O que está por trás da mudança dramática nos mercados globais, por Mohamed El-Erian

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Mudança repentina nas expectativas de crescimento dos investidores para as três maiores economias desestabiliza operações consensuais

Mohamed El-Erian, Presidente do Queens’ College, em Cambridge, e conselheiro da Allianz e da Gramercy

Financial Times/ Folha de São Paulo, 12/03/2025

Os mercados financeiros testemunharam uma mudança drástica que está revertendo com operações que eram consenso e que dominaram até o início de fevereiro deste ano.

Quedas nas ações dos EUA e seu desempenho inferior em relação a outros países refletem uma reviravolta notável nas opiniões dos investidores sobre as perspectivas econômicas para a América e a Europa —e, em menor grau, a China.

O que é menos claro é se a mistura resultante de tudo isso é favorável ou desfavorável a longo prazo. E isso importa muito para o bem-estar global, a inflação e a estabilidade financeira.

Três fatores principais sustentam a recente reviravolta de 180 graus nas opiniões consensuais sobre ações, títulos e moedas: 1) crescentes preocupações com a economia dos EUA; 2) um potencial “momento Sputnik” na Europa impulsionado por uma possível mudança na Alemanha em relação à política fiscal e ao financiamento europeu; 3) e indícios de uma resposta política mais determinada da China.

A crença no excepcionalismo americano foi erodida, com não apenas as ações dos EUA caindo, mas também os rendimentos dos títulos caindo devido a preocupações com o crescimento e o enfraquecimento do dólar.

Tendo lidado com um cheiro de estagflação, os mercados estão sofrendo um bom e velho susto de crescimento devido a uma significativa volatilidade da política dos EUA. As incertezas associadas às tarifas intermitentes sobre os principais parceiros comerciais e aliados dos EUA, como Canadá e México, foram agravadas pela preocupação com o impacto nos empregos e na renda dos cortes contínuos no setor público.

Funcionários do governo dos EUA argumentam que essas “perturbações” são pequenas e devem ser vistas como parte de uma jornada acidentada para um destino muito melhor —um futuro de comércio internacional mais justo, grande eficiência do setor público, redução da dominância fiscal e o desencadeamento de um empreendedorismo e atividade do setor privado mais poderosos.

De fato, segundo eles, é apenas uma questão de tempo até que a própria jornada melhore devido a preços de energia mais baixos, cortes de impostos e desregulamentação significativa.

A preocupação é que a jornada acidentada possa levar a um destino diferente, menos favorável. A recente imprevisibilidade dos EUA corre o risco de roubar dos EUA uma de suas importantes e diferenciadoras “vantagens” —a confiança de longo prazo dos investidores na estrutura e na tomada de decisões políticas.

A política dos EUA também é responsável pela mudança repentina de visão dos mercados sobre a Europa, que agora vê o potencial, finalmente, para uma mudança dramática na política econômica.

Abalada pelo tratamento dos EUA às alianças de defesa militar e pela mudança  em sua política para a Ucrânia, a Alemanha está subitamente contemplando uma flexibilização de suas restrições fiscais de longa data. Isso poderia se traduzir em aumento dos gastos com defesa, maiores investimentos em infraestrutura e maior financiamento regional.

Enquanto isso, a China está sinalizando uma mudança em direção a uma mistura mais adiante de estímulos a reformas. Os mercados veem isso como essencial para contrariar a crescente ameaça de “japonificação” da economia chinesa, que foi novamente destacada nos dados de domingo, com os preços ao consumidor e ao produtor caindo em fevereiro.

No papel, essa confluência de fatores apresenta dois cenários possíveis para a convergência entre o que antes era o bom (EUA), o ruim (China) e o feio (Europa) da economia global. A visão otimista antecipa uma convergência ascendente do crescimento global, com Europa e China acelerando para se aproximar do desempenho até então excepcional da economia dos EUA.

Isso resultaria em um nível geral mais alto de crescimento global, já que uma desaceleração de curto prazo dos EUA seria mais do que compensada pela recuperação na China e na Alemanha.

A perspectiva mais pessimista seria uma convergência descendente caracterizada por estagflação. Este cenário seria devido a atrasos na implementação da política da Alemanha; a contínua luta da China para equilibrar estímulos e reformas; e uma economia dos EUA desacelerando em direção à velocidade de estagnação em meio a baixa confiança do consumidor, insegurança no emprego, uma abordagem corporativa de esperar para ver sobre investimentos e as pressões estagflacionárias das tarifas.

Embora ainda não esteja claro qual caminho a economia global seguirá, os níveis absolutos e relativos de preços nos mercados sugerem expectativas que estão ligeiramente mais inclinadas para uma convergência favorável a longo prazo.

Isso implica uma crença na capacidade da Europa de superar sua inércia fiscal, na capacidade da China de navegar em seus desafios políticos e na resiliência da economia dos EUA, apesar de suas atuais perturbações.

A aposta é que a economia global provavelmente escapará das garras da estagflação e alcançará uma trajetória de crescimento mais equilibrada e sustentável. Devemos todos esperar que isso esteja certo.

 

 

 

 

Educação, Estado e poder, por Vinício Carrilho Martinez

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Vinício Carrilho Martinez ´ Terra é Redonda – 10/03/2025

Desde O Príncipe de Nicolau Maquiavel, a política sempre vem associada a um sentido de força, imposição – na falta de convicção e de convencimento

Como fazer Educação para o poder (popular), se a política perdeu a graça? Há outra palavra que rima com essa, mas não vou dizer. Em todo caso, fica essa pergunta e uma certeza: o político sem graça, que perdeu a simpatia, só a irá encontrar nos amigos de verdade, junto ao povo pobre, negro e oprimido.

Dentro desse contexto, cabe dizer que o título do texto é o mesmo da minha próxima disciplina na graduação (optativa) e há uma infinidade de questões que passam por essa tríade, desde a emancipação que interessa aos pobres, negros e oprimidos (educação para o poder) até o que há de podre no Reino da Dinamarca (Shakespeare no Hamlet).

Ainda é possível tratarmos de outras variações ou desdobramentos, como: política, dominação, decisão ou alteridade, autoridade, imposição. Desde O Príncipe de Nicolau Maquiavel, a política sempre vem associada a um sentido de força, imposição – na falta de convicção e de convencimento – e isto os antigos chamavam de virilidade. A política era entendida como atributo masculino, ainda que as mulheres sempre tenham feito muito mais política (como “a nobre arte da sobrevivência”) do que os homens dominantes (“falocracia”). Por sua vez, essa “virilidade” nem sempre (ou quase nunca) vinha associada às requeridas “virtudes”: também chamavam de virtù.

Porém, como atualização de sentidos, vamos denominar a política atuante como “rudeza” [1] e que, por sua vez, desconstrói a simpatia: as forças da extrema direta e do Fascismo Nacional são predizíveis nessa seara política. Ou seja, o que prevalece é a imposição (enquanto dominus [2]) e suas decisões são “firmes o suficiente” (como deveria ser o Estado) para que a força (virilidade) jamais possa ser questionada.

Neste caso, de imediato, sem considerar muitas das demais sintonias, vejamos que estamos num paradoxo muito estranho: simpatia, no dicionário etimológico, é a “capacidade de estar com duas ou mais pessoas” e a política, em outra definição bem simples, alude à condição de pautar, convocar, e reunir a fim de se decidir para um fim coletivo.

Então, sem muito esforço da inteligência política, se não há simpatia, podemos indagar: como é que se faz política?

Pois é a este dilema que o país parece estar submetido: o país perdeu sua graça, está sem carisma – assim como nossa política. Comparativamente ao passado recente, hoje, talvez por excesso de mágoa não resolvida, por escassez de tempo e urgência diante nas avaliações negativas, ou por imposição do mero brilho do ego, os “líderes simpáticos” de outrora estão encastelados, envoltos por “amigos” contra seus (nossos?) “inimigos”. E eis então que chegamos em outro beco sem saída, aquele que definha a política numa “relação amigo/inimigo” – “aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei” (leia-se, a rudeza, a frieza, a truculência).

De certa forma, não é difícil explicar como uma liderança política perde seu carisma, aquela ação/vibração ou capacidade de produzir “simpatia política” [3]: a “graça de quem faz política com pessoas, para as pessoas”. O difícil é fazer o jacaré fechar sua bocarra: essa expressão quer dizer que, quando os polos se afastam, sobretudo apontando níveis insuportáveis de parca adesão, com a boca da inimizade política cada vez mais aberta, é praticamente impossível reverter o processo.

A figura de linguagem do jacaré de boca aberta é muito forte na simbologia e na análise política, por duas razões: quando o jacaré fecha a mordida na sua presa, não há o que o faça abrir, a não ser a vontade de comer; troquemos o jacaré por um crocodilo e chegaremos ao mito do Estado. A primeira ou mais forte representação sobre o Estado foi dada por Thomas Hobbes; no entanto, o filósofo do Renascimento fazia referência a uma passagem bíblica (Isaias 27:1 [4].

Para interagirmos melhor com o animal símbolo do poder, imaginemos derrotar um crocodilo do rio Nilo, um dos mais vorazes e fortes animais da natureza, com lanças e flexas da Idade do Bronze (um metal macio): sua couraça representaria uma força superior ao tanque de guerra mais possante da atualidade (feito com aço e cheio de contramedidas), comparando-se a resistência da couraça com a tecnologia bélica da época. O resultado dessa associação entre força, resistência, indestrutibilidade, seria o Estado.

Voltando à “simpatia política” (ou antipatia, a depender de como analisamos a aceitação e as “intenções de voto”), pensemos como é intransponível a montanha que ameaça desmoronar (ou já desmoronou) para quem perdeu o carisma: o jacaré de boca aberta que está à espreita.

Sem o carisma, poderíamos pensar em uma nova política, sendo feita com esmero, capacidade técnica inquestionável, racionalidade, uma relação numeral que mais acerta do que erra – e não é o caso atual. Aliás, antes de avançarmos, frisemos que a simpatia em baixa (ou antipatia em alta) logo se associa ao preconceito, ao ranço, ao rechaço, às famosas náuseas que levam à interdição política.

Um líder político que passou pelo céu e pelo calvário foi Benito Mussolini. Precursor da Itália fascista, o Duce praticamente reinventou o “carisma político” – meio que na esteira de seu compatriota Caio Júlio César, o mais consagrado general romano –, indo aos píncaros solares do populismo de direita, mas que acabou de ponta-cabeça em praça pública.

Com muito marketing mercantil, no Brasil, tivemos Fernando Collor de Melo, instado ao poder com fomento popular e que acabou em um célebre impeachment. De cunho mais “técnico”, vimos Fernando Henrique Cardoso – alocado no poder central a partir de um “partido de quadros” e com seu “notório saber” – vimos o neoliberalismo avançar seus primeiros passos. Depois, foi defenestrado por um arranjo de petições ideológicas, levando Lula ao primeiro mandato, na soleira de um “partido de massas”. Saiu, no segundo mandato, com 80% de aprovação: um marco para a política mundial, sem dúvida – ainda mais por se tratar de um metalúrgico. Entretanto, aqui importa destacar a simpatia reunida: 80% de amigos, se preferirem dizer assim.

Hoje, sem tanta simpatia, tampouco consegue emplacar forças e partidos de quadros. É óbvio que não tratamos aqui de “partidos revolucionários”.

Faz muito tempo que o PT se afunilou como “partido de poder” – e com isso quero dizer que, numa associação ao PRI (Partido Revolucionário Institucional), do México do século XX, tornou-se uma agremiação que luta (exclusivamente) pelo poder e para se manter no poder. Contudo, nessa praia, o que parece óbvio, não é, efetivamente. Na política, nada é muito o que parece ser.

Basta-nos pensar que os partidos, os mais notáveis ou honestos (mais ainda se olhados pelo ângulo da esquerda), deveriam se voltar à mudança social, muito mais à transformação do que à preservação do status quo. Talvez os índices crescentes de perda de simpatia (carisma em baixa) se devam a isso, uma vez que não se espera de um “partido de esquerda” mover-se do mesmo modo, na mesma lagoa dominada pelo jacaré insaciável da direita (ou extrema direita).

Por fim, volta a pergunta que não quer calar: como angariar simpatia, sem sair da lagoa desse implacável crocodilo?

Com o perdão dos trocadilhos, emprestados para o entendimento mais direto, parece que, sem carisma, não se atenta mais ao fato de que “em lagoa que tem piranhas, jacaré nada de costas”.

Ou será, em outra hipótese, que os amigos encastelados não são tão amigos assim e, no fundo da lagoa, já estariam “dando boi às piranhas”?

Quando não há simpatia política, tudo é bem possível (até provável), porque “o barco furado faz muita água” e a “política do toma lá, dá cá”, parece não satisfazer a todos os ratinhos do porão do poder. É desse modo que o político carismático vira um bicho-papão.

Como dito no início, os amigos do político carismático (simplificado como populista) estão no meio do povo pobre, negro e oprimido. No castelo, no Palácio, estão os “amigos da onça”.

*Vinício Carrilho Martinez é professor do Departamento de Educação da UFSCar. Autor, entre outros livros, de Bolsonarismo. Alguns aspectos político-jurídico e psicossociais (APGIQ)

Notas

[1] O primeiro texto que vou utilizar é esse do link abaixo, sobre a dança das cadeiras na política que deixou Nísia Trindade (Ministra da Saúde) de pé – na porta da serventia.

2 Olhar o relógio é desrespeitoso e foge ao decoro da liturgia do cargo.

[2] “A lei do mais forte”, a lei do capital ou a lei da espada que dita o direito de vida e morte.

[3] As pessoas envelhecem, querem sossego – é um direito legítimo. Mas, erram pecaminosamente ao não investirem na renovação dos quadros, das lideranças políticas.

[4] Assim se dizia biblicamente sobre o Leviatã: “Naquele dia, o Senhor castigará com a sua dura espada, grande e forte, o leviatã, a serpente veloz, e o leviatã, a serpente tortuosa, e matará o dragão que está no mar”.

 

Desconectar para conectar, por Stephanie Habrich

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Proibir celulares nas escolas é só o começo: desafio maior é preparar jovens para interagirem de forma saudável tanto no mundo real quanto no virtual

Stephanie Habrich, Fundadora e diretora-executiva dos jornais Joca e Tino Econômico

Folha de São Paulo, 11/03/2025

O início do ano letivo trouxe polêmica com a lei que baniu celulares nas escolas. A pausa forçada no uso das telas gera resistência, mas levanta uma questão importante: isso realmente criará um ambiente de aprendizado mais saudável?

A ciência mostra benefícios claros dessa restrição: maior concentração e foco, redução da ansiedade, melhora na interação social e no contato humano. Além disso, combater o cyberbullying e incentivar atividades físicas e culturais são ganhos significativos. O “detox digital” também pode fortalecer o senso crítico e a autonomia dos estudantes.

Essa mudança, porém, exige acolhimento e conscientização. É essencial ouvir as preocupações dos alunos e explicar os benefícios. Pais e professores também precisam entender os impactos do uso excessivo da tecnologia, promovendo debates sobre saúde mental e dependência digital.

Pesquisas indicam que o excesso de telas compromete habilidades cognitivas essenciais, como memória e criatividade, além de estar associado a transtornos do sono e aumento da impulsividade. Escolas que já adotaram essa medida ao redor do mundo notam melhores resultados acadêmicos e maior engajamento em atividades extracurriculares.

Claro, a tecnologia é indispensável no mundo atual e pode ser uma grande aliada no aprendizado. O desafio está no equilíbrio entre seus benefícios e a necessidade de desenvolver habilidades interpessoais e emocionais. Cabe aos adultos orientar crianças e jovens no uso seguro e responsável das telas.

A educação midiática é um caminho essencial nessa jornada. Ensinar a diferenciar informações confiáveis de fake news fortalece o pensamento crítico e reduz a vulnerabilidade à desinformação. Esse processo começa cedo e se torna fundamental para a autonomia intelectual dos estudantes.

O afastamento do celular nas escolas também resgata o aprendizado ativo, incentivando a resolução de problemas, a colaboração em projetos e o desenvolvimento da criatividade sem distrações digitais. A aprendizagem significativa acontece quando há espaço para reflexão, troca de ideias e experimentação.

Reduzir o uso de celulares contribui para um futuro mais saudável, tanto para os estudantes quanto para seus relacionamentos. Mais do que proibir a tecnologia, trata-se de construir um ambiente que desenvolva habilidades essenciais para a vida e o mercado de trabalho, como empatia, resiliência e argumentação.

A discussão sobre o uso de celulares nas escolas vai além de evitar distrações em salas de aula. É uma oportunidade de repensar o papel da escola e o tipo de sociedade que queremos construir. A proibição é apenas o começo: o verdadeiro desafio está em preparar os jovens para interagirem de forma saudável tanto no mundo real quanto no virtual.

Os jornais Joca e Tino Econômico, voltados ao público infantojuvenil e seus educadores, acompanham temas atuais como o “brain rot” – ou “apodrecimento cerebral” – , causado pelo consumo excessivo de conteúdos digitais de baixa qualidade. Afinal, informação sem reflexão é só ruído.

 

O que fazer com o Estado? por Lucas Pereira Rezende

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Democratas de todos os vieses não têm um projeto alternativo claro ao neototalitarismo tecnofeudal em voga; momento é de ação, não de nostalgia

Lucas Pereira Rezende, Doutor em ciência política (UFRGS), é professor do Departamento de Ciência Política da UFMG; autor de “Sobe e Desce: Explicando a Cooperação em Defesa na América do Sul” (ed.UnB)

Folha de São Paulo, 10/02/2025

Todos estão insatisfeitos com o Estado. Progressistas porque ele não levou direitos a todos; conservadores porque políticas de direitos civis esbarram em preceitos religiosos e/ou tradicionais; a classe média pela percepção de corrupção e alta carga tributária; as classes baixas por não serem atendidas plenamente, mantendo sua marginalização; o mercado pelos altos gastos; e todos insatisfeitos com a segurança pública. O que fazer, então, com o Estado?

Essa insatisfação generalizada levou parte das sociedades ocidentais, que viviam sob democracias liberais, em direção a um totalitarismo tecnofeudalista. O vácuo de um movimento de expansão do Estado democrático liberal, que seja capaz de propor uma reforma que preserve os avanços em direitos civis, que mobilize a sociedade em sua defesa, mas que também promova uma reorientação para maiores efetividade e eficiência do Estado, está sendo ocupado por alternativas que têm potencial destrutivo significativo à sociedade como a conhecemos.

Apesar dos seus problemas, foi através das instituições estatais que a democracia liberal pôde avançar. No Brasil, devemos ao Estado, por exemplo, os direitos trabalhistas, a Previdência Social, a infraestrutura desenvolvimentista, a urbanização e industrialização do país, a criação do SUS, a estabilização econômica, a pesquisa científica e o ensino superior gratuito, e a consolidação legal dos direitos civis. A constituição de 1988 representa o ápice do Estado como meio de expansão de direitos em nossa história e institucionalizou, por aqui, o modelo social-democrata.

No entanto, esse modelo extensivo de Estado demanda alta capacidade de financiamento, algo cada vez menos factível desde o início da crise de 2008. Retomo a pergunta inicial: o que fazer com o Estado? O desmanche do Estado promovido por governos como o de Javier Milei na Argentina, Donald Trump nos EUA e Jair Bolsonaro no Brasil não é aleatório e visa as instituições garantidoras dos direitos civis, rotuladas por eles como “ideologizadas”. Não melhora em nada a capacidade de produzir políticas públicas democráticas, mas é uma resposta populista à insatisfação com o Estado.

E qual a alternativa que os governos democráticos apresentaram a isso? A retomada do Estado como ele era pré-2008. O resultado, como vimos na baixa aprovação de Joe Biden e na derrota de Kamala Harris, não é nada diferente da baixa consistente de popularidade do governo Lula. Voltar ao passado com Biden e Lula foi importante para mostrar que os democratas ainda têm capacidade de mobilização e de agenda. Mas falharam em não apresentar uma resposta à insatisfação generalizada contra o Estado.

Os democratas precisam agora se organizar em torno de sua própria proposta de reforma do Estado, que busque preservar os expressivos avanços conquistados nos últimos séculos e que avance sobre os rumos que as democracias têm tomado. Para Adam Przeworski, o caminho seria de diminuição brutal das desigualdades. Para Steven Levisky e Daniel Ziblatt, o caminho é em direção a uma democracia multirracial. Há muitas possibilidades, mas todas têm o pré-requisito de se manterem ativas as regras do jogo democrático.

Não será fácil recuperar a confiança no Estado, ainda mais sem um projeto claro alternativo ao neototalitarismo tecnofeudal. Democratas de todos os vieses do mundo entendem que é através do Estado que políticas públicas podem ser executadas, e que só com instituições democráticas sólidas e muitos mecanismos de freios e contrapesos pode-se garantir direitos e se combater de fato as mazelas da sociedade. É por esta ciência que os democratas se encontram perdidos, defendendo o status quo, enquanto radicais destroem nossas instituições, canalizando a lógica do “que se vayan todos”, que por aqui explodiu em 2013 e ainda segue no sentimento coletivo.

E há pressa: não apenas pela proximidade das eleições em 2026, tanto aqui quanto as midterms (eleições legislativas de meio de mandato) nos EUA, mas porque a democracia é lenta, enquanto o autoritarismo é rápido. Há infindáveis agendas a serem protegidas e ampliadas. Mas, sem um modelo próprio de reforma do Estado que seja comum a todos os democratas, sucumbiremos à agenda destrutiva da direita radical. O momento é de ação, não de nostalgia.

 

 

‘Ainda Estou Aqui’ abre portas para mudanças na sociedade, por Sylvia Colombo

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Obras como a de Walter Salles, que venceu Oscar de melhor filme internacional, iluminam as consciências

Sylvia Colombo, Historiadora e jornalista especializada em América Latina, foi correspondente da Folha em Londres e em Buenos Aires, onde vive.

Folha de São Paulo, 09/03/2025

“Quem vai atrás de osso é cachorro”, já disse Jair Bolsonaro, referindo-se à busca por desaparecidos da ditadura militar brasileira (1964-1985).

Quando contei isso para Mariela Fumagalli, diretora da Eeaf (Equipe de Antropologia Forense Argentina), fez-se uma pausa na conversa. “Não é possível que uma parte considerável da sociedade se expresse dessa maneira. Se na Argentina há quem concorde com essa visão, ela é minoritária e envergonhada”, me respondeu.

A entidade que ela comanda trabalha desde 1984 na busca, recuperação, identificação e restituição da identidade das vítimas do terrorismo de Estado no país. Desde sua criação, revelou os nomes de 840 pessoas, algumas enterradas em cemitérios clandestinos, outras encontradas às margens do rio da Prata por terem sido arremessadas nos chamados “voos da morte”. Todo ano, esse número aumenta, porque o trabalho nunca foi interrompido.

Hoje, a Eaaf exporta sua expertise. Já ajudou em casos ocorridos na América Central e, recentemente, na identificação de soldados argentinos enterrados sem nome nas Ilhas Malvinas. “Podemos atuar a pedido de entidades, governos ou mesmo de particulares”, afirma Fumagalli.

A Eeaf não é a única organização não governamental que se dedica a esclarecer os crimes da ditadura. Também há as Avós da Praça de Maio, que buscam netos, ou seja, filhos de desaparecidos, e que para isso montaram um rico arquivo de DNA de pais, mães e avós para cotejar com pessoas que as procurem, em dúvida, sobre sua identidade.

A Argentina usa a interpretação de que crimes cometidos por civis prescrevem, mas não os perpetrados pelo Estado. Por conta disso, já foram condenados mais de mil repressores, num país que há muito derrubou leis de anistia.

Esses órgãos não dependem do governo de turno para continuar. Claro que, durante gestões de direita ou de centro-direita, esse trabalho encontra mais dificuldade, mas nunca deixa de ser feito. A razão, conta Fumagalli, é que, apesar de baseados em políticas públicas tomadas nos anos 1980, “foram apoiados e incorporados por uma sociedade”. E consciente por quê? Porque se informa por livros, filmes e outros instrumentos que fazem com que o período nunca caia no esquecimento.

Durante a gestão de Maurício Macri, por exemplo, houve a ideia de aliviar a pena de genocidas de avançada idade, ao incorporar em suas condenações o período em que ficaram em prisão preventiva. A manifestação popular foi tão grande que tomou as ruas do centro e cercou o Congresso. A ideia foi retirada de discussão.

Já o atual presidente, Javier Milei, adepto da teoria dos dois demônios, ou seja, que coloca em mesmo patamar os crimes cometidos por guerrilheiros e pela repressão, foi alvo de intensas manifestações, ainda durante a campanha eleitoral. Após mais de um ano de governo, não voltou a falar sobre o assunto.

“Talvez o caso de Rubens Paiva, se tivesse ocorrido na Argentina, tivesse uma solução mais rápida”, diz Fumagalli.

A diferença, na Argentina, não foi apenas o fato de que pesou muito a desmoralização dos militares nas Malvinas. Houve uma pressão da sociedade civil para esclarecer a verdade.

É nesse sentido que filmes como “Ainda Estou Aqui” são importantes. Eles iluminam as consciências. “Não é à toa que a Argentina tem uma longa história no que diz respeito a filmes sobre o período”, diz Fumagalli.

 

O problema é o câmbio, por Luís Nassif

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Fazenda e BC andam em cima de uma corda bamba. As pressões contra Fernando Haddad e Gabriel Galípolo podem ter um custo muito alto.

Luís Nassif – GGN – 27/02/2025

A bala de prata para derrubar o governo é a volatilidade do câmbio. Antecipo a conclusão, antes de expor o problema, para que sirva de alerta especialmente para os que trabalham, nesse momento, para enfraquecer o Ministro Fernando Haddad e flexibilizar a política monetária.

Está havendo uma enorme confusão nessa insistência para o Banco Central utilizar instrumentos macroprudenciais para controlar a inflação. Esses instrumentos são, por exemplo, requisitos de capital adicionais dos bancos, limites de exposição ao crédito, políticas de provisões dinâmicas etc.

Todas essas propostas partem do pressuposto que a inflação se deve ao aquecimento da demanda, o chamado hiato do produto.

Estima-se um PIB potencial – o nível máximo de produção que uma economia pode sustentar ao longo do tempo, utilizando plenamente seus recursos (como mão de obra, capital e tecnologia) sem gerar pressões inflacionárias. Depois, compara-se com o Produto Real. Se o Hiato do Produto (a diferença) é positiva, julga-se que a economia está aquecida e, portanto, tem que ser contida. E o caminho é o aumento da taxa Selic.

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Modelo similar é o Hiato do Crédito – uma medida para saber se a expansão do crédito, não só bancário, mas também via mercado de capitais, está desviando do que seria a tendência. 

Monta-se uma equação como se a inflação pudesse ter uma calibragem fina: se aumentar a Selic em xis, haverá uma queda de y na atividade, trazendo a inflação de volta aos limites fixados pelas metas inflacionárias.

Menciona-se o Adicional Contracíclico de Capital Principal (ACCP), um instrumento que permite conter o crédito dos bancos em período de expansão e liberar em período de escassez.

É o câmbio, estúpido!

Só há um engano central: o aumento da Selic não tem nada a ver com o nível de atividade, assim como o aumento da inflação. Na verdade, nem arranha.

Vamos a dois exemplos simples. Primeiro, o custo do financiamento para pessoa física.

  1. A taxa de juros média, nos financiamentos pessoais, está em 150% ao ano, ou 7,93% ao mês.
  2. Se eu adquirir um eletrodoméstico de R$1 mil, em 12 prestações, cada prestação sairá por R$132,19.
  3. Suponha que, com as medidas macroprudenciais, consiga o mesmo efeito de uma alta de 2 pontos percentuais da Selic – ao ano. A taxa anual do financiamento saltará para 152%, ou 8,01% ao mês.
  4. O valor da prestação sairá de R$ 132,19 para R$132,69 – 50 centavos. Alguém vai deixar de comprar?

Agora, o custo do financiamento de capital de giro para uma média empresa.

  1. A taxa de juros média está em 29%, ou 2,14% ao mês
  2. Um financiamento de R$ 100 mil, ao final de 6 meses sairá por R$113.578,00.
  3. Se aumentar em 2 pontos a taxa média, o empresário terá que pagar R$114.255,00, ou 0,77% a mais.
  4. Supondo que o custo financeiro corresponda a 10% do preço final do produto, haverá um aumento de 0,07% no custo de produção.

Basta um pouco de bom senso. É evidente que uma Selic de 2 dígitos desestimula investimento. Mas um aumento adicional de 50 centavos no valor de uma prestação vai desestimular o consumo? Um aumento adicional de menos de 1% no custo de fabricação de um produto vai desestimular a produção? Os consumidores vão deixar de comer mais alface ou mais feijão.

É evidente que não.

Quando fixa a Selic, o Banco Central mira um único alvo: a taxa de câmbio. A inflação brasileira tem uma causa central, além dos problemas ambientais: a volatilidade do câmbio. Aumentando os juros, entram mais dólares, há uma apreciação do real reduzindo os preços dos produtos comercializáveis – importados ou exportáveis.

O câmbio é essencial para o investimento produtivo externo, para as decisões de produção interna ou substituição por importados. Um câmbio estável é ponto central para qualquer tentativa de crescimento.

Há décadas venho apontando essa loucura de uma política monetária cuja variável de ajuste é o câmbio. Mas não dá para escapar da armadilha com voluntarismo.

Ocorre que o sistema de metas inflacionárias tornou-se dominante nas maiores economias. E todas elas se tornaram alvos dos grandes movimentos especulativos do capital.

Tudo é regido pelo chamado “carry trade” – uma estratégia pela qual o investidor toma emprestado em uma moeda, com uma taxa de juros mais baixa, e investe em outra moeda. Quando o investidor considera que o carry de uma moeda é baixo – isto é, está rendendo pouco -, ele tende a sair do ativo. E aí o câmbio explode.

Na grande corrida de dezembro passado, o carry brasileiro estava abaixo do carry do México e da África do Sul. Montou-se uma operação para trocar moedas, tirando investimentos do real e levando para os demais países. E aí o cartel do câmbio deitou e rolou.

O que esse fato ensina? Não adianta um país tomar uma medida de redução do carry, porque o dinheiro irá para outro país. 

A situação brasileira só se acalmou quando a Selic subiu, o carry ultrapassou o do México e África do Sul, e o BC desmontou posições de derivativos com atuações de mercado. Depois, conseguiu gradativamente normalizar o câmbio.

As saídas estruturais

Nenhum país conseguirá sair sozinho dessa armadilha. As reclamações sobre o custo de carregamento do dólar são unânimes, vão do Brasil à África do Sul. Só uma ação articulada das principais economias conseguirá conter o ímpeto do dólar, ainda mais agora, sob a gestão errática de Donald Trump.

É por isso que conversas, com BCs da África do Sul, Índia e outros países, é o primeiro passo para controlar a hidra de Lerna do livre fluxo de capitais.

É importante entender que Fazenda e BC andam em cima de uma corda bamba. As pressões contra Fernando Haddad e Gabriel Galípolo podem ter um custo muito alto.

Se o BC apertar as medidas macroprudenciais, e não cuidar do carry, não segura o câmbio. E se não segurar o câmbio, a inflação vai para o espaço e acabará com qualquer possibilidade eleitoral em 2026.

Além disso, pelas regras do ACCP, a contração de crédito ocorreria só em 12 meses. Ou seja, com a economia sofrendo com a Selic em dois dígitos, viria a trombada do trancamento do crédito. E a inflação continuaria sendo sacudida pelo câmbio.

 

Produto Interno Bruto (PIB) – 2024

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O ano de 2024 foi marcado por grandes alterações no ânimo da economia brasileira, percebemos grandes pressões para fragilizar a política econômica, com setores fortes e influentes se alterando para que a economia entrasse em crise, com recessão e o incremento da fragilização política, que poderiam inviabilizar a reeleição do Presidente da República. Nestes escaninhos ouvimos todas as críticas, xingamentos, notícias falsas e até o ressurgimento do impedimento do presidente Lula, que na opinião, se acontecesse, jogaria a sociedade brasileira em graves desajustes institucionais.

Ao analisar a sociedade brasileira, percebemos uma fragilização institucional preocupante, de um lado vislumbramos uma justiça lenta e onerosa, onde os bagrinhos estão encarcerados e os poderosos continuam se safando de suas responsabilidades, gerando uma sensação de impunidade crescente e uma perda de credibilidade do sistema judiciário. De outro, percebemos um sistema que apresenta grande partidarização, muitos buscando uma candidatura para uma futura carreira política, comprometendo toda uma institucionalidade.

Hoje, o assunto do momento foi a divulgação, feita pelo IBGE, do Produto Interno Bruto (PIB) referente ao ano de 2024, com um crescimento de 3,4%, um dos melhores resultados da última década e, no cenário global, nos colocando na colocação de 16◦, uma notícia alvissareira para a sociedade e, principalmente para o governo federal, num momento em que a popularidade do presidente não é das melhores.

Embora percebamos um dado positivo para a economia nacional, observamos uma desaceleração no último trimestre do ano anterior, com uma quase estagnação econômico, fazendo com que o novo ano nos traga informações de um possível baixo crescimento econômico, gerando redução dos investimentos produtivos e reduzida criação de emprego.

indústria da transformação foi um dos destaques positivos, com crescimento de 3,8% no acumulado de quatro trimestres, a melhor taxa em uma década. O setor de serviços também teve forte expansão, impulsionado por TI, comunicação e comércio. A agropecuária trouxe dados preocupantes, recuou 3,2% no ano, mas seu impacto sobre o PIB foi limitado, dado que o setor representa 7,8% da economia.

Outro dado interessante foi o consumo das famílias, que subiu 4,8% no ano, sustentado pelo mercado de trabalho aquecido e pelo crédito ainda disponível, apesar dos juros elevados. Já os investimentos (Formação Bruta de Capital Fixo) avançaram 7,3%, representando um dos pontos mais positivos da economia no período.

O setor externo da economia brasileira apresentou dados que nos geram preocupações, ainda num momento de instabilidades do comércio global em decorrência das decisões do governo norte-americano, as exportações desaceleraram no quarto trimestre, enquanto as importações cresceram quase 15% no ano, resultando em um déficit em conta corrente de aproximadamente 2,5% do PIB.

O aumento das taxas de juros no Brasil e a tendência de desaceleração global devem afetar o crescimento, com projeção abaixo de 2% para este ano. Além disso, o impacto da política fiscal mais contracionista e a alta nos preços dos alimentos no final de 2024 podem afetar o consumo, além de perder apoio político de setores importantes para a eleição de 2022.

Ao olhar para o cenário mundial, percebemos que os EUA criaram 150.000 vagas, dados que estavam dentro das expectativas. Esse movimento pode impactar a política do Federal Reserve, aumentando a expectativa de cortes na taxa de juros ao longo de 2025.

O governo zerou tarifas de importação de diversos alimentos, como café, açúcar e biscoitos, para aliviar a inflação, que gerou graves constrangimentos e preocupações referente a popularidade do governo federal, perdendo apoio de setores significativos para a eleição de 2026, todas essas medidas visam a redução dos preços do consumidor final, mas levanta debates sobre sua eficácia e o impacto na indústria local.

O cenário agora é de apreensão, com a observação sobre como a economia reagirá à combinação de desaceleração global, política monetária mais restritiva, mudanças no comércio exterior e ajustes fiscais. Apesar dos indicadores trazidos pelo IBGE, o crescimento do PIB foi positivo e, ao mesmo tempo, precisamos refletir sobre o comportamento econômico em 2025.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre e Doutor em Sociologia.

 

 

 

Trumpismos – radiografia da extrema direita, por Michael Lowy

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Michael Lowy –  A Terra é Redonda – 18/02/2025

Prólogo do livro de Miguel Urbán Crespo

A espetacular ascensão da extrema direita se tornou, nas últimas décadas, um fenômeno global, que se reforça e se espalha cada vez mais diante da crise das democracias liberais. De fato, o que poderia ser definido como “trumpismo” sofreu sérias derrotas eleitorais recentes, como exemplificado pelo caso do Brasil e dos Estados Unidos, mas ainda mantém uma influência considerável e continua trabalhando ativamente para retomar o poder.

Além disso, na Europa, governa, de formas diversas, na Hungria, Polônia e Itália, e representa uma séria ameaça eleitoral e política na França, Espanha ou Alemanha. Se olharmos para o Chile, observamos que os partidários do pinochetista José Antonio Kast ganharam as eleições para o Conselho Constituinte. Os exemplos são numerosos em muitas partes do mundo: Índia (Narendra Modi), Turquia (Recep Tayyip Erdoğan), Israel (Benjamin Netanyahu) etc.

Até agora, a maioria dos trabalhos sobre esse tema tem se limitado a realizar estudos de caso em apenas um país. Existem poucas pesquisas sérias que tentam abordar o fenômeno em escala global. O brilhante ensaio de Miguel Urbán Crespo é, sem dúvida, um dos mais amplos, profundos e atualizados trabalhos até agora publicados, pelo menos aqueles que surgem de uma leitura política e ativista. Seu ponto de vista radical, antifascista e anticapitalista não é uma limitação, e sim uma condição fundamental para entender a lógica do autoritarismo reacionário, bem como para pensar as formas de combatê-lo.

Como Miguel Urbán destaca, não se trata apenas de uma ressurreição do antigo fascismo dos anos 1930, mas de algo novo, mesmo que encontremos nele alguns traços do fascismo clássico. O termo “trumpismo” tenta destacar esse componente inovador, embora compreendendo que a onda reacionária pode assumir formas muito diferentes do modelo americano.

Suas características comuns seriam, na opinião do autor: nacionalismo autoritário, xenófobo, demagógico, machista, islamofóbico (menos em suas manifestações fundamentalistas islâmicas), antissemita (exceto nos casos de neofascismo sionista) e negacionista climático. Poderíamos adicionar alguns outros adjetivos: homofóbico, racista, conspiracionista, anticomunista (ou antiesquerda em todas as suas acepções) etc.

Além das múltiplas formas que podem assumir de acordo com os países e culturas: neoimperialismo, iliberalismo, populismo punitivista ou excludente, fundamentalismo religioso… No entanto, para ser sincero, não gosto do termo “populismo”, que gera mais confusão do que clareza; prefiro o outro conceito que Miguel Urban usa para se referir às políticas punitivistas e excludentes (o muro na fronteira): a necropolítica.

Para definir essa extrema direita, pessoalmente uso o termo “neofascismo”, que enfatiza ao mesmo tempo a diferença e a semelhança com o fascismo histórico. O conceito proposto por Miguel Urbán, “autoritarismo reacionário”, parece-me perfeitamente adequado. Ele reúne duas das características principais do fenômeno, comuns a suas várias manifestações, apesar de suas evidentes diferenças, o que permite explicar o surgimento recente do “Frankenstein” da extrema direita.

A principal hipótese do autor é de que a crise do sistema capitalista, assim como o surgimento de políticas neoliberais cada vez mais autoritárias e afastadas das democracias liberais estabelecidas após a Segunda Guerra Mundial, criou as condições para o surgimento do iliberalismo antidemocrático e do autoritarismo reacionário, que de forma alguma questionam o paradigma econômico neoliberal.

Considero a análise muito acertada, desde que não confundamos os dois fenômenos: Emmanuel Macron e Donald Trump representam duas formas políticas radicalmente distintas, por mais que apresentem traços comuns, começando pelo fato de ambos compartilharem uma fé cega no neoliberalismo. Outra hipótese que me parece interessante é a proposta por Daniel Bensaïd há alguns anos: a globalização capitalista neoliberal, ao enfraquecer os Estados nacionais, provoca “pânicos identitários” que são instrumentalizados pela extrema direita.

Ambas as ideias se baseiam em outra das contribuições mais interessantes do livro que você tem em mãos, ou seja, a análise dos mecanismos utilizados pelo “trumpismo”: as fake news, as guerras culturais (“morte ao woke!”), o conspiracionismo, bem como o terrorismo. Alguns desses métodos já eram usados pelo fascismo clássico, mas agora assumem novas formas, sem precedentes, como o uso massivo das redes sociais – outrora o rádio, no caso do nazismo ou do fascismo italiano – para implementar o quadro autoritário.

Como resistir a essa onda reacionária global? Miguel Urbán reconhece que não há uma receita mágica para enfrentar esse combate indispensável, mas se refere a algumas vitórias importantes – mesmo que às vezes efêmeras – contra o neofascismo e a extrema-direita: a dissolução do Aurora Dourada na Grécia, os avanços dos grandes movimentos feministas no Chile e na Polônia, o surgimento do Black Lives Matter nos Estados Unidos etc.

Este livro é, em última análise, uma ferramenta valiosa para entender e combater – a partir da filosofia da práxis marxista, ambos são inseparáveis – o surgimento da internacional reacionária.

Michae Löwy é diretor de pesquisa em sociologia no Centre nationale de la recherche scientifique (CNRS). Autor, entre outros livros, de Franz Kafka sonhador insubmisso (Editora Cem Cabeças)

Referência

Miguel Urbán Crespo. Trumpismos: neoliberais e autoritários – radiografia da direita radical. Usina Editorial, 2025, 312 págs. Tradução de Valerio Arcary.

A questão da desigualdade americana, por Wagner Sousa

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Wagner Sousa – OUTRAS PALAVRAS – 28/02/2025

O “sonho americano” desmoronou com a economia financeirizada e fuga de indústrias para o exterior. A renda estagnou e a precarização aumentou. E o medo de outras crises assola a população. Isto alimentou o ressentimento social, capitalizado por Trump

Uma das características das mudanças engendradas na economia política dos países ricos, desde o início da década de 1980, tem sido a concentração de renda. Do “consenso keynesiano”, que vigorou do pós-guerra ao fim dos anos 1970, (o republicano Richard Nixon disse, certo momento, “somos todos keynesianos”), que tinha no investimento público e adição dos ganhos de produtividade aos salários duas de suas principais “âncoras”, a economia passou a ser gerida tendo como premissas de sua eficiência a redução do papel do Estado, e portanto do investimento público, e a “financeirização” da gestão da riqueza, na qual os lucros de curto prazo passaram a ditar a estratégia empresarial. Assim, a contenção de gastos das empresas, com demissões e redução de custos salariais, está, desde então, no cerne destes planos.

Na virada dos anos 1970 para a década de 1980, viu-se o aumento brutal da taxa de juros pelo Federal Reserve, então dirigido por Paul Volcker, no intuito de domar a inflação e reafirmar o papel do dólar como moeda reserva mundial e do lugar central do sistema financeiro dos EUA no mundo. A “revolução conservadora” de Ronald Reagan, no entanto, tirou a economia norte-americana da recessão com um “keynesianismo militar”, resultado de forte expansão dos gastos de defesa. Este investimento na capacidade bélica cumpriu a função de dar sustentação necessária para a recuperação da economia e debilitar a economia da URSS, provocando o colapso de seu regime político, um objetivo geopolítico, portanto. Reafirmação da supremacia da moeda e das armas dos EUA em nível global compunham o processo muito bem descrito no artigo “A retomada da hegemonia norte-americana”, obra da saudosa professora Maria da Conceição Tavares.

A vitória norte-americana na Guerra Fria, com o fim da URSS e do bloco socialista e a reunificação da Alemanha, fez com que a “hegemonia unipolar” dos EUA se estabelecesse a partir dos anos 1990 e com esta a consolidação do chamado “neoliberalismo” tendo como seus principais objetivos as liberalizaçôes comercial e financeira, as privatizações e desregulamentações das normas vistas como “empecilhos” ao investimento privado. A economia das “bolhas de ativos” com inflação dos valores de ações (a “bolhapontocom” dos anos 1990) e imóveis (“bolha imobiliária” dos anos 2000) substituiu a dinâmica anterior da economia com crescimento contínuo dos salários reais e “aburguesamento” da classe trabalhadora e sua integração à classe média. O proletariado norte-americano viu seus empregos industriais escassearem ao se deslocarem para o exterior, pela busca da indústria por mão de obra mais barata. Novos empregos surgiram na “economia de serviços”, porém, na maioria das vezes, com remuneração pior, condições de trabalho precarizadas, em situações que variam das jornadas extenuantes aos part time jobs, que fazem com que muitos trabalhadores trabalhem menos horas do que gostariam e ganhem, em consequência, salários menores. O trabalho nos Estados Unidos se tornou, em grande medida, mais precário, instável e com remuneração menor.

O filósofo britânico John Gray em Falso Amanhecer – os equívocos do capitalismo global descreveu a realidade do capitalismo norte-americano de fins dos anos 1990:

“É interessante notar que essas ansiedades não são um efeito colateral da estagnação econômica. Ao contrário. Durante os últimos quinze anos, a economia norte-americana manteve-se em uma expansão quase contínua. A produtividade e a riqueza nacional cresceram firmemente. A reestruturação da indústria americana deu-lhe condições de recuperar mercados que se pensava estarem definitivamente perdidos para o Japão. Como na Inglaterra de meados da era vitoriana, a liberalização dos mercados na América do final do século 20 construiu um espetacular – e não reproduzível – boom econômico. Ao mesmo tempo, a renda da maioria dos americanos estagnou. Mesmo para aqueles cujas rendas aumentaram, o risco econômico pessoal cresceu visivelmente. A maioria dos americanos tem pavor de um distúrbio econômico do qual – suspeitam – nunca mais se recuperarão. Poucos pensam agora em termos de uma ocupação vitalícia. Muitos preveem, não sem razão, que suas rendas cairão no futuro. Estas, evidentemente, não são circunstâncias que alimentam uma cultura de satisfação (GRAY, 1998, p. 146)”.

Também analisando esta problemática, o economista francês Thomas Piketty, em O Capital no século XXI, obra de 2013 que teve grande impacto no debate global sobre a crescente desigualdade, menciona, sobre a concentração de riqueza no extrato do 1% mais rico da população:

“Nos anos 1970, a parcela do centésimo superior na renda nacional era muito próxima nos vários países. Ela estava entre 6 e 8% nos quatro países anglo-saxões estudados, e com os Estados Unidos não era diferente, os americanos eram até ligeiramente ultrapassados pelo Canadá, que atingia 9% (…) Trinta anos depois, no começo dos anos 2010 a situação é totalmente diferente. A parcela do centésimo superior atingiu quase 20% da renda nacional nos Estados Unidos (…).” (PIKETTY, 2013, p. 307).

Piketty explica que nos países anglo-saxões a concentração de renda foi mais pronunciada do que na Europa continental e no Japão, onde também ocorreu. No Reino Unido e no Canadá o centésimo superior passou a ter entre 14-15% da renda nacional e na Austrália entre 9-10%. Japão e França passaram de 7% para 9%, Suécia, de 4% para 7% e Alemanha de 9% para 11%. (PIKETTY, 2013, p. 308). Em todo o mundo rico houve concentração de renda no topo da pirâmide social, mas foi nos EUA onde aconteceu com mais intensidade.

Todo esse processo de polarização de renda e, como consequência, polarização social, visível na paisagem de muitas partes do interior dos EUA, com suas fábricas abandonadas e cidades outrora pujantes, decadentes, alimentou forte ressentimento social daqueles que “ficaram para trás”. A candidatura de Donald Trump, desde quando despontou nas primárias republicanas para a eleição de 2016 e o seu mote de “fazer a América grande novamente” tem relação com esta frustração das massas, especialmente nos eleitores brancos pobres, de que as oportunidades econômicas e o caminho para a ascensão social estavam disponíveis e não mais estão.

A crescente polarização social, portanto, vem alimentando a extrema direita e enfraquecendo consensos existentes na sociedade e na esfera política a respeito de políticas públicas internas e da política externa. John Gray trata, no livro aqui mencionado, do apelo nacionalista da pré-candidatura de Patrick Buchnann pelo Partido Republicano ou da candidatura independente de Ross Perot, que apareceram nos anos 1990 como sintomas desta insatisfação, mas então avaliava como inviáveis candidaturas tão críticas ao status quo bipartidário. Como sabemos, era questão de tempo.

Wagner Sousa, Mestre em Sociologia pela UFPR. Doutor em Economia Política Internacional pela UFRJ. Pós-Doutoramento em Economia Política Internacional pela UFRJ. Idealizador e Editor do site América Latina Colaborador do Boletim Observatório do Século XXI.

 

O enigma do Centrão na política brasileira, por Francisco Pereira de Farias

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Francisco Pereira de Farias – A Terra é Redonda – 28/02/2025

Os mandatários do capital financeiro-bancário buscaram deslocar o centro da hegemonia no aparelho de Estado, transferindo-o do Executivo para o Legislativo

O clientelismo político advém uma forma de se reforçar as solidariedades políticas no interior da classe dominante, já que os benefícios distribuídos (cargos, verbas, equipamentos) são signos de compensações econômicas, feitas pela fração hegemônica, aos interesses das frações subordinados, em troca da estabilidade política. Em outras palavras, a barganha de vantagens materiais imediatas por apoios políticos é o aspecto manifesto das relações intergovernamentais, partidárias e eleitorais; porém, mais profundamente, são os interesses da fração hegemônica que, em boa medida, constituem o conteúdo latente da relação dos aparelhos de Estado, da competição dos partidos e das disputas eleitorais.

O capital financeiro internacional e o capital bancário nacional conquistaram o executivo federal nas eleições presidenciais de 2018. A expressão dessa aliança hegemônica foi a política econômica liderada pelo ministro da fazenda Paulo Guedes, cujos eixos representavam uma radicalização do programa neoliberal: desregulação da economia, privatizações, monetarismo. A adoção de uma composição parlamentar e ministerial por meio dos partidos de clientela era uma maneira coerente com essa política hegemônica, centrada na estratégia de redução de custos, pois contornava os acordos mais amplos com as forças sociais subordinadas que significassem sacrifícios econômicos do anel de interesses hegemônicos, como eram os casos da política ambiental restritiva ou da política salarial expansiva.

A tendência dessas forças alinhadas ao neoliberalismo extremado foi de minimizar o papel dos partidos políticos e dos grupos sociais na canalização de demandas gerais junto ao aparelho de Estado, opondo-se a uma política de pacto social ou aliança de classes. Os mandatários do capital financeiro-bancário buscaram deslocar o centro da hegemonia no aparelho de Estado, transferindo-o do Executivo para o Legislativo.

Como o líder do executivo, no Brasil, é eleito pelo voto majoritário, ele tem o incentivo para a discussão dos temas estratégicos ou nacionais da política governamental; diferentemente, a eleição proporcional dos parlamentares os induz a uma perspectiva imediatista ou fragmentária das questões da política nacional, em vista do retorno eleitoral. O deslocamento para a dominância do Legislativo se traduzia na tática de controlar o processo orçamentário do governo, por meio principalmente das mudanças nos dispositivos de emendas parlamentares.

Em 2016, em um contexto de crise da hegemonia neodesenvolvimentista (Boito Jr, 2018), a oposição parlamentar conseguiu aprovar a mudança constitucional que tornava impositiva a emenda orçamentaria individual. Este foi o primeiro passo num percurso que visava retirar do Executivo o controle político do processo orçamentário.

Vale observar que desde o ano de 2000 havia o projeto do Senador Antônio Carlos Magalhães de tornar obrigatória a emenda parlamentar individual. No entanto, tal proposta não entrara em pauta, porque a coalizão neodesenvolvimentista, fiadora de uma política de acordos mais amplos, estava comprometida com os dispositivos das emendas coletivas (bancada, comissões). Durante o Governo Lula II (2007-2010) o peso das emendas coletivas nas despesas discricionárias foi em média de 60,3%; já no Governo Bolsonaro (2019-2022), a média dessas emendas ficou em 28, 4% (Faria, 2023).

Em 2019, as Emendas Constitucionais 100 e 102 aprovaram, respectivamente, as impositividade das emendas orçamentárias das bancadas estaduais e a obrigatoriedade de execução das despesas primárias discricionárias, que são principalmente os investimentos. Além disso, o Congresso Nacional tornou impositivas as emendas das comissões permanentes do Senado e da Câmara e estendeu o papel do relator-geral no processo orçamentário. Por fim, ainda em 2019, foi aprovada a EC 105 instituindo as transferências especiais ou transferências com finalidade definida, que independiam de convênio ou contrato com o ente beneficiado, permitindo ao parlamentar doar ao município que desejasse, sem destinação específica e sem fiscalização do Tribunal de Contas da União, até a metade do valor de suas emendas orçamentárias. Isso explica que as despesas de emendas individuais no orçamento federal tenham ultrapassado as emendas coletivas ao longo do Governo Bolsonaro, invertendo a tendência do ciclo de governos Lula e Dilma.

Porém, o dispositivo por meio do qual o poder legislativo mais avançou no controle político do processo orçamentário foram as atribuições do relator-geral à peça orçamentária de governo. Em 2020, foi estabelecido o identificador de Resultado Primário para discriminar as emendas do relator-geral (RP-9). Feita a triangulação deste dispositivo com as normas constitucionais e as regras regimentais, na prática a emenda de relator-geral se torna quase impositiva, com a regulação da possibilidade de indicação dos beneficiários e da ordem de prioridades de tais emendas. Disso resulta o crescimento exponencial do montante de recursos das emendas do relator-geral: se durante os Governos Lula I e II foram aplicados, respectivamente, um total de R$ 25 bilhões e R$ 30 bilhões; no Governo Bolsonaro, esse total chegou a R$ 93,2 bilhões.

Compreende-se que, num contexto de limitação democrática, no qual as forças hegemônicas tendem a ressaltar os partidos clientelísticos e os interesses locais ou paroquiais, tenha-se o aumento do montante orçamentário para as emendas individuais, em detrimento das emendas coletivas. E mais importante nesta tática individualista é a concentração dos recursos nas emendas do relator-geral, o qual normalmente está subordinado à presidência da Câmara Federal.

Porém, não estava excluído o conflito no interior da coalizão governante, que no Governo Bolsonaro controlava tanto o Executivo e quanto o Legislativo, promovendo os interesses do grande capital financeiro-bancário com relativo equilíbrio dos poderes ou baixo nível de conflitos, embora a tendência fosse de dominância do Legislativo. Diante do avanço do Congresso Nacional, ou seja, os representantes diretos (financiados pelas campanhas eleitorais) da aliança hegemônica no processo orçamentário, era previsível que houvesse a reação do Executivo, os seus representantes indiretos (relacionados ao funcionário de carreira). Uma manifestação disso foi o julgamento pelo STF de inconstitucionalidade da emenda de relator-geral em dezembro de 2022. Mas não houve um retorno ao status quo anterior em termos de prerrogativas orçamentárias do Executivo, permanecendo o cenário de limitação de suas atribuições orçamentárias; o que se fez foi impedir a continuidade da nova “ferramenta de composição” da coalizão governativa (RP-9), desenvolvida e instrumentalizada a partir do Legislativo (Faria, 2023).

Em contexto de relativa consolidação da democracia, na década de 1990, em que as forças hegemônicas, defensoras de um neoliberalismo moderado, não se mostravam opostas ao regime democrático, dando importância aos partidos políticos e os grupos sociais, tinha-se o baixo índice de emendas individualizadas e uma baixa correlação entre a execução das emendas individuais e os votos dos parlamentares aos projetos de governo (Figueiredo; Limongi, 2005). O desenvolvimento de um sistema partidário forte pode atenuar os ciclos eleitorais orçamentais, particularmente num sistema eleitoral majoritário, ao reorientar a competição legislativa para os temas mais estratégicos de desenvolvimento do país.

Pode-se, porém, levantar a hipótese de que, neste contexto de política neoliberal e estabilidade democrática, a força da barganha clientelista tenha se deslocado das emendas individuais para as emendas coletivas, expressando uma sofisticação das práticas clientelistas. Como observa um analista, a grande vantagem das emendas coletivas, que foram concebidas para atender os interesses maiores de Estados, regiões ou comissões setoriais, seria supostamente estarem livres de motivações escusas [sic.!], já que teriam que ser objeto de negociação formal entre grupos de parlamentares (com exigências de quórum mínimo). Infelizmente, com o passar do tempo, as emendas coletivas passaram a ser acometidas dos mesmos males das emendas individuais (Tollini, 2008, p. 218).

Torna-se previsível que a coalizão governante se utilizasse do avanço das emendas parlamentares no orçamento federal como um meio de fortalecer sua coesão política, a despeito de uma retórica oposta a isso. O Presidente Jair Bolsonaro negava que o aumento de liberação de emendas parlamentares fosse uma prática da “velha política”: “tudo o que é liberado está no orçamento. (…) Nada foi inventado, não tem mala, não tem conversa escondidinha em lugar nenhum, é tudo à luz da legislação” (Valor econômico,12\07\2019).

Tem-se ainda um discurso de criminalização do clientelismo político, tentando se afastar de uma prática que é inerente às democracias capitalistas. Mas efetivamente o que se está tentando ocultar é a conduta de regressão às formas individualistas dessa barganha política, expressas nas emendas parlamentares individuais e as transferências especiais que independem de destinação específica e nas emendas da relatoria-geral. Um efeito disso é uma mudança no papel do legislativo na definição de políticas públicas, voltando-se para as prioridades e as metas de curto prazo e medidas fragmentárias, cujos rendimentos eleitorais podem ser maiores.

Uma manifestação concreta dessa tendência política foi alardeada em reportagem do Jornal O Estado de S. Paulo, em maio de 2021, referindo ao caso das emendas de relator-geral, apelidadas de “orçamento secreto”:

Secretamente, esses recursos extras foram concentrados num grupo de parlamentares. É um dinheiro paralelo ao previsto nas tradicionais emendas individuais a que todos os congressistas têm direito, aliados ou oposicionistas. […] Na Região Norte, a cidade de Santana foi a mais beneficiada por recursos do orçamento secreto. Por indicação do senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), o município firmou contrato de repasse de R$ 95,7 milhões para a pavimentação de ruas, que teriam como destino Macapá se o irmão dele, Josiel Alcolumbre (DEM), tivesse vencido a eleição para prefeito da capital amapaense. Segundo fontes, para não turbinar o mandato do adversário da família, Alcolumbre redirecionou o investimento.

A despeito de seu discurso sobre a “nova política”, o que na prática poderia significar uma oposição à política clientelista, o Governo Bolsonaro respondeu de modo específico o traço marcante da governabilidade, que são as coalizões parlamentares e ministeriais. Tendo feito a presidência da Câmara dos Deputados, a bancada governista recebeu dez vice-lideranças na Casa, contemplando dez Partidos diferentes e concedeu a um partido de clientela, o Partido Progressista, a liderança do governo na Câmara e, em seguida, a este mesmo partido, o Ministério da Casa Civil, principal ministério de articulação e negociação do Executivo com os outros ramos do aparelho de Estado. Por outro lado, foi reinstituído o Ministério das Comunicações a ser entregue a outro partido de clientela, o Partido Social Democrático; e vários outros pequenos partidos que compõem o chamado Centrão, agregando bancadas partidárias tidas por pragmáticas, ganharam cargos no segundo e terceiro escalões dos Ministérios ou das Autarquias do Executivo Federal (Amaral, 2021).

A coalizão bolsonarista praticava um clientelismo como tentativa de voltar ao sistema das “lealdades pessoais”, típico das antigas oligarquias agrárias (Leal, 1975). Só que em lugar dessas oligarquias tradicionais, desaparecidas com a penetração do capitalismo no campo, ascendem os quadros políticos de origem numa espécie de lumpen burguesia (comerciantes de terras, milícias, empresas religiosas etc.), que se multiplicaram nas legendas partidárias clientelistas.

*Francisco Pereira de Farias é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí. Autor, entre outros livros, de Reflexões sobre a teoria política do jovem Poulantzas (1968-1974) (Lutas anticapital).

Referências

AMARAL, O. E. Partidos políticos e o Governo Bolsonaro. In: AVRITZER, L.; KERCHE, F.; MARONA, M. (orgs.).  Governo Bolsonaro: retrocesso democrático e degradação política. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.

BOITO JR, A. Reforma e crise política no Brasil: os conflitos de classe nos governos do PT. Campinas: Unicamp; São Paulo: Unesp, 2018.

FARIA, R. O. Emendas parlamentares e processo orçamentário no presidencialismo de coalizão. 2023. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito Econômico, Financeiro e Tributário da Universidade de São Paulo.

TOLLINI, H. M. Aprimorando as relações do Poder Executivo com o Congresso Nacional nos processos de elaboração e execução orçamentária. Cadernos ASLEGIS, n. 34, 2008, p. 213-236.