Pobreza, tema esquecido pela esquerda? por Maurício Abdalla.

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Luta de classes perde espaço. Para a fome, apenas programas sociais. Projetos de emancipação aprisionam-se na Academia. O identitarismo propõe inclusão vazia diante de opressões. Resultado: discursos estéreis, desilusão e avanço do fascismo

Maurício Abdalla – OUTRAS PALAVRAS – 04/06/2025

A pobreza foi tema recorrente na teologia e nas ciências sociais e foi objeto de inúmeras e distintas concepções. Havia, porém, duas compreensões gerais acerca da pobreza que separavam as análises e em dois campos, a partir dos quais se dividiam as ações e projetos de intervenção prática na esfera social e política. Em um campo, podia-se reunir as teologias e concepções religiosas ingênuas ou conservadoras, para as quais a pobreza aparece como o campo eterno da caridade assistencialista e a visão liberal. Todas têm em comum a compreensão de que a pobreza não é um problema transitório, superável na história, mas sim uma condição dada da existência humana.

Na visão religiosa ingênua e na concepção liberal humanista, os pobres podem receber paliativos para aplacar seu sofrimento e é possível resgatar uma parcela deles para conceder-lhe ascensão social. Há também um liberalismo pragmático que se preocupa com a pobreza por entender que a desigualdade extrema pode atrapalhar o bom desenvolvimento da economia. Assim, admitem, justificam e até defendem programas assistenciais e de transferência de renda para minimizar os efeitos deletérios da pobreza para a estabilidade econômica. Mas a realidade estrutural da pobreza nunca é considerada como algo produzido na história, que pode ser eliminado por nossa ação.

No outro campo, situavam-se a Teologia da Libertação e as teorias sociais crítico-emancipatórias, grande parte de inspiração marxista, mas também com desenvolvimentos locais próprios, que tinham em comum a concepção da pobreza como um problema estrutural, que poderia e deveria ser eliminado pela raiz. A situação de privação a que bilhões de seres humanos estão submetidos não teriam caráter de perenidade, inevitabilidade ou necessidade. Ao contrário, seriam produzidas na história por estruturas injustas criadas por um conjunto de seres humanos e impostas com violência aos demais.

práxis (ação e discurso, prática e teoria) resultante dessa concepção colocava como objetivo a transformação estrutural da sociedade e tinha uma percepção sistêmica acerca da pobreza. Ou seja, o problema não era concebido de forma fragmentada – cujas soluções seriam apenas locais e estariam restritas a cada grupo social vitimado pela pobreza –, mas compreendido como parte de uma totalidade que unificava distintas realidades em um campo maior de exploração e opressão. Era, portanto, necessário entender cada face real e específica da pobreza, sem ocultar ou desconsiderar suas especificidades, dentro de uma totalidade maior que abarcava as distintas formas de exploração, opressão e exclusão.

A análise crítica e rigorosa do sistema e a práxis emancipatória dos movimentos sociais populares dos países periféricos identificaram que as raízes geradoras da pobreza eram as mesmas que produziam opressões específicas contra distintos grupos entre os pobres. A estrutura econômica tinha diferentes formas de concretização e especificidades relacionadas à realidade dos países colonizados pelo processo civilizatório do capital, como a escravização dos negros, a violência contra os povos indígenas e suas consequências para as relações sociais. A prática dos movimentos sociais, principalmente os populares, despertou também a atenção para os problemas das mulheres, tematizando a questão de gênero de forma popular, um pouco diferente do feminismo clássico. Isso marcou o discurso e a prática de intelectuais orgânicos, pastorais e Comunidades Eclesiais de Base, movimentos sociais e partidos que se colocavam no campo da luta emancipatória até os anos 1990. As questões de gênero, raça e etnia eram compreendidas, em suas particularidades, na totalidade das consequências da colonização capitalista.

A partir dos anos 90, muita coisa mudou na práxis emancipatória dos setores progressistas das igrejas, dos movimentos sociais e partidos de esquerda. De um lado, a queda dos regimes socialistas do Leste Europeu e da URSS provocou um furacão que bagunçou análises, utopias e discursos. De outro, uma ofensiva planejada dos EUA no campo cultural e intelectual entrou em marcha para conquistar o território estratégico das subjetividades, exatamente em um momento de fragilidade e confusão.1 Essa ofensiva não foi apenas ideológica, no sentido de entregar às massas uma explicação falsa do mundo, para submetê-las ao sistema. A batalha das ideias foi vencida também no campo do pensamento teórico, do discurso emancipatório, da conformação dos movimentos sociais e partidos de esquerda.

Os movimentos emancipatórios atuais têm grande dificuldade para identificar, com a clareza de outros tempos, um lócus central do poder e da exploração e não têm conseguido pensar de forma sistêmica, de modo a identificar uma totalidade que conecta a pobreza e as opressões particulares entre si e estas às esferas econômica e macropolítica.

As mudanças reais nas relações de poder e na economia global geraram essa dificuldade de entendimento, mas o refúgio de intelectuais em teorias fragmentadoras e antimarxistas da “onda pós” (pós-moderna, pós-estruturalista, pós-colonial, pós-crítica), oferecidas à mancheia nas universidades, com amplo apoio das agências estadunidenses a partir dos anos 90,2 foram determinantes para uma mudança de perspectiva.3 É claro que isso iria se refletir, de uma forma ou de outra, na dinâmica das novas gerações da esquerda e na práxis do campo emancipatório.

Mas, o impacto foi potencializado pelo fato de que os partidos de esquerda, a Igreja Católica, os movimentos sindical e popular (com poucas exceções) deixaram de fazer a formação de militantes que era feita por meio da educação popular, que unia teoria e prática. Isso fez com que o campo teórico das lutas emancipatórias passasse a ser alimentado apenas pelas universidades, onde o mundo real, a prática social e as lutas reais parecem passar a quilômetros de distância e tudo se torna apenas conceito de livre manipulação teórica.

A forma de compreensão da realidade produzida pela “onda pós” gerou uma percepção subjetiva do mundo que descarta a totalidade sistêmica em nome da fragmentação do real, defendida por teorias desencarnadas da realidade efetiva da luta política popular. No campo da organização social, isso impede que se tenha uma definição clara a respeito de qual inimigo se deve enfrentar, o que ocasiona a criação de inimigos dentro do próprio campo emancipatório e chega a provocar uma disputa fratricida entre grupos e pessoas que, a princípio, deveriam estar do mesmo lado na luta. O resultado é que os movimentos de emancipação atual não conseguem definir estratégias coletivas de ação no nível macrossocial, adaptadas à conjuntura e às transformações do mundo.

É esse contexto de mudanças e perplexidade que cria o ambiente para o florescimento de teorias, concepções e discursos que abandonam quase por completo a perspectiva de transformação estrutural em favor da exclusividade, fragmentação e autonomia de questões relacionadas aos direitos das minorias sociológicas.

Em uma concepção sistêmica da sociedade e de seus problemas, cada vez mais “fora de moda”, as opressões relacionadas a questões raciais, étnicas, de sexo, gênero, idade, condição física e mental etc., são opressões específicas, que ocorrem no interior de uma sociedade dividida em classes por um sistema que explora a parcela majoritária da população e a lança em situação de pobreza. A realidade das pessoas que, além da pobreza genérica, sofrem as opressões relacionadas a uma existência específica enseja a criação, por reconhecimento de identidade comum, de subgrupos políticos particulares que desenvolvem lutas, resistências e produção intelectual relacionadas a essas identidades. Porém, quando se considera que todos vivem em uma mesma sociedade atravessada por um conflito de classes do qual ninguém pode fugir, esses grupos podem entender-se como um grupo identitário particular, sem, contudo, perder a perspectiva de uma identidade maior definida pela condição de classe, que une a todos e todas em uma condição estrutural de pobreza e exclusão.

Quando as identidades são concebidas a partir da compreensão da unidade de classe, deixam de existir a mulher genérica, o negro genérico, a pessoa trans genérica etc. (cujos inimigos seriam o homem genérico, o branco genérico, a pessoas cis genérica etc.), para se tratar da mulher trabalhadora, do negro pobre e excluído, da pessoa trans desempregada etc. Ou seja, os conceitos mais gerais relacionados às questões de sexo, raça, etnia, identidade de gênero etc. ganham concreticidade quando pensados não em sua dimensão abstrata e ideal, mas na concreticidade de sua existência dentro de um sistema que os moldam a uma realidade específica. À luz dessa compreensão, surge a mulher concreta, o negro concreto, a pessoa trans concreta etc. Todos passam a se compreender como vítimas de uma situação de opressão adicional, que deve ser pensada a partir de suas especificidades, dentro de uma situação mais ampla de pobreza que os unifica como classe e é causada pelos agentes concretos do sistema.

A percepção dessa relação estabelece uma distinção entre, de um lado, as formas de luta por inclusão e representatividade que só transformam as condições de vida e trabalho dos poucos que conseguem ocupar os espaços limitados de inclusão e representação, enquanto a maioria dos “representados” continua amargando as condições de vida precárias que a estrutura social lhes destina; e, de outro lado, as formas de luta que, além de almejarem uma mudança nas relações culturais que reproduzem as opressões, encaram o problema econômico estrutural como causa de uma exclusão maior decorrente da pobreza, desemprego, salários baixos, jornadas excessivas de trabalho, concentração de terras, segregação urbana e falta de acesso aos serviços públicos (saúde, educação, segurança, crédito, mobilidade etc.) e aos meios de ascensão social (emprego e educação superior de qualidade). É a mesma divisão dos campos que distinguiam as visões liberais e crítico-emancipatórias com relação à pobreza. Assim se dividiam os espectros políticos à direita e à esquerda na luta política e social.

A primeira forma é uma maneira de pensar liberal e pode ser abraçada por pessoas de distintas compreensões e posições de classe; a segunda é a perspectiva do campo emancipatório crítico, que só pode ser abraçada por aqueles que se situam em condição subalterna no sistema, como classe que não possui propriedade rentável ou renda que não venha de seu próprio trabalho, e por aqueles que se colocam a seu lado do ponto de vista teórico e prático.

Porém, por força de muita propaganda e guerra cultural inteligentemente planejada e executada, a concepção que isola esses subgrupos e deixa de concebê-los como pertencentes a um grupo maior, atravessado pela divisão de classes e pelos problemas de ordem econômica estrutural, acabou prevalecendo até nos movimentos sociais e partidos de esquerda. A abordagem de orientação liberal e pós-moderna dessas temáticas deixou de caracterizar apenas o espectro político da direita liberal. Assim, ao contrário de atuar no sentido de conectar as lutas identitárias às lutas mais abrangentes e interrelacionadas (sem deixar de considerar as especificidades), que incluem a esfera da economia e da macropolítica, a visão liberal predominante na esquerda concebe essas lutas como autônomas e independentes, que se unem apenas quando algumas dessas opressões se acumulam em identidades individuais múltiplas (como o ser mulher e negra, ou negro e LGBTQIA+ etc.).

Nessa concepção particularista e fragmentada da luta social todos os problemas se reduzem ao que é tematizável na esfera específica de cada “identidade” experimentada e vivenciada no cotidiano. Como a classe social não é um desses temas de visibilidade aparente no particular, nem na vivência pessoal – pois é produto de uma elevação dialética do pensamento –, essa maneira de se compreender a luta social admite aliança dos grupos identitários com grandes empresas capitalistas, responsáveis pela situação de desigualdade e fome no mundo, guerras genocidas, destruição do ecossistema, exploração da população dos continentes periféricos, desinformação e atentados à democracia, como Rede Globo, Walt Disney, Vale, Banco Itaú, Visa, Microsoft, IBM etc., e as fundações internacionais geridas por bilionários.

É nesse contexto que a pobreza e as raízes de sua produção desaparecem do âmbito da luta e dos discursos da esquerda, restando apenas a disputa pelos espaços limitados de representação, o empreendedorismo identitário, a meritocracia liberal com cores progressistas ou o talento individual de pessoas dos grupos oprimidos, como saídas possíveis para a situação de pobreza, acessíveis apenas para uma parcela insignificante desses grupos sociais.

Tal visão exclusivista, nem sempre apresentada de forma explícita, tem sido chamada de identitarismo.7 Jessé Souza descreve bem esse deslocamento de perspectiva:

Como as classes e suas socializações primárias se tornam invisíveis, então o mundo social passa a ser dividido em grupos sociais cujas diferenças se devem a supostas “identidades culturais grupais” – mulheres, homens, negros, brancos etc. É como se a sociedade fosse um amontoado de indivíduos, todos com a mesma capacidade, a mesma família, a mesma educação, as mesmas chances, apenas com gênero e raça diferentes. Como a real produção da desigualdade é mantida em segredo, então as diferenças só podem se dever a gênero e raça, obviamente.

O identitarismo liberal adotado pela esquerda, ou seja, a nova forma de se abordar as opressões das minorias sociológicas, é fruto de concepções que vieram do Norte Global para substituir as teorias emancipatórias dos países periféricos, que relacionavam as opressões de gênero e raça à exploração de classe e à luta contra o sistema. Ainda sobre o tema, diz Souza:

O tema da diversidade, como forma de proteger as minorias identitárias, foi utilizado para tornar invisível a desigualdade de classe no acesso a riqueza e poder. Com isso, tanto o capitalismo financeiro quanto a Rede Globo podem tirar onda de emancipadores. Para o capital, é irrelevante se ele está explorando homem ou mulher, branco ou preto, homossexual ou heterossexual.9

Nessa concepção, o problema da pobreza estrutural praticamente desaparece em nome da luta pela “representatividade” e pela “diversidade” dentro do sistema. As identidades oprimidas podem sentir-se vencedoras quando um artista negro ou negra ou trans ganha milhões e entra no show business, ainda que seus irmãos e irmãs de opressão e de classe sigam amargando as piores condições de vida e de trabalho que se possa imaginar, ou sofrendo preconceitos que podem custar-lhes a felicidade, a integridade física e até a vida. Basta o sucesso de um artista da favela para se dizer que “a favela venceu”, quando as casas das favelas continuam sob o risco de desabamento nas encostas, com acesso precário, sem serviços de esgoto, segregadas da cidade e sob o império do terror imposto pelo crime organizado do tráfico ou das milícias.

Embora produto teórico do liberalismo, o identitarismo espalhou-se pela esquerda, que o acolheu de forma acrítica, pensando ter ele a exclusividade no tratamento das opressões de gênero, raça e etnia, que já faziam parte das lutas emancipatórias latino-americanas e eram tematizadas por autores e autoras do mundo periférico em outras épocas e em outra perspectiva, em livros que jamais se tornaram best sellers, escritos por autores que não viraram celebridades midiáticas. E ele penetrou de tal forma no universo mental da nova esquerda que, por mais que se esclareça, de todas as formas possíveis, que a crítica ao identitarismo não é a crítica às lutas das minorias, haverá sempre os que responderão como se a crítica fosse dirigida a essas lutas.

A crítica teórica de esquerda ao identitarismo é uma defesa do caráter revolucionário e estrutural que as lutas das minorias podem ter, mas que é sufocado por um modismo alimentado por grandes e poderosas corporações que dominam a economia mundial. De maneira alguma, nem lógica e nem praticamente, é uma crítica que parte de quem é contra essas lutas. Quando, porém, se tenta alertar que o identitarismo é uma concepção que provoca o isolamento dessas lutas e bandeiras e faz as questões estruturais da pobreza desaparecerem do horizonte emancipatório, o embotamento da capacidade raciocinativa de muitos militantes e intelectuais aflora e se torna visível.

O maior sintoma da vitória dos EUA na guerra cultural iniciada nos anos 1990, mesmo sobre o pensamento emancipatório, é a reação quase hipnótica de pessoas que respondem a crítica ao identitarismo, feita por gente assumidamente do campo da esquerda, com discursos rasos em defesa da luta dos negros, jovens, mulheres, população LGBTQIA+, como se estivessem confrontando alguém da extrema-direita que combatem as pautas desses movimentos e as reduzem a “mimimi” e à moda do “politicamente correto”.

O desaparecimento da pobreza e das questões de classe social no discurso atual da esquerda, portanto, foi resultado tanto da perplexidade causada pela fase neoliberal e globalizada do capitalismo, que predomina desde a penúltima década do século XX até os nossos dias, quanto da disseminação proposital de ideias e modas teóricas vindos dos EUA e Europa por meio das universidades e da promoção midiática e editorial de autores cujos pensamentos eram aplicações desses modismos intelectuais à nossa realidade.

O resultado disso, no mundo real, é a perda cada vez maior de identificação dos pobres com os discursos da esquerda, principalmente dos que não pertencem a uma identidade oprimida particular. Além disso, cresce a adesão dos pobres ao discurso fascista, que os articulam também em uma identidade fragmentada, um tipo de identitarismo de direita, no qual eles se identificam como pessoas abandonadas pelo sistema e cujos valores e tradições estão ameaçados pela esquerda. O lema “Deus, Pátria e Família” tem arrastado muito mais os pobres do que qualquer jargão lacrador identitário a que se reduziu a prática identitarista. E sem a adesão dos pobres, maioria em qualquer país capitalista, a esquerda (e qualquer força política) se inviabiliza como alternativa de poder.

Notas:

1 Ver sobre isso meu artigo “Em busca da funda de Davi”, publicado em Outras Palavras.

2 ROCKHILL, Gabriel. Como a teoria francesa pós-marxista contribuiu com a CIA em desacreditar o anti-imperialismo e o anticapitalismo. Opera Mundi, 10/03/17.

3 Para entender o que esteve em jogo no pensamento acadêmico nos anos 1990, ver o livro de João E. Evangelista: Crise do marxismo e irracionalismo pós-moderno. São Paulo: Cortez, 1992

4 Digo isso amparado em 30 anos de docência em Universidade Federal e quase 40 de educação popular militante.

5 Essa foi a história dos movimentos negro e feminista, que surgiram originalmente das lutas de trabalhadores e trabalhadoras organizados em movimentos de inspiração socialista.

6 Atente-se o leitor ou leitora que falo de uma visão predominante, não exclusiva. Se seu grupo identitário ou a sua percepção individual não se enquadram nessa descrição, é óbvio que a análise crítica não se refere a você e a seu grupo. Portanto, antes da irritação padrão e da reação negativa comumente gerada por essa reflexão, entenda que, se sua prática ou a de seu grupo realmente não reproduz a descrição acima, não é você ou seu grupo o objeto da crítica.

7 Mesmo estando claro, é preciso repetir milhões de vezes que o identitarismo é uma perspectiva a respeito das lutas identitárias. Ele não se confunde com as próprias lutas e pautas que se articulam sob o eixo das identidades (como a dos negros, mulheres, população LGBTQIA+), mas é uma maneira particular de se entendê-las. Assim a crítica ao identitarismo não é uma crítica às lutas e pautas das minorias, mas a uma maneira de se concebê-las. Tratei isso de forma didática, quase “explicado às crianças” em um pequeno artigo chamado “O significado da crítica ao identitarismo”, publicado em Outras Palavras.

8 SOUZA, Jessé. Como o racismo criou o Brasil. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2021. p. 23-24

9 SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à lava-jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017. Nota de rodapé 61.

10 Veja sobre isso o artigo de Rodrigo Perez Oliveira: Os impasses da política identitária, na revista Insight Inteligência n. 107, dezembro de 2024.

 

Novas Tecnologias

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Vivemos um momento de grandes transformações tecnológicas, novos modelos de negócios surgem diuturnamente, novas demandas crescem de forma acelerada, o surgimento de novos mercados de consumo exigem que as empresas e as organizações se modifiquem, ganhando espaço para novas estratégias de sobrevivência, num mercado, cada vez mais competitivo que abarca produtores e consumidores de todas as regiões do mundo.

As novas tecnologias estão moldando o nascimento de uma nova sociedade, surgindo novos valores e comportamentos, os trabalhadores percebem as modificações no mundo do trabalho, as corporações sofrem demandas constantes e cotidianas, as universidades estão em constantes mutações e, desta forma, abrem espaços para novas oportunidades e, ao mesmo tempo, novos desafios, gerando expectativas crescentes, medos e constrangimentos.

As tecnologias estão transformando as formas de comunicação social, fenômenos mundiais que demoravam dias para se espalharem para a sociedade mundial, são vistos imediatamente em todos os quadrantes do globo, exigindo uma flexibilidade constante de todos os atores econômicos e produtivos, sob pena de serem ultrapassadas pelos concorrentes dotados de maior agilidade.

Todas estas tecnologias nascem dos grandes investimentos em ciência, pesquisa e inovação, cujos recursos aumentam e consolidam o conhecimento humano, transformando as formas de vida e de reprodução social, trazendo ganhos substanciais e, ao mesmo tempo, gerando destruição de muitas empresas e setores produtivos e, ao mesmo tempo, o nascimento de novos setores econômicos, exigindo novas qualificações, novas habilidades e novos comportamentos.

Os investimentos responsáveis pelo incremento tecnológico são oriundos dos governos nacionais e dos grandes conglomerados econômicos, que incentivam fortemente as pesquisas científicas e as inovações tecnológicas, vislumbrando melhoras e benesses sociais, além do aumento do lucro monetário, os ganhos de novos mercados, alegria dos acionistas e a satisfação de seus consumidores.

Até pouco tempo, as empresas nacionais atuavam em mercados altamente protegidos pelos governos locais, os investimentos em tecnologias eram reduzidos, os mercados eram marcados por pequena concorrência, setores fortemente oligopolizados, mercadorias com pouca qualidade e produtos de baixo valor agregado. Com a abertura econômica, percebemos uma verdadeira revolução no mercado nacional, a entrada de atores estrangeiros, com produtos melhores e maior qualidade, com isso, os mercados passaram a exigir uma modernização dos setores econômicos e produtivos, uns conseguiram sobreviver neste tsunami econômico, mas ao mesmo tempo, muitos setores sucumbiram, empresas quebraram, trabalhadores perderam seus empregos e passaram a adotar uma nova estratégica visando a sobrevivência.

As novas tecnologias exigem uma postura mais efetiva e mais consistente em investimentos científicos e tecnológicos, com foco na inovação, fortes aportes financeiros em educação e em pesquisa científica, evitando discursos evasivos da classe política e dos setores empresariais, este último, que pouco investe em tecnologias. Neste cenário, precisamos evitar a degradação das universidades públicas e dos centros de pesquisas que são eles os grandes responsáveis pelo desenvolvimento científico e tecnológico, evitar cortes sistemáticos de recursos e mostrar para todos os grupos sociais a importância das universidades e da pesquisa científica para alavancar o desenvolvimento do país. As mudanças econômicas globais nos mostram que a ascensão das nações asiáticas está associada aos grandes e consistentes aportes financeiros na educação, na ciência e no desenvolvimento tecnológico, construindo tecnologias nacionais, valorizando a ciência e evitando a perpetuação da dependência dos atores internacionais que reproduzem uma colonização mental que perdura a séculos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

 

 

 

Agora temos especialistas? onde? por Francisco Batista Júnior

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Francisco Batista Júnior – A Terra é Redonda – 05/06/2025

Especialistas no SUS ou para o SUS? Como as Parcerias Público-Privadas cavam a cova do Sistema Universal de Saúde

1.

A militância da Reforma Sanitária e o povo brasileiro conseguiram garantir na Constituição Federal de 1988 o Sistema Único de Saúde (SUS), a maior conquista da nossa história. Num país profundamente desigual, escravagista, excludente e desigual, a falência da ditadura de 1964 e a retomada das liberdades democráticas e de organização da sociedade, foram decisivas para vencer a resistência dos setores conservadores, oligopolistas e atrasados do país.

Como previmos e afirmamos na época, o Poder constituído, as elites, o “Mercado” e os grupos econômicos e políticos hegemônicos não assistiriam passivamente à implantação e consolidação do SUS que era intrinsecamente uma grave ameaça ao status quo. Partiram para a disputa, cônscios de que ali estava um nicho privilegiado a ser por eles explorado. Afinal, estava sendo gestada uma poderosa política de Estado de um potencial financeiro significativo e uma capacidade de capilaridade privilegiada com uma demanda perene, permanente e inesgotável a serem explorados.

Organizados nos Parlamentos, inseridos nas três esferas de gestão e atuando fortemente junto aos gestores e à mídia, deflagaram um grande movimento traduzido na contratação de serviços privados, num primeiro momento na atenção terciária e especializada, com argumentos pueris como “É importante que o SUS tenha parceiros privados, sozinho não dará conta” ou “O usuário não pode ficar esperando pelo Estado” ou ainda “Para o usuário não importa se o serviço é público ou privado contratado, o que ele quer é ser atendido”.

Contando com a participação direta de gestores comprometidos com e a serviço do setor privado, e outros que, sem o devido acúmulo conceitual sobre a proposta da reforma sanitária acreditavam mesmo que o caminho poderia ser aquele, já no final da primeira década de vida o SUS, a população e os gestores enfrentavam uma crescente dependência do setor privado, sofrendo com isso as consequências, na forma de comprometimento do financiamento, indisponibilidade de serviços, equipamentos e profissionais, e de um número cada vez maior de pessoas privadas do atendimento.

A história e o mundo nos ensinaram que, política e financeiramente, é impossível se implantar um Sistema Público de Saúde de cunho universal e integral, como o SUS, na lógica de mercado, concorrendo com sistemas privados que se utilizam dessa lógica para aliciar profissionais e disponibilizar procedimentos, numa disputa profundamente desigual. No nosso país é mais grave ainda, o Estado é seu próprio algoz enquanto retroalimenta seus competidores com recursos públicos na forma de contratos, convênios e subsídios os mais variados.

Alexandre Padilha, ministro da Saúde, constata que 90% dos médicos especialistas estão na saúde privada e apenas 10% no SUS. Por quê? Simples! Eles preferem o privado porque lá recebem atraentes pagamentos por procedimento que realizam e pior, em grande parte das vezes, pagos pelo SUS. Assim a cada serviço privado que contrata, mais difícil se torna o SUS ter especialistas nos seus quadros, por maior que seja o número de formados (o governo promete 3.500), eles sempre preferirão o privado, independentemente do salário que o SUS ofereça.

Temos no Brasil uma equação profundamente perversa em que o SUS é fortemente médico-centrado, voltado para a atenção especializada, com importantes déficits no financiamento, na atenção básica, nas equipes multiprofissionais, nas ações de prevenção de doenças, promoção da saúde e intersetoriais, e na formação e distribuição dos médicos, de quem o SUS é refém.

2.

Num quadro como esse, flagrantemente insustentável política e economicamente, o SUS é engolfado pela saúde suplementar e privada, tendo se tornado totalmente dependente da rede privada contratada e conveniada e das corporações organizadas em cooperativas e outros instrumentos mercantis da força de trabalho, como a “pejotização”.

O nefasto projeto de privatização e consequente inviabilidade e sustentação do SUS, que começou com a contratação dos serviços privados de nível secundário e terciário de atenção (média e alta complexidade), especializados e de alto custo, se estendeu muito rapidamente à gestão e gerência de toda a rede do SUS, através das OSS – Organizações Sociais de Saúde, OSCIP – Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, e os ditos parceiros privados, e logo se estendeu também, através de instrumentos públicos de direito privado, a pessoas jurídicas que exercitam a privatização através do clientelismo, patrimonialismo e fisiologismo político, como as Fundações de direito privado, Serviço Social Autônomo e EBSERH.

Uma das consequências dessas opções é que também a força de trabalho foi e está sendo mortalmente ferida com a privatização através das terceirizações, quarteirizações, contratos temporários, cooperativas e contratos com pessoa jurídica, que precarizam e aviltam profissionais da saúde.

É nesse gravíssimo quadro de virtual inviabilidade do SUS em seus princípios basilares, que o governo lança o programa denominado “Agora temos especialistas”. Sim, como dissemos, a ausência de uma atenção básica resolutiva, de ações intersetoriais, de uma rede própria de procedimentos especializados e de equipe multiprofissional com plena capacidade de não somente atender à demanda, mas também de diminuir seu crescimento exponencial, produziram um colapso que flagela milhões de brasileiros em todas as regiões do país.

O programa lançado “Autoriza o credenciamento de clínicas e hospitais privados para o SUS”. O correto seria que o governo começasse um grande projeto de ampliação e estruturação da rede pública de modo a paulatinamente diminuir a dependência que tem da rede privada. Como há urgência e a população, concordamos, não pode mais esperar, é lícito compreender a necessidade de contratação de alguns serviços privados desde que, concomitantemente, seja deflagrado um projeto para o setor público. A questão é que o governo não pensa, a julgar pela apresentação feita por Alexandre Padilha, em ampliar, fortalecer e estruturar a rede pública. Num outro caminho, a prioridade absoluta, as declarações dele provam isso, é a rede privada.

Numa forma de acariciar os proprietários e gestores dos serviços privados, Padilha diz com todo o orgulho que “Começa a enterrar de vez a famigerada tabela SUS”, sem falar, no entanto, em superar a lógica mercantilizada da tabela, pelo financiamento de acordo com as necessidades e o perfil socioepidemiológico de cada local referenciado. Ao contrário, aprofunda e agrava a mercantilização de procedimentos e atendimentos.

3.

O programa propõe credenciar “Qualquer clínica privada, qualquer hospital privado, qualquer ambulatório privado”. Além disso, diz Alexandre Padilha, “Vamos fazer um programa onde esse ressarcimento (dos Planos de Saúde e de hospitais que têm dívidas com o governo) vai ser, pode ser trocado por mais cirurgia, mais exame diagnóstico, mais consulta com especialista”.

“(É) a situação de vários hospitais privados e filantrópicos desse país que têm dívidas acumuladas, dívidas que se acumularam ao longo de anos, tributárias, previdenciárias, dívidas fiscais. Graças à parceria com o Ministério da Fazenda vamos criar um programa que relembre o Prouni, que pegava a dívida e transformava em vaga de atendimento para quem não podia pagar. Agora essa dívida vai ser transformada em mais atendimento às pessoas”.

O Prouni teve um papel importante, sim, na inclusão de significativa parcela da sociedade no ensino universitário. Porém, além de não ter sido acompanhado por um fortalecimento adequado da educação fundamental, que continua com os mesmos problemas, teve efeitos deletérios como a recuperação de instituições privadas então literalmente falidas, bem como ampliar drasticamente o número de instituições (2.274, correspondente a 87,75%) e vagas (23.681.916 correspondentes a 95,9%) no ensino universitário privado, conforme dados de 2023.

O FIES, por seu turno, tem hoje um saldo devedor de R$ 116 bilhões, uma inadimplência de 61,5%. Tudo indica que o mesmo fatalmente acontecerá na saúde do país e no SUS.

Hospitais que não tenham dívidas também serão beneficiados “recebendo créditos que poderão ser utilizados para abatimento de impostos ou de outros pagamentos que ele tenha que fazer pra frente, ou seja, abriu a porta do hospital pro SUS, vai ter a mão amiga da União, do Ministério da Fazenda para aliviar sua dívida, seus tributos e pagamentos pra frente”.

Alexandre Padilha completa seu raciocínio com chave de ouro: “Imagina, né? As pessoas poderem entrar lá no hospital privado, ser atendida por lá pelo Sistema Único de Saúde sem precisar pagar nenhum valor adicional.” Um discurso perfeito para os menos avisados. Para além disso, o Hospital AC Camargo, localizado em São Paulo, foi efusivamente anunciado como o maior e principal parceiro na área de oncologia.

As rápidas referências à atenção básica, ou primária foram, digamos, meramente cosméticas e a participação do setor público centralizada no Grupo Hospitalar Conceição (GHC) e na EBSERH, claramente e por óbvio – clientelismo, fisiologismo e patrimonialismo –, as prioridades absolutas da gestão de Alexandre Padilha. Além disso, nenhuma lembrança às especialidades que, inerentes a praticamente todas as demais categorias da saúde, também afligem diariamente e sobremaneira, com menos visibilidade, é verdade, a população usuária do SUS.

Caminhamos inexoravelmente para o fim do sonho do SUS universal, equânime e integral. Esse paciente gravemente enfermo terá uma melhora temporária da febre e das dores, mas o câncer indelével da privatização e do equivocado modelo de atenção que o devasta, continuará a corroê-lo por dentro e logo voltará de forma mais violenta e impiedosa ainda.

Operando na lógica do mercado e do lucro, o setor privado exigirá cada vez mais; foram, são e serão sempre insaciáveis, e chegaremos num ponto em que fatalmente não haverá recursos suficientes para financiar a festa. Impressiona como atores políticos importantes não percebem o óbvio!

Inviabilizado técnica, política e financeiramente, o SUS se tornará aquele sistema que terá uma cesta básica para os pobres enquanto os procedimentos especializados, todos disponibilizados pelos “parceiros privados”, serão ofertados, desde que o usuário pague a sua contrapartida. Esse é o pano de fundo, esse é o plano. E os revisionistas poderão enfim dizer que conseguiram, que nos venceram, que derrotaram o SUS e a Reforma Sanitária.

Francisco Batista Júnior é farmacêutico hospitalar do SUS no Rio Grande do Norte. Ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde (2006-2011).

O mundo viciado em apostas, por Bianca Santana

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Precisamos deixar de tratar as bets como fonte de receita ou entretenimento

Bianca Santana, Doutora em ciência da informação, mestra em educação e jornalista. Autora de “Quando me Descobri Negra”.

Folha de São Paulo, 02/06/2025

É nos Estados Unidos que o fenômeno das apostas esportivas online alcança mais pessoas. Desde que a Suprema Corte autorizou, em 2018, que cada estado decidisse sobre a legalização da prática, 38 estados permitem apostas online. A projeção a é de que o mercado alcance US$ 45 bilhões por ano.

O entusiasmo econômico dos grandes números, no entanto, não mitiga os danos as pessoas que apostam. Pesquisadores da Universidade da Califórnia analisaram dados de 7 milhões de americanos e constataram que, nos estados onde as apostas são legalizadas, houve piora significativa da saúde financeira da população. A pontuação de crédito caiu, os índices de inadimplência cresceram, o acesso a crédito diminuiu. Os impactos foram mais intensos entre jovens do sexo masculino, moradores de regiões de menor renda. Algoritmos, marketing e falta de perspectiva combinados para atingir quem já vive sob pressão.

Na Alemanha, uma coalizão de centros de pesquisa e universidades também alerta para os riscos das bets. O Atlas dos Jogos de Azar mostrou que 29,7% dos apostadores apresentaram algum grau de dependência. Ainda assim, 17 dos 18 clubes de futebol da Bundesliga foram patrocinados por casas de apostas. A discussão sobre restringir a publicidade avança, acompanhada da constatação de que os mais afetados são, mais uma vez, homens jovens e pessoas com histórico de migração.

Na Argentina, uma pesquisa realizada com mais de 7.000 adolescentes e jovens de 15 a 29 anos revelou que 22% já apostaram online. Entre esses, 25% disseram ter usado dinheiro que deveria ter outro destino —alimentação, transporte, estudos. O vício em apostas entre jovens pobres, que veem nos jogos não só um caminho de ganho financeiro, mas também de pertencimento, reconhecimento e desejo, se alastra como sintoma da ausência de perspectivas individuais e utopias coletivas.

Sem a regulamentação dos Estados, não há saúde nem física nem financeira possível quando, de um lado, há empresas com tecnologia sofisticada, campanhas multimilionárias e acesso irrestrito aos dispositivos móveis, e do outro, jovens em situação de instabilidade afetiva, econômica ou psíquica expostos a promessas de sucesso imediato.

Bélgica, Itália, Espanha e Reino Unido vêm adotando medidas desde a proibição completa da publicidade e do patrocínio esportivo até restrições de horário e proibição do uso de cartão de crédito para apostas.

O Brasil, que também legalizou as apostas em 2018, e regulamentou condições em 2025, já é o terceiro maior mercado do mundo. A recente suspensão de empresas que têm descumprido as normas é muito importante, assim como a recente aprovação no Senado da restrição de propagandas de bets.

Preocupante é a tributação das bets ter sido citada por membros do governo brasileiro como possível medida para equilibrar as contas públicas —alternativa para o provável recuo no aumento do IOF.

Precisamos deixar de tratar as apostas como fonte de receita ou entretenimento e reconhecê-las como um desafio internacional, que exige regulação rigorosa e políticas públicas de proteção a quem mais tem a perder.

 

Lula na presidência dos BRICS, por Paulo Nogueira Batista Júnior

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Paulo Nogueira Batista Júnior – A Terra é Redonda – 30/05/2025

Os BRICS configuram o único grupo de países capaz de se contrapor ao G7 e de oferecer alternativas concretas à desordem patrocinada pelo Ocidente

Posso voltar a falar de BRICS? Já escrevi muito a respeito, provavelmente demais. É que sou talvez o único brasileiro a ter participado das atividades do grupo, continuamente, desde o seu início em 2008 até 2017, o que justifica manter vivo o meu envolvimento no assunto.

Em 2025, há uma razão muito mais forte para voltar ao tema – a presidência brasileira dos BRICS. Temos agora uma oportunidade única, que não voltará tão cedo. Com a ampliação dos membros do grupo – de 5 para 10 países – só daqui a 10 anos o Brasil voltará a exercer a presidência. Não podemos desperdiçá-la.

Infelizmente, não parece que a presidência brasileira vá produzir grandes resultados. Posso estar errado, espero que esteja, e talvez seja cedo para dizer.

Mas a verdade é que governo brasileiro não está politicamente forte. Entre outros motivos, porque se vê infestado de quadros que têm ou pouca ou nenhuma identificação com os BRICS e mantêm ligações prioritárias com EUA e Europa (a famosa quinta-coluna). O Itamaraty, por exemplo, com algumas exceções, vem sendo dominado pela burocracia e pelo carreirismo.

A Fazenda se omite, com o ministro Fernando Haddad se ausentando frequentemente do assunto. O Banco Central sempre foi um obstáculo para os BRICS. Gabriel Galípolo pode mudar isso, mas uma coisa é o novo presidente da instituição, outra a máquina pesada e inflexível do Banco Central. Do Planejamento, nem preciso falar – com exceção de Márcio Pochmann, no IBGE, o que temos lá é uma coleção de neoliberais, todos referenciados à agenda Ocidental.

Há outras exceções, claro, tanto na Fazenda como no Itamaraty (e mais na primeiro do que no segundo ministério). Há exceções, também, na assessoria do Presidente da República. Na Fazenda, uma nova geração de brasileiros faz o possível para vencer as barreiras internas ao avanço do grupo. Porém, essa nova geração não ocupa postos de muito destaque no Ministério e fica, portanto, limitada em sua capacidade de influir.

Erro na fixação da data da cúpula e como corrigir

Um problema foi a decisão clamorosamente equivocada de fazer a cúpula dos BRICS no início de julho, o que arrisca reduzir a presidência brasileira a apenas seis meses – tempo insuficiente para fazer avanços significativos. O motivo foi a percepção do governo brasileiro de que o Brasil não conseguiria organizar duas grandes reuniões no final de 2025 – a COP 30 e a cúpula dos BRICS…

Meu Deus do céu! Lamentável, por pelo menos duas razões. Primeira: subestima a capacidade do País – por que admitir que duas reuniões nos deixariam sobrecarregados? Segunda razão: a COP 30, salvo melhor juízo, terá pouca utilidade prática – será provavelmente mais uma oportunidade para repetir chavões sobre a crise climática, sem repercussão prática. Lula e outros líderes farão os discursos e os apelos de praxe que passarão imediatamente ao esquecimento.

Já os BRICS são a principal força de contestação do status quo internacional. É o único grupo de países capaz de se contrapor ao G7 e de oferecer alternativas concretas à desordem patrocinada pelo Ocidente.

O que fazer então?

Duas coisas. Primeira: deixar claro na cúpula de julho de 2025, no Rio de Janeiro, que ela é uma etapa intermediária da presidência brasileira, que continua no segundo semestre com reuniões ministeriais, de xerpas e de assessores – aproveitando inclusive as diversas ocasiões em que representantes dos 10 países dos BRICS se encontram por outros motivos (reuniões do FMI e do Banco Mundial ou da ONU, por exemplo).

Deveria haver um outro encontro dos líderes dos BRICS em 2025!

Segunda coisa, e mais importante: deixar claro, desde logo, que o Brasil pretende presidir um segundo encontro de líderes do grupo em novembro, em paralelo à cúpula do G20 na África do Sul. Isso permitiria completar a presidência brasileira e, em seguida, passar o bastão à Índia, o próximo país a exercer a presidência dos BRICS.

A maioria dos países dos BRICS são também membros do G20 (caso do Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul e Indonésia). Os demais (Egito, Etiópia, Emirados Árabes e Irã) poderiam ser convidados a comparecer como parte do outreach que sempre se faz nas presidências do G20.

Burocratas no Itamaraty ou na Fazenda podem levantar objeções, alegando por exemplo que seria algo inusitado e complicado. Não é verdade. Foi o próprio Brasil, graças à presidente Dilma Rousseff, que criou a tradição de realizar encontros dos líderes dos BRICS à margem da cúpula do G20.

O primeiro foi em Cannes, em 2011, por ocasião da cúpula na França. Na ocasião, eu estava lá e dou testemunho de que havia dificuldades aparentemente insuperáveis. A ideia fora lançada pelo Brasil, mas a China e a Índia não se entendiam sobre quem deveria convocar a reunião. Diplomatas brasileiros, entre eles o então ministro Antônio Patriota, me explicaram que não seria mais possível fazer a reunião. Eu respondi: “mas então o Brasil convoca”. Ninguém aceitou a ideia.

Logo em seguida, eis que chega a Cannes a presidente Dilma Rousseff (os líderes sempre chegam na última hora nas cúpulas). Confrontada com o “impasse”, disse imediatamente: “então eu convoco a reunião”. E assim foi. A primeira reunião desse tipo ocorreu sob a presidência brasileira e correu muito bem. Fiquei com fama de ter grande influência sobre a presidente Dilma Rousseff, eu que mal tinha contato com ela.

No ano seguinte, em 2012, tivemos novo encontro desse tipo em Los Cabos, por ocasião da cúpula do G20 no México. Dessa vez, houve inclusive um comunicado dos líderes dos BRICS. Aí a dificuldade era com a Índia que não queria colocar na mesa a ideia da criação de um fundo monetário dos BRICS. Graças a uma explosão da presidente brasileira, a Índia cedeu e foi lançada a negociação do Arranjo Contingente de Reservas, uma ideia a que ela se afeiçoara. (Dilma Rousseff exagera, mas sabe fazer certas coisas…)

Depois tivemos reuniões do mesmo tipo em várias ocasiões, por exemplo: em São Petersburgo, Rússia (2013), em Brisbane, Austrália (2014), em Antália, Turquia (2015), em Hangzhou, China (2016), em Hamburgo, Alemanha (2017), em Buenos Aires, Argentina (2018) e em Osaka, Japão (2019) – sempre à margem das cúpulas do G20.

Repare, leitor ou leitora, que essas reuniões ocorreram mesmo nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, menos inclinados a atribuir importância aos BRICS. Em 2019, o Brasil exercia inclusive a presidência dos BRICS em pleno governo de Jair Bolsonaro.

O governo Lula ficará aquém?

Paulo Nogueira Batista Jr. é economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS. Autor, entre outros livros, de Estilhaços (Contracorrente)

O código do capital, por Eleutério F. S. Prado

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 Eleutério F. S. Prado – A Terra é Redonda – 26/05/2025

Comentário sobre o livro de Katharina Pistor

O objetivo desse escrito é fazer uma resenha do livro O código do capital: como a lei cria riqueza e desigualdade, de Katharina Pistor, professora de direito da Universidade de Columbia. Mesmo tendo a pretensão de fazer leitura amigável do escrito, não é possível superar uma dificuldade: ela aborda essa potência que move a sociedade moderna não apenas como economista – o que seria normal dada a sua especialização –, mas também sem ter em conta o que a tradição de economia política pensa sobre ela.

Como o título já mostra bem, a sua preocupação central é a elevação da desigualdade de renda e riqueza que vem ocorrendo desde os anos 1980; eis o dado que ela mesma apresenta logo no início do livro, o qual foi retirado do World Inequality Report de 2018: entre 1980 e 2017, 50 por cento população mundial recebeu apenas 12 por cento da riqueza criada nesse período; por outro lado, um por cento capturou 27 %. Para explicar essa tendência recente, ela menciona que as explicações dos economistas são bem insuficientes.

Para encontrar uma explicação melhor, ela parte da seguinte pergunta: “como a riqueza é criada em primeiro lugar?”. Curiosamente, para dar uma resposta para essa questão, ela não se fia em qualquer teoria da produção, como faria um economista clássico, marxista, neoclássico, austríaco etc. Questionando a sua suposta resiliência do capital, ela completa assim essa primeira indagação: “como o capital frequentemente sobrevive aos ciclos econômicos e aos choques que deixam muitos à deriva, privados dos ganhos que antes obtinham?”

E aqui é preciso fazer uma citação mais longa: “A resposta a essas perguntas, sugiro, está no código legal do capital. Fundamentalmente, o capital é feito de dois ingredientes: um ativo e o seu código legal. Eu uso o termo “ativo” amplamente para denotar qualquer objeto, reivindicação, habilidade ou ideia, independentemente de sua forma. Em sua aparência não adulterada, esses ativos simples são apenas isso: um pedaço de terra, um edifício, uma promessa de receber pagamento em uma data futura, uma ideia para um novo medicamento ou uma sequência de código digital. Com a codificação legal correta, qualquer um desses ativos pode ser transformado em capital e, assim, aumentar sua propensão a criar riqueza para seu(s) detentor(es)”.

2.

Uma análise crítica dessa resposta mostra o seguinte: ela separa mal, por meio de uma abstração do entendimento, a forma social (um momento do capital propriamente dito que é, então, reduzido a um direito garantido pelo Estado) de seu suporte material (uma máquina, uma tecnologia, um título etc.); em sequência, usando um termo corrente da contabilidade financeira, designa genericamente esse suporte de ativo. Ao fazê-lo, confunde a forma social com o suporte dessa forma, caindo assim no fetichismo da mercadoria.

Ora, ativo é forma contábil de certas mercadorias que aparecem no balanço das empresas. Trata-se, pois, de uma noção que pressupõe já a realidade social criada pelo próprio sistema capitalista; como se sabe, ele é assim definido: “Em contabilidade financeira, um ativo é qualquer recurso de propriedade ou controlado por uma empresa ou entidade econômica. É qualquer coisa que pode ser usada para obter rendimento. Os ativos representam o valor de propriedade que pode ser convertido em dinheiro”. Ativo, portanto, é já sempre um modo de existência de capital.

O capital, como se sabe ou se deveria saber, aparece sob múltiplas formas porque é um “sujeito” social, ou seja, existe sempre como um processo de autoconstituição, ou seja, como valor que se valoriza. Como tal, ele é expressão de relações sociais entre partes em que uma delas ganha mais-valor e a outra entrega esse valor.

Como foi dito, ao construir uma nova teoria do capital, Katharina Pistor assimila a forma social capital ao código legal que supostamente garante o direito à valorização possível e valorização efetiva a medida que ela acontece. Fechando o argumento, ela chega a atribuir ao próprio código a capacidade de criar (sic!) riqueza, quando deveria ter dito que o direito intitula o seu possuidor a obter uma parte da riqueza que é criada na economia capitalista e que, como já foi dito, está constituída por uma coleção imensa de mercadorias, as quais, como se sabe, são ao mesmo tempo valores de uso e valores de troca.

E se registre neste momento da exposição que há dois tipos mercadorias: as comuns cujo suporte material consiste de valores de uso que atendem alguma necessidade humana e social nas esferas do consumo e da produção como tal e as promissórias (ou financeiras) cujo suporte material consiste de um “papel” ou registro contábil (escriturado de algum modo), os quais atendem necessidades do próprio capital; neste segundo caso, o valor de uso do suporte consiste em ser mero suporte da forma social que ele sustenta.

O que é importante apreender é que as mercadorias em geral, em ambos os casos portanto, são formas aparentes da relação de capital. Como essa relação existe em processo, ela se manifesta por meio de formas aparentes e transitórias – mercadorias comuns, mercadoria dinheiro e mercadorias promissórias – que costumam ser apreendidas erroneamente como capital por excelência.

A teoria aventada por Katharina Pistor, que peca pela falta de rigor na apreensão do seu objeto, tem, contudo, uma finalidade bem especifica. Ela quer encontrar a fonte da enorme concentração da renda e da riqueza na sociedade contemporânea para poder encontrar os meios de melhor contrariá-la. Ao situá-la na forma jurídica, ou seja, na produção de códigos que supostamente transformam os ativos em capital e os protegem, ela propõe um ativismo jurídico que os cerceie e que, ademais, dê suporte aos códigos que forjam os direitos sociais e humanitários.

Tem esperança de que esse ativismo torne possível instituir na sociedade uma contraposição eficiente e eficaz à predominância dos direitos que constituem o capital e que estariam conspirando contra a democracia e a boa sociedade.

Eis pois, em suas palavras, o seu projeto teórico e político: “Por meio deste livro, espero lançar luz sobre como a lei ajuda a criar riqueza e, ao mesmo tempo, desigualdade. Rastrear as causas raízes da desigualdade se tornou extremamente importante não apenas porque os níveis crescentes de desigualdade ameaçam o tecido social de nossos sistemas democráticos, mas também porque as formas convencionais de redistribuição por meio de impostos se tornaram amplamente ineficazes”.

Bem, é verdade que as transformações sociais passam e se consolidam por meio de uma nova superestrutura jurídica. Mas elas não se se originam aí; como bem se sabe, elas provêm de mudanças substantivas das próprias relações sociais, algo que não acontece sem os movimentos sociais, sem a ação política das classes sociais, sem que se abalada a hegemonia das frações mais poderosas da sociedade.

Eis que as classes em associação e em confronto – dominantes e subordinadas – passam da potência à existência efetiva no próprio processo pelo qual ocorrem as lutas políticas, configurando-se como tais.

*Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Da lógica da crítica da economia política (Lutas Anticapital).

 

Declínio e retomada do financismo nos EUA, por Spencer Brown.

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Livro oferece inspirado resumo das profundas transformações no sistema financeiro norte-americano. Explica, desde a crise de 2008, o poder total às “três grandes” gestoras de ativos, que fundem controle financeiro e industrial. E como a esquerda pode reagir

Spencer Brown – OUTRAS PALAVRAS – 30/05/2025

Em The Fall and Rise of American Finance, Stephen Maher e Scott Aquanno argumentam que a crise financeira global de 2008 (doravante: CFG), e a subsequente reestruturação do setor financeiro dos EUA, ultimaram uma mudança fundamental no capitalismo americano. O que antes era um sistema financeiro centrado nos bancos agora se transformou – por meio da própria crise e da resposta regulatória do Estado dos EUA – em um sistema dominado por grandes empresas de gestão de ativos, como as “três grandes”: Blackrock, State Street e Vanguard.

Essas grandes empresas, com trilhões de dólares em ativos sob gestão, possuem agora imensas quantidades de patrimônio corporativo dos EUA e exercem um excessivo poder de investidor nas cúpulas corporativas. De acordo com os autores, essa mudança que põe as empresas gestoras de ativos como “proprietárias universais” do capital social total dos Estados Unidos é uma nova forma de “capital financeiro” tal como conceituado por Rudolf Hilferding.

Em outras palavras, trata-se de uma fusão de finanças e indústria que rompeu de modo fundamental com a estrutura institucional do New Deal para gerenciar o relacionamento entre corporações financeiras e não financeiras. Esta é uma tese provocativa, com sérias implicações não apenas para a compreensão da trajetória do capitalismo americano, mas também sobre a estratégia que a esquerda deve adotar na formação de uma política da classe trabalhadora na era dos grandes gestores de ativos.

Para Maher e Aquanno, o surgimento pós-2008 das gestoras de ativos como um novo capital financeiro deve ser apresentado num contexto histórico adequado. Para esse fim, eles separam o capitalismo americano dos séculos XX e XXI em quatro fases distintas: capital financeiro clássico (1880-1929), gerencialismo (1929-1979), neoliberalismo (1980-2008) e novo capital financeiro (2008-presente). De acordo com os autores, cada um desses períodos forma um ciclo distinto de declínio e crescimento, com cada fase correspondendo a uma forma organizada específica de poder corporativo, estatal e de classe.

Eles usam essa periodização para combater vários argumentos políticos da esquerda que acreditam serem baseados em raciocínios históricos defeituosos. Significativamente, os autores criticam a alegação comum de que a “financeirização” capitalista começou durante a era neoliberal. Em vez disso, eles colocam suas origens diretamente na era do gerencialismo imediatamente pós-Segunda Guerra Mundial. Eles argumentam que já nesse período as corporações não financeiras começaram a financeirizar internamente suas operações, desenvolvendo assim mercados de capitais internos dentro da própria corporação industrial.

Essa atenção histórica aos detalhes surge como um dos pontos fortes do livro. Maher e Aquanno oferecem um poderoso resumo das profundas mudanças e continuidade dentro do sistema financeiro americano ao longo do século XX. Trata-se de um relato que também pode ser contado através das lentes do que Hyman Minsky chamou de “estrutura de passivos” do capitalismo avançado (Minsky, 1992). Essa estrutura pode assumir a forma de dívidas ou ações – um complexo de compromissos financeiros que são simultaneamente mantidos como ativos nos balanços de diferentes unidades econômicas.

O conceito de Minsky de uma estrutura de passivos fornece uma maneira útil de complementar e expandir a periodização histórica de Maher e Aquanno, que começa com a era do capital financeiro clássico de Hilferding (1880-1929). Nesse período de formação, a economia dos Estados Unidos se consolidou e começou a ser cada vez mais definida por uma fusão estrutural de instituições financeiras e grandes corporações industriais, tudo sob o olhar auspicioso do estado burocrático emergente.

O que Maher e Aquanno querem mostrar – de fato mostram – é que as finanças foram fundamentais para o desenvolvimento econômico americano do século XX. Os autores procuram aproveitar as lições livro III de O Capital e do Capital Financeiro de Hilferding na análise das finanças para investigar como essa fusão americana de finanças e indústria foi organizada em torno de uma rede de acumulação centrada em bancos. Essa fusão se refletiu na estrutura de passivos do período, já que o capital financeiro clássico envolvia a transformação contínua do capital bancário em capital industrial, especificamente por meio de bancos de investimento que detinham grandes quantidades de ações corporativas em seus próprios balanços.

Bancos de investimento como o J.P Morgan & Co. assumiram esse papel hegemônico alavancando sua posição única como geradores de dinheiro de crédito e subscritores nos mercados de capitais. Crucialmente, os autores argumentam que esse entrelaçamento de bancos e propriedade acionária leva a “uma interconexão distintamente de longo prazo entre o capital bancário e industrial que constituía o capital financeiro. […] A fusão industrial-financeira e a visão de longo prazo eram, em outras palavras, dois lados da mesma moeda” (Maher e Aquanno, 2024, 41).

Os autores mapeiam como essa fusão industrial-financeira, que acabou com a mudança regulatória da Grande Depressão, renasceu posteriormente após a CFG na forma das grandes gestoras de ativos. Eles destacam as principais transformações na estrutura de comando do capitalismo americano ao longo dos períodos gerencial (1930-1979) e neoliberal (1979-2008) que levaram a esse momento crucial. As imensas mudanças provocadas pela Grande Depressão deram a sentença de morte do capital financeiro clássico, à medida que o estado regulador do New Deal afastou os bancos da governança das corporações industriais.

O principal exemplo desse novo marco regulatório foram as leis bancárias de 1933 e 1935, que separaram as funções dos bancos comerciais e de investimento, limitando assim a conversibilidade do capital bancário em ações. Os bancos comerciais não podiam mais subscrever ou ser formadores de mercado nos mercados de capitais privados; os bancos de investimento, por sua vez, não podiam mais atuar como instituições de recebimento de depósitos. Os autores argumentam que tais mudanças regulatórias ao longo do que eles chamam de período gerencialista levaram a uma “fragmentação das participações acionárias”, concedendo assim aos gerentes industriais autonomia dos ditames do sistema bancário (2024, 71).

Essa autonomia, contudo, chegou também ao fim com a transição para o período neoliberal, quando o capitalismo americano adotou o que os autores chamam de estratégia de “acumulação baseada em ativos”. Essa mudança estava ligada ao surgimento de grandes investidores institucionais e à integração de fundos de pensão no ecossistema financeiro maior de bancos comerciais e de investimento. Sob a acumulação baseada em ativos, a propriedade de ativos financeiros como tal torna-se o objetivo; assim, o sistema financeiro é reorganizado em torno da negociação contínua de ativos no mercado.

Os autores argumentam que essa estratégia de acumulação produziu uma característica fundamental do período neoliberal, qual seja ela, a concentração simultânea da participação acionária nos balanços patrimoniais dos investidores institucionais, juntamente com a fragmentação do sistema financeiro geral em diferentes mercados especializados. Além disso, o processo de “securitização” transformou cada etapa do processo de concessão de empréstimos em uma atividade de mercado distinta realizada por empresas financeiras com fins lucrativos. Essa foi a nova estrutura de responsabilidade do capitalismo neoliberal que evoluiria até a crise financeira de 2008.

Tudo isso leva à tese principal do livro de Maher e Aquanno: a resposta gerencial dada à crise de 2008 produziu a CFG, o que redundou na ascensão das três grandes gestoras de ativos já citadas, inaugurando assim a era do Novo Capital Financeiro (2008-Presente). Os autores mostram como as intervenções estatais durante a crise não apenas estabilizaram o sistema financeiro, mas também o consolidaram em torno de um novo “estado de risco” – uma extensão do poder do Estado que sustenta certas classes de ativos específicas e as põem à prova de risco. Isso sustenta uma infraestrutura abrangente das finanças baseadas no mercado.

Como escrevem os autores, “o novo ‘estado de risco’ formado neste período criou uma capacidade do Estado de mitigar e absorver o risco financeiro para manter as taxas de juros baixas; ora, isso também levou a um período prolongado de inflação dos preços dos ativos e alimentou a virada para fundos de investimento ‘passivos’ administrados pelos “três grandes”. Isso, concluem, equivaleu a uma “reestruturação histórica do poder corporativo” (2024, 147).

Assim, a concentração sem precedentes de patrimônio nos balanços patrimoniais da Vanguard, BlackRock e State Street constitui a estrutura de passivos do novo capital financeiro. Assim como na época de Hilferding, instituições financeiras imensamente poderosas detêm diretamente o patrimônio das corporações industriais, uma fusão nova de finanças e indústria para o século XXI.

Maher e Aquanno fazem várias afirmações importantes sobre esses novos gestores de ativos, algumas mais controversas do que outras. Primeiro, os autores argumentam que os gestores de ativos organizam dois circuitos de capital-dinheiro, um que conecta as famílias às corporações e outro que conecta as corporações a outros atores do sistema financeiro, como fundos de cobertura (hedge funds). No circuito das empresas familiares, os gestores de ativos compram ações/obrigações e gerem ativos em nome de grandes investidores institucionais, direcionando assim o capital para as empresas e os retornos para as famílias.

No circuito de financiamento corporativo, as gestoras de ativos ajudam a redistribuir dinheiro dentro do sistema financeiro por meio de fundos mútuos do mercado monetário e seu papel de fornecimento de liquidez nos mercados de recompra tripartites. Para os autores, ambos os circuitos destacam o papel funcional que as grandes gestoras de ativos desempenham nesta era, o que significa que não podem ser descartados como meros apêndices parasitários de setores mais produtivos.

Mais controverso, os autores argumentam que a ascensão de grandes gestores de ativos aumentou a competitividade geral do capitalismo. Eles afirmam que “a competitividade está embutida na estrutura da forma atual de capital financeiro”. Argumentam que as empresas de gestão de ativos intervêm na governança das empresas mantidas em seu portfólio com o objetivo de aumentar a competitividade no nível da empresa. Isso contrasta fortemente com os escritos de Benjamin Braun sobre o “capitalismo de gestão de ativos”, onde se argumenta que a concentração da propriedade de ativos suprimiu a competição capitalista (Braun, 2021).

Maher e Aquanno criticam ainda Braun por argumentar que os gestores de ativos não têm interesse direto no desempenho das empresas individuais em seu portfólio. No entanto, essas duas críticas a Braun, embora importantes para enquadrar futuros debates sobre a economia política das finanças, permanecem inconclusivas. As evidências fornecidas por Maher e Aquanno (a hipótese de que divergências nas carteiras das gestoras de ativos incentivam a intervenção para aumentar os retornos competitivos) não refutam definitivamente o argumento de Braun, o que significa que pesquisas futuras serão necessárias para esclarecer a relação precisa entre os gestores de ativos e a concorrência corporativa.

A partir da tese de que surgiu um novo capital financeiro, os autores tiram várias conclusões políticas sobre o futuro da política da classe trabalhadora. Mais importante ainda, os autores argumentam que o novo capital financeiro não constitui um “bloco financeiro liberal” que permite um compromisso de classe com os interesses políticos da classe trabalhadora. Maher e Aquanno estão convencidos de que os trabalhadores não podem se aliar à alta finança para atingir metas como expansão fiscal, programas sociais robustos e atenção às questões ecológicas.

Ao mesmo tempo, os autores também argumentam que os trabalhadores não podem se aliar ao capital industrial contra um setor financeiro supostamente “parasitário”. Isso ocorre porque a globalização capitalista entrelaçou profundamente os interesses das finanças e da indústria. Ora, isso significa que uma parte da classe capitalista não pode ser jogada contra um outra parte. Em vez disso, os autores postulam a necessidade de controles de capital para disciplinar o capital como um todo e criar espaço para ganhos políticos da classe trabalhadora.

A mensagem final do livro de Maher e Aquanno é que a esquerda não deve apenas entender as finanças, mas também democratizá-las. Este slogan de uma “democratização das finanças” é sua visão política para a política socialista dentro do atual período do Novo Capital Financeiro. Com esse slogan, Maher e Aquanno não querem dizer que a esquerda deva simplesmente pedir que as três grandes gestoras de ativos sejam nacionalizadas e colocadas sob propriedade pública.

Em vez disso, eles argumentam que a democratização das finanças requer que o controle social seja estabelecido sobre um conjunto maior de instituições, incluindo essas gestoras e o sistema bancário tradicional. Além disso, a democratização das finanças requer uma transformação maior do próprio Estado, uma vez que Maher e Aquanno acreditam que esta é a única instituição capaz de realizar uma transição para uma economia democraticamente planejada. O fato de que a democratização das finanças permanece inseparável das lutas pelas instituições estatais serve como um poderoso lembrete de que o sistema financeiro pós-2008 não pode ser analisado isoladamente dos órgãos reguladores do governo dos EUA.

No geral, A queda e ascensão das finanças americanas é uma intervenção muito necessária nos debates sobre a estrutura das finanças contemporâneas. A combinação de amplitude histórica e atenção cuidadosa à conjuntura atual constante do livro o torna uma adição bem-vinda aos campos da crítica da macro finança e da economia política marxista. Em suas páginas, os leitores encontrarão uma narrativa envolvente que esclarece onde o capitalismo americano esteve e para onde está indo atualmente. Maher e Aquanno escreveram um livro sofisticado sobre finanças para um público popular, um feito raro e que merece ser lido e discutido por economistas e ativistas de esquerda.

Spencer Brown é doutorando no Departamento de Economia da New School for Social Research

Referências

Braun, Benjamin2021. “Asset Manager Capitalism as a Corporate Governance Regime.” In The American Political Economy: Politics, Markets, and Power, ed. Jacob Hacker, Alex Hertel-Fernandez, Paul Pierson and Kathleen Thelen. Cambridge University Press.

Maher, Stephen, and Scott Aquanno.2024. The Fall and Rise of American Finance. Verso.

Minsky, Hyman.1992. “The Financial Instability Hypothesis.” Levy Economics Institute Working Paper No.74.

 

Desafios nacionais

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Vivemos momentos interessantes, preocupantes e cheios de desafios, marcados por transformações econômicas, alterações políticas, novos modelos produtivos, exigências constantes de atualizações e capacitações cotidianas, incremento de tecnologias que alteram os comportamentos humanos, valores e relações sociais, impactando sobre empresas e todas as organizações sociais, além de posicionamentos variados enquanto Estados Nacionais.

Vivemos numa sociedade que estimula o crescimento das inovações tecnológicas, seus ganhos são substanciais, aumentando a eficiência do sistema econômico e produtivo, fortalecimento das áreas médicas com a cura de doenças anteriormente vistas como incuráveis, uma verdadeira revolução na medicina e na prevenção dentre outras variadas vantagens que trazem ganhos substanciais para a comunidade internacional.

De outro lado, percebemos desafios que exigem uma unidade e consenso entre os grupos sociais, para isso precisamos nos debruçarmos sobre o crescimento das desigualdades, o incremento da exclusão social, a devastação do meio ambiente, o aumento dos conflitos militares e seus gastos estratosféricos, somente no ano passado, a indústria bélica mundial gastou mais de US$ 2,3 trilhões  em armamentos, gastos militares, beneficiando poucos grupos em detrimento de uma pobreza crescente e exclusão social em ascensão, impactando não apenas países pobres e subdesenvolvidos, mas cidadãos de nações ricas e desenvolvidas, gerando uma verdadeira degradação da sociedade global, tão tecnológica, dotada de riquezas inimagináveis e, ao mesmo tempo, dominada por pobrezas e exclusões crescentes.

Neste cenário de grandes transformações mundiais encontramos o Brasil, um exemplo de variadas contradições que perduram durante séculos, um país notadamente rico, dotado de inúmeros recursos, clima propício, vasta vegetação, riquezas minerais, população marcada por dinamismo e grande flexibilidade, além de um grande espaço geográfico. Em contrapartida, percebemos ainda, grandes desafios políticos para que consigamos alçar um local de crescimento sustentável vislumbrando um desenvolvimento econômico que inclua todos os grupos sociais e melhore as condições de vida da população nacional.

Nos anos setenta do século passado, o Brasil era visto como uma nação de destaque, muitos especialistas acreditavam que éramos o país do futuro, suas vantagens comparativas nos cacifavam para um futuro mais grandioso e, desta forma, o século XXI nos traria crescimento econômico, pujança produtiva e o aumento de oportunidades para todos os grupos sociais. Infelizmente este sonho não se efetivou, perdemos espaço na economia global, a distância entre os grupos sociais aumentou, os mais ricos ficaram mais ricos e os pobres ficaram cada vez mais pobres, neste momento, os desafios brasileiros cresceram de forma gigantesca.

Dentre os grandes desafios precisamos elencar alguns mais imediatos, reduzir a pobreza extrema que degrada a sociedade e fomenta a violência urbana, investimento maciço em educação, afinal não existe desenvolvimento sem educação de qualidade para todos, recursos garantidos para a pesquisa científica e tecnológica, fortalecimento das vantagens competitivas, estimular o aumento do valor agregado dos produtos exportados, reduzir a burocracia que trava investimentos cruciais para o crescimento da economia nacional, criar instrumentos macroeconômicos para reduzir as taxas de juros que, neste patamar, impedem os investimentos produtivos e estimula os ganhos dos rentistas e financistas que ganham com este quadro de degradação nacional. Em poucas palavras, como nos ensinou o maior economista brasileiro, Celso Furtado, os grandes desafios nacionais não são econômicos, como muitos acreditam, são claramente desafios políticos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel de Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor universitário.

A desigualdade subsidia as elites? por Michael França

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História do Brasil é a de um presente aprisionado no passado

Michael França. Ciclista, vencedor do Prêmio Jabuti Acadêmico, economista pela USP e pesquisador do Insper. Foi visiting scholar nas universidades de Columbia e Stanford.

Folha de São Paulo, 26/05/2025.

O problema não está apenas na desigualdade de renda, mas também na de influência. A elite econômica não concentra só patrimônio, mas também determina prioridades políticas e financia as campanhas que desenham o Estado. Um Estado que supostamente deveria garantir equidade, mas que frequentemente se dobra aos interesses de quem pode pagar mais por sua atenção.

É assim que os vencedores do passado legam aos seus descendentes não apenas riqueza, mas também os meios para seguir vencendo, com o poder da influência, redes de proteção mútuas e um Estado moldado para manter quase tudo como está. Essa engrenagem se mostra com nitidez quando olhamos como a desigualdade do presente foi moldada pelo passado, em um arranjo que se apoia, por exemplo, em uma ampla base de trabalho pouco valorizado, que sustenta, com esforço diário, o conforto daqueles que possuem maior renda.

A ampla oferta de mão de obra pouco qualificada e mal remunerada garante à elite acesso a serviços baratos. Domésticas disponíveis sete dias por semana, entregadores pedalando sem proteção social, motoqueiros se acidentando pelas ruas da cidade, babás que gastam mais tempo com os filhos dos outros do que com os próprios filhos e cuidadoras que dedicam a vida ao cuidado dos idosos, enquanto seguem sem saber se, um dia, alguém cuidará delas com a mesma devoção.

Tudo isso reduz o custo de vida dos mais ricos. Em países desenvolvidos, um estilo de vida confortável como esse costuma exigir arcar com um custo maior pelo tempo do trabalho dos outros. Neles, o Estado tem um papel redistributivo importante e há uma sociedade que, ainda que com falhas, costuma reconhecer o valor de quem serve. No Brasil, a desigualdade subsidia o privilégio e as elites dificilmente pagam um valor justo por aquilo que consomem.

Mas, veja… Não foi por acaso que temos uma grande massa de trabalhadores pouco qualificados. Ao contrário de outras nações que enxergaram na educação um caminho para formar cidadãos e fortalecer instituições, o Brasil preferiu manter a escola longe dos mais desfavorecidos.

Desde o Império até o século 21, a história educacional do país é menos uma marcha rumo ao progresso e mais uma crônica da contenção. A contenção de uma elite que jamais considerou prioridade formar o povo.

Até durante a ditadura militar o discurso da integração pelo desenvolvimento não passou de retórica. O ensino foi massificado, mas também esvaziado. Gerou uma educação voltada para bater continência à hierarquia social. Professores desvalorizados, escolas sem infraestrutura adequada e currículos que reforçam um modelo de sociedade baseado na obediência à desigualdade ainda dão a tônica de nosso sistema educacional.

Hoje, mesmo com avanços pontuais, o Brasil ainda é prisioneiro desse passado que faz com que a elite viva de um país que trabalha para ela. Sua riqueza não é um acidente. Em muitos casos, pouco tem a ver com o esforço. Ela é o resultado de uma estrutura social construída para sugar energia de baixo e concentrar dividendos no topo.

 

 

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