O Valentão, por Paul Krugman

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Paul Krugman – A Terra é Redonda – 16/02/2025

Na visão de mundo de Elon Musk, o simples fato de tentar ajudar as pessoas necessitadas faz de você um marxista de esquerda radical que odeia a América

Aqui está onde estamos como nação agora: (i) Podemos estar no meio de uma guerra comercial. Ou talvez não. (ii) Estamos no meio de uma crise constitucional. Não, talvez. (iii) Podemos estar no meio de uma espécie de golpe digital, que pode, como consequência colateral, fazer com que grande parte do governo federal pare de funcionar.

O tema unificador aqui, eu acho, é que o governo federal foi tomado por pessoas más que também são incrivelmente ignorantes.

Comece com a guerra comercial talvez/ talvez não. O governo de Donald Trump estava, ao que tudo indica, pronto para impor tarifas de 25% ao Canadá e ao México. Isso teria sido autodestrutivo (e também uma violação de acordos anteriores), mesmo que nossos vizinhos não retaliassem. E ambos deixaram claro que retaliariam. Estes são países reais, com verdadeiro patriotismo e orgulho, e eles não estavam prontos para serem intimidados.

Donald Trump desistiu. OK, supostamente as tarifas estão suspensas apenas por um mês, mas alguns já estão brincando que o “mês tarifário” se tornará a nova “semana de infraestrutura”.

E, supostamente, tanto o México quanto o Canadá fizeram algumas concessões em troca da retenção tarifária. Mas não há realmente nada lá; Nenhum dos países está fazendo nada que não teria feito sem a ameaça tarifária. Os EUA, por outro lado, concordaram em reprimir os embarques de armas para o México. Donald Trump vai transformar isso em uma vitória; eleitores com pouca informação e alguns meios de comunicação intimidados podem concordar com a mentira. Mas, basicamente, a América recuou.

Então, Donald Trump é o valentão clássico que foge quando alguém o enfrenta? Definitivamente parece assim.

Sejamos claros, no entanto: este não é um caso de nenhum dano, nenhuma falta. Ao fazer a ameaça tarifária em primeiro lugar, Donald Trump deixou claro que os Estados Unidos não são mais uma nação que honra seus acordos. Ao ceder ao primeiro sinal de oposição, ele também se fez parecer fraco. A China deve estar muito satisfeita com a forma como tudo isso se desenrolou.

E como argumentei outro dia, a ameaça agora sempre presente de tarifas terá um efeito inibidor no planejamento de negócios, inibindo a integração econômica e prejudicando a manufatura.

Ainda assim, a guerra comercial não aconteceu, pelo menos até agora. Mas a crise constitucional está em pleno andamento.

Elon Musk, depois de passar um fim de semana denunciando a Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional como “má”, um “ninho de víboras de marxistas radicais de esquerda que odeiam a América” e uma “organização criminosa”, anunciou que a agência estava sendo fechada. Agora, Elon Musk não é o presidente – pelo menos eu não acho que ele seja; ele nem é um funcionário do governo.

Mas Donald Trump confirmou a medida, que é ilegal e inconstitucional. Sem linguagem de qualificação, sem evasões de “pode ser” ou “alguns dizem”, por favor. O Congresso aprovou uma lei estabelecendo a USAID como uma agência independente, e o presidente não pode aboli-la a menos que o Congresso aprove uma nova legislação para esse efeito.

Parece quase irrelevante perguntar do que se trata, mas ainda assim: do que se trata?

Então, por que Elon Musk é um inimigo tão histérico da agência, cujo principal objetivo é fornecer ajuda humanitária? Pode haver alguma história de fundo aqui, na qual a USAID de alguma forma interferiu em um projeto de Elon Musk. E Elon Musk certamente está apostando na numeracia pública: abolir uma agência parece que vai economizar muito dinheiro, e poucos eleitores entendem o quão pequenos são US$ 40 bilhões no contexto federal.

Mas meu palpite é que, na visão de mundo de Elon Musk, o simples fato de tentar ajudar as pessoas necessitadas faz de você um marxista de esquerda radical que odeia a América.

Meu ponto final é um pouco mais complicado, porque ainda não sabemos como vai acabar. Os associados de Elon Musk tiveram acesso aos sistemas do Tesouro dos EUA que controlam todos os pagamentos federais, desde doações a organizações sem fins lucrativos, cheques da Previdência Social e salários de funcionários federais.

O potencial para travessuras aqui é imenso. Os tribunais podem ter dito ao governo Donald Trump que não pode congelar os gastos exigidos pelo Congresso, mas o pessoal de Elon Musk, que não demonstrou muita reverência pela lei, pode muito bem simplesmente ignorar os tribunais e não cortar os cheques.

E eles poderiam ir além de cortar programas que o governo Elon Musk / Donald Trump não gosta. Imagine que você é um empreiteiro federal que fez doações de campanha para os democratas; de repente, o governo para de pagar o que deve a você e ignora as perguntas dizendo que está trabalhando no problema. Ou você é um funcionário federal que, de acordo com alguém em seu escritório que tem uma queixa pessoal, expressou simpatia pelo DEI; de alguma forma, seus pagamentos salariais programados regularmente param de ser depositados em sua conta bancária. Ou até mesmo imagine que você é um aposentado que fez campanha para Kamala Harris e, por algum motivo, seus cheques da Previdência Social param de chegar.

Não diga que eles não fariam essas coisas. Vimos essas pessoas em ação, e é claro que o fariam se pudessem.

No momento, eles provavelmente não podem. O sistema federal de pagamentos é imensamente complexo e, como a maioria das infraestruturas governamentais, está financeiramente pressionado há décadas. Portanto, é remendado, grande parte dele rodando em hardware antigo e software ainda mais antigo, continuou funcionando graças às mãos antigas e à memória institucional. Os jovens de 20 e poucos anos que Elon Musk está implantando para assumir, bloqueando os veteranos e deixando de lado as pessoas que sabem como o sistema funciona, quase certamente não entendem o suficiente para politizar os pagamentos imediatamente.

Como Nathan Tankus, o especialista nesses assuntos, diz: “Acredito 100% que a principal barreira para Elon Musk obter o controle do sistema de pagamentos do Tesouro é o COBOL”.

Para os leitores perplexos com a referência, COBOL é uma linguagem de programação muito antiga que já foi difundida no mundo dos negócios, mas na qual quase ninguém com menos de 60 anos sabe programar — mas ainda é amplamente usada no governo. (Durante a Covid, o estado de Nova Jersey fez um apelo frenético para que as pessoas que conheciam o COBOL implementassem benefícios de desemprego expandidos.)

Mas essa observação levanta outra preocupação. E se o povo Musk — Muskovites? — tentar mexer com sistemas que não entendem, acreditando que são superinteligentes e podem dominar tudo com a ajuda de um pouco de IA? Não é difícil imaginar todo o sistema de pagamentos federais – incluindo, a propósito, o serviço da dívida federal – quebrando.

Tanto dano – à credibilidade dos EUA, à Constituição e ao Estado de Direito e, possivelmente, até mesmo ao próprio funcionamento do governo. E Donald Trump só assumiu o poder há menos de um mês.

Paul Krugman é professor na Universidade de Princeton (EUA). Foi agraciado com o prêmio Nobel de Economia em 2008.

Tradução: Marilia Pacheco Fiorillo.

Publicado nas redes sociais do autor.

População de rua e a lógica do descarte humano, entrevista com Igor Rodrigues.

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Contingente de pessoas em situação de rua explode — no Brasil e no mundo. É preciso ir às raízes do fenômeno. Capitalismo tardio quebra os laços de solidariedade e serve-se da superexploração dos mais pobres, como na reciclagem, e higienização das cidades

OUTRAS MÍDIAS/IHU, 19/02/2025

Igor Rodrigues em entrevista IHU e Baleia Comunicação

Com políticas públicas esgotadas, panorama sombrio tomou conta do país e aumentou em 1.000%, na última década, o número de pessoas que moram nas ruas. Uma população invisibilizada, que reflete o colapso do atual sistema socioeconômico. “A vida nas ruas e os indivíduos que vivem nestas condições não estão fora do sistema capitalista, pelo contrário, são produtos desta sociedade, fabricados, embalados e entregues por um sistema econômico agressivo, destruidor e colapsado”, assinala Igor Rodrigues, autor da pesquisa Trocas Sinistras: a vida na rua sob novo prisma, junto com Dimitri C. Fernandes.

Com o intuito de compreender a vida nas ruas, nos últimos dez anos, os pesquisadores se debruçaram a estudar as pessoas que moram nas ruas, o conceito de cidadania e as políticas públicas. Por isso, Rodrigues é catedrático ao afirmar que “sem uma abordagem criativa e humanitária, os governos se limitam às políticas esgotadas, albergacionistas, quando não traçam alguma escalada pela barbárie e pela eliminação”. Para o sociólogo, o problema também é acadêmico, pois “pesquisadores e cientistas do assunto continuam calados sem explicar esse fracasso – o debate, precário, recorre ao mero instrumento descricionista-etnográfico ou aos censos para apontar quantos aumentaram”, explica.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o sociólogo expõe as causas que levam as pessoas às ruas. Muito pelo contrário do que o senso comum tem como mito, “a droga não pode ser tomada como uma explicação simplista e reducionista da vida nas ruas, até porque uma gama de indivíduos está na rua e não utiliza nenhuma substância ou começou a utilizar após ir para as ruas”, pontua. Os motivos, segundo coloca, estão associados “às rupturas nos ciclos de troca social e o processo de descarte humano crescente nas últimas décadas, não a suposta ‘comodidade’ que a vida na rua teria”, destaca.

“Estamos falando da produção crescente do descarte humano”, assevera o pesquisador. Para Rodrigues, as pessoas em situação de rua são “descartadas por este modelo econômico, enquanto tal, vivenciam uma total violação de direitos humanos. A sociedade cria espaços de controle e confinamento ‘a céu aberto’, relegando essas pessoas a um estado de marginalização que tolera e permite o massacre destes indivíduos descartados. Estamos presenciando uma série histórica de banimento de na ordem dos direitos”, complementa.

Igor de Souza Rodrigues é doutor e mestre em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora. Mestre, graduado em Direito pelo Instituto Vianna Júnior e em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora e especialista na área de sociologia. Atuou como pesquisador Sênior do projeto A Gênese Social do Usuário do Crack – Ministério da Justiça do Brasil – UFJF/SENAD (2014-2017) e membro do Centro de Estudos Sobre Cidadãos em Situação de Rua. Leia a entrevista:

IHU – A primeira pergunta não é um recorte de sua pesquisa, mas imagino que exista uma estimativa que o senhor possa trazer para contextualizar o tema. Qual o número de pessoas em situação de rua no Brasil? Por que isso acontece, apesar de haver investimentos em políticas públicas?

Igor Rodrigues – O Brasil tem hoje aproximadamente 300 mil pessoas vivendo nas ruas de todo o país. A questão que eu e o sociólogo Dmitri Fernandes dedicamos anos de pesquisa foi entender o motivo do número ter crescido 1.000% na última década, apesar do aumento dos investimentos e da diversificação dos serviços na área social, ou seja, é preciso entender qual o ponto-chave e o motivo pelo qual as cidades não têm conseguido resolver ou, pelo menos, frear este problema social apesar da atenção que o problema vem recebendo nos últimos anos.

Após décadas de políticas fracassadas neste segmento, a pergunta “onde se tem errado?” se tornou essencial para uma virada eficaz no modo de compreensão sobre a vida nas ruas. Há quatro anos, em entrevista ao IHU, relatei que as políticas eram apenas castelos de areia e não lograriam êxito. O Brasil coleciona um retumbante fracasso em relação às políticas para a situação de rua e precisa com urgência rever este panorama.

O pior é que os pesquisadores e cientistas do assunto continuam calados sem explicar esse fracasso – o debate, precário, recorre ao mero instrumento descricionista-etnográfico ou aos censos para apontar quantos aumentaram. Sem uma abordagem criativa e humanitária, os governos se limitam às políticas esgotadas, albergacionistas, quando não traçam alguma escalada pela barbárie e pela eliminação. Enfrentamos, então, o que estamos chamando de um panorama sombrio: a falta de alternativas ao debate público sobre a situação de rua, não apenas no Brasil, mas no mundo. A falta de articulação entre as políticas públicas, as estruturas sociais e as experiências individuais perpetuam o problema, transformando a situação de rua em um reflexo do colapso do sistema socioeconômico.

IHU – Quais são os principais mitos em torno das razões pelas quais as pessoas passam a viver em situação de rua? Qual a importância de desconstruí-los?

Igor Rodrigues – Vou destacar três mitos. De um modo geral, a população acredita que a situação de rua é causada pela droga, especialmente pelo crack. Por vezes, o crack pode, de fato, ser encontrado na dinâmica de quem vive nas ruas, mas nem sempre. A droga não pode ser tomada como uma explicação simplista e reducionista da vida nas ruas, até porque uma gama de indivíduos está na rua e não utiliza nenhuma substância ou começou a utilizar após ir para as ruas; por outro, há vários que utilizam substâncias psicoativas em larga escala, cocaína, ecstasy, metanfetamina e até crack e não estão vivendo nas ruas.

Outro mito é que são simplesmente pessoas vagabundas, que não fazem absolutamente nada. As pessoas em situação de rua precisam se virar, catam latas, vendem balas, fazem carga e descarga de materiais, atuam em setores da agricultura como a colheita do café e da cana, porém, não há reconhecimento de seu trabalho, a troca não atinge recompensas materiais e apenas explora os fundos de vida. A história de Janaína, que começa às 7 horas da manhã e para às 22 horas para catar lixo, resume um pouco o cotidiano da vida nas ruas. Janaína consegue cerca de R$ 15 por dia, a sua jornada pouco consegue transformar em renda ou recompensas materiais, praticamente trabalha para comer, “o meu rolê é o lixo”, disse ela em uma das conversas que tivemos.

Temos também o mito da infestação, replicado, por exemplo, no livro a Máfia dos Mendigos: como a caridade aumenta a miséria. O senso comum tem acreditado que a situação de rua aumenta porque as pessoas estão sendo bem tratadas com políticas sociais, que é cômodo viver nas ruas. Há muito sofrimento na vida nas ruas, as pessoas nos relataram dramas profundos, mutilação da subjetividade, mas percebemos que querem sair desta condição. Além disso, a causa do fenômeno são as rupturas nos ciclos de troca social e o processo de descarte humano crescente nas últimas décadas, não a suposta “comodidade” que a vida na rua teria, até porque esse pensamento é, em si, uma crítica às políticas de transferência de renda, que as pessoas ali teriam direito estando na rua ou não.

IHU – Até que ponto a “teoria da multicausalidade” explica o crescimento da população de rua e a partir de que ponto ela é insuficiente?

Igor Rodrigues – Os pesquisadores e cientistas que estudam a vida nas ruas estão rendidos ao fácil e cômodo jargão “a situação de rua é multicausal”, ou seja, explicada por inúmeros fatores: políticos, econômicos, culturais – praticamente toda a literatura escapa de uma explicação fenomenológica em razão do generalismo e a superficialidade desta teoria. Dizer que é multicausal sem, de fato, aprofundar na explicação detalhada do problema criou uma superficialidade enorme nos estudos da situação de rua. Ora, todo problema social é complexo e multicausal, a questão passa a ser, então, entender o que estas aparentes “causas” têm em comum? Estudando a vida dessas pessoas, descobrimos que, por detrás das brigas familiares, depressão, consumo de drogas, alcoolismo, está a humilhação, a fragmentação e a frouxidão das relações sociais. Estes elementos comunicam todos os outros, portanto, estão na raiz do problema social.

IHU – As pessoas em situação de rua são pessoas excluídas da sociedade ou elas fazem parte do “sistema”? Por quê?

Igor Rodrigues – A vida nas ruas e os indivíduos que vivem nestas condições não estão fora do sistema capitalista. pelo contrário, são produtos desta sociedade, fabricados, embalados e entregues por um sistema econômico agressivo, destruidor e colapsado. FrançaEstados UnidosAlemanhaÍndiaArgentinaPortugalChinaÁfrica do Sul e diversos outros territórios também registraram um acréscimo estrondoso dessa população, que não se restringe a locais mais ou menos ricos. Este modelo de sociedade tem produzido não apenas resíduos plásticos, mas pessoas, subjetividades descartadas na lógica do sistema e não mais aproveitadas. Embora esses indivíduos sejam tratados como “resíduos indesejáveis” – os sujos, feios e malvados -, eles representam uma manifestação extrema das contradições de nossa sociedade. A rua é a feiura do capital, um reflexo sombrio da precarização econômica e social.

Os indivíduos em situação de rua são a base de sustentação de uma pirâmide de exploração no mercado da reciclagem, de venda no comércio ambulante, em atividades no período de safras, entre outras. Além disso, participam como peças-chave no controle social, cuja existência reforça a culpa pela violência urbana, por exemplo. Tratá-los a partir da exclusão total seria ignorar todas estas facetas, incluindo os aspectos sinistros da relação.

IHU – A Constituição de 1988 ganhou o apelido de “Constituição Cidadã”. A razão é porque ela tinha, no seu núcleo, um paradigma orientado à solidariedade. Porém isso parece ter se degradado progressivamente nos últimos 36 anos. O que explica o enfraquecimento da reciprocidade social que nos leva ao cenário atual?

Igor Rodrigues – A Constituição Federal de 1988 nunca chegou de fato às pessoas que vivem nas ruas. São inúmeras violações históricas, massacres, indignidade, fome, frio, episódios grotescos, desrespeito a qualquer tipo de humanidade de quem vive nestas condições. A Constituição Brasileira seguiu um modelo de estado de bem-estar social, típico de um período do capitalismo, contudo, ao longo dos anos, esse próprio sistema econômico tem perdido a capacidade de absorção dos indivíduos via cidadania, criando pessoas dispensáveis e refugo descartável.

democratização de direitos, de cidadania, depende, em boa medida, dos vínculos que uma sociedade desenvolve. Tem-se caminhado pelo individualismo, por trocas sinistras, ou seja, contato, proximidade física, mas formas obscuras de se relacionar. O conceito de cidadania se tornou esvaziado para parcelas significativas da população, incluindo os que vivem nas ruas. É um conceito ainda bastante fixado ao modo de vida das classes mais estabelecidas, como a classe média.

IHU – De que maneira o mundo do trabalho, com os processos de precarização de direitos de trabalhistas (chamada uberização) e de eliminação de postos de trabalho (automação de atividades) impacta no aumento da população em situação de vulnerabilidade social extrema?

Igor Rodrigues – Temos que entender os processos sociais como um todo. Na Revolução Industrial na Inglaterra no século XVIII, a população miserável era uma parcela reserva aos empregos nas fábricas. Esse processo mudou especialmente com a automação, alcançando níveis jamais vistos desde a introdução da microeletrônica, a partir de 1980 até os dias atuais. O capitalismo tem, cada vez mais, eliminado postos de trabalho, como o de atendente, caixa de supermercado, cobrador de ônibus, são algumas das profissões em extinção. Algumas atividades surgiram neste mercado, porém, o saldo é negativo e as novas profissões não envolvem os trabalhos cujas camadas miseráveis têm oportunidades.  A combinação entre precarização e automação não apenas empurra indivíduos para a pobreza, mas também amplia desigualdades estruturais.

O resultado é que, nos últimos anos, milhões de brasileiros foram para a informalidade, como vendedores ambulantes, catadores, entregadores de comida, ubers, entre outros. O aumento da situação de rua é consequência direta deste processo na medida em que há um tensionamento dos postos de trabalho, alguns são empurrados para as atividades com baixíssimas recompensas materiais como a catação de lixo – trabalhos exaustivos com exploração dos fundos de vida.

IHU – O que são as “trocas sinistras”, expressão conceitual que resulta do seu trabalho de pesquisa e de sua equipe, e o que o debate traz de novo para a discussão deste problema tão sério?

Igor Rodrigues – Durante quase dez anos de pesquisa, pudemos perceber que uma das questões centrais do fenômeno está na base das relações sociais: a sociedade não tem conseguido completar ciclos de reciprocidade com as pessoas em situação de rua e vice-versa – enormes trincas nas subjetividades, destruição da autoestima, falta de confiança, expectativas e profecias negativas geram o que temos chamado de trocas sinistras.

Uma relação efetiva que promove a inclusão depende de um ciclo entre dar-receber-retribuir, porém a sociedade tem visto as pessoas em situação de rua apenas sob o fardo da assistência, sem capacidade de retribuição nas trocas sociais. Nasce assim uma forma de se relacionar sem reciprocidade: trocas sinistras são relações ambíguas, muitas vezes camufladas, que trazem um componente de eliminação, violação e perversidade. São trocas assimétricas, predatórias e frequentemente violentas, por exemplo, quando alguém para se livrar de um pedinte na mesa do bar dá uma esmola, ou seja, há proximidade física, existe contato, mas a relação se baseia na fragmentação da troca e na humilhação.

O conceito de trocas sinistras oferece uma visão alternativa para compreender a vida nas ruas, desloca o foco do indivíduo para as relações sociais e levanta a falta de confiança e a humilhação nas trocas para explicar o enguiço das políticas públicas e o aumento da situação de rua. Explica, por exemplo, e a baixa adesão às políticas, o motivo pelo qual muitas pessoas em situação de rua não aceitam, desconfiam e têm medo do Estado – questões até então pouco compreendidas pelos cientistas.

IHU – Em que sentido diversos centros de acolhimento dessas populações, ao mesmo tempo que oferecem condições sanitárias e de alimentação essenciais, por outro lado produzem rotinas humilhantes à população de rua? Como isso afeta a subjetividade dessas pessoas?

Igor Rodrigues – Poucos centros de acolhimento verdadeiramente acolhem, as rotinas humilhantes destes lugares revelam uma tensão profunda entre a oferta de cuidados essenciais e a reprodução de estruturas opressoras. O acolhimento no Brasil precisa ser reconstruído a partir de outras lógicas. Em muitos casos, essas instituições impõem regras e práticas que desconsideram a individualidade e a dignidade dos indivíduos. O controle desmedido do cotidiano, como restrições à circulação, horários fixos e imposição de comportamentos, acaba por transformar a assistência em uma troca sinistra. Por fim, as pessoas acabam por não aderir aquilo que foi, em tese, proposto para evitar a situação de desabrigo.

Pudemos ver através das pesquisas o impacto na saúde mental e emocional das pessoas em situação de rua, reforçando ciclos de vulnerabilidade e exclusão. Esses indivíduos muitas vezes internalizam os estigmas sociais, o que pode levar à perda de autoestima e de esperança. A experiência repetida de humilhação e despersonalização minam a autoestima e reforçam sentimentos de inutilidade e rejeição. Como mencionamos na pesquisa, esse esfacelamento moral é o reflexo de um sistema que reduz os indivíduos ao descarte.

IHU – Giorgio Agamben tem um conceito bastante popular chamado “homo saccer”, que se refere às pessoas que são “sacrificáveis”, que estão à margem dos direitos constitucionais. Como isso aparece na questão da população em situação de rua? Até que ponto a Constituição e o Estado os protege e ampara?

Igor Rodrigues – A população de rua é a ponta da corda, o final do processo de circulação e troca desta sociedade. Estamos diante de um fenômeno mais profundo do que parece ser. Os pesquisadores não estão entendendo a complexidade e o que a vida na rua significa do ponto geral do sistema social. Estamos falando da produção crescente do descarte humano, a sociedade acelerou em larga escala o processo de eliminação da cidadania.

São pessoas descartadas por este modelo econômico, enquanto tal, vivenciam uma total violação de direitos humanos. A sociedade cria espaços de controle e confinamento “a céu aberto”, relegando essas pessoas a um estado de marginalização que tolera e permite o massacre destes indivíduos descartados. Estamos presenciando uma série histórica de banimento na ordem dos direitos.

O Estado é uma grande incógnita para quem vive nas ruas: às vezes um ponto de assistência, de auxílio e de apoio; por outras, fonte da própria humilhação e violação, isto é, o Estado não deixa de ser um agitador das trocas sinistras. Uma parte dos que vivem nas ruas já criou uma resistência ao Estado, tem medo, não quer proximidade ou relação – esse é um outro desafio a ser rápido e urgentemente considerado.

IHU – Diante dessas encruzilhadas, como construir políticas públicas capazes de dar conta de um problema humanitário tão grave, que é a população em situação de rua?

Igor Rodrigues – Essa é uma boa definição para o momento das políticas para a situação de rua: o Brasil está na encruzilhada, precisa, em primeiro lugar, entender onde estão os equívocos, ou seja, por quais motivos as políticas, os investimentos e os serviços aumentaram e, ao mesmo tempo, o problema cresceu 1000%.  Existe uma necessidade de revisão da forma como as políticas foram desenhadas, muitas foram criadas objetivando direitos para quem vive nas ruas, mas não alcançam de fato esta população – inclusive pelo tipo de troca que permeia as relações, em suas formas sinistras, como propomos neste estudo. Entender a falta de eficácia, a não aderência, a falta de efeitos transformadores são alguns dos passos para que as políticas possam realmente apresentar resultados positivos frente ao tsunami do descarte humano.

 

Em defesa do Estado, por Martin Wolf

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Uma sociedade complexa estará melhor servida por um serviço público competente, profissional e neutro

Martin Wolf, Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

Folha de São Paulo, 18/02/2025

Sociedades civilizadas dependem de instituições. Quanto mais complexa for a sociedade, mais vitais são essas instituições. Instituições proporcionam estabilidade, previsibilidade e segurança. Empresas, escolas, universidades e tribunais são todas instituições. Mas as instituições mais importantes são as do Estado.

É por isso que o ataque de Donald Trump ao que seus apoiadores chamam erroneamente de “Estado profundo” é tão perigoso. Alguns deles acham que o Estado deve ser servil aos caprichos do grande líder. Outros acham que deve estar a serviço dos ricos. Ambos os lados concordam que sua capacidade de atender às necessidades do público em geral é de pouca importância. Essas visões são perigosas. Elas são prenúncios de autocracia, plutocracia e disfunção.

Em uma importante série de artigos, “Valuing the Deep State”, Francis Fukuyama, de Stanford, examina por que a destruição do Estado se mostrará tão destrutiva. Fukuyama dedicou grande parte das últimas duas décadas a explicar que “um Estado de alta capacidade, profissional e impessoal é crítico para o sucesso de qualquer sociedade”, incluindo notavelmente as democracias liberais modernas.

Essa visão é uma que muitos americanos abominam: eles veem o Estado —ou simplesmente “governo”— como o inimigo. Mas qualquer pessoa que tenha trabalhado em desenvolvimento econômico, como eu trabalhei, sabe que sem um serviço público competente, profissional e neutro nada na sociedade realmente funciona.

Quanto mais sofisticada e complexa uma sociedade e economia moderna se torna, mais isso é verdade. Como Fukuyama corretamente observa, o sucesso extraordinário das economias do leste asiático se deve em grande parte ao fato de que elas entenderam como administrar tal Estado muito antes do Ocidente.

Ainda mais relevante, ele argumenta que uma “democracia bem-sucedida… precisa de um Estado moderno forte, mas tem que ser um Estado que seja limitado por um Estado de direito e responsabilidade democrática”.

Nos EUA, a criação de tal Estado começou em 1883, ele argumenta, com o Ato Pendleton, que criou a Comissão de Serviço Civil e estabeleceu critérios baseados em mérito para contratação e promoção no serviço federal.

É isso que a administração Trump —ou, como o historiador Timothy Snyder a rotula, o “regime Mump”, dando o devido crédito ao papel único de Elon Musk — deseja reverter.

Como Fukuyama explica, o sistema burocrático dos EUA está longe de ser perfeito. Mas o problema não é, como argumentam os críticos de direita, o fato da delegação de decisões. Alguém imagina que decisões técnicas sobre segurança de aeronaves ou produtos farmacêuticos, controle de poluentes perigosos ou gestão de resíduos nucleares devem ser decididas, em detalhe, por legisladores?

Obviamente, decisões desse tipo têm que ser delegadas a especialistas qualificados. A noção de que deveriam ser decididas por pessoas cuja principal qualificação é a lealdade servil ao grande chefe é absurda.

A realidade é que essas “reformas” não têm nada a ver com tornar o governo mais eficiente. O objetivo é, ao contrário, tornar “Mump” todo-poderoso. O jogo foi revelado pelo próprio JD Vance, que disse que se Trump ganhasse a presidência novamente em 2024, ele deveria “demitir todos os burocratas de nível médio, todos os funcionários públicos no Estado administrativo, substituí-los por nosso pessoal… E quando os tribunais o impedirem, ficar diante do país como Andrew Jackson fez e dizer ‘o chefe de justiça fez sua decisão. Agora deixe-o aplicá-la.'”

Então, muito para a noção de que os EUA devem ser “um governo de leis, não de homens”. Isso é um golpe.

Esse esforço também não vai transformar as finanças públicas. No ano fiscal de 2025 até agora, 78% dos gastos federais são com seguridade social, saúde, defesa, segurança de renda, benefícios para veteranos e juros líquidos. Musk diz que o Doge [Departamento de Eficiência Governamental] pode economizar US$ 2 trilhões anualmente. Com gastos de US$ 6,8 trilhões no ano passado, isso parece absurdo.

Em suma, um sistema complexo não fica mais “eficiente” cortando-o aleatoriamente. Mas pode-se aterrorizar seus funcionários. Assim, os verdadeiros objetivos, como Anne Applebaum observa, são a intimidação e a substituição de verdadeiros servidores públicos por acólitos.

Os benefícios disso são claros: permitirá que aqueles no comando usem os poderes do governo para processar “inimigos”, intimidar jornalistas, espalhar mentiras, ignorar a ciência e atacar governos estaduais e municipais desobedientes, se necessário pela força.

E quanto ao Estado de direito? Vance já disse o que pensa dessa ideia. O objetivo, então, é transformar os EUA em uma ditadura plebiscitária, na qual o detentor do poder é rei. Essa revolução será compatível com eleições justas no futuro? Deve-se duvidar disso.

Afinal, muito disso será irreversível. Uma vez que a lealdade substituiu a integridade e as mentiras substituíram a verdade, será um longo caminho de volta. Assim, uma vez que você demitiu servidores públicos competentes e honestos, será fácil encontrar pessoas semelhantes no futuro? Os serviços de inteligência dos EUA, dados e análises científicas eram referências globais. Quanto disso sobreviverá? Um dos testes para emprego será se alguém abraça a mentira de que Trump venceu em 2020. Apenas fanáticos Maga devem concordar.

Se o tipo de Estado que Fukuyama elogia for substituído pelo que agora se pretende, é inevitável uma mistura venenosa de incompetência, predação e corrupção.

Entre as características prejudiciais estará o que Daniel Kaufmann, pesquisador sênior da organização sem fins lucrativos Results for Development, chama de “captura do estado” — a exploração do poder por aqueles que são capazes não apenas de dobrar, mas de criar regras para seu próprio benefício.

Para um país de alta renda, os EUA já estão relativamente capturados. Mas está prestes a piorar agora que as regras que protegem a independência dos servidores públicos estão prestes a acabar.

O que está acontecendo é destruição, não reforma. Seja o que for que tenham sido informados, os americanos comuns não se beneficiarão do caos. Mas sabemos quem se beneficiará.

 

Capitalismo sem rivais, por Fernando Nogueira da Costa

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Fernando Nogueira da Costa – A Terra é Redonda – 10/02/2025

Comentário sobre o livro de Branko Milanović

Capitalismo sem rivais discute as vantagens e desvantagens do capitalismo político em comparação com o capitalismo liberal. Analisa-os como dois modelos distintos competidores no cenário mundial de economia globalizada.

O capitalismo político promete uma gestão mais eficiente da economia e taxas de crescimento econômico mais altas: o objetivo principal. O sistema centralizado, segundo Branko Milanović, supera obstáculos legais e técnicos criadores de dificuldades para o crescimento em países mais democráticos.

Esse sistema tem autonomia no trato legal, permitindo as decisões serem tomadas sem as restrições impostas por um sistema de leis rígido. Essa característica pode agilizar a tomada de decisões e a implementação de políticas. Alcança um crescimento econômico mais rápido ao evitar longas deliberações parlamentares sobre políticas públicas, inclusive sabotagens contra o gasto público.

O capitalismo político tende a priorizar o desenvolvimento de infraestruturas, como estradas e ferrovias com trem-bala, além das urbanas com construção de cidades e moradias. Melhoram a qualidade de vida da população.

O capitalismo político é atraente para as elites políticas de outros países, pois oferece maior autonomia e menos restrições para acessar o imenso mercado interno chinês. Torna-se atrativo também para muitas pessoas comuns devido às altas taxas de crescimento de oportunidades profissionais e renda.

Segundo Branko Milanović, o modelo chinês, em particular, segue um caminho de desenvolvimento semelhante ao considerado “natural” do mercado por Adam Smith. Nele, o Estado mantém autonomia de investimento público e planejamento indicativo sem refrear a iniciativa privada.

Entre as desvantagens do capitalismo político, uma das principais desvantagens é a falta de mecanismos democráticos de controle. A ausência de um sistema de consulta eleitoral periódica à população leva à permanência decisões possíveis de ser prejudiciais ao bem-estar dos cidadãos.

O sistema centralizado tem maior tendência a gerar políticas públicas ruins e resultados sociais negativos. Não possui um mecanismo democrático para reverter decisões erradas.

A corrupção sistêmica é endêmica no capitalismo político devido ao poder discricionário da burocracia e à ausência de um império da lei. O uso do poder político para ganhos financeiros, inclusive pessoais, é uma característica central desse modelo. A corrupção, se não é controlada, mina a capacidade de crescimento e a legitimidade do sistema.

A lei é aplicada de forma seletiva a la Maquiavel: “aos amigos os favores, aos inimigos a lei”. A burocracia, esperada ser tecnocrática e eficiente, atua com arbitrariedade na aplicação das regras.

O sistema centralizado pode levar ao aumento da desigualdade e da corrupção. O poder discricionário da burocracia pode ser usado para ganhos pessoais.

Ele precisa constantemente demonstrar sua superioridade através de altas taxas de crescimento. Se o crescimento não for constante, a legitimidade do sistema arrisca-se a ser questionada.

A ausência de controles democráticos dificulta a mudança de direção caso escolhas erradas sejam feitas. O modelo de capitalismo político é frágil, se depende de se apresentar como “o socialismo com características chinesas” é difícil de ser transplantado para outros países.

Uma das dificuldades do sistema é separar política de economia, devido ao papel central do Estado na economia. É difícil manter uma burocracia centralizada não corrupta de modo a tomar decisões em prol dos interesses nacionais.

Por sua vez, a principal vantagem do capitalismo liberal é apresentada por seu pressuposto sistema político democrático, considerado um “bem primário”. A democracia eleitoral permitiria uma correção das tendências econômicas e sociais possíveis de prejudicar o bem-estar dos cidadãos. A consulta periódica à população sobre novos representantes reverteria decisões, caso estejam conduzindo a resultados negativos, ao longo do tempo.

No capitalismo liberal, é pressuposto ele ter menos problemas com corrupção em comparação com o capitalismo político. Existe maior respeito ao império da lei.

A democracia e o Estado de Direito promovem a inovação e a mobilidade social. Em princípio, o sistema promoveria oportunidades de sucesso iguais para todos.

Entretanto, o capitalismo liberal moderno, especialmente em sua forma meritocrática, gera desigualdade devido à concentração de renda e riqueza, à influência política dos ricos e à transmissão intergeracional de vantagens. Impõe-se um separatismo social: os ricos optam por sistemas privados de saúde e educação e isso reduz o impacto da redistribuição de renda.

A influência política dos ricos via financiamento eleitoral e controle midiático leva à criação de políticas para os beneficiar, exclusivamente, em detrimento do restante da população. A necessidade de consulta eleitoral periódica à população reduz a eficiência na tomada de decisões econômicas.

Em comparação direta, realizada por Branko Milanović, o capitalismo liberal tem a vantagem de ser um sistema democrático. Em tese, permite uma maior correção de problemas econômicos e sociais, enquanto o capitalismo político se destaca pela eficiência e pelo crescimento rápido.

Enquanto o capitalismo liberal tem como vantagem a prevalência do Estado de direito e da igualdade de oportunidades, o capitalismo político se destaca pela autonomia burocrática ou arbitrariedade no trato legal. Este tem maior tendência à corrupção e à dificuldade de mudar de rumo, enquanto aquele tende a gerar desigualdade e influência política dos ricos.

Não é possível uma escolha popular entre capitalismo político e liberal, ou seja, haver um trade-off entre eficiência e democracia, igualdade e crescimento, a estabilidade do sistema e a capacidade de adaptação às necessidades dos cidadãos. O capitalismo político precisa provar constantemente sua superioridade econômica diante as vantagens democráticas do capitalismo liberal mais intrínsecas ao sistema.

Entretanto, a globalização leva às trocas entre as duas variantes de capitalismo. Tem um impacto profundo na mobilidade do capital e do trabalho e altera as dinâmicas econômicas e sociais em escala mundial.

A globalização permitiu a criação de Cadeias globais de valor, onde diferentes etapas da produção são realizadas em diferentes países. Isso é possível graças aos avanços tecnológicos, na comunicação e coordenação, e à proteção global dos direitos de propriedade.

As Cadeias globais de valor permitiram separar a produção física da gestão e controle. Possibilitou empresas de países desenvolvidos controlarem a produção em outros países, onde os custos de produção são menores. Investidores institucionais atuam indiretamente, via participações acionárias em empresas transnacionais, na regulação da globalização pelo mercado de ações, inclusive em bolsa de valores distante do local do investimento direto.

A globalização impulsiona o movimento de capital para além das fronteiras nacionais, com investimentos de empresas em outros países para aproveitar oportunidades de lucro. Esse movimento de capital busca maiores retornos e, ao mesmo tempo, acelera o desenvolvimento econômico em países mais pobres.

A proteção global dos direitos de propriedade é crucial para a mobilidade do capital, garantindo os investimentos estrangeiros estarem seguros contra abusos ou nacionalizações. Instituições como o FMI e acordos bilaterais de investimento ajudam a garantir essa proteção.

Com a globalização, a renda necessária para sustentar os benefícios da cidadania pode ser deslocalizada. Parte da renda de um país é gerada fora de suas fronteiras e retorna por meio de lucros sobre o capital investido no exterior.

A mobilidade do capital e a do trabalho são vistas como movimentos capazes de se equilibrarem em longo prazo. O fluxo de capital para países pobres ajudaria a reduzir as diferenças de renda e, consequentemente, a motivação para emigrar. O movimento do capital para países pobres, através das Cadeias globais de valor, acabaria por corroer, em longo prazo, os “prêmios por cidadania” motivadores da migração.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP)

 

O endurecimento nacionalista, por Thomas Piketty

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Thomas Piketty – A Terra é Redonda, 18/02/2025

O nacional-capitalismo trumpista gosta de ostentar sua força, mas, na verdade, é frágil e está em apuros

Para aqueles que tinham dúvidas, Donald Trump ao menos tem o mérito de deixar as coisas claras: a direita existe e fala alto. Como tantas vezes no passado, ela assume a forma de uma mistura de nacionalismo brutal, conservadorismo social e liberalismo econômico desenfreado. O trumpismo pode ser descrito como nacional-liberalismo ou, mais precisamente, nacional-capitalismo.

A retórica de Donald Trump sobre a Groenlândia e o Panamá mostram seu apego ao capitalismo autoritário e extrativista mais agressivo, que é basicamente a forma real e concreta que mais frequentemente assumiu o liberalismo econômico na história, como Arnaud Orain acaba de nos lembrar em Le monde confisqué. Essai sur le capitalisme de la finitudeXVIe-XXIe siècle.

Sejamos claros: o nacional-capitalismo trumpista gosta de ostentar sua força, mas, na verdade, é frágil e está em apuros. A Europa tem os meios para enfrentá-lo, desde que recupere a confiança em si mesma, estabeleça novas alianças e analise calmamente as vantagens e os limites desta matriz ideológica.

A Europa está bem colocada para isso: durante muito tempo, baseou seu desenvolvimento num modelo militar-extrativista semelhante, para o bem e para o mal. Depois de terem tomado pela força o controle das rotas marítimas, das matérias-primas e dos mercados têxteis mundiais, as potências europeias impuseram, ao longo do século XIX, tributos coloniais a todos os países recalcitrantes, do Haiti à China, passando pelo Marrocos.

Na véspera de 1914, elas estavam empenhadas numa luta feroz pelo controle de territórios, de recursos e do capitalismo mundial. Chegaram até mesmo a impor tributos cada vez mais exorbitantes uns aos outros, a Prússia à França em 1871, depois a França à Alemanha em 1919: 132 bilhões de marcos-ouro, ou seja, mais de três anos do PIB alemão da época. Tanto como o tributo imposto ao Haiti em 1825, salvo que, desta vez, a Alemanha tinha meios para se defender. A escalada sem fim levou ao colapso do sistema e do orgulho europeu.

Esta é a primeira fraqueza do nacional-capitalismo: quando os poderes estão inflamados, acabam devorando-se uns aos outros. A segunda é que o sonho de prosperidade prometido pelo nacional-capitalismo acaba sempre desapontando as expectativas populares, pois, na verdade, ele repousa em hierarquias sociais exacerbadas e numa concentração de riquezas cada vez maior.

Se o Partido Republicano tornou-se tão nacionalista e virulento em relação ao mundo exterior, isso se deve, em primeiro lugar, ao fracasso das políticas reaganianas, que deveriam impulsionar o crescimento, mas apenas reduziram e conduziram-no à estagnação da renda da maioria. A produtividade nos Estados Unidos, medida pelo PIB por hora trabalhada, era duas vezes superior à da Europa em meados do século XX, graças à liderança educacional do país. Desde os anos 1990, ela está no mesmo nível que a dos países europeus mais avançados (Alemanha, França, Suécia e Dinamarca), com diferenças tão pequenas que não podem ser distinguidas estatisticamente.

Postura arrogante e neocolonial

Impressionados com as capitalizações das bolsas e os montantes em bilhões de dólares, alguns observadores ficam maravilhados com o poder econômico dos Estados Unidos. Esquecem-se de que essas capitalizações se explicam pelo poder de monopólio de alguns grandes grupos e, mais geralmente, de que os montantes astronômicos em dólares se devem, em grande parte, aos preços muito elevados impostos aos consumidores estadunidenses. É como se estivéssemos analisando a evolução dos salários sem considerar a inflação. Se raciocinarmos em termos de paridade do poder de compra, a realidade é muito diferente: a diferença de produtividade em relação à Europa desaparece completamente.

Esta medida mostra igualmente que o PIB da China ultrapassou o dos Estados Unidos em 2016. Atualmente, é mais de 30% superior e atingirá o dobro do PIB dos EUA em 2035. Isto tem consequências muito concretas em termos de capacidade de influenciar e financiar investimentos no Sul, especialmente se os Estados Unidos continuarem mantendo sua postura arrogante e neocolonial. A verdade é que os Estados Unidos estão à beira de perder o controle do mundo e a retórica trumpista nada mudará.

Resumamos. A força do nacional-capitalismo está em exaltar a vontade de poder e a identidade nacional, ao mesmo tempo que denuncia as ilusões dos discursos ingênuos sobre a harmonia universal e a igualdade de classes. Sua fraqueza reside na confrontação entre as potências, e em desconsiderar que uma prosperidade sustentável exige investimentos educacionais, sociais e ambientais que beneficiem todos.

Diante do trumpismo, a Europa deve, antes de tudo, manter-se ela mesma. Ninguém no continente, nem mesmo a direita nacionalista, deseja voltar às posturas militares do passado. Em vez de dedicar seus recursos a uma escalada sem fim – Donald Trump agora exige orçamentos militares de 5% do PIB –, a Europa deve basear sua influência no direito e na justiça. Com sanções financeiras específicas, realmente aplicadas a alguns milhares de dirigentes, é possível fazer ouvir a nossa voz de forma mais eficaz do que empilhando tanques em barracões.

E, acima de tudo, a Europa deve ouvir as demandas de justiça econômica, fiscal e climática que vêm do Sul. Ela deve retomar os investimentos sociais e ultrapassar definitivamente os Estados Unidos em formação e produtividade, como já fez em saúde e expectativa de vida. Depois de 1945, a Europa reconstruiu-se graças ao Estado social e à revolução social-democrata.

Este programa não está concluído: ao contrário, deve ser considerado como o início de um modelo de socialismo democrático e ecológico que deve ser pensado agora em escala mundial.

Thomas Piketty é diretor de pesquisas na École des Hautes Études en Sciences Sociales e professor na Paris School of Economics. Autor, entre outros livros, de O capital no século XXI (Intrinseca).

 

O Papa Francisco e a esperança, por Dora Incontri

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Ele trouxe a esperança de renovação religiosa e política, com seu exemplo, com suas ideias e com sua forma única de exercer o papado.

por Dora Incontri – GGN – 19/02/2025.

Não quero de forma alguma caracterizar esse texto como um tributo que anuncia a morte de uma grande liderança mundial, o Papa Francisco, que de fato apresenta por esses dias um estado delicado de saúde. Ele está internado com pneumonia dupla. Quero, queremos muitos, que consiga superar esse momento, porque precisamos de sua presença no mundo.

É que estou quase terminando a leitura de seu livro Esperança, a autobiografia. Minha apreciação já começa com o título peculiar. Significativo que o subtítulo é a autobiografia, como se sua vida fosse uma nota de rodapé, submetida ao compromisso da esperança, um ensaio constante de esperançar – para usar um verbo caro a Paulo Freire.

É verdade que a vida de Giorgio Bergoglio trouxe por si mesma a esperança de renovação religiosa e política, com seu exemplo, com suas ideias e finalmente com sua forma única, simples e transformadora de exercer o papado. Lembremos que a instituição do papado levou à divisão da Igreja do Ocidente e do Oriente, provocou a ruptura da Reforma protestante e representou ao longo da história um lugar de poder desmedido, de imposições e perseguições, de corrupção e luxúria. O anarquista e espírita Maurice Lachâtre se deu ao trabalho, no século XIX, de escrever milhares de páginas de horrores em seu livro Crimes e história dos Papas.

No início deste século XXI, a Igreja tinha atravessado o retrocesso de Papas conservadores (João Paulo II e Bento XVI), quando surge a figura leve, aberta, amorosa e simples do Papa Francisco, um papa que transpôs os limites da Igreja Católica, para ser amado e admirado por pessoas de outras religiões ou mesmo sem religião. Prova disso é que estou aqui escrevendo esse texto em sua homenagem, sendo espírita kardecista, e, portanto, completamente desconectada da tradição do papado.

Giorgio chegou ao Vaticano e já evocou o que houve de mais luminoso e autenticamente cristão em toda a história da Igreja Católica: Francisco de Assis. Sendo jesuíta, mas tendo adotado o nome de Papa Francisco, (pela primeira vez na história da Igreja) já anunciava que seu compromisso seria de despojamento, de renúncia ao culto pessoal, de conexão com a natureza, de compaixão para com todos os excluídos e de disposição de diálogo com religiosos de todos os matizes e não religiosos de todos os rincões.

Começou por abolir os rituais de submissão pessoal: beija-mão, ajoelhar-se diante dele, tapete vermelho, vestimenta de púrpura, assento em trono, moradia em palácio.… Simplificou tudo, despojou-se de formalismos, como convém a alguém que esteja inspirado pelo exemplo de Francisco de Assis.

Depois, partiu para o diálogo com o mundo. Abriu-se para lideranças religiosas e políticas de todo o planeta, procurando estabelecer vínculos fraternos, cheios de respeito e proposta de cooperação universal, para salvar a Terra, para acabar com a guerra, para proteger os vulneráveis.

A sua história de vida, tão saborosamente retratada nesta Autobiografia, explica muito de sua postura humana e humanista. É de uma família de imigrantes italianos, por todos os lados (aliás como a minha, e essa ressonância produz intensas emoções nesta leitura). As circunstâncias da imigração e as lutas intensas semelhantes na Argentina e no Brasil, nas primeiras décadas do século XX deixaram nele marcas profundas. O interessante que, ao contrário de muitos italianos que já estavam radicados por aqui quando da ascensão do fascismo e, de longe, aderiram entusiasticamente ao Duce, a família de Bergoglio saiu da Itália em oposição a essa tomada de poder pela extrema direita. O menino foi criado de maneira simples, pobre, num catolicismo popular, mas com espírito crítico. Essa sua ascendência fez dele um defensor engajado dos refugiados, dos imigrantes, dos que enfrentam a fuga das guerras, da fome, das violências políticas, com tanta resistência de acolhimento por parte dos países mais ricos.

O que transparece na obra toda em que narra a sua vida é a profunda conexão com o mundo e seus problemas, com o momento histórico e suas tragédias globais. Isso vem também de sua inserção cultural. Leitor de boa literatura, amante da música, ligado ao cinema de arte – ou seja, uma erudição que não é apenas teológica, fechada em fontes religiosas – mostra que a arte é transformadora e formadora de pessoas engajadas no mundo.

Suas duas encíclicas, diretamente inspiradas em Francisco de Assis, Laudato si’ (2015) e Frattelli Tutti (2020) são obras-primas de defesa da vida, da natureza, de todos os povos e pessoas excluídas e marginalizadas. São apelos ao cuidado com o planeta e ao cuidado com o outro. E já no início da Frattelli Tutti, o Papa alude ao seu diálogo com uma liderança muçulmana, o Imã Ahmad Al-Tayyeb, lembrando da visita que Francisco de Assis fez ao Sultão Malik-al-Kamil, no Egito, em plena vigência das Cruzadas.

A sua atitude de abertura não se manifestou, nestes anos todos, apenas em relação ao diálogo com o outro, mas nas reformas que conseguiu implementar dentro da própria Igreja. Herdeiro da Teologia da Libertação, como bom latino-americano, que enfrentou na Argentina os horrores da ditadura militar, soube trazer temas absolutamente urgentes: o acolhimento aos homossexuais, o combate ao abuso sexual dentro da Igreja, a maior inserção das mulheres – isso tudo apesar da resistência brutal que tem enfrentado dos mais conservadores e dos fundamentalistas, que não faltam em qualquer religião nos dias de hoje.

Mas Francisco afirma em seu livro: “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e suja por ter saído pelas ruas a uma Igreja asfixiada e doente pela clausura e pela conveniência de se agarrar às próprias certezas”.

Esperemos que suas sementes frutifiquem, que venham outros papas que continuem a sua obra, quando ele se for, e que não assistamos a retrocessos tristes, em consonância com os retrocessos mundiais.

Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.

 

E se a imigração for a solução? por Lorena Hakak

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A questão cultural ganha força nos discursos dos políticos anti-imigração

Lorena Hakak, Doutora em economia e professora da FGV. Atua como presidente da GeFam (Sociedade de Economia da Família e do Gênero)

Folha de São Paulo, 18/02/2025

Muitos de nós, brasileiros, temos histórias para contar sobre como nossas famílias chegaram aqui. O Brasil é um país formado por diversas ondas de migração. Ao longo dos séculos, pessoas de diferentes partes do mundo buscaram refúgio aqui, fugindo da fome, de guerras, perseguições, catástrofes ambientais e pobreza, em busca de uma vida melhor e mais digna. Além disso, é fundamental ressaltar que milhões de africanos foram trazidos à força durante séculos e, apesar das condições brutais, permaneceram e contribuíram para a formação do país.

Se a imigração moldou diversos países, por que observamos um discurso anti-imigração? Os determinantes das atitudes de parte dos nativos em relação à imigração podem estar associados a questões econômicas, culturais ou de criminalidade. Segundo o artigo “The Political Effects of Immigration: Culture or Economics”, de Alberto Alesina e Marco Tabellini, o medo que assombra os nativos está na possibilidade de os imigrantes “roubarem” seus empregos ou reduzirem seus salários.

No entanto, os autores mostram que grande parte da literatura sobre os efeitos da imigração no mercado de trabalho não encontra impacto negativo significativo ou identifica até mesmo um efeito positivo. Mesmo quando há um impacto negativo, ele tende a ser de curta duração e concentrado entre trabalhadores com menor escolaridade. Outro receio associado à imigração é o possível aumento dos gastos públicos e a sobrecarga nos sistemas educacional e de saúde. No entanto, esses mesmos imigrantes também contribuem para a economia, aumentando a produtividade e gerando renda, o que, por sua vez, resulta em impostos para financiar os gastos do governo.

A questão cultural ganha força nos discursos dos políticos anti-imigração, especialmente quando determinados grupos apresentam diferenças culturais em relação ao país hospedeiro. Há um receio por parte da população local que esses grupos não iriam se assimilar. Em geral, um maior contato entre grupos, e uma menor segregação, poderiam ajudar a diminuir preconceitos e estereótipos negativos. Por fim, há a questão da violência. As evidências indicam que, em geral, os imigrantes não contribuem para o aumento da criminalidade nos países que os recebem, principalmente considerando crimes violentos. Muitas vezes os imigrantes são as vítimas da violência.

No início do século 20, os estrangeiros representavam aproximadamente 6% da população brasileira. Hoje, essa proporção é muito menor. Segundo dados das Nações Unidas, a proporção de imigrantes no Brasil era de 0,4% em 2000 e subiu para 0,7% da população em 2024. Esse aumento provavelmente está ligado às recentes ondas migratórias observadas no país.

O Brasil recebeu milhares de venezuelanos e haitianos, e já não é incomum encontrá-los, por exemplo, na cidade de São Paulo ocupando postos de trabalho formal. Porém, o país tem potencial para atrair muito mais. Para se tornar um destino mais atrativo, é essencial melhorar as taxas de crescimento econômico. Novas ondas migratórias oxigenam a economia, pois os imigrantes chegam com vontade de vencer e muitos se tornam empreendedores. Em média, eles assumem mais riscos. Além disso, contribuem para mitigar os efeitos da queda da taxa de fecundidade sobre a economia, que, como mencionei na coluna “Porque estão faltando bebês?”, continua em declínio no Brasil. A sociedade poderia —e deveria— fazer um esforço para atrair novos fluxos migratórios.

 

Mazzucato: “Salvemos a IA das Big Techs”

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Assim como capturaram a internet, megacorporações querem submeter a inteligência artificial a seus negócios. Em contra-ataque, Estados e sociedades devem definir o que querem da nova tecnologia – antes que o mercado o faça…

Mariana Mazzucato, Economista Italiana, professora da cátedra RM Phillips de Ciência e Tecnologia da Universidade de Sussex.

OUTRAS PALAVRAS, 18/02/2025

A Cúpula de Ação em Inteligência Artificial (IA) em Paris, no início deste mês, ocorreu em um momento crítico no desenvolvimento IA. A questão não é se a Europa pode competir com a China e os Estados Unidos em uma corrida armamentista em torno desta tecnologia; é se os europeus podem abrir uma abordagem diferente, que coloque o valor público no centro do desenvolvimento tecnológico e da governança. A tarefa é se afastar do feudalismo digital, termo que criei em 2019 para descrever o modelo de extração de renda das plataformas digitais dominantes.

A IA não é simplesmente mais um setor. É uma tecnologia de propósito geral que moldará todos os setores da economia. Ela pode gerar benefícios tremendos ou causar enormes danos. Embora muitos comentaristas falem sobre a IA como se fosse uma tecnologia neutra, isso subestima seu poder econômico fundamental. Mesmo que a construção da IA não tivesse custos, ela precisaria ser alimentada e implantada, o que requer acesso às plataformas de computação em nuvem dos gatekeepers, como Amazon Web Services, Microsoft Azure e Google Cloud.
Essa dependência torna mais urgente do que nunca direcionar o desenvolvimento da tecnologia para o bem comum. A verdadeira questão não é se devemos regular a IA, mas como moldar os mercados para a inovação em IA. Em vez de regular ou tributar o setor apenas após os fatos, precisamos criar um ecossistema de inovação descentralizado que sirva ao bem público.

A história da inovação tecnológica mostra o que está em jogo. Como argumentei em meu livro O Estado Empreendedor, muitas das tecnologias que usamos todos os dias surgiram como resultado de investimentos públicos coletivos.
O que seria o Google sem a internet financiada pelo Darpa1? O que seria o Uber sem o GPS financiado pela Marinha dos EUA? O que seria a Apple sem a tecnologia de tela sensível ao toque financiada pela CIA e a Siri financiada pela Darpa?

Embora frequentemente evitem contribuir com impostos, as empresas que lucraram com esses investimentos públicos agora usam suas rendas excessivas para drenar talentos das próprias instituições públicas que tornaram seu sucesso possível. Esse parasitismo é melhor exemplificado pelo “Departamento de Eficiência do Governo” (DOGE) de Elon Musk, que defende cortes nos mesmos programas de financiamento governamental que permitiram à Tesla se beneficiar de 4,9 bilhões de dólares em subsídios governamentais.

A falta de capacidade do Estado tornará cada vez mais difícil regular novas tecnologias no interesse público. O Estado já foi esvaziado de expertise, devido aos salários mais altos do setor privado e décadas de terceirização para consultores privados (o que Rosie Collington e eu chamamos de O Grande Golpe).

O que acontece quando a maior parte do conhecimento técnico se concentra em cinco empresas privadas?

Em vez de esperar para descobrir, devemos intervir agora para regular a IA de forma dinâmica e adaptável, enquanto a tecnologia de IA e os diversos mecanismos de sua monetização ainda estão evoluindo.

Em um projeto de pesquisa recente no Instituto de Inovação e Propósito Público da Univertity College de Londres, meus colegas e eu revisitamos o feudalismo digital e a necessidade de diferenciar entre criação e extração de valor na IA – o que chamamos de “renta de algoritmos”. Mostramos que plataformas como Facebook e Google evoluíram de maneiras que focam em “rentas de atenção”. À medida que a experiência do usuário é manipulada para maximizar os lucros, seus feeds são entupidos de anúncios e conteúdos “recomendados” viciantes, em um processo que o jornalista canadense Cory Doctorow descreveu de forma colorida como “emerdificação”.
Rolagem infinita, notificações incessantes e algoritmos projetados para maximizar o “engajamento” exibindo conteúdo prejudicial e atividades limítrofes à ilegalidade tornaram-se a norma.

Os sistemas de IA podem seguir o mesmo caminho extrativo e potencializar esse comportamento de busca por renta, como exigir pagamento para acesso a informações essenciais, privacidade de dados, segurança online, exclusão de publicidade ou serviços básicas para pequenas empresas em buscas globais de informações. Como as plataformas atualmente escondem seus algoritmos e mecanismos de alocação de atenção (as fontes de suas “rentas de atenção algorítmica”), a chave para regular o setor, assim como no enfrentamento das mudanças climáticas, é forçar os gigantes digitais a divulgar como seus algoritmos estão sendo usados. Essas informações devem então ser integradas aos padrões de relatórios para todas as plataformas digitais.

Desenvolvedores de IA como OpenAI e Anthropic escondem, entre outras coisas, as fontes de seus dados de treinamento; quais salvaguardas colocaram em seus modelos; como aplicam seus termos de serviço; os danos posteriores de seus produtos (como uso viciante e acesso de menores de idade); e até que ponto suas plataformas estão sendo usadas para monetizar a atenção global por meio de publicidade direcionada. O grande e crescente impacto ambiental da IA adiciona mais uma camada de urgência ao desafio. As emissões das principais empresas de IA dispararam, levando a Agência Internacional de Energia (AIE) a alertar que o “consumo global de eletricidade de data centers, IA e o setor de criptomoedas pode dobrar até 2026”.

Felizmente, desenvolvimentos recentes sugerem que caminhos alternativos são possíveis.

A DeepSeek, empresa chinesa de IA que fez muitas ações de tecnologia dos EUA sofreram perdas abruptas no final de janeiro, parece ter demonstrado que um desempenho comparável pode ser alcançado com significativamente menos poder de computação e consumo de energia.

Abordagens mais eficientes para o desenvolvimento de IA poderiam ajudar a quebrar o domínio que as principais empresas de computação em nuvem estabeleceram por meio de seu controle sobre vastos recursos de computação?

Embora seja cedo para dizer se o avanço da DeepSeek levará a uma reestruturação do setor, isso nos lembra que a inovação no nível de software continua viável e necessária para abordar o impacto ambiental da IA.

Como Gabriela Ramos da UNESCO e eu argumentamos, a IA pode melhorar nossas vidas de muitas maneiras, desde melhorar a produção de alimentos até aumentar a resiliência contra desastres naturais. Governantes europeus, de Mario Draghi a Ursula von der Leyen e Christine Lagarde, consideram a IA crucial para reviver a produtividade europeia. Mas, a menos que abordem a natureza do feudalismo digital, o comportamento extrativo que sustenta o desenvolvimento de modelos de IA e a atual falta de capacidade regulatória no setor público, qualquer tentativa de estimular um crescimento mais robusto e sustentável se chocará contra as rochas de novas e mais profundas desigualdades.

Não se trata de escolher entre inovação e regulamentação, nem se trata de gerenciar o desenvolvimento tecnológico de cima para baixo. Trata-se de criar incentivos e condições para direcionar os mercados a entregar os resultados que desejamos como sociedade. Devemos reivindicar a IA para que ela forneça valor público, em vez de se tornar outra máquina de extração de renda. A Cúpula de Paris oferece uma oportunidade para mostrar essa visão alternativa.

1 Agência para Projetos de Pesquisa Avançada em Defesa (DARPA, na sigla em inglês) dos Estados Unidos. Criada no contexto da guerra fria (em 1958), para disputa da corrida nuclear, acabou desenvolvendo os protocolos que levariam à criação da internet

Desafios

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Vivemos num momento marcado por muitas transformações interessantes, um período de grandes alterações estruturais na sociedade internacional, com impactos para todas as nações, alterações organizacionais, com modificações comportamentais dos indivíduos, demandas crescentes dos consumidores e mudanças gigantescas no mundo do trabalho, exigindo atualizações constantes, capacitações cotidianas e qualificações emocionais e espirituais.

Neste momento, percebemos o crescimento dos conflitos militares e investimentos crescentes na indústria bélica, onde regiões inteiras estão reservando recursos orçamentários, recursos estes inexistentes, para investirem na indústria da defesa, deslocando bilhões de recursos para a segurança e deixando levas gigantescas de trabalhadores e cidadãos sem recursos materiais, sem infraestrutura, sem saúde pública, sem educação e sem dignidade, com isso, percebemos os burburinhos na sociedade, medos e desesperanças crescentes.

Neste cenário de grandes desafios, percebemos que as nações estão envoltas em desequilíbrios fiscais e financeiros, levando a classe política a perderem credibilidade, gerando o crescimento de grupos e setores políticos que defendem rupturas abruptas na estrutura política como forma de resolver os grandes desafios da sociedade contemporânea, desta forma, percebemos o surgimento de variados confrontos nas mais variadas regiões do mundo.

No Brasil, percebemos inúmeros desafios e oportunidades, ainda mais num momento como este, onde as nações estão envoltas em preocupações políticas e desequilíbrios econômicos, exigindo, internamente, variadas escolhas imprescindíveis, atacando as heranças milenares, os variados privilégios arraigados e uma grande gama de atrasos históricos que se fazem presentes em todas as épocas e lugares, além de perpetuarem as desigualdades conhecidas e pouco atacadas pelos donos do poder.

Neste ambiente de confrontos comerciais e retóricas agressivas, o Brasil precisa se preparar para as grandes transformações econômicas e geopolíticas em curso na sociedade global, com isso, faz-se necessário escolher um caminho seguro, inclusivo e transparente, evitando alinhamentos automáticos com nações em confronto, sabendo que temos limitações tecnológicas, fragilidades produtivas e dependência de países mais avançados e detentores de conhecimentos que pouco dominamos.

Diante destes desafios, o Brasil precisa construir novos consensos políticos, deixando de lado conversas desnecessárias e pouco produtivas que pululam na mídia corporativa e nos parlamentos, precisamos discutir as oportunidades que se abrem nos confrontos hegemônicos que se apresentam na sociedade global, investindo maciçamente em educação de qualidade, valorizando os cientistas e pesquisadores nacionais, fortalecendo as instituições de fomento e utilizando as compras governamentais como um claro instrumento de fortalecimento da estrutura nacional, precisamos valorizar nossos sistemas produtivos e exigir dos investidores internacionais, as fundamentais e imprescindíveis, transferências de tecnologias, instrumentos adotados para as nações que conseguiram dar saltos de produtividade, aumentando o crescimento econômico, o bem-estar da população e as transformações nas estruturas produtivas, gerenciais e comerciais.

Os desafios são enormes para nações como o Brasil, com sua herança de pilhagem, de escravidão, de baixo salário e de desigualdades crescentes, afinal, somos uma das dez maiores economias do mundo, mesmo assim, possuímos mais de 50 milhões de cidadãos que não possuem saneamento básico, mais de 40 milhões de trabalhadores que sobrevivem na informalidade, milhões de crianças vivendo na indignidade, milhões de lares vivendo na escuridão e, mesmo assim, os discursos dominantes nos meios de comunicação são pouco condizentes com a realidade da população.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Modificações na família contemporânea, por Fernando Nogueira da Costa

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Fernando Nogueira da Costa

A Terra é Redonda, 17/02/2-25

Diminuição da utilidade da família pela atomização e comoditização

A “atomização”, segundo Branko Milanovic, no livro Capitalismo sem rivais, se refere ao fato de as famílias terem perdido em grande medida sua vantagem econômica, pois um número crescente de bens e serviços antes produzidos em casa, fora do mercado e não sujeitos a troca pecuniária pode agora ser comprado ou alugado no mercado. Atividades como preparar comida, limpar, fazer jardinagem e cuidar de bebês, idosos e doentes eram fornecidas “gratuitamente” em casa nas sociedades tradicionais, caso a famílias não fosse muito rica.

Essa era uma das principais razões econômicas da existência do casamento: divisão de trabalho no casal para aumento da “produtividade familiar”. Viver junto “internaliza” essas atividades (cozinhar, limpar etc.) e proporciona economia de escala em tudo, do abastecimento à eletricidade.

Porém, com o aumento da riqueza, quase todos esses serviços podem ser adquiridos fora de casa e há cada vez menos necessidade de compartilhar a vida com outras pessoas. Por isso – e pelo ingresso das mulheres no mercado de trabalho –, as sociedades contemporâneas (exceto na África) tendem a um tamanho de família mínimo.

Todas as atividades domésticas podem agora ser terceirizadas. De acordo com a conclusão distópica de Branko Milanovic, o mundo consistiria em indivíduos vivendo e trabalhando sozinhos (exceto quando cuidam de crianças), sem terem vínculos ou relações permanentes com outras pessoas, e cujas necessidades seriam supridas pelos mercados.

A atomização, levada ao extremo, implica no fim da família. Também é acelerada pelas crescentes intrusões legais na vida familiar quando as regras existentes dentro das famílias são diferentes das em vigor fora delas.

Muitas têm o objetivo de minimizar o contato com quem não é membro da família. Essa separação radical entre quem é e quem não é da família era uma característica encontrada na maioria das sociedades do mundo até recentemente, espécie de compartilhamento baseado na exclusão.

O modelo mercantilizado de hoje permite ao mundo externo invadir a casa não só na forma de entrega de refeições e serviços de limpeza, mas também na forma de intrusão legal. Essas invasões – como os acordos pré-nupciais e a capacidade dos tribunais de afastar filhos e controlar o comportamento dos cônjuges –, embora em muitos casos sejam desejáveis, como na prevenção de abusos de cônjuges, esvaziam ainda mais o pacto interno tácito mantenedor das famílias unidas.

O “código legal” interno da família é terceirizado para a sociedade como um todo. Levanta a questão: qual é a vantagem da existência da família ou da coabitação em um mundo rico e comercializado, onde todos os serviços podem ser adquiridos?

O uso de mão de obra assalariada vinda de fora de casa faz parte de um modo de produção capitalista típico, com uma nítida distinção entre a produção e as esferas familiares – distinção fundamental para definir o capitalismo. O novo capitalismo hipermercantilizado unifica a produção e a família, mas o faz por incorporar a família ao modo de produção capitalista.

O capitalismo avança para “conquistar” novas esferas e “comoditizar” novos bens e serviços. Esse estágio de comercializar e/ou negociar por completo todas as relações pessoais tradicionalmente deixadas de fora do mercado implica melhorias substanciais na produtividade do trabalho.

A contrapartida da atomização é a comoditização. Na atomização, ficamos sozinhos porque todas as nossas necessidades podem ser satisfeitas pelo comprado de outras pessoas no mercado. Em plena comoditização, nos tornamos esse outro: satisfazemos as necessidades das pessoas por meio da comoditização de nossos ativos, inclusive de nosso tempo livre.

Enquanto consumidores, adquirimos a capacidade de comprar atividades antes fornecidas em espécie pela família. Enquanto produtores, o capitalismo também oferece um amplo campo de atividades possíveis de fornecermos aos outros. Desse modo, atomização e comoditização andam juntas.

A culinária tornou-se terceirizada e as famílias não costumam fazer todas as refeições juntas. Limpeza, reparos, jardinagem e criação dos filhos se tornaram mais comercializados e deixaram de ser “deveres de casa”.

O crescimento da gig economy – mercado de trabalho “sob demanda” ou de “bicos” com trabalhadores temporários e sem vínculo empregatício com empresas contratantes para serviços pontuais – comercializa nosso tempo livre, inclusive coisas possuídas, mas nunca usadas antes para fins comerciais. Agora, qualquer pessoa com algum tempo livre pode “vendê-lo”, por exemplo, ao trabalhar para uma empresa de compartilhamento de carona ou entrega de compras à distância.

Um carro particular era “capital morto” e agora se torna capital vivo se usado como “táxi” para empresas a Uber. Manter o carro ocioso na garagem passou a ter um custo de oportunidade.

Da mesma forma, casas no passado emprestadas por uma semana sem compensação para familiares e amigos agora se tornaram bens alugados para viajantes. Esses bens passam a ser mercadorias e adquirem um preço de mercado.

Não os usar é um claro desperdício de recursos pelo custo de oportunidade. Somos levados a pensar nessas atividades como bens ou serviços comerciais.

Novos mercados surgiram quando os bens tradicionalmente produzidos pelas famílias começaram a ser produzidos pela indústria e comercializados com uma produtividade muito maior na economia de escala com linhas de montagem. Hoje, em relação à comoditização dos serviços trata-se exatamente do mesmo processo.

Os serviços pessoais são mais difíceis de comoditizar porque os aumentos de produtividade são mais difíceis por definição: serviço exige o encontro direto do produtor com o consumidor. Logo, os ganhos da divisão do trabalho são menores.

Para Branko Milanovic, a comoditização do antes não comercial tende a fazer as pessoas realizarem muitos trabalhos diversos. Até, como no caso do aluguel de apartamentos ou casas, tende a transformá-las em “capitalistas” no seu dia a dia.

O tipo de trabalho emergente no século XXI não é o tipo considerado desejável por Max Weber porque falta ao trabalhador um senso de vocação ou a dedicação a uma profissão. Carece do caráter sistemático e metódico.

Os trabalhadores sem quaisquer características pessoais se tornam, do ponto de vista dos patrões, “agentes” totalmente intercambiáveis. Para Branko Milanovic, esses três eventos estão inter-relacionados: (i) mudança na formação da família (atomização), (ii) expansão da comoditização para novas atividades e (iii) mercados de trabalho totalmente flexíveis com ocupações temporárias.

Se ficam no mesmo trabalho por um longo período, os indivíduos tentam estabelecer relações de confiança com as pessoas com quem sempre interagem. Eles se envolvem no chamado de “jogos repetidos” com empatia e simpatia.

Quando aparecem novas pessoas lhe tratando como um completo estranho, você não tem muito incentivo para se comportar com “simpatia” e enviar sinais de comportamento cooperativo porque essas novas pessoas também se mudarão em breve. Investir em ser simpático é esforço necessário se justificado pela expectativa de essa simpatia ser retribuída adiante.

A avaliação profissional passa a ser se ele apresenta alguma “simpatia”, apesar da falta de relacionamentos duradouros. Por qual razão mudamos nosso comportamento quando nossas interações são comoditizadas? Porque somos reduzidos à função econômica, porque ser simpático é um investimento, porque a lógica de ser simpático vai além da lógica de mercado…

A disseminação da comoditização acaba com a alienação. A ordem das coisas é internalizada de tal maneira a ponto de não haver mais nada sem “precificação”.

A crescente comoditização de muitas atividades, a ascensão da gig economy e de um mercado de trabalho radicalmente flexível fazem parte da mesma evolução. São movimentos em direção a uma economia mais racional, mas, em última análise, mais despersonalizada, onde a maioria das interações será de contatos pontuais.

A atomização esvazia a vida familiar e a falta de interações pessoais reduz o comportamento “doce” do comércio. Ocorre em um contexto de amoralidade.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP).