Desacelerando a economia

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A economia brasileira apresenta uma desaceleração nos últimos meses, com impactos para toda a estrutura econômica e produtiva. Depois de uma melhora nos últimos anos, com crescimento na casa dos 3%, estamos percebendo uma perda de dinamismo econômico, ainda mais, num momento de grandes incertezas externas geradas pelo governo estadunidense, com medidas abruptas, tarifas elevadas e uma política mais pragmática.

A economia brasileira apresentou indicadores macroeconômicos positivos desde 2023. Melhora no ambiente de negócio, crescimento no produto interno bruto (PIB), aumento nos superávits comerciais, investimentos produtivos em ascensão, redução do desemprego, incremento do crédito e aumento significativo da renda dos trabalhadores, tudo isso, contribuiu para a melhora significativa da economia nacional.

Vivemos numa sociedade global marcada pela crescente instabilidade econômica e uma forte polarização política, que afugenta investimentos produtivos e levam os agentes privados a buscarem ativos mais seguros, restando aos governos nacionais aumentarem os dispêndios governamentais como forma de evitar a retração da economia nacional, cujos impactos negativos são elevados e, ao mesmo tempo, prejudicam fortemente os governos de plantão.

No caso brasileiro, percebemos o agravamento das questões fiscais que limitam o incremento dos gastos públicos, limitando os investimentos internos e canalizando grandes recursos monetários para o pagamento da dívida pública que, com uma taxa de juros estratosférica de 15%, transfere somas elevadas de recursos do orçamento público para os rentistas, aumentando a concentração de renda e incrementando as variadas desigualdades da sociedade brasileira.

Percebemos que a economia brasileira vem desacelerando, isto está acontecendo porque os motores do crescimento econômico estão sendo fragilizados, o consumo das famílias vem perdendo o dinamismo em decorrência das taxas de juros elevadas e o endividamento crescente, o setor exportador que sempre contribuiu para acelerar o crescimento vem perdendo espaço em decorrência das incertezas e das instabilidades motivadas pelas políticas altamente protecionistas adotadas pelo governo norte-americano, além das dificuldades fiscais, vistas pelo mercado como um limitador dos investimentos públicos, neste cenário, estamos vivendo um momento de inquietação e fortes incertezas, onde estamos aguardando novas medidas para impulsionarem o crescimento econômico e evitar uma maior degradação econômica.

O país acumula grandes desequilíbrios estruturais, o crescimento econômico é fundamental para reduzir os péssimos indicadores econômicos e sociais, sem fortalecer nossos setores econômicos e produtivos, sem impulsionarmos os empregos e sem uma melhora da renda agregada vamos gerar graves constrangimentos sociais, com aumento de violência urbana e uma degradação das condições de vida da população mais fragilizadas.

Neste momento, marcado por instabilidades crescentes em todas as regiões do mundo, é importante construirmos um verdadeiro projeto de país, precisamos olhar para o futuro e adotarmos, com urgência, políticas efetivas que garantam espaço de crescimento e inserção mais soberana no ambiente global, deixando modelos ultrapassados de crescimento econômico que pouco trouxeram de melhorias para a sociedade brasileira. Neste momento, precisamos construir empresas nacionais consolidadas, desenvolver tecnologias inovadoras, desenvolver setores que apresentem vantagens reconhecidas internacionais, reduzindo dependências externas e diversificando nosso comércio internacional, precisamos evitar a concentração de vendas externas em apenas poucas nações, consolidar novos parceiros comerciais e fortalecer nossa estrutura produtiva, deixando de lado um viralatismo estrutural que perpassa a elite nacional, sempre ativa e muita criativa para perpetuar nossa submissão e nossa dependência externa.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor unive

Para que servem os sindicatos no século XXI? por Clemente Ganz Lúcia

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Ainda inédita no Brasil, obra analisa o papel do sindicalismo, hoje, num mundo em crise. Como podem dar impulso à inovações, e resgatar seu papel de contrapoder? Quais os caminhos para formular uma nova regulação do trabalho, incluindo precarizados?

Clemente Ganz Lúcia – OUTRAS PALAVRAS – 18/08/2025

Há múltiplas transformações que promovem transições das realidades econômica, social, política e cultural e que impactam a vida presente e futura da classe trabalhadora e da organização sindical.

Essas transformações podem ser caracterizadas por cinco transições estruturais, a saber: a transição tecnológica e digital, com destaque para a robótica, a inteligência artificial, os novos materiais e a biotecnologia; a transição demográfica, que indica um rápido envelhecimento porque a população vive mais e tem menos filhos; a transição ambiental e climática, com a poluição do meio ambiente e o aquecimento do clima pelo efeito dos gazes estufa; a transição política, com a fragilização das democracias, o crescimento da extrema-direita, os ataques ao Estado Democráticos de Direito e a liberdade; a transição de regulação e do valor político do trabalho, moldada pela desregulamentação trabalhista, pelas iniciativas para enfraquecer os sindicatos e pelo individualismo exacerbado.

O sindicalismo é o maior movimento organizado da sociedade civil no mundo e desempenhou ao longo dos dois últimos séculos um papel essencial para a promoção dos direitos trabalhistas, da qualidade dos empregos, do crescimento dos salários e a promoção e defesa da democracia e de suas instituições. Continuamos desafiados à cumprir essa missão histórica em um novo contexto econômico, social, político e cultural.

Refletir sobre esse desafio sindical é o que realiza o jurista e assessor do movimento sindical espanhol, Antonio Baylos, no livro “¿Para qué sirve un sindicato? Instrucciones de uso1. Em um contexto de crise do trabalho assalariado, avanço do neoliberalismo, precarização e individualização das relações laborais, questionar a razão de ser do sindicato é, além de um exercício analítico, uma necessidade histórica. Este artigo apresenta cinco eixos fundamentais desenvolvidos por Baylos, que ajudam a compreender a relevância do sindicato diante das transições que ocorrem no mundo contemporâneo.

O sindicato como pilar da democracia

Os sindicatos são expressões organizativas autônomas da classe trabalhadora e cumprem um papel essencial na consolidação de regimes democráticos. A democracia se realiza nas urnas, nos parlamentos, nos governos, nos espaços de participação social. Mas a democracia também se realiza e se fortalece a partir dos locais de trabalho e nas lutas que a classe trabalhadora promove. O sindicato é o instrumento que permite aos trabalhadores exercerem sua cidadania social, lutando por condições dignas de trabalho, emprego de qualidade, melhores salários, proteção social e previdenciária, igualdade de oportunidades e participação.

Nesse sentido, para Baylos, o sindicato não é uma peça acessória da democracia, mas um de seus fundamentos. A sua existência fortalece os mecanismos de deliberação social, amplia o controle popular sobre as decisões econômicas e aprofunda a dimensão cidadã do sistema democrático. Em contextos de autoritarismo, os sindicatos são também espaços de resistência e defesa das liberdades civis e políticas.

Sindicato como contrapoder social

Outro aspecto que Baylos enfatiza é que os sindicatos têm uma função central de contrapoder frente à hegemonia do capital nas relações de trabalho. Em uma sociedade estruturalmente desigual, em que os patrões concentram poder econômico e institucional, os trabalhadores só conseguem defender seus interesses através da ação coletiva. O sindicato é o veículo desse contrapoder porque articula, mobiliza, organiza, representa e negocia.

Esse contrapoder não é apenas reativo, mas propositivo. Os sindicatos atuam na construção de alternativas, na formulação de propostas de regulação social do trabalho, na intervenção sobre a política econômica, na defesa de direitos sociais amplos e de políticas públicas universais. Baylos reafirma que o sindicato deve ser um sujeito político transformador, com projeto próprio e autonomia diante de governos e partidos.

Negociação coletiva como direito fundamental

Um dos pontos centrais do pensamento de Baylos é a afirmação da negociação coletiva como um direito fundamental dos trabalhadores. Trata-se de uma dimensão inalienável da autonomia sindical, reconhecida por convenções da OIT – Organização Internacional do Trabalho e constituições democráticas. A negociação coletiva é o meio através do qual os trabalhadores participam da regulação das condições de trabalho, dos salários, dos tempos de descanso e das formas de organização produtiva.

Sem negociação coletiva, o trabalho é regulado exclusivamente pelo poder unilateral do empregador ou pela legislação, que muitas vezes sofre pressões para ser flexibilizada. A negociação coletiva democratiza o local de trabalho, cria equilíbrio de forças, e permite adaptar normas gerais a condições setoriais e locais. Sua existência efetiva exige organização sindical forte, legislação protetiva e respeito institucional.

Representar todos os trabalhadores

A diversidade de formas de ocupação (assalariados com e sem carteira assinada; servidores estatutários; conta-própria, autônomos e trabalhadores independentes; cooperados; trabalhadores domésticos; trabalhadores de cuidados; pejotizados, microempreendedores individuais, entre outras) é um desafio estratégico a ser enfrentado pelo sindicalismo. Por isso, Baylos faz uma crítica contundente aos modelos sindicais excludentes, que representam apenas setores estáveis e com contratos protegidos. Para ele, o sindicato do século XXI precisa ampliar sua base de representação, incluindo trabalhadores precários, informais, autônomos dependentes, imigrantes e jovens.

Essa ampliação exige novas formas organizativas, linguagem acessível, escuta ativa e capacidade de intervenção nos novos espaços de trabalho (plataformas digitais, cadeias produtivas fragmentadas, cooperativas etc.). O sindicato precisa ser um instrumento de inclusão social e laboral, contribuindo para reduzir desigualdades e democratizar o acesso a direitos.

Enfrentar os desafios contemporâneos

O sindicalismo vive desafios globais: queda na densidade sindical e na sindicalização, fragmentação da classe trabalhadora e das formas de representação (categorias mais fracionadas e sindicato por empresa), ofensiva neoliberal para flexibilizar direitos trabalhistas e sociais. Baylos analisa esses desafios e, principalmente, aponta caminhos para enfrentá-los, com destaque para:

  • O combate à “uberização” e à falsa autonomia dos trabalhadores de plataforma;
  • A resistência à desregulamentação e à precarização do trabalho;
  • A necessidade de revitalizar os espaços de negociação coletiva;
  • A articulação com outros movimentos sociais e ambientais;
  • A reinvenção das práticas de base, com foco na escuta e no cuidado.

O autor propõe investir em “nova cultura sindical”, baseada na democracia interna, na participação ativa dos filiados e na construção de alianças sociais amplas. Para Baylos, o sindicato continua sendo uma ferramenta essencial da luta por justiça social, desde que saiba se renovar sem perder sua identidade de classe.

Considerações finais

“Para que serve um sindicato?” não é apenas uma pergunta retórica. Em tempos de retrocessos sociais, de mercantilização da vida e de ataque aos direitos trabalhistas e sindicais, responder a essa pergunta é um ato de resistência e de ousadia política. Antonio Baylos oferece reflexões críticas e inspiradoras. Ele mostra que o sindicato é mais do que um instrumento de defesa: é uma escola de democracia, um agente de transformação social, um contrapoder imprescindível para que a igualdade deixe de ser uma promessa e se torne uma realidade concreta.

  1. “¿Para qué sirve un sindicato? Instrucciones de uso”, Antonio Baylos, Los Libros de la Catarata Editora, 192 páginas, 2021.

Os grilhões neoliberais, por Ferreira Costa & Lima Ferreira

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Frederico Jorge Ferreira Costa & Emmanoel Lima Ferreira

A Terra é Redonda – 21/07/2025

A ideologia neoliberal, ao se consolidar como a única verdade econômica, aprofundou desigualdades sociais e econômicas, resultando em crises sociais e políticas que ameaçam a democracia e a estabilidade global

1.

Numa primeira aproximação, pode-se dizer que a ideologia neoliberal é uma espécie de tentativa de superação da crise do “velho capitalismo” por uma nova e dinâmica corrente do pensamento econômico, gestada a partir da renovação da Escola Austríaca.

Friedrich von Hayek (1889-1992), intelectual da Escola Austríaca e ganhador do Prêmio Nobel de 1974 em Ciências Econômicas, teve sua obra, O caminho da servidão (1944), transformada numa escritura sagrada para o neoliberalismo, ao lado do monetarismo moderno da Escola de Chicago e dos mitos que envolvem as teses da globalização e estabilidade.

No frigir dos ovos, a aplicação generalizada do receituário neoliberal desde a década de 1990, configurou, na dimensão teórica, os fundamentos do empobrecimento do debate econômico atual.

Essa verdade única aplicada por governos neoliberais aprofundou a concentração de renda, o aumento da criminalidade, a precarização de empregos, a desintegração familiar, a queda de qualidade na saúde e educação públicas, a falta de horizontes e de empregabilidade para jovens, a concentração e centralização crescente do capital, a marginalização de faixas inteiras da população economicamente ativa em diversos graus, além do estímulo a guerras e alternativas políticas antidemocráticas (ditadura, fascismo, golpes de Estado).

Em resumo, há uma grave crise social, cada vez mais aprofundada pelo credo neoliberal e suas políticas, e a resposta neoliberal para esta é o ajuste fiscal, privatizações, ataques às condições de vida dos trabalhadores e mais guerras. Não é à toa que Samir Amin (1931-2018), intelectual egípcio, caracterizou o imperialismo dos Estados Unidos de império do caos. É o que estamos presenciando na Líbia, Síria, na guerra da Otan e dos Estados Unidos contra a Rússia na Ucrânia, nos golpes na América Latina.

Desde 1999, após a crise cambial, o governo Fernando Henrique Cardoso substituiu a âncora cambial pelo regime de metas de inflação. As políticas neoliberais consubstanciadas no Consenso de Washington colocavam como centro das políticas macroeconômicas a estabilidade monetária substituindo o objetivo da busca do pleno emprego, nos países centrais, e a superação do subdesenvolvimento, nos países periféricos, por meio da intervenção e planejamento estatal.

A inflação se torna o grande inimigo e o combate a esta foi o abre-alas para privatizações, retirada de direitos sociais, abertura da conta de capitais, desindustrialização e financeirização da economia. Nessa perspectiva, o controle da taxa de inflação torna-se uma função da política monetária através de ajustes na taxa básica de juros.

Logo, as autoridades monetárias guiam-se por metas de inflação para tentar manter a taxa de inflação em torno destas metas. Em termos de operacionalidade, o Comitê de Política Monetária (Copom) é responsável por definir o valor da taxa básica de juros (a famosa taxa Selic) com base em uma meta para a inflação definida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) e avaliada segundo a trajetória do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

2.

A teoria monetarista afirma que a elevação da taxa de juros é um instrumento de controle inflacionário que produziria efeitos desestimulantes sobre consumo de bens duráveis, investimentos produtivos e investimento residencial, reduzindo a demanda agregada com o objetivo de diminuir a inflação e reequilibrar as contas públicas por meio das políticas de austeridade para retomar a confiança dos investidores.

A “demanda agregada” é um conceito da macroeconomia que representa a quantidade total de bens e serviços que todos os agentes econômicos (famílias, empresas, governo e setor externo) estão dispostos a adquirir a diferentes níveis de preços em um determinado período. É um indicador fundamental para avaliar a atividade econômica de um país e é frequentemente utilizado para guiar políticas públicas neoliberais que visam o crescimento econômico e o controle da inflação, que é um dogma.

Pois, para que não haja inflação todo custo social é justificável. Por isso, a estabilidade seria central para combater a inflação e gerar crescimento interno. A ideia de estabilidade monetária e austeridade fiscal está vinculada à analogia dos gastos públicos ao orçamento doméstico. O que é algo completamente estapafúrdio pois, o Estado pode se endividar em sua própria moeda, imprimir dinheiro, e cobrar impostos dos mais ricos (taxação das grandes fortunas).

Do ponto de vista, histórico, pode-se ver que o crescimento econômico de um país depende de inúmeras variáveis, não apenas da inflação. Um dos aspectos centrais do crescimento é o investimento em formação bruta de capital fixo. A China, por exemplo, investe mais de 40% do Produto Interno Bruto (PIB) na produção de bens de capital (máquinas, equipamentos etc.). Ela não caiu no conto de fadas das políticas neoliberais e nem pratica uma política de austericídio.

Segundo a teoria monetarista, a inflação é causada por excessos de demanda, então a redução da demanda agregada acompanhada de aumento de desemprego possibilitaria o controle inflacionário. Isso explica por que após a adoção de políticas neoliberais, desde o governo FHC, o crescimento do Brasil é chamado de voo de galinha. Toda vez que o Brasil começa a crescer a taxas maiores, vem a pressão para aumentar as taxas de juros brecando o crescimento em nome do combate a inflação de demanda.

3.

Mas algum setor social, ganha com os grilhões neoliberais que ainda amarram a política econômica do governo Lula?

Resposta, claro que sim. Porque uma parcela importante da dívida pública é composta de títulos indexados à taxa Selic, portanto, o gasto com pagamentos de juros é influenciado pelas alterações dessa taxa, o que mostra a conexão entre política fiscal e política monetária. Assim, a cada elevação da taxa aumentam os problemas da dimensão fiscal pelas consequências no custo da dívida pública, que favorecem frações das classes dominantes do Brasil.

Como o Brasil é um país capitalista periférico de passado escravista e colonial, há profundas desigualdades de propriedade, de riqueza e, consequentemente de renda. A fração de burguesia (capital financeiro), que detêm a Dívida Pública Federal sob a forma da propriedade de títulos de dívida pública é o setor hegemônico no bloco de poder ao lado da burguesia agrária (agronegócio).

Então, quando a taxa de juros se eleva o capital financeiro e as famílias de alta renda, milionários e bilionários ganham cada vez mais. Simultaneamente, as famílias mais pobres e endividadas enfrentam maiores dificuldades em quitar suas dívidas, elevando as taxas de inadimplência e de empobrecimento. Assim, a taxa Selic exerce um forte poder concentrador de renda por drenar recursos dos mais pobres para os mais ricos através de pagamento de juros.

Eis a função classista das políticas econômicas neoliberais e monetaristas: concentração maior de riquezas nas mãos de uma minoria cada vez menor. Além da orientação monotemática no ajuste fiscal, nas políticas de austeridade e no teto de gastos para manter o parasitismo financeiro de uma ínfima minoria.

Por isso, é necessário que o governo Lula vire à esquerda, rompa com o arcabouço fiscal que privilegia o pagamento da dívida pública em detrimento do investimento em saúde, educação, e políticas que gerem emprego e renda.

Urge a definição e mobilização de uma pauta que contemple: o fim do arcabouço fiscal e da autonomia do Banco Central; estatização do sistema financeiro para que este sirva ao desenvolvimento nacional; reforma agrária; reestatização das empresas privatizadas. Este é o único caminho para vencer a extrema direita e o imperialismo.

Isto significa um rompimento com a política de aliança com as frações hegemônicas das classes dominantes (frente ampla) e as políticas econômicas que favorecem os interesses dessa minoria. Isso exigiria o apelo às grandes maiorias e às suas reivindicações. O futuro deve ser depositado nas mãos plebeias e trabalhadoras de diversas etnias, gêneros e singularidades que constroem o Brasil.

Frederico Jorge Ferreira Costa é professor da Faculdade de Educação da Universidade Estadual do Ceará (UECE).

Emmanoel Lima Ferreira é professor de economia na Universidade Regional do Cariri (URCA).

As ameaças da economia do excesso, por Ricardo Abramovay

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Ricardo Abramovay – A Terra é Redonda – 19/07/2025

A economia do excesso está na raiz das doenças que mais matam no mundo, com ultraprocessados e uso indiscriminado de antibióticos na criação animal como principais vilões

Produzir cada vez mais para uma população cujo consumo alimentar está na raiz das doenças que mais matam no mundo, esta é a marca fundamental de um sistema que se encontra sob contestação crescente, não só na comunidade científica e nas organizações da sociedade civil, mas também junto a setores expressivos dos investidores privados.

Relatório recente da Planet Tracker, apoiado pelo Mitsubishi UFJ Financial Group, o sétimo maior banco do mundo, com US$ 2,8 trilhões de dólares em ativos, alerta para dois riscos a que se expõem atualmente os investidores no setor alimentar.

O primeiro se refere aos ultraprocessados. O estudo se apoia na metodologia NOVA, elaborada de forma pioneira pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (NUPENS/FSP/USP) e que consagrou globalmente a classificação dos alimentos não apenas por seu teor nutricional e sim por seu grau de processamento.

O que está em questão não é a industrialização dos alimentos e sim a elaboração de produtos cuja composição tem um grau de artificialidade incompatível com o funcionamento saudável do sistema digestivo. São produtos viciantes, de alto teor calórico e baixo teor nutricional.

O estudo mostra que norte-americanos e britânicos têm nos ultraprocessados 60% de seu consumo calórico diário. O resultado é uma pandemia de obesidade, que atinge nada menos que 40% da população norte-americana. A obesidade, no mundo, em crianças e adolescentes (5 a 19 anos) passa de 1,9% em 1990 a 8,2% em 2022.

No Brasil, ela atingia 3,2% das pessoas nesta faixa etária em 1990 e passa a 15,5% em 2022. Um bilhão de pessoas no mundo vivem com obesidade, que é o vetor principal de doenças não transmissíveis (diabetes 2, doenças cardiovasculares, vários tipos de câncer e outros tipos de enfermidades que a pesquisa científica vem sistematicamente revelando) responsáveis por 42 milhões de mortes anuais e por gastos que chegam a 3,3% do PIB dos países da OCDE.

O relatório da Planet Tracker mostra o caráter nefasto das campanhas publicitárias em torno de produtos ultraprocessados, sobretudo nas redes sociais. O mercado de influenciadores (cujo faturamento anual passa de US$ 1,7 bilhão em 2016 para US$ 24 bilhões em 2024) é particularmente importante: segundo a análise de 400 vídeos de influenciadores voltados ao público infantil, 65% da publicidade incorporada em suas mensagens referiam-se à alimentação, com 91% deste total promovendo ultraprocessados. Dois terços das recomendações vindas de celebridades nos Estados Unidos apoiam alimentos e bebidas não saudáveis.

Os investidores podem se proteger contra os incontornáveis impactos desta verdadeira apologia à doença em seus ativos, apoiando a taxação de produtos nocivos à saúde e a rotulagem de advertência nas embalagens, estimulando mudanças na composição dos produtos e restrições tanto ao marketing quanto à colocação de artigos prejudiciais à saúde em prateleiras ao alcance de crianças.

Um box do relatório faz um “chamado à ação para os investidores”, do qual o primeiro item é: “incentivar as empresas a reduzirem sua dependência de alimentos ultraprocessados”. Além disso o trabalho denuncia os subsídios agrícolas globais de US$ 650 bilhões, voltados fundamentalmente a grãos (cereais e óleos) e açúcar e constata que na alimentação saudável este tipo de apoio é raro.

Ao contrário das organizações que teimam em apontar as restrições preconizadas pelo estudo da Planet Tracker como obstáculos à inovação ou à livre concorrência, o relatório mostra que as empresas que se antecipam e se adaptam às mudanças regulatórias para uma alimentação saudável têm vantagem competitiva derivada da valorização de suas marcas e da confiança daí decorrente junto a seus consumidores.

O segundo problema apontado no relatório da Planet Tracker é o uso em larga escala de antibióticos na criação animal (terrestre e aquática), que está origem de uma das mais importantes preocupações da Organização Mundial da Saúde: a resistência aos antimicrobianos, que resulta na emergência das superbactérias em ambientes hospitalares diante das quais os antibióticos conhecidos mostram-se cada vez mais ineficientes.

Estes riscos são exacerbados pela estagnação na descoberta de novos antibióticos. E, assinala o estudo, 73% dos antibióticos produzidos globalmente voltam-se a animais de criação industrial.

Trabalho recente publicado pela Cátedra Josué de Castro na revista científica Redes corrobora as conclusões do estudo da Planet Tracker. Antibióticos são, com imensa frequência, usados em substituição à boa higiene e a práticas que evitariam as contaminações. Além disso, eles são empregados tanto de forma preventiva como também para estimular o crescimento dos animais (sobretudo na avicultura e na suinocultura).

São práticas inerentes a uma concentração dos animais em espaços restritos que comprometem a dignidade e impõem estresse a seres dotados de inteligência, sensibilidade, capacidade comunicativa e de brincar e que só se viabilizam com o uso de produtos que ameaçam igualmente a saúde humana.

Mas será que os limites a estas práticas não ameaçam a oferta de produtos animais, cuja demanda é crescente? As medidas restritivas ao uso de antibióticos de forma preventiva e como fatores de crescimento, adotadas na União Europeia, não provocaram crise de abastecimento, respondendo, portanto, pela negativa a esta pergunta.

Além disso, é importante levar em conta algo verdadeiramente contraintuitivo: não só nos países mais ricos do mundo, mas também nos de renda média (como Brasil e China), o consumo de produtos animais é muito superior às necessidades metabólicas dos seres humanos, mesmo entre as camadas de baixa renda, como mostra trabalho que acaba de ser publicado na Revista de Saúde Pública por pesquisadores do NUPENS e da Cátedra Josué de Castro. Entre os 20% de menor renda da população brasileira a proporção dos que apresentam déficit proteico não passa de 3%.

Estimular práticas produtivas que não se apoiem no estresse animal e evitem o uso em larga escala de antibióticos é mais eficiente para a saúde humana e para o meio ambiente que cultivar o mito de um mundo ameaçado pela carência de calorias e de proteínas. O que está em questão, como mostra o trabalho da Planet Tracker, são os riscos sociais, mas também financeiros, daquilo que, no caso dos ultraprocessados e dos produtos animais, pode e deve ser chamado de economia do excesso.

Ricardo Abramovay é professor titular da Cátedra Josué de Castro da Faculdade de Saúde Pública da USP. Autor, entre outros livros, de Infraestrutura para o Desenvolvimento Sustentável (Elefante)

A dupla alienação do professor universitário, por João dos Reis Silva Júnior

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João dos Reis Silva Júnior – A Terra é Redonda – 23/07/2025


O desafio, hoje, é reconstruir sentidos para o trabalho docente e para a linguagem universitária. É preciso recusar a naturalização do cansaço e da perda do tempo partilhado. É necessário desobedecer ao mandato da eficiência que apaga a escuta, a dúvida e a sensibilidade

1.

A crise vivida pela universidade pública brasileira transcende os números do orçamento, a precarização das estruturas ou a mera falta de reconhecimento social. O núcleo desse processo reside em uma experiência dilacerante e pouco nomeada: o professor universitário, tornado figura central de uma engrenagem contraditória, é capturado por uma dupla alienação que esvazia tanto o sentido de seu trabalho quanto a potência de sua palavra.

No plano mais visível, a alienação material do docente revela-se na sobrecarga, nos múltiplos vínculos, nas tarefas que jamais se encerram. A sala de aula invade o lar, as plataformas digitais sequestram o tempo de descanso, os relatórios substituem o exercício pleno da reflexão.

O professor se multiplica em funções: orientador, pesquisador, executor de projetos, gestor de si e dos outros – quase sempre sem tempo para ser, de fato, mestre. A cada ciclo de avaliações, novas metas são impostas. A cada edital, renova-se a promessa de reconhecimento que nunca se realiza. O resultado é o acúmulo silencioso do cansaço, da frustração, da sensação de ausência nos espaços de afeto.

O trabalho docente, antes experiência de partilha, vira travessia solitária e marcada pela culpa: quantos jantares, quantos momentos com os filhos, quantas conversas fiadas são sacrificadas para atender a demandas institucionais que se renovam ao infinito.

Ao lado desse esgotamento objetivo, há uma alienação menos visível e ainda mais corrosiva: a expropriação da linguagem do próprio professor. O docente vê-se obrigado a comunicar-se com um léxico estranho, marcado pelo idioma dos editais, das métricas e das autoavaliações compulsórias. A palavra, que deveria ser espaço de invenção e de pensamento, é domesticada pela lógica do desempenho.

Relatórios, artigos e projetos são formatados para caber nas exigências institucionais e para pontuar em rankings que pouco dialogam com a experiência real da sala de aula e da pesquisa crítica. O docente aprende, não sem sofrimento, a apagar sua voz – e a falar segundo as regras do jogo. Perde-se, aí, o sabor do inesperado, da dúvida, do tropeço criativo, da escuta autêntica.

A universidade atual demanda professores que entreguem resultados, que ajustem sua prática à gramática da eficiência e do empreendedorismo. A experiência docente, assim, é recodificada: o gesto de ensinar converte-se em performance, o tempo de leitura é substituído pela ansiedade do próximo prazo, a orientação transforma-se em gerenciamento de trajetórias.

O professor é pressionado a transformar vocação em produtividade, criatividade em produto, dúvida em plano de metas. Quando o reconhecimento chega, ele já é moeda simbólica para outra competição. Quando falha, o fracasso é vivido como defeito pessoal, nunca como sintoma de um ambiente hostil.

2.

Essa dupla alienação – do trabalho e da palavra – não é vivida de modo uniforme. Ela se intensifica nos segmentos mais vulneráveis: docentes temporários, mulheres, negros, jovens, professores das regiões periféricas ou do interior. Esses grupos sofrem ainda mais o impacto das políticas de precarização e são frequentemente responsabilizados por sua própria exclusão.

O sofrimento, em vez de mobilizar solidariedade, é internalizado como culpa. O adoecimento físico e mental é tratado como infortúnio individual, nunca como parte de um projeto institucional que sacrifica pessoas para manter a engrenagem em funcionamento.

Apesar desse quadro adverso, há resistências. Mesmo nos interstícios de um sistema que impõe a obediência e sufoca a imaginação, alguns gestos escapam à captura: a aula que desacelera, a pesquisa que se recusa a caber nos formulários, a orientação que acolhe o silêncio, a escrita que ousa errar. Pequenas insubordinações persistem – e nelas, ainda pulsa a possibilidade de uma universidade mais aberta ao humano, menos entregue ao algoritmo.

O desafio, hoje, é reconstruir sentidos para o trabalho docente e para a linguagem universitária. É preciso recusar a naturalização do cansaço e da perda do tempo partilhado. É necessário desobedecer ao mandato da eficiência que apaga a escuta, a dúvida e a sensibilidade.

Isso só será possível se o professor recuperar, no exercício de sua palavra, a coragem do inacabado, da pausa, da hesitação – elementos que não cabem nos relatórios, mas sustentam toda experiência de pensamento autêntico.

A dupla alienação, portanto, não pode ser superada apenas por reformas administrativas ou pela ampliação de recursos. Trata-se de resgatar o sentido do comum, de revalorizar a linguagem como território de invenção, de fortalecer laços de solidariedade e crítica no cotidiano universitário.

Enquanto o ofício de ensinar for visto apenas como um número a ser preenchido, um índice a ser perseguido, a universidade continuará sendo campo de sofrimento e não de formação. Somente quando a fala do professor recuperar seu poder de nomear o mundo – mesmo que tropeçando, mesmo que hesitando – será possível inaugurar outros modos de existir e pensar na universidade capturada.

João dos Reis Silva Júnior é professor titular do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Autor, entre outros livros, de Educação, sociedade de classes e reformas universitárias (Autores Associados)

Referências

BAMBIRRA, Vânia. O capitalismo dependente latino-americano. Rio de Janeiro: Graal, 1978.

DOS SANTOS, Theotonio. A teoria da dependência: balanço e perspectivas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1973.

OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.

SILVA JÚNIOR, João dos Reis. |Universidade Inacabada: Razão e Precariedade. Campinas. Editora Mercado de Letras, 2026.

Inteligência artificial (de)generativa, por Ricardo Antunes

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Ricardo Antunes – A Terra é Redonda – 14/08/2025

Sabemos que a tecnologia foi resultado da inventividade humana. Com o advento do capitalismo, a tecnologia foi se metamorfoseando e adequando ao modus operandi do capital. Toda “inovação” é para de fato valorizar mais e, assim, acumular muito mais!

1.

A era da expansão dos algoritmos e da Inteligência artificial, qualquer previsão sobre o futuro do trabalho corre o risco de ser mais um embuste. Impulsionada pela financeirização do capital, a Inteligência artificial é explícita em seu objetivo: transferir para as máquinas inteligentes tudo que hoje é realizado pelo trabalho humano.

Alguém poderia dizer: mas isso não é bom? Não teremos trabalhos mais qualificados, mais “criativos”, vivenciando um mundo laborativo mais humano e mais tempo de vida?

A resposta está nas atividades que se expandem nas sombras da Inteligência artificial, com seus microtrabalhos ultraprecarizados, especialmente (mas não só) no Sul global. Realizando jornadas ilimitadas, excluídos de todos os direitos do trabalho, recebendo níveis de remuneração indigentes, de modo a gerar informações para a Inteligência artificial. E quem encontra trabalho nas startups está experimentando uma “invenção” chinesa (o S-996): jornadas das 9 da manhã às 9 da noite, 6 dias de trabalho, totalizando 72 horas semanais. Eis os novos experimentos que se expandem neste “admirável mundo do trabalho” na era da Inteligência artificial.

A síntese é límpida: eliminação de “trabalho vivo”, em uma gama enorme de atividades, substituídos pelo “trabalho morto”, como se vê na ciberindústria. Mas, atenção, há luz no fim do túnel para os descartáveis e os supérfluos: sobreviver por meio do trabalho uberizado, que se expande globalmente nas plataformas digitais.

Plataformas que se utilizam do mito do “empreendedorismo” visando proletarizar ao limite, mas se recusando a reconhecer a condição de assalariamento; impondo, através do “comando invisível dos algorítmicos”, jornadas prolongadas, além de vedar peremptoriamente qualquer forma de proteção do trabalho. Tendência que defini, em O privilégio da servidão, como “nova era de escravidão digital” (Boitempo, 2020). E que os CEOs, esses novos predadores digitais, consideram como sendo “moderna”.

Um aparente paradoxo aflora, e um novo espectro se avizinha: com a expansão acelerada da Inteligência artificial generativa, sem controle e sem regulamentação, estamos presenciando, em plena era digital, a retomada de modalidades pretéritas de trabalho, pautadas pela trípode exploração, expropriação e espoliação, vigente no início da Revolução Industrial.

crowdsourcing, hoje, é uma variante digital e algorítmica do velho outsourcing, no qual homens, mulheres e crianças trabalhavam à margem da legislação protetora do trabalho, com jornadas ilimitadas e condições de trabalho desumanas. [1]

Estamos, então, frente à Inteligência artificial generativa? Ou adentramos perigosamente na fase da Inteligência artificial degenerativa, concebida e plasmada pelo sistema de metabolismo antissocial do capital?

Sabemos que a tecnologia foi, desde sua gênese, resultado da inventividade humana, que nasceu com o primeiro microcosmo familiar. Com o advento do capitalismo, a tecnologia foi se metamorfoseando e adequando ao modus operandi do capital. Toda “inovação” é para de fato valorizar mais e, assim, acumular muito mais!

Podemos assim vaticinar o resultado em relação ao trabalho: um novo espectro ronda o mundo do trabalho, o espectro da uberização. Mas erra quem pensa que não há resistência.

2.

Foi durante a campanha eleitoral de 2024 que nasceu o movimento VAT [Vida Além do Trabalho], contra a jornada 6X1, contemplando dimensões centrais da vida cotidiana, que resumo a seguir:

(i) a redução da jornada de trabalho se configura como uma ação central da classe trabalhadora para minimizar a lógica destrutiva do capital, uma vez que acarreta, de imediato, a redução do desemprego; (ii) constituiu-se em antídoto real à exploração, tanto absoluta como relativa do trabalho, como no início da Revolução Industrial (com o ludismo).

(iii) Opõe-se, em alguma medida, ao despotismo fabril das eras taylorista/fordista e toyotista e, hoje, ao trabalho uberizado. Vale recordar o excepcional breque dos apps, de 31 de março e 1 de abril (dia da mentira) de 2025, contra o despotismo algorítmico, mais invisível, mais interiorizado, que invade sorrateiramente nossa vida e nosso trabalho.

(iv) lutar contra o 6×1 possibilita também vislumbrar outro ponto crucial: uma vida desprovida de sentido no trabalho é incompatível com uma vida cheia de sentido fora do trabalho, [2] (v) o que nos leva a sonhar com o fim das barreiras entre tempo de trabalho e tempo livre e, ancorados em outra forma radicalmente distinta de Inteligência artificial, vislumbrar uma nova sociabilidade emancipada, autodeterminada, com indivíduos livremente associados, fora dos constrangimentos do capital.

(vi) Por fim, ao lutar pela redução da jornada, poderemos indagar: produzir o quê? E para quem?

Assim, o mundo do trabalho se entrelaça, decisivamente, com outro imperativo crucial de nosso tempo: impedir a destruição da natureza, como nossos povos originários nos ensinaram.

Ricardo Antunes é professor titular de sociologia na Unicamp. Autor, entre outros livros, de O capitalismo pandêmico (Boitempo).

Notas

[1] Ver Icebergs à Deriva: o trabalho nas plataformas digitais, (Antunes, R., Organizador, Boitempo, 2023) e Uberização, Trabalho Digital e Indústria 4.0 (Antunes, R., Organizador Boitempo).

[2] Ver Os Sentidos do Trabalho, edição especial de 25 anos (Boitempo, 2025), particularmente o capítulo X.

Dejetos do capital, por André Márcio Neves Soares

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André Márcio Neves Soares – A Terra é Redonda – 12/08/2025

A análise crítica das atrocidades contemporâneas revela um mundo onde a violência e a desigualdade são perpetuadas por interesses econômicos e políticos, destacando a necessidade urgente de uma reflexão ética e moral

“Quem sabe/o Super-homem venha nos restituir a glória/mudando como um Deus/o curso da história” (Gilberto Gil).

1.

Se eu pudesse resumir em uma frase a quadra histórica em que vivemos, com certeza seria esta: o mundo surtou! Senão vejamos:

Há quase dois anos o mundo assiste, sem interferir, a um dos maiores genocídios desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a saber, o genocídio dos palestinos pelo Estado de Israel, que, considerando as violências sofridas pelo povo judeu no século passado, deveria ser um farol ético e moral na luta contra novos holocaustos.

Mas dizer que o mundo optou por não interferir é um eufemismo bastante grosseiro, na medida em que o relatório da encarregada especial da ONU para os territórios palestinos, Sra. Francesca Albanese, denunciou publicamente que inúmeras empresas estariam se beneficiando economicamente da guerra em Gaza, conflito que classificou como um “genocídio” cometido por Israel. [1]

Neste contexto, a validação pela ONU do número de mortos no conflito, desde que uma sombria Fundação Humanitária de Gaza (GHF), ligada a Israel e aos Estados Unidos, passou a controlar a distribuição de alimentos e ajuda humanitária, é simplesmente surreal. Aterrorizante mesmo! Já são pelo menos 1.200 pessoas mortas enquanto tentavam obter algum tipo de alimento, sendo que 966 delas foram abatidas quando estavam próximas de instalações da GHF.

De fato, ao contrário do que Israel sempre alega, não são integrantes do Hamas que têm se aproximado desses poucos postos de distribuição de alimentos e ajuda, mas pessoas comuns, inclusive menores de idade. O tiro ao alvo praticado pelos soldados das Forças de Defesa de Israel (IDF) traduzem o sentimento mórbido e de impunidade de uma sociedade doente pela vingança e pelo poder.

Por outro lado, três anos e meio se passaram desde que a Rússia invadiu a Ucrânia e, até o momento, as principais potências do planeta não lograram obter um acordo para o cessar-fogo. Na verdade, a OTAN continua a abastecer a Ucrânia de armamentos, principalmente através dos Estados Unidos, como se ainda houvesse esperança de a Ucrânia passar a integrá-la.

O saldo desse conflito até agora é terrível para ambos os lados: para a Rússia, virar um estado pária para o Ocidente tem consequências ainda pouco estudadas para sua população; para a Ucrânia, as consequências são ainda mais nefastas, em razão das baixas militares, considerando mortos e feridos, da destruição da sua infraestrutura e agora do acordo lesa-pátria de transferência dos recursos naturais que Volodymyr Zelensky assinou com os Estados Unidos de Donald Trump – notadamente das “terras raras” – em troca de mais armamentos. O ultimato de Donald Trump para que a Rússia faça um acordo de cessar-fogo de 10 dias, sob pena de novas sanções, é só mais um capítulo dessa macabra festa de mortes desnecessárias que parece não ter fim.

Por falar nos Estados Unidos, em mais um capítulo da distopia do governo de Donald Trump, surgiram denúncias de uma espécie de “déja vu” da época da invasão do Iraque e do escândalo da prisão de Abu Ghraib. Com efeito, o recente relatório da ONG Human Rights Watch sobre as aberrações praticadas nos centros de imigração no sul da Flórida – especialmente em três deles, quais sejam, o Krome North Service Processing Center, o Broward Transitional Center (BTC) e o Federal Detention Center (FDC) – remetem a um momento de barbárie praticada pelos Estados Unidos e Inglaterra no Iraque invadido e destruído, sob o falso pretexto das armas químicas de Saddam Hussein.

A infâmia agora está sendo praticada em solo americano, contra imigrantes que não possuem histórico criminal ou, se possuem, não são de alta periculosidade. O grave erro deles é estar no lugar errado, num momento de guinada americana para a extrema direita.

2.

O pior de tudo isso é que Donald Trump parece estar conseguindo seus objetivos de colocar as instituições democráticas estadunidenses nas cordas, com o apoio da maioria de conservadores no legislativo e na Suprema Corte. Bem de ver, o sistema de pesos e contrapesos que vem marcando a democracia americana desde o último quartel do século XVIII parece bem disfuncional na contemporaneidade.

E nem mesmo o escândalo do caso Epstein, no qual Donald Trump parece estar bastante envolvido (para dizer o mínimo) – e que se refere ao muito espinhoso tema do tráfico de mulheres e da prostituição infantil -, parece arrefecer a sanha de um desequilibrado mental. Com efeito, em que pese durante a sua campanha de retorno à Casa Branca tenha prometido expor os detalhes desse escândalo e os envolvidos – não houve punições, porque Epstein teria “supostamente” se enforcado na cadeia -, depois de eleito, Donald Trump passou a negar tudo, inclusive a existência de uma lista dos envolvidos, após ser comunicado pelo FBI de que seu nome estaria nela.

Noutro giro, como se tudo isso fosse pouco, a notícia de que as quatro pessoas mais ricas da África detêm, juntas, 57,4 bilhões de dólares (R$ 318,4 bilhões) e são mais ricas que metade da população do continente[2] – segundo relatório divulgado no dia 10/07/2025 pela Oxfam, ONG de combate à pobreza e à desigualdade – choca pela crueldade desses números, especialmente no segundo continente mais populoso e que abriga a população mais pobre do planeta, apesar das suas quase inesgotáveis riquezas minerais.

E o show de horrores não fica só nisso, pois, ainda segundo a Oxfam, os 5% mais ricos do continente detêm quase 4 trilhões de dólares (R$ 22,2 trilhões) em riqueza, quase o dobro do PIB brasileiro em 2024 (de 2,18 trilhões de dólares, segundo o Banco Mundial). O valor também é mais do que o dobro da riqueza dos 95% restantes que vivem no continente.

Ainda sobre o continente africano, é preciso mencionar que alguns países de lá, como a Nigéria, o Sudão do Sul e a República Democrática do Congo, estão mergulhados em guerras locais intermináveis. Na Nigéria, inclusive, uma crise de fome sem precedentes se anuncia na porção norte do seu território e pode deixar, pelo menos, cinco milhões de crianças em desnutrição aguda.

Lá, grupos jihadistas como o Boko Haram têm potencializado os conflitos pelo controle de terras aráveis e, por consequência, pelo poder. No Congo, a disputa entre as forças policiais do país e os mercenários do grupo M23 –o apoiado por Ruanda e, sub-repticiamente, pelos Estados Unidos – pelas riquezas minerais já deslocou mais de 7 milhões de pessoas de seus vilarejos, e nem a proposta de paz surgida na mesa patrocinada por Angola parece amainar o conflito.

Por último, mas não menos pior, no Sudão do Sul o cenário é de guerra civil, semelhante ao dos conflitos de 2013 e 2016, que deixaram mais de 400 mil mortos. O alerta tem sido foi feito pelo secretário-geral da ONU, António Guterres. Com efeito, forças leais a dois generais rivais estão competindo pelo controle do país há vários anos e, como costuma acontecer, os civis são os mais atingidos, com dezenas de mortos e centenas de feridos.

3.

Volvendo o enfoque, a entrada em vigor das novas tarifas determinadas pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, promete colocar ainda mais lenha na fogueira, no contexto do seu desafio à ordem comercial globalizada. Resta evidente que a imposição estadunidense de tarifas sobre as exportações de quase 200 países é o início de uma nova ordem comercial que os Estados Unidos pretendem levar adiante para seu próprio benefício.

Para além da óbvia era de incerteza que essas tarifas imporão ao mundo, fica a sensação de que os Estados Unidos desejam a volta do estado da natureza hobbessiano de guerra de todos contra todos. Assim, o soberano, Estados Unidos da América, pela graça do seu novo Rei, Donald Trump, poderão estabelecer um novo contrato social onde os indivíduos (Estados) abram mão de parte de sua liberdade em troca da proteção e segurança proporcionadas pela principal potência militar do planeta.

O principal problema dessa investida final dos Estados Unidos pela manutenção da hegemonia mundial, diante dos claros sinais de obsolescência de sua economia, é que Donald Trump esqueceu de combinar com os chineses.

Deveras, com a China crescendo a 5,2% no último trimestre e sendo atualmente o chão de fábrica do mundo – com proeminência em áreas tão vitais para o progresso como telecomunicações, computação pessoal e tecnologia verde, além de deter as maiores reservas dos minerais considerados fundamentais para diversas indústrias, incluindo tecnologia, energia e defesa, os 17 elementos químicos com propriedades magnéticas, luminescentes e eletroquímicas únicas denominados de “terras raras” –, parece improvável que os Estados Unidos retomem a dianteira no processo de desenvolvimento de novas tecnologias nas próximas décadas.

Daí a corrida maluca de Donald Trump para abocanhar as riquezas minerais da Ucrânia, do Congo e até do Brasil, como notificado recentemente.

4.

Quero finalizar este texto mencionando dois dos mais profícuos pensadores do atual momento histórico, a saber, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han e o cientista político camaronês Achille Mbembe.

Byung-Chul Han cita em Capitalismo e impulso de morte,[3] o escritor e médico austríaco Arthur Schnitzler (1862 – 1931), que compara a destrutividade da humanidade com o bacilo. Uma história contagiosa mortal de crescimento e autodestruição. Também cita Freud (1856 – 1939), no seu livro O mal-estar na cultura que aponta o ser humano como uma “besta selvagem a quem é estranha a proteção da própria espécie”.

E, para completar o quadro, relembra o economista francês Bernard Maris, morto em 2015 no ataque terrorista ao Charlie Hebdo, que afirma, na sua obra Capitalisme et pulsion de mort, que o capitalismo canaliza as forças de destruição na direção do crescimento. Esses e outros citados por Byung-Chul Han em seus escritos são fundamentais para corroborar sua principal tese: a de que o crescimento é, na verdade, uma proliferação cancerígena e sem rumo.

Com efeito, baseado num sistema produtor de mercadorias (capitalismo) que tem como força motora o impulso de morte, ou seja, a violência intimamente ligada com a consciência da morte, a lógica de acumulação domina a economia da violência. Por conseguinte, a relação perversa de dominância que surge dessa lógica transformou o capitalismo em um sistema econômico que aspira a acumulação infinita.

Com sua própria negação da morte, o capitalismo entra em paradoxo, pois precisa haver morte para que a vida viva. O morto-vivo frio, brutal e indiferente aos seus semelhantes nos hospitais, na labuta diária ou mesmo nas guerras denotam a atual adaptação total da vida humana à necropolítica do neoliberalismo.

Já Achille Mbembe afirma, no seu livro Democracia como comunidade de vida,[4] que a democracia é a nossa última utopia. Realmente, ao considerar que o futuro da humanidade está intimamente atrelado ao futuro da democracia, refuta a possibilidade de um futuro humano fora do nosso planeta.

O problema foi que a democracia ocidental, tão badalada depois da Segunda Guerra Mundial, e que funcionou relativamente bem nos chamados “trinta anos dourados”, ainda estava baseada num tipo de “humanismo ideológico racialmente exclusivo no apogeu da conquista e da ocupação colonialista” (pág.17). Nessa toada, o neoliberalismo, filho bastardo do capitalismo industrial, promove a acumulação do capital, por via do progresso tecnológico desmesurado, de modo cada vez mais intenso, extrativo e predatório, sob a lógica da descartabilidade humana.

Em outras palavras, com o acesso ao trabalho cada vez mais remoto, somos caracterizados como supérfluos, desnecessários, ou pior … como dejetos. Portanto, para Achille Mbembe, o colonialismo de povoamento, como atualmente Israel tenta impor aos palestinos (em Gaza é apenas o mais midiático, mas está ocorrendo em outros lugares), é uma estrutura não um acontecimento isolado. Para eliminar o nativo é preciso um genocídio único.

Como se sabe, o herói alienígena denominado “super-homem” é uma invenção do império americano. Por muitas décadas ele representou o poderio quase inabalável da atual e única hiperpotência mundial (ainda que os sinais de decadência dela sejam hoje bem evidentes). Seja como for, a figura desse herói representou bem as virtudes estadunidenses exportadas mundo afora, apesar do lixo jogado para debaixo do tapete em relação à sua política externa de subjugação dos países que gravitavam em sua órbita de influência, consoante seus interesses mais mesquinhos.

Infelizmente, nesses tempos neofascistas de Donald Trump e cia, nem mesmo o Super-homem poderia nos restituir a glória. Se para Achille Mbembe o colonialismo é um fascismo incipiente (pág. 31), nos EUA de Donald Trump o Super-homem seria deportado para Kripton por não ser supremacista.

André Márcio Neves Soares é doutor em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica do Salvador e funcionário público federal.

Dependências

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Vivemos momentos inquietantes, marcados por instabilidades, volatilidades e incertezas crescentes e, ao mesmo tempo, estamos descobrindo as fragilidades estruturais e conjunturais, além de vislumbrarmos as dependências e as subalternidades que dominam a sociedade brasileira, num mundo marcado por grandes mutações, poderes hegemônicos e conflitos geopolíticos, neste cenário, precisamos reforçar nossa autonomia nacional.

Neste momento, percebemos uma situação inédita na sociedade global, o aumento dos conflitos militares, invasões territoriais, agressões externas, ingerências e políticas retaliatórias com interesses “ocultos”, que ameaçam a soberania e a autonomia das nações, além de tarifaços, mentiras e inverdades que degradam as organizações econômicas dos países, desestruturam as cadeias produtivas, gerando instabilidades e destruindo setores econômicos inteiros, com fortes impactos sobre o emprego e a renda nacional, degradando as condições de vida dos trabalhadores, exigindo uma atuação mais efetiva dos governos com políticas fiscais para evitar uma devastação social.

Neste ambiente, percebemos nosso subdesenvolvimento estrutural, cultuamos valores externos, defendemos interesses estrangeiros, valorizando nações que nos exploram, agredimos símbolos nacionais e criamos um universo paralelo, rechaçando o nacional, degradamos as instituições nacionais e acreditamos que somos verdadeiros patriotas.

Neste momento percebemos nossa dependência tecnológica e sentimos, na pele, nossas fragilidades econômica, produtiva e financeira. No mundo digital, que caracteriza a sociedade contemporânea, os agentes econômicos e produtivos buscam novas formas de agradar e satisfazer as necessidades dos consumidores, para isso, compram tecnologias externas, pagam royalties gigantescos, importam produtos e técnicas estrangeiras e rechaçam a tecnologia nacional, entregam empresas nacionais estratégicas, além de deixar a míngua as universidades, os centros de pesquisa, reduzindo os investimentos na educação e, com isso, aprofundam a forte dependência tecnológica que acumulamos a séculos. Neste momento, percebemos que cultivamos um verdadeiro viralatismo, termo cunhado por Nelson Rodrigues, que perpetua nossa dependência econômica e, principalmente, a nossa dependência intelecto cultural.

Vivemos num momento em que as nações estão buscando valorizar suas potencialidades, defender seus interesses nacionais e sua soberania política, fortalecer seus setores produtivos, estimular uma reconstrução industrial e diminuir nossas dependências externas, para evitarmos que, em momentos de incertezas e instabilidades externas, como as que vivemos atualmente, não degradem nossas estruturas econômicas e limitem nossa capacidade de organizar seus setores produtivos.

Atualmente vivemos momentos valiosos para a sociedade nacional, as crises tarifárias e as ameaças estrangeiras nos mostram nossa fragilidade externa e nossa polarização interna. Nos anos 90 apostamos que a melhor forma para alcançarmos nosso desenvolvimento era internacionalizar nossa estrutura produtiva, abrimos nossa economia, atraímos grandes conglomerados econômicos, compramos produtos estrangeiros, adquirimos mercadorias melhores e mais eficientes e, não percebemos que fragilizamos nossa estrutura produtiva. Passamos a comprar produtos industrializados de todas as regiões do mundo, atraímos novos parceiros comerciais, diversificamos nossas importações, desindustrializamos nossa economia e aumentamos nossas dependências externas.

As grandes mudanças engendradas desde o final do século passado foram interessantes e transformaram nossas estruturas econômica e produtiva. Estabilizamos nossa moeda, estabilizamos nossa economia privatizamos empresas estatais, diminuímos o papel do Estado, aumentamos nossa dependência tecnológica e nossa subordinação financeira e consolidamos nossa primarização econômica e nos tornamos mais dependentes da setor agroexportador, neste cenário global de novos desafios, percebemos os equívocos cometidos ao desindustrializar nossa economia e, neste momento, se não aumentarmos nossa complexidade econômica vamos perpetuar nosso atraso histórico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

As máximas do colonialismo, por Jorge Luiz Souto Maior

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Jorge Luiz Souto Maior – A Terra é Redonda – 03/08/2025

A soberania nacional é uma ilusão e ela só se tem efetivado para legitimar o rebaixamento da rede de proteção jurídica e das condições de vida da classe trabalhadora que atua em território nacional.

Os tempos estão cada vez mais difíceis. O negacionismo, que rega o entreguismo, cresce e é ainda mais convicto. O autoritarismo ressoa por toda parte, mesmo entre os autoproclamados “democratas”.

O conhecimento cede à lógica da conveniência, retroalimentando a estupidez e a violência. Às utopias se sobrepõem o conformismo e o imediatismo. A solidariedade é obstada pelo oportunismo.

E as associações que se produzem a partir desse estranho pragmatismo misturam ideais, confundem as mentes e conduzem a um vazio no qual tudo vale, mas que, ao mesmo tempo, nada tem, de fato, algum sentido, a não ser o da produção do sentimento (ilusório, obviamente) de se estar integrado a um grupo ou movimento, seja lá por qual motivo e em que direção for.

Nada disso é um acaso, no entanto. Estamos há tempos construindo este cenário do absurdo, como venho denunciando em vários textos escritos desde a década de 1990.

Mas sempre se produzem, na materialidade concreta, situações que nos possibilitam compreender que aquilo que se apresenta como um emaranhado de fórmulas vazias, ocasionais e despretensiosas é, na verdade, a mera explicitação, com ares de novidade, das formas de estruturação do capitalismo, conforme já tão esmiuçado desde Marx.

As oportunidades para sairmos do plano das aparências são inúmeras, mas para que estas sejam efetivamente aproveitadas é preciso que se queira enfrentar a dor de encarar a realidade e de assumir as próprias fragilidades e contradições.

1.

Vejamos, com este olhar, a recente mobilização em defesa da soberania nacional e da ordem democrática, deixando o registro de que não é irrelevante a luta contra o imperialismo e o autoritarismo.

Ocorre que é necessário dar um sentido verdadeiro aos valores que lhe são contrapostos e só se pode cumprir esta tarefa com o radicalismo de classe.

Se vivemos em uma sociedade capitalista, marcada pela divisão de classes, em que uma oprime a outra por diversos meios, sobretudo, por aqueles que estão institucionalmente estabelecidos na ordem democrática, a democracia não é um valor igual para a classe trabalhadora e para a classe dominante.

Se o modelo de capitalismo vigente no Brasil é ditado pela dependência aos interesses econômicos e políticos dos países centrais e se, neste contexto, as empresas multinacionais em solo brasileiro mantêm suas taxas de lucro a partir de uma superexploração da força de trabalho, reproduzindo, assim, as máximas do colonialismo e se valendo dos resquícios escravistas ainda em voga, é evidente que, primeiro, a soberania nacional é uma ilusão e, segundo, que ela só se tem efetivado para legitimar o rebaixamento da rede de proteção jurídica e das condições de vida da classe trabalhadora que atua em território nacional.

Impõe-se, pois, para quem se coloca nesta realidade social como classe trabalhadora ou como quem se solidariza com as angústias e sofrimentos das trabalhadoras e trabalhadores ou, ainda, como quem se dispõe a estar junto na construção e efetivação de suas aspirações e horizontes, que não se deixe levar pela força dos holofotes da burguesia liberal, reforçando o seu poder, vez que esta nunca será, de fato, aliada da classe trabalhadora.

Se pudesse haver alguma dúvida sobre isso, a prova veio a galope, logo na sequência do “grande ato” em defesa da soberania nacional, das instituições e da democracia que foi promovido na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no último dia 25 de julho, e na sequência das inúmeras manifestações de repúdio à imposição de tarifas alfandegárias e à retaliação pessoal feitas pelo presidente dos Estados Unidos da América.

2.

Pois bem, no dia 31 de julho, o jornal Folha de S. Paulo publicou, não por mera coincidência, a reportagem “Lei brasileira tem medidas para preservar empregos contra as tarifas de Trump; veja quais”. [1]

No texto, formulado a partir das falas de um professor de direito do trabalho, um economista e um dirigente sindical, não ocasionalmente escolhidos, o jornal encontrou a oportunidade para, mais uma vez, defendendo os interesses do capital, tecer loas à “reforma” trabalhista de 2017 e, com isto, oferecer para o setor econômico atingido pelas tarifas uma solução para os seus problemas, qual seja: o sacrifício dos(as) trabalhadores(as), com a redução de salários e várias outras formas precárias de relação de trabalho.

E isto, quando, se “debate” no Supremo Tribunal Federal o Tema 1389, do qual pode resultar, inclusive, a ausência total de direitos trabalhistas.

Seria, como dito por alguém em um grupo de discussão, uma “canalhice”, não fosse pura e simplesmente o resultado coerente e racional que expressa os interesses que movem a classe dominante nacional em sua aliança com o capital internacional. Ou, como também dito, a assunção da lógica de que “as sanções descem escada social abaixo, até alcançar, quase que exclusivamente, a base da pirâmide. Ou seja, mais do mesmo!”. [2]

A tarifa de Donald Trump passa a ser, assim, a oportunidade para aprofundar a exploração do trabalho no Brasil e quem estiver contra isso está contra os interesses maiores da “nação” e tudo isto apoiado nas forças que se somaram contra o “inimigo maior” da vez – para legitimar essa lógica do rebaixamento e do “mal menor” sempre se encontra um perigo iminente.
Mas se há, como se tem anunciado, um movimento de guinada na pauta política em direção do atendimento dos interesses da classe trabalhadora, a hora de se comprovar isto é agora, com apoio irrestrito às demandas da eliminação da escala 6×1, da rejeição da “pejotização” (Tema 1389) e da revogação das “reformas” trabalhista e previdenciária, para que se efetivem mudanças na prática e não só no discurso.

Da mesma forma, se a mobilização em defesa da soberania nacional está mesmo preocupada com a efetivação dos preceitos constitucionais, da ordem jurídica internacional e dos direitos humanos, não pode deixar de se engajar nas pautas sociais de interesse da classe trabalhadora, até porque os direitos humanos são, como se sabe, indivisíveis e os direitos sociais são parte integrante (essencial) dessa normatividade.

Independente disso, o que se extrai da notícia acima referida é mais uma prova inequívoca do que resulta de uma conciliação para a defesa de valores sem determinação e correspondência com a realidade da classe trabalhadora (a maior parte da população).

É evidente que esta constatação não torna mais fácil o momento que vivemos. De todo modo, para os devidos e necessários enfretamentos é preciso que este seja bem compreendido.

O problema é que, certamente, estamos sendo induzidos a tomar a pílula errada e nos movendo por sonhos que não nos pertencem!

Jorge Luiz Souto Maior é professor de direito trabalhista na Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros livros, de Dano moral nas relações de emprego (Estúdio editores) 

Notas

[1] GERCINA, Cristiane. “Lei brasileira tem medidas para preservar empregos contra as tarifas de Trump; veja quais.”

[2] Luís Carlos Moro – advogado trabalhista.

Encontro marcado, por Oscar Vilhena Vieira

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Sem mudanças, STF continuará vulnerável a ataques dos que querem destruir a ordem constitucional

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023).

Folha de São Paulo, 09/08/2025.

Os ataques da extrema direita ao Supremo Tribunal Federal são uma consequência direta da disposição da corte em defender a democracia. Suas deficiências, no entanto, colocam o tribunal e seus membros em situação de vulnerabilidade face aos inimigos da Constituição.

A presente ofensiva contra o Supremo não constitui um fato isolado. Nos últimos meses, tribunais franceses e israelenses também vêm sendo hostilizados e acusados de promover uma “caça às bruxas”, por conduzirem processos contra Marine Le Pen e Binyamin Netanyahu. Até mesmo o Tribunal Penal Internacional, que investiga o premiê de Israel por crimes contra a humanidade, passou a sofrer retaliações.

Vivemos uma quadra bruta da história, em que consensos civilizatórios básicos, em torno das ideias de democracia constitucional, de primazia dos direitos humanos, de autodeterminação dos povos, de proibição do uso da força nas relações internacionais e da regulação do comercio internacional estão sob forte ataque de forças nacionalistas e autoritárias.

Nesse contexto, tribunais independentes são vistos como obstáculos, que devem ser desacreditados, capturados ou suprimidos, como ocorreu na Rússia, na Venezuela, na Hungria ou na Turquia nas últimas décadas. É importante não esquecer que dois terços da população mundial vivem hoje sob regimes autoritários. Nesses regimes não há tribunais independentes.

A tentativa de subordinação do Supremo não é uma novidade no Brasil. Como destacou o ministro Luis Roberto Barroso em seu recente e contundente discurso na reabertura dos trabalhos do STF, as tentativas de subordinação do tribunal têm sido recorrentes ao longo de nossa história republicana.

Veio de Floriano Peixoto a primeira ameaça ao STF, ainda em 1891, ao perguntar ameaçadoramente quem concederia habeas corpus aos ministros do STF se estes concedessem habeas corpus aos inimigos do presidente? Daí em diante, ministros foram cassados, tanto pelo regime Vargas como pelo regime militar, e os dois regimes alteraram a composição e as prerrogativas do tribunal.

Inúmeras foram as rupturas ou tentativas de ruptura da ordem constitucional nestes 200 anos de acidentada trajetória constitucional. A associação de militares com setores autoritários tem sido motivo de grande instabilidade nas nossas instituições. Sucessivas leis de anistia asseguraram a impunidade àqueles que se insurgiram contra a Constituição e a soberania popular ou atentaram contra os direitos humanos, servindo como incentivo para os futuros golpes e quarteladas.

O presente julgamento do ex-presidente Bolsonaro e de mais de uma dezena de militares de alta patente, acusados de atentar contra o Estado democrático de Direito, é um fato sem precedentes em nossa história e institucional, rompendo esse perverso ciclo de impunidade.

A tentativa de intimidar o Supremo, assim como a de emparedar os presidentes da Câmara e do Senado, para aprovar uma nova lei de anistia em benefício de Bolsonaro é apenas mais uma evidência da falta de compromisso da extrema direita brasileira com as regras do jogo democrático.

O desafio imediato é sobreviver às investidas, tanto internas como externas, contra a ordem constitucional. Superada a borrasca, no entanto, o Supremo tem um encontro marcado com suas deficiências, como parece ter clareza o ministro Edson Fachin.

Sem que o tribunal aperte algumas porcas e parafusos, adotando um código de conduta, reduzindo o protagonismo individual de alguns de seus membros e estabilizando colegiadamente sua jurisprudência, continuará vulnerável aos ataques daqueles que querem destruir a ordem constitucional.