade de entender o que está sendo feito é um enorme perigo.

A senhora introduz o conceito de expulsão para mostrar que a questão no mundo atual é mais do que de desigualdade: os prejudicados estão de fato fora do sistema. Mas eles não deixam de existir. O que acontece com eles?
Saskia: 
Eles se tornam invisíveis para nossas categorias de análise, para nossas medições da economia e das condições gerais da população. Quando o governo americano diz que o desemprego caiu para 4%, deixa de fora um bom número de desempregados que simplesmente não são mais contados, mas existem, são corpos plenamente materiais.

Essa tensão entre o material e o fato de que ele pode tornar-se invisível também pode ser percebida a respeito de condições muito distintas, como a terra morta. Uma vez que a terra está morta, esquecemos dela, ela desaparece de nossas medições padronizadas da economia.

Os expulsos exercem alguma pressão de fora sobre o sistema?
Saskia: 
É uma questão complicada: se os expulsos podem afetar o sistema. São pessoas que continuam vivendo, mesmo que na miséria. E podem estar vivendo bem no meio de um grande centro urbano.

Por exemplo, um homem negro de 33 anos que nunca teve um emprego, que se vira como pode para ter o que comer, que dorme em lugares diferentes a cada noite, para que a polícia não o reconheça. Nas economias avançadas, há milhões de pessoas e famílias inteiras nessa condição.

O mesmo vale para a terra morta?
Saskia: 
No caso da terra morta, ela está ali, mas um governo como o americano não se importa. Nem sequer fazem mapas oficiais mostrando terra morta. Como se o problema não existisse. Mas a terra morta pode ser um terror para quem vive nela.

Pense nos milhões de pessoas que querem deixar seus países não só por causa de guerras, mas também porque a terra morreu. E não há lei que reconheça o refugiado que foge de um país porque não sobrou terra nenhuma.

São refugiados de um tipo particular de “desenvolvimento” econômico. Uma porção cada vez maior da terra pertence a corporações enormes e poderosas.

O crescimento acelerado das favelas e periferias não é acidente. Todo ano, milhões de pequenos agricultores são expulsos de suas terras, substituídos por uma mina, uma nova expansão urbana etc. O único lugar aonde podem ir são as favelas das grandes cidades.

Um sistema baseado em extrativismo e expulsões foi o colonialismo. Muitas de suas descrições fazem pensar na lógica colonial. Como o modelo das expulsões se compara ao colonialismo?
Saskia: 
Entramos em um modo diferente do colonialismo. É provavelmente melhor não usar esse termo para descrever o período atual.

Eis algumas das principais diferenças. Este é um colonialismo puramente extrativista, ao contrário dos antigos impérios, que tinham projetos mais amplos, como a “missão civilizadora” da França, ou os britânicos, que formavam e educavam indianos para compor os estratos médios da burocracia imperial.

Hoje, não há mais nada disso. Uma vez que se extraiu o que era desejado, as corporações simplesmente vão embora. Esta época é governada por uma lógica extrativista, incluindo setores que nunca pensamos como extrativistas.

A senhora crê que o Acordo de Paris e outras resoluções das conferências climáticas da ONU serão eficazes para evitar que mais terra e mais água morram?
Saskia: 
Esse acordo e os outros anteriores nos deixam longe de resolver a destruição ambiental. Mas é uma grande vitória, porque produziu um consenso. Há muito mais pessoas falando em mudança climática e mais empresas tentando se tornar sustentáveis, até onde isso seja possível.

Revoluções precisam de décadas para amadurecer, e esse é um primeiro passo. Ao mesmo tempo, biólogos, ecologistas e outros cientistas estão produzindo inovações que vão bem além do acordo. Gosto de me concentrar nessas inovações, em vez dos acordos gerais, mais tímidos, que têm impacto limitado.

No livro, lemos que a fronteira entre quem permanece no sistema e quem é expulso está se fechando cada vez mais sobre os de dentro, a ponto de atingir as classes médias dos países ricos. Qual é o limite desse fechamento?
Saskia: 
São fronteiras tão brutais que, nas sociedades ocidentais, só afetam os mais pobres ou discriminados, mesmo se hoje até os filhos da classe média estão sendo privados de direitos.

Os números, especialmente nos EUA, deixam claro que setores crescentes das classes trabalhadoras acabaram em situação de pobreza e desespero, principalmente famílias negras. E o mesmo ocorreu a setores das classes médias. Os sistemas complexos da economia e da sociedade tornam muitos trabalhadores irrelevantes.

Minha preocupação, ao identificar essa noção de limites sistêmicos dentro de economias nacionais, também é, em parte, criar uma contrapartida para a noção de que a globalização elimina fronteiras. Ora, ao mesmo tempo, estamos construindo barreiras dentro dos países.

A senhora argumenta que os expulsos se tornam invisíveis, e que só enxergamos o lado positivo do desenvolvimento econômico. O mesmo vale para as partes do mundo em que o crescimento inclui populações no consumo de massas?
Saskia: 
Sim. As fronteiras da expulsão dos sistemas (econômico, social, biosférico) são fundamentalmente diferentes das fronteiras geográficas dos Estados.

O foco na fronteira vem de uma das principais hipóteses do livro: que a passagem da era keynesiana à era das privatizações e da desregulamentação conduziu à passagem de uma dinâmica que incluía para uma dinâmica que exclui.

Ainda falta ver se essa passagem da incorporação à expulsão também está emergindo na China e na Índia, mas já há elementos. Na China, a incorporação de uma massa de pessoas na economia monetária injetou-as numa dinâmica em que são “pobres monetizados”. A desigualdade também está explodindo na China, com novas formas de concentração econômica no topo. Sem falar no bullying corporativo.

No lado mais brilhante da economia global, parece existir uma tendência à monumentalidade, tanto em eventos esportivos quanto em construções de cidades como Dubai e Hong Kong. Como essa monumentalidade se relaciona com o tema das expulsões?
Saskia: 
Existe algo como 30% ou 40% da população que formam classes médias altas e elites com muito dinheiro.

Devemos concentrar menos atenção no 1%, os mais ricos dos ricos, e olhar para essas pessoas que se tornaram bem mais ricas do que jamais puderam imaginar. São eles que tornam a concentração de riqueza visível. Reinventam grandes partes das cidades a partir de seus desejos. Expulsam as classes modestas que viveram naqueles bairros por gerações, porque “precisam” de mais espaço para mais mansões e shoppings de luxo.

As tecnologias inteligentes e o emburrecimento social

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Richard Sennett

A grande história do que está acontecendo na revolução tecnológica hoje, no que se refere às cidades, e suspeito que seja igual em outros campos, é que a tecnologia está se tornando cada vez mais primitiva socialmente.

Podemos usar a tecnologia muito bem. É necessário para lidar com o funcionamento de uma cidade. Mas, agora, estamos usando a tecnologia para dizer às pessoas o que fazer, em vez de proporcionar uma ferramenta que mostre opções.

Coisas como o Google Maps dizem às pessoas para onde ir e como chegar lá. Estamos, em outras palavras, emburrecendo a quantidade de informação à disposição das pessoas. Google Maps é uma operação de emburrecimento.

O que quero é algo que estimule as pessoas a pensarem indutivamente sobre onde estão, sobre o tipo de lugar onde estão — e que dê a elas as ferramentas para fazê-lo. Temos a tecnologia para isso, mas não é uma tecnologia que estamos usando.

Por exemplo, você está em um bairro e quer ir para outro lugar bem diferente. Simplesmente ter um mapa com o caminho mais rápido não é inteligente. Você quer saber que tipo de lugar é esse para o qual você está indo. Se você pegar um caminho, que tipo de experiência terá caminhando até lá, em vez de outra rota?

Para isso, é necessário outro tipo de informação além de apenas desenhar a menor linha entre duas coisas ou mostrar que tipo de transporte público, ou como dirigir até lá. Isso é uma redução de informação. Você não está aprendendo o ambiente.

Portanto, a tecnologia está sendo concebida para entregar um produto social cada vez mais primitivo, elas estão se tornando cada vez mais monopolistas e uniformes. Elas entregam um produto que pode ser padronizado e vendido em todo lugar.

Ao passo que, se você usar o tipo de tecnologia de que gosto, o Linux, que é um kernel de código aberto, você terá diversas formas de se relacionar com as pessoas. Se as coisas continuarem assim, em dez anos você terá na web um recurso desperdiçado. Isso será como se a complexidade regredisse, o que é terrível.

Porém, há uma coisa que vocês podem fazer. Vocês não precisam esperar alguém passar uma lei para começar a se comunicar de formas diferentes uns com os outros. O Linux está aqui e existem diversas outras ferramentas de código aberto que permitem programar de forma que não essa função padronizadora.

Minha noção de cooperação é que, quanto mais as pessoas cooperam uns com os outros, mais problemas encontram quanto mais se aprofundam nas coisas. A forma como o Google entende cooperação é que, quanto mais cooperativo se é, mais as pessoas concordam.

E, de novo, isso é uma espécie de abuso de tecnologia. Nós não enxergamos as coisas apenas como sim ou não. Ou como isso ou aquilo. As pessoas nunca pensam apenas isso ou aquilo, elas pensam tudo.

Contribuição colaborativa é diferente de inteligência coletiva. Contribuição colaborativa é quando você tem uma quantidade enorme de pessoas, especialmente na internet, contribuindo com uma opinião, e pega uma média disso.

A maioria, digamos, dois milhões de pessoas pensam X e um milhão pensa Y. Não há espaço para inteligência nisso. É apenas um concurso de popularidade. Além disso, o milhão de pessoas que pensam Y podem estar certos.

Temos a tecnologia para obter respostas mais complexas e fazer um desenho disso. Sabemos como fazer isso. Mas, novamente, a tecnologia não está sendo usada assim. É por isso que odeio pesquisas de popularidade de políticos.

Isso não é inteligência coletiva. É apenas simplificar uma questão e obter um sim ou um não. E isso é culpa, não do público, é culpa da forma como as questões são apresentadas ao público.

Como eu digo, hoje temos a tecnologia para produzir um retrato muito mais complexo, um retrato muito mais inteligente da opinião pública. Mas não a usamos.

Mídias sociais reduzem a capacidade de aprender, diz Richard Sennett

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por Leandro Cólon/Folha de São Paulo – 11.08.2015

O sociólogo americano Richard Sennett, 72, afirma que a onda das mídias sociais tem reduzido a capacidade das pessoas de adquirir conhecimento externo. Em entrevista à Folha, ele diz que o modelo cada vez mais customizado da internet cria um cenário sem elemento “surpresa” no cotidiano.

Um dos sociólogos mais prestigiados, Sennett publicou em 1977 o clássico O declínio do homem público, em que aborda, entre outras coisas, as mudanças de comportamento do homem desde o século 18, sobretudo em relação a intimidade, individualismo e exposição. O que escreveu há quase 40 anos, diz ele, ainda se aplica hoje, agora num contexto do mundo eletrônico da web.

Nascido em Chicago, Sennett recebeu a reportagem na London School of Economics, onde leciona. É professor também da New York University e entre seus livros está em Juntos, obra de 2012 em que defende o conceito de cooperação entre os indivíduos.

O sociólogo, que integra a comissão de reorganização urbana de Atenas como parte da conferência da ONU de 2016 sobre o futuro das cidades (Habitat), diz que a criação de cooperativas informais é fundamental para países como Grécia e Brasil reagirem às turbulências econômicas. Na entrevista, Sennett critica os shoppings no Brasil e as “cidades inteligentes”.

Richard Sennett estará em Porto Alegre no dia 24 de agosto e em São Paulo no dia 26 para conferências no Fronteiras do Pensamento, copatrocinado pela Folha de S.Paulo. O sociólogo sobe ao palco ao lado de sua esposa, a também socióloga Saskia Sassen.

Como o senhor vê as mudanças no comportamento das pessoas tantos anos depois de publicar O declínio do homem público?
Richard Sennett:
 Há 40 anos, havia muitas questões sobre a transformação da presença física das pessoas em público, e agora temos os mesmos problemas: perguntamo-nos sobre a presença na web. As mídias sociais aumentam a discussão entre o público e o privado.

Não tínhamos nada parecido nos anos 70 e fico impressionado como ainda nos atingem questões sobre a noção do uso de espaço público para autoexposição e interação real. Como analista social, é deprimente para mim que esses problemas persistam, agora no espaço eletrônico.

O senhor acha que atingimos o ápice da falta de privacidade?
Richard Sennett: 
O mais triste sobre o ciberespaço é que há cada vez menos chance para a surpresa. Quando você caminha na rua, coisas que não espera podem acontecer. Quando está no Facebook, isso é feito tão sob medida que fica difícil a ideia de aprender alguma coisa que não soubesse, afinal, tudo é customizado, feito para seu perfil. Isso é um tipo de redução de quão inteligente o público à minha volta pode ser.

Por que o senhor critica as “cidades inteligentes”?
Richard Sennett: 
Elas removeram o elemento indutivo de aprendizado sobre o entorno. Como um dos líderes do Habitat 3, uma de nossas discussões é como evitar o mau uso da tecnologia que envolve a liberdade das pessoas. Essa tecnologia tem feito as pessoas ficarem sem pensar sobre isso.

Os governos autoritários, por exemplo, amam essas cidades, porque sua capacidade de vigilância é incrível. Há cidades americanas que usam os sensores de tráfego, de velocidade para coordenação, para identificar o número de motoristas negros e brancos. Isso acaba usado de forma diferente de seu propósito [original], vira um instrumento de dominação.

Recentemente, o senhor criticou o conceito de shoppings das cidades latino-americanas.
Richard Sennett: 
Fiquei impressionado com tantos estacionamentos nos shoppings no Brasil ocupando espaços públicos. São espaços cosmopolitas mal utilizados. Não há nada para fazer a não ser parar carros, as crianças não podem entrar nem usá-lo. Como na China, são espaços que separam a nova classe média dos pobres. Se você é pobre na China, não pode ir ao shopping.

O que os shoppings também fazem é destruir os negócios locais, isso é um grande problema aqui no Reino Unido, pois os centros das pequenas cidades não podem competir com grandes redes.

Qual sua opinião sobre a cidade de São Paulo?
Richard Sennett: 
É uma cidade muito avançada, com muito capital humano. O grande desafio é como colocar essa capital para trabalhar para todos. Eu adoro São Paulo, é uma cidade de torres, mas também tem problemas de segurança. O trânsito nem me incomoda (risos), porque sou muito paciente, posso ver meus e-mails, ouvir música clássica, um violino de Wagner.

O senhor trabalhou na organização dos Jogos Olímpicos de Londres. A próxima Olimpíada será no Rio. Qual seu conselho para as autoridades?
Richard Sennett: 
Eu me envolvi no planejamento dos locais dos jogos, o que fazer com eles depois da Olimpíada. Queríamos evitar o que ocorreu com a Grécia em 2004 [após os Jogos, várias arenas foram abandonadas]. Os lugares precisam ser utilizados imediatamente após o evento. Se você espera cinco, seis anos, eles começam a se degradar, e é isso que tentamos evitar em Londres.

Passamos por uma crise econômica no Brasil, na Europa temos o exemplo da Grécia nos últimos cinco anos. O senhor acredita que seu conceito de “cooperação” entre as pessoas poderia ajudar esses países a superar tais problemas?
Richard Sennett: 
Não creio que possa ajudar a superar, mas acredito que pode ajudá-los a enfrentar os problemas. Conheço muito bem a questão da Grécia, por causa do Habitat 3. Lá, o governo tem falhado em apoiar isso, e a União Europeia basicamente criou um cenário de punição para o país.

Na Grécia, há cooperativas informais de família dividindo recursos. Uma delas, em Atenas, foi criada para garantir que as crianças tomem café da manhã antes de ir para a escola, porque uma das consequências da austeridade é que muitas famílias não conseguem garantir isso. O governo grego não faz nada.

Uma imagem global é sobre a necessidade da cooperação no local de trabalho. Mas na política econômica, se a estrutura formal de apoio falha, gera situações como a de Grécia, Itália, Portugal.

A cooperativa é a única medida de defesa. Uma coisa terrível no liberalismo [econômico] é que as pessoas são cada vez mais donas de indivíduos em detrimento da cooperação informal.

O senhor acredita que haja uma solução para a Grécia?
Richard Sennett: 
Em 1953, 50% da dívida alemã foi abolida pelo governo grego, mas hoje isso é [usado como] um tipo de hegemonia, uma punição cruel. A Alemanha tem bloqueado qualquer tipo de alívio [aos gregos]. O país nunca vai se recuperar se toda hora tiver que pedir mais dinheiro para pagar dívida. Isso nunca deixará o país ser saudável.

Como vê o drama imigratório da África para a Europa?
Richard Sennett: 
É uma política de combate, sem muita esperança, porque estão mirando nos barcos, nos imigrantes que tentam chegar a Itália e Grécia. Entristece-me ver que a União Europeia está em colapso, não sabe o que fazer com um problema humanitário, como a imigração, e econômico, como as políticas de austeridade que estão falhando.

O senhor defende que as pessoas deveriam cada vez mais ter ações das empresas que trabalham. Isso não é uma contradição do modelo capitalista?
Richard Sennett: 
É um tipo de social capitalismo que contradiz o capitalismo liberal. No Reino Unido, na loja de departamento, John Lewis, os empregados têm ações. Depende de como se manuseia, do quão preocupada a empresa é com isso. Não se espera que o vendedor seja o dono dela, mas que o direito de ter ações lhe dê voz.

No regime liberal, o círculo de controle se reduz, cada vez menos pessoas tomam as decisões. Eu gostaria de ver o monopólio de empresas como Microsoft, Google, Amazon quebrado. Mas quando elas têm um competidor, compram-no ou fecham-no.

Quando começou a crise de 2008, achei que haveria um movimento para destruir isso, mas essas empresas se mostraram mais resistentes e sobreviveram.

 

 

Sem acordo com os partidos, Bolsonaro não vai governar, afirma cientista político

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É assim no mundo inteiro, afirma Limongi; bancadas temáticas, como a da Bíblia, têm poder limitado no Congresso

Mario Cesar Carvalho – Folha de São Paulo – 20/03/2019

Associar o presidencialismo de coalizão a corrupção, como fazem os bolsonaristas, “é um mito, uma bobagem sem tamanho”, diz o cientista político Fernando Limongi, professor aposentado da USP que dá aulas na escola de economia da Fundação Getulio Vargas.

Corrupção, segundo ele, não é uma consequência inevitável da coalizão, prática que presidentes adotam para ter maioria no Congresso, oferecendo cargos a partidos para integrarem uma aliança.

Limongi cita a Dersa como exemplo de corrupção sem coalizão. A estatal paulista de estradas está envolvida numa série de escândalos em governos que não têm relação com partidos.

O discurso de Bolsonaro contra essa prática e a defesa de alianças com bancadas temáticas, como as da bala e da Bíblia, revela o despreparo do presidente, de acordo com o cientista político.

Bancadas temáticas não tem poder de definir a agenda de votações no Congresso; só partidos podem fazer isso. “É muito pouco provável que o governo seja capaz de governar sem costurar acordos com partidos. É assim no mundo inteiro. Partidos organizam o processo político”, disse em entrevista por email à Folha.

Segundo ele, o problema de Bolsonaro é mais grave do que seu discurso contra partidos: o presidente não entendeu que é preciso partilhar o poder para governar.

Bolsonaro começou refutando os partidos e dizia que iria trabalhar com bancadas temáticas, como as da bala e da Bíblia. Por que essa estratégia parece não estar funcionando? Não é possível dizer se está ou não funcionando, pois o governo ainda não começou a governar. Por enquanto, o governo pouco fez ou propôs. O que há na agenda e que depende do Congresso é a reforma da Previdência, que ainda não começou a tramitar. Pouco se sabe sobre como o governo pretende reunir os votos para aprová-la. Mas o governo tem mais matérias para aprovar, como as mais de uma dezena de medidas provisórias herdadas de Temer e as quatro promulgadas pelo próprio Bolsonaro. Uma das herdadas já expirou e não há notícias de que o governo esteja cuidando da aprovação das que emitiu. Se bobear, toda a reformulação ministerial vai para o espaço.

Bolsonaro associa presidencialismo de coalizão e corrupção. É possível fazer coalizão sem recursos espúrios? Isso é um mito, uma bobagem sem tamanho. Não há relação necessária entre governo de coalizão e corrupção. Não há dúvidas de que, no Brasil, as duas coisas conviveram no passado recente, mas daí a concluir que uma coisa leva à outra é a mais pura bobagem. A relação está longe de ser causal. Há corrupção sem o tal do presidencialismo de coalizão.

Tome o caso da Dersa em São Paulo, onde os acusados são governadores e não há nenhum indício de que o dinheiro desviado visasse comprar maioria para aprovar projetos. E os desvios de dinheiro ligados à usina nuclear de Angra? Lá o grosso da corrupção não passou pelos partidos. Mais do que isso, os desvios ocorreram em um modelo insulado da política, no qual quem decidia eram técnicos e militares. Aliás, durante o regime militar, o programa nuclear brasileiro foi amparado pela conta Delta, em um esquema em que as empreiteiras entravam para lavar dinheiro obtido por acordos com o Iraque em que se trocava urânio por petróleo.

No livro que escreveu com Argelina Figueiredo, vocês mostram a importância dos partidos na relação com o Executivo. O governo teria articulação para alterar esse quadro?

É muito pouco provável que o governo seja capaz de governar sem costurar acordos com partidos. É assim no mundo inteiro. Partidos organizam o processo político. Nasceram dessa necessidade.

Além disso, basta ler os regimentos internos do Senado e da Câmara para ver que os partidos são peças-chaves do processo decisório. Por força dos regimentos, líderes partidários definem quais matérias serão votadas, quando e como. Sem a participação dos líderes, as coisas não andam.

Os líderes de bancadas temáticas não têm essas prerrogativas. É simples assim. É básico. Mas Bolsonaro desconhece o elementar porque nunca se interessou pelo processo legislativo, nunca teve interesse em aprovar matérias. Essa visão é um indicador do seu despreparo político.

A Lava Jato expôs o modo como presidentes obtêm apoio no Congresso. É possível retomar o presidencialismo de coalizão após esse desnudamento? Como disse, se a Lava Jato desnudou algo, esse algo não tem nenhuma relação necessária com a formação de coalizão e/ou a forma como presidentes conseguem apoio para aprovar seus projetos. Se essa relação fosse necessária, seríamos forçados a concluir que todos os presidentes brasileiros governaram recorrendo a esses mesmos expedientes.

No Brasil, como em um grande número de países, não se escapa da necessidade de partilhar o poder. Toda e qualquer proposta legislativa do presidente precisa ser aprovada por uma maioria. Se o partido do presidente não controla a maioria das cadeiras, tem que conseguir apoio de parlamentares dos demais partidos. A questão é se vai obter caso a caso ou se vai montar uma base estável. Essa é decisão inicial que o presidente deve tomar. É uma questão de estratégia política e que não tem nada a ver com montar o governo em torno de ideias, competência ou o que for. Nas duas opções, para obter maioria, o governo tem que ampliar sua base, obter apoio da maioria. No primeiro caso, de uma forma limitada, circunstancial. No segundo, de uma maneira estável, permanente.

O governo Bolsonaro parece não ter entendido isso, ou melhor, parece achar que negociar caso a caso, construindo maiorias a cada proposta, seria o mesmo que privilegiar ideias, programa, capacidade ou sei lá o quê. Não é.

Quais são as consequências dessa estratégia? Na verdade, ao privilegiar o caso a caso, o governo diminui o horizonte temporal da negociação e, com isso, exclui quem o apoia dos ganhos de ser governo, dos possíveis retornos que a aprovação da proposta pode vir a gerar. A resistência a apoiar o governo aumenta, o preço em concessões e o tempo gasto em negociações crescem.

Formar uma coalizão é dar base e estabilidade ao governo, é saber que se pode contar com o apoio do partido, nas horas boas e nas más. Com a estabilidade, ambas as partes ganham. Mas isso implica dividir o poder com os demais partidos —e daria no mesmo se esse acordo fosse construído com bancadas temáticas. É esse o problema do governo Bolsonaro, sua incapacidade de entender que precisa partilhar o poder. O problema não é com quem e como se negocia. O xis da questão é saber se o governo está disposto a fazer política, a negociar e partilhar o poder.

O problema, na verdade, é mais sério, pois essa incompreensão política vem do próprio presidente, da sua falta de liderança. Até agora o governo nem sequer foi capaz de organizar o PSL. O partido do presidente é uma bagunça por falta de orientação, pela falta da definição de uma linha política, de propostas concretas.

O sr. acha que é possível governar com coalizão baseada em princípios, como pregam bolsonaristas? A proposição se baseia em uma falsa dicotomia entre princípios e pragmatismo, entre ideais e negociatas. Assume-se que há um governo que tem ideologia e princípios e que esse governo seria forçado a negociar com políticos inescrupulosos e destituídos de ideais.

Se as coisas forem colocadas dessa forma, toda e qualquer negociação será uma distorção ou concessão eticamente censurável. Mas por que devemos assumir que o presidente —e essa premissa foi aplicada aos governos anteriores— tem uma ideologia e os congressistas não? Veja, mesmo que o presidente diga que só se move por princípios, não se deve assumir que saiba como estes mesmos princípios serão traduzidos em políticas públicas. Há uma enorme distância entre o discurso e a implementação das políticas. E é nesta passagem do discurso à prática que os interesses envolvidos atuam, não necessariamente para desvirtuar a proposta. Obviamente, cada um defende o seu e tenta fazer valer os seus interesses.

Mas se o governo sabe o que quer, então tem condições de negociar e rejeitar as contribuições que desfiguram sua proposta inicial. Dizer que é impossível ter princípios e governar não passa de uma desculpa, uma forma conveniente de jogar a culpa nos aliados.

O problema do governo Bolsonaro não decorre da necessidade de formar coalizão ou dos custos envolvidos nessa operação. A dificuldade é anterior e passa pela incapacidade do presidente de entender o que significa fazer politica, de entender que para governar será preciso compartilhar o poder. Essa incompreensão se mostrou de forma nua e crua na demissão de Bebianno. O presidente não se dispõe a compartilhar o poder nem com seus apoiadores de primeira hora. E as razões da demissão pouco tiveram a ver com princípios e ideais.

O governo Bolsonaro passa por vexames semanais. Isso decorre de inexperiência? O maior problema tem nome e RG conhecido. O despreparo de Bolsonaro para o exercício da Previdência é evidente. Esse fator foi minimizado durante a campanha. O atentado, ao retirá-lo de cena, acabou por protegê-lo. Mas a fatura foi entregue e o preço a pagar é o que está aí, uma trapalhada atrás da outra.

Os filhos de Bolsonaro são um entrave à formação de alianças ou o pragmatismo vai imperar em votações importantes? Não é possível separar Bolsonaro de seus filhos. Bebianno sucumbiu a uma operação desencadeada de comum acordo entre o presidente e seu filho Carlos. Resta saber se Mourão terá o mesmo destino. Vice, contudo, não pode ser demitido.

Presidencialismo de coalizão

A expressão “presidencialismo de coalizão” foi criada em artigo publicado em 1988 pelo sociólogo e cientista político Sérgio Abranches para designar os arranjos políticos feitos pelo presidente para obter maioria no Congresso e aprovar as políticas de seu interesse. A estratégia é associada a corrupção, clientelismo e mando das oligarquias que atuam no Congresso.

Ao analisar a política brasileira às vésperas das eleições de 2018, Abranches defendeu que não havia nenhuma indicação de que essa prática política sofreria mudanças. O presidente Jair Bolsonaro (PSL) começou o mandato dizendo que iria privilegiar as bancadas temáticas, mas já começou a fazer acenos a partidos que integravam a base de Lula e Dilma Rousseff, como o MDB

 

“Capitalização transformou adultos de classe média em idosos pobres”

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Economista chileno Andras Uthoff diz que modelo pinochetista, que produziu massa de pobres no Chile, também não dará certo no Brasil

Por Thais Reis Oliveira – Carta capital – 19/03/2019

O economista chileno Andras Uthoff conhece bem o projeto de Previdência que o governo Bolsonaro quer para o Brasil. Professor da Faculdade de Economia e Negócios da Universidade do Chile e conselheiro regional da Organização Social do Trabalho (OIT), ele ajudou a tirar do papel a contrarreforma que, em 2008, tentou corrigir o encolhimento das aposentadorias causado pelos problemas de privatização da previdência chilena.

A reforma imposta em 1981 pelo ditador Augusto Pinochet – com a ajuda de uma patota de economistas formados na Escola de Chicago – acabou com a contribuição do estado e dos patrões, tanto na Previdência quanto na saúde. Cada trabalhador passou a poupar individualmente para a própria velhice, depositando cerca de 10% dos salários em contas administradas por bancos privados.

Trinta e oito anos depois, o fracasso é provado em números. Quando foi apresentada, a capitalização pinochetista prometia um retorno de 70% do salário médio das contribuições. Mas hoje, a primeira leva de aposentados recebe em torno de 35% de sua renda média.

Mesmo após as mudanças da era Bachelet, quase 80% das aposentadorias pagas hoje no Chile estão abaixo do salário mínimo. E 45% dos pensionistas vive abaixo da linha da pobreza (com cerca de 600 reais). A classe média foi a mais afetada, porque passou receber na velhice muito menos do que recebera durante a vida laboral, mas não foi beneficiada pela contrarreforma.

Outra promessa furada, diz Ulthoff, é que os investimentos da Previdência privada impulsionariam a economia chilena. Do fundo de 200 bilhões de dólares em recursos poupados pelos trabalhadores, quase 3/4 do PIB do país, cerca de 40% estão investidos no exterior.

Embora tenha sido apresentada como “alternativa” aos novos ingressantes no mercado de trabalho, a proposta de Guedes levanta campo para a privatização da Previdência. Se for aprovada como está, prevê o economista, vai repetir os dramas chilenos. “O sistema privado caminhou todos esses anos apenas com o aporte dos trabalhadores. Não deu certo lá e não vai dar no Brasil”, diz.

Uthoff esteve em Brasília para participar de um ciclo de debates sobre a Reforma brasileira e falou com exclusividade a CartaCapital sobre as diferenças entre Brasil e Chile.

CartaCapital: Muitos economistas brasileiros acreditam que esta reforma, como está agora, deixará uma massa de idosos ganhando menos que o mínimo. Como esse processo aconteceu no Chile?

Andras Uthoff: No Chile, em 1981, os empresários deixaram de contribuir para a pensão de seus empregados, tanto na Previdência quanto na saúde. O sistema sobreviveu exclusivamente do aporte dos empregados, com uma capitalização e má qualidade de empregos. Não deu certo: 79% das pensões financiadas pelo sistema, mesmo após os subsídios estatais, estão abaixo do salário mínimo chileno (cerca de 1810 reais). E 44% dos aposentados vive abaixo da linha da pobreza, ganhando menos de 600 reais por mês. Isso não foi resolvido no Chile e não será resolvido no Brasil com capitalização individual.

CC: Como reagiu a opinião pública quando Pinochet impôs ou o modelo de capitalização dos anos 80?

AU: Como estávamos em uma ditadura até os anos 90, ninguém podia opinar. Simplesmente houve uma mudança de todo o modelo econômico para um projeto neoliberal. E o mercado financeiro foi introduzido nas pensões e nos planos de saúde. O que aquela reforma fez foi destruir a seguridade social, introduzindo o mercado na jogada. Na Previdência, com a capitalização, e na Saúde, com os seguros individuais, na Saúde. O problema é que ao fazer contratos individuais, você deixou desamparada aqueles que não tiveram a capacidade de pagar uma entrada.

CC: Você pode explicar como o processo de 2008 aconteceu no Chile para corrigir essas distorções?

AU: A reforma de 2008 criou a pensão básica solidária e a contribuição previdenciária, pagas por um fundo público. O primeiro, para quem não conseguiu poupar nada. E o segundo para quem economizou, mas não o suficiente para se manter na velhice. Mas só recebem aqueles cuja renda familiar ficam entre os 60% mais pobres. Portanto, não é universal. A solução de 2008 melhora a cobertura, mas não muda efetivamente as aposentadorias.

CC: Você também diz que a classe média foi a mais prejudicada pela reforma chilena. Por quê?

AU: Sim, a classe média é a mais afetada porque é assalariada e sua renda previdenciária cai substancialmente. Quando a reforma foi implantada, prometia-se uma aposentadoria de 70% da média do salários que a pessoa recebera durante a vida ativa. Hoje em dia, as taxas de reposição são em média de 35%. Quer dizer que a renda dessas pessoas diminuiu 65%, é uma mudança muito grande. Você vive a vida de trabalhador como classe média. Ao sair dela, se torna pobre.

CC: Em outras entrevistas, você disse que não era a favor do retorno de um sistema totalmente público. Qual seria o seu modelo de ideal de Previdência?

AU: Os modelos ideais não existem. Cada país deve construir o seu, de acordo com as limitações impostas pelas restrições e desigualdades orçamentárias, a fim de cumprir o marco regulatório da seguridade social. Existe consenso de que os sistemas devem ser de múltiplos pilares e não apenas de capitalização individual. A OIT propõe a construção da escada de segurança com um piso universal não-contributivo, um pilar coletivo de solidariedade e um suplemento de capitalização individual obrigatório ou voluntário.

O atual sistema brasileiro já tem esse design. Precisa ser melhorado, é verdade. Mas não substituído.

 

As milícias crescem velozmente por dentro do Estado

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José Cláudio Alves frisa que “a estrutura política e econômica das milícias no Rio de Janeiro hoje começa a ganhar vários outros contornos, que não eram perceptíveis e que agora se manifestam”.

A prisão dos dois acusados de estarem envolvidos no assassinato da vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, “é a exceção de uma regra”, diz o sociólogo José Claáudio Alves  à IHU On-Line. “A regra é que membros de milícias são intocáveis, seus negócios se ampliam e eles têm dimensões crescentes desse poder e agora expressam isso a partir do assassinato de pessoas que ocupam cargos no âmbito político e que são contrárias aos seus interesses”, menciona.

Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp, Alves frisa que “a estrutura política e econômica das milícias no Rio de Janeiro  hoje começa a ganhar vários outros contornos, que não eram perceptíveis e que agora se manifestam”. Entre eles, o sociólogo cita a atuação da milícia na construção do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro – Comperj em Itaboraí. “Várias empresas terceirizadas estão atuando na construção da obra e a milícia está controlando quem vai trabalhar nessas empresas. Isso já é um passo à frente em relação à atuação das milícias anteriormente: a milícia detecta onde o capital está se manifestando — nesse caso é um capital público em parceria com empresas privadas — e, ao ficar a par da situação, manipula essa informação e passa a controlar de forma violenta o acesso a esse emprego, cobrando taxas e valores das pessoas que querem trabalhar nessas empresas. Assim esses empregados terão que repassar parte dos seus salários para os milicianos. Essa é uma novidade nesse campo no Rio de Janeiro”, informa.

Outra novidade no Rio de Janeiro é a atuação da milícia marinha, que, segundo Alves, atua a partir de informações de que o Ministério da Pesca e Aquicultura não está fornecendo licenças para pescadores. “Essa milícia aborda os pescadores no mar, quando eles estão pescando, exige a licença que o pescador não tem e passa a exigir valores semanais para permitir que o pescador possa continuar pescando. Então, surgiu na costa do Rio de Janeiro essa milícia marítima que passa a controlar os pescadores”, denuncia.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que avaliação o senhor faz da investigação do assassinato de Marielle e Anderson Gomes, ao longo do último ano, que culminou com a prisão de dois suspeitos de estarem envolvidos com o crime?

José Cláudio Alves – A minha avaliação em relação às apurações e investigação da polícia no caso Marielle é que elas foram muito lentas. Essa demora acaba acarretando uma série de complicações para saber se, de fato, esses são os responsáveis. A princípio parece que os dois presos foram os responsáveis, mas a pergunta que fazemos é quantas pessoas estavam envolvidas nisso e quem são os mandantes envolvidos nesse crime. Muitas questões ficaram soltas e ao longo do tempo elas não foram investigadas nem apuradas, o que gera consequências, como a morosidade da investigação, a dificuldade de ela prosseguir, de averiguar quantos outros suspeitos poderiam ser identificados no processo mas não serão. Paira a dúvida sobre se de fato não haveria indícios mais contundentes e próximos a grupos políticos que hoje ocupam espaço no âmbito federal, se não haveria ligações mais profundas, mas que com a demora da investigação acabam sendo perdidas e apagadas.

Essa demora toda nos faz refletir, mas a prisão dos suspeitos é algo importante e acaba, de outro lado, amortecendo a busca de explicações, acaba sendo uma espécie de cala boca e subterfúgio, e também acaba sendo um alívio para esse sofrimento todo, mas não vejo o processo como algo conclusivo.

IHU On-Line – As notícias divulgadas na imprensa dizem que as investigações do caso Marielle chegaram até o chamado Escritório do Crime, um poderoso grupo miliciano de Rio das Pedras que atua sob encomenda. O senhor tem informações sobre esse grupo?

José Cláudio Alves – Não tenho detalhes sobre como o Escritório do Crime atua. Sei que Rio das Pedras é uma favela histórica, muito grande, de imigração de nordestinos, que está na área da zona Oeste do Rio de Janeiro, onde a milícia tem uma presença extremamente forte. Essa é uma das áreas mais antigas, que está na base da formação das milícias no Rio de Janeiro. As milícias dessa região têm uma forma muito peculiar de atuação no campo da venda de terrenos. Na zona Oeste existe a presença muito grande de um tipo de solo chamado turfa, que é um solo inadequado para a construção de casas porque é muito movediço e não permite a estrutura de alicerce das construções. Por conta disso, há um controle naquela região das áreas em que é possível construir, ou seja, há um limite e uma faixa específica para a compra de terrenos e construção de casas. Esse processo é controlado pela milícia, que tem informações privilegiadas, as quais são obtidas dentro do Estado, já que são os agentes do Estado que circulam nesse âmbito. Esse é um mercado que se expandiu muito naquela região, porque trata-se de uma área onde há muita procura por moradia, porque ela é vinculada a processos migratórios, principalmente de nordestinos.

Os comerciantes daquela região iniciaram o processo de financiamento das milícias para impedir que o tráfico de drogas acessasse aquela comunidade. Logo, aquela é uma área onde a atuação da milícia é muito consolidada e movimenta muitos recursos. A busca por um dos envolvidos no Escritório do Crime, Adriano de Nóbrega, revelou que a mãe e a esposa dele trabalharam como assessoras de Flávio Bolsonaro enquanto ele era deputado estadual no Rio de Janeiro. O próprio Flávio também fez várias comendas de homenagens à atuação de milicianos no estado do Rio de Janeiro. Então, há uma vinculação forte dessa milícia com a estrutura do poder político dos Bolsonaros. Tudo indica isso, haja vista a situação da esposa e da mãe do Adriano de Nóbrega, o qual parece ser uma das lideranças do Escritório do Crime.

Desde o início eu sabia que havia o “dedo da milícia” e a prática típica de execução primária de grupos de extermínio, e que isso levaria aos negócios e aos interesses econômicos de políticos que a milícia estabelece a partir daquela região, mas numa rede que é muito maior do que Rio das Pedras. Então, toda essa rede pode ter algum grau de envolvimento no assassinato de Marielle, na sua organização, na sua proteção e no seu financiamento. Demorou um ano para se dar um retorno muito pífio desse caso, que foi a prisão de duas pessoas. Essa é uma estrutura muito mais ampla e com muito mais relações, uma rede muito maior que deveria ser revelada e apresentada nesse quadro.

IHU On-Line – O governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, disse que os presos pela morte de Marielle e Anderson Gomes serão convidados a fazer delação premiada na nova fase da investigação, que quer chegar aos mandantes do crime. Nos últimos anos há uma série de debates jurídicos e políticos acerca da necessidade ou não da delação premiada na investigação de crimes. Como o senhor avalia esse tipo de medida para este caso específico para se chegar aos mandantes do crime?

José Cláudio Alves – Não tenho uma reflexão muito consolidada sobre o estatuto da delação premiada. O que me impressiona é que existe uma dimensão organizada do crime a partir do Estado e, portanto, parece que facilmente seria possível ter acesso ao que esses grupos fazem, como atuam de forma organizada dentro do Estado, mas o que se vê é que os que investigam e buscam a justiça estão numa ratoeira, como se tivessem que se esconder desses grupos. Ou seja, não se tem uma atuação clara, consistente e firme da conduta das investigações, e aí se buscam subterfúgios, como delações premiadas. Me impressiona muito o poder que esses grupos têm e a fragilidade da estrutura do judiciário frente a esse poder, a ponto de ele próprio se ver encurralado, em busca de delações premiadas para algo que é escancarado, que está nas ruas.

Alega-se que é preciso ter uma delação premiada para poder avançar na investigação e isso virou uma possibilidade. Se os efeitos disso fossem reais e trouxessem à baila toda essa rede e fizessem uma atuação em rede a ponto de dar um baque significativo nessa estrutura e restringi-la… mas até agora não vi nada disso acontecer. Pelo contrário, cada baque que essa estrutura sofre é pequeno, o que permite a sua rápida recomposição muito facilmente.

IHU On-Line – Qual é o poder político das milícias que atuam no Rio de Janeiro hoje? Quem faz parte dessa estrutura?

José Cláudio Alves – O braço político tem se ampliado desde as últimas eleições no campo federal, principalmente, e estadual, com a eleição, se não de milicianos diretamente eleitos, de bancadas de partidos de ultradireitapartidos conservadores e partidos vinculados a uma lógica fundamentalista religiosa, permitindo a eleição de uma bancada fundamentalista, conservadora e voltada para a lógica de que “bandido bom é bandido morto”. Nesse sentido, a bancada da bala se ampliou muito no Rio de Janeiro, projetando figuras simplesmente insignificantes, ignoradas pela população daqueles que atuavam politicamente, que vieram numa onda extremamente conservadora projetadas por esse discurso do aumento da violência, aumento da execução sumária, da prática da eliminação do outro, da lógica do desarmamento, e tudo isso tem ampliado o poder político desses grupos.

Isso é visível no Rio de Janeiro, e os reflexos já estão sendo vistos pelo aumento do número de operações policiais com chacina, com mortes de pessoas, o aumento de desaparecidos forçados. E o mais preocupante são as subnotificações: não está ocorrendo registro de homicídios e desaparecidos; eles não estão sendo registrados por conta da lógica do medo associada à lógica da violência crescente da instituição Estado e do aparato policial. Isso tem um efeito de repressão a todo e qualquer registro de atos violentos e perdas de direitos. A tendência é esse cenário piorar e fortalecer ainda mais esses grupos em termos políticos naquela região. Tenho dito que cinco décadas de grupos de extermínio se reverteram em 70 a 75% da votação que Bolsonaro e a extrema direita que se associou a ele obtiveram na última eleição na Baixada. Isso não é uma surpresa; foi algo construído ao longo das últimas cinco décadas, se contarmos tudo que aconteceu desde a ditadura empresarial militar no Brasil. É sob essa égide que vivemos ainda.

Atuação das milícias

estrutura política e econômica das milícias no Rio de Janeiro hoje começa a ganhar vários outros contornos, que não eram perceptíveis e que agora se manifestam. Vou dar alguns exemplos. Um deles é em Itaboraí, uma cidade metropolitana do Rio de Janeiro, onde está sendo construído o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro – Comperj, cujas obras do governo federal estavam paradas e foram retomadas recentemente. Várias empresas terceirizadas estão atuando na construção da obra e a milícia está controlando quem vai trabalhar nessas empresas. Isso já é um passo à frente em relação à atuação das milícias anteriormente: a milícia detecta onde o capital está se manifestando — nesse caso é um capital público em parceria com empresas privadas — e, ao ficar a par da situação, manipula essa informação e passa a controlar de forma violenta o acesso a esse emprego, cobrando taxas e valores das pessoas que querem trabalhar nessas empresas. Assim esses empregados terão que repassar parte dos seus salários para os milicianos. Essa é uma novidade nesse campo no Rio de Janeiro.

Outra novidade é a milícia marítima, que atua a partir de informações de que o Ministério da Pesca e Aquicultura não está fornecendo licenças para pescadores há três anos ou mais. Essa milícia aborda os pescadores no mar, quando eles estão pescando, exige a licença que o pescador não tem e passa a exigir valores semanais para permitir que o pescador possa continuar pescando. Então, surgiu na costa do Rio de Janeiro essa milícia marítima que passa a controlar os pescadores.

Uma terceira forma de ampliação das milícias é o controle de serviços médicos nos hospitais públicos no Rio de Janeiro. Escutei que no Hospital Geral de Bom Sucesso, um hospital federal, a milícia controla quem acessa e quem tem direito aos serviços do hospital e cobra taxas por isso. Então, isso também é uma inovação. A venda de drogas também passou a ser utilizada pela milícia como uma forma de trabalho e atuação. A milícia não só aluga pontos de drogas para facções do tráfico, mas agora faz a própria venda da droga. Então, o leque de atuação das milícias se amplia e todo esse leque de atuação tem seu braço político.

IHU On-Line – Qual é a relação das milícias com o Estado?

José Cláudio Alves – A relação das milícias com o Estado é determinante para o que ela se transformou nos dias de hoje, uma estrutura de poder absoluta, ampla, autoritária, expressiva e crescente no Rio de Janeiro. Tenho dito que a milícia atua com duas faces que são determinantes: a legal e a ilegal.

face legal da milícia é a condição de ter acesso a informações privilegiadas do Estado a respeito de terras, propriedades, monopólios de comércios, pagamentos de impostos, sobre operações policiais que blindam a milícia de prisões; tudo isso faz parte da dimensão legal. Também faz parte dessa dimensão o fato de a polícia operar o judiciário na sua ponta com investigações, repressões, ou seja, o processo jurídico inicial envolvido na dimensão do judiciário é controlado pela polícia e seus agentes e isso dá mais poder aos milicianos.

face ilegal, que é a face criminosa, assassina, torturadora, totalitária, obstrui qualquer tipo de contestação do seu poder que mata e executa quem se contrapõe a ela. A milícia só tem esse poder todo graças à dimensão legal das informações e dos postos que esses agentes ocupam dentro do Estado.

Assim, a face legal e a ilegal se complementam e se projetam uma na outra, criando uma estrutura totalitária, fechada, blindada, intocável. A prisão desses dois acusados é a exceção de uma regra. A regra é que membros de milícias são intocáveis, seus negócios se ampliam e eles têm dimensões crescentes desse poder e agora expressam isso a partir do assassinato de pessoas que ocupam cargos no âmbito político e que são contrárias aos seus interesses.

A meu ver a milícia tem dimensões mais poderosas e mais amplas do que eu poderia ter imaginado há algum tempo. As milícias crescem velozmente por dentro do Estado e se beneficiam dessa dupla face da mesma moeda, a face legal e a ilegal. O ilegal é o Estado. Por mais que o Estado se reconheça como legal e trabalhe com essa concepção para todos nós, o determinante aqui é a dimensão ilegal, que ultrapassa a dimensão do legal, ampliando os poderes do Estado e dando a ele uma face cada vez mais totalitária, absoluta, irresistível, incontornável e capaz de controlar massas e espaços geográficos ao longo do tempo, de uma forma como nós vivemos hoje. Essa face ilegal amplia o poder do Estado, não restringe o seu poder. Não é o anti-Estado, o poder paralelo, mas sim a presença multidimensional de um Estado autoritáriototalitário e ditatorial. Nós nunca saímos da ditadura; saímos da ditadura oficial para a ditadura dos grupos de extermínio e milícias, que é a forma que opera hoje nessas regiões e no Rio de Janeiro. Essa estrutura submete todos nós a esse controle e poder da tortura e da execução sumária.

IHU On-Line – Como o senhor avalia o pacote anticrime encaminhado à Câmara pelo novo governo, que aposta em três vias: combate a crimes de corrupção, combate ao tráfico de drogas e combate a crimes de violência?

José Cláudio Alves – O pacote de Moro vai na contramão de toda a minha avaliação e de tudo que venho falando ao longo dos anos. O pacote anticrime se insere na lógica totalitária, ditatorial e autoritária da estrutura policial, que é a base de alimentação do crime organizado expresso na milícia. Moro, ao defender os princípios do próprio Bolsonaro, como o excludente de ilicitude, alega que o agente de segurança, numa condição de estresse e sem controle do ambiente e do momento em que está atuando, permite a ele o uso da violência letal, do assassinato e homicídio como forma de solução daquelas questões, eximindo aquele policial de responsabilidade.

Na verdade, isso era tudo que esses grupos apoiadores dessa estrutura política ideológica da extrema direita queriam. Eles não vão mais precisar colocar capuz para matar; vão matar como milicianos. Agora, eles podem matar de cara limpa e vão dizer que estavam no cumprimento do seu dever, sob forte tensão. Trata-se da ampliação e explosão de um processo que já está em crescimento e expansão. É isso que nos assusta, porque irá gerar dimensões mais graves e desrespeitosas dos direitos da população. Esse pacote também aumenta a punitividade, amplia a dimensão de encarceramento, amplia as penas, o que é uma grande ilusão, porque é na dimensão penitenciária que se dá a organização dessas grandes facções.

Encarcerar e prender não vai resolver o problema. Pelo contrário, hoje as facções operam pelo sistema penitenciário. É preciso fazer o contrário: desmontar essas estruturas, esvaziá-las e tratar as drogas não como problema de polícia, mas de saúde e de educação. É preciso desmilitarizar a polícia para que o policial dialogue com a população e construa uma lógica política de proteção, para que o policial não seja o agente que mais mata e que mais morre. Então, é preciso reformular a estrutura e não reforçá-la e ampliá-la. De outro lado, é preciso investir em políticas públicas que possam proteger essa população mais frágil. Não vemos isso. Vemos a perda e a destruição dos direitos dos trabalhadores. Esse pacote do Moro avança no caminho inverso do que deveria ser. Esses grupos vão se fortalecer mais ainda com essas medidas.

IHU On-Line – Como o senhor avalia o fato do caso Marielle ter ocupado outros espaços, chegando até mesmo ao Carnaval?

José Cláudio Alves – O fato de Bolsonaro ter postado imagens quase pornográficas, se referindo ao carnaval nessas dimensões, comprovam o efeito que o carnaval trouxe para o país inteiro em termos da crítica, da afronta, da insubordinação e da resistência a essa dimensão da extrema direita no poder. Bolsonaro expressa isso tentando fazer do carnaval o mesmo discurso de mentira, de dissimulação e destruição que ele fez na época da campanha eleitoral do ano passado, como ele fez com a campanha que as mulheres iniciaram do #Ele Não. Ali foi feita a mesma estratégia: foram montadas fake news com imagens de mulheres nuas e em situações diferenciadas em relação à tradição moral e familiar que esses grupos defendem, para desqualificar as manifestações. Até que ponto ele vai conseguir resultados, mantendo essa estratégia? A impressão que dá é que ele está se lixando para o que a sociedade faz; ele não quer governar. Ele quer dilapidar, quer destruir, assassinar e investir em dimensões conservadoras, em perdas de direitos, em redução do papel da mulher na sociedade, na diminuição de direitos de gays, lésbicas, travestis, quer aprofundar a dimensão do racismo contra as populações negras e indígenas. Ele é uma bomba de hidrogênio de efeito devastador que elimina as divergências e oposições. Ele é a expressão disso.

Enfim, temos a milícia no poder. Ela chegou a se consolidar numa dimensão municipal, estadual e federal, numa dimensão mais crescente. É esse meu diagnóstico. Essa dimensão do que ocorre no carnaval é a expressão da resistência, a expressão aguerrida de luta popular em espaços em que o povo está para expressar a sua inconformidade com tudo que vem acontecendo.

Espero que esses espaços se ampliem na sociedade como um todo, que a verdade vença, supere esse ódio, mentira, covardia e essas execuções sumárias de um Estado totalitário e de uma sociedade que se sujeita a esse totalitarismo. Espero o retorno à consciência, à solidariedade, à lucidez, à compaixão, aos direitos e à proteção dos mais fracos, e não esse Estado dilapidado. Isso não pode ser feito com ilusões: hoje esse Estado é algoz de toda a população brasileira e a milícia é a expressão mais brutal e violenta desse torturador que está na nossa frente. Esse é o dilema que a sociedade terá que enfrentar.

 

A crise da macroeconomia

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Por André Lara Resende | 08 de março de 2019 – Para o Valor Econômico

A crise da macroeconomia

A teoria macroeconômica está em crise. A realidade, sobretudo a partir da crise financeira de 2008 nos países desenvolvidos, mostrou-se flagrantemente incompatível com a teoria convencionalmente aceita. O arcabouço conceitual que sustenta as políticas macroeconômicas está prestes a ruir. O questionamento da ortodoxia começou com alguns focos de inconformismo na academia. Só depois de muita resistência e controvérsia, extravasou os limites das escolas. Embora ainda não tenha chegado ao Brasil, sempre a reboque, nos países desenvolvidos, sobretudo nos Estados Unidos, já está na política e na mídia.

A nova macroeconomia que começa a ser delineada é capaz de explicar fenômenos incompatíveis com o antigo paradigma. É o caso, por exemplo, da renitente inflação abaixo das metas nas economias avançadas, mesmo depois de um inusitado aumento da base monetária. Permite compreender como é possível que a economia japonesa carregue uma dívida pública acima de 200% do PIB, com juros próximos de zero, sem qualquer dificuldade para o seu refinanciamento. Ajuda a explicar o rápido crescimento da economia chinesa, liderado por um extraordinário nível de investimento público e com alto endividamento. Em relação à economia brasileira, dá uma resposta à pergunta que, há mais de duas décadas, causa perplexidade: como explicar que o país seja incapaz de crescer de forma sustentada e continue estagnado, sem ganhos de produtividade, há mais de três décadas?

Em artigo recente, “Consenso e Contrassenso: Dívida, Déficit e Previdência”, que circula como texto para discussão do Iepe/Casa das Garças (http://iepecdg.com.br/wp- content/uploads/2019/02/Consensoecontrasenso.docx…pdf), procuro ligar alguns pontos que podem vir a consolidar um novo paradigma macroeconômico. Como foi escrito com o objetivo de embasar a argumentação na literatura econômica, pode exigir do leitor conhecimentos específicos e ser mais técnico do que seria desejável. Por isso volto ao tema, de forma menos técnica, para dar ideia desse novo arcabouço macroeconômico e de suas implicações para a realidade brasileira. As conclusões são

surpreendentes, muitas vezes contraintuitivas, irão provocar controvérsia e correm risco de ser politicamente mal interpretadas.

Não tenho a intenção, nem seria possível, responder às inúmeras dúvidas e perguntas que irão, inevitavelmente, assolar o leitor. Ao fazer um resumo esquemático das teses que compõem as bases de um novo paradigma macroeconômico, pretendo apenas estimular o leitor a refletir e a procurar se informar sobre a verdadeira revolução que está em curso na macroeconomia. É da mais alta relevância para compreender as razões da estagnação da economia brasileira. Na literatura econômica fala-se numa armadilha da renda média, constituída por forças que impediriam, uma vez superado o subdesenvolvimento, que se chegue finalmente ao Primeiro Mundo. Há razões para crer que não se trata de uma armadilha objetiva, mas sim conceitual.

Pilares de um novo paradigma

O primeiro pilar do novo paradigma macroeconômico, a sua pedra angular, é a compreensão de que moeda fiduciária contemporânea é essencialmente uma unidade de conta. Assim como o litro é uma unidade de volume, a moeda é uma unidade de valor. O valor total da moeda na economia é o placar da riqueza nacional. Como todo placar, a moeda acompanha a evolução da atividade econômica e da riqueza. No jargão da economia, diz-se que a moeda é endógena, criada e destruída à medida que a atividade econômica e a riqueza financeira se expandem ou se contraem. A moeda é essencialmente uma unidade de referência para a contabilização de ativos e passivos. Sua expansão ou contração é consequência, e não causa, do nível da atividade econômica. Esta é a tese que defendo no meu livro “Juros, Moeda e Ortodoxia”, de 2017.

Moeda e impostos são indissociáveis. A moeda é um título de dívida do Estado que serve para cancelar dívidas tributárias. Como todos os agentes na economia têm ativos e passivos com o Estado, a moeda se transforma na unidade de contabilização de todos os demais ativos e passivos na economia. A aceitação da moeda decorre do fato de que ela pode ser usada para quitar impostos.

O segundo pilar é um corolário do primeiro: dado que a moeda é uma unidade de conta, um índice oficial de ativos e passivos, o governo que a emite não tem restrição financeira. O Estado nacional que controla a sua moeda não tem necessidade de levantar fundos para se financiar, pois ao efetuar pagamentos, automática e obrigatoriamente, cria moeda, assim como ao receber pagamentos, também de maneira automática e obrigatória, destrói moeda. Como não precisa respeitar uma restrição financeira, a única razão macroeconômica para o governo cobrar impostos é reduzir a despesa do setor privado e abrir espaço para os seus gastos, sem pressionar a capacidade de oferta da economia. O governo não tem restrição financeira, mas é obrigado a respeitar a restrição da realidade, sob pena de pressionar a capacidade instalada, provocar desequilíbrios internos e externos e criar pressões inflacionárias.

O terceiro pilar é a constatação de que o Banco Central fixa a taxa de juros básica da economia, que determina o custo da dívida pública. Desde os anos 1990, sabe-se que os bancos centrais não controlam a quantidade de moeda, nenhum dos chamados “agregados monetários”, mas sim a taxa de juros. O principal instrumento de que dispõe o Banco Central para o controle da demanda agregada é a taxa básica de juros.

O quarto pilar é a constatação de que uma taxa de juros da dívida inferior à taxa de crescimento da economia tem duas implicações importantes. A primeira é que a relação dívida/PIB irá decrescer a partir do momento em que o déficit primário – aquele que exclui os juros da dívida – for eliminado, sem necessidade de qualquer aumento da carga tributária. Portanto, se a taxa de juros, controlada pelo Banco Central, for fixada sempre abaixo da taxa de crescimento, a dívida pública irá decrescer, sem custo fiscal, a partir do momento em que o déficit primário for eliminado. Este é um resultado trivial e mais robusto do que parece, pois independe do nível atingido pela relação dívida/PIB, da magnitude dos déficits e da extensão do período em que há déficits. A segunda implicação, tecnicamente mais sofisticada, é que será possível aumentar o bem-estar de todos em relação ao equilíbrio competitivo através do endividamento público. Em termos técnicos, diz-se que o equilíbrio competitivo não é eficiente no sentido de Pareto.

Sobre esses quatro pilares, acrescenta-se o que foi aprendido sobre a inflação nas últimas três décadas. Ao contrário do que se acreditou por muito tempo, a moeda não provoca inflação. Inflação é essencialmente questão de expectativas, porque expectativas de inflação provocam inflação. As expectativas se formam das maneiras mais diversas, dependem das circunstâncias, e os economistas não têm ideias precisas sobre como são formadas. A pressão excessiva da demanda agregada sobre a capacidade instalada cria expectativas de inflação, mas não é condição necessária para a existência de expectativas inflacionárias. Alguns preços, como salários, câmbio e taxas de juros, funcionam como sinalizadores para a formação das expectativas. Se o banco central tiver credibilidade, as metas anunciadas para a inflação também serão um sinalizador importante. Uma vez ancoradas, as expectativas são muito estáveis. A inflação tende a ficar onde sempre esteve. Por isso é tão difícil, como sempre se soube, reduzir uma inflação que está acima da desejada. Depois da grande crise financeira de 2008, ficou claro que é igualmente difícil elevar uma inflação abaixo da desejada.

Novas ideias, antigas raízes

Embora grande parte das teses do novo paradigma contradigam o consenso econômico- financeiro, elas não são novas. Têm raízes em ideias esquecidas, submersas pela força das ideias estabelecidas e insistentemente repetidas. A tese de que a moeda é essencialmente uma unidade de conta, cuja aceitação deriva da possibilidade de usá-la para pagar impostos, é de 1905. Foi originalmente formulada pelo economista alemão Georg F. Knapp, no livro “The State Theory of Money”. Ficou conhecida como “cartalismo” e foi retomada recentemente pelos proponentes da chamada moderna teoria monetária, MMT em inglês.

Já a tese de que o governo que emite a sua própria moeda não tem restrição financeira, portanto não precisa equilibrar receitas e despesas, é de 1943. Seu autor, Abba Lerner, foi um economista que, como Clarice Lispector, nasceu na Bessarábia, estudou na Inglaterra e deu contribuições de grande relevância para os mais diversos campos da teoria econômica. No ensaio “Functional Finance and the Federal Debt”, Lerner enuncia os princípios que devem guiar o governo no desenho da política fiscal. Segundo ele, os déficits fiscais podem e devem sempre ser usados para garantir o pleno emprego e estimular o crescimento.

A primeira prescrição de Lerner, a sua “primeira lei das finanças funcionais”, é macroeconômica: o governo deve sempre usar a política fiscal para manter a economia no pleno emprego e estimular o crescimento. A única preocupação em relação à aplicação dessa prescrição deve ser com os limites da capacidade de oferta da economia, que não podem ser ultrapassados, sob pena de provocar desequilíbrios internos e externos e criar pressões inflacionárias. A segunda prescrição, ou a segunda “lei das finanças funcionais”, é microeconômica: os impostos e os gastos do governo devem ser avaliados segundo uma análise objetiva de custos e benefícios, nunca sob o prisma financeiro.

Todo banqueiro central com alguma experiência prática na condução da política monetária sabe que o banco central controla efetivamente a taxa de juros básica da economia. Os mais atualizados sabem ainda que, desde que não haja pressão sobre a capacidade de oferta, é possível criar qualquer quantidade de moeda remunerada sem provocar inflação. Trata-se de um poder tão extraordinário, que convém a todos, para evitar pressões políticas espúrias, continuar a sustentar a ficção de que o banco central deve controlar, e que efetivamente controla, a quantidade de moeda.

Já o fato de que o governo – que emite a sua própria moeda – não está submetido a qualquer restrição financeira, é bem menos compreendido. Talvez porque seja profundamente contraintuitivo, dado que todo e qualquer outro agente, as empresas, as famílias, os governos estaduais e municipais, estão obrigados a respeitar o equilíbrio entre receitas e despesas, sob pena de se tornar inadimplentes.

Quando se compreende a proposição que a moeda é um índice da riqueza na economia, que sua expansão não provoca inflação e o seu corolário, que governo que a emite não tem restrição financeira, há uma mudança de Gestalt.

A compreensão da lógica da especificidade dos governos que emitem sua moeda provoca uma sensação de epifania, que subverte todo o raciocínio macroeconômico convencional. Toda mudança de percepção que desconstrói princípios estabelecidos é inicialmente perturbadora, mas uma vez incorporada, abre as portas para o avanço do conhecimento. Como observou o Prêmio Nobel de Física, gênio inconteste, Richard Feynman, num artigo de 1955, “O Valor da Ciência”, o conhecimento pode tanto ser a chave do paraíso, como a dos portões do inferno. É fundamental que essa mudança de percepção seja corretamente interpretada para a formulação de políticas. Assim como Ivan Karamazov concluiu que se Deus não existe, tudo é permitido, de forma menos angustiada e mais afoita, não faltarão políticos para concluir que se o governo não tem restrição financeira, tudo é permitido.

Do ponto de vista macroeconômico, se o governo gastar mais do que retira da economia via impostos, estará aumentando a demanda agregada. Quando a economia estiver perto do pleno emprego, corre o risco de causar desequilíbrios e provocar pressões inflacionárias. Do ponto de vista microeconômico, a política fiscal tem impactos alocativos e redistributivos importantes. Embora o governo não esteja sempre obrigado a equilibrar receitas e despesas, a composição de suas despesas e de suas receitas, a forma como o governo conduz a política fiscal, é da mais alta importância para o bom funcionamento da economia e o bem-estar da sociedade. A preocupação dos formuladores de políticas públicas não deve ser o de viabilizar o financiamento dos gastos, mas sim a qualidade, tanto das despesas como das receitas do governo. A

decisão de como tributar e gastar não deve levar em consideração o equilíbrio entre receitas e despesas, mas sim o objetivo de aumentar a produtividade e equidade. Por isso, é fundamental não confundir a inexistência de restrição financeira com a supressão da noção de custo de oportunidade. O governo continua obrigado a avaliar custos e benefícios microeconômicos de seus gastos. Um governo que equilibra o seu orçamento, mas gasta mal e tributa muito, é incomparavelmente mais prejudicial do que um governo deficitário, mas que gasta bem e tributa de forma eficiente e equânime, sobretudo quando a economia está aquém do pleno emprego.

É possível argumentar que seria melhor não desmontar a ficção de que os gastos públicos são financiados pelos impostos, pelo “o seu, o meu, o nosso dinheiro”, para criar uma resistência da sociedade às pressões espúrias por gastos públicos. Afinal, pressões políticas, populistas e demagógicas, por mais gastos nunca hão de faltar. O problema é que quando se adota um raciocínio torto, ainda que com a melhor das intenções, chega-se a conclusões necessariamente equivocadas.

Uma armadilha brasileira

Desde o início dos anos 1990, a taxa real de juros foi sempre muito superior à taxa de crescimento da economia. Só entre 2007 e 2014 a taxa real de juros ficou apenas ligeiramente acima da taxa de crescimento. A partir de 2015, quando a economia entrou na mais grave recessão de sua história, com queda acumulada em três anos de quase 10% da renda per capita, a taxa real de juros voltou a ser muito mais alta do que a taxa de crescimento. A economia cresceu apenas 1,1% ao ano em 2017 e 2018. Hoje, com a renda per capita ainda 5% abaixo do nível de 2014, com o desemprego acima de 12% e grande capacidade ociosa, a taxa real de juros ainda é mais do dobro da taxa de crescimento. Como não poderia deixar de ser, a relação dívida/PIB tem crescido e se aproxima de níveis considerados insustentáveis pelo consenso macro-financeiro.

O diagnóstico não depende do arcabouço macroeconômico adotado, é claro e irrefutável: as contas públicas estão em desequilíbrio crescente e a relação dívida/PIB vai continuar a crescer e superar os 100% em poucos anos. Já o desenho das políticas a serem adotadas para sair da situação em que nos encontramos é completamente diferente caso se adote a visão macroeconômica convencional ou um novo paradigma. O velho consenso exige o corte a despesas, a venda de ativos estatais, a reforma da Previdência e o aumento dos impostos, para reverter o déficit público e estabilizar a relação dívida/PIB. É o roteiro do governo Bolsonaro sob a liderança do ministro Paulo Guedes. A partir de um novo paradigma, compreende-se que o equívoco vem de longe.

A inflação brasileira tem origem na pressão excessiva sobre a capacidade instalada, durante as três décadas de 1950 a 1980 de esforço desenvolvimentista. Foi agravada pelo choque do petróleo na primeira metade da década de 1970, quando adquiriu uma dinâmica própria, alimentada pela indexação e pelas expectativas desancoradas. Altas taxas de inflação crônica têm uma forte inércia, não podem ser revertidas apenas através do controle da demanda agregada, com objetivo de provocar desemprego e capacidade ociosa. Para quebrar a inércia é preciso um mecanismo de coordenação das expectativas. No Plano Real, esse mecanismo foi a URV, uma unidade de conta sem existência física, corrigida diariamente pela inflação corrente. A URV foi uma unidade de conta oficial virtual, com poder aquisitivo estável, uma moeda plena na acepção Cartalista, que viabilizou estabilização da inflação brasileira. Quando a URV foi

introduzida, a economia não crescia, havia desemprego e capacidade ociosa. A causa da inflação não era mais o gasto público nem o excesso de demanda. Quando se compreende que o governo emissor não tem restrição financeira, fica claro que não havia necessidade de equilibrar as contas públicas para garantir a estabilidade da moeda. A criação do Fundo de Estabilização Social e posteriormente a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, apenas satisfizeram as exigências do consenso macroeconômico e financeiro da época.

Como se acreditava na necessidade de equilíbrio financeiro do governo, para garantir a consolidação da estabilização, a carga tributária foi sistematicamente elevada. Chegou a 36% da renda, comparável às das mais altas entre as economias desenvolvidas. Durante os governos do PT, opção demagógica pelo aumento dos gastos com pessoal e por grandes obras, turbinadas pela corrupção e sem qualquer avaliação de custo e benefícios, combinada com a ortodoxia do Banco Central, aprofundou o desequilíbrio das contas públicas. O quadro foi agravado pela rápida queda do crescimento demográfico e do aumento da expectativa de vida, que tornou a Previdência crescentemente deficitária.

Uma vez feita a transição da URV para o Real, teria sido necessário manter uma âncora coordenadora das expectativas. Retrospectivamente, o correto teria sido adotar um regime de metas inflacionárias, para balizar as expectativas, que só veio a ser adotado no segundo governo FHC. A opção à época foi por dispensar um mecanismo coordenador das expectativas e confiar nas políticas monetária e fiscal contracionistas. Optou-se por combinar uma política de altíssimas taxas de juros com a austeridade fiscal. O resultado foram mais de duas décadas de crescimento desprezível, colapso dos investimentos públicos, uma infraestrutura subdimensionada e anacrônica, Estados e municípios estrangulados, incapazes de prover os serviços básicos de segurança, saneamento, saúde e educação. Mas como não vale a pena chorar sobre o leite derramado, passemos a políticas a serem adotadas para sair da armadilha em que nos encontramos, com base no novo arcabouço conceitual macroeconômico.

Reformas voltadas para o futuro

Comecemos pela questão que ocupa as manchetes, a reforma da Previdência. Sim, é preciso uma reforma da Previdência, não porque ela seja deficitária, mas porque ela é corporativista e injusta e porque o aumento da expectativa de vida exige a revisão da idade mínima. O déficit do sistema previdenciário, como todo déficit público, não precisa ser eliminado se a taxa de juros for inferior à taxa de crescimento. Como estamos com alto desemprego, significativamente abaixo da plena utilização da capacidade instalada e com expectativas de inflação ancoradas, o objetivo primordial das “reformas” deve ser estimular o investimento e a produtividade.

Em paralelo à reforma da Previdência, deve-se fazer uma profunda reforma fiscal segundo os preceitos das finanças funcionais de Abba Lerner. O objetivo da reforma tributária não deve ser maximizar a arrecadação, mas sim o de simplificar, desburocratizar, reduzir o custo de cumprir as obrigações tributárias, para estimular os investimentos e facilitar a inciativa privada. Enquanto não houver pressão excessiva sobre a oferta e sinais de desequilíbrio externo, a carga tributária deve ser significativamente menor.

A taxa básica de juros deveria ser reduzida, acompanhada do anúncio de que, a partir de agora, seria sempre fixada abaixo da taxa nominal de crescimento da renda. Simultaneamente, deveria-se promover a modernização do sistema monetário, substituindo as LFTs e as chamadas Operações Compromissadas, que hoje representam metade da dívida pública, por depósitos remunerados no Banco Central. Adicionalmente, seria dado acesso direto ao público, não apenas aos bancos comerciais, às reservas remuneradas no Banco Central. A modernização do sistema, com redução de custos e grandes ganhos de eficiência no sistema de pagamentos, passaria ainda pela criação de uma moeda digital do Banco Central, que abriria o caminho para um governo digital e desburocratizado.

Para garantir a eficiência dos investimentos e o ganho de produtividade, deveria-se promover uma abertura comercial programada para integrar definitivamente a economia brasileira na economia mundial. O prazo de transição para a completa abertura comercial deveria ser pré-anunciado e de no máximo cinco anos.

Por fim, mas não menos importante, seria fundamental criar mecanismos eficientes, idealmente através da contratação de agências privadas independentes, para avaliação de custos e benefícios dos gastos públicos em todas as esferas do setor público. A política fiscal é da mais alta relevância para o bom funcionamento da economia e para o bem-estar da sociedade. Compreender que o governo não tem restrição financeira não implica compactuar com um Estado inchado, ineficiente e patrimonialista, que perde de vista os interesses do país. Ao contrário, redobra a responsabilidade e a exigência de mecanismos de controle e avaliação sobre a qualidade, os custos e os benefícios, dos serviços e dos investimentos públicos.

Estas linhas gerais de políticas, sugeridas pelo novo paradigma macroeconômico, correm o risco de desagradar a gregos e troianos. Não se encaixam, nem no populismo estatista da esquerda, nem no dogmatismo fiscalista da direita. Como observou, de maneira premonitória, Abba Lerner, em seu ensaio de 1943, os princípios das Finanças Funcionais são igualmente aplicáveis numa sociedade comunista, como numa sociedade fascista, como numa sociedade capitalista democrática. A diferença é que se os defensores do capitalismo democrático não os compreenderem e adotarem, não terão chance contra aqueles que vieram a adotá-los. No primeiro ensaio de “Juros, Moeda e Ortodoxia”, sustento que, durante o século XX, o liberalismo econômico perdeu a batalha pelos corações e pelas mentes dos brasileiros. Embora a história tenha mostrado que seus defensores, desde Eugênio Gudin, estavam certos sobre os riscos do capitalismo de Estado, do corporativismo, do patrimonialismo e do fechamento da economia à competição, foram derrotados porque adotaram um dogmatismo monetário quantitativista equivocado. Tentaram combater a inflação promovendo um aperto da liquidez. O resultado foi sempre o mesmo: recessão, desemprego e crise bancária. Expulsos do comando da economia pela reação da sociedade, seus defensores recolhiam-se para lamentar a demagogia dos políticos e a irracionalidade da população. Quase sete décadas depois de Gudin, os liberais voltam a comandar a economia. O apego a um fiscalismo dogmático e a um quantitativismo anacrônico pode levá-los, mais uma vez, a voltar para casa mais cedo do que se imagina.

André Lara Resende é economista

 

Acordo EUA-China e o agro brasileiro – Marcos Jank

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 Brasil pode ser atingido em soja, milho, algodão, etanol e todas as carnes

O encontro entre Jair Bolsonaro e Donald Trump no dia 19 se dará às vésperas da conclusão de um acordo histórico entre os EUA e a China que pode ser altamente disruptivo para o agronegócio mundial, afetando principalmente o Brasil.

O acordo pode representar o fim de uma era em que o comércio se expandia baseado essencialmente na competitividade dos países, sem grande esforço.

Ele traz novos elementos para a equação: pressionados por imenso déficit comercial de US$ 420 bilhões, os EUA deram início a uma guerra mercantilista com a China impondo elevadas tarifas sobre US$ 250 bilhões em importações.

O gigante asiático retrucou impondo tarifas sobre US$ 110 bilhões dos EUA, o que atingiu em cheio a soja americana. A disputa trouxe US$ 8 bilhões adicionais às nossas exportações de soja para a China, levando os incautos a inclusive “comemorar” a guerra comercial.

Tudo indica que os EUA vão forçar a China a ampliar as suas compras de produtos agropecuários americanos em absurdos US$ 30 bilhões anuais, que, na melhor das hipóteses, se somariam aos US$ 14 bilhões que foram adquiridos em 2018.

Previsões mais sombrias dizem que as importações chinesas vindas dos EUA poderiam ultrapassar US$ 50 bilhões anuais, se somadas ao valor de 2017, que foi de US$ 22 bilhões.

Acreditamos que as exportações mundiais de soja voltarão ao seu curso normal pré-2017, com os chineses se beneficiando plenamente da alternância das safras americana (EUA) e sul-americana (Brasil e Argentina), que ocorrem em diferentes momentos do ano. Essa complementariedade garante estabilidade de oferta e menor risco para a China.

Ocorre, porém, que, para chegar aos US$ 30 bilhões adicionais, a China teria de oferecer acesso privilegiado aos EUA em outros produtos.

Dois casos com forte impacto sobre o Brasil são o milho e o algodão. O consumo de milho da China é gigante (280 milhões de toneladas), porém as suas importações têm sido muito reduzidas —apenas 3,5 milhões de toneladas em 2018.

Os EUA pressionarão a China a importar muito mais milho, flexibilizando o seu regime restritivo de cotas de importação e facilitando o ingresso de milho transgênico.

Outros produtos americanos que seriam beneficiados pelo acordo são o etanol de milho, o DDG (subproduto da produção de etanol usado em alimentação animal) e as carnes.

No caso do etanol, a importação viria da obrigatoriedade de mistura de 10% de etanol na gasolina da China (E10), que foi mandatada no passado, mas jamais cumprida.

Estimamos que, entre produtos e subprodutos de milho, etanol e algodão, a China poderia ampliar suas importações dos EUA em mais de US$ 10 bilhões adicionais por ano.

Nas carnes, se a China retirar as restrições técnicas e sanitárias que foram impostas aos americanos nos últimos anos, certamente seremos prejudicados em todas as proteínas animais —aves, suínos e bovinos—, com destaque para as perdas de mercado em pés e coxas de frango.

A China certamente tem meios para atender à forte pressão dos EUA, ampliando o acesso de soja e de outros produtos agropecuários.

Resta saber se isso será feito à luz das regras da OMC, se ela vai “forçar a barra” na flexibilização das barreiras técnicas e sanitárias e se usará a sua estrutura estatal (estoques estratégicos e empresas públicas) para operacionalizar o acordo.

Enfim, se esse acordo se concretizar, poderemos estar entrando numa era de “comércio administrado” caso a caso, sob a égide de interesses geopolíticos, que pode reduzir o nosso acesso à China, ao Brics e a outros mercados emergentes. Aí sim estaríamos entregando a nossa alma.

Esta coluna foi escrita em parceria com André Soares, senior fellow do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais)

Marcos Sawaya Jank

Especialista em questões globais do agronegócio, trabalha em Singapura. É livre-docente em engenharia agronômica pela USP.