Dívida dos EUA: Como Trump aprofunda o caos, por José Álvaro de Lima Cardoso

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Eixo do sistema financeiro global, títulos do Tesouro norte-americano oscilam como nunca, com política errática do presidente. China retira parte de seu dinheiro. Trajetória dos juros é incerta. Descontrole pode afetar inclusive o gigantesco orçamento de guerra

José Álvaro de Lima Cardoso – OUTRAS PALAVRAS – 28/08//2025

A dívida pública dos Estados Unidos pode ser considerada o eixo do sistema financeiro global contemporâneo. Os títulos do Tesouro dos EUA (US Treasuries) funcionam simultaneamente como o principal ativo global, a referência de preços para praticamente tudo que tem fluxo de caixa. Além de ser, ainda, a reserva internacional preferida pelos bancos centrais. Esse fenômeno, coloca a dívida norte americana no centro da engrenagem que move liquidez, preços e risco nas finanças, no mundo.

Esses títulos são considerados o ativo livre de risco em dólares por excelência: tem alta liquidez, padrão jurídico claro e baixíssimo risco de crédito soberano. Nas crises, a maioria dos investidores correm para esses títulos, que exercem o papel de “porto seguro” para aversão ao risco. Em mercados de financiamento de curtíssimo prazo, os títulos do tesouro americano são o ativo fornecido em garantia, para assegurar obrigações financeiras, de maior aceitação no mundo. Os títulos do Tesouro norte americano servem também para a ancoragem, para referência, de taxas em dólares. A taxa de juros dos títulos do Tesouro dos EUA com prazo de 10 anos é a principal referência que o mundo usa para calcular quanto valem hoje os fluxos de caixa futuros em dólares. Quando essa taxa sobe ou desce, muda o “desconto” aplicado aos fluxos de caixa — e, por consequência, altera o preço de quase tudo.

Uma parcela enorme de fluxos de caixa globais é avaliada direta ou indiretamente em dólares. O que fornece aos EUA, um grande poder, inclusive de retaliação. A Venezuela, por exemplo, sofre mais de mil sanções contra sua economia, o que leva a um profundo impacto no seu desenvolvimento nacional. As sanções de caráter financeiro estão entre as que mais prejudicam o país. Por exemplo, as proibições impostas ao governo da Venezuela e à PDVSA (Petróleos de Venezuela, S.A., empresa estatal de petróleo e gás), de emitir novos títulos de dívida, realizar certas reestruturações, distribuir dividendos etc. Com essas restrições o país fica sem condições de rolar a dívida soberana e sem acesso a mercados de crédito, com perda total da capacidade de se financiar externamente. O setor privado também é impactado, porque os chamados riscos soberanos (probabilidade de um país não cumprir seus compromissos financeiros), encarecem o crédito para as empresas privadas locais, que também perdem o acesso a linhas comerciais.

Os títulos do Tesouro Norte Americano também são os preferidos pelos bancos centrais para acumular reservas, em função de liquidez e facilidade de custódia e liquidação. Ou seja, no processo de compra e venda, esses títulos são de fácil manuseio, pois a demanda oficial pelo ativo estabiliza o mercado. Ademais, nenhum outro mercado no mundo tem a escala e a infraestrutura oferecida por esses papéis. O mercado do Euro é grande, mas com risco soberano elevado, além do “Bund”, – títulos públicos alemães, considerados de baixíssimo risco dentro da zona do euro – não ter a mesma escala dos papeis americanos. Os países da união monetária não emitem a moeda que usam. Um governo da zona do euro não controla isoladamente a sua política monetária nem “imprime” euros. Isso torna o risco de insolvência e liquidez uma preocupação real em momentos de crise financeira. Especialmente neste momento de grande crise econômica da Europa.

Apesar da economia japonesa ser a quarta do mundo, o Iene/JGBs (títulos do governo do Japão), não tem a profundidade e a estabilidade do equivalente americano. O ouro, por sua vez, funciona como reserva de valor, porém tem rendimento baixo ou nulo. Além disso, não tem elasticidade de oferta, e possui logística/custódia mais onerosa e complexa. O RMB (Renminbi, nome oficial da moeda da China), por outro lado tem menor convertibilidade e infraestrutura jurídica/financeira mais limitada, sem alcance global, por enquanto. Em suma, a combinação de escala + liquidez + convertibilidade + infraestrutura institucional ainda mantém os títulos do Tesouro dos EUA no topo da preferência.

A dívida – tida como impagável – e o déficit orçamentário dos EUA leva o Tesouro a emitir títulos, que são absorvidos pelo mundo todo. Esse cassino financia a dívida americana e garante um ativo ainda considerado seguro. Obviamente a instabilidade financeira mundial, e o crescimento avassalador da dívida americana, torna esse jogo arriscado. Por essa razão (e outras, de caráter geopolítico), a China vem diminuindo gradativamente sua exposição a títulos do Tesouro dos EUA: a posição da China nesses papéis, recuou de um máximo de US$ 1 trilhão em 2013–2014, para cerca de US$ 756,3 bilhões em agosto de 2025. O objetivo dessa política é diversificação das reservas e a redução da dependência do dólar, com a realocação parcial para ouro, outras moedas, e, em menor grau, ativos não americanos. O objetivo da diversificação é reduzir a vulnerabilidade à sanções e não depender de infraestrutura financeira estadunidense.

A China, ao descartar títulos do Tesouro norte-americano procura controlar também o risco geopolítico, existente na dependência exagerada a esse tipo de reservas. Especialmente, se for de um país que vem elevando o tom das hostilidades há anos. A China também presta atenção ao que ocorre com outros países catalogados pelo imperialismo como inimigos. A partir do início da guerra na Ucrânia, os países ocidentais congelaram uma grande quantidade de ativos russos, incluindo reservas do Banco Central e títulos soberanos sob custódia ocidental (calculados em US$ 300 bilhões). Ademais, imobilizaram ativos de bancos, empresas estatais e indivíduos, russos, passando inclusive a usar rendimentos associados a esses ativos. A diversificação reduz a fragilidade da economia chinesa a medidas inesperadas e agressivas, no campo comercial e tecnológico, que já vêm sendo colocadas em marcha, pelo menos desde o governo de Barack Obama. A China também tem usado a conversão de parte das reservas em liquidez, visando melhorar ainda mais o desempenho da sua economia.

A redução chinesa em títulos do Tesouro dos EUA, que é parte de uma estratégia de diversificação e gestão de riscos, está sendo operada gradualmente, o que torna o processo administrável, na medida em que outros compradores adquirem os papéis disponibilizados. O risco de uma venda súbita e coincidente com outros choques (como um déficit do governo dos EUA mais alto que o previsto), não interessa ao próprio governo chinês, que é grande detentor desses papéis.

A base de detentores dos papeis da dívida dos EUA é ampla: investidores domésticos (bancos, gestoras, fundos de pensão, seguradoras), o Federal Reserve e investidores estrangeiros.

O estoque atual da dívida, de US$ 36 trilhões e os cerca de US$ 3,3 bilhões/dia em juros, implica, como no Brasil, na redução da capacidade do Estado sustentar outras despesas, como infraestrutura, ciência e saúde. A financeirização do orçamento, afeta diretamente, inclusive, a estratégia imperialista dos EUA, que é muito assentada em sua capacidade bélica. Em 2024, os juros se aproximaram muito dos gastos com defesa. Projeções oficiais apontam que, a partir de 2025, os juros tendem a superar de forma mais evidente os gastos com defesa.

A aproximação ou ultrapassagem dos gastos com a dívida, em relação aos gastos com a guerra, mostra a magnitude do fenômeno da financeirização nas economias de todo o mundo. Os EUA são o país que promovem e patrocinam a guerra no mundo todo, seja por objetivos econômicos imediatos, seja em função de necessidades geopolíticas e militares. Mesmo assim, nos últimos anos, a aceleração dos juros e os gastos com a dívida cresceram mais rapidamente do que os gastos militares.

O efeito da dívida pública sobre o governo norte-americano tem similaridades com o que acontece nos países atrasados, apesar do poderio político, econômico e militar dos EUA. Gastos maiores com juros reduzem a margem para o exercício de despesas discricionárias, incluindo gastos com defesa e investimentos em geral, sem elevar impostos ou aumentar o déficit.

O governo brasileiro sofre duras críticas quando apresenta um déficit orçamentário (primário, ou seja, sem os gastos com juros) de 0,36% do PIB, como em 2024. No entanto, o déficit primário dos EUA no ano fiscal de 2024 foi de aproximadamente US$ 700 bilhões, 2,4% do PIB. Ou seja, quase 7 vezes superior ao do Brasil (imaginem o Brasil com um déficit primário naquele nível). Nos EUA, como acontece no Brasil, entra governo, sai governo, e, independentemente da posição política, ninguém resolve o problema da dívida pública. Com a diferença que, no caso dos EUA, como se trata do país mais imperialista do mundo e dono da máquina de imprimir dólares, ninguém cobra superávits primários nas contas públicas.

O deus mercado profanou a CLT, por Jorge Luiz Souto Maior

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Jorge Luiz Souto Maior – A Terra é Redonda – 30/08/2025

A retórica da flexibilização é a profanação contemporânea dos direitos, um ritual que sacraliza o lucro ao custo de vidas. A resistência necessária não é nostálgica, mas sim a recusa firme de que a dignidade humana seja imolada no altar do mercado

Um grupo de autodenominados “líderes empresariais” está realizando um encontro que, segundo expõe a propaganda do evento, se destina a promover, com as falas de especialistas e empresários, um “debate sobre a conjuntura atual e o cenário econômico global”.

Mas o propósito não é propriamente avaliar os limites, potencialidade e debilidades de uma economia baseada na produção de mercadorias sem-fim, em um universo de matéria-prima finita e para um mercado de consumo cada vez mais restrito.

Os “especialistas” e empresários, que não estão ali reunidos por acaso, já têm a fala pronta (mais antiga que a roda) que gira em torno da redução dos custos do trabalho como a fórmula necessária e infalível para aumentar a produção e o lucro das empresas.

Este é um discurso que se apresenta como novidade, embora seja “novo” e “moderno” desde o final do século XIX, quando iniciava, no Brasil, o período de transição do trabalho escravizado para o trabalho livre, ou seja, muito antes do advento da tal CLT.

Os temas dos painéis do evento não deixam a menor dúvida a respeito do alvo projetado das falas: “Os desafios contemporâneos da tercerização” (Painel 1); “As eventuais mudanças na legislação e os impactos na perspectiva do trabalho” (Painel 2).

Trata-se, pois, de um evento em que se realiza a reunião de pessoas (as mesmas de longa data – quase tão antigas quanto à própria CLT) ideologicamente comprometidas com os interesses imediatos do capital, sobretudo, o capital estrangeiro, para promoverem mais um ataque à já tão baleada legislação trabalhista no Brasil e tudo isto para, explicitamente, ofertar mão de obra barata para a exploração do grande capital internacional.

E, de fato, é bem mais que isto: trata-se, em verdade, da reprodução das lógicas do escravismo colonial, renovando a oferta dos corpos de pessoas racializadas, subalternizadas e desconsideradas quanto à sua condição humana.

São estes “especialistas”, não por mera coincidência, homens e brancos, autênticos “líderes” do comércio de gente, da venda despudorada de carne negra barata para o consumo imediato do processo produtivo, em nome do “desenvolvimento econômico do país”, como, aliás, já fizeram os seus antepassados.

Dizem que vão formular uma “análise aprofundada das transformações no mundo do trabalho e nos modelos regulatórios”, mas o que, de fato, manifestam é a velha, antiquada e surrada retórica de que a legislação trabalhista no Brasil é retrógrada e rígida, mesmo que a CLT de 1943, em concreto, não mais exista há muitas décadas, dadas a inúmeras alterações que lhe foram introduzidas e mesmo que a CLT, durante longo período, tenha servido à exclusão de pessoas negras e de mulheres do mercado de trabalho, além de reprimir a luta coletiva de trabalhadores(as) por melhores condições de trabalho, tendo sido, por isso mesmo, apoiada expressamente pela nova classe industrial em ascensão, a partir dos anos 1930.

É importante destacar, inclusive, que desde a década de 1960, vários instrumentos de “flexibilização”, precarização e retração de direitos foram integrados à CLT, tais como: a redução salarial imposta pela Justiça do Trabalho (1965); a representação comercial (1965); o FGTS (1967); o trabalho temporário (1974); a intermediação do trabalho do vigilante (1982); o esvaziamento hermenêutico dos arts. 7º, 8º e 9º da Constituição Federal de 1988 (de 1988 até hoje, aniquilando a garantia contra a dispensa arbitrária, naturalizando as horas extras, monetizando a saúde, discriminando as trabalhadoras domésticas, aniquilando o direito de greve, aprisionando a liberdade sindical); a terceirização da atividade-meio (1993): a cooperativa de trabalho (1994); o banco de horas (1998); o contrato provisório (1998); a suspensão temporária do contrato de trabalho – “lay off” (2001); a recuperação judicial (2003); a jornada 12×36; a terceirização da atividade-fim (2017); o contrato individual superando o negociado (2017); o negociado sobre o legislado (2017); o trabalho intermitente (2017); o obstáculo ao acesso à justiça (2017) etc.

E mesmo com tudo isso, estas pessoas, cinicamente, continuam dizendo que a CLT de 1943, com sua rigidez (que, de fato, nem nunca existiu), continua regulando as relações de trabalho no Brasil, gerando alto custo de produção (embora, de fato, o custo de produção no Brasil seja um dos mais baixos do mundo), desestimulando investimentos e impedindo o desenvolvimento econômico (ainda que o Brasil seja o espaço privilegiado da especulação estrangeira e onde as empresas multinacionais experimentam seus maiores lucros e os trabalhadores(as), os mais baixos salários do mundo e um número de horas trabalhadas dentre os mais elevados nos diversos países.

Pois o negócio é se reunir, fazer festa, formular elogios recíprocos, rir da desgraça alheia, tripudiar sobre a vida da classe trabalhadora e zombar de todo mundo dizendo que os(as) trabalhadores(as) no Brasil são privilegiados(as) e que os empresários brasileiros são vítimas desemparadas.

Mas, concretamente, não são tão desamparados assim, né?! Afinal, têm Ministros do STF e do TST que os defendem abertamente!!! E, de fato, as instituições estatais estão há décadas realizando esta defesa do capital e promovendo ataques aos(às) trabalhadores(as).

Estas “iluminadas” mentes só conseguem pensar uma forma de estimular o desenvolvimento econômico, qual seja, retirando direitos dos que chamam de privilegiados, para permitir a quem não tem direito algum se igualar aos que até então eram os tais privilegiados.

Uma estranha forma de igualdade que, no fundo, se deparando com as sucessivas crises do capital, visa, de forma reiterada, progressiva e sempre renovada, rebaixar a rede de proteção social, para manter a riqueza dos poucos que a detém ou mesmo lhes permitir aumentá-la ainda mais.

Cabe não olvidar que esta “fórmula” para o desenvolvimento do país tem sido experimentada desde a década de 1960 (com maior vigor) e só produziu os efeitos (os verdadeiramente almejados) da acumulação da riqueza (em mãos estrangeiras), da dependência política, econômica e tecnológica do país (que sequer tem soberania a defender), da precarização das relações de trabalho, do sofrimento físico e psíquico nas relações de trabalho e da disseminação da miséria e da fome.

Neste cenário, o mais novo “especialista” em Direito do Trabalho, Luís Roberto Barroso, vem sustentando por aí que a “reforma” trabalhista aumentou a empregabilidade, não se dignando, por certo, de explicitar que são, em verdade, subempregos, mal remunerados, carregados de precarização e efêmeros, isto é, de pouca duração, o que retroalimenta o rebaixamento, tanto que, baseados na própria retração de direitos, os representantes do capital e até mesmo as empresas diretamente têm tentado disseminar uma aversão ao trabalho com carteira assinada, estimulando a “pejotização”, uma nova faceta do “empreendedorismo”, que representaria uma situação mais vantajosa para os(as) trabalhadores(as).

Não tendo mais como rebaixar direitos, chegou a hora de eliminar de vez o Direito do Trabalho e, por consequência, a Justiça do Trabalho, mas com o argumento – apoiado na precarização – de que isto é bom para a classe trabalhadora. Desconsiderando-se, por óbvio, a existência da ordem constitucional, na qual os direitos trabalhistas e sociais se situam como Direitos Fundamentais e o fato de que este ordenamento garante uma condição mínima existencial aos(às) trabalhadores(as) e o direito de lutar, coletivamente, por melhores condições de vida e de trabalho.

Aliás, vale o registro de que a bola da vez, na linha do rebaixamento, tende a ser os benefícios previdenciários, pois, sem as fórmulas jurídicas de imposição da solidariedade social, as bases de sustentação da Seguridade Social vão à bancarrota.

E, agora, o momento mais angustiante deste texto (se já não o fosse bastante) que é o de reproduzir as violências explicitadas pelo Ministro Gilmar Mendes, com relação aos direitos dos(as) trabalhadores(as) e a própria dignidade dos seres ainda humanos que habitam neste território.

Pois não é que o Ministro, afoito para oferecer um algo mais ao setor econômico, subiu vários pontos na escala das ofensas e irracionalidades e chamou a CLT de “vaca sagrada”.

É difícil encontrar palavras que possam integrar um texto jurídico, para reagir a isto, pois o Ministro, a um só tempo, agrediu a dignidade de milhões de brasileiros e brasileiras que ao longo da nossa história lutaram para conquistar direitos e o que, posteriormente, tem se dedicado a fazer valer esses direitos.

O Ministro expressa, com todas as letras, que quem defende direitos trabalhistas só o faz porque tem adoração a um símbolo religioso, a tal CLT, sem contar que, ao mesmo tempo, com esta “analogia”, ofendeu igualmente os Indus e suas crenças.

Mas, curiosamente, ele se posta como um deus, que tudo pode! Na verdade, como o filho de deus, (do deus mercado), a quem deve obediência e devoção!

Buscando agradar ao seu deus, teceu loas à “reforma” trabalhista e profanou a CLT, pouco importando se, de fato, a Lei 13.467/17 foi apenas mais uma (embora de forma muito mais profunda) dentre tantas outras leis que promoveram inúmeras alterações na CLT. Desse modo, todos os artigos da “reforma” estão inscritos na tal “vaca sagrada” que, portanto, já não seria tão sagrada assim.

Mas uma coerência mínima pouco importa, o que gera aplausos naquele ambiente é defender retração de direitos e, mais ainda, atacar a Justiça do Trabalho, afirmando que esta só teria, em algumas decisões, resistido à aplicação de preceitos da “reforma” porque se mantém apegada aos dogmas da CLT – sem dizer quais, por certo.

Ocorre que fazer este enfrentamento não lhe pareceu suficiente. Considerou necessário entregar mais e para assim agir voltou ao plano do misticismo.

Com uma autoridade digna de uma divindade, criou uma versão própria da Constituição Federal e a sacralizou, de modo que resta a todos apenas o ato de seguir as suas palavras, ou, mais propriamente, os seus próprios dogmas.

Expressou, por conseguinte, que a Constituição “não determina padrão específico de produção”, querendo dizer com isto que a produção, no sentido de exploração do trabalho, pode se desenvolver sem quaisquer limitações jurídicas, não havendo, pois “justificativa para preservar as amarras de um modelo hierarquizado e fordista”, que estaria “na contramão de um movimento mundial de descentralização”.

Então, se o mundo (leia-se, empresas multinacionais) determina um padrão de exploração do trabalho, o Brasil deve se curvar ao que for demandado pelo poder econômico dessas empresas, mesmo que a Constituição Federal vá em outro sentido. E ainda há quem aposte todas as suas fichas na defesa da soberania nacional.

Mas Gilmar Mendes não opera no plano da realidade normativa. Assim, na “CMGM”, isto é, na “Carta Magna do Gilmar Mendes”, estas restrições político-jurídicas não existem, vez que foram simplesmente abolidos todos os artigos (da Constituição Federal de 1988) em que os direitos trabalhistas, incluindo a relação de emprego, a organização sindical e a greve, aparecem como Direitos Fundamentais e em que se explicitou o pacto social firmado em torno da dignidade humana; dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; da prevalência dos Direitos Humanos; da construção de uma sociedade livre, justa e solidária; da erradicação da pobreza e da marginalização; da redução das desigualdades sociais; da promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; da função social da propriedade; da ordem social baseada no primado do trabalho, tendo como objetivo o bem-estar e a justiça sociais; da ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.

Para o Ministro o que vale é o credo do mercado livre de todas as amarras, diga-se, sem a obrigação de cumprir direitos trabalhistas, para o delírio de alguns supostos “empreendedores” nacionais. A que nível de “debate” chegamos!!!

Mas quem sabe daqui a alguns dias as associações e movimentos de defesa dos trabalhadores e trabalhadoras e da Justiça do Trabalho façam uma “nota” respeitosa contra isso, até porque, como se diz, não é hora de se contrapor ao Supremo.

E desse modo, sem uma efetiva e contunde reação, e até mesmo por sucessivas assimilações do discurso empresarial no próprio seio da Justiça do Trabalho (videm as estratégias de gestão pautadas pela produtividade e, mais recentemente, a adoção do mecanismo – inconstitucional – dos precedentes, que reproduzem, ambos, a tática de assédio sobre magistratura trabalhista, buscando criar a figura do juiz-gestor ou, mais propriamente, o não-juiz), que favorecem à naturalização e “legitimação” jurisprudencial da precarização, é que as violências contra os direitos fundamentais da classe trabalhadora (atingindo, sobretudo, a corpos determinados) proliferaram impunemente e continuarão crescendo, de uma forma cada vez mais perversa.

A esperança que resta é que a classe trabalhadora como um todo perceba este processo, se reorganize e ofereça resistência aqui e agora, não se deixando levar pelos discursos falseados da “liberdade” individual, do “empreendedorismo” e da oportunidade política que imporiam a necessidade da formação de alianças com as forças que lhe oprimem, que lhe exploram, que zombam das suas necessidades e que, no fundo, desconsideram a sua condição humana.

Jorge Luiz Souto Maior é professor de direito trabalhista na Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros livros, de Dano moral nas relações de emprego (Estúdio editores).

Belluzzo: Faria Lima, PCC e a sociedade do dinheiro

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No rescaldo da operação no coração financista do país, reflexões sobre o “demônio monetário”. Ele dilui a fronteira entre o lícito e o ilícito. O Estado é submetido. E o impulso doentio por acumulação vira uma “virtude” dos homens de bem

Luiz Gonzaga Belluzzo – Carta Capital – 29/08/2025

A Operação Carbono Oculto sugere considerações a respeito das façanhas do Demônio Monetário. Entre tais façanhas há que observar o apagamento dos limites que separam o lícito e o ilícito. No Brasil do PCC, a dissolução dessas fronteiras permitiu a adesão de instituições financeiras às práticas do crime organizado

Fausto vendeu-se ao demônio. Para adquirir poder e dinheiro entre os mortais, hipotecou a alma pela eternidade. Tamanha era a força da sua cupidez que a fome da riqueza monetária fez a eternidade durar apenas um segundo.

Vai pela casa da tonelada a quantidade de tinta gasta para deplorar o poder do dinheiro, a sua força para corromper as consciências, desfigurar as almas e os sentimentos. Contra esse poder e essa força, lançaram-se poetas, filósofos, teólogos e até os moralistas de folhetim.

George Simmel, em seu livro A Filosofia do Dinheiro, mostra que o sujeito atacado pelo amor “doentio” ao dinheiro não é uma aberração moral, mas o representante autêntico do indivíduo criado pela sociedade argentária. As qualidades dos bens e o gozo de suas utilidades tornam-se absolutamente indiferentes para ele. Suas preferências, sentimentos, desejos, são totalmente absorvidos pelo impulso de acumular riqueza monetária.

É curioso observar como a sociedade argentária, ao transformar violentamente os indivíduos e suas subjetividades em simples coágulos monetários, pretenda ao mesmo tempo colocar barreiras, ensinando-lhes as virtudes da moderação, da frugalidade, da solidariedade. Então, como podemos falar de sentimentos como honradez, dignidade, autorrespeito numa sociedade em que todos os critérios de sucesso ou insucesso são determinados pela quantidade de riqueza monetária que cada um consegue acumular?

É difícil escapar da sensação de que a contenção desse impulso é impossível sem a coação e a intimidação crescentes. As leis devem se tornar cada vez mais duras e especializadas na tentativa de coibir o enriquecimento “sem causa” e a qualquer custo. Verdade? A experiência contemporânea parece demonstrar que os circuitos de enriquecimento ilícito – apesar do grande número de prisões e condenações – não fazem outra coisa senão aumentar, multiplicando-se mundo afora. As drogas e seus sistemas de produção e comercialização, a espionagem industrial e tecnológica, a corrupção política, a compra e a venda de informações e de “desinformação” da opinião pública formam uma rede formidável e em rápido crescimento de circulação de dinheiro “sujo”.

Esse dinheiro transita e é “esquentado” e “esfriado” nos mercados financeiros liberalizados. Negócios legais são muitas vezes fachadas para “branquear” dinheiro de origem ilícita. Os sistemas fiscais – diante dos circuitos financeiros que permitem a livre movimentação de capitais – perdem o seu caráter progressivo e passam a depender cada vez mais dos impostos indiretos e da taxação dos assalariados.

Daí o enfraquecimento sem precedentes da esfera pública, a desmoralização dos poderes do Estado, a crescente onda de moralismo que revela, aliás, mais impotência do que indignação. Os perdedores desse jogo entregam-se a lamentações e ondas de protesto que se esgotam rapidamente entre o escândalo do momento e o próximo. Sem tempo para raciocinar, entregam-se ao consumo de fatos sensacionais e escabrosos.

Nessas situações crescem os clamores por medidas “salvacionistas”, apoiadas na invocação da própria santidade, honestidade ou bons propósitos. Em geral, esses movimentos de opinião voltam-se contra o “formalismo” dos procedimentos legais. Os grandes pensadores da modernidade encaravam com horror a possibilidade de vitória dos grupos que veem no direito e na formalidade do processo judicial obstáculos ao exercício da moral. Para eles, tais protestos não são apenas errôneos, mas revelam apego malsão à sua própria particularidade, desfrutada narcisisticamente sob o disfarce da moralidade.

No capitalismo realmente existente são os negócios que invadem a esfera estatal. A concorrência entre as grandes empresas impõe a presença do Estado nos negócios e envolve a disputa por sua capacidade reguladora e por recursos fiscais. Isso significou abrir as portas para a invasão do privatismo nos negócios do Estado.

O neoliberalismo também pode ser entendido como um projeto de retorno a uma ordem jurídica alicerçada exclusivamente em fundamentos econômicos. Para tanto, é obrigado a atropelar e estropiar, entre outras conquistas da dita civilização, as exigências de universalidade da norma jurídica. No mundo da nova concorrência e da utilização do Estado pelos poderes privados, a exceção é a regra. Tal estado de excepcionalidade corresponde à codificação da razão do mais forte, encoberta pelo véu da legalidade.

Seria uma insanidade, no mundo moderno e complexo, tentar substituir os preceitos e a força da lei pela presunção de virtude autoalegada por qualquer grupo social ou, pior ainda, por aqueles que ocupam circunstancialmente o poder.

Jorge Miglioli, por Zahluth Bastos & Gonzaga Belluzzo

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A Terra é Redonda – 27/08/2025

Pedro Paulo Zahluth Bastos & Luiz Gonzaga Belluzzo

Homenagem ao professor da Unicamp, recém-falecido

No dia 24 de agosto de 2025, o professor Jorge Miglioli nos deixou. Seu principal livro, Acumulação de capital e demanda efetiva, resultou da tese de livre-docência que defendeu no Departamento de Economia da Unicamp em 1979, levando a um ponto alto a reflexão teórica sobre a dinâmicas das economias capitalistas no Brasil e no mundo. O livro preserva uma grande atualidade. Infelizmente, não foi traduzido, o que limitou sua repercussão internacional. Qual é sua mensagem e seu contexto?

Nas décadas de 1960 e 1970, um tema comum nas esquerdas era afirmar que o capitalismo brasileiro era não só selvagem e desigual, como também economicamente inviável porque excluía a maioria da população dos mercados de bens de consumo. Implicitamente, a suposição era que, nos países centrais e desenvolvidos, o capitalismo era dinâmico por se orientar para atender às necessidades de consumo das populações. De Celso Furtado a Ruy Mauro Marini, uma certa mistificação do capitalismo nos centros desenvolvidos era o outro lado de propostas reformistas ou revolucionárias que, na periferia, superassem a inviabilidade de um capitalismo que jogava camadas populares na pobreza.

O chamado “Milagre” econômico (1968-1973) mostrou que altas taxas de crescimento econômico eram viáveis mesmo com a duplicação da proporção da população em situação de insegurança alimentar para cerca de 2/3 do povo brasileiro. A partir da década de 1980, o avanço do neoliberalismo pode ser entendido como uma brasilianização dos centros desenvolvidos que não deixaram de crescer apesar da desigualdade crescente.

Desde a criação em 1968, o projeto intelectual do Instituto de Economia da Unicamp envolveu entender a dinâmica e as tendências do capitalismo a partir de Marx, Keynes, Schumpeter, Kalecki e seus discípulos, dialogando com a tradição crítica latino-americana para capturar a particularidade histórica e estrutural do capitalismo no Brasil.

Sua função social seria entender a origem, a estrutura e a dinâmica do capitalismo para sugerir reformas que nos levassem a uma civilização digna do nome. Na década de 1970, a reflexão teórica iniciada nas teses de Luiz Gonzaga Belluzzo e Maria da Conceição Tavares encontrou grande síntese, no que tange à dinâmica do capitalismo, na obra de Jorge Miglioli defendida em 1979 e publicada em 1981.

Em Acumulação de capital e demanda efetiva, Jorge Miglioli faz uma brilhante história do pensamento econômico. Ele parte do desmonte da Lei de Say que está na base do edifício da escola neoclássica: a noção de que a renda determina o gasto. Como tudo que é recebido é gasto, as economias de mercados tenderiam naturalmente ao pleno emprego. Ao contrário, o princípio da demanda efetiva é que o gasto determina a renda em uma economia capitalista. Logo, a flutuação da renda pode ocorrer persistentemente aquém do pleno emprego a depender dos determinantes dos gastos e de sua flutuação cíclica ou brusca (“estocástica”).

Navegando dos clássicos do século XVIII até economistas contemporâneos, a inspiração última de Jorge Miglioli é o economista polonês Michal Kalecki, com quem Miglioli estudou e o qual contribuiu para popularizar no Brasil. Michal Kalecki chegou ao princípio da demanda efetiva em um desconhecido artigo publicado em polonês em 1933 antes da formulação popularizada por John Maynard Keynes na Teoria geral do emprego, do juro e da moeda de 1936.

Ao contrário de originar-se da tradição neoclássica (na vertente de Alfred Marshall) como Keynes, Michal Kalecki partiu de Karl Marx e Rosa Luxemburgo, que certamente já mobilizavam o princípio da demanda efetiva. Por isso, Michal Kalecki desagrega o gasto macroeconômico no consumo das classes fundamentais (capitalistas e trabalhadores), no investimento dos capitalistas, no gasto do Estado e no comércio exterior, investigando os determinantes e as interrelações entre os tipos de gasto.

Ele também mostra mais claramente que Keynes que os gastos são condicionados e interagem com a distribuição da renda e como esta é determinada pelo poder de mercado de capitalistas e trabalhadores, mediados por estruturas de mercado e instituições estatais e sindicais. [1]

Jorge Miglioli demonstra com didatismo ímpar como o montante do lucro dos capitalistas depende de seu próprio nível de gasto em investimento e bens de consumo, assim como do gasto público e das exportações líquidas. Se os trabalhadores gastam o que ganham, os capitalistas ganham o que gastam. Se o Estado tiver déficit, os capitalistas ganham bem mais do que pagam em impostos. Mesmo que a produção de alimentos para a população seja insuficiente, o gasto militar ou em construção civil em bairros ricos, por exemplo, assegura o dinamismo do capitalismo e a lucratividade dos capitalistas.

O problema do capitalismo, portanto, não é que às vezes “falhe” na missão de gerar o consumo dos trabalhadores de que depende, e sim que, a rigor, não depende deste tipo de consumo: sua “missão” nunca foi atendê-lo nem nos centros nem nas periferias. Se o fizer, será em condições excepcionais de relação de forças favoráveis aos trabalhadores.

Estudioso do planejamento econômico nas economias capitalistas e socialistas, Jorge Miglioli mostra em outro livro que a distribuição consciente de investimentos e decisões de produção para atender necessidades sociais pode ser o objetivo de uma outra civilização, mas que não é uma tarefa tecnicamente simples mesmo que as dificuldades políticas sejam superadas.

Jorge Miglioli é professor de um tempo em que grandes esperanças e grandes questões estavam no centro da reflexão universitária. Seu exemplo não pode ser esquecido. Sua obra não deve ser apenas lembrada, mas republicada e relida.

Pedro Paulo Zahluth Bastos é professor titular Instituto de Economia da UNICAMPAutor, entre outros livros, de A era Vargas: Desenvolvimentismo, economia e sociedade (Editora da Unicamp).

Luiz Gonzaga Belluzzo, economista, é Professor Emérito da Unicamp. Autor entre outros livros, de O tempo de Keynes nos tempos do capitalismo (Contracorrente).

Globalização Financeira e Soberania Nacional: Lições para o Brasil, por José Luis Oreiro

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José Luis Oreiro -GGN – 29/08/2025

A decisão tomada pelo Ministro do STF Flavio Dino sobre a não aplicabilidade e validade de leis e ordens estrangeiras em território nacional detonou um forte movimento de queda dos preços das ações de instituições financeiras no último dia 19 de agosto de 2025. Segunda a imprensa especializada, os principais bancos brasileiros teriam perdido R$ 38,4 bilhões em capitalização de mercado. A queda do valor das ações dos bancos brasileiros foi seguida por um aumento dos juros futuros e uma desvalorização de 1,11% do Real frente ao Dólar.

À primeira vista esses eventos parecem ser um puro non sense. Não é necessário ter formação avançada em direito internacional para saber que países soberanos são soberanos e que, portanto, decisões tomadas em outros países, por mais poderosos que sejam (ou acham que sejam) não pode ter aplicação automática na jurisdição de um Estado Soberano. Quando um Estado Soberano quer impor a sua vontade a outro Estado Soberano se recorre invariavelmente a agressão militar, tal como temos visto nos últimos três anos no conflito entre Rússia e Ucrânia.

Então qual a racionalidade, se alguma, do comportamento dos mercados financeiros? Aqui é importante fazermos uma distinção, muito comum na teoria do desenvolvimento econômico, entre causas próximas e causas últimas. As causas próximas são aquelas que são diretamente responsáveis por um determinado resultado; ao passo que as causas últimas são as causas das causas.

No caso em questão o comportamento dos mercados financeiros refletiu a percepção de que o ministro Flavio Dino estava, de forma indireta, impedindo a aplicação da lei Magnitsky contra os interesses de cidadãos brasileiros – no caso específico o Ministro Alexandre de Moraes do STF – no território nacional. A percepção dos mercados financeiros é que os bancos brasileiros poderão sofrer sanções em suas operações no exterior – particularmente nos Estados Unidos – se não cumprirem as determinações da lei Magnitsky sobre as transações feitas pelo Ministro Moraes em território nacional. Dada a possibilidade de punições sobre as operações dos bancos e empresas brasileiras no exterior; então o preço de mercado das suas ações, que reflete o valor presente dos dividendos esperados futuros, se reduziu de forma acentuada.

Essa explicação é totalmente correta, mas não vai a essência do problema em questão. Os efeitos decorrentes da decisão do Ministro Flavio Dino só puderam ocorrer porque o Brasil, desde o final dos anos 1980, abraçou de forma entusiasta os preceitos do Consenso de Washington, em particular a tese de que a retomada do desenvolvimento econômico após a década perdida só seria possível por intermédio da adoção de um modelo de crescimento baseado na poupança externa, ou seja, na captação de “investimentos” (na verdade aplicações financeiras) estrangeiros (tanto em renda fixa como em renda variável) o que demandaria a abertura da conta de capitais do balanço de pagamentos. Essa abertura implicava, por um lado, a possibilidade de investidores estrangeiros comprarem diretamente ativos brasileiros na bolsa de valores ou títulos da dívida pública.  Por outro lado, a abertura da conta de capitais permitiu que instituições financeiras brasileiras pudessem fazer operações no exterior, comprando ativos denominados em moeda estrangeira tais como ações, títulos de dívida pública e privada, entre outros.

Subjacente ao modelo de crescimento com poupança externa está a tese de que países em desenvolvimento como o Brasil não possuem poupança doméstica suficiente para “financiar” o investimento necessário para o crescimento econômico a taxas robustas e precisam complementar essa poupança com captações no exterior. Essa lógica foi extensamente adotada no primeiro governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, quando a poupança externa – que nada mais é do que o nome glamourizado do déficit em conta corrente do balanço de pagamentos – atingiu quase 4,5% do PIB em 1998. O resultado foi uma crescente fragilidade externa e a necessidade de se recorrer aos empréstimos dos Fundo Monetário Internacional para manter a combinação juros altos-câmbio valorizado decorrentes da lógica de funcionamento do modelo de crescimento com poupança externa. Em 1999, Fernando Henrique Cardoso teve que se render aos fatos e demitiu o Presidente do Banco Central da época, Gustavo Franco, para empreender uma reorientação da política monetária e cambial na direção do regime de câmbio flutuante. A forte desvalorização cambial que se seguiu a essa mudança na direção do Banco Central permitiria, nos anos seguintes, uma reversão do saldo em conta corrente do balanço de pagamentos de deficitário, durante FHC II, para superavitário, em Lula I. Desde então o Brasil nunca mais voltou a pedir empréstimos ao FMI, mesmo num ambiente internacional conturbado pela Crise Financeira Internacional de 2008, a Crise do Euro em 2012 e a crise da Covid-19 em 2020. O Brasil aparentemente havia recuperado a sua soberania, sendo novamente senhor do seu destino.

Durante o governo Bolsonaro, contudo, foram adotadas mudanças na legislação cambial que aprofundaram a abertura da conta de capitais no Brasil. Pessoas físicas, por intermédio de fintechs e plataformas de investimento, puderam fazer investimentos em renda fixa no exterior a partir da comodidade de seus telefones celulares. Pessoas que não tinham a menor noção de finanças e macroeconomia (noise traders) agora podiam tirar para fora do país quantidades enormes de recursos com base em rumores fantasiosos sobre a economia do Brasil, devidamente fabricados por investidores profissionais com o intuito de criar movimentos histéricos nos mercados financeiros e assim obter ganhos de arbitragem com eles. Entre outubro e dezembro de 2024 observamos apáticos o dólar atingir o patamar de R$ 6,30 sem que nada de extraordinário tivesse acontecido com a economia brasileira. E tanto que esse movimento era desprovido de fundamento que nos meses seguintes a taxa de câmbio recuou para menos de R$ 5,50, sem que ocorresse nenhuma mudança digna de monta no cenário fiscal. Mas, para debelar o movimento especulativo, o Banco Central foi, por assim dizer, obrigado a fazer aumentos sucessivos na taxa Selic até ela atingir o patamar atual de 15%, gerando algumas centenas de bilhões de reais de gasto adicional para os cofres públicos. Atualmente quase 100% do déficit fiscal é de origem puramente financeira.

A experiência histórica do Brasil e da América Latina com o modelo de crescimento com poupança externa já deveria ter levado nossa classe política a perceber que o desenvolvimento econômico é resultado do esforço de um país que pensa com a sua própria cabeça e cria seu próprio capital. Se o Brasil não tivesse se rendido a globalização financeira, não estaríamos discutindo as repercussões da lei Magnitsky sobre a soberania nacional.

José Luis Oreiro, Professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília.

Balanço ético global, por Leonardo Boff

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Leonardo Boff – A Terra é Redonda – 27/08/2025

A humanidade enfrenta uma encruzilhada existencial, obrigada a escolher entre a perpetuação de um paradigma de acumulação anti-vida, que nos conduz à tragédia, e a adoção urgente de uma ética global baseada no cuidado, na fraternidade universal e no respeito por toda a comunidade terrestre

A Presidência da COP30 e o Círculo do Balanço Ético Global, junto com o Movimento Global da Carta da Terra fizeram um convite aberto a todos os interessados para contribuírem para o Balanço Ético Global (BEG).

Portanto, como membro da Carta da Terra Internacional, me proponho responder às questões formuladas pela Presidência da COP30. Vejo na Carta da Terra e na encíclica do Papa Francisco, Como cuidar da casa comum fontes inspiradoras para uma Ética Global face ao o nosso conturbado tempo.

Perguntas / Respostas

Por que tantas vezes negamos ou ignoramos o que a ciência e os saberes tradicionais dizem sobre a crise climática, e compartilhamos ou compactuamos com a desinformação, mesmo sabendo que vidas estão em risco?

A desinformação é voluntária. Muitos chefes de estados ricos e CEOS de grandes corporações sabem dos riscos, pois, elas estão presentes e são inegáveis como o aquecimento global, as enchentes destrutivas de cidades inteiras, as fogueiras imensas na Califórnia, no Amazonas, na Espanha e ainda a presença de vários vírus em particular do Coronavírus que atingiu a humanidade inteira.

Negam estes dados claros porque são anti-sistêmicos. O sistema do capital hoje mundializado mais e mais se concentra (1% contra 99%). Tomar a sério estes dados, obrigaria este capital a mudar de lógica, cuidar da natureza em vez de super-explorá-la, cultivar uma justiça social e uma justiça ecológica. Não basta descarbonizar e mantendo a voracidade de acumulação. Como diz a Carta da Terra: “Adotar padrões de produção e consumo que protejam as capacidades regenerativas da Terra, os direitos humanos e o bem-estar comunitário”(§II,7).

Este sistema inumano e sem qualquer solidariedade jamais vai renunciar a suas vantagens e privilégios. A seguir a lógica do capital iremos ao encontro, cedo ou tarde, a uma grande tragédia ecológico-social que poderá afetar a biosfera, e no limite, a sobrevivência dos seres humanos sobre este planeta, que, limitado, não suporta um projeto de crescimento/desenvolvimento ilimitado.

Por que continuamos com modelos de produção e consumo que prejudicam os mais vulneráveis e não estão alinhados à Missão 1.5°C?

Não é do interesse do sistema dominante de produção que super-explora a natureza e os trabalhadores, pois, isso implicaria mudar de paradigma de acumulação para um paradigma de sustentação de toda a vida, humana e da natureza (CT§ I.). Os representantes deste sistema colocam o lucro acima da vida, a violência contra a natureza e os seres humanos e a competição acima da paz e da colaboração de todos com todos.

Não conhecem o fato cientificamente comprovado do “espírito de parentesco com toda a vida” (CT § Preâmulo c). Esse sistema impede “a justiça social e econômica e de erradicar a pobreza como um imperativo ético, social e ambiental” (CT III§9). Nega o seu lugar no conjunto dos seres, pois todos são importantes para compor o Todo. O sistema de acumulação seja capitalista ou de outra denominação, é contra a lógica da natureza e do processo de cosmogênese, pois “deve-se tratar todos os seres com respeito e consideração” (CT § III,15), coisa que ele não faz. Aqui reside seu vazio ético.

O que podemos fazer para garantir que os países ricos, grandes produtores e consumidores de combustíveis fósseis, acelerem suas transições e contribuam com o financiamento dessas medidas nos países mais vulneráveis?

Devemos alimentar indignação contra esse sistema que tantas vítimas faz. Devemos ter a coragem de fazer todo tipo de pressão contra este sistema que mata e propor-nos a modificá-lo. Usar os movimentos que “cuidam da comunidade de vida com compreensão, compaixão e amor” (CT § I,2) e pressionar os Estados e as corporações. Saber usar as legislações existentes que protegem o meio ambiente e limitam a concentração de riqueza.

Tudo isso se conseguiu graças à pressão vinda de baixo. Mas não basta a indignação e a pressão. Devemos começar com algo novo e alternativo. O caminho mais direto e com bons resultados é viver e fomentar o “bioregionalismo”. Dar valor à região e ao território. Não aquele estabelecido com limites feitos arbitrariamente pelos Estados.

Deve-se assumir a região como a natureza a desenhou, com suas florestas, seus rios, suas montanhas, enfim, sua natureza com a população que lá vive. Ela possui sua cultura singular, suas festas, suas personalidades notáveis que aí existiram: “trata-se proteger e restaurar os sistemas ecológicos da Terra com especial preocupação pela diversidade biológica e pelos processos que sustentam a vida” (CT § II,5). Pode-se realizar um modo de produção com os bens e serviços naturais locais, sem precisar grandes fábricas, nem fazer grandes transportes. Tirar da natureza o que se precisa e respeitar os ritmos dela e dar-lhe tempo para se recuperar (§ todo o número II: Integridade ecológica).

É possível e viável “construir sociedades democráticas que sejam justas, participativas e pacíficas” (CT§ I,3), diminuindo fortemente a pobreza e até superá-la. O centro é a comunidade humana e de vida e tudo o mais a serviço deste centro. O resultado é alcançar um modo sustentável de vida como afirma a Carta da Terra (§ O caminho adiante) e com seu desenvolvimento sustentável, adequado àquela região. Hoje no mundo há inúmeras regiões que vivem este projeto com grande integração de todos. A Terra inteira poderia ser como um tapete de bioregiões que se relacionam entre si e se entre-ajudam e assim salvam a sustentabilidade de todo o planeta Terra.

Que tradições, histórias ou práticas (culturais, espirituais) da sua comunidade nos ensinam a viver em maior equilíbrio com a natureza?

Muitas cidades rearborizam as ruas e praças com plantas nativas. Outras fazem campanhas para arborizar espaço degradados, ou limpar os rios dos dejetos, especialmente plásticos e outros, assegurar a mata ciliar de todos os rios e riachos, incentivar a agricultura agroecológica no campo e o cultivo de hortaliças e outros produtos naturais nos espaços de terra entre os prédios ou nas coberturas. Ainda estabelecer uma relação amigável entre os consumidores da cidade e os produtores do campo. Visitam-se mutuamente e trocam os saberes. Então se cria uma verdadeira democracia de produção e consumo.

Considerando que precisamos garantir a diversidade no coletivo, como podemos mobilizar mais pessoas, lideranças, corporações, empresas e nações para apoiar mudanças justas e éticas no combate à crise climática? Que ideias e valores poderiam nos inspirar nessa missão?

Em primeiro lugar cabe repassar todo tipo de informação sobre o estado da Terra e das ameaças que pesam sobre ela a ponto de pôr em risco a biosfera e existência do ser humano. Aqui são importantes fornecer os dados sobre a Sobrecarga da Terra, vale dizer, quanto de solo e de mar precisamos para garantir a subsistência da humanidade. Verificou-se que a Terra entrou no cheque especial. No ano 2024, nos primeiros sete meses do ano, temos consumido todos os bens e serviços renováveis da Terra que garantem a vida.

Precisamos, no atual momento, de quase duas Terras para atender o consumo humano, especialmente, aquele suntuoso dos países ricos, em detrimento de grande parte da humanidade que não possui alimentos suficientes e padece de falta de água potável e de infraestrutura sanitária (CT § III,10). Lançamos, só no ano de 2024, 40 bilhões de toneladas de CO² na atmosfera que lá fica por cem anos acrescido de 20 bilhões de toneladas de metano que é 28 vezes mais danoso que o CO², embora fique na atmosfera por uns 10 anos.

Toda essa poluição produz um “efeito estufa” que aquece mais e mais o planeta. Agora ela ultrapassou a medida suportável de 1,5ºC. Neste ano de 2025 ele está com 1,7ºC, acima do que era postulado pelo Acordo de Paris em 2015. Este visava a chegar a este nível somente até o ano de 20230. O calor foi antecipado e teve graves consequências humanas, com temperaturas de acima de 40-45ºC nos países europeus e grande frio no Sul do mundo. A ciência chegou atrasada e não pode reter esse aquecimento nem retrocedê-lo, só advertir sua chegada e mitigar os efeitos danosos.

Quando a Terra irá estabilizar seu novo nível climático? Se for por volta de 38-40ºC muitas vidas não conseguirão adaptar-se e desaparecerão seja na natureza seja na humanidade. Sequer nos referimos a uma eventual guerra nuclear com “a destruição mútua assegurada” que poria um fim à vida humana. Ou outro tipo de guerra utilizando a Inteligência artificial geral pela qual uma potência pode imobilizar a outra de tal forma que nada mais pode funcionar, energia, carros, aviões, foguetes, meios de comunicação a ponto de colocar de joelhos a outra nação. Essa guerra não é impossível.

Não destrói nada mas subjuga toda uma nação ou toda a humanidade, um despotismo cibernético que controlaria tudo até a vida privada. A Inteligência artificial autônoma pode decidir que não lhe é mais conveniente a espécie humana e resolve exterminar a vida na Terra.

Todo esse cenário sombrio nos leva a postular um novo paradigma, sugerido pela Carta da Terra e pelas duas encíclicas do Papa Francisco: a Laudato Si: sobre o cuidado da Casa Comum (2015) e a Fratelli tutti (2020). Assim se diz claramente na Carta da Terra: “Estamos num momento crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro…A escolha nossa é: ou formar uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos outros, ou arriscar a nossa destruição e a destruição da diversidade da vida” (2003, Preâmbulo). Ou do Papa Francisco: “Estamos todos no mesmo barco: ninguém se salva sozinho, ou nos salvamos todos, ou todos pereceremos” (Fratelli n. 34).

A Carta da Terra postula respeito e cuidado por tudo que existe e vive e pela responsabilidade universal (§ I,1). O Papa aponta a passagem do dominus – o paradigma da modernidade e prevalente no mundo – o ser humano como dono e senhor da natureza sem se sentir parte dela, para o frater o ser humano irmão e irmã com todos os seres. Pois todos vieram do mesmo pó da Terra; todos possuem o mesmo código biológico de base (os 20 aminoácidos e as 4 bases nitrogenadas); o ser humano se sente parte da natureza, não seu dono e senhor, sendo sua missão cuidar e guardar do Jardim do Éden (a Terra). A fraternidade universal deve ser, principalmente, entre todos os seres humanos, formando a grande comunidade humana e terrenal” (Fratelli tutti,n. 6).

Este seria o paradigma novo. O centro seria a vida em toda a sua diversidade. A economia, a política e a cultura a serviço da vida.

Importa enfatizar que uma ética do cuidado, da responsabilidade geral e da fraternidade/sororidade universal não se garante por si mesma sem a espiritualidade natural. Esta não se deriva diretamente da religião, mesmo que possa reforçá-la, mas da própria natureza humana. Esta espiritualidade natural é parte da natureza humana como é a inteligência, a vontade e a sensibilidade. Ela se revela pelo amor incondicional, pela solidariedade, pela empatia, pela compaixão e pelo cuidado e reverência face à totalidade da natureza e do universo e ao Criador de todas as coisas. É a vivência da espiritualidade natural com seus valores que sustentam comportamentos éticos, necessários para a salvaguarda da vida na Terra.

Só este novo paradigma poderá garantir o futuro da vida em geral, da vida humana e de sua civilização. Caso contrário poderemos engrossar o cortejo daqueles que caminham na direção de sua comum sepultura. Mas como diz a Carta da Terra: “Nossos desafios ambientais, econômicos, políticos, sociais e espirituais estão interligados e juntos poderemos forjar soluções includentes” (CT§ Preâmbulo c). Por aqui passa a solução de nossa crise planetária. Por isso prevalece a esperança de que o ser humano pode mudar de rumo e inaugurar uma nova etapa da aventura humana sobre o planeta Terra.

Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Comer e beber juntos e viver em paz (Vozes).

Agitando o mundo

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Nos últimos meses estamos visualizando uma grande transformação na sociedade mundial, estes movimentos são estimulados pelo forte poder dos Estados Unidos da América, com medidas unilaterais, pressões generalizadas, adoção de tarifas comerciais, com ofensas de amigos e de parceiros tradicionais, além de ofensas internas e demissões sumárias, gerando uma grande instabilidade no cenário internacional e afetando a imagem da nação, da moeda, das tradições e das instituições, sempre vistas como um exemplo de estabilidade, credibilidade e confiabilidade.

Neste momento, vivemos um período de grandes incertezas na sociedade internacional, movimentando conflitos militares em variadas regiões, agitando o mercado de armas e tecnologias bélicas, levando as nações a investirem grandes somas monetárias para a defesa nacional, acreditando que os inimigos estão em outras regiões ou aqueles que batem as suas fronteiras nacionais, como os imigrantes, que saem de suas nações vitimadas pela miséria e pela exploração, gerando um ambiente de medo e de desesperança, não compreendendo que os maiores adversários estão dentro de nossas fronteiras nacionais, grandes grupos financeiros que se comprazem com lucros estratosféricos, com taxas de juros escorchantes e setores empresariais que pagam salários desumanos e que pregam, usando seus instrumentos de comunicação, o patriotismo nacionalista e são, verdadeiros entreguistas, que vendem seu país, defendem golpes militares ou parlamentares e se comprazem com a miséria da população nacional.

Recentemente, circulou nos meios de comunicação de massa, matérias que mostravam o aumento da desigualdade econômica na sociedade internacional, publicações que mostravam este verdadeiro escárnio mundial, onde as raízes desta situação de degradação se faz, cada vez mais evidente, onde os bilionários crescem rapidamente e dominam a sociedade global, comandando as instituições políticas e garantindo seus benefícios imediatos, controlando as estruturas econômicas e produtivas, garantindo isenções fiscais e financeiras para suas próximas gerações e difundem a ideia, bem construída, da meritocracia e o poder do empreendedorismo, falácias do mundo dominado pelo grande capital improdutivo.

As discussões mais importantes para estruturar a sociedade mundial estão sendo deixadas de lado, as conversas que prosseguem servem para estimular ódios e ressentimentos, grupos muito bem-organizados que investem grandes somas de recursos monetários para degradar a reputação dos indivíduos que pensam diferente, vídeos que fomentam a mentira e a desinformação crescem e são alavancadas por empresas de tecnologias, visando estimular inverdades, provocar violências, medos e conflitos generalizados. Neste cenário, os verdadeiros assuntos que poderiam melhorar as condições de vida da população, discussões que mostram as verdadeiras lacunas nacionais e internacionais estão sendo escondidas ou escamoteadas para perpetuar as condições de vida existentes na contemporaneidade, um verdadeiro conflito generalizado de todos contra todos, o resultado de tudo isso, todos conhecemos, uns poucos mais ricos e poderosos e uma grande massa de degradados, empobrecidos e sem perspectivas de melhorias futuras. Assim caminha a humanidade…

Vivemos um momento estratégico para a sociedade brasileira, os conflitos crescem, as violências aumentam e a pobreza cresce, neste instante, precisamos saber o que queremos do futuro, será que queremos vender nossos patrimônios e nossas riquezas, entregando nossos rumos a outra nação ou precisamos compreender que estamos num momento interessante e devemos tomar conta da nossa soberania e de nossa autonomia. Acorda Brasil…

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel de Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

A importância da educação, por Samuel Pessoa

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Maior escolaridade foi essencial para que a desigualdade no mundo não crescesse

Samuel Pessoa, Pesquisador do BTG Pactual e do FGV IBRE e doutor em economia

Folha de São Paulo, 24/08/2025

Acaba de ser publicado em uma das quatro melhores revistas acadêmicas que há —o Quarterly Journal of Economics— artigo escrito pelo pesquisador Amory Gethin. A pesquisa de Gethin mede o impacto da elevação da escolaridade da população, de 1980 até 2019, sobre o crescimento da economia mundial e o crescimento da renda da população do quinto inferior da distribuição da renda global.

O artigo calcula qual teria sido a renda em 2019 se de 1980 a 2019 a escolaridade da população mundial não tivesse se elevado.

No período, a renda média per capita cresceu 1,6% ao ano. A melhora educacional explica 0,7 ponto percentual do crescimento ou 45%. Para o quinto inferior da distribuição de renda, isto é, os 20% mais pobres, o crescimento anual da renda no período foi de 1,9%. A escolarização responde por 1,1 ponto percentual ou 58% do crescimento.

No exercício, Gethin considerou que o estoque de capital não se alterou. Mas, se no período a escolaridade não tivesse se elevado, o retorno do capital teria sido menor. E de um retorno menor do capital o investimento seria menor e, consequentemente, o crescimento econômico teria sido menor.

Quando ele adiciona ao efeito direto da educação sobre o crescimento econômico o efeito indireto fruto da elevação do investimento, a parcela do crescimento econômico mundial de 1980 a 2019 explicado pela educação cresce de 45% para 62%, e de 58% para 67% para a renda do quinto inferior da distribuição de renda.

O trabalho também apresenta o impacto da melhora educacional sobre a queda da pobreza. Se empregamos a linha de pobreza de US$ 2,15 por pessoa por dia, a melhora educacional explica 35% da queda da pobreza.

Finalmente, a melhora da escolaridade nos diversos países no período foi essencial para que a desigualdade no mundo não crescesse. O ganho educacional contribui para mitigar a elevação da desigualdade de renda que ocorreu no interior de boa parte dos países do mundo. Consequentemente, a desigualdade na economia mundial não se elevou.

O estudo consolida uma quantidade imensa de pesquisas domiciliares, para inúmeros países, cobrindo mais de 97% da população do mundo de 1980 a 2019. A especificação é muito flexível. Considera que o retorno da educação seja diferente nos diversos países para os variados níveis de escolaridade.

Apresenta evidências de que o ganho salarial associado à maior escolaridade subestima levemente o impacto da educação sobre a produtividade do trabalhador e que o efeito agregado de escolarizar uma população é bem captado pelo ganho de salário individual.

A teoria empregada para mensurar a importância da escolarização da população no crescimento é parcimoniosa. Provavelmente, o exercício de Gethin subestima a importância da educação para o crescimento econômico e para a redução da pobreza. O autor empregou o retorno de mercado da educação.

Se houver qualquer impacto positivo da educação que não seja expresso pelo ganho de salário que o mercado de trabalho paga à maior escolaridade —por exemplo, pessoas com mais educação, na média, cometem menos crimes e educam melhor seus filhos—, o efeito sobre o crescimento econômico será maior.

Após 70 anos dos primeiros trabalhos de economia da educação, com as novas bases de dados e uma capacidade computacional imensa, foi possível colocar números nas intuições iniciais dos pioneiros da década de 1950.  O conhecimento avança.

 

 

Abra os olhos, Folha! por Juca Kfouri

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Impossível não se indignar diante da nova tentativa de ruptura da democracia

Juca Kfouri, Jornalista, colunista da Folha e autor de ‘Confesso que Perdi’ (Companhia das Letras); é formado em ciências sociais pela USP.

Folha de São Paulo, 23/08/2025

Os mesmos terroristas que quase levaram aos céus, em vez dos aviões, o aeroporto de  Brasília, e continuaram suas ações no dia 8 de janeiro, estão hoje na Câmara dos Deputados, na tentativa de golpear a democracia brasileira.

Se não bastasse, têm o apoio de quem o presidente Lula chamou corretamente de “imperador do mundo”.

Desta vez quem quer dar o golpe não é o banqueiro Magalhães Pinto, o “rouba mas faz” Ademar de Barros ou o “Corvo” Carlos Lacerda, líderes civis da marcha antidemocrática que redundou na ditadura militar de 1964.

Desta vez os apoiadores de Jair Bolsonaro, aquele que quis explodir a adutora do Guandu em 1987, não são os governadores de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, embora os três atuais ocupantes dos mesmos cargos sejam cúmplices dos extremistas de direita e não têm constrangimento em revelar covardia e submissão a interesses externos.

Agora os porta-vozes da aventura são tipos inconversáveis, verdadeiros ogros do PL bolsonarista, como o violento Paulo Bilynskyj, o histérico Marcelo van Hattem, a mãe desnaturada Júlia Zanatta e o “patriota” Eduardo Bolsonaro, guiado pelo neto do derradeiro ditador, o fujão Paulo Figueiredo — entre outras figuras tão pequenas como Bia Kicis, a defensora da liberdade de imprensa que processou mais de uma dezena de jornalistas.

Nem Lyndon Jonhson, o presidente dos EUA em 1964, embora estivesse na origem do golpe, teve a coragem de assumi-lo publicamente como faz o arrogante intervencionista Trump.

Tratar com tons de normalidade o processo em curso é, de duas, uma: ou se fazer de avestruz ou colaborar para mais uma interrupção do processo democrático duramente conquistado como fez esta Folha ao apoiar o golpe seis décadas atrás —para depois se engajar corajosamente na campanha das “Diretas Já”.

“O Globo” fez o mesmo, apoiou o golpe, não a campanha por seu fim, e o “Estado de S.Paulo” também.

Não trabalho nem para um e nem para outro, seria indevido querer pautá-los, além de apostar que jamais publicariam um artigo como este, e exponho aqui meu desalento — noves fora a esperança de sensibilizar, não de pautar, para mudança de rumo na cobertura da insânia em curso.

Pouco importa estar de acordo ou não com o atual governo.

Trata-se de defender a soberania e a democracia sem concessões e outroladismo para quem solapa a democracia.

Não há isenção possível entre Winston Churchill e Adolf Hitler. Ou entre Ilan Pappe e  Binyamin Netanyahu.

Durante anos esta Folha adotou o lema “Um jornal a serviço do Brasil”.

Por menos que tenha sido fiel ao bordão antes, durante e depois do golpe, pode se orgulhar de tê-lo seguido ao se transformar no diário mais arejado, criativo, instigante do país, também o de maior circulação, graças a jornalistas como Otavio Frias Filho e seu Projeto Folha, Ricardo Kotscho, “o Repórter das Diretas, e Matinas Suzuki, o mais inquieto dos editores, para citar apenas três responsáveis pela guinada iluminista.

Então, trabalhar na Folha era motivo de orgulho mesmo quando, a FOLHA sendo FOLHA, tropeçava aqui ou ali.

Hoje não está bem assim.

Onde está a indignação, a denúncia veemente, a cobrança incessante para que o dócil e intimidado Hugo Motta tenha 10% da postura de Ulysses Guimarães na presidência da Câmara?

Por críticas que se façam ao ministro Alexandre de Moraes, e é acaciano dizer que ninguém está acima delas, deixar de enaltecer seu papel em defesa do país é, no mínimo, ingratidão, além de injusto.

Como são injustos, ingratos e oportunistas os que cobram de Lula o diálogo com quem nos ameaça e chantageia ao ignorar o ensinamento de Millôr Fernandes: “Quem se curva diante dos opressores mostra o traseiro para os oprimidos”.

Abre os olhos, Folha!

 

O “patriotismo” do Outro, por Eugênio Bucci

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Eugênio Bucci – A Terra é Redonda – 22/08/2025

A frase de Jacques Lacan – “o desejo do homem é o desejo do Outro” – ensina que um cidadão genérico, quando deseja, expressa menos um desejo original, pessoal, e mais o desejo dominante da ordem simbólica que o contém

Os “patriotas” das arruaças, do culto às armas e das camisetas amareladas ganharam votos gritando “Brasil acima de tudo” e “Deus acima de todos”. Dupla pobreza de espírito.

O primeiro slogan nunca passou de um plágio de mau gosto do bordão nazista “Deutchland über alles” (“Alemanha acima de tudo”). Quanto a “Deus acima de todos”, bem, nenhuma novidade. O Altíssimo assim é chamado por habitar supostamente píncaros celestiais insuperáveis. Quanto ao mais, o dístico nunca parou de pé: Deus deveria ser posto acima do Brasil ou seria o contrário?

Com o tempo, ficou evidente que os tais “patriotas” eram na verdade “estrangeirotas”: patriotas do estrangeiro. Um deles, em 2017, numa excursão à Flórida, chegou a bater continência para uma bandeira dos Estados Unidos estampada numa tela eletrônica. Ao microfone, o voluntário da servidão incondicional confessou: “A minha continência à bandeira americana”.

Em 2019, o mesmo personagem arriscou um “I love you” para Donald Trump, que passava por ali apressado. Em síntese, o que eles queriam dizer era “Brasil acima de tudo”, desde que não acima dos Estados Unidos, e “Deus acima de todos”, menos de Donald Trump.

Outro dos “patriotas” fugiu do Brasil e dá expediente em Washington, onde faz reuniões obscuras com autoridades obtusas de um governo tanático para articular sabotagens contra a economia brasileira e chantagens contra as autoridades daqui. A infâmia chegou a tal ponto de histeria e absurdos que o clã vem sendo classificado como traidor. Procede.

Há gente capacitada escarafunchando os regimentos do Poder Legislativo para detectar as tipificações do desvio, enquanto bons oradores vão a comícios para criticar esse “patriotismo” lesa-pátria. Têm razão. O problema é que existem aqueles que fingem não ver nada de esquisito. Como alertá-los? Incrível como não querem enxergar. O esquisito, o atípico, é o que temos hoje de mais fatídico, mais cínico, mais explícito e mais apodítico.

Num dos livros do psicanalista francês Jacques Lacan, Quatro conceitos fundamentais da psicanálise, lemos que “o desejo do homem é o desejo do Outro”. Devíamos buscar nessa chave analítica uma luz para entender o “patriotismo” que se define pelo negacionismo da Pátria e se ajoelha diante da bandeira alheia para rifar a sua própria.

A frase de Jacques Lacan – “o desejo do homem é o desejo do Outro” – ensina, entre outras coisas, que um cidadão genérico, uma pessoa como eu ou você, com todo o respeito, quando deseja, expressa menos um desejo original, pessoal, e mais o desejo dominante da ordem simbólica que o contém.

Esse Outro com “O” maiúsculo não é um outro qualquer, como um cunhado ou um colega da repartição, mas um senhor sobre-humano, capaz de ordenar o desejo dos mortais de carne e osso – sobretudo daqueles mortais que não têm nada de coluna vertebral, como é o caso.

O Outro maiúsculo não se compadece de nada nem de ninguém. Exemplos? Aqui estão: a autoridade sobre a qual se erigiu a Igreja Católica, ou a sua pedra fundamental; o capital, igualmente; o imperialismo que anima a Casa Branca. O desejo do homem é o desejo que o Outro, maiúsculo, diz ao homem, minúsculo, para fazer de conta que sente.

Você pergunta a um gerente de marketing, um dirigente sindical ou um operador da bolsa qual o ideal de beleza que ele tem e ele começa a descrever minuciosamente a Barbie. O desejo, nele, é o dedo em riste do Tio Sam, mas ele mesmo não sabe. Barbie para todos.

O “patriotismo” dos trumpatetas brasileiros reproduz a fórmula do “desejo do Outro”, mas em tintas rastaqueras. Adestrados pelos filmes de Tom Cruise, de Stallone e de Chuck Norris, os “patriotas” do Outro são tão rasteiros que nem souberam substituir a bandeira dos Estados Unidos pela do Brasil na hora de fazer seu teatrinho. Encenam uma paródia tosca: adoram uma bandeira que não é a deles, numa terra que não lhes concede um reles passaporte.

Dá pena. Tanta pena que o suposto Deus poderá perdoá-los, pois eles, ainda que premeditem com vileza o mal que querem fazer ao Brasil, não sabem o que fazem. Talvez seus pecados sejam redimidos pelo ente que paira “acima de todos”, menos de Donald Trump. Mas e quanto à nação brasileira? Poderá ela anistiá-los por antecipação? Poderá tratá-los como como semoventes inconscientes e inconsequentes – o que, de resto, eles são?

Espera-se que não. Em 1947, o Partido Comunista Brasileiro foi cassado porque seu líder, Luiz Carlos Prestes, teria dito numa entrevista que, numa guerra entre Brasil e União Soviética, ficaria do lado de Stalin. A verdade é que Prestes nunca disse isso, apenas fez um raciocínio hipotético: se o Brasil apoiasse uma guerra imperialista contra o Kremlin, ele lutaria para derrubar o governo brasileiro. Foi uma declaração de mau jeito, sem dúvida, e ela serviu de pretexto para colocarem o PCB na clandestinidade, injustamente. Agora, o caso é muito mais sério.

Os “patriotas” do Outro se associaram ativa e publicamente a uma potência estrangeira para mover covardemente uma guerra comercial, diplomática e moral contra o Brasil. E aí?

Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica).