Incertezas crescentes

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A sociedade mundial vem passando por grandes alterações econômicas e produtivas, com impactos generalizados sobre todas as regiões, alterando comportamentos arraigados, alterando a agenda das comunidades, com o incremento de desenvolvimentos científico e tecnológico que transformaram os  modelos de negócios, reconfigurando o mercado de trabalho, aumentando as exigências para todos os trabalhadores, movimentando as estruturas políticas e democráticas dos Estados Nacionais e gerando novos desafios para toda a comunidade global.

Diante destes desafios contemporâneos que agitam a sociedade internacional, percebemos ventos de mais protecionismos dentro das comunidades locais, nações que pregavam enfaticamente o livre comércio, que eram árduos defensores de mais concorrência como forma de alavancar o crescimento econômico e estimulavam a diminuição do Estado na economia estão revendo princípios e valores que eram vistos como intocáveis.

Neste cenário, percebemos o crescimento de políticas protecionistas para proteger suas estruturas econômicas e produtivas, com fortes investimentos subsidiados pelos governos nacionais, além do incremento de tarifas de importação para reduzir a entrada de produtos estrangeiros, desta forma, garantem a sobrevida de setores nacionais que perderam espaço no comércio global e foram substituídos por concorrentes estrangeiros mais eficientes, mas produtivos e detentores de tecnologias mais modernas e mais sofisticadas.

Com a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, percebemos o renascimento de um discurso fortemente protecionista e messiânico, centrado nos interesses norte-americanos, com forte teor protecionista e imediatista, com o incremento de políticas anti-imigração e de deportação em massa, além da intensificação do conflito comercial entre EUA e China, reversão de políticas adotados no governo atual que estimulavam os conflitos militares em curso na sociedade mundial e o afastamento dos tratados internacionais, principalmente os vinculados ao Meio Ambiente.

Internamente, percebemos que o novo governo Donald Trump deve adotar políticas protecionistas para fortalecer estados e regiões inteiras que foram fortemente desindustrializadas nos momentos de ascensão da chamada globalização. Estados que sempre se caracterizaram por forte desenvolvimento industrial, pela pujança econômica, por uma classe média consolidada e que perderam a capacidade de competição global, levando uma massa gigantesca de empresas nacionais a fecharem suas unidades locais e abrirem filiais em outras regiões, notadamente na Ásia, onde a mão de obra era mais barata, mais abundante, com os custos de produção imensamente menores.

O protecionismo estadunidense pode gerar graves constrangimentos internos e externos, deportar imigrantes, sobretaxar produtos estrangeiros, adotar políticas agressivas contra os interesses de empresas chinesas e pressionar empresas transnacionais para incrementar novos investimentos internos, tais políticas podem gerar graves constrangimentos inflacionários, levando as Autoridades Monetários ao incremento das taxas de juros e levando nações a desequilíbrios nas contas externas.

Vivemos momentos de grandes incertezas e instabilidades. Depois dos problemas ambientais, dos desequilíbrios energéticos, das guerras fratricidas que crescem em escalas ascendentes, dos desajustes do mercado de trabalho, das desesperanças que crescem em todas as regiões do globo, percebemos que mais desequilíbrios e intolerâncias crescem todos os momentos na comunidade global. A eleição nos Estados Unidos nos traz uma grande lição, a melhora econômica e os bons indicadores da economia são insuficientes para garantir a manutenção do poder…abram os olhos!

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Qual fantasia subjaz à reeleição de Trump? por Vera Iaconelli

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Os americanos votaram e o fizeram sabendo qual produto estavam comprando

Vera Iaconelli, Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “Manifesto Antimaternalista” e “Felicidade Ordinária”. É doutora em psicologia pela USP

Folha de São Paulo – 12/11/2024

Embora ninguém pudesse afirmar de antemão que a gata Harris estava morta dentro da caixa, a notícia de sua derrota foi recebida com surpreendente conformismo. A que se deve tal reação, ou a falta dela? A reeleição de Trump implicou uma escolha que não foi feita às cegas, que não se justifica apenas pelas fake news e na qual a narrativa de outsider não existe mais. Os americanos votaram e o fizeram sabendo qual produto estavam comprando. Como bem resumiu Oliver Stuenkel, haveria quatro “is” envolvidos nessa escolha: inflação, imigração, instabilidade global e insegurança masculina. Além dos bilhões de dólares investidos na campanha, claro.

Mais do que se debruçar sobre a infindável —e imprescindível— investigação das razões pelas quais essa figura execrável foi reeleita para governar o país mais poderoso da atualidade, há que se pensar também sobre a desrazão, tema crucial da psicanálise. Embora hoje tenhamos que conviver com o ultraje de ver associado ao nome da psicanálise as palavras “positiva”, “evangélica”, “de direita”, “certificada” ou ainda “certificada pelo MEC”, nosso trabalho é de outra ordem.

O analista convive com uma rotina nada glamourosa de escutar a repetição da queixa do paciente, por vezes, ao longo de anos. Alguns sintomas podem até ceder, mas a mudança da posição do sujeito diante da vida, que o leva a um sofrimento insistente, requer um trabalho mais radical. Não raro, o paciente troca de trabalho, sexo, marido/esposa ou casa sem que isso o faça sair da posição que o mantém numa existência miserável.

O prazer inconfesso que se obtém com a repetição de certos padrões de comportamento está recalcado sob a queixa. Daí a importância de ajudá-lo a reconhecer sua parte naquilo do qual se queixa. O analista não tem a pretensão de modificar a escolha do paciente, mas de fazê-lo assumir sobre que bases se dá essa escolha. A atitude aqui é ética, de responsabilização, e não moral, de dever a ser cumprido.

A escolha por Trump —o exterminador do futuro das mulheres, dos negros, dos pobres e, por fim, do próprio planeta— se revela como renovação na aposta na objetificação do outro, a quem, a depender da posição relativa na escala social, poderemos continuar explorando. Trata-se, enfim, da renovação da aposta capitalista em sua versão turbinada, neoliberal. Algo como: sofro, mas não me privo de fazer o outro sofrer, alucinando a possibilidade de um dia estar na posição mais alta da hierarquia social. Aquela na qual roubar, abusar, matar não seriam atos passíveis de responsabilização. Lembremos da pilha de condenações ligadas ao candidato em questão.

Embora a guilhotina tenha feito seu papel, nunca superamos inteiramente o sonho monarquista, no qual o presidente-rei paira incólume sobre os pobres mortais. Como acabar com esse jogo perverso se não conseguimos abrir mão da esperança de um dia ser nossa vez de brincar de todo-poderoso?

Psicanalistas se orientam pelo que repete incessantemente na clínica porque é a partir da identificação da repetição que se pode localizar a fantasia inconsciente que nos move. No caso de Trump, a fantasia é de delírio de grandeza e de gozar impunemente. Temos nosso exemplar no Brasil, que não deveria sequer voltar às capas desse jornal.

Direita vai bem, Bolsonaro vai mal e Trump não pode salvá-lo, por Christian Lynch

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Nova configuração de poder emerge no Brasil, com controle do centrão e conservadorismo mais pragmático que radical

Christian Lynch, Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), editor da revista Insight Inteligência, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa

Folha de São Paulo – 11/11/2024

[RESUMO] O domínio do centrão nas eleições deste ano, sustenta o autor, aponta que o sistema político brasileiro, depois de um período de forte instabilidade e polarização extrema, passa por um processo de reequilíbrio, marcado por um presidencialismo de coalizão fraco e níveis menores de radicalidade ideológica. Partidos de centro-direita têm interesse em manter a inelegibilidade de Bolsonaro, e a esquerda, sem novos líderes, depende cada vez mais de Lula.

Os resultados das eleições municipais deste ano confirmam que o sistema político brasileiro passa por um processo de reequilíbrio em torno de novas bases ideológicas e de governabilidade. Bases distintas daquelas que definiram o período de estabilização do regime democrático entre os anos 1990 e 2010, assentadas sobre um eixo ideológico de centro-esquerda e do presidencialismo de coalizão forte ou imperial como modelo de governabilidade, que levava a reboque o chamado centrão.

Há cerca de dez anos, o eixo ideológico começou a se deslocar para a centro-direita, sustentado por partidos de centro-direita e direita, que deixaram a periferia do sistema para se tornar seu núcleo de estabilidade e controle. O modelo de governabilidade, perdido ou desarranjado durante aqueles anos de transição, parece agora se estabilizar na forma de um presidencialismo de coalizão fraco ou, conforme seus críticos, um “parlamentarismo bastardo”.

Essas mudanças decorrem de uma crise de legitimidade do sistema representativo, que estalou nas jornadas de 2013, se aprofundou com o impeachment de Dilma Rousseff (PT) em 2015 e culminou, em 2018, na eleição de Jair Bolsonaro (à época no PSL). Crise gerada pela emergência de uma nova direita que não se percebia no sistema político da República de 1988 e o hostilizava.

Embora Bolsonaro representasse a nova direita radical, que canalizava o ressentimento popular contra o sistema e o suposto establishment, o centrão renovado pela mesma eleição se adaptou à nova conjuntura, assumindo uma postura conservadora pragmática e reforçando seu papel como pilar de estabilidade. Passou a agir para limitar tanto as prerrogativas da Presidência quanto do STF.

Tudo aponta para uma tendência em direção a um novo equilíbrio sistêmico e ao afrouxamento da polarização para níveis menores de radicalidade.

A Constituição de 1988 foi concebida em um contexto progressista, em que havia um consenso de que o país deveria se afastar das práticas autoritárias da ditadura militar e se comprometer com um projeto de inclusão social e liberdades públicas. Esse espírito se refletiu nas primeiras décadas de democracia, em que o eixo ideológico predominante esteve à esquerda, sustentado por uma Constituição com fortes valores social-democratas.

Entre os anos 1990 e 2010, o sistema político se estabilizou em torno do chamado presidencialismo de coalizão, um arranjo em que o presidente, mesmo minoritário no Congresso, usava seu vasto poder sobre o Orçamento e a máquina governamental para construir maiorias legislativas e garantir a governabilidade.

Esse modelo se consolidou a partir do Plano Real, que gerou estabilidade econômica e legitimidade para Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Tanto ele quanto Lula e Dilma Rousseff, seus sucessores, governaram formando coalizões com partidos mais conservadores que se alinhavam pragmaticamente ao governo em troca de cargos e influência.

Era esse um presidencialismo forte ou imperial, marcado pelo poder de agenda do chefe de Estado na definição de políticas progressistas, voltadas para promover um ambiente de maior liberdade política, civil e econômica, mas também maior igualdade social, racial e de gênero.

No entanto, a partir dos anos 2010, o consenso progressista começou a dar sinais de desgaste. O contexto político e social havia mudado: a sociedade brasileira, transformada por décadas de políticas sociais e de inclusão, se tornou mais complexa e polarizada. Em paralelo, denúncias de corrupção e o colapso do modelo de presidencialismo alimentaram uma crise de legitimidade.

As manifestações de 2013 expressaram o descontentamento generalizado com a classe política e marcaram o início de um período de grande instabilidade. Bancado pela PGR (Procuradoria-Geral da República) e pelo STF, a “revolução judiciarista” pautou a Operação Lava Jato, derrubou Dilma Rousseff, quase derrubou Michel Temer (MDB), além de prender e condenar dezenas de figuras do establishment a título de purgá-lo da corrupção.

Esse processo abriu espaço para que o centrão reagisse em busca de sobrevivência. Para alcançar esse fim, precisaria deixar de ser apenas um grupo de apoio pragmático e passasse a atuar de forma mais autônoma e ativa, buscando consolidar sua hegemonia.

Nesse contexto, o centrão se adaptou para sobreviver e fortalecer sua influência. Até então, seus partidos haviam operado pragmaticamente, compondo com presidentes de diversos espectros políticos. Entretanto, após o impeachment de Dilma e com a ascensão de figuras mais conservadoras, assumiu sua posição conservadora sem perder o pragmatismo, perseguindo primazia sobre os demais Poderes.

Na impossibilidade de aprovar o semipresidencialismo, esse processo culminou em uma nova forma de presidencialismo de coalizão, agora fraco, menos centralizado na Presidência e mais ancorado no Legislativo. Uma espécie de parlamentarismo bastardo.

Por meio de estratégias como o uso de emendas parlamentares (como as emendas Pix e o orçamento secreto), o centrão passou a controlar a distribuição de recursos e fortalecer suas bases locais, garantindo seu domínio sobre a política nacional, o que contribuiu para a vitória de seus candidatos na última eleição municipal e fortaleceu sua influência. Essa apropriação do Orçamento e da máquina pública se tornou um mecanismo de autossustentação, tornando tais partidos cada vez mais independentes do presidente, seja ele de direita ou de esquerda.

O resultado foi um conservadorismo inercial que garante estabilidade ao sistema político ao custo de fazê-lo rodar muito mais lentamente.

As ideologias passaram a ocupar um lugar mais central na organização e na definição das identidades políticas do centrão. Seu conservadorismo sempre existiu, mas estava adormecido pelo consenso progressista. Findo este, saiu da incubadora.

Mas se trata de um conservadorismo moderado, mais pragmático que doutrinário, voltado principalmente para a proteção dos mecanismos de sua autorreprodução com pouca interferência do governo e do Judiciário. Daí a defesa daquilo que eufemisticamente chamam de prerrogativas do Congresso.

A crise de legitimidade vivida pela democracia brasileira e, em paralelo, o avanço da nova direita na década passada deram força política, em estilo abertamente populista, a ideologias radicais que antes estavam à margem, como o reacionarismo e o libertarianismo. A social-democracia identificada com o PT entrou em crise.

No entanto, o pacto pragmático do liberalismo democrático centrista com o conservadorismo tradicional da direita moderada tem garantido que o sistema permaneça estável, coibindo o avanço de pautas progressistas, ora decadentes, mas, também e principalmente, o avanço do populismo autoritário.

Essa relação entre ideologia e pragmatismo se revela na ambiguidade de líderes da direita do centrão, como Ciro Nogueira (PP) e Valdemar Costa Neto (PL). Querem o estoque eleitoral do populismo radical, mas submetendo-o à disciplina partidária tradicional e, assim, podando seus efeitos antissistêmicos.

Mesma ambiguidade visível em Tarsício de Freitas (Republicanos), que representa no governo de São Paulo o impossível “bolsonarismo moderado”, com que busca atrair eleitores de centro-direita acenando periodicamente para o radicalismo. Na centro-direita, Gilberto Kassab (PSD) segura Tarcísio com a mão direita e Lula com a esquerda, estabelecendo as alianças amplas que elegeram o maior número de prefeitos neste ano.

A direita brasileira está consolidada, e seu sucesso cria novos problemas. O maior reside na oposição entre moderados ou sistêmicos, identificados, de um lado, com Kassab e Eduardo Paes (PSD), e radicais antissistêmicos, como Bolsonaro e Pablo Marçal (PRTB).

A liderança de Bolsonaro, inelegível e sem expectativa de poder, está francamente decadente. Egoísta e inábil, o ex-presidente confia sempre e unicamente na sua camarilha de bajuladores e pretende submeter toda a direita ao seu objetivo particular de fugir da cadeia por meio de uma anistia que reverta sua inelegibilidade ou lhe permita lançar à Presidência um candidato subserviente.

Por essas e outras razões, com toda a sua ambiguidade, a própria direita moderada centrônica o percebe como um estorvo e não vê a hora de se livrar dele definitivamente. Prefere gente como Tarcísio e Ronaldo Caiado (União Brasil), este em rota de colisão com Bolsonaro.

A decadência de Bolsonaro se dá também no campo da direita radical. Aparentemente, a apologia da tortura, da ditadura e do golpe militar saíram de moda. Nesse contexto, a figura de Marçal emergiu como um populista neoliberal, camaleão que busca capitalizar o sentimento anti-establishment de gerações mais novas, mais preocupadas com enriquecimento rápido e que veem a religião como terapêutica para problemas pessoais e familiares.

Em termos eleitorais, Bolsonaro também se engajou pessoalmente em campanhas municipais, não só contra a esquerda, mas contra gente da própria direita, e saiu derrotado em quase todas. Muitas igrejas evangélicas também já desinvestem do radicalismo, pregando a despartidarização da religião ou mudando de lado.

Em outras palavras: a direita vai bem, Bolsonaro vai mal. A direita populista, a despeito de sua força eleitoral e histrionismo, continua longe de ameaçar os centrônicos. A eles interessa manter a inelegibilidade de Bolsonaro, fingindo ajudá-lo a escapar quando, na verdade, mais o aproximam do abismo. Mas também lhes interessa a inelegibilidade de Marçal.

Ao mesmo tempo, é improvável que a própria Justiça Eleitoral declare a inelegibilidade de Tarcísio pela declaração que fez a respeito de Guilherme Boulos (PSOL) no dia do segundo turno. Tarcísio pode dar suas “bolsonaradas” à vontade: o sistema o percebe como um dos seus.

Já a esquerda, que historicamente liderou o processo de redemocratização, enfrenta uma situação complexa. Com seu declínio e a falta de renovação de suas lideranças, o PT perdeu o protagonismo e depende cada vez mais da figura de Lula para se manter relevante.

Se Bolsonaro não consegue ser maior que a direita, Lula consegue ser maior que a esquerda. Ele se reinventou como piloto de uma frente democrática ou ampla e se comportou assim nas eleições, se afastando o tanto quanto possível da imagem de partidário.

Em outras palavras: a esquerda vai mal, mas Lula vai relativamente bem. Ao mesmo tempo que a esquerda se torna cada vez mais “lulodependente”, o presidente se vê obrigado a se mover cada vez mais para o centro para preservar e aumentar seu arco de alianças. Enquanto o governo vai se tornando cada vez menos de esquerda, a fissura entre os socialistas se aprofunda. Alguns acham que falta pragmatismo, outros acham ser preciso recuperar as bandeiras históricas do socialismo.

O retorno de Donald Trump à Presidência dos EUA, um reacionário golpista, condenado criminalmente e movido pelo desejo de vingança e de escapar da cadeia, põe a democracia americana em uma posição frágil. Sua influência direta sobre o Brasil, contudo, encontra limites importantes.

Primeiro, o Brasil não enfrenta uma crise de decadência geopolítica ou de imigração para catalisar o tipo de ressentimento e identidade nacionalista que Trump mobiliza.

Segundo, o sistema político brasileiro, embora tenha falhas, possui mecanismos institucionais que oferecem resistência a investidas autoritárias, como a independência do STF e um sistema constitucional mais recente e adaptado às necessidades de uma sociedade democrática.

O sistema bipartidário, que permite que todos os setores conservadores se aglutinem em torno de um radical como Trump, tampouco existe no Brasil. Bolsonaro não consegue ascendência nem sequer sobre Valdemar Costa Neto. Além disso, o centrão não possui interesse em uma ruptura autoritária que abale o equilíbrio de poder do qual depende para manter influência e controle sobre o governo.

Assim, apesar de uma possível pressão da internacional reacionária liderada por Trump e das tentativas de importar mais uma vez sua retórica e seu messianismo, nada indica que ele abalará o atual modelo de governabilidade de tendência conservadora, mas pragmática do Brasil. Bolsonaro, que tentou sempre emular Trump, está cada vez mais isolado.

Da mesma forma, nenhuma das alternativas conservadoras à Presidência se mostra disposta a romper o presidencialismo de coalizão fraco. Aparentemente, querem todas ser apenas um Michel Temer com votos. Nem a Justiça Eleitoral, nem o governo, nem o STF parecem dispostos a anistiar Bolsonaro para que ele volte a se candidatar.

Nesse quadro, o que Trump poderá efetivamente fazer de útil para Bolsonaro? Bolsonaro quer, claro, explorar em benefício de sua anistia a tese delirante de que Trump mandará fuzileiros navais prenderem Alexandre de Moraes.

Trump estará ocupado redesenhando as instituições e a sociedade norte-americana à sua feição. Está interessado em reduzir a presença militar dos EUA no mundo, não em aumentá-la. Se precisar de um bajulador sul-americano, já tem à mão um Milei para posar ao seu lado. Mais provável são tuítes destemperados apoiados por Elon Musk ou a concessão de asilo diplomático na calada da noite.

As eleições municipais de 2024, ao consolidar o controle do centrão e do conservadorismo pragmático sobre a política local, indicam que o Brasil está caminhando para uma nova configuração de poder. Esse processo de normalização do sistema, que agora gira em torno da centro-direita, sugere que a polarização política extrema dos últimos anos pode estar cedendo lugar para uma moderação pragmática.

No entanto, essa normalização enfrenta desafios, especialmente no que diz respeito à convivência com o STF, visto por muitos como o último bastião de um sistema democrático e liberal. Há arestas entre o tribunal e o centrão, decorrentes da tentativa de preservar o avanço feito pelo Congresso sobre o Orçamento.

Sabe-se que, no quadro de fraqueza imposta ao governo pelo “parlamentarismo bastardo”, o governo também conta com a maioria do STF como parceiro para restabelecer alguma paridade de armas. É o “judiciarismo de coalizão”, identificado principalmente com o ministro Flávio Dino.

Enfim, tudo indica uma tendência ao reequilíbrio sistêmico em torno do centro-direita e um afrouxamento da radicalização ideológica.

É cedo para discutir as eleições de 2026. Não se sabe se Lula passará o bastão a Fernando Haddad (PT) ou se será candidato à reeleição, opção que parece cada vez mais provável. Nem se sabe para que lado penderia a centro-direita de Kassab, apoiando um candidato como Tarcísio, mais seguro à reeleição em São Paulo, ou Caiado. A reversão da inelegibilidade de Bolsonaro é remota, e Marçal deve ser declarado inelegível pela falsidade assacada contra Boulos durante a campanha em São Paulo.

Do ponto de vista sistêmico, porém, a depender do resultado das eleições de 2026, saberemos se o sistema político absorveu definitivamente, como parece, as tensões subversivas da direita radical ou se sofrerá o ataque de um populista apoiado por cerca de um quarto do eleitorado e, talvez, pela internacional reacionária.

 

Efeito dominó do desmatamento na Amazônia, por Márcia Castro

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Danos acumulados não são revertidos apenas com a redução das taxas anuais

Márcia Castro, Professora de Demografia e Chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard.

Folha de São Paulo – 08/11/2024

Na última quarta-feira (6), o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inep) divulgou dados do desmatamento. De agosto de 2023 a julho de 2024, o desmatamento na amazônia caiu 30,6% comparado ao período anterior.

Um dia depois, dados do Observatório de Clima mostram que o Brasil reduziu em 12% a emissão de gases de efeito estufa em 2023. Na amazônia, as emissões devido ao desmatamento tiveram uma queda de 37%.

Os dois indicadores são positivos e estão relacionados. Mas muito ainda precisa ser feito.

Os efeitos acumulados em função do histórico de desmatamento não são revertidos apenas com a redução das taxas anuais. Além da contínua redução das perdas ambientais, são necessários programas efetivos, de larga escala e sustentáveis de recuperação ambiental.

A equação é simples: menos árvores resultam em menos umidade do ar, o que reduz a potência dos rios voadores, resultando em menos chuvas e, portanto, redução do nível de água dos rios. Esse efeito dominó acelera o processo de mudanças climáticas.

Além disso, afeta a segurança energética do país, já que a energia hidrelétrica, em 2023, responde por 48,6% da capacidade instalada e 60,2% da geração total.

Um estudo da PUC-Rio mostra que 17 das 20 maiores hidrelétricas do Brasil estão na rota dos rios voadores e, portanto, são afetadas pelo desmatamento na amazônia. Destas, apenas oito estão localizadas na amazônia.

Fica claro que os efeitos do desmatamento não respeitam fronteiras. O estudo mostra que o desmatamento na amazônia entre 2002 e 2022 resultou em uma perda de geração de cerca de 3% nas hidrelétricas localizadas na bacia do Paraná.

A redução da geração de energia hidrelétrica em momentos de seca demanda o uso de usinas térmicas que, além de terem um custo maior, são emissoras de gases de efeito estufa, acelerando as mudanças climáticas.

Cabe relembrar que os possíveis efeitos das mudanças ambientais e climáticas na futura capacidade de geração de energia hidrelétrica no Brasil já haviam sido ressaltados no Projeto Brasil 2024 que, infelizmente, foi ignorado.

Os efeitos do desmatamento também são sentidos na saúde. Um estudo recente mostra que, entre 2003 e 2022, a cada aumento de 1% na área mensal desmatada houve, em média, um aumento de 6,3% nos casos de malária na amazônia no mês seguinte ao desmatamento. Esse efeito varia por estado e chega a 10,6% de aumento da malária no Amazonas.

Esses e tantos outros efeitos do desmatamento ressaltam a necessidade da recuperação ambiental.

Imagine que a amazônia é um órgão do corpo humano. Os rios são as artérias. As árvores são as veias. Não é preciso remover todas as árvores ou contaminar todos os rios com o mercúrio usado no garimpo para que amazônia deixe de existir.

A falência do órgão acontece quando o estrago chega a um ponto que compromete o seu funcionamento. Essa é a ideia do ponto de não retorno. Evitá-lo demanda redução do desmatamento e recuperação de áreas degradadas.

Estamos a um ano da COP 30 em Belém. O Brasil pode, deve e precisa assumir o protagonismo na agenda ambiental. Precisa fazê-lo pelo Brasil e pela humanidade. Afinal, após a eleição de Trump, esse protagonismo é de extrema importância.

 

Alunos de Gestão Empresarial da Fatec Catanduva – 2024

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Trump: promessas e perspectivas

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Nesta semana Donald Trump ganhou a eleição para a Presidência dos Estados Unidos, neste percebemos que as nações estão todos alvoroçadas, afinal a presença de Trump na presidência dos EUA gera incertezas e instabilidades de todas as regiões.

Governos nos mais diferentes matizes ideológicos estão preocupados, mas destacamos as nações que mais geram preocupações da sociedade norte-americana, como a China, a Rússia, o Irã, o México, a Coréia do Norte e o México, países que, de uma forma ou outra, ameaçam a liderança estadunidense.

Neste cenário, onde a sociedade estadunidense perde a sua hegemonia global e percebe ainda, o crescimento de novos atores econômicos, políticos e sociais, as reações do governo Donald Trump podem alavancar constrangimentos para a sociedade mundial, como a adoção de fortes políticas protecionistas, limitação da atuação de agências multilaterais, tais como a ONU, a OMC, a OMS, dentre outras, que podem culminar no refluxo da globalização.

Me chamou a atenção na campanha eleitoral, as promessas, que são sempre muito interessantes, muitas delas bastante exóticas e irreais, onde o ganhador ameaçou aumentar a proteção tarifária da economia norte-americana, taxando as importações que geram constrangimentos para a economia e impacta fortemente os trabalhadores, principalmente das regiões industrializadas, essas regiões que antes eram fortes exportadores de produtos industrializados, perderam espaço no comércio global e, suas populações estão perdendo renda, empobrecendo e aumentando a degradação social e levando grande parte da população para votarem em candidatos de extrema-direita.

As tarifas alfandegárias podem reduzir as importações internas e acomodar a produção interna, mas sabemos que as outras nações não vão aceitar passivamente, que podem gerar um conflito comercial, cujos efeitos são assustadores, preocupantes e podem aumentar os confrontos entre as nações.

Outro ponto que devemos destacar neste ambiente, é que, a redução da importação global dos Estados Unidos, como forma de proteger a indústria americana, vai impactar fortemente sobre o consumo interno, com elevação dos preços dos produtos e gerando um incremento da inflação, cujo impacto imediato é a elevação das taxas de juros que tendem a reduzir os investimentos produtivos, diminuindo o crescimento dos empregos e a queda da renda agregada.

O mundo globalizado é muito mais complexo do que as pessoas imaginam, muitas promessas são impossíveis de serem implementadas, desta forma, muitos políticos eleitos perdem a legitimidade, com inúmeras promessas na campanha que são difíceis de serem colocadas em práticas, gerando o descrédito, a desesperança e a repulsa a todos os candidatos, para todos os partidos políticos e para todo o sistema democrático, gerando um verdadeiro retrocesso.

A ascensão de Donald Trump pode motivar uma nova agenda internacional, menos multilateralismo, crescimento da extrema direita, o incremento da turbulência e com a imigração perdendo espaço, já que a promessa de endurecer a entrada de pessoas de outras nações nos Estados Unidos podem contribuir para que o mundo fique, cada vez mais, centrado nas incertezas, nas instabilidades e nas crescentes volatilidades.

 

 

O economista de Donald Trump, por Alessandro Octaviani

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Alessandro Octaviani – A Terra é Redonda – 07/11/2024

É um erro tomar Peter Navarro, um dos raros economistas a quem Trump dá alguma credibilidade, como “excêntrico”, “retrato de um acidente”, ou “desvio, que em breve será arrumado”

Peter Navarro é atualmente diretor do Office of Trade and Manufacturing Policy, do Governo Federal dos EUA, e um dos raros economistas a quem Donald Trump dá alguma credibilidade. [1]

Durante a crise do Covid-19, sua atuação foi ainda mais marcante. Como noticiado, em 2 de abril de 2020, “Donald Trump recorreu (…) à Lei de Produção de Defesa para ajudar as empresas que fabricam respiradores (…). (…) General Electric, Hill-Rom Holdings Inc, Medtronic Plc, Resmed Inc, Royal Philips NV e Vyaire Medical Inc”. [2]

Esse reforço para as empresas nacionais norte-americanas ficou a cargo de Peter Navarro, que se incumbe da missão como um verdadeiro “Falcão Econômico”: “Sobre sua ‘nova autoridade sobre empresas e suas redes mundiais de suprimentos’, ele conta como a usou com a 3M, que tem fábricas na China: ‘A empresa não estava disposta a informar sobre a distribuição das máscaras que produz ao redor do mundo e a fornecê-las ao povo americano. Ela quer agir como uma nação soberana (…). E nesta crise existe apenas um país e apenas um presidente”. [3]

A imprensa noticiou recentemente o movimento jurídico de Donald Trump rumo à tentativa de monopolizar, para os EUA, a exploração mineral na Lua e em outros corpos celestes: “Em meio à pandemia do coronavírus, que já contaminou mais de 360 mil estadunidenses, o presidente dos EUA, Donald Trump, envolve-se em mais uma polêmica após publicar um decreto que dá ao país o direito à exploração dos recursos da Lua, contrariando o acordo feito sobre o satélite natural do planeta Terra. ‘Os americanos devem ter o direito de se envolver em exploração comercial, recuperação e uso de recursos no espaço sideral, de acordo com a lei aplicável. O espaço exterior é um domínio legal e fisicamente único da atividade humana, e os Estados Unidos não o veem como um bem comum global. (…)’, diz o decreto assinado por Trump, que foi rechaçado por Moscou”.[4]

Essa proposta também tem o dedo de Peter Navarro, como se lê em Death by China (escrito em parceria com Greg Autry, para ser uma espécie de programa de ação para o Estado capitalista norte-americano ante o perigo chinês e a ameaça à sua hegemonia global): dentre as proposições concretas para “confrontar o desafio espacial chinês” consta “reivindicar a Lua antes que a China o faça”. [5]

Para Peter Navarro, a China é uma ameaça aos EUA, em razão de sua ascensão industrial capitaneada pelo Estado chinês e suas políticas de cunho mercantilista, protecionista, imperialista, planejadas e agressivas.

Dentre os instrumentos chineses, estariam (i) a formação de uma rede complexa de subsídios ilegais à exportação; (ii) moeda astutamente manipulada e brutalmente desvalorizada; (iii) flagrante falsificação, pirataria e subtração descarada da propriedade intelectual norte-americana; (iv) envolvimento em degradação ambiental significativa; (v) padrões de saúde e segurança do trabalho excessivamente frouxos; (vi) tarifas e quotas de importação ilegais; (vii) fixação de preços e uso de demais práticas predatórias com vistas a expulsar rivais estrangeiros dos principais mercados de recursos para, então, cobrar excessivamente dos consumidores por meio de monopólio de preços; e (viii) impedimento de todos os competidores internacionais de estabelecerem seus negócios em solo chinês. [6]

As cinco partes de Death by China são nomeadas em termos militaristas, “preparando a guerra” (que viria de fato a se instalar alguns anos depois de sua publicação, quando suas formulações revelaram-se adequadas às concepções de Donald Trump): “‘Buyer beware’ on steroids”, “Weapons of job destruction”, “We will bury you, Chinese style”, “A hitchhiker’s guide to the Chinese gulag” e “A survival guide and call to action”.

São elencadas medidas estratégicas a serem modeladas, em caráter amplo e urgente, várias das quais atualmente em pleno curso: (i) evitar os produtos chineses; [7] (ii) desmantelar as armas de destruição de empregos da China; [8] (iii) fixar limites rígidos para a espionagem chinesa e guerra cibernética; [9] (iv) confrontar e combater a crescente ameaça militar chinesa; [10] (v) combater o colonialismo global chinês; [11] (vi) frear as mortes na China pela China; [12] (vii) enfrentar o desafio espacial chinês. [13]

É um erro tomar Peter Navarro ou Donald Trump como “excêntricos”, “retratos de um acidente”, ou “desvios, que em breve serão arrumados”. Eles representam a expressão arraigada do Estado capitalista norte-americano e sua disciplina jurídica, vertidos, sempre, à defesa radical de seus interesses e da manutenção de suas posições de poder.

Não se trata de “excepcionalismo”, mas de “estrutura profunda”, que ecoa a célebre modelagem da “Super 301” – instrumento jurídico dos EUA para punir unilateralmente países que os afetem comercialmente – e a atuação do deputado Richard Gephardt, que propunha a incidência do diploma automaticamente “contra países que tivessem saldos superavitários excessivos em suas balanças comerciais com os EUA. Segundo o projeto, seriam feitas duas exceções: países com dificuldades de balanços de pagamentos e casos em que a ação 301 pudesse significar dano aos interesses econômicos dos EUA. (…) Derrubada por veto do Presidente Reagan, sob a justificativa de que era ‘por demais draconiana para ser efetiva’, a chamada ‘emenda Gephardt’ deu lugar à Super 301, como seu dispositivo substituto”. [14] Substituiu-se a obrigação automática de sancionar outros países pela possibilidade discricionária de atacá-los…

*Alessandro Octaviani é professor de direito econômico da Faculdade de Direito da USP.

Notas

[1] Cf., entre outros, ROGIN, Josh. “How Peter Navarro got his groove back”. The Washington Post. Publicado em 27/02/2018.

[2] Publicado em 2/04/2020.

[3] Publicado em 8/4/2020.

[4] Publicado em 7/4/2020.

[5] NAVARRO, Peter; AUTRY, Greg. Death by China: Cronfronting the Dragon – A Global Call to Action. New Jersey: Pearson FT Press, 2011, p. 257-259.

[6] Ibidem, p. 1-11.

[7] Ibidem, p. 234-239. Algumas das proposições específicas: não comprar produtos “made in China”; leis mais duras contra a China e produtos chineses que prejudiquem os americanos.

[8] Ibidem, p. 239-245. Algumas proposições concretas: enviar emissário secreto à China para avisá-la sobre a intenção americana de estigmatizá-la como manipuladora de moeda; frear o sequestro dos trabalhos de pesquisas e desenvolvimento; proibir as empresas estatais chinesas de comprarem empresas privadas.

[9] Ibidem, p. 245-249. Algumas proposições concretas: penalizar de forma mais séria e agressiva os espiões chineses; declarar os ataques cibernéticos promovidos por Estados nacionais como atos de guerra.

[10] Ibidem, p. 249-252. Exemplos de propostas: reconhecer que os EUA precisam conseguir um maior retorno do complexo industrial militar, em vista da superioridade quantitativa crescente do armamento chinês; evitar uma corrida armamentista com a China, que está numa situação econômica e militar muito mais favorável do que os EUA.

[11] Ibidem, p. 252-255. Propostas: expandir e mensagem dos EUA pelo mundo, como forma de ganhar acesso a mercados e difundir os valores democráticos; substituir o ensino de francês e alemão nas escolas de ensino médio por mandarim, como forma de conhecer o inimigo.

[12] Ibidem, p. 255-257. Algumas proposições concretas: reinstituir os direitos humanos como elemento da política externa americana (os EUA devem continuar a exercer pressão sobre a China a fim de que ela respeite os direitos humanos); realização de investimentos em empresas e moedas de países ricos em recursos, como Austrália e Brasil, que se expandem tanto quanto a China.

[13] Ibidem, p. 257-259. Proposições concretas, como mencionado acima: reivindicar a Lua antes que a China o faça; concessão de bolsas, empréstimos estudantis e subsídios/financiamentos educacionais direcionados de forma desproporcional às áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática.

[14] ARSLANIAN, Regis. O Recurso à Seção 301 da Legislação de Comércio Norte-Americana e a Aplicação de seus Dispositivos Contra oBrasil. Brasília: Instituto Rio Branco, 1994, p. 77.

 

Donald Trump — mais um prego no caixão da democracia liberal, por Luis Felipe Miguel

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Luis Felipe Miguel –  A Terra é Redonda – 07/11/2024

 Do mandato de Donald Trump, pelos sinais apresentados até agora, se pode esperar uma tentativa de orbanização do sistema político estadunidense

Evito fazer projeções bombásticas, mas é difícil resistir no calor no momento: a nova eleição Donald Trump bateu, não digo o último, mas um dos últimos pregos no caixão da democracia liberal tal como ela foi edificada ao longo do século XX.

A vitória de Donald Trump não é exatamente inesperada. O velho farsante alaranjado nunca perdeu o apoio de sua base original — operários e rednecks e empobrecidos, os que se sentem cada vez mais excluídos e sem perspectivas nos Estados Unidos de hoje. E cresceu tanto junto ao dinheiro grosso quanto ao eleitorado negro e latino.

Dos bilionários antes simpáticos aos democratas, Donald Trump ganhou o apoio declarado, a simpatia discreta ou no mínimo a neutralidade. Já entre negros e latinos há um crescente descrédito com o discurso do “neoliberalismo progressista” que é oferecido a eles pelo Partido Democrata.

De fato, o Partido Democrata parece não saber o que oferecer ao eleitorado. Em 2020, Joe Biden obteve uma vitória apertada — em um país mergulhado no caos da primeira gestão de Donald Trump, incluindo uma gestão da pandemia tão criminosa quanto a de Jair Bolsonaro.

Na presidência, ele pareceu julgar que a volta à “normalidade” (isto é, à velha política de sempre) era o que o povo queria. Esforçou-se por melhorar os indicadores econômicos, sem perceber que o efeito eleitoral deles já não era o mesmo.

No começo do mandato, em gesto ousado, Joe Biden apoiou a greve dos trabalhadores da Amazon, que reivindicavam o direito de se sindicalizar. Mas o saldo não foi angariar o apoio do vasto setor de precarizados (aqueles retratados no oscarizado Nomadland) e sim angariar a antipatia dos barões da “nova economia” — reforçado pelas tímidas tentativas de regular as big techs.

Não custa lembrar que Jeff Bezos, da Amazon, determinou que o Washington Post, o jornal do qual também é dono, rompesse a tradição de apoiar candidatos democratas e se declarasse neutro na eleição deste ano.

Quando a incapacidade física e mental de Joe Biden para concorrer à reeleição se tornou evidente demais e — após um longo e desgastante processo — ele teve que ser substituído, a opção por sua vice parecia “natural”, mas nem por isso menos equivocada.

Ela parecia ser a solução mais rápida, capaz de unir o partido. Mas, afora isso, reconhecidamente uma política pouco hábil, má oradora e desprovida de carisma, seu único trunfo era ser uma mulher com ascendência africana e indiana.

Com o apelo identitário se mostrando cada vez mais contraproducente, afastando mais eleitores do que congregava, e tendo que ser colocado em segundo plano, Kamala Harris fez uma campanha errática.

Era a mesma velha política morna, de fazer acenos em múltiplas direções para, no final das contas, manter tudo como está.

Do mandato de Donald Trump, pelos sinais apresentados até agora, se pode esperar uma tentativa de orbanização do sistema político estadunidense. Isto é: seguir os passos de Viktor Orbán, na Hungria, e suprimir todos os controles a seu poder pessoal.

Esse desfecho é o resultado da crise do modelo liberal democrático.

O segredo desse arranjo repousava na capacidade da classe trabalhadora de impor limites ao funcionamento da economia capitalista. Ou seja, as democracias históricas não se definem como um conjunto de regras do jogo abstratas, como frequentemente se apresenta na ciência política, mas como o resultado de uma determinada correlação de forças.

A acomodação da democracia liberal permite, por um lado, que os dominados tenham alguma voz no processo decisório e, por outro, que os dominantes saibam calibrar as concessões necessárias para garantir a reprodução de sua própria dominação.

Um componente necessário nessa equação é, obviamente, a capacidade regulatória do Estado. Outro é sua autonomia relativa em relação aos proprietários, a fim de que possam ser adotadas medidas que os contrariam no curto prazo.

A crise que ora se vê é marcada pela erosão de praticamente todos os pilares desse arranjo. O “populismo de direita” dá respostas a ela — ilusórias, mentirosas, mas ainda assim respostas. O centro e a esquerda eleitoral não chegam nem a isso. E, sem a retomada da capacidade de pressão de uma classe trabalhadora transformada, o modelo da democracia liberal fatalmente vai degringolar para uma oligarquia escancarada, com um frágil verniz eleitoral.

Estamos falando dos Estados Unidos. Mas, como disse Horácio (e Marx gostava de citar): de te fabula narratur.

*Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil (Autêntica)

 

 

A guerra civil psicótica de volta à Casa Branca, por Franco ‘Bifo’ Berardi

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Franco ‘Bifo’ Berardi – OUTRAS PALAVRAS – 06/11/2024

Entender Trump exige política e psicanálise. Ele sintetiza a desintegração do capitalismo em meio à miséria, violência e depressão. E mobiliza a psicose coletiva que aliena multidões em nome de um ideal: “vencer a qualquer preço”

Tal como as algas mutantes e monstruosas que invadem a lagoa de Veneza, as nossas telas de televisão estão povoadas, saturadas, de imagens e opiniões “degeneradas”. Outra espécie de algas que vale a pena ter em conta, desta vez relacionada com a ecologia social, consiste nesta liberdade de proliferação concedida a homens como Donald Trump, que se apoderam de bairros inteiros de Nova Iorque, Atlantic City, etc., para os “renová-los” no processo em que os alugueis sobem e expulsam milhares de famílias pobres, a grande maioria das quais estão condenadas a perder a sua casa, sendo este caso o equivalente, para os nossos propósitos, a peixes mortos na ecologia ambiental. (Félix Guattari: Les trois écologies, Paris, Éditions Galilée, 1989, p. 34.)

Nestas linhas, escritas quando Trump começava a ocupar a cena pública, Guattari prevê o que agora é mais claro que a luz do dia: a desregulação neoliberal permite que algas monstruosas contaminem as águas. Tudo se desenrolou pontualmente e agora o mar superaquecido desencadeia tempestades terríveis, que matam centenas de pessoas na costa espanhola. Além disso, a desregulação permite a proliferação de fontes de declarações destinadas a contaminar a mediosfera e, consequentemente, a psicosfera. Aconteceu pontualmente: turbas de psicoadictos votam num sem-vergonha, que promete a maior deportação de migrantes da história. Estas poucas linhas de Guattari descrevem a gênese de um ambiente venenoso, que gera violência e opressão, ao mesmo tempo que desencadeia a guerra de todos contra todos, gerando as condições para uma tirania cínica, barroca e destrutiva.

Reconsideremos as premissas distantes daquilo que chamamos de desregulação. No início está a criação tecnológica do paradigma rizomático. Graças à comercialização de tecnologias electrônicas durante as décadas de 1960 e 1970, tornou-se possível a difusão democrática de fontes autonomas de informação. Na Itália e na França criamos centenas de estações de rádio livres depois de travarmos uma batalha cultural contra o monopólio estatal da informação. Então, a criação da world wide web possibilitou a proliferação de inúmeros centros de netcultura ao redor do mundo. Mas pela fenda aberta pela criatividade difusa entraram grandes grupos econômicos e mafiosos (Berlusconi em Itália, Trump nos Estados Unidos e indivíduos semelhantes em todos e cada um dos países do mundo), cujo objetivo não era certamente a criação, a cultura ou a informação, mas a acumulação de capital e a aquisição de poder político ilimitado sobre as mentes de uma sociedade psiquicamente subjugada.

Zed is dead, baby

Vi The Apprentice (2024), filme de Ali Abbasi, que aborda o período de aprendizagem do candidato republicano das atuais eleições estadunidenses. O título é habilmente retirado do programa televisivo em que, há algumas décadas, Donald Trump submetia os candidatos a diversas humilhações, que apareciam diante dele para serem insultados, ridicularizados, questionados e, por fim, despedidos (“You’re fired”). Havia filas para serem ridicularizadas publicamente por aquele indivíduo loiro. Porque? O enigma de Trump demonstra que os instrumentos de análise política já não são úteis. Na verdade, para compreender tal monstruosidade ética, psíquica e política, é necessário falar em humilhação, tristeza epidêmica, autodepreciação, é necessário falar em liberdade ilimitada para escravocratas, tiranos psicóticos e fabricantes de armas. O filme de Abbasi consegue isso até certo ponto: pode ser não seja um grande filme, mas é útil para compreender alguns dos antecedentes psíquicos, existenciais e mafiosos em que Trump cresceu. É útil compreender as ferramentas de seu domínio sobre a psique de um povo miserável e imensamente ignorante.

O filme não é sobre o programa The Apprentice, do qual apropriadamente tira o título, mas na verdade sobre o aprendizado do próprio Trump. Como se tornou o que é? Para responder a esta questão, a psicanálise pode ser mais útil do que a teoria política. A sobrinha do homem laranja, Mary L. Trump, psicóloga de formação, escreveu um livro intitulado Too Much and Never Enough: How My Family Designed the World`s Most Dangerous Man (2020), no qual ela tenta entender seu tio de um ponto de vista psicanalítico. A primeira impressão que tive ao ler o livro é que a vida desse indivíduo foi (e é) imensamente triste. O pai de Trump era, na opinião de Mary, uma pessoa sociopata, mas eficiente. O filme de Abbasi também consegue mostrar como a relação com o pai foi decisiva. Donald viveu sua infância e adolescência com medo da humilhação a que seu pai o submeteu sistematicamente, o que lhe causou profundas feridas psicológicas. “A crença fundamental de Fred (o pai sociopata) é esta: na vida há sempre apenas um vencedor e todos os outros são perdedores; a amabilidade, por outro lado, significa apenas fraqueza”. “Ou você é um perdedor ou é uma pessoa que aposta tudo”, diz o pai ao pequeno Donald. Partindo de tais premissas, é impossível desfrutar das relações com os outros, pois essas relações só podem ser de competição, agressão ou submissão. Mas, infelizmente, não será este um traço decisivo da personalidade coletiva dos habitantes deste país, que não teria existido sem o genocídio dos nativos americanos e sem a deportação e a escravidão?

As três regras que Donald aprende com um advogado racista da máfia (Roy Cohn) são as seguintes:

1.Ataque, ataque, ataque.
2. Sempre minta.
3. Sempre declare vitória e nunca admita a derrota.

Como observa um personagem do filme, que é jornalista do The New York Times, esses três princípios descrevem muito bem a política externa estadunidense dos últimos 30 anos. Eu diria que eles definem o espírito público dos Estados Unidos da América, do princípio ao fim. O inconsciente coletivo dos estadunidenses brancos é um porão fétido de onde emergem monstros como aquele que Tarantino retratou em Pulp Fiction (1994). Você se lembra de quando Bruce Willis liberta Marcellus daquele porão, onde Zed, o torturador, o mantém amarrado para abusar dele? Não há melhor maneira de explicar os anos Trump, embora, infelizmente, me pareça que Zed está vivo e bem, preparando-se para pisotear um bando de pobres.

Nomen est omen

No início de 2021, logo após o ataque ridículo ao Capitólio pelas tropas do general Trump, publiquei um ensaio intitulado “The American Anyss” no e-flux. Quatro anos mais tarde, esse abismo está se tornando mais profundo e um perigo torna-se cada vez mais evidente: a desintegração da mente estadunidense pode desencadear uma reação em cadeia que acabará por aniquilar a vida humana na Terra. Às vezes penso no nome desse indivíduo: trump significa vencer, superar, subjugar, mas o substantivo trump também significa peido, peido fedorento. Se alguma vez a frase “nomen est omen” [o nome é tudo] foi verdade, é esse o caso. O homem laranja é um peido fedorento, que se propõe (e consegue) a empestear a atmosfera psíquica, humilhando e ameaçando. Se eu tivesse a infelicidade de ser cidadão estadunidense, não votaria em nenhum dos candidatos: a senhora Harris, que prometeu que os militares dos EUA estarão sempre equipados com a letalidade máxima, é mais perigosa do que o senhor Trump do ponto de vista europeu, porque com a senhora Harris como presidente, a guerra na Ucrânia se estenderia até o limiar atômico. Trump, que representa consciente e explicitamente os interesses da raça branca, seria uma catástrofe para os palestinos e, de forma mais geral, para os migrantes, a quem Trump e Vance prometeram “a maior deportação da história”. Mas é difícil imaginar como Trump poderia ser mais implacável do que Biden e Obama, que deportaram mais migrantes durante as suas presidências do que o homem peido. E é difícil imaginar como é que ele poderia ser mais implacável com os palestinos do que Biden, que nunca deixou de apoiar financeiramente ou de enviar armas aos exterminadores israelenses. Talvez eu fosse menos hipócrita.

Psicose memética

Em 6 de janeiro de 2021, enquanto o novo presidente democrata se preparava para assumir o seu lugar na Casa Branca e o Congresso se reunia para realizar os seus rituais institucionais, uma multidão heterogênea respondeu ao apelo de Trump para salvar a América e alguns milhares de perturbados marcharam em direção ao Capitólio. Sem encontrar qualquer resistência séria por parte da polícia, estes lunáticos entraram nas salas do Capitólio, quebraram os vidros das janelas, vociferando enquanto agitavam bandeiras confederadas e bandeiras com suásticas. Donald Trump incitou os alvorotados a recuperar o poder pela força. “Você nunca recuperará seu país com fraqueza. Devem mostrar força e ser forte. […]. Lutem, lutem como homens condenados. E se vocês não lutarem como condenados, não haverá país para vocês”. No final do dia a multidão voltou para casa, como faz depois de um belo passeio de domingo. Algumas pessoas ficaram feridas e uma foi morta após tiros de um policial. Os comentaristas democratas ficaram realmente indignados, como não compreendê-los, mas a indignação dos Democratas perante as falsidades contadas por Trump e nas quais os seus seguidores acreditam é pueril. Depois de 2008, os estadunidenses brancos, atolados em duas guerras insanas, humilhados pelo empobrecimento provocado pela crise financeira e aterrorizados pelo colapso demográfico, agarraram-se desesperadamente às suas armas, aos seus SUVs, ao seu direito de comer carne e ao seu direito de matar.

O que aconteceu em Washington no dia 6 de janeiro de 2021 não foi uma insurreição ou um golpe de Estado, mas sim um episódio ridículo e criminoso da guerra civil americana, que é o entrelaçamento de vários conflitos, ou seja, um conflito entre o nacionalismo branco e o globalismo liberal, um conflito entre a população branca e a população negra, latina e asiática, um conflito entre as metrópoles e as áreas rurais empobrecidas e um conflito cultural entre secularistas e fanáticos de algum Jeová sintético, mas esta guerra está diante de uma guerra civil psicótica guerra de lunáticos armados, que decidem matar a primeira pessoa que se coloque no caminho. Este é o abismo estadunidense, não a propagação de fake news. Em 2016 aconteceu o impensável: um nazista loiro tingido venceu as eleições. A partir desse momento ficou claro que a maior potência do mundo is running amok [está fora de controle], que perdeu a cabeça, enquanto tem 120 armas de fogo para cada cem habitantes. Os Democratas queixam-se de que as redes sociais produzem uma avalanche de falsidades, mas só uma pessoa ingênua não perceberia que as falsidades não podem ser erradicadas, porque os Estados Unidos são o reino da falsidade.

Entre 1º de janeiro e 31 de agosto de 2023, ocorreram 28.293 mortes por armas de fogo nos Estados Unidos. As mortes em ações de mass-shooting (como traduzir uma palavra tão ligada à língua dos pistoleiros?) foram 474. Os homicídios não intencionados por arma de fogo, ou seja, os mortos por acidente no manuseio de arma, foram 1.070.

Um pai estadunidense

Apesar de consumirem quatro vezes mais eletricidade e muito mais carne do que qualquer outra pessoa no planeta (ou talvez por causa disso), os cidadãos dos Estados Unidos levam vidas miseráveis. A expectativa média de vida na Espanha é de 83,3 anos, na Suécia 83,1, na Itália 82,7, na China 77,1. Nos Estados Unidos, a expectativa de vida nos últimos anos é de 76,1 anos. 65% dos habitantes não têm poupanças e, se adoecerem, têm boas chances de acabar nas ruas. Em 2022, se produziram 100 mil mortes por overdose de opiáceos. A maior potência militar do planeta está se desintegrando. A palavra “impensável” é recorrente no discurso público estadunidense nos últimos anos.“Precisamos pensar o impensável sobre o nosso país” é o título de um editorial do The New York Times publicado em 13 de janeiro de 2022, escrito por Jonathan Stevenson e Steven Simon:

As próximas eleições nacionais serão inevitavelmente disputadas sanha e talvez violência. É correto afirmar que a ameaça que a direita representa aos Estados Unidos – e o seu objetivo evidente de lançar as bases para tomar o poder ilegitimamente, se necessário, em 2024 – é politicamente existencial. […] O pior cenário é este: os Estados Unidos como conhecemos poderão desintegrar-se.

The Unthinkeble: Trauma, Truth, and the Trials of American Democracy por outro lado, é o título de um livro de Jamie Raskin, publicado em 6 de janeiro de 2022, no primeiro aniversário da insurreição psicótica. O autor não é apenas um escritor, mas um importante membro do Congresso, eleito em Maryland para as fileiras do Partido Democrata. Além disso, Jamie Raskin é professor de Direito Constitucional, autodenomina-se liberal e pai de três filhos na faixa dos vinte e trinta anos. Um deles, Tommy, de 25 anos, ativista político, apoiador de causas progressistas e defensor dos animais, morreu na noite do último dia do ano de 2020. Tommy escolheu morrer, suicidou-se como dizem. Fez isso depois de uma longa depressão, mas também como consequência da longa humilhação moral que o trumpismo infligiu aos seus sentimentos humanitários. Para Jaimie Raskin, a decisão final de Tommy não é apenas uma catástrofe emocional, mas o início de uma reconsideração radical das suas convicções. Ao ler este livro, partilhei a dor de um pai e o tormento de um intelectual, mas ao mesmo tempo foi revelada a profundidade da crise que está dilacerando o Ocidente e, em particular, obscurecendo o horizonte cultural da democracia liberal. O pai não tem mais nenhum mundo de valores para transmitir ao filho. No livro, três histórias diferentes se desenrolam simultaneamente e se alimentam reciprocamente: a primeira é a história do fascismo estadunidense emergente. A segunda é a vida de Tommy, a sua educação, os seus ideais e a constante humilhação da sua sensibilidade ética. A terceira é o efeito da covid-19 nas mentes da geração mais jovem, aquela que mais sofreu com as regras de distanciamento. Tommy sofria de depressão e, em sua última mensagem, fala sobre isso: “Perdoe-me, minha doença venceu”.

Jamie Raskin escreve:

Tal como muitos jovens da sua geração, Tommy foi arrastado pela covid-19 para uma espiral maligna. Com os centros educativos fechados, a sua vida social foi reduzida a um ponto frágil acompanhado da máscara, as viagens tornaram-se um pesadelo. As relações tornaram-se difíceis, forçadas a uma intimidade prematura e torpe ou de fato condenadas ao esquecimento virtual. Muitos jovens sofreram com o desemprego, a falta de oportunidades econômicas e uma profunda incerteza. Muitos, como Tommy, foram obrigados a voltar para a casa dos pais e ficar em uma sala cheia de livros de bacharelado […]. Tommy declarou-se antinatalista porque não podia aceitar a perspectiva de comprometer outro ser humano com uma vida destinada a ser dominada pela dor da tristeza e do sofrimento.

Por mais que Sarah e eu tentássemos descrever para ele a alegria de ter filhos, Tommy não renunciava a sua determinação, porque ninguém tem o direito de impor a outra pessoa a inevitável experiência de dor. Não me dá muito conforto saber que uma parcela enorme e crescente da sua geração sente o mesmo em relação à opção de não ter filhos.

O antinatalismo é provavelmente um efeito da depressão – como não seria? – mas mostra que a depressão pode ser uma condição de sabedoria e não apenas uma doença. Torna-se uma doença quando não compreendemos a sua mensagem e tentamos desesperadamente conformar-nos com as normas dominantes de produtividade, eficácia e dinamismo. Rechaçar a mensagem da depressão, reafirmar a força de vontade contra a mensagem que ela nos envia, é uma forma de cair numa tendência suicida. Se formos capazes de compreender o significado e a sabedoria da depressão, é possível uma evolução consciente e partilhada da mesma. No caso de Tommy isto é evidente: o seu denatalismo é talvez mais sábio do que a decisão irresponsável de dar à luz a inocentes destinados a uma vida quase certamente infeliz.

Após a morte do filho, a percepção de Raskin muda: seu otimismo constitucionalista vacila diante da explosão da força bruta, que tende a anular a força da razão, enquanto suas certezas democráticas vacilam diante da proliferação da depressão.

De repente, meu otimismo constitucional me deixa numa situação difícil, como se fosse uma vergonha. Temo que o meu resplandecente optimismo político, que muitos dos meus amigos apreciaram em mim, se tenha se tornado uma armadilha de auto-engano massivo, uma fraqueza que pode ser explorada pelos nossos inimigos.

O otimismo político deste generoso professor de Direito Constitucional é abalado pela súbita constatação de que a democracia liberal está sentada em alicerces frágeis. De fato, ele escreve:

Sete dos nossos primeiros dez presidentes eram proprietários de escravos. Estes fatos não são acidentais, mas nascem da própria arquitetura das nossas instituições políticas.

A escravidão faz parte da bagagem psíquica da nação estadunidense. Como pode esta nação esperar servir de exemplo para as outras? Como podemos não pensar que esta nação é um perigo para a sobrevivência da humanidade?

A lei do pai não tem mais poder sobre o caos

Trump poderá voltar a ser presidente dos Estados Unidos da América [este texto foi escrito antes da vitória do ex-presidente estadunidense], enquanto o mundo entrou, por meio das instâncias estadunidenses, num ciclo de guerra civil psicótica, cujos resultados são imprevisíveis e, na verdade, verdadeiramente impensáveis. O pai não tem mais um mundo de significado para legar ao filho. A lei do pai não tem mais poder sobre o caos. Quem quer que ganhe estas eleições dopadas de bilhões de dólares, o caos está garantido.

 

Revisão dos gastos

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Vivemos momentos de grandes incertezas econômicas e financeiras que impactam sobre todo o sistema produtivo, com aumento nas taxas de juros, desvalorização cambial e preocupações crescentes sobre a inflação, desta forma, percebemos a piora dos indicadores econômicos e o incremento dos desequilíbrios políticos.

Neste cenário, os agentes econômicos e financeiros usam seus instrumentos de pressão para pressionar o governo federal para revisar os gastos públicos para evitar que a dívida pública cresça de forma acelerada, impactando fortemente sobre a economia nacional e melhore as perspectivas econômicas, estimulando o sistema produtivo e contribuindo para a recuperação nacional.

Desde a crise financeira internacional de 2008 e, principalmente, depois da pandemia os governos nacionais foram incentivados a adotarem uma política mais intervencionista, com aumento dos gastos públicos e uma visão mais protecionista com o objetivo de proteger seus setores produtivos, garantindo mais empregos e incremento dos salários, desta forma, a economia retomaria seu caminho de mais investimentos produtivos e uma maior geração de renda agregada.

Depois de grandes estímulos fiscais e financeiros, os governos nacionais buscam um maior equilíbrio fiscal, reduzindo os estímulos e reorganizando as contas públicas, reduzindo ineficiências e adotando medidas mais efetivas para melhorar a arrecadação nacional como forma de evitar o estouro da dívida pública. Neste ambiente, os mercados pressionam o governo nacional para uma maior racionalização das contas públicas, impedindo que a dívida pública cresça e a inflação impactem sobre taxas de juros maiores, refletindo negativamente sobre as atividades econômicas.

A revisão dos gastos públicos deve ser feita por todos os governos como forma de aumentar a eficiência e a melhor alocação de recursos públicos, objetivando uma melhora dos serviços públicos e evitando os desperdícios que acometem a gestão pública. Neste momento, percebemos a grande dificuldade do Estado Nacional para rever os gastos públicos e a racionalização dos recursos da comunidade, afinal rever gastos de grupos privilegiados pode ser visto como uma declaração de guerra. Todos falam a favor da redução dos gastos públicos, criticando os dispêndios governamentais, desde que a conta caia sobre os ombros de terceiros. Os grupos sociais mais bem organizados defendem seus privilégios, muitos deles “garantidos” a muitos séculos, mesmo sabendo que seus privilégios existem em detrimento de outros grupos sociais, que muitas vezes querem apenas garantir um direito essencial, gerando incertezas e instabilidades que desestabilizam os governos de plantão.

Neste momento, os palácios governamentais estão discutindo como fazer para restringir os gastos públicos e dar racionalidade ao arcabouço fiscal, reduzindo os recursos com o BPC (Benefício de Prestação Continuada), o Abono e os seguro-desemprego, que impacta fortemente sobre os grupos mais fragilizados da sociedade brasileira, tudo isso garantiria recursos adicionais para melhorar o ambiente econômico e uma melhora dos horizontes, principalmente dos financistas. Neste momento, a sociedade brasileira está perdendo tempo, devemos fazer uma revisão geral dos gastos públicos, adotando taxação de lucros e dividendos, revendo isenções fiscais e tributárias que consomem bilhões, acabando com penduricados que engordam salários elevados, além da tributação das grandes fortunas, desta forma, o ajuste  fiscal contribuirá para que o sistema tributário nacional seja menos regressistas e tão desigual.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.