Retaliações

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Vivemos momentos de apreensões constantes, todos os dias somos bombardeados por informações preocupantes, desastres naturais motivados pelo descaso dos protocolos ambientais, violências crescentes, confrontos verbais e desrespeitos generalizados que crescem de forma acelerada, criando discórdias, medos e ressentimentos em todas as regiões.

Neste cenário, percebemos o crescimento de propostas equivocadas e simplistas que pululam nos parlamentos globais, governos incapazes de compreender as raízes estruturais dos graves constrangimentos que pairam na sociedade global, tais medidas aumentam os confrontos entre nações e dentro dos países, espalhando  medidas que aumentam a repressão e a violência urbana, deixando de lado os investimentos na formação educacional para a cidadania, desta forma, percebemos o incremento dos ressentimentos arraigados que culminam em graves desequilíbrios sociais, políticos e culturais, levando os indivíduos a buscarem um salvador da pátria que consiga melhorar as condições de vida da população e evitem as humilhações cotidianas.

Neste momento, percebemos o crescimento de políticas protecionistas, que crescem de forma acelerada, gerando graves instabilidades nos acordos comerciais, nas trocas econômicas e produtivas e estimulando o incremento de ressentimentos entre nações, num momento fundamental para que as nações e seus líderes se aproximem para evitar os graves constrangimentos gerados pelo aumento da temperatura global, que estão motivando variadas alterações no meio ambiente, modificações climáticas e possíveis transformações em setores econômicos e produtivos, redesenhando a geopolítica mundial.

O crescimento do protecionismo estimulado pela “nova” administração norte-americana tende a gerar graves retaliações em todas as regiões do mundo, nações ameaçadas devem se proteger para reduzir suas perdas econômicas e financeiras, nações sobretaxadas tendem a adotar políticas de retaliação, evitando graves constrangimentos para seus produtores locais e, no final das contas, os preços devem aumentar de forma acelerada, prejudicando seus cidadãos que tendem a perceber sua perda de poder de compra.

Vivemos numa sociedade altamente integrada e interdependente, alterações bruscas em qualquer lugar no cenário global tendem a impactar fortemente todos os atores econômicos e produtivos, ainda mais, quando percebemos que as incertezas e as instabilidades são geradas pela maior economia do mundo, catalisadora de políticas protecionistas motivadas pela proteção de seu setor produtivo e, desta forma, as outras nações tendem a adotar as mesmas políticas, aumentando os constrangimentos na economia internacional e incrementando as incertezas políticas.

As políticas protecionistas adotadas pelos Estados Unidos da América objetivam a reestruturação industrial, o aumento da produtividade da economia e o fortalecimento de toda a sua estrutura produtiva, fortalecendo a economia do país, gerando empregos melhores e salários maiores, fortalecendo o mercado interno, garantindo um setor produtivo mais sólido e consistente para angariar forças na concorrência com o mercado global e condições efetivas para superar seu maior competidor.

Neste momento de grandes incertezas e instabilidades, percebemos que as políticas protecionistas tendem a gerar graves constrangimentos para as nações e o incremento das retaliações comerciais, que devem levar governos a estimularem um processo de industrialização e uma reestruturação dos seus setores econômicos e produtivos.

A literatura econômica nos mostra que todas as nações que se desenvolveram, antes conseguiram seu processo de industrialização, quem sabe, neste momento de protecionismos crescentes, os ventos da industrialização contagiem nossa elite e nos tragam novos horizontes de desenvolvimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicos e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Assim nasceu o neoliberalismo, por Antonio Martins

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Em dois livros essenciais, Melinda Cooper reconstitui os anos que mudaram a face do Ocidente. 1968 abriu crítica radical ao capitalismo. Para freá-la, sistema apelou à moral conservadora. Há saídas: mas é preciso fazer do dinheiro um Comum

Antonio Martins, editor de OUTRAS PALAVRAS – 28/02/2025

O esforço para mostrar que há vida além do capitalismo é árduo, mas reconforta. Há anos, Outras Palavras tem identificado e difundido o esforço de um grupo de pensadores que desafia as certezas do neoliberalismo. Num artigo recente, Ladislau Dowbor destacou a obra de alguns deles: economistas como Mariana Mazzucato, Thomas Piketty do Michael Hudson, Michael Roberts, Jayath Ghoshi.

A este elenco, é preciso somar Melinda Cooper. Esta socióloga australiana de 52 anos, professora na Universidade de Canberra (na Austrália) tem publicado obras que desafiam antigos paradigmas. Seu foco concentra-se na transição do Estado keynesiano para a hegemonia neoliberal – e especialmente no papel que desempenhou, neste processo, uma aliança entre os neoliberais e os conservadores morais. Seu interesse parece ser provocar velhos consensos e, ao fazê-lo, abrir caminho para alternativas.

Ela sustenta que o Estado de bem-estar social não se esgotou por motivos econômicos. Foi jogado ao mar e corroído, quando as elites ocidentais julgaram que conquistas como Educação e Saúde igualitárias haviam tornado os trabalhadores indisciplináveis. Os capitalistas temiam, em especial, a semente revolucionária lançada por movimentos como o de maio de 1968. Para neutralizá-la, estabeleceram aliança com os ultraconservadores e retomaram ideias como a centralidade da família. Estabeleceu-se um consenso reacionário. Para rompê-lo, argumenta Melinda, será preciso desmistificar o dinheiro; vê-lo como um Comum; e apostar na multiplicação do gasto público que desmercantiliza a vida e redistribui a riqueza.

Seu pensamento está especialmente expresso em dois livros, ainda não disponíveis em português (há edições em inglês e castelhano). Contrarrevolução: extravagância e austeridade nas finanças públicas e Valores de Família: entre o neoliberalismo e o novo conservadorismo. A primeira obra foi lançada no final de 2024 e examina a transição do keynesianismo para o neoliberalismo, iniciada no final dos anos 1970.

Melinda lança mão de um vasto estudo factual para mostrar como se construíram, quase a partir do nada, consensos baseados nas ideias de economistas austríacos dos anos 1920 – não apenas Hayek e von Mises, mas também Joseph Schumpeter. Emergiu, então, a noção de que as políticas macroeconômicas precisavam obrigatoriamente visar objetivos até então pouco relevantes, como “equilíbrio orçamentário”, “ajuste fiscal”, “redução de tributos”, “encolhimento do Estado”, “autonomia dos bancos centrais”, “metas de inflação” (desde que desconsiderem a valorização imobiliária…).

Melinda aponta também como esse consenso é importante para esconder que por trás dessa “austeridade”, há uma extravagância – uma transferência brutal de recursos do Estado para os mais ricos. É algo evidente no Brasil (embora oculto para a maioria), onde o Tesouro transfere a cada doze meses, para um grupo reduzido de credores da dívida pública, R$ 1 trilhão, o mesmo que três orçamentos do SUS.

A partir daí, a autora lança suas provocações. Ao contrário do que sustenta o consenso econômico, partilhado inclusive pela maioria dos keynesianos, ela sustenta que a crise do Estado de bem-estar social não se deveu, essencialmente, a razões econômicas objetivas – ao suposto esgotamento daquele processo. Foi produzido, ao contrário, por uma opção política das elites capitalistas. Elas temeram que o Estado de bem-estar social gerasse, em determinado momento, uma contestação muito forte ao próprio sistema.

A essência do argumento de Melinda é: tanto a construção do Estado de bem-estar social quanto a sua destruição resultam de opções políticas. O surgimento se dá – e esta parte da história é mais conhecida – no pós-II Guerra, quando a ameaça da União Soviética fez com que as elites capitalistas aceitassem entregar os anéis para conservar os dedos.

Em todo esse período – marcado por greves em cujas imagens é possível identificar a presença masculina marcante – as lutas sociais e o fantasma da União Soviética são tão marcantes que as elites aceitam, por exemplo, o gasto público e os déficits fiscais que permitem a educação e saúde gratuitas os sistemas previdenciários por repartição, totalmente estranhos ao capitalismo do início do século.

Mas Melinda vai mais adiante e mostra a destruição desse processo. Argumenta que aquele movimento tinha ido longe demais – pois continha em seu interior ideias não capitalistas. As ideias de saúde e educação gratuitas e igualitárias, por exemplo, ou de que ninguém é obrigado a trabalhar até o final da sua vida e de que não é preciso haver insegurança econômica, foram vistas como subversivas. Passaram a assustar as elites, em especial pelo fato de elas terem criado um cenário em que já não era possível disciplinar os trabalhadores por meio de políticas macroeconômicas.

Estas políticas, conta a socióloga, provocavam às vezes redução dos salários, mas os trabalhadores estavam garantidos por um sistema de bem-estar social que os protegia. E foi esta segurança, segundo a autora, que tornou possíveis movimentos como o Maio de 68, cujas imagens são muito diferentes. Incluem mulheres, desafiam não apenas os patrões mas a ordem econômica – além da hegemonia cultural e moral. É preciso lembrar que maio de 68 não se esgotou na França, muito menos em Paris. Foi seguido, em todo o mundo, por greves de forte sentido anticapitalista. Elas avançaram fundo na década de 1970, a ponto de o comunista e sociólogo italiano Toni Negri afirmar: “em certo momento, dominávamos as técnicas sociais que permitiam vencer os patrões”.

Isso foi, é evidente, demais para os capitalistas. A partir de determinado momento, eles foram capazes de inverter o jogo. Apoiaram-se num vasto movimento de fragmentação de trabalho e no argumento de que, do ponto de vista econômico, o projeto keynesiano tornara-se insustentável.

E nesse momento que os capitalistas – já rompidos com o keynesianismo e abraçados ao projeto neoliberal – vão se associar com os conservadores morais. Melinda cita, a respeito, uma frase emblemática da primeira-ministra britânica Margaret Thatcher. “Não existe isso que chamam de sociedade”, diz ela: “há apenas homens, mulheres e famílias”. Aqui entra uma segunda contribuição de Melinda Cooper. Num outro livro de enorme importância, Os Valores de Família, ela faz uma reconstituição histórica impressionante sobre como, em cinco séculos de modernidade, capital, Estado e a família estiveram sempre associados na dominação política e construção de consensos.

Melinda descreve como os neoliberais uniram-se aos conservadores para estabelecer uma espécie de anti-Maio de 68 para fazer a recuperação da família e dos valores burgueses. Ela mostra inclusive (e é bastante curioso) como, de certa maneira, algumas bandeiras de maio de 68 – a diversidade sexual, por exemplo – foram recuperadas de forma conservadora, na forma, por exemplo, do casamento homossexual.

Em seus livros fundamentais – mas especialmente em Contrarrevolução – Melinda vai atrás das alternativas. Ao fazê-lo, recupera um teórico do Partido Comunista Grego, dos anos 1960 e 70, Nikolas Poulantzas, que cometeu suicídio em 1979. Foi quem teorizou, já àquela época, a respeito de um possível giro inesperado da teoria revolucionária. Ele vislumbrava a hipótese de capturar, para um pós-capitalismo, o Estado de bem-estar social. Queria agir por dentro dele e, ao mesmo tempo, estourar seus limites para detonar a ordem burguesa.

Poulantzas argumentava que alguns dos valores centrais das lutas operárias dos séculos XIX e XX haviam sido valorizados e ao mesmo tempo capturados pelo Estado de bem-estar social. Por isso, já não adiantava simplesmente defender as noções anteriores de revolução: a classe trabalhadora prezava o fato dos seus direitos estarem sendo assegurados pelo Estado capitalista.

Ele pensa que a estratégia deveria ser recuperar estes valores; atuar por dentro e para explodir os limites desse estado. Lutar, por exemplo, pelo direito ao trabalho para as mulheres – porque o keynesianismo baseava-se na ideia do marido sustentador do lar. Expandi-lo para as maiorias globais: os não-brancos, os imigrantes, os fora-da-ordem.

Melinda Cooper sugere, sempre de forma provocadora, que é preciso recuperar e ir além do próprio Poulantzas. Para ela – num pensamento que pode ser estendido ao futuro do governo Lula – a esquerda precisa questionar todo o processo de criação do dinheiro. É transformar o dinheiro num Comum e, ao fazê-lo, promover um grande choque de serviços públicos, de garantia de pleno emprego, de transformação da infraestrutura e de desmercantilização da vida. Sua obra, instigante e inspiradora, é um alento bem-vindo, em tempos de marasmo intelectual.

 

Para entender o patriotismo de vassalagem, por Moyses Pinto Neto.

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As contradições dos verde-amarelos que se ajoelham ao império americano. Conceito psicanalítico de identificação ajuda a entender melhor: mesmo como vassalos, eles cultivam o sonho de integrar o império americano – um “clube” do qual gostariam de pertencer

Moyses Pinto Neto – Piaui/ OUTRAS MÍDIAS – 26/02/2025.

Em geral, atos como o bater continência de Jair Bolsonaro diante da bandeira americana ou parlamentares de extrema direita vestirem o boné Make America Great Again têm provocado um juízo de perplexidade da esfera pública tradicional brasileira. Embora reivindiquem para si o status de patriotas, os militantes da extrema direita submetem-se a uma improvável condição absolutamente idólatra de um país estrangeiro, os Estados Unidos, e não raro sacrificam a ideia de soberania nacional – estandarte máximo do patriotismo clássico – em prol da submissão ao movimento internacional coordenado por Steve Bannon e afins. O juízo de perplexidade deriva da contradição escancarada, seguindo-se, portanto, a ironia e o deboche sobre as ações dos nossos amantes do Tio Sam expatriados em Miami e nos protestantes de Copacabana, da Avenida Paulista ou do Parcão. Meu ponto aqui será provar que esse diagnóstico é superficial e pode ser melhor explicado em outros termos; mas, antes, exploremos um pouco as contradições do movimento.

Primeiro, vimos durante 2023 e 2024 uma concentração de ataques da extrema direita à política econômica do governo Lula a partir da taxação de bens importados por Haddad, em uma manobra mais ou menos desastrada – sobretudo em termos de comunicação – na qual as “blusinhas” acabaram sofrendo tarifas e encarecendo ao consumidor popular o acesso a importações em geral chinesas. Haddad, por isso, é ironizado em memes como “Taxad”, e parte do episódio do Pix se deve, fundamentalmente, ao lastro anterior produzido ao seu redor pela propaganda da extrema direita. Se Haddad foi capaz de taxar mercadorias importadas de baixo valor, contra a própria promessa do governo, então por que isso não ocorreria com o Pix, promovendo a partir da sua vistoria a cobrança de impostos sobre atividades na zona cinzenta da legalidade que servem de base da renda dos trabalhadores precarizados? O raciocínio popular, que levou à queda da aprovação do governo e do próprio mandatário, tem lá sua lógica, mais uma vez fazendo perder os defensores da “verdade”, promovida pelos esclarecidos do jornalismo e da “técnica”, contra os promotores de notícias falsas.

Mas e quanto a Trump, então? O presidente americano promove agora a taxa como sua principal política. Ele chegou a dizer que tariff é a quarta palavra mais bonita do dicionário, depois de Godlove e religion. Como funcionam as tarifas de Trump? Para promover uma reindustrialização e reaquecimento do mercado americano, ele deseja “trazer de volta” os negócios que migraram para o Leste Asiático, barateando os custos de produção no famoso processo que nos últimos quarenta anos vem sendo chamado de “globalização”. As tarifas, portanto, são proteções do mercado interno. Exatamente como no caso de Haddad, que, entre outras razões, induziu, com apoio implícito da própria extrema direita, a taxação com o intuito de respeitar a competitividade do varejo interno. Alguém viu Luciano Hang criticando Haddad por tarifar blusinhas? O mesmo se passa com Trump: o valor adicionado, que ameaça chegar a 25%, é arcado pelo consumidor final, por isso mesmo se fala, inclusive, dos potenciais efeitos inflacionários. Onde estão os memes e as críticas dos economistas defensores do mercado aberto aqui no Brasil?

A segunda contradição ainda se conecta com a primeira. Sabe-se que a esquerda dita “desenvolvimentista” – o governo Dilma, sobretudo, é tido como seu representante  – aposta que somente promovendo uma reindustrialização o Brasil poderia sair da cilada exportadora e extrativista baseada em matérias-primas, hoje dominadas pelo agronegócio e pela mineração, em que se meteu. A reindustrialização resultaria em melhores empregos, organização da classe trabalhadora e valorização dos bens produzidos no Brasil, com mais “complexidade econômica”. Em compensação, a direita – embora apoiada, em massa, pelos próprios industriais, como vimos com a Fiesp durante o período do impeachment – considera a pauta econômica da esquerda ultrapassada, reduzindo a competitividade da indústria nacional e baseando-se em pressupostos da superioridade de um tipo de produção que dizem não se confirmar nos dados. Portanto, tanto faz a matriz produtiva do país, desde que alicerçada em instituições firmes capazes de garantir a estabilidade dos negócios e, com isso, fortalecer a confiança do setor privado para investimento.

Mas… e Trump? Toda lógica do protecionismo “desglobalizador” dele se baseia na renovação industrial dos Estados Unidos, colocando sua aliança com as big techs como ponto primordial, com a possibilidade do desenvolvimento de produtos de tecnologia de ponta. Além disso, Trump – com seu “drill, baby, drill” – pretende explorar ao extremo a matriz energética “suja” que nos conduziu à crise climática, aguçando seus efeitos (que são negados, também com muitas contradições, mas isso é tema para outro texto). Onde estão os adeptos do liberalismo econômico hard, por exemplo, o próprio ex-ministro Paulo Guedes, para criticar o neonacionalismo desenvolvimentista de Trump? Trump, inclusive, faz exatamente a mesma coisa pela qual Lula apanhou inclementemente da imprensa e do mercado financeiro ao longo dos últimos dois anos: ataca e constrange, constantemente, o Banco Central, a fim de promover a baixa dos juros. A diferença é que Lula via no dirigente do Bacen um inimigo na trincheira, promotor de crises artificiais com o fito de minar as políticas governamentais, forçando a desconfiança econômica e a subida dos juros, enquanto com Trump ocorre o inverso: ele vê o Banco Central americano como muito técnico, por isso mesmo impedimento à realização das suas metas políticas que envolvem uma forte intervenção na institucionalidade econômica. O que é mais grave? Se observarmos nossos liberais “convictos”, como os representantes do Partido Novo, aparentemente não estão achando nada de errado com as medidas de Trump.

Terceira e última contradição, para efeitos deste texto, pois não se esgotam nisso: a posição em relação à Ucrânia. Sabemos que o Brasil, logo que estourou a guerra da Ucrânia, viveu uma polarização surreal entre a direita – que passou a idolatrar Zelensky – e parte da esquerda, que via em Putin uma continuidade do projeto soviético. Enfim, mais fogo foi acrescentado quando Lula assumiu e resolveu ocupar o lugar de pacificador, tentando travar algum diálogo com Putin. Rapidamente, a parcela mais liberal – tanto da esquerda como da direita – passou ao ataque, considerando uma capitulação desumana, e nossa mídia ecoou os “desencontros” entre Zelensky e Lula que ocorriam nos foros internacionais. Mas e agora? Trump ligou para Putin e Zelensky para dizer que quer dar fim à guerra, e a chancelaria americana reconhece que é impossível à Ucrânia voltar ao status quo anterior. Uma posição não tão diferente daquela sustentada por Lula, tão repudiada. E, no entanto, quem está protestando contra a entrega de parte do território da Ucrânia à Rússia, sem falar da possibilidade de cobrança – com pagamento de anexação territorial – do custeio da ajuda militar dos Estados Unidos durante a guerra, levantado pelo próprio Trump?

As contradições parecem muitas, mas esse diagnóstico é apenas superficial. Na realidade, não há contradição alguma. Essa ideia pressupõe que o processo de constituição de uma identidade – no caso, o “patriota” – se dá a partir de uma correspondência entre uma condição “real” e uma identidade objetivamente dada. Por exemplo, como se discute frequentemente na esquerda, um trabalhador – que, mesmo sem carteira assinada, tem relação de subordinação e dependência – deveria se ver como trabalhador; afinal, é o que ele é. Se não se vê dessa forma, é porque está enfeitiçado (os conceitos de ideologia e alienação estão aí para tapar esses buracos). Mas não é assim que acontece. Primeiro, porque esse é está longe da objetividade total que um marxismo dogmático gostaria de sustentar. E isso por uma segunda razão: a identidade, constituída a partir da identificação, é resultado de processos imaginários. O que é um brasileiro é algo que está, constantemente, sendo disputado no imaginário, não basta apenas o passaporte ou o CPF para resolver o problema. Na identificação, como explorou Freud no seu texto sobre a psicologia das massas, é comum que haja uma identificação virtual, isto é, que ela ocorra pelo desejo, sem que haja uma correspondência com a minha condição atual. Assim, nem sempre me identifico com o que sou, mas muitas vezes com o que quero ser.

A força do pertencimento aos movimentos de extrema direita, que reúne pessoas para cantar o Hino Nacional para um pneu, não é apenas um pertencimento como qualquer outro. Às vezes, a crença na fungibilidade do pertencimento – do tipo, se é assim, vamos trocar por outro (por exemplo, ao Estado, à sociedade, à comunidade local, ao partido) – por vezes não vai suficientemente longe na análise das características singulares daquela identificação. E o que faz o pertencimento dos patriotas? Ele consegue preencher um vazio que antes existia para dizer: sim, você é mesmo um patriota, mesmo idolatrando a América mais que o Brasil. A identidade é constituída no processo de identificação por uma imagem idealizada do que quero ser, mas isso não ocorre apenas no plano individual: um Napoleão de hospício não se torna Napoleão apenas porque quer. É porque os outros confirmam que uma identificação pode colar. E essa é, efetivamente, a dimensão coletiva do movimento de extrema direita.

Assim, por que a análise da contradição é apenas superficial? Porque não há contradição. Os “patriotas” efetivamente se veem como patriotas, mas para eles ser patriota é outra coisa. E é essa “outra coisa” que eles miram quando se reúnem para vangloriar Trump diante dos seus “acertos” que beneficiam apenas os Estados Unidos, e ninguém mais, além de por vezes prejudicar até mesmo o Brasil. Mas o que é essa “outra coisa”?

Aqui temos uma questão interessante: tanto a extrema direita quanto a esquerda radical veem os Estados Unidos de forma semelhante, ou seja, como um império. A imagem dos EUA como uma democracia aberta, tolerante, com instituições sólidas e de uma ordem internacional fundada no direito é própria  do centrismo. Apenas os liberais enxergam os EUA como esse país específico, com uma sociedade tocquevilliana, separando fortemente o externo (a política internacional) do interno (a democracia constitucional). Esquerda radical e extrema direita, ao contrário, veem como as duas camadas estão diretamente entrelaçadas. O que os EUA fazem para o mundo, da Guerra da Coreia ao apoio a Israel em Gaza, é assunto que define os EUA. Não há diferença entre a sociedade interna e o império. Claro, a coincidência acaba por aí: para a esquerda radical, trata-se de se opor; para a extrema direita, de se integrar o império. O sonho dos Bolsonaro seria receber aquele convite dirigido ao Canadá para que o Brasil se tornasse um Estado da federação americana. Então, o “patriotismo” estaria consumado na maior de todas as conquistas: a integração completa, como parte dos dominadores, na condição imperial. Naturalmente, sabemos que a crise política atual é, mais que tudo, uma crise do centro político: este foi hegemônico nos últimos quarenta anos, do pretenso “fim da história”, até que tudo se mostrasse uma farsa desde a crise de 2008.

Mas, ainda dentro da “outra coisa”, alguém poderia perguntar: e não é uma contradição alguém se ver como parte de um império não o integrando de fato? Aqui, mais uma vez, surge a identificação: quando o patriota olha para os Estados Unidos como sua pátria, ele efetivamente projeta sua identidade como parte desse coletivo imperial. É claro que o Brasil não integra os Estados Unidos, mas, como país vassalo, ele pode sim integrar o império americano. E, portanto, o que esses patriotas veem sobre si mesmos é a condição de “cidadãos do Império americano”. Por isso, Make America Great Again os contempla.

Permitam-me mais uma última comparação para explicar. Um dos elementos cruciais do trumpismo é o supremacismo branco. Mas sabemos, por estudos brasileiros e internacionais, que a branquitude é uma condição relativa. Um branco no Brasil torna-se “latino” nos Estados Unidos. Um branco nascido na Bahia torna-se “nordestino” em São Paulo. O mesmo pode ocorrer com a identidade negra em alguns casos. Em geral, basta a autodeclaração, mas, por exemplo, quando se trata da disputa de cotas, é possível haver comissões de “heteroidentificação” em que a identificação é avalizada pelo feedback do outro. Em outros termos, a identidade não é uma relação de eu com o meu eu-factual, mas do meu eu produzido por meio de uma série de relações imaginárias com o meio e os outros, finalmente resultando em uma posição. Não existe identidade absoluta. Isso significa que o brasileiro patriota pode, sim, ver-se como branco americano, mesmo que, de um ponto de vista de muitos outros, ele possa ser caracterizado como “pardo” ou “latino”. Não importa.

O viés de confirmação é obtido por meio da chancela grupal: sim, se você é bolsonarista, você faz parte do clube dos brancos que compõem uma região vassala do Império. A vassalagem é uma relação bilateral, não apenas a submissão unilateral. É dessa troca assimétrica que os patriotas se vangloriam. Portanto, se o significante patriota pode comportar muitos sentidos, um deles passou a ser esse: ser patriota, amar a sua pátria, é se submeter aos Estados Unidos, ou seja, ao império do qual sua pátria é vassala.

 

Nova dependência 

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Vivemos momentos de grandes transformações na sociedade global, estas grandes alterações estão redefinindo as estruturas de poder e de riqueza, criando uma nova economia, com novos desafios para o desenvolvimento das nações e, ao mesmo tempo trazendo grandes desafios, lembrando que, para colher frutos positivos para a sociedade, fazem-se necessárias uma ampla preparação interna, com maciços investimentos em capital humano e a consolidação de instituições políticas e econômicas.

Historicamente o Brasil sempre se caracterizou por ser uma economia exportadora de produtos primários de baixo valor agregado, estruturada em um modelo econômico que se pautou por grandes propriedades, monocultura exportadora e trabalho escravo, características que ainda existem fortemente na atualidade. Somos uma grande nação exportadora de produtos primários com baixo valor agregado, desta forma, somos dependentes do mercado externo, os preços dos nossos produtos são definidos pelo mercado internacional e, somos historicamente importadores de produtos industrializados, compramos máquinas e tecnologias dos países mais avançados, estes sim definem os preços dos seus produtos vendidos no mercado externo.

As riquezas naturais extraídas de países mais atrasados economicamente eram utilizadas para alavancar o crescimento econômico das nações desenvolvidas, um modelo produtivo bastante agressivo economicamente e uma estrutura de comércio desleal que sempre gerou grandes privilégios para os países do norte global em detrimento das nações do sul, garantindo uma exploração institucionalizada pelas regras internacionais  criadas pelas nações desenvolvidas, e aceitas passivamente pelas elites locais, que enriqueciam garantindo migalhas e que se satisfaziam com a pobreza e a miséria de sua população.

No século XX, o Brasil ensaiou um processo de industrialização tardia, com fortes investimentos estatais para transformar a estrutura produtiva, criando variadas empresas públicas para alavancar o crescimento econômico, com isso, demos um salto gigantesco e passamos ao rol das dez maiores economias do mundo, preocupando nações industrializadas e gerando calafrios pelo forte potencial de crescimento econômico e produtivo, se sabidamente somos dotados de grandes riquezas naturais e minerais e se, conseguíssemos, construir um forte setor industrial, moderno, inovador e dinâmico?

Com os fortes movimentos econômicos e produtivos gerados pela globalização e pela abertura econômica, perdemos espaço no comércio internacional e passamos a vivenciar um processo de desindustrialização precoce e o setor primário exportador voltou a dominar as exportações brasileiras, exportando minério de ferro e importando produtos industrializados, exportando produtos in natura e importando produtos sofisticados, máquinas e tecnologias avançadas, retomando uma dependência que sempre caracterizou a sociedade brasileira.

Hoje percebemos uma nova dependência em curso na sociedade global, estamos, novamente, acreditando no canto da sereia das nações desenvolvidas, estamos aceitando a venda de produtos primários estratégicos, as mercadorias mais demandadas são as chamadas terras raras, minérios utilizados nas grandes big techs para garantir sua hegemonia no mercado global e, continuamos a ser importadores de tecnologias avançadas, nos tornando dependentes do mercado externo e deixando de lado nosso gigantesco potencial científico e tecnológico, entregando os investimentos estratégicos para empresas estrangeiras que pouco conhecem nossa trajetória, deixando de lado a ciência nacional, os pesquisadores e todos aqueles que acreditam verdadeiramente no enorme potencial deste país.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

 

 

Quanto mais estuda, mais o brasileiro é desaproveitado? por Erik Chiconelli Gomes

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Embora seja baixa, renda dos trabalhadores sem instrução formal cresceu 42% em doze anos e informalidade caiu. O inverso ocorreu com quem tem ensino superior. Fenômeno expõe como a regressão produtiva afeta os salários de trabalhadores mais qualificados

Erik Chiconelli Gomes – OUTRAS PALAVRAS – 18/02/2025

O mercado de trabalho brasileiro tem apresentado uma tendência contraditória nos últimos anos, desafiando pressupostos tradicionais sobre a relação entre educação e renda. Dados recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua revelam um fenômeno intrigante: trabalhadores sem instrução formal experimentaram um aumento real de 41% em seus rendimentos entre 2012 e 2024, enquanto profissionais com ensino superior registraram uma queda de 12,3% no mesmo período (IBGE 2024).

Este cenário paradoxal reflete transformações estruturais no mercado de trabalho nacional. De acordo com a Fundação Getulio Vargas (FGV), a pandemia de covid-19 atuou como um catalisador dessas mudanças, preservando inicialmente os trabalhos mais qualificados que podiam ser realizados remotamente, mas posteriormente impulsionando uma recuperação expressiva dos setores que tradicionalmente empregam trabalhadores com menor escolaridade (Feijó 2024).

A análise dos dados do IBGE demonstra que o setor de serviços tem sido fundamental nessa reconfiguração. A coordenadora de Pesquisas por Amostra de Domicílios do IBGE, Adriana Beringuy, destaca que atividades como construção civil, agricultura, transporte e logística têm apresentado forte aquecimento, gerando uma demanda crescente por profissionais com menor qualificação formal (IBGE 2024).

Um aspecto significativo dessa transformação é a redução da informalidade entre os trabalhadores menos escolarizados. Pesquisas da FGV indicam que a taxa de informalidade nesse grupo caiu de 75,2% em 2012 para 71,1% em 2024. Em contrapartida, entre os profissionais com ensino superior, a informalidade aumentou de 27% para 33,2% no mesmo período (Feijó 2024).

O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) aponta que a política de valorização do salário-mínimo tem sido um fator determinante nesse processo. Segundo Pelatieri (2024), nos últimos três anos, a renda dos trabalhadores com baixa qualificação cresceu aproximadamente 20%, acompanhando os reajustes do piso nacional.

A expansão do ensino superior no Brasil também contribuiu para esse cenário. O número de matrículas saltou de 2,7 milhões em 2000 para 9,4 milhões em 2022, representando um aumento significativo na oferta de profissionais qualificados no mercado. Atualmente, 23% dos ocupados possuem ensino superior, contra 13,7% em 2012 (IBGE 2024).

O setor de comércio eletrônico tem sido um exemplo emblemático dessa transformação. A digitalização acelerada durante a pandemia gerou uma demanda inicial por profissionais especializados em tecnologia, mas posteriormente criou oportunidades significativas em áreas operacionais, como logística e distribuição, que não exigem alta escolaridade.

A recuperação do setor de serviços pessoais após a pandemia também tem favorecido trabalhadores com menor escolaridade. Atividades como serviços de beleza, alimentação e pequeno comércio têm apresentado crescimento consistente, beneficiando principalmente profissionais autônomos. O fenômeno da uberização do trabalho, amplamente discutido por Antunes (2020), contribui para compreender essa nova dinâmica. A proliferação de plataformas digitais tem criado oportunidades de geração de renda para trabalhadores com diferentes níveis de escolaridade, embora frequentemente em condições precárias.

Pochmann (2021) argumenta que essas transformações refletem uma reestruturação produtiva mais ampla, onde a flexibilização das relações de trabalho tem impactado diferentes segmentos da força de trabalho, independentemente do nível de escolaridade. A questão da qualificação profissional ganha novos contornos nesse contexto. Standing (2021) sugere que o conceito tradicional de educação formal pode estar perdendo relevância em um mercado de trabalho cada vez mais volátil e fragmentado.

O caso dos trabalhadores do setor de construção civil é particularmente ilustrativo. Beringuy (2024) destaca que, mesmo na era da inteligência artificial, há maior dificuldade em encontrar profissionais como pedreiros e eletricistas do que programadores web. As mudanças no perfil das vagas operacionais também são significativas. Dados da organização social Gerando Vidas indicam que as ofertas de emprego para posições que exigem baixa escolaridade praticamente dobraram entre o início de 2024 e 2025, com salários médios passando de R$ 1.400 para R$ 1.700.

O impacto da tecnologia nesse processo é ambíguo. Se por um lado a automação ameaça certos postos de trabalho, por outro tem criado novas oportunidades em setores como logística e distribuição, que não necessariamente demandam alta escolaridade. A questão da mobilidade social também merece atenção. Embora a renda dos trabalhadores menos escolarizados tenha aumentado, a diferença salarial entre quem tem ensino superior e ensino médio ainda é expressiva, cerca de 126% segundo dados da FGV.

O papel das políticas públicas nesse cenário é fundamental. A retomada da política de valorização do salário-mínimo, com aumentos reais vinculados ao crescimento do PIB, tem impactado positivamente a renda dos trabalhadores na base da pirâmide. A dinâmica do mercado de trabalho brasileiro reflete também tendências globais. As transformações tecnológicas e organizacionais têm alterado profundamente a natureza do trabalho e as competências valorizadas pelos empregadores.

A questão da desigualdade de renda no Brasil revela uma complexidade sem precedentes neste novo cenário. Embora os dados apontem para uma aparente redução da disparidade salarial, com o aumento da renda dos trabalhadores menos qualificados, é fundamental examinar criticamente este fenômeno. O nivelamento por baixo da renda do trabalho pode mascarar um processo de precarização generalizada das condições laborais, onde a aproximação entre os rendimentos ocorre não pela elevação sustentável dos salários mais baixos, mas pela deterioração dos rendimentos dos trabalhadores mais qualificados.

A tendência de desvalorização da educação formal representa um risco significativo para o desenvolvimento socioeconômico do país. O desencorajamento ao investimento em formação superior, provocado pela queda na rentabilidade deste nível de ensino, pode gerar um ciclo vicioso de desinvestimento em capital humano. Quando as novas gerações observam a redução do retorno financeiro da educação superior, podem optar por trajetórias profissionais que priorizam ganhos imediatos em detrimento da qualificação de longo prazo, comprometendo a capacidade inovativa e produtiva do país.

O futuro do trabalho no Brasil exige uma abordagem que transcenda a dicotomia entre conhecimento formal e prático. A valorização equilibrada entre as diferentes formas de saber e competências profissionais precisa estar ancorada em uma política educacional e de desenvolvimento que reconheça tanto a importância da formação acadêmica quanto das habilidades técnicas e experienciais. Esta integração deve ocorrer de forma a potencializar ambas as dimensões, criando sinergias que elevem a qualidade geral do trabalho e da produção nacional.

O horizonte que se desenha para o mercado de trabalho brasileiro demanda uma profunda reestruturação dos sistemas educacionais e de formação profissional. As transformações tecnológicas e organizacionais em curso exigem um novo paradigma que combine flexibilidade adaptativa com solidez formativa. Este modelo deve ser capaz de responder às demandas imediatas do mercado sem sacrificar a capacidade de geração e absorção de conhecimento avançado, essencial para o desenvolvimento sustentável do país em um contexto de competição global cada vez mais intenso.

Referências:

ALMEIDA, Cássia. Escolaridade desvalorizada? Renda no país cresceu mais para trabalhador sem qualificaçãoO Globo, Rio de Janeiro, 9 fev. 2025.

ANTUNES, Ricardo. Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020.

FEIJÓ, Janaína. Relatório sobre escolaridade, emprego e renda no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2024.

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Rio de Janeiro: IBGE, 2024.

PELATIERI, Patrícia. Análise da política de valorização do salário mínimo. São Paulo: DIEESE, 2024.

POCHMANN, Marcio. Trabalho sob fogo cruzado. São Paulo: Contexto, 2021.

STANDING, Guy. O precariado: a nova classe perigosa. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.

 

Levitsky e o colapso da democracia americana, por Marcus André Melo

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O diagnóstico do analista está em franco desacordo com as conclusões de seu último livro que alerta contra os perigos das instituições contramajoritárias

Marcus André Melo, Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA)

Folha de São Paulo, 24/02/2025

Em entrevista recente, Steven Levitsky afirmou ao UOL que não está certo que os tribunais irão conter Trump. “É muito difícil prever. As cortes vão provavelmente frear ou bloquear algumas dessas decisões. Mas nem todas. E outro aspecto é que as cortes se movem lentamente. Mesmo que nem todas as decisões de Trump eventualmente sobrevivam, ele pode quebrar o Estado. Além da lentidão das cortes, outra dúvida é se Trump irá cumprir as decisões das cortes”.

Mas esta conclusão está em franco desacordo com o seu diagnóstico em livro recente com Daniel Ziblatt de que a democracia americana está ameaçada por instituições contramajoritárias. Dentre elas estão o Colégio Eleitoral, uma Suprema Corte poderosa, o bicameralismo forte, quóruns qualificados no Senado, e um federalismo muito robusto. Estas instituições permitiriam, alega, que a elite branca possa manter o status quo ante a perspectiva de ser minoritária no futuro.

Ora, não é o que se observa: Trump foi eleito tanto no Colégio Eleitoral quanto no voto popular, e os republicanos são majoritários nas duas casas do Congresso. E mais, as minorias —latinos e negros— aumentaram o voto em Trump entre 2016 e 2024.

Passemos então a seu prognóstico de que as instituições não conterão Trump. A primeira parte do argumento diz respeito na realidade à indiferença da opinião pública: “A primeira eleição de Donald Trump à Presidência em 2016 desencadeou uma defesa enérgica da democracia por parte do establishment americano, mas seu retorno ao cargo foi recebido com uma indiferença marcante. Muitos políticos, comentaristas, figuras da mídia e líderes empresariais que viam Trump como uma ameaça agora tratam essas preocupações como exageradas — afinal a democracia sobreviveu ao seu primeiro mandato”.

Na realidade, quanto mais sólidas as democracias mais confiantes os cidadãos nas suas instituições. Kristian Frederiksen estudou 43 democracias entre 1962 e 2018 e mostrou que quanto maior a experiência com a democracia, maior a indiferença em relação a ameaças a democracia pelos incumbentes. E Christopher Claasen mostrou que quando um país se torna mais democrático, paradoxalmente o apoio à democracia na opinião pública diminui; e que quando aumenta seu componente liberal (contramajoritário) surge uma contratendência.

Este “efeito termostato” se baseia em pesquisas em 135 países em um período de 20 anos. Em dissertação defendida na UFPE, Alan Cavalcanti estendeu a análise desses autores e encontrou novas e fortes evidências de que a experiência democrática pregressa implica maior apoio à democracia.

Assim, a indiferença já era esperada em uma democracia longeva. As evidências empíricas sugerem que é mais provável que após a lua de mel venha uma reação tanto na opinião pública quanto em termos dos efeitos dos “checks and balances”. O primeiro teste são as eleições congressuais em 2026. O segundo já está em curso: o federalismo e os tribunais —temidos por Levistky em seu livro por seus efeitos contramajoritários. É questão de tempo. A pergunta decisiva: e se Trump não acatar decisões dos tribunais? Quem detém a espada são as Forças Armadas que em mais de dois séculos nunca violaram a legalidade.

 

A América para os americanos? por Vera Iaconelli

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Em nome do neoliberalismo, sonha-se reviver a monarquia

Vera Iaconelli, Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “Manifesto Antimaternalista” e “Felicidade Ordinária”. É doutora em psicologia pela USP

Folha de São Paulo, 25/02/2025

Foram décadas de dedos apontados para o povo alemão, questionando as omissões que teriam levado Hitler ao poder. Hoje, no entanto, assistimos à saudação nazista de Elon Musk durante a posse do novo presidente dos Estados Unidos passar quase sem repercussão. O mesmo governo que endossa o gesto corre para abraçar Netanyahu, prometendo lotear Gaza. Assiste-se ao ocaso das democracias sob a lupa de Daniel Ziblatt e Steven Levitsky.

Tal descalabro não encontra resposta da oposição, perplexa diante da profusão de processos judiciais e da política do nonsense promovida por Steve Bannon, arquiteto da incivilidade.

Nós, ao sul do Equador, subsumidos à sigla Maga (Make America Great Again), que promete nos engolir, lemos, estarrecidos, manchetes na Folha colocando em questão o processo contra a tentativa de golpe durante a eleição presidencial brasileira. O que pretendem aqueles que fazem coro desqualificando a denúncia de golpe e, no limite, a parca democracia que nos resta? As notícias que vêm dos Estados Unidos não lhes são suficientemente aterradoras? Ou será justamente sua eloquência que os atrai, na expectativa de se alinharem aos poucos que dominarão, sem qualquer compromisso com a justiça, os demais?

O governo Lula, por sua vez, mostra-se incapaz de adotar uma postura vigorosa e inequívoca diante do risco que as eleições de 2026 representam, preferindo governar como se estivéssemos sob um céu de brigadeiro. Ou será que estamos?

É notória a falta de esperança daqueles que, até pouco tempo, comemoravam as eleições de 2022, quando um dos poucos candidatos comprometidos com uma agenda socioambiental e econômica voltada para o bem comum subia a rampa. Não se trata do desânimo com promessas de campanha sempre muito além do exequível, mas da postura amorfa e hesitante diante de um mal maior que se anuncia sem disfarces.

No Brasil, o candidato mais forte da direita veste a camisa do trumpismo para não deixar dúvidas sobre suas intenções: em nome do neoliberalismo, reviver a monarquia. Segundo lembrou Maureen Dowd em artigo no New York Times, a célebre frase atribuída a Calígula faz eco na boca de Trump: “Faço o que quiser com quem quiser”.

Em “Conclave”, filme de Edward Berger, o racismo, a transfobia, a corrupção e o pragmatismo não deixam espaço para o sonho de coletividade, restando ao terrorismo furar o claustro político. A questão é se vamos escutar o terror como sintoma do mal-estar ou se vamos redobrar a aposta na violência que o fomenta. Assistam.

Em frente ao tribunal onde Luigi Mangione está sendo julgado pela morte do CEO da UnitedHealthcare, um grupo se reúne pedindo sua liberdade. Tempos loucos, nos quais um assassino confesso é defendido publicamente por pais de família que se veem impotentes diante da máquina das seguradoras de saúde.

Será essa a oposição cínica e destrutiva que nos restará diante do descalabro do autoritarismo competitivo —termo que Levitsky e Way empregaram na Folha no domingo? Torço para que não.

Escutar o mal-estar do nosso tempo, dar-lhe voz e buscar saídas éticas diante de seus impasses tem sido a aposta da psicanálise na clínica e no espaço público.

Só resta pedir: um esforço a mais, republicanos.

 

Liberalismo, desenvolvimentismo e projetos de desenvolvimento, por Luis Nassif

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Liberalismo, desenvolvimentismo e projetos de desenvolvimento

Luis Nassif – A Terra é Redonda – 27/02/2025

O pressuposto de qualquer projeto consistente de Nação tem que ser o atendimento das demandas da população

Há uma vertente de discussão sobre a Lei do Teto, defendendo sua aplicação desde que haja espaço para investimentos públicos. Da mesma maneira que a Lei do Teto original, reduz-se uma questão complexa – o desenvolvimento – a um ângulo apenas, o macroeconômico. Faz parte de uma herança das últimas décadas, de só se enxergar o desenvolvimento a partir da ótica macroeconômica, para manter a supremacia dos economistas na formulação das políticas públicas.

É por isso que toda a discussão de projeto de pais fica restrita ao liberalismo atual, ao desenvolvimentismo tradicional e à vertente do desenvolvimentismo social – a ausência de Estado, o desenvolvimentismo se restringindo à prioridade dos investimentos públicos e o desenvolvimentismo social privilegiando as políticas sociais.

Projeto de desenvolvimento é algo muito mais amplo e sistêmico. Em meados dos anos 2000 procurei sintetizar em uma série de colunas na Folha, posteriormente incluídas em meu livro Os cabeças de planilha. Na época, a série foi reproduzida no site do BNDES pelo presidente Carlos Lessa – um dos derradeiros formuladores de planos sistêmicos, herdeiro da tradição de Celso Furtado e Darcy Ribeiro.

A parte macroeconômica é só o fecho do projeto, assim como, em uma empresa privada, o financeiro é apenas o técnico que cuida do financiamento da estratégia maior. Ou seja, primeiro tem que se desenhar o modelo de país que se pretende e a estratégia para se chegar lá. Depois, as formas de financiar.

O pressuposto de qualquer projeto consistente de Nação tem que ser o atendimento das demandas da população. Mesmo porque esse atendimento tem reflexos relevantes na oferta de mão de obra, na criação do mercado de consumo, na manutenção da paz social.

A cultura popular é a argamassa do projeto. É o que fortalece o sentimento de solidariedade nacional, permite enxergar o país como um todo, reforça a aposta no potencial humano e no conceito de Nação – sem xenofobia. Em algum momento no final da década de 2.000, quando o país atingiu o ápice da auto-estima, o “jeitinho” passou a ser visto como um valor, mostrando a flexibilidade do brasileiro para encontrar soluções, encantando os grandes gestores de qualidade.

Essa descoberta dos talentos naturais do brasileiro é essencial para cimentar programas educacionais e políticas sociais inclusivas. No final do segundo governo Lula, o orgulho de ser brasileiro tornou-se uma bandeira que abriu espaço para as políticas de cotas no ensino público.

Dentro dessa mesma lógica, é peça essencial o estímulo ao pequeno empreendedor, às micro e pequenas empresas, que não apenas garantem o emprego, mas, em seu processo de crescimento, a renovação e a vitalidade da economia.

Ao longo do pós-Constituinte, foram criados inúmeros instrumentos de apoio às PMEs, a partir da reestruturação do Sebrae no governo Collor. Pode-se estimular as PMEs com programas de gestão, com apoio dos institutos públicos à inovação, com os modelos de Arranjos Produtivos Locais e com financiamentos a custos razoáveis, como nos experimentos isolados de bancos do povo.

Na parte agrícola, o cooperativismo exerceu um enorme papel. E, mais recentemente, o modelo campeão do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), com suas propostas inovadoras de conferir ao trabalhador o usufruto, mas não a posse da terra – para impedir jogadas especulativas.

Políticas, como o apoio à agricultura familiar – garantindo a demanda a partir das escolas e outras organizações de serviço público -, as tentativas de produção de bioetanol por pequenos agricultores, tudo isso são experiências historicamente recentes, que poderão ser recuperadas.

Todo esse modelo é alicerçado na capacidade da sociedade de trabalhar em conjunto, de juntar forças, de instituir formas de colaboração, só possível após o trabalho prévio de construção, pela cultura, dos símbolos de uma alma brasileira, como forma de reforçar a solidariedade.

Paralelamente, há a necessidade de instituir políticas industriais visando manter a competitividade da produção brasileira. A única maneira de consolidar o modelo é garantir empregos de qualidade. E empregos de qualidade não se consegue na uberização e na consolidação de uma sociedade eminentemente de serviços.

É aí que a intervenção do Estado se torna necessária. Vive-se um período de eliminação de empregos. E empregos são essenciais para a paz social, para o bem-estar geral, para o fortalecimento do mercado de consumo. Daí a necessidade de políticas pró-ativas de geração de emprego, leis que domem a selvageria anti-emprego das plataformas, da uberização. É movimento internacional, que tenderá a crescer cada vez mais. O desafio será termos governos capazes de alinhar o país com as novas ideias que começam a se espalhar pelo mundo civilizado.

Outro ponto essencial, nas políticas públicas, é o papel do Estado no financiamento da inovação, seja pelo sistema Finep-Fundações de Amparo à Pesquisa, seja retomando o papel essencial da Petrobras e das grandes corporações privadas no espalhamento da pesquisa, através de parceria com universidades e de aprimoramento das práticas de seus fornecedores.

 

A armadilha dos indicadores financeiros

Ponto dos mais relevantes é sair da armadilha dos indicadores meramente financeiros.

Lembro-me da grande revolução gerencial dos anos 90 e a tentativa de levar a melhoria de gestão, e inovação, a pequenas e microempresas. Havia uma lógica férrea reforçando a relevância desse trabalho. Como as PMEs eram maioria, qualquer ganho incremental teria um impacto grande sobre a produtividade como um todo.

Em um debate nos anos 90, polemizei com Luciano Coutinho, defensor do conceito de campeões nacionais – uma das principais marcas da escola desenvolvimentista. E salientei a falta de indicadores sobre aspectos micro da economia. Por exemplo, um grupo de pequenas empresas, trabalhando de forma consorciada, representaria um ganho de eficiência relevante da economia. E, no entanto, esse ganho não era mensurado.

Entra-se aí em outro terreno relevante da economia, e pouco considerado no país: a análise das externalidades dos investimentos públicos e privados. Isto é, das consequências indiretas desses investimentos, no plano social, de meio ambiente e no campo do desenvolvimento, especialmente para superar uma das grandes marcas do subdesenvolvimento do pensamento mercadistas brasileiro: a falácia da composição.

Um exemplo claro foi a distribuição dos investimentos de pesquisa pelos novos campus. Houve intensa reação de pesquisadores do triângulo São Paulo-Rio de Janeiro-Belo Horizonte. Como possuem as melhores instituições públicas, partia-se do pressuposto que cada centavo aplicado nelas seria mais eficiente do que os centavos aplicados em novas instituições, sem tradição de pesquisa.

A realidade demonstrou o contrário. Os novos institutos levaram o conceito de pesquisa para as diversas regiões, permitindo a criação de políticas eficientíssimos, de consórcios de pesquisas bancados pela Petrobras e pela Confederação Nacional da Indústria, trazendo um sangue novo aos pesquisadores e, principalmente, um foco maior na solução dos problemas regionais.

Outro desafio foi a enorme concentração de poder nos frigoríficos nacionais. Transformou a JBS em um campeão internacional, mas quais os resultados sobre a cadeia produtiva da carne e do couro? Ora, o que impactaria o país seria a JBS como instrumento de modernização da produção pecuária. Ao contrário, seu poder – e dos demais frigoríficos – provocou enormes desequilíbrios na pecuária e na indústria de couros. Com isso, o campeão nacional se internacionalizou, com baixíssima contribuição ao desenvolvimento sistêmico do setor.

Outro tema dos mais relevantes foram as cotas sociais-raciais nas Universidades públicas. A reação dos idiotas da objetividade é que, colocando alunos menos preparados nas universidades, haveria uma perda de qualidade do ensino.

A lógica da inclusão é que havia uma assimetria na partida – a diferença de formação e de oportunidade entre alunos de escola pública e privada. Contornada essa assimetria pelas cotas, o que se viu – e foi comprovado pela Unicamp – é que a geração de cotistas, na média, tem melhor desempenho que a média dos não-cotistas, por saber que o estudo é a única maneira de superar a maldição das barreiras socioeconômicas.

E, se o potencial de um país se mede pela soma de potencialidades aproveitadas de sua população, como deixar de fora a maior parte da população, negra e pobre?

Há inúmeros outros temas essenciais, dentro de um projeto de desenvolvimento, como a capacidade de compra do Estado – fundamental em setores como de medicamentos e, em outros tempos, na construção de plataformas pela Petrobras.

O desenvolvimentismo

Voltando ao início da nossa conversa, como ficam os princípios desenvolvimentistas, de aumento do investimento público?

Investimentos públicos não podem ser vistos exclusivamente da ótica da recuperação conjuntural da economia – como costumam ser tratados -, mas como peça essencial de desenvolvimento, ou seja, em um horizonte temporal de longo prazo. Assim como a valorização da produção interna, do uso do mercado de consumo como barganha para a transferência de tecnologia pelas multinacionais – como foi feito pelo Brasil dos anos 50 e pela China do terceiro milênio.

Não existe bala de prata para o desenvolvimento.

O grande projeto de desenvolvimento será aquele que englobar todas essas políticas simultaneamente, como foco direto no melhor do Brasil: os brasileiros. E o grande estadista será o que juntar todas essas peças em um todo lógico e souber explicar o todo ao país, estimulando o grande pacto do desenvolvimento nas pequenas, médias, grandes empresas, nos arranjos sociais, nas cooperativas, nos APLs, nos movimentos sociais.

E salve Manoel Bonfim, Celso Furtado, Josué de Castro, Rômulo de Almeida, Anisio Teixeira, Paulo Freire, João Paulo dos Reis Velloso, salve a brilhante geração dos anos 60, ceifada pelo golpe militar e, depois, pelo economicismo emburrecedor contemporâneo.

*Luis Nassif é jornalista, editor do Jornal GGN. Autor, entre outros livros, de Os cabeças de planilha (Ediouro).

Publicado originalmente no Jornal GGN.

 

As causas do atraso português, por Samuel Pessoa

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Livro faz revisão da história econômica do país do século 16 até hoje

Samuel Pessoa, Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP.

Folha de São Paulo, 23/02/2025

O historiador português Nuno Palma acaba de publicar em Portugal, pela editora Don Quixote, “As Causas do Atraso Português”. O livro faz uma revisão da história econômica de Portugal do século 16 até hoje.

Palma nos oferece uma descrição muito original da história econômica portuguesa, que está bem assentada nos achados mais recentes da pesquisa acadêmica. Discordando da leitura mais tradicional, Palma não localiza o atraso dos povos peninsulares na Contrarreforma ou em qualquer questão cultural ou religiosa. A Contrarreforma, a Inquisição e o atraso cultural, principalmente educacional de Portugal, desempenharam um papel prioritariamente político na construção do absolutismo português.

O atraso institucional português começou a ser construído em meados do século 17, com o avanço institucional inglês em razão da guerra civil e da Revolução Gloriosa. Até esse período, não havia diferença relevante na renda per capita de Portugal e da Inglaterra, e as instituições políticas portuguesas limitavam o poder discricionário do rei, em algumas dimensões, até mais do que as cortes inglesas. Até o fim do século 17, não se pode falar de absolutismo em Portugal.

A piora institucional ocorreu definitivamente no século 18 e foi fruto da doença holandesa produzida pelo ouro do Brasil. A riqueza fácil abortou um incipiente processo de industrialização que ocorria.

Adicionalmente, o ouro de Minas permitiu que o rei não precisasse da autorização das cortes para financiar o Estado. As cortes não foram convocadas por pouco mais de 120 anos, até 1820. Finalmente, o fechamento total do regime político consolidou um capitalismo de compadrio. Palma sugere que até o final do século 17, aproximadamente, a economia portuguesa era mais competitiva.

O marquês de Pombal é a figura histórica que se sai pior na reconstrução histórica de Palma. Com a expulsão dos jesuítas, o marquês produziu um atraso educacional no país do qual Portugal somente se recuperaria na primeira década do Estado Novo salazarista!

Pombal e as escolhas posteriores transformaram Portugal em um país de analfabetos até meados do século 20. Devido ao peso imenso que a escolarização básica de qualidade tem no desenvolvimento econômico, aí está boa parcela do atraso de Portugal.

Para Palma, Portugal ficou parado no período da monarquia constitucional, de 1820 até 1910, e assim se manteve na curta Primeira República, até 1926. No Estado Novo, inicia-se o processo de convergência portuguesa com os países ricos. A melhora educacional e, no pós-guerra, o engate do país à Europa permitiram forte convergência da renda per capita de Portugal.

O processo de convergência continuou no período democrático recente, que se iniciou há 51 anos com a Revolução dos Cravos. Nas últimas duas décadas, Portugal voltou a se atrasar em relação aos países mais ricos. Palma enfatiza o efeito deletério das transferências da Comunidade Econômica Europeia, com efeitos ruins parecidos com o do ouro de Minas do século 18.

A parte final é a que me pareceu menos convincente. Provavelmente houve nas últimas duas décadas piora na alocação dos fatores, como tem ocorrido na América Latina, em geral.

Para uma resenha mais alentada, leia o Blog da Ibre. Seria oportuna uma edição brasileira do livro de Palma.

 

O Brasil visto pelo fundamentalismo evangélico, por André Castro

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Retrato do imaginário político-teológico das igrejas pentecostais. A explosão do gospel nos anos 90 como movimento cultural religioso. As Marchas de Jesus como “guerra de conquista”. E o papel do missionarismo que noticiam a salvação do país através da redenção

Por André Castro, Blog do Boitempo, 20/02/2025

São 5 da tarde. Faz sol e muito calor em Santo Antônio de Jesus, Bahia. Na avenida que corta a cidade, um grupo de quatro pessoas faz um culto. Um violão, um microfone e uma caixa de som são os utensílios que possibilitam o evento. Fazem o culto na pequena praça, não porque não possuem um lugar próprio para cultuar, mas porque acreditam que aquilo é uma ação missionária. As músicas que cantam, as pregações que fazem, as abordagens aos transeuntes têm o intuito de anunciar uma mensagem. Essa mensagem, dita como notícia, anuncia que a vida no mundo é morte, e a conversão ao evangelho e sua consequente participação na comunidade dos santos, a igreja, é a salvação.

Esses evangelistas da avenida chamam o lugar em que anunciam sua mensagem de “campo missionário”, ou seja, trata-se do lugar onde deve ser feita a evangelização, o anúncio da mensagem da fé. A mensagem precisa ser anunciada porque as pessoas precisam se converter. Agora, sendo parte da igreja, os crentes deixam de ser do mundo – campo missionário – e para fazer parte da comunidade dos que creem. Redimidos, ou seja, limpos das desgraças desta vida (pecado), já começam a viver a própria eternidade nas suas vidas. Converter-se é sair do lugar de alvo da ação missionária para ser agente da ação missionária. Em termos teológicos, sair do mundo é estar sendo redimido pelo sangue de Jesus. O papel de quem foi redimido é participar da ação missionária e fazer com que mais pessoas tenham acesso à verdade redentora.

Assim, eles participam da ação de Deus no mundo. E quanto mais anunciam a verdade do evangelho, mais se aproxima o retorno de Jesus, a redenção do universo – em termos teológicos, o fim dos tempos. Mesmo que se creia que o fim dos tempos esteja próximo, em geral não se acredita que ele já chegou. Há um debate intestino sobre a “forma correta” de entender o fim dos tempos. O papel da igreja não seria abandonar o mundo em sua desgraça, mas avançar na ação missionária para que a ação de Deus no mundo, se for possível, culmine com um avivamento. A ação missionária no campo evangélico se organiza pela ideia de que, se entregarem suas vidas para o Reino, é possível que passem por um avivamento.

O termo não é lá muito complicado: avivar, tornar mais vivo, mais forte e intenso. Acima de tudo, o avivamento é uma notícia. O avivamento só pode acontecer quando estamos totalmente despojados de nós mesmos e entregues aos desejos de Deus, a seus propósitos, que são o anúncio do evangelho para além das fronteiras. Um anúncio para o outro. A mente evangélica pressupõe a existência de um espaço, geográfico ou social, onde seja possível viver o tempo de Deus – o kairós –, de modo que a sua vontade e soberania seja adorada. Se o avivamento pressupõe a entrega interior, ele resulta em uma transformação da realidade social. O lugar em que se realiza a ação missionária – enquanto a vontade de Deus – é o lado de fora, o além das fronteiras.

Se os evangélicos chegaram com suas missões em terras brasileiras ainda no final do século XIX, até os anos 1990 não existia um campo evangélico no Brasil. Havia igrejas pentecostais das mais diferentes correntes, que foram surgindo organicamente, e igrejas históricas, como as Batistas, metodistas e Presbiterianas, para ser sucinto. Dois lados conflagrados e dispostos a uma briga maior contra o catolicismo. Quase todo evangélico do interior já ouviu alguma história de irmãos que foram expulsos de uma pequena cidade por padres que não aceitavam evangélicos no local. Verdade ou mentira, pouco importa, os evangélicos sempre se sentiram fora de casa no Brasil.

Peregrinos em terra estranha, sem espaço social. O desembarque da religião americana levou muito tempo para produzir suas próprias novidades. Afinal, toda a sorte de símbolos e ideias que estruturam a mentalidade evangélica estava intimamente ligada com a história dos Estados Unidos; era parte dela e, fora do seu espaço social de origem, essas ideias já não significavam as mesmas coisas por aqui. Enquanto as ideias americanas começavam a ganhar seus próprios significados no Brasil, a ideia de um avivamento se formava. Esta é a chave para compreender a experiência de fé no contexto brasileiro, patente na produção cultural:

“O que ocorreu nos anos 90 no Brasil foi uma explosão do gospel como um movimento cultural religioso, de um modo de ser evangélico, com efeitos na prática religiosa e no comportamento cotidiano. Passou-se a experimentar vivências religiosas combinadas em contextos socioculturais os mais variados, o que torna possível uma unanimidade evangélica não planejada sem precedentes na história do protestantismo no Brasil. Essas vivências são expressas por meio da música, do consumo e do entretenimento.”1

E essa mudança não foi pouca coisa. Se, nos anos 1930-40, os evangélicos condenavam o nacionalismo e a defesa da pátria enquanto idolatria, agora já passavam a ver saídas para essa mesma pátria, saídas que passam por um avivamento.2 Em 1994 começaram as marchas para Jesus, postulando publicamente a presença dessa comunidade imaginada, enquanto fiéis marchavam sob o comando do seu general. Para Raquel Sant’Ana, a Marcha para Jesus é um evento que se assemelha a uma guerra, especificamente a uma “guerra de conquista”. O “exército de Deus” se forma a partir da alteridade radical e da batalha espiritual. A batalha espiritual é essencial para construir a união do povo de Deus, ela se dá entre o mundo e a igreja. Os que são da igreja, que se converteram do caminho do mundo, precisam estar atentos e vigilantes para não serem destruídos pelas armas do diabo no mundo. Assim, unidos, lutam sua batalha. Essa união se expressa através de ações estratégicas em diversos espaços, como o evento de culto ao ar livre que contamos no início deste texto. É nesse momento de união que os evangélicos atuam em favor de Jesus.3 Aquela fronteira que organizava a ação missionária se refaz e não se refere mais à fronteira nacional, mas ao pertencimento ou não à comunidade evangélica, entre pentecostais e históricos.

Curioso mesmo é que isso tenha acontecido exatamente quando nossas mentes mais críticas começavam a perceber que a própria ideia de um Brasil do futuro era coisa do passado,4 e que as promessas de integração social que davam sentido a essa esperança-projeção estavam rodando em falso – afinal, como esses mesmos críticos já constataram, esse Brasil sempre foi uma projeção. Uma projeção que, no entanto, fez sentido por muito tempo e dava ao processo de modernização seu significado. Seja como for, o Brasil a ser colocado diante de Cristo não é outra coisa senão mais uma imagem de Brasil. Mas, agora, a experiência prática que essa imagem organiza não dá sentido à formação nacional, e sim ao seu ocaso. Lá do outro lado da ponte, na fronteira de tensão, é onde está a maior parte dos evangélicos: mulheres negras e trabalhadoras que sobrevivem em família com renda de até três salários mínimos, e frequentam pequenas igrejas de até 200 membros.5 São essas pessoas que sonham acordadas com o Brasil avivado.

Não é nenhum exagero notar que é exatamente essa esperança de um Brasil sob os domínios de Jesus – e, por isso, avivado – que estava na boca da ex-primeira-dama durante a campanha derrotada de 2022: somos um país com promessas que vão se cumprir e vamos fazer o que for necessário para que a vontade de Deus aconteça aqui.6 Mas não foi ela quem criou – e isso é o que importa – esse sentimento evangélico de um Brasil avivado. Esse avivamento do Brasil, que fundamenta a fala da ex-primeira-dama, tornou-se notícia na mesma década de 1990, quando os evangélicos começaram a perceber seu crescimento em massa e, assim, passaram a interpretar que algo estava acontecendo: Deus estava atuando, um avivamento. Ele está lá, dentro da experiência de fé daqueles que se chamam de irmãos e fazem com que a verdade em que acreditam se torne realidade, e a realidade se pareça muito com a verdade em que acreditam.

Essa realidade é a de um mundo falido e destruído, prestes ao colapso. Eles veem uma saída na destruição completa, é claro, mas, ao menos, veem algo. Enquanto nossos olhos continuam voltados para o próximo governo ou orçamento estatal (engessado pelo teto de gastos), lá, no fundão das grandes cidades e nos rincões do interior, proclama-se a redenção nacional, o seu avivamento. Ele começa no coração de cada um: “Quando nos despojarmos e colocarmos tudo o que temos em Deus, aí sim, pegaremos fogo”. É tudo isso e um pouco mais que faz pesar o sentimento evangélico de um Brasil avivado, que organiza um sentido de esperança para esses brasileiros que colocam tudo o que têm e são nessa certeza de que algo há de acontecer. O fogo há de queimar, como queima em seus corações, no mundo.

Sejam bem-vindos ao Brasil avivado.

Notas

  1. CUNHA, Magali do Nascimento. Vinho novo em odres velhos. Um olhar comunicacional sobre a explosão gospel no cenário religioso evangélico no Brasil. Tese (Doutorado em Comunicação). São Paulo: Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004, p. 144.
  2. Estamos nos referindo às publicações do Mensageiro da Paz, jornal oficial da Assembleia de Deus, que começou a ser publicado na década de 1930 e permanece ativo até os dias de hoje. É possível acessar os textos mais antigos por meio de uma biblioteca disponibilizada pela Rede Latino-americana de Estudos Pentecostais (RELEP). Para uma análise do Mensageiro da Paz no contexto de sua transição do ascetismo para a ética política, conferir: XAVIER, Liniker Henrique; CORREA, Marina Aparecida Oliveira dos Santos. Ditadura, democracia e fé no país da moral e bons costumes: as ADs e o Mensageiro da Paz. São Paulo: Recriar, 2021.
  3. SANT’ANA, Raquel. A nação cujo Deus é o senhor: guerra, política e religião a partir das marchas para Jesus. Rio de Janeiro: Editora Telha, 2024.
  4. Tomemos como exemplo a prosa de Paulo Arantes: em Zero à esquerda (2004) e em Extinção (Boitempo, 2007), está posto o fim de um programa, de uma expectativa, que vai virar interpretação sócio-histórica em O novo tempo do mundo (Boitempo, 2014).
  5. BALLHOUSSIER, Anna Virginia. Mulheres negras são maioria nas igrejas evangélicas paulistanas, aponta pesquisa Datafolha. Folha de S. Paulo, 20 jul. 2024. Edição Impressa. Acesso em: 13 jan. 2025.
  6. CASTRO, André. A luta que há nos deuses: da Teologia da Libertação à extrema direita evangélica. Rio de Janeiro: Editora Machado, 2024. Em especial, o ensaio “É o rei que governa essa nação”, no qual faço uma interpretação dos discursos da Michelle Bolsonaro.