FHC supunha ser marxista nos anos 60, mas já era liberal, por Bresser Pereira

0

Marxistas neoliberais se viam como revolucionários e combateram desenvolvimentismo, mas subordinaram Brasil ao império

Luiz Carlos Bresser Pereira, Professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (1987, governo Sarney), da Administração e da Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (1995-1998 e 1999, governo FHC)

Folha de São Paulo, 06/04/2025

[RESUMO] Autor, ministro no primeiro governo FHC, qualifica como marxistas neoliberais os líderes do seminário de “O Capital”, objeto de estudo do sociólogo Fábio Mascaro Querido em livro recente. Para Bresser-Pereira, FHC e intelectuais de seu entorno elegeram o desenvolvimentismo como adversário e abandonaram o marxismo ainda nos anos 1970 para, na década de 1990, se tornarem neoliberais, se associarem ao império e levarem a economia brasileira ao estado de quase estagnação.

Fábio Mascaro Querido acaba de publicar “Lugar Periférico: Ideias Modernas”, no qual estuda o que denomina marxismo acadêmico da USP —um grupo de sociólogos que, nos anos 1960, se aproximou do marxismo, que havia emergido com força na Europa no pós-guerra e alcançado o Brasil.

Esses sociólogos, sob a liderança de Fernando Henrique Cardoso, criaram um seminário para estudar Marx e “O Capital”. Quando Cardoso assumiu a Presidência em 1995, o seminário se tornou célebre, sempre citado pela imprensa conservadora de maneira simpática porque os autores envolvidos já haviam abandonado havia tempos o marxismo. Querido afirma que esse foi o mito fundador do grupo.

O núcleo do grupo —aqueles que proponho chamar de marxistas neoliberais— foi constituído por Fernando Henrique Cardoso, José Arthur Giannotti e Francisco Weffort.

Trata-se de um oximoro que se aplica bem a eles, que se encantaram com o marxismo nos anos 1960, quando ainda estava viva a esperança na revolução socialista, tornaram esse marxismo menos contraditório e revolucionário, definiram o desenvolvimentismo como o adversário e abandonaram o marxismo já nos anos 1970, enquanto Cardoso desenvolvia a teoria da dependência associada, que implicou a subordinação do Brasil ao império. Em síntese, nos anos 1960, eles supunham ser marxistas, mas já eram liberais; nos anos 1990, se tornaram neoliberais.

A denominação marxismo neoliberal naturalmente não se aplica a Roberto Schwarz e Francisco de Oliveira, que eram do grupo, nem a Octavio Ianni e Florestan Fernandes, que não eram realmente do grupo.

Florestan foi o mestre de todos, o maior sociólogo que a USP já teve. Inicialmente, se associou à sociologia da modernização e, depois, indignado com o que via no Brasil, se tornou um marxista revolucionário. Querido, naturalmente, não usa essa expressão, porque ele era antes um admirador que um crítico do marxismo neoliberal.

Querido distingue Roberto Schwarz dos demais, alguém que permaneceu marxista ao longo dos anos e, como escreve, “radicalizou a dimensão ‘negativa’ da crítica”. Como crítico literário e escritor, Schwarz não se preocupou em propor políticas nem fez concessões para ser aceito no seu entorno. Ao contrário do núcleo duro do grupo, Schwarz continuou nacionalista como havia sido antes dele seu grande mestre, Antonio Candido, e se associou a Paulo Arantes, um crítico do marxismo neoliberal.

Entre todos, Schwarz é o único que, no plano teórico, é reconhecido internacionalmente. (A teoria da dependência associada teve repercussão internacional, mas, além de ser equivocada, não pode ser considerada uma teoria —é apenas uma sofisticada e pouco clara justificação de subordinação.)

Querido usou o pensamento de Schwarz como referência ou fio condutor do livro e lhe dedicou dois excelentes capítulos. Salientou o amplo papel que teve Adorno em seu pensamento, como também a crítica da modernização realizada por Robert Kurz em 1991, um momento em que a União Soviética entrava em colapso.

Querido deu pouca importância ao nacionalismo do crítico, o que contradiz a sua perspectiva negativa, mas, no final do segundo ensaio, cita um texto significativo: “A última palavra não pertence à nação, nem à hegemonia ideológica internacional, mas pertence ao presente conflituado que as atravessa”. Este presente conflituado é o da luta de classes dos grupos de interesse específicos para esse ou aquele problema.

Nos anos 1960 e 1970, o núcleo neoliberal marxista e, mais amplamente, a esquerda antivarguista combateram o desenvolvimentismo nacionalista porque pretendiam ser revolucionários, enquanto o desenvolvimentismo implicava um compromisso da classe trabalhadora e da esquerda social-democrata com a burguesia.

O núcleo acadêmico neoliberal marxista seguiu o mesmo caminho: ao contrário da visão desenvolvimentista, pretendia não fazer concessões e acabou concedendo tudo nos anos 1990, quando se tornou neoliberal. A esquerda anti-Vargas o combateu porque definiu um “culpado interno” pela derrota: haviam sido os desenvolvimentistas, que, em vez de serem revolucionários, haviam apostado em um acordo da classe trabalhadora com a burguesia industrial intermediado pela burocracia pública.

O núcleo só passou a ter alguma relevância a partir do golpe militar de 1964, a grande derrota da social-democracia desenvolvimentista. Derrotados os adversários sem que fosse preciso lutar contra eles, estava agora na hora dos sociólogos da USP assumirem o comando intelectual da esquerda.

No capítulo “A revanche dos paulistas”, Querido relata a nova fase. Revanche por quê? Ele não explica, porque não foi realmente uma revanche. Na partida anterior, nossos amigos não tinham sido derrotados: eles estavam simplesmente fora do jogo. Em 1964, entraram no jogo e se tornaram bem conhecidos. Os que estavam no jogo até então eram os nacional-desenvolvimentistas social-democratas como Celso Furtado, Guerreiro Ramos, Helio Jaguaribe e Ignacio Rangel. Na época, eu já era desenvolvimentista, discípulo dos últimos.

Eles estavam fora do jogo, mas desesperados para entrar, especialmente para derrotar os dois mais importantes sociólogos dos anos 1950, Guerreiro Ramos e Gilberto Freyre. O golpe militar se encarregou de derrotar Guerreiro ao cassar seu mandato de deputado federal e seu direito de se recandidatar. Enquanto Celso Furtado foi exilado, ele e seus companheiros do Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) Jaguaribe e Rangel foram submetidos a intenso ataque pela esquerda alienada, para a qual o nacional-desenvolvimentismo associado a Getúlio Vargas era inaceitável. Isto além do ataque pela direita.

O próximo passo foi o livro de Cardoso e Enzo Faletto, “Dependência e Desenvolvimento na América Latina” (1969), no qual a dependência se torna a causa do desenvolvimento, em vez de obstáculo. Era a teoria da dependência associada que surgia. A nova verdade, que se espalhou rapidamente por toda a esquerda intelectual, afirmava taxativamente que uma coalizão de classes desenvolvimentista associando os empresários industriais às esquerdas e à classe trabalhadora era impossível.

A burguesia não existia nem poderia existir (na verdade, a burguesia industrial desenvolvimentista existiu no Brasil em dois breves períodos: 1950-1964 e 1967-1980), mas a falta de uma burguesia nacionalista não era problema, porque o chamado império era na verdade apenas um “hegemon” benevolente —suas empresas multinacionais estavam contribuindo para o desenvolvimento do país e bastava que o Brasil se associasse a ele que se desenvolveria.

Não foi isso que aconteceu: em 1990, a submissão aconteceu e, em 1995, se aprofundou. O país entrou em quase estagnação.

Não se imagine, porém, que os intelectuais nacionalistas e desenvolvimentistas tenham escapado do ataque de Cardoso e Faletto, ainda que esse ataque não fosse perfeitamente claro.

Em um primeiro momento, a Cepal de Raúl Prebisch e Furtado percebeu que estava sob ataque e não quis publicar o livro por meio do Ilpes (Instituto Latino-americano e do Caribe de Planejamento Econômico e Social). Mais tarde, porém, ela se adaptou à crítica, se acomodou ao império e perdeu qualquer relevância no plano das ideias.

A Cepal somente existiu como uma ideia —a do desenvolvimentismo estruturalista clássico voltado para a industrialização— entre 1949 e 1963, sob o comando de Raúl Prebisch. Em 1964, os desenvolvimentistas foram derrotados e obrigados a ficar em silêncio. No começo dos anos 1970, a Cepal abandonou o desenvolvimentismo.

Nos anos 1970, essa mesma esquerda, desprevenida, se deixou envolver pelas ideias propostas por Cardoso e Falleto. No plano econômico, essas ideias foram aceitas provavelmente porque a ideia de associação ao império não estava clara no livro e nos trabalhos que seguiram —e porque a esquerda estava ressentida com o golpe de 1964.

Por outro lado, a versão realmente marxista da teoria da dependência, a teoria de André Gunder Frank, Ruy Mauro Marini e Theotônio dos Santos, também era equivocada porque contava com a revolução socialista na América Latina a curto prazo.

Essa versão sofreu um ataque violento e injusto em artigo assinado por José Serra e o próprio Cardoso. Creio que a iniciativa tenha sido mais de Serra que de Fernando Henrique, porque este é um homem da melhor qualidade e cuja personalidade é incompatível com uma atitude como essa.

Em 1969, sob a liderança de Cardoso e com apoio da Fundação Ford, o Cebrap foi criado. Logo, ele se tornou o grande centro de estudos em defesa da democracia e de crítica à desigualdade.

Foi nessa época em que fui convidado a ser membro do conselho da nova entidade de pesquisa e me juntei a eles. Estava isolado na Fundação Getulio Vargas e precisava de diálogo. Percebia que minhas ideias desenvolvimentistas não eram ali bem-vistas, mas fui muito bem recebido e me associei à luta do Cebrap, onde, além dos intelectuais já citados, estavam figuras notáveis como Chico de Oliveira e Paul Singer. Lutávamos todos contra o regime militar.

Nessa época, porém, muitas das coisas que estou narrando aqui não estavam claras para mim. Entre 1995 e 1999, participei do governo FHC e, sob influência do que me envolvia, minhas convicções desenvolvimentistas e meu interesse pelo marxismo diminuíram por algum tempo.

Fiquei, porém, decepcionado com o caráter neoliberal que assumiu a direção da economia e, em 2003, revi minha posição em relação a meu amigo Fernando Henrique. Voltei a ler seu livro com Faletto e escrevi o ensaio “Do Iseb e da Cepal à teoria da dependência”, publicado em 2005, cuja primeira cópia entreguei a ele. Não era um rompimento pessoal, mas intelectual. Havia compreendido o sentido de sua obra e de seu pensamento.

Estimulado pelo excelente livro de Querido, decidi, nesta resenha, voltar agora ao tema da história intelectual. Uma resenha mais crítica do que fora o artigo de 2005, uma crítica ao marxismo neoliberal. Afinal, me pergunto: qual foi a contribuição ao Brasil desse grupo de sociólogos, cientistas políticos e filósofos? Como compará-la com a contribuição dos desenvolvimentistas social-democratas?

Os desenvolvimentistas se associaram a Vargas, ainda que ele tenha sido um ditador entre 1937 e 1945, porque ele foi o grande estadista que promoveu a industrialização e o grande desenvolvimento econômico do Brasil. Os principais desenvolvimentistas tiveram uma influência significativa na realização da revolução capitalista brasileira, que aconteceu entre 1930 e 1980. Alguns deles eram socialistas, mas sabiam que a revolução socialista não era uma possibilidade realista.

Enquanto isso, nossos marxistas neoliberais flertaram com a revolução sem muito empenho e, mais tarde, se associaram ao império e se tornaram neoliberais.

Na conclusão de “Lugar Periférico, Ideias Modernas”, Querido afirma que, enquanto os intelectuais do ciclo nacional-desenvolvimentista popular das décadas de 1950 e 1960 estavam interessados em um projeto de modernização nacional (anti-imperialista, acrescentaria), “os acadêmicos paulistas expressavam a redefinição entre intelectuais e política ocorrida na esteira das transformações pelas quais passaram tanto a sociedade quanto a universidade brasileira, a partir dos anos 1970”.

Ou seja, eles lograram se adaptar à realidade social e política que os circundava em vez de tentar mudá-la. Algumas vezes, vi Fernando Henrique, enquanto presidente da República, agir procurando se adaptar em vez de procurar moldar o que estava acontecendo. Ele e seus companheiros eram mais sociólogos que agentes republicanos.

O livro de Querido é uma notável contribuição à história intelectual do Brasil.

Lugar Periférico, Ideias Modernas: aos Intelectuais Paulistas as Batatas. Preço R$ 64 (288 págs.); R$ 54,90 (ebook). Autoria Fabio Mascaro Querido. Editora Boitempo

 

 

É a segurança, estúpido! por Oscar Vilhena Vieira

0

É fundamental que todos compreendam que a questão se tornou uma prioridade absoluta para a população

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023).

Folha de São Paulo, 05/04/2025

Os altos índices de criminalidade constituem o principal problema do país, conforme os dados da última pesquisa de opinião realizada pela Genial/Quest. Pela primeira vez, na série histórica, o tema da violência superou questões como desemprego, saúde ou a economia. O dado não surpreende. Milhões de brasileiros são expostos diariamente ao medo e à brutalidade da violência. Apesar da gravidade e persistência desse problema, os esforços para conter a criminalidade ao longo das últimas décadas foram insuficientes.

A responsabilidade pela violência endêmica que nos afeta deve ser atribuída a boa parte dos políticos, em especial aos governadores. Salvo louváveis exceções, pouco se fez para enfrentar os interesses corporativos e modernizar o sistema de segurança e justiça no Brasil. Governos de centro, de direita e de esquerda foram, no mínimo, omissos na promoção das necessárias reformas.

Nesta quinta-feira, o Supremo Tribunal Federal foi mais uma vez obrigado a suprir a omissão de sucessivos governos do Rio de Janeiro, que têm submetido a população ao persistente domínio do tráfico, das milícias e do arbítrio dos agentes públicos, proferindo decisão unânime sobre a condução de operações policiais nas favelas do estado.

As medidas cautelares, corajosamente proferidas pelo ministro Edson Fachin, contribuíram para a redução da violência policial, para a diminuição das mortes de policiais, assim como para o declínio nos índices de criminalidade. Ao corpo político, no entanto, cumpre a responsabilidade por corrigir os rumos do desastre.

Embora governantes do campo progressista ou liberal devam ser responsabilizados por não darem a devida atenção à questão da segurança, tem sido o “partido da bala” quem mais contribui para o desastre de nossa segurança pública. São os partidários do populismo penal que bloqueiam reformas e implementam as mais contraproducentes políticas, como temos testemunhado em São Paulo.

De acordo com o relatório da Unicef e do Fórum Brasileiro de Segurança, publicado também nesta semana, uma em cada três crianças ou adolescentes mortos em São Paulo foram assassinados pela polícia. Essa é apenas a face mais perversa de uma concepção de segurança, baseada na violência, no arbítrio e no descontrole dos agentes do Estado, que tem contribuído para o homicídio de cerca de 1 milhão de pessoas nos últimos 20 anos, no Brasil.

Essas políticas obtusas não apenas fomentaram o crime organizado e as milícias, como degradaram as instituições policiais e o sistema prisional, promovendo verdadeiras espirais de violência que afetam a vida de todos os brasileiros, em especial dos mais pobres e mais negros.

É fundamental que todos compreendam que a questão de segurança se tornou uma prioridade absoluta para a população. Que a omissão será punida pelo eleitor, intimidado pela violência. Que os únicos beneficiários serão os criminosos, além de políticos oportunistas, que ocupam o espaço deixado por liberais, progressistas e mesmo conservadores, para vender soluções mágicas que, no mais das vezes, apenas agravam a situação.

É urgente que o campo democrático conceba e implemente políticas consistentes de segurança. Que integre as esferas federal, estaduais e municipais; modernize as corporações policiais; valorize e capacite os profissionais de segurança; empregue intensivamente tecnologia e inteligência no combate ao crime organizado; reforme o sistema penitenciário; adote protocolos de conduta; além de submeter a ação dos agentes do Estado aos estritos parâmetros da lei.

Esse o desafio. A omissão custará muitas vidas. E, quem sabe, o próprio estado democrático de direito.

 

Alunos de Gestão Empresarial – Fatec Catanduva, 2025

0

Incertezas

0

 Numa sociedade global marcada por grandes mutações, onde os agentes econômicos se digladiam como forma de garantir novos espaços de crescimento, onde os modelos de negócios se transformam diuturnamente, onde as tradições estão em constante movimento, onde os seres humanos sofrem num ambiente de incertezas crescentes, onde os conflitos crescem de forma acelerada, tudo isso impulsiona as instabilidades emocionais, ansiedades e depressões.

As decisões econômicas impactam fortemente sobre os seres humanos, os investimentos produtivos impulsionam a geração de emprego, com melhoras substanciais da renda dos trabalhadores, aumentando o consumo e movimentando os setores produtivos, impactando fortemente para toda a comunidade. As decisões econômicas melhoram as condições de vida da coletividade, capacitando e qualificando os setores produtivos para aumentarem a produtividade do trabalho, preparando a economia para desafios e vislumbrando espaços valiosos de crescimento econômico e perspectivas de desenvolvimento.

Vivemos numa sociedade onde a economia ganhou uma relevância exagerada, a ciência econômica se restringe apenas a questões financeiras, todos os indivíduos pensam como empresas, se vendem como se fossem mercadorias, buscando apenas lucros imediatos, melhorando suas imagens externas como uma grande estratégia de marketing pessoal e transformando o networks em um espaço de novos negócios e ganhos monetários, estimulando uma concorrência crescente e exagerada, deixando de lado a ética e os valores em prol dos ganhos materiais, desta forma colhemos incertezas crescentes, amizades interesseiras, belas imagens externas, com corpos sarados e vazios emocionais, cultuando a ignorância e rechaçando a ciência.

Nesta sociedade, dominada pelos interesses do dinheiro, centrada no imediatismo, no individualismo e no narcisismo crescentes, percebemos que os ganhos materiais são a tona da organização social contemporânea, os valores democráticos perdem espaço quando os interesses do capital estão em risco, desta forma compram consciências, derrubam governantes, destroem reputações, contratam profissionais qualificados porém desprovidos de valores morais, adquirindo instituições e acreditando que o dinheiro domina a sociedade, rechaçando o pensamento crítico, usando o seu poderio econômico e sua força política para perpetuar seus privilégios e, se necessitar de força física para impor seus interesses, sem pestanejar, usam os aparatos repressivos do Estado para garantir seus benefícios.

Vivemos na sociedade contemporânea um conflito aberto e cada vez mais escancarado, governos que sempre adotaram políticas em prol dos interesses dos capitalistas não mais escondem suas escolhas imediatas, repassam grandes somas do orçamento público para seus financiadores e restringem recursos para políticas públicas dos setores mais vulneráveis da sociedade, aumentando os espaços de conflitos entre setores da sociedade, aumentando as polarizações, incrementando as desigualdades sociais e aumentado as incertezas, os medos e os ressentimentos, que podem culminar em graves desequilíbrios políticos.

Vivemos numa sociedade marcada pelo crescimento da degradação do meio ambiente, embora muitos grupos rechacem previsões catastróficas, percebemos claramente que o clima está diferente, as estações do ano mudaram, a temperatura aumentou sensivelmente e tudo isso está associado a um modelo econômico excludente, gerador de desigualdades e explorações constantes. A economia se faz imprescindível para a convivência social, mas nunca devemos nos esquecer, que esta ciência não é autônoma e está fortemente atrelada às questões políticas.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor un

A Era da Catástrofe, por José Raimundo Trindade

0

José Raimundo Trindade, professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UFPA – A Terra é Redonda – 28/03/2025

Considerações a partir do livro de Eleutério Prado

Eric Hobsbawm foi bastante crítico da sua capacidade como historiador de analisar um período em que ele próprio foi um atuante ator. Mesmo assim, o historiador inglês nos deixou de herança uma magnifica exposição historiográfica do enredo do século XX. Nos interessa em particular aquele período que Eric Hosbsbawm (2000) denominou de “Era da catástrofe” e, muito especialmente, observou que apesar de duas guerras mundiais e duas bombas nucleares “a humanidade sobreviveu”, inclusive o capitalismo, somente que agora parcialmente remodelado.

Eleutério Prado nos presenteou muito recentemente (2023) com um pequeno opúsculo, Capitalismo no século 21: ocaso por meio de eventos catastróficos, que sob diversos aspectos retoma o fio histórico do autor inglês acima referenciado, mesmo que estabelecendo uma visão realista de como o capitalismo poderá encadear nas próximas décadas uma nova era catastrófica, cuja possibilidade de tornar a história civilizacional humana um interregno menor se mostra como um importante e necessário clamor por um novo projeto de reorganização da humanidade, encerrando o capitalismo como capítulo histórico de nossa sociedade.

A obra de Eleutério Prado está dividida em quatro pequenos capítulos, cuja leitura angustiante pode ser entendida como uma seção de continuidade do alerta que Eric Hobsbawm (2010, p. 562) no colocou ao final de seu trabalho de arqueólogo do século XX: “Se a humanidade quer ter um futuro reconhecível, não pode ser pelo prolongamento do passado e do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio nessa base, vamos fracassar. E o preço do fracasso, ou seja, a alternativa para uma mudança da sociedade, é a escuridão”.

O primeiro capítulo estabelece a primeira tese desenvolvida pelo autor, qual seja: “que o processo de globalização não só esteve sujeito a movimentos expansivos, como também passou por reversões muito significativas”. A análise da “globalização e desglobalização” constitui de fato um ponto chave para o entendimento da forma como o capitalismo processa sua expansão enquanto economia mundial, considerando que o fenômeno já foi visto por Marx e Engels (1848) enquanto condicionante existencial e estrutural de um modo de produção que busca criar “um mundo à sua imagem e semelhança”.

Eleutério Prado (p. 19) reforça as teses vinculadas as chamas ondas longas de Kondratiev observando que a “mundialização do capital se expandiu por meio de ondas que duraram sempre mais de duas décadas”, sendo que a produção capitalista tem uma “natureza fortemente espasmódica e turbulenta”, cujo caráter crítico dessas relações de produção não é resultante de “choques exógenos, mas fazem parte do próprio movimento da acumulação de capital”. Cabem quatro observações que nos parecem plenamente aderentes as análises do autor:

(i) O período da chamada “era dourada” do capitalismo (1950/1980) constituiu um período de exceção na história do capitalismo, sendo que o Estado capitalista constitui um ponto central para se pensar o referido período. O crescimento da intervenção estatal desde o final da década de 1930, primeiramente via o keynesianismo bélico, já aparecia como uma nova condição de existência do que se convencionou chamar de capitalismo keynesiano.

Porém, como nota Eleutério Prado, conforme se agudiza a crise capitalista nos anos 1970 a expansão da demanda agregada via Estado não conseguiria deter o declínio da taxa de lucro, ou seja, não há como equacionar permanentemente “as contradições inerentes ao modo de produção capitalista”.

As finanças públicas constituem parte da massa de mais-valia produzida anualmente, em termos esquemáticos o Estado constitui um “gerente” essencial da acumulação capitalista, nos termos clássicos marxianos, sendo sua manutenção uma necessidade do sistema. A essência deste Estado como forma social necessária a manutenção relativamente programada do capitalismo foi o centro da ampla visão chamada de “keynesiana”, uma construção ideológica fundamental para projeção do capitalismo no século XX, mas que se esgotou definitivamente, como mostra Eleutério Prado. [1]

(ii) O sistema imperialista, imputado em torno dos EUA a partir do final da Segunda Guerra, apresenta um “calcanhar de Aquiles” justamente centrado na manutenção de um poder bélico necessário a manutenção coercitiva das demais nações ao próprio poder estadunidense.

A indústria bélica produz mercadorias não reprodutivas, um chamado não-valor de uso (armamentos), como ponderava Lauro Campos (2016), assim a renda do Estado, como seu quase exclusivo demandante, desvia meios reprodutivos para produção de meios não reprodutivos, isso em função de que o Estado, como comprador de armamentos, exige parcela da renda da economia na forma de tributos, sendo que o que as indústrias bélicas produzem, vendem e lucram, nada mais é do que renda pretérita gerada na economia.

Na medida em que se expandem e, pior se mantém, os gastos bélicos, exigem-se crescentes parcelas do capital global da economia, levando a um potencial desorganização reprodutiva da economia. A destruição da base produtiva dos EUA é, também, fruto da lógica do Estado militar-industrial.

(iii) Eleutério Prado (p. 25) considera que “a fase da grande indústria é superada a partir de 1970”, sendo que desde então se estabelece o que o autor denomina de “pós-grande indústria”. Aspecto que considero importante observar refere-se as características conformativas das tuas formas de “subsunção do trabalho ao capital” e como suas características internas podem moldar o ciclo do capital.

O padrão atual além de apresentar uma composição orgânica do capital muito mais elevada, também se caracteriza por uma reprogramação tecnológica muito mais acelerada, fazendo com que a chamada “obsolescência programada” seja a tônica da disputa concorrencial entre os capitais.

(iv) A financeirização, compreendida pelo autor como o controle da pós-grande indústria “sob a égide do capital de finanças”, implica um vetor a mais de reorganização da sociabilidade capitalista, agora, predominantemente, sob formas neoliberais onde a política econômica e a economia como um todo serve aos “interesses do setor financeiro”.

No segundo capítulo, intitulado “Ocaso do capitalismo”, temos a apresentação de uma tese chave para atual conjuntura e para o devir da humanidade. Segundo o autor o capitalismo não garante mais a “sustentabilidade da civilização humana no planeta”, se tornando “insustentável” (p. 53).  As contradições crescentes do capitalismo, agora baseado em dominância financeira, aprofundam a crise climática, não havendo, por outro, uma opção sistêmica (socialista) colocada no horizonte, isso por conta da vitória obtida pelo capital sobre as grandes revoluções ocorridas no século XX, especialmente a destruição da URSS e a adesão da China a um tipo de capitalismo.

Os elementos críticos colocados nos levam ao texto principal da pequena grande obra oferecida por Eleutério Prado, a possibilidade colocada enquanto hipótese de uma “nova era catastrófica”. O autor trabalha com a economia marxista clássica para tratar da dinâmica de crise capitalista baseada no declínio secular da taxa de lucro e a conformação de superprodução que desorganiza progressivamente o sistema na sua totalidade.

Eleutério Prado (p. 48) observa que o “capitalismo é bipolar: depois dos períodos de euforia (…) vêm período recessivos ou mesmo depressivos”. A lógica do sistema vai no sentido de buscar soluções imediatas ou de curto prazo para suas crises, porém em diversos momentos se torna impossível soluções desse tipo, sendo que daí advém períodos longos de irracionalidade, como aquele que caracterizou a primeira era catastrófica tratada por Eric Hobsbawm.

Não podíamos deixar de concluir essa breve resenha sem referenciar três pontos que nos parecem chaves no texto do autor e que nos coloca enorme responsabilidade enquanto geração construtora do atual século:

(a) O primeiro aspecto refere-se a perda de racionalidade que o capitalismo do século XXI desenvolve. A lógica do ganho de curto prazo, próprio das condições de financeirização e da ideologia neoliberal estabelecem um sistema baseado em “empresas-zumbis”, com o sistema apresentando “uma tendência latente estagflacionária”, algo que o autor desenvolve mais detidamente em um apêndice baseado nos trabalhos de Shaikh. [2]

(b) Da mesma forma o capitalismo do século XXI caminha para um padrão crescentemente autoritário, sendo que o regime democrático burguês vai aos poucos cedendo espaço para formas autocráticas, mais adequadas a manutenção do neoliberalismo e ao sistema de “Elysium” [3] que caracterizam as regras dos super ricos da neofinanceirização.

(c) Por fim, temos a definitiva questão da ruptura metabólica com a natureza imposta pelo “desregramento do capital”. A questão ecológica e os limites críticos da relação humana com a natureza em permanente modificação sugeriam a Karl Marx o crescente agravamento da “falha metabólica” [4] impulsionada pelas relações de produção capitalistas, algo que se chega nos limites críticos e, talvez, de um ponto de um não retorno nesta terceira década do século XXI. Por todos esses aspectos e pela clareza do texto vale muito a leitura de Capitalismo no século 21.

 José Raimundo Trindade é professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UFPA.

Referência

Eleutério F. S. Prado. Capitalismo no século 21: ocaso por meio de eventos catastróficos. São Paulo, CEFA Editorial, 2023, 116 págs.

Bibliografia

Eric Hobsbawm. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1994). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

John Bellamy Foster. A ecologia de Marx: materialismo e natureza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

José Raimundo B. Trindade. Crítica da economia política da dívida pública e do sistema de crédito capitalista. Curitiba: CRV, 2017.

Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2010.

Lauro Campos. A crise da ideologia keynesiana. São Paulo: Boitempo, 2016.

Notas

[1] Sobre as finanças do Estado capitalista e dívida pública numa interpretação marxista conferir Trindade (2017).

[2] Prado (2023, p. 97) se utiliza do modelo desenvolvido por Shaikh (2016) que mantém a regra marxista clássica de que “o ponto de partida de uma compreensão da inflação contemporânea deve se assentar ainda na tese de que a lucratividade comanda a acumulação de capital”. A demonstração feita estabelece uma projeção de estagflação de longo prazo para o capitalismo do século 21.

[3] No filme “Elysium”, que se passa em um futuro capitalista distópico temos uma burguesia que vive em uma estação espacial, que dá o título ao filme, enquanto o resto da população mora em uma Terra arruinada.

[4] Para uma compreensão detida da falha metabólica e do pensamento ecológico de Marx conferir Bellamy Foster (2011).

 

 

 

Poderá a globalização nos livrar do capitalismo? Paulo Fleury

0

Em crise profunda, os neoliberais contorcem-se, mordem o próprio rabo e adotam um protecionismo tacanho. Nos EUA, os magnatas já exercem o poder diretamente. Mas, em seu impulso de integração, talvez a humanidade já tenha encontrado uma alternativa

Paulo Fleury Teixeira, Médico e Filósofo – OUTRAS PALAVRAS – 28/03/2025

Os bilionários no poder nos EUA e o sentido desta mudança

No curso da grande crise econômica em que estamos mergulhados, era previsto que a ideologia liberal se radicalizasse em sua origem e condição de classe, e que redobrasse suas apostas na concentração de riqueza nas mãos dos capitalistas, em detrimento da população trabalhadora em geral. A ideologia, neste momento, apela ainda mais para “o espírito animal” do empresário, aumentando a ideia de valor e poder dos líderes empresariais vitoriosos na competição do mercado. Nada pode ter mais valor ideológico para o capitalismo do que a visão do vitorioso, os líderes empresariais, vistos como condutores natos da produção e, portanto, da vida social. Isso parece natural, no sentido de que, seja como for, tiveram o suposto mérito de vencer no cenário da mais intensa competição.

Existem muitas razões para que seja assim. Estamos em processo de socialização da produção e da vida social como um todo. Todas as grandes certezas do liberalismo ou, mais objetivamente, do capitalismo liberal, foram derrotadas na história. Porém os processos históricos não são lineares – mas desenvolvem-se em ondas. Podemos, portanto, reconhecer um processo histórico de socialização no sistema que, no entanto, tome, em alguns momentos, o sentido oposto: o da acentuação do liberalismo na economia, na vida real, no mundo todo. Estamos justamente no fim de um destes momentos de acentuação do capitalismo em sua essência.

Neste momento, os capitalistas e seus representantes, no que toca à distribuição da riqueza e do poder, redobram a aposta na liberdade e poder ilimitados do mercado, dos capitalistas e de seus líderes. É realmente peculiar que agora sejam os próprios capitalistas a exercer diretamente o poder nos EUA. Nada mais evidente. Estamos no ápice da crise e os atores principais não podem e não querem mais deixar o poder nas mãos de seus representantes profissionais. Acumularam tanto poder e estão tão ligados ao Estado americano que não precisam e não querem mais ocultá-lo.

A crise já se arrasta pelo menos desde 2007 – e o que fazem? Apostam em maior concentração de riqueza e poder para dar solução à crise que foi causada por maior acúmulo e concentração de riqueza e poder. Correlativamente, produzem empobrecimento, relativo e até mesmo absoluto, das massas trabalhadoras nos grandes países da economia ocidental, da Europa e dos EUA.

A necessidade econômica, por seu lado, indica que teremos que superar esta onda, que promoveu a intensa concentração das riquezas, no mundo todo, dos EUA à China. E, de fato, já estamos andando neste sentido. A desigualdade parou de crescer desde 2014 na China. E, recentemente, tínhamos alguma tendência positiva nos próprios EUA. No entanto, agora, Washington optou por guinada liberal extrema. Estão dispostos a fazer a massa trabalhadora aceitar, temporariamente, ainda mais perda de serviços e de renda, de recursos e de dignidade. Vão tomar recursos das classes médias e das já empobrecidas, enxugando ainda mais os serviços públicos e adotando medidas de proteção à indústria local, em detrimento da competição e da integração produtiva mundial. Isto, com certeza, aumenta as pressões inflacionárias e de desaceleramento da economia, nos EUA e mundo afora.

A guerra comercial que os EUA lançaram contra a China e que agora se intensifica, com grandes aumentos de tarifas de importação, é característica deste período de grande crise econômica e de grande mudança na hegemonia, no centro de poder capitalista mundial.

Em qualquer outra situação teríamos justamente o inverso, o centro do poder no sistema capitalista mundial deve ser expansivo e liberalizante; deve fazer o que for necessário, incluindo levar adiante guerras, em favor da liberdade de comércio e empreendimento, mas não impor-lhes barreiras e restrições. As guerras do ópio do século XIX foram realizadas para liberalizar o mercado da China para o comércio inglês. Já a guerra do ópio atual, a guerra do fentanil, que por enquanto ainda é apenas comercial, está sendo realizada para fechar o mercado americano para os produtos chineses. É um longo ciclo que se fecha. Em ambos os casos o ópio era e é apenas uma marca, um pretexto emblemático, para se abrir ou fechar mercados.

O liberalismo, chegado neste extremo da crise, vai negar de bom grado todos os seus dogmas, como já fez antes, vai defender o protecionismo, vai defender as restrições ao livre comércio e a expansão da integração econômica mundial, vai se tornar nacionalista e vai, ao fim, buscar a guerra como solução. Só um dogma não pode ser contestado pelo liberal, o ideal do livre exercício do poder econômico capitalista. Até o limite de tentar tomar, diretamente em suas mãos, o poder político do estado, como está acontecendo agora nos EUA.

A demonstração de que o planejamento precisa se impor à cegueira dos mercados

Mais empobrecimento, mais imperialismo e mais guerra ou desenvolvimento humano global?

Tudo isto já aconteceu antes na história do sistema capitalista contemporâneo.

A onda liberal atual, iniciada na transição dos anos 1970 para os 80, chegou ao seu limite e está em crise desde a segunda metade da primeira década deste século. A resposta é, como foi antes, redobrar a concentração de riqueza e poder nas mãos dos capitalistas e numa correspondente visão e atuação imperialista mais explícita no cenário mundial.

O sentido de paz com que os EUA acenam hoje para o caso da Ucrânia é circunstancial. O direcionamento dos EUA para a guerra será inevitável, na medida que a crise se aprofunde e ela só pode se aprofundar com o aprofundamento da receita liberal.

É até curioso e realmente absurdo que hoje sejam a Inglaterra, a França e outros países da Europa (os que mais perderam economicamente com o conflito, depois da própria Ucrânia) que defendam aguerridamente a continuidade da guerra. Mas basta olhar para os índices de crescimento econômico destas economias para termos uma pista de por que estão tomando decisões tão enlouquecidas. A crise econômica está atrás destas sandices, assim como na resposta muito disfuncional à pandemia, no mundo ocidental. Quando nada mais anda, fazer andar a economia da guerra, da destruição e da morte pode parecer um ótimo negócio para políticos e setores empresariais. É assim que pensam hoje os poderes nos grandes países da Europa, acreditando que vão pelo menos manter, pelo terror, parte do seu poder imperial no mundo, que, obviamente, decai a cada dia.

Não podemos tomar qualquer estágio da evolução histórica como um parâmetro preciso para os períodos seguintes, mas podemos reconhecer, na estrutura de um sistema, em sua dinâmica histórica, as ondulações que se repetem com certa regularidade. Do contrário, não poderíamos analisar os processos históricos, apenas narrá-los.

Pode-se reconhecer pelo menos duas tendências expansionistas evidentes, dentro do desenvolvimento histórico do sistema capitalista mundial. A tendência à expansão dos empreendimentos e do mercado; à mundialização do comércio, da finança e da produção e, reciprocamente, do consumo, da cultura, a integração mundial e, por conseguinte, a mundialização das pessoas e do próprio mundo. E a tendência ao desenvolvimento da produção em massa e da ciência produtiva em todas as áreas, sempre revolucionando a si mesma.

Obviamente, estas e outras grandes tendências estão interligadas e são interdependentes. É razoável dizer que a partir da revolução industrial estas características e tendências se mostraram tão vitoriosas, tão dominantes no mundo em geral, que vivemos todos, desde então, em um sistema capitalista mundial.

Estas forças são maiores que todas as contratendências do próprio capitalismo. A história mostrou, até agora, que não existe limite econômico absoluto para a reprodução da economia capitalista; e também parece ter mostrado que o proletariado industrial não é o condutor histórico da superação do sistema capitalista. Ao ponto, nas últimas décadas, ele ter perdido boa parte do seu grande papel político anterior, com o desenvolvimento inevitável e progressivo dos sistemas automatizados de produção.

O mundo anda por caminhos surpreendentes, o desenvolvimento tecnológico e a integração mundial continuarão. Isto está no cerne da lógica “cega” do sistema capitalista e também no cerne da evolução consciente, planejada, do socialismo. Estamos em uma encruzilhada extrema, onde o principal país socialista do mundo tem a economia de mercado mais florescente do mundo, enquanto aqueles que defendiam a liberalização da economia mundial voltam-se para a visão regressiva, imperialista e fascista, de defesa da economia e do Estado nacional autárquico

Seria inteligente que os anarquistas, os comunistas, os socialistas até mesmo os social-democratas assumíssemos fortemente estas duas tendências expansionistas como nossas bandeiras, nossos ideais imediatos e diretos, corrigindo assim alguns erros históricos. Quem quer o contínuo desenvolvimento e a expansão da ciência e da tecnologia, a integração da produção e da vida social em todo o mundo somos nós. Capitalismo e capitalistas podem apenas serem instrumentos, relativamente cegos, relativamente estúpidos e perversos, destes desígnios e escolhas.

Essa é a condição e a situação atual do socialismo na China. Dos anos 1980 para cá o país viveu um desenvolvimento econômico e social acelerado. Este desenvolvimento foi acompanhado por algo pouco conhecido: lá surgiram mais bilionários que em qualquer outro país nas últimas décadas. Mas, ao mesmo tempo, a China foi o país que mais prendeu, ou colocou em reformatórios, os seus bilionários. O sistema financeiro continua sob controle direto do governo e o desenvolvimento da economia atende a um “planejamento estratégico” público e não apenas às forças do mercado e ao poder dos ricos. Houve desenvolvimento social intenso, porque o desenvolvimento econômico foi acelerado e porque o poder público dirigiu a economia no sentido da melhora consistente da qualidade de vida das massas.

Na Europa em geral, e nos EUA, o aumento da desigualdade progrediu apesar da crise e continuou crescendo desde 2007, até pelo menos o período da pandemia. De lá para cá não existe uma tendência consistente ainda, mas podemos antever uma nova rodada de perda para os trabalhadores locais, com as ações protecionistas atuais dos EUA e com aumento dos gastos militares na Europa.

A grande crise econômica do sistema capitalista no século passado começou em 1913 e só foi se resolver a partir de 1945. Neste período ocorreu uma grande depressão econômica mundial e, também, duas grandes guerras “mundiais” e uma pandemia que resultaram em mais de 150 milhões de mortes, em uma população de 2 bilhões. A melhora, absoluta e relativa, da renda, dos recursos e serviços, em geral, nas mãos das classes trabalhadoras e médias marcou o fim dos anos 1940 e das três décadas seguintes. A social-democracia emergiu como a principal força política e ideológica do pós-guerra, até encontrar seus limites e ser superada pela nova onda liberal no começo dos anos 1980 do século passado.

A crise atual começou em 2007 e, até agora, só não se manifestou com o mesmo terror do século passado porque foi sabiamente contida com os recursos contracíclicos largamente utilizados, com trilhões e trilhões de dólares jogados nos mercados e nas mãos da população, para manter a economia em funcionamento. Mas, sem a redistribuição da riqueza esta crise está condenada a persistir, protraída, controlada, mas sempre aí, mordendo os calcanhares e os bolsos das classes médias e pobres.

Estamos no ápice da crise. Ainda teremos algumas décadas nesta etapa derradeira da onda neoliberal. Neste período a tendência à solução pela guerra, absurda e alucinante, jamais estará ausente ou distante. Continuará na ordem do dia por longos anos.

Uma grande depressão econômica e guerras mundiais são inevitáveis?

A grande crise econômica do sistema capitalista mundial está sendo controlada por mecanismos anticíclicos limitados e sob constante pressão. Esta crise coincide com o fim de uma grande hegemonia no sistema capitalista mundial. Em função da ascensão chinesa, estamos no fim do império e da grande aliança mundial de poder estabelecida pelos EUA.

A simples afirmação de que estes são processos capitalistas, do sistema capitalista mundial, já significa que são, inerentemente, muito violentos e irracionais. Isto é parte da própria lógica do sistema econômico operado pelo mercado.

O processo de socialização chinês mantém os capitais privados sob planejamento e controle públicos fortes. Define a distribuição dos recursos sociais, financeiros e materiais entre os diversos setores e classes da economia, permitindo que a empresa privada funcione “livremente” apenas dentro de marcos e limites estruturais socializados.

Se os indicadores atuais se mantiverem, tudo indica que a China já colocou foco no aumento do consumo das massas, com ganho relativo de renda para estas. E não parece haver qualquer questionamento ao sistema de planejamento estratégico público da economia socialista no país. Contudo, a ideologia liberal tem penetração na sociedade chinesa atual e o conflito em torno do controle do sistema financeiro e produtivo estará sempre em jogo nos próximos anos e décadas – tanto lá como aqui.

No entanto, continuaremos, por tempo relativamente longo, sob alto risco de grandes guerras mundiais, por estarmos na confluência de dois grandes movimentos histórico-sociais no sistema capitalista mundial – a crise de fim da onda neoliberal e a crise do fim da hegemonia norte-americana. Ambosmovimentos são costumeiramente acompanhados de grandes guerras e crises sociais no interior das nações.

O simples, no entanto, de se tratar de um sistema mundializado e muito mais integrado do que há 100 anos, nos protege da fatalidade de termos que repetir os mesmos processos da crise anterior, ainda que estejamos sob as mesmas pressões.

A integração da economia mundial torna mais difíceis e irracionais as grandes guerras. Sua absurda destrutividade mostra-se tanto mais inaceitável quanto mais o mundo estiver integrado produtiva socialmente. Parece mais irrazoável, agora, destruir o sistema mundial para não ceder parcelas do poder econômico e político, nacional e empresarial. Vamos ser levados, contudo, ao limite.

O fato da grande potência emergente ser a China socialista é ao mesmo tempo um resultado e uma providência dos processos históricos. A China tem sido seguramente, entre os países poderosos, o mais disciplinado e aderente às decisões e ao sentido geral do sistema ONU; e o que mais tem investido na transição energética. Não é de se estranhar, dada a convergência de princípios do socialismo com o internacionalismo e o desenvolvimento da consciência, da inteligência, da segurança e da governança mundiais. Isto é tranquilizador, quando sabemos que ela será a nação mais provocada e atacada pela aliança norte-americana nos próximos anos e décadas.

É improvável que o aprendizado histórico seja completamente inútil agora, permitindo que as grandes catástrofes econômicas e sociais das crises passadas se repitam. Ainda que muitos sinais e tendências neste sentido estejam presentes, eles parecem ser, ao fim, mais fracos do que os mecanismos regulatórios e de proteção social que já foram postos em movimento.

A solução será socializante, como no século passado. No cenário mundial, novas estruturas de decisão, organização e governança terão que ser desenvolvidas mais intensamente do que no século passado, correspondendo ao nível mais desenvolvido da economia mundial e da sociedade mundiais. Certamente precisaremos avançar muito além dos limites e das contradições do sistema das Nações Unidas e de Bretton Woods, rumo a uma verdadeira governança global.

Os EUA mostram reconhecer sua perda relativa de poder e reagem a isto violentamente, tentando resgatar seu império. Tudo isto ocorre tardiamente, quando um movimento econômico e social real já solapou as bases da hegemonia decadente. Tudo o que então se faça, em nome de preservar e restabelecer esta hegemonia, termina por ajudar a conduzir ao seu fim. Toda tentativa de demonstração de força por parte do império termina por revelar a sua verdadeira fraqueza. Exemplos categóricos são a derrota da OTAN na guerra da Ucrânia e o resultado, nulo, ou inverso, das sanções impostas à Rússia e à China. Certamente estão acelerando a superação do poder da aliança constituída em torno dos EUA, em vez de fortalecê-la. As forças econômicas e sociais já se desenvolveram e transformaram neste sentido, a ponto de não ter mais retorno. A hegemonia e o imperialismo dos EUA no sistema capitalista mundial terminará e levará junto consigo os resquícios coloniais do imperialismo europeu que persistem ainda hoje.

Algo central neste processo de aprendizado e desenvolvimento histórico é que as medidas, as ações, as intervenções sociais que anteriormente foram adotadas apenas depois do pior, agora devem ser tomadas antes. Antes das grandes crises catastróficas, como foi a depressão mundial dos anos 1930, as medidas anticíclicas e de proteção social já estão, em parte ao menos, em jogo. Precisamos avançar, ainda mais decidida e intensivamente, no sentido da socialização do sistema econômico mundial. E, antes das grandes guerras mundiais, precisamos da reconstituição e desenvolvimento dos sistemas de decisão e governança mundiais.

É um processo que demorará tempo e se realizará com grande dificuldade. Imagine, por um minuto, como será custoso eliminar todas as bases militares internacionais dos EUA. São mais de 800 e continuam aumentando. O mundo é ocupado militarmente pelos EUA. Isso terá que ser eliminado ou submetido a uma verdadeira governança mundial. Será um processo longo e difícil. Enquanto isto, podemos reivindicar a ideia de cidadania mundial. Ainda que ela esteja, do mesmo modo, distante no horizonte atual, é certamente o que nos interessa, correspondendo à integração do sistema produtivo social mundial. Somos mundiais e queremos ser mundiais.

 

Trump põe as polícias nas ruas, por Luiz Francisco Carvalho Filho

0

Mascarados, agentes do governo fizeram até sequestro de aluna de doutorado

Luiz Francisco Carvalho Filho, Advogado criminal, é autor de “Newton” e “Nada mais foi dito nem perguntado”

Folha de São Paulo, 29/03/2025

É aterrorizante a cena de prisão da estudante turca Rumeysa Ozturk, 30 anos, por agentes mascarados do Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos, captada por câmera de vigilância urbana, em Massachusetts.

A mulher é submetida a sequestro-relâmpago por homens que não se identificam. É suspeita de ser favorável a palestinos de Gaza e desfavorável ao governo de Israel, o que significaria, segundo autoridades migratórias, antissemitismo. Muçulmana e bolsista de prestígio no programa de pós-graduação da Universidade Tufts, tem o visto de permanência cassado.

Não é caso isolado. Trump põe as polícias nas ruas, persegue delitos de opinião e ambiciona instituir uma dinâmica política de limpeza étnica e ideológica nos campos universitários.

Com fundamento em lei de 1798, editada para tempos de guerra e nunca utilizada em tempos de paz, que permite deportar cidadãos de “países inimigos” sem garantias do devido processo legal, Trump avança contra venezuelanos que supostamente pertencem a gangues e a grupos criminosos. Convênio sinistro de colaboração totalitária, o governo de El Salvador faz a gentiliza remunerada de acolher presos dos EUA em suas gigantescas prisões. É a terceirização da violência e do abuso de poder.

Nas fronteiras, não se pronuncia a palavra “não”. Turistas são atingidos. Com base em “suspeita razoável” e sem mandado judicial, agentes dos órgãos de imigração encontram meios de invadir, em busca de informações sensíveis ou comprometedoras, a privacidade de telefones e computadores de quem viaja a passeio para Nova York ou para a Disney.

Ordens executivas de controle ideológico atingem escritórios de advocacia com histórico de patrocínio de causas contrárias ao que se convencionou chamar de pensamento trumpista. Não resistem pelo temor de perder a clientela para a concorrência.

Instituições museológicas e de pesquisa como o Smithsonian são acusadas de ideologia imprópria. Cientistas patrocinados pelo governo norte-americano estão impedidos de participar de encontros internacionais que discutem temas inoportunos, como clima, vacinação.

A resistência é pífia. Como mostra o jornalista Guga Chacra, em O Globo, a capitulação é geral. Não há mais vozes dissonantes no Partido Republicano como havia no primeiro mandato. O líder da minoria democrata no Senado a nada se opõe. A venerável Universidade Columbia sucumbe para não perder fundos federais de financiamento e admite restrições à liberdade acadêmica. A covardia e o oportunismo se espalham como fogo.

Muito além da guerra tarifária, o presidente dos Estados Unidos quer anexar a Groenlândia e intimidar países vizinhos. Aparece como chefe de uma polícia planetária e corrupta, pronta para agir, o que, no Brasil, dá ânimo para a famiglia Bolsonaro de criminosos políticos e para seus agregados de sempre, os golpistas silenciosos.

Ambicioso, o autocrata não tem limites. Trump ameaça com impeachment juízes que eventualmente criem embaraços judiciais para atos que violam a Constituição.

Os Estados Unidos, a despeito das suas guerras e da arrogância diplomática, têm tradição profunda de liberdades civis, que, agora, escorre como água pelos dedos.

A América está de ponta-cabeça.

 

Trumponomics é maquiagem para uma política problemática, por Martin Wolf

0

Como os tecnocratas esperam que os ajustes macroeconômicos necessários ocorram?

Martin Wol, Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics

Financial Times/Folha de São Paulo, 25/03/2025

Na semana passada, questionei o que alguns condenam como a tentativa de minimizar as radicalidades das políticas econômicas internacionais de governos Trump.  Em outras palavras, perguntei se poderia haver lógica e evidências subjacentes ao que membros de sua administração, notavelmente Stephen Miran, presidente do conselho de assessores econômicos, argumentam.

O professor de Berkeley, Brad DeLong, contrapõe que isso é irrelevante: “Para fazer acordos, você precisa que suas contrapartes o considerem um cumpridor de acordos. Donald Trump demonstra, todos os dias, que não é.” Eu concordo —e disse isso.

No entanto, ainda é possível se perguntar se questões políticas significativas podem ser vistas aqui e, em caso afirmativo, o que se poderia fazer a respeito delas. Assim, Scott Bessent, secretário do Tesouro, argumentou no início deste mês que, além de fornecer segurança global, “Os [EUA]… fornecem ativos de reserva, servem como consumidor de primeira e última instância e absorvem o excesso de oferta diante da demanda insuficiente nos modelos domésticos de outros países. Este sistema não é sustentável.”

Da mesma forma, Miran argumenta que o dólar tem sido cronicamente supervalorizado, o que “tem pesado fortemente no setor manufatureiro americano enquanto beneficia setores financeiros da economia” em benefício dos americanos mais ricos.

O ponto de partida de Miran é o argumento de Robert Triffin dos anos 1960, de que a demanda por reservas de moeda estrangeira criou a supervalorização e os déficits comerciais e de conta corrente associados. No entanto, essa não é a única maneira de os países acumularem reservas de moeda.

Como Maurice Obstfeld, ex-economista-chefe do FMI, argumenta em um blog para o Peterson Institute for International Economics, os estrangeiros poderiam substituir outros ativos estrangeiros por participações nos EUA. Nem as reservas são a única razão para os estrangeiros comprarem ativos dos EUA. Como Paul Krugman observa, eles podem simplesmente querer ativos dos EUA.

No entanto, a demanda por reservas tem sido em alguns casos um fator importante no balanço de pagamentos global. Seu valor total saltou quase sete vezes de 1999 a 2014. Isso foi impulsionado em grande parte pelo desejo das economias emergentes de se protegerem de futuras crises financeiras.

Mas, no caso da China, o maior detentor individual, também foi causado pelo desejo de encontrar uma saída para suas economias excedentes e gerar crescimento manufatureiro liderado por exportações. Enquanto isso, a zona do euro um dos outros alvos de Trump, aumentou suas reservas em apenas US$ 72 bilhões (R$ 410,3 bi) entre o final de 1999 e o final de 2024.

Forças mais fundamentais do que o desejo de acumular reservas também estão em ação. Estas são diferenças nas propensões a poupar e investir. Alguns países têm excedentes de poupança sobre investimento e, portanto, terão superávits em conta corrente e déficits em conta de capital correspondentes —e vice-versa.

Isso não é necessariamente problemático. Mas problemas podem surgir. Um deles é que o sistema de intermediação de capital em todo o mundo gera crises. Os únicos países que podem gerenciar com segurança tais crises são aqueles cuja moeda doméstica também é uma moeda de reserva confiável. Essa tem sido uma boa razão pela qual os formuladores de políticas em países emergentes frequentemente buscam ter superávits em conta corrente.

Outra razão é que, se um país tiver tais superávits, também produzirá excedentes de bens e serviços comercializáveis sobre o consumo doméstico e vice-versa. Portanto, não é por acaso que economias com altas taxas de poupança, como China, Alemanha e Japão, têm setores manufatureiros relativamente grandes, enquanto os EUA e o Reino Unido estão na posição oposta (embora outro fator para estes últimos seja que são bons em produzir serviços exportáveis, o que então reduz as exportações manufatureiras).

Em geral, então, países obcecados com a manufatura tendem também a ser mercantilistas obcecados por superávits. Assim, os mercantilistas nesta administração, incluindo Trump, não estão errados: se os EUA tivessem um superávit em conta corrente, seu setor manufatureiro seria de fato maior. Mas estão completamente errados ao acreditar que isso se resume apenas a reservas. Eles também não abordam adequadamente as condições necessárias para tal reequilíbrio.

Se os EUA quiserem eliminar seu déficit em conta corrente sem sacrificar o investimento, precisarão aumentar sua taxa de poupança em pelo menos 3% do PIB (ou cerca de US$ 850 bilhões ou R$ 4,8 tri). Isso seria quase metade do déficit fiscal.

Acontece que, de acordo com Kimberly Clausing do Peterson Institute of International Economics, uma tarifa de 50% maximizada em receita poderia gerar US$ 780 bilhões (R$ 4,4 tri) por ano. Além disso, tal tarifa poderia também melhorar os termos de troca dos EUA, ao reduzir os preços relativos das importações. Mas seria regressiva e teria efeitos negativos na atividade econômica global e doméstica, incluindo prejuízo a exportadores competitivos dos EUA. De qualquer forma, Trump parece incuravelmente desinteressado em tal política abrangente.

Então, a grande questão permanece: como os tecnocratas de Trump esperam que os ajustes macroeconômicos necessários ocorram? As propostas que fizeram são mal elaboradas. Planos para conversão forçada da dívida pública externa e depreciação não fazem sentido, a menos que o objetivo seja usar o imposto inflacionário. Os EUA tentaram isso nos anos 1970: terminou mal!

Mais importante, para que serve isso? Sim, se o déficit em conta corrente pudesse ser eliminado, o setor manufatureiro seria um pouco maior. Mas as partes que importam para a segurança ou qualquer outro propósito mais profundo não seriam necessariamente as que cresceriam. Além disso, nada pode impedir um declínio de longo prazo na participação do emprego na manufatura. A manufatura está seguindo o caminho da agricultura: a produtividade crescente prevalecerá.

Mesmo em sua forma mais sofisticada, então, a Trumponomics é irrelevante e incoerente. A versão da vida real é pior.

 

 

40 anos de incertezas por Marcos Paulo Pereira Filho

0

Marcos Paulo Pereira Filho – A Terra é Redonda – 27/03/2025

Com a ascensão dos movimentos de extrema direita, estamos diante de uma crise civilizacional que expressa o fracasso da Nova República de instaurar uma modernização com inclusão social

“Oito horas e danço de blusa amarela / Minha cabeça talvez faça as pazes assim / Quando ouvi a cidade de noite batendo as panelas / Eu pensei que era ela voltando pra / Minha cabeça de noite batendo panelas / Provavelmente não deixa a cidade dormir / Quando vi um bocado de gente descendo as favelas / Eu achei que era o povo que vinha pedir / A cabeça dum homem que olhava as favelas / Minha cabeça rolando no Maracanã / Quando vi a galera aplaudindo de pé as tabelas / Eu jurei que era ela que vinha chegando” (Chico Buarque, Pelas Tabelas).

Introdução

No meio da ebulição dos movimentos autoritários de extrema direita que buscam ejetar o sistema democrático da sociedade brasileira, a Nova República e, portanto, a redemocratização, fizeram seu quadragésimo aniversário nesse mês de março.

Em inúmeros jornais físicos e virtuais, a celebração do período democrático mais longo que o país já conheceu vem carimbado com as análises dos “avanços”, “retrocessos” e “desafios” que o Brasil enfrentou desde a posse de José Sarney. Para além de qualquer compreensão maniqueísta do processo social, é significativo para um país constituído pelo trabalho escravo a organização de uma sociedade de classes lastreada no voto popular.

Do jeitão brasileiro, seus arcaísmos continuaram a se combinar com seus aspectos modernos. Que venha a democracia! Mas parcelada, com anistia aos torturadores “do passado”; Que o povo trabalhe! Mas parcialmente, com metade da força de trabalho afundada na informalidade e nos ilegalismos do cotidiano.

A construção da Nova República, apesar de seus significativos avanços políticos e sociais, se caracteriza, no geral, pelo fracasso da tentativa de resolver os problemas da formação nacional de um país na periferia do capitalismo. A busca pela organização de um Estado nacional fundado na democracia de massas, característico dos países centrais no pós-guerra, foi suspenso pelo arranjo entre proprietários nacionais e as novas lógicas de reprodução do capitalismo globalizado.

O problema da formação nacional

Durante a segunda metade do século XX, parte importante da intelectualidade nacional estava preocupada em buscar compreender as particularidades da formação nacional na periferia do capitalismo. Partindo de um método de comparação com o desenvolvimento das forças produtivas nos países centrais, a dúvida girava em torno do por que não atingimos o nível de sociabilidade capitalista característico desses.

O problema da formação estava posto como resposta ao problema nacional. Desde sua criação como colônia, o país se estabelece pelo uso do trabalho escravo em uma economia agrário-exportadora associada ao desenvolvimento do capitalismo em escala mundial, servindo como produtora de valor que seria realizado externamente, nas metrópoles europeias. Aí, Caio Prado Jr., com seu sentido da colonização, e, posteriormente, Fernando Novais, complementando sua leitura, apresenta as origens do “atraso” brasileiro.

O uso do trabalho cativo no período colonial dificultava a formação de um mercado interno nos moldes clássicos de cisão entre campo e cidade. Se na realidade europeia a utilização do trabalho livre forjou uma sociedade baseada nos princípios da divisão social do trabalho industrial, com a substituição gradual da mais-valia absoluta pela mais-valia relativa, aqui a mão de obra escravizada condenava o país às suas características agrícolas fundamentadas na baixa mecanização do trabalho.

Com as transformações na acumulação capitalista mundial a partir do século XIX e sobretudo durante a primeira metade do século XX, a formação social brasileira passou por transformações que reorganizaram seu tecido produtivo. Se até meados da década de 1930 a produção agrícola voltada para exportação servia para formação das divisas internacionais que realizaria o pagamento das manufaturas importadas, a partir das transformações políticas ocorridas na época, o país inicia um processo modernizador que buscava, ao estimular a produção industrial interna, alcançar os padrões de consumo e infraestrutura da Europa e Estados Unidos.

O desenvolvimentismo, versão latino-americana do desenvolvimento capitalista fordista-keynesiano, foi a chave que impulsionou a modernização periférica no Brasil que buscava superar sua condição de subordinado para administrador do sistema mundial produtor de mercadorias.

Francisco de Oliveira, na década de 1970, no seu ensaio Crítica à razão dualista, entretanto, apresentou como esse período de modernização conservou o caráter periférico da sociedade brasileira. Para ele, o regime de acumulação determinado pela indústria, que intensificou a produção manufatureira no Brasil, pode se realizar exatamente pela associação do “atraso” com o “moderno”, com esse estruturalmente repondo aquele e vice-versa. A reprodução capitalista brasileira se determinaria por uma altíssima concentração de renda e por particularidades em relação ao modelo clássico, europeu, de desenvolvimento capitalista.

Aqui, a regulação dos fatores de produção, notadamente a formação do trabalho assalariado, seriam induzidos pelo Estado ditatorial varguista que buscava impulsionar uma acumulação industrial, formalizando os trabalhadores dentro de uma carta trabalhista e dessa maneira regulando o exército de reserva que permitiria uma dada acumulação. Para além disso, a associação entre produções realizadas pelos trabalhadores para seu autoconsumo levariam a diminuição dos custos da reprodução da sua força de trabalho.

Dentre elas, se caracterizaria a autoconstrução, na qual os operários, mediante mutirões, construíram suas próprias casas, retirando dos custos do salário a necessidade de se acessar a moradia urbana. O padrão de acumulação da indústria também demandava uma agricultura extensiva, que permitiria o rebaixamento dos salários urbanos, pelos custos baixíssimos de reprodução da força de trabalho na agricultura, proporcionando alimentos baratos que seriam consumidos pelos novos proletários. A agricultura, também, serviria como constante exército de reserva, pelas levas de migrantes que se amontoavam na cidade buscando acessar o trabalho industrial. Nesse sentido, para o sociólogo, o capitalismo no Brasil se reproduziria de forma anômala, seria um ornitorrinco, aquele que é moderno, mas não possui as qualidades deste.

A retomada da democracia

Com o esgotamento do modelo desenvolvimentista no começo da década de 1980 e as transformações na economia mundial, o regime ditatorial militar foi substituído, de maneira gradual e tutelada, pelo regime democrático que tinha sido suspenso pelos militares em 1964. Com as mobilizações populares das Diretas Já! e depois dos movimentos sociais durante a escrita da Constituição Cidadã promulgada em 1988, houve uma animação em torno da construção de um Estado de Bem-estar na periferia do capitalismo. Passados quarenta anos desde esse período, o estágio atual que se encontra os arranjos sociais e econômicos do país nos traz reflexões sobre as dificuldades da tentativa de formar uma sociedade coesa em torno dos princípios democráticos e cidadãos.

A Nova República surgiu com políticas adotadas durante o regime civil-militar brasileiro que foram intensificadas nos últimos anos e atualmente se apresentam na forma de crise. Durante a década de 1970, por exemplo, os militares possuíam um projeto de ocupação autoritário da região Norte do país que se revelava estar despreocupada com os processos ecológicos próprios do bioma amazônico e que nos trazem atualmente diversos conflitos fundiários e ecológicos que transformaram a Amazônia em uma região de ilegalidades de todos os tipos: garimpo ilegal, grilagem de terras, extração ilegal de madeira e rota para o tráfico de drogas.

Podemos pensar também nos projetos de transformação do Centro-oeste em uma grande extensão de lavouras de soja que contou com apoio de companhias de colonização, isenções fiscais e pesquisas públicas que serviram para o quadro de reprimarização da economia que nos encontramos atualmente. Nesse sentido, alguns setores de nossa crise atual estão relacionados com a administração territorial, econômica e política dos militares brasileiros.

Mas para além da herança dos militares, existe um cruzamento entre as transformações no capitalismo globalizado e as políticas adotadas durante os governos democráticos que generalizaram o caráter de crise e colapso na qual se encontra o Brasil atualmente.

A crise do trabalho no mundo ocidental, ocasionada pelo processo de desindustrialização causado tanto pela transferência de fábricas para Ásia quanto pela substituição do capital constante pelo capital variável, fez com que parte do trabalho assalariado passasse a transitar entre exército de reserva e população supérflua. Os novos sujeitos monetizados sem dinheiro que começaram a se enclavar nas periferias dos centros urbanos mundiais passaram a ter uma nova socialização que deixou de ser pautada pelos processos de valorização característicos da sociedade industrial – que agora está em crise – para novas formas de trabalho pautados pela desregulamentação dos direitos trabalhistas e sujeitos autônomos.

No caso brasileiro, o processo de desindustrialização alicerçado com a reprimarização da sua economia levou para uma organização produtiva pautada pelo consumo interno e não mais pelas inovações tecnológicas que permitiriam o aumento da capacidade produtiva instalada no país. O crescimento da economia brasileira não se dá a partir do aumento da produtividade da força de trabalho, mas pelos estímulos fiscais que fazem com que se aumente o consumo sem estar combinado com a complexificação produtiva.

As cifras bilionárias advindas das exportações de commodities servem para que o país tenha uma balança comercial superavitária com reservas internacionais que permitam o aumento da importação de certos produtos manufaturados que são demandados pelo aumento do consumo das famílias brasileiras. No tecido produtivo interno, entretanto, não se enxerga a qualificação da força de trabalho como força motriz para o desenvolvimento das suas forças produtivas.

Os governos democráticos percebendo a impossibilidade da superação da crise do trabalho, fizeram um acordo nacional que buscasse impedir com que houvesse uma explosão da miséria ao longo do território nacional. A criação de inúmeros programas de transferência de renda, apesar de sua inegável importância na possibilidade que milhões de brasileiros tenham a mínima dignidade, serviram como administradores da pobreza que mantiveram o caráter periférico da formação social brasileira.

Junto com isso, aqueles que continuaram regularmente no mercado formal de trabalho tem em sua grande maioria no horizonte apenas o setor de vendas que suscita no país quando existe um aumento dos valores dos programas de transferência de renda ou aumento real do salário-mínimo.

Quando analisamos as pesquisas mensais do Novo CAGED podemos observar esse fenômeno de perto. Durante os meses de janeiro e junho de 2024, dos 1,300,065 empregos formais gerados, 716,909 foram no setor de serviços não complexos, isto é, ligados às vendas, com salários que giram em torno de 2,230 reais e que demandam apenas o ensino médio completo.[i] Enquanto que cada mês, na média, 100 mil empregos com apenas o ensino médio completo eram gerados, apenas 5.000 tinham algum curso de graduação. Esses dados mostram como o tecido produtivo brasileiro está organizado em torno do trabalho precarizado que amplia as desigualdades sociais brasileiras.

Castelos de papel

A sociedade brasileira atual apresenta um caráter de crise que pode ser observado de qualquer ângulo econômico, social ou político. A crise do trabalho na sociedade mundial produtora de mercadorias modificou as estruturas produtivas e intensificaram o apartheid social nos países capitalistas. No nosso caso, a tentativa da construção de um Estado social veio de encontro com a petrificação das nossas condições periféricas, agora atualizadas para nova lógica globalizadora que busca desregulamentar qualquer tentativa de mínima proteção social dos trabalhadores e da classe média.

Se durante os governos tucanos e petistas houve uma tentativa frustrada de integração nacional[ii] que ocultaram a lógica de colapso presente em nosso país-ornitorrinco, atualmente, com a ascensão dos movimentos de extrema direita, estamos diante de uma crise civilizacional que expressa o fracasso da Nova República de instaurar uma modernização com inclusão social. Criamos castelos de papel que estão sendo tragados pelos movimentos autoritários que buscam mobilizar a sociedade para a barbárie.

Marcos Paulo Pereira Filho é graduado em geografia pela USP.

 

A financeirização da velhice, por Edson S. Moraes

0

Risco de transformar longevidade em negócio é alto; bancos, empresas de assistência e seguradoras já fazem do medo do futuro uma opção lucrativa

Edson S. Moraes, Mestrando em ciências do envelhecimento, é consultor de estratégia e conselheiro empresarial.

Folha de São Paulo, 27/03/2025

O Brasil envelhece rapidamente, e o que deveria ser motivo de celebração se tornou uma preocupação. A longevidade, um dos maiores avanços da humanidade, passou a ser vista como um problema econômico. Em vez de garantir segurança e bem-estar às pessoas idosas, o mercado financeiro as transforma em oportunidades de lucro, explorando sua vulnerabilidade.

A financeirização da velhice ocorre quando serviços essenciais, como saúde, Previdência e moradia, deixam de ser direitos garantidos e se tornam produtos caros. Isso afeta a todos, inclusive os mais jovens, uma vez que o sistema previdenciário enfrenta desafios com a queda na taxa de natalidade e o aumento da expectativa de vida. Se nada for feito, cada aposentado dependerá de um número menor de trabalhadores, levando à promoção de planos privados e crédito consignado. O problema? A grande maioria dos brasileiros não consegue pagar por isso.

As pessoas idosas, que deveriam ser protegidas, tornam-se alvos fáceis. Bancos, seguradoras e empresas de assistência transformam o medo do futuro em um negócio lucrativo. Muitas recorrem a planos de saúde privados por desconfiança no SUS, mas os reajustes constantes as forçam a escolher entre pagar pelo plano ou cobrir despesas básicas.

Para complementar a renda, boa parte opta pelo crédito consignado, que, apesar dos juros abaixo da média de mercado, podem gerar um ciclo de endividamento, especialmente quando usado para ajudar familiares. Já as instituições de Longa Permanência para idosos (Ilpis), popularmente conhecidas como “casas de repouso”, passaram a ser tratadas como negócios lucrativos, tornando-se acessíveis apenas para uma parcela privilegiada da população.

Se essa lógica continuar, será impossível envelhecer com dignidade sem grandes investimentos individuais. Isso reforça a ideia de que a velhice é um problema econômico e não uma conquista social, abrindo espaço para políticas que reduzem direitos e ampliam desigualdades. Precisamos encarar o envelhecimento não como um fardo, mas como um desafio que exige soluções sustentáveis e justas.

Para isso, é essencial fortalecer políticas públicas, garantindo que as pessoas idosas não dependam exclusivamente do setor privado. Melhorar o SUS, ampliar programas sociais e promover a educação financeira desde a juventude são passos fundamentais para evitar dívidas desnecessárias e planejar melhor a velhice. Também é preciso regular o mercado financeiro, impedindo abusos em planos de saúde e crédito consignado, além de garantir a efetividade da Política Nacional de Cuidados, oferecendo uma rede de suporte acessível e de qualidade. O governo já trabalha para implementar essa política, buscando assegurar que o direito ao cuidado seja efetivado de forma justa e igualitária.

Se não enfrentarmos a financeirização da velhice agora, todos pagaremos o preço no futuro. Envelhecer faz parte da vida, e garantir que isso aconteça com dignidade é uma responsabilidade coletiva. O lucro não pode estar acima do direito de envelhecer com segurança. Afinal, se envelhecer é um privilégio, não deveria ser um peso financeiro.