Europa Ocidental à deriva, por Luiz Carlos Bresser-Pereira.

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Semiestagnação e ameaça do nacional populismo avançam onde a forma de capitalismo é a mais avançada

Por Luiz Carlos Bresser-Pereira Valor, 28/06/2024

Nas eleições recentes para o Parlamento Europeu, a direita radical fez novos avanços. Ao contrário do que se previa, não foi uma grande vitória, mas fez estragos nos dois países centrais da zona do euro, a França e a Alemanha. Já nos Estados Unidos, essa direita já esteve no poder e poderá voltar a ele no final deste ano. Não quero, porém, discutir esse país, mas sim a Europa Ocidental. Meu argumento é que o capitalismo do mundo rico está em crise – uma crise mais política do que econômica – e esta crise se vê mais claramente no Europa Ocidental.

Minha impressão é que esta região está à deriva. Seus dirigentes não sabem que rumo tomar. No pós-guerra, os europeus ocidentais construíram o capitalismo mais avançado de que temos notícia. Um capitalismo social-democrático. Em 1990 seu PIB per capita era quase igual ao dos Estados Unidos, enquanto a distribuição de renda era (e continua a ser) substancialmente melhor, o mesmo valendo para a qualidade de vida. Mas, desde então, a Europa Ocidental vem crescendo 50% menos do que os Estados Unidos. Entre 1990 e 2023 o PIB per capita cresceu 66% nos Estados Unidos contra apenas 48% na Europa Ocidental. Se considerarmos um período mais recente, de 2010 e 2023, as taxas médias de crescimento do PIB foram de 2,1% nos Estados Unidos contra 1,4% na Europa Ocidental.

No plano político interno, a Europa Ocidental parece melhor do que os Estados Unidos. A crise política se expressa em uma polarização sem precedentes nos Estados Unidos, onde o Partido Republicano deixou de ser uma legenda simplesmente conservadora para ser um partido da direita radical – um partido nacional-populista. Eu prefiro não falar em extrema direita, porque o nacional-populismo de Trump, ainda que antidemocrático, não pretende acabar com a democracia porque é dela que o populismo vive.

Há duas causas para a polarização e para a confusão que dela deriva: a imigração e a importação de bens dos países em desenvolvimento. Elas implicam redução dos salários, senão desemprego ou piora da qualidade do emprego nos países ricos A polarização é uma doença social, já que uma boa sociedade é uma sociedade coesa, na qual existem conflitos de classe e de grupos, mas em um quadro social no qual existem objetivos comuns e os contendores se respeitam. Há duas causas diretas para essa polarização e para a confusão que dela deriva: uma é a imigração, a outra é a importação de bens dos países em desenvolvimento, principalmente da China. As duas implicam redução dos salários, senão desemprego ou piora da qualidade do emprego para os trabalhadores dos países ricos. Uma questão para a qual os neoliberais não têm resposta, porque defendem a imigração e rejeitam o uso de tarifas para proteger a produção nacional, nem tem a esquerda que, por uma questão de direitos humanos, não se dispõe a restringir duramente a imigração.

Temos também duas causas indiretas. Nos Estados Unidos, a forte concentração de renda que marcou a era neoliberal (1980-2020), na Europa Ocidental, o baixo crescimento. E uma terceira, a China, cujo PIB, em termos de paridade do poder de compra, já é 25% maior dos que os Estados Unidos, e cujo PIB per capita no período 1990 a 2023 foi de 6,7%! Ou seja, uma China que cresce três vezes mais rápido que os Estados Unidos, e quase cinco vezes mais rápido do que a Europa Ocidental, não obstante sua taxa de crescimento tenha caído desde a pandemia.

Para a concentração de renda, que foi o principal responsável por esse aumento da desigualdade, a centro-esquerda tem soluções na linha da social-democracia, enquanto o neoliberalismo de centro-direita não as tem. Já para o baixo crescimento da Europa Ocidental não vejo soluções à vista.

Não posso deixar de comparar a Europa Ocidental com a América Latina, apesar da grande diferença de PIB per capita. Desde 2010, o crescimento médio nessa região foi de 0,8%. Por isso há tempos eu afirmo que a região está semiestagnada. Podemos dizer a mesma coisa da Europa Ocidental, com seus 1,4% de crescimento? Creio que sim.

Europa Ocidental e América Latina têm um ponto em comum. Ambas as regiões se subordinaram aos Estados Unidos – a Europa Ocidental, um pouco depois deste país e o Reino Unido terem feito a sua virada neoliberal em 1980, com Ronald Reagan e Margaret Thatcher; a América Latina, em torno de 1990, quando os países abriram suas economias. Ora, quando duas regiões se subordinam a um país mais poderoso, pagarão os custos dessa dependência.

As duas regiões adotaram o neoliberalismo, mas de maneira diferente. A Europa, com seus PhDs em economia, funcionários da Comissão Europeia, a América Latina, também com economistas PhDs; todos obtidos em universidades onde se ensina a Teoria Econômica Neoclássica e a ortodoxia neoliberal. Em consequência, a política econômica, nos países dessas duas regiões, é 100% neoliberal e o crescimento resultante é precário.

Já os Estados Unidos não se deixam dominar pela ortodoxia neoliberal, ainda que lá esteja a maioria dos departamentos ortodoxos de economia. O controle continua com os políticos, que são mais pragmáticos, e veem sempre como necessário um certo grau de intervenção do Estado na economia. São políticos quase desenvolvimentistas, senão estritamente desenvolvimentistas conservadores, como é o caso de Trump e Biden. Repete-se, assim, a velho princípio: “Faça o que eu digo, não o que eu faço”.

Voltando à Europa Ocidental, ela está pateticamente subordinada aos Estados Unidos. Dominique de Villepin, o notável ministro das Relações Exteriores da França durante a Guerra do Iraque, em artigo no último número de Le Monde Diplomatique (maio 2024), escreve sobre uma Europa ameaçada que não consegue afirmar sua soberania territorial, sua soberania tecnológica e “sua soberania econômica ameaçada pelo impulso do protecionismo e do planejamento industrial que os Estados Unidos estão pragmaticamente perseguindo com Trump e agora Biden”.

Sim, a Europa está aliada aos Estados Unidos, mas vale a pena uma aliança com um sócio maior?

Luiz Carlos Bresser-Pereira, ex-ministro da Fazenda, é professor emérito da FGV.

Oriente Médio está à beira de uma guerra aberta regional, por Hussein Kalout.

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Israel e seus adversários romperam os limites que regulavam até então a rivalidade

Hussein Kalout, Cientista político, professor de relações internacionais e pesquisador na Universidade Harvard; ex-secretário especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2017-2018, governo Temer).

 Folha de São Paulo, 06/10/2024

[RESUMO] Recente escalada do conflito iniciado há um ano entre Israel e Hamas, com Irã lançando ataque maciço com mísseis contra o primeiro, expõe mudanças profundas nas relações de força no Oriente Médio e gera apreensão sobre os próximos passos na região. Estratégia do governo Netanyahu levou a um isolamento diplomático de seu país sem precedentes, assim como arranhou a imagem de potência bélica inconteste sobre seus vizinhos. Por sua vez, Irã e o Eixo da Resistência já não temem mais um conflito aberto e direto com Israel.

Benjamin Netanyahu apostou na conflagração de uma guerra regional no Oriente Médio como principal rota de atuação estratégica de seu governo. O objetivo é redimensionar a arquitetura de segurança coletiva da região e prolongar a sua vida política como chefe de governo do Estado de Israel.

A conjuntura atual do Oriente Médio expõe mudanças profundas. Do ponto de vista político, militar ou estratégico, Israel e o Eixo da Resistência romperam os limites que regulavam até então essa rivalidade.

Apesar de haver visões distintas sobre o conceito do que seria uma “vitória” ou uma “derrota”, o embate entre ambos os lados ganhará contorno cada vez mais intrincado.  O confronto decisivo entre Irã e Israel começou. Ainda que ambos não assumem, os preparativos para a guerra regional já estão engatilhados.

Israel emprega ao máximo o seu poder de letalidade —contra alvos militares ou civis, indistintamente— e busca traduzir essa destruição em grande triunfo político com definitivas vitórias para preservar a sua imagem e para manter sob o seu domínio o controle dos acontecimentos.

Conquistas estratégicas importantes como, por exemplo, a possibilidade de paz com palestinos, libaneses e sírios não compõem o arcabouço desse repertório.

Por outro lado, o Eixo da Resistência interpreta o conceito de vitória sob prisma distinto. Para Teerã, são considerados triunfos claros a proteção de seu arsenal estratégico, o imobilismo da economia israelense, a permanente instabilidade securitária de Tel Aviv, o isolamento diplomático de Israel no mundo e a danificação da base industrial de defesa israelense.

A estratégia de Israel de eliminar a cadeia de comando e controle do Hezbollah, associada ao assassinato de lideranças políticas que compõem o topo da cadeia decisória do grupo e a demolição da infraestrutura humana e física do Líbano, em nada gera, na visão do Eixo da Resistência, transformações tangíveis na equação de força.

Portanto, essa estratégia é interpretada como ineficaz e categorizada no bojo de ações paliativas e contornáveis, já que não indicam ser suficientes para desagregar a força e a coesão do Eixo da Resistência como um todo.

Quando o Estado de Israel recorre a esse tipo de expediente não fica apenas revelada a sua vulnerabilidade, mas também a sua necessidade de autoafirmação como potência militar inconteste na região. Contudo, na visão do Irã e de seus aliados, o emprego desses meios não tende a restaurar o poder dissuasório dos israelenses.

Os últimos ataques de Irã à Israel, em retaliação às mortes de líderes do Hamas e do Hezbollah, demonstraram que Tel Aviv perdeu o domínio de como traçar novas regras de engajamento com seus inimigos. As retaliações iranianas mudaram a correlação de forças. A aposta na autocontenção iraniana e na reticência do emprego dissuasório de armas bélicas contra Israel revela que Netanyahu errou o cálculo da equação.

O Irã, que vinha evitando a deflagração de um confronto armado aberto, respondeu com dureza e impingiu danos reais ao complexo militar e securitário israelense. No fundo, os iranianos demonstram estar cada vez mais dispostos a enfrentar Israel —não importando a dimensão dos custos, pois sabem que a Rússia não deixará de subsidiá-los em armas.

Por sua vez, a invasão militar do Líbano por terra pode se provar uma péssima escolha por parte dos decisores políticos de Israel. A estratégia de empurrar as forças do Hezbollah ao norte do rio Litani vai por hora esbarrando na agressividade e na capacidade de resistência dos combatentes do grupo libanês.

O uso brutal da força por parte de Israel contra o Líbano também não provou ser o meio adequado para viabilizar o retorno dos deslocados israelenses para as suas casas ao norte do país.

Derrotado em todos os tabuleiros diplomáticos, Netanyahu e seu governo fazem Israel experimentar um isolamento internacional sem precedente. As iniciativas propostas por americanos, egípcios e cataris para a libertação dos reféns israelenses sequestrados pelo Hamas foram torpedeadas pelo próprio Netanyahu e o seu arco extremista de alianças políticas.

A proposta franco-americana de um cessar-fogo entre Israel e o Líbano, lançada às vésperas da última Assembleia Geral da ONU, em Nova York, também sofreu o mesmo destino.

No fundo, ao que parece, a palavra “diplomacia”, na gramática política do atual governo de Tel Aviv, nada mais é que sinônimo de guerra e destruição. É essa, pois, a imagem que o mundo possui hoje do país. O aniquilamento de Gaza e de sua população civil e o franco conflito contra o Líbano podem ter afastado todos os países árabes propensos a selar a paz definitiva com Israel.

O último ataque iraniano contra o território israelense revela a força, a ousadia e a disposição sem limites de Teerã. O discurso do líder suprema do Irã, o aiatolá Ali Khamenei, nesta sexta (4/10) não escamoteia mais o objetivo de Teerã de buscar o confronto aberto e direto com Israel.

O tom da fala não deixa dúvidas de que o que está porvir lançará uma sombra de insegurança sobre Israel que pode perdurar por um longo período. O tempo das humilhações políticas ou militares ao Irã e aos seus aliados já não se acomoda no âmbito da flexibilidade pragmática de Teerã.

Contudo, tanto o Irã como o Hezbollah parecem ainda não ter plena clareza do grau e da dimensão real do poder tecnológico e de inteligência de Israel. Ambos subestimaram a capacidade cibernética do país e a disposição de Tel Aviv de empregá-la a qualquer custo.

Na visão deles, sem apoio absoluto e dedicado engajamento dos EUA, Israel não possui os recursos necessários para vencer militarmente o Irã e seus aliados do Eixo da Resistência. A superioridade militar de Israel já não é mais absoluta —para seus inimigos, atualmente é segmentada e se dá essencialmente em três campos: cibernético, tecnológico e aéreo.

O cenário do momento sugere que, até o resultado da eleição presidencial nos EUA, o governo israelense irá tirar o máximo proveito do vácuo de poder em Washington para alcançar os seus pretendidos objetivos: segurança e estabilidade.

Sem o pesado apoio bélico dos americanos, Netanyahu não teria ido tão longe no tabuleiro regional médio-oriental.

Resta saber, por fim, quais são os próximos movimentos estratégicos do governo israelense: se irá amortizar a virulência dos ataques do Irã ou se a resposta será reciprocada. Na visão do Eixo da Resistência, a guerra regional já foi declarada.

 

O mal cotidiano, por Andréa Pimenta Sizenando Matos

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Andréa Pimenta Sizenando Matos – A Terra é Redonda – 06/12/2023

Padecemos do mal-estar da civilização, há esperança, mas não para nós, pois, do ponto de vista da psicanálise, não somos programados para a felicidade

O fenômeno do mal pode ser abordado sob diferentes perspectivas; através do senso comum, dos mitos, da religião, das várias ciências, etc. Interessa-me aborda-lo à luz da psicanálise para que se revele o surgimento de novas formas de apresentação do mal-estar na cultura e, como cultura, ontem e hoje.

Em O mal estar na civilização, Freud diz: “Eis que, em meu entender, a questão decisiva para o destino da espécie humana: se o seu desenvolvimento cultural conseguirá, e em caso afirmativo até que ponto, dominar a perturbação da convivência que provem da pulsão humana de agressão e de auto-aniquilamento. A nossa época merece talvez um interesse particular justamente neste assunto. Hoje, os seres humanos levaram tão longe o seu domínio sobre as forças da natureza que com o seu auxílio lhe será fácil exterminar-se uns aos outros, até o ultimo homem. Eles sabem-no, daí boa parte da inquietação contemporânea, da sua felicidade, do seu espirito angustiado. E agora podemos esperar que o outro dos dois poderes celestiais, o Eros eterno, faça um esforço para se consolidar na luta contra seu inimigo igualmente mortal.

Mas quem pode prever o desfecho?”

Será que a noção de banalidade do mal, forjada por Hannah Arendt na década de 1960, é suficiente para compreendermos as contradições da nossa sociedade? Freud nos auxilia no desenvolvimento desta noção para o conceito de sociopatologia da vida cotidiana, no texto citado.

O que esta em jogo no mal estar freudiano? Como Freud interpreta o processo civilizatório? A concepção de que o homem não é um ser pacificado portanto, encontra-se em constante conflito. Ele outorga a gênese do conflito à oposição entre as pulsões; Eros, pulsão de vida e Tánatos, pulsão de morte; luta ininterrupta no nosso mundo interno.

A agressividade humana, como disposição, como representante do mal, não é algo que se apresenta, somente, de forma espetacular mas, cotidianamente, banalmente. Não é somente dirigida ao mundo externo, mas, a si mesmo, como atos auto destrutivos e, não provem somente das pulsões mas, também, de processos sociais (inquisição, escravidão, terrorismo).

A concepção de que estarmos inseridos em um ambiente hostil, inóspito, que traduz-se por uma luta continua entre a nossa natureza e a cultura, a civilização. A concepção de que a sociedade é criada às custas do recalcamento das pulsões ou outra direção possível e aceitável à suas satisfações.

Chegamos a um paradigma da psicanálise: somos indivíduos desabrigados, vivemos no mal-estar e carregamos dentro de nós um estranho. Aqui levanta-se o problema crucial da relação do ser humano com a lei, lei primordial, que marca a passagem, o salto, da natureza para a cultura.

Este é o modelo edípico, onde as relações da criança e seus pais representam a derradeira etapa de um progressivo e doloroso processo de alienação e separação. O Édipo nos conduz a superar a infância, isto é, nossa dependência à mãe e ao seu desejo, e à introjeção da lei, lei da cultura, representada pelo pai.

O Édipo é pedra angular da estrutura intrapsíquica e do processo civilizatório. As vicissitudes edípicas, quais sejam, alguma renúncia às pulsões, à onipotência do desejo, ao princípio do prazer em prol do princípio de realidade, faz-se sob a égide de um pacto de mão dupla, pacto edípico, pacto social.

Perdemos e ganhamos. Em troca da renúncia exigida temos o direito de receber um nome, uma filiação, um lugar na estrutura de parentesco, acesso à ordem simbólica, além de tudo o mais que nos permita desenvolver e viver. Assim, identificamo-nos com os valores da cultura, entramos no círculo de intercâmbio social e nos tornamos, de fato e de direito, sócios da sociedade humana.

O pacto primordial prepara e sustenta o segundo pacto e vice-versa. A má integração de um ou de outro pode gerar problemas, confirma ou infirma, um e outro, até a um ponto de ruptura.

É esta a chave psicanalítica para a compreensão da violência que dilacera o tecido social. O mal-estar apresenta-se pela violência, pela guerra civil crônica: violência urbana, doméstica, a luta individual de cada um. Apresenta-se pela guerra militar armada: Rússia versus Ucrânia, Israel versus Palestina, para citar apenas as que estão em pauta na atualidade.

Aqui, vale uma digressão. Esta lei é também entronizada pela sociedade. As sociedades modernas são baseadas em estruturas de poder. Todo poder é violento. Percebe-se, justamente, o elemento mítico que há na estrutura legal, jurídica. A instância jurídica é um pilar desta violência. O poder jurídico deve ter um braço forte para a execução das leis, inevitável e infelizmente. Vê-se a ambiguidade da lei: há os que estão acima da lei, são justamente os que determinam o que é a lei e, a esta posição, corresponde-se uma outra, oposta, os que são banidos da lei, não cobertos por ela, passíveis de serem mortos: indígenas, negros, pobres. Estes estão, definitivamente, desabrigados.

O que podemos diante do mal-estar? Apropriarmo-nos dele, dominá-lo, deslocá-lo é fundamental. Transformar o mal-estar pela via de um dispositivo que nos permita refletir criticamente sobre ele; alcançar um olhar irônico e crítico para que se revele a nossa posição sobre o nosso estar no mundo, na pós-modernidade.

Transformá-lo através de uma nova criação, sublime: o trabalho, a literatura, as artes, uma solução subjetiva, particular de cada um.

Trata-se de reunir um sistema de fragmentos em uma boa obra.

Este é um modo de resistência à violência que nos ronda no século XXI, e em todos os séculos passados.

Finalizo com uma “profecia” do escritor tcheco Franz Kafka: “Há esperança suficiente, para Deus, esperança infinita, mas não para nós; sentencia o escritor. Se o universo traz a agonia das situações que nos oprimem e não controlamos; traz o embate inútil com leis e acasos que nos escapam, absolutamente.”

Padecemos do mal-estar da civilização, há esperança, mas não para nós, pois, do ponto de vista da psicanálise, não somos programados para a felicidade. Há pouquíssimos momentos de felicidade, quando mudamos de um estado ruim para um melhor. Nosso estado normal é o de estar jogado no mal-estar. Mas vivemos de projetar esperanças, ela é a última que morre.

*Andréa Pimenta Sizenando Matos é psicanalista.

Proibição de celulares nas escolas, por Fernando Lionel Quiroga.

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Fernando Lionel Quiroga

A Terra é Redonda – 05/10/2024

 O que deve orientar a decisão não são tanto argumentos em favor ou contra as tecnologias, mas sobre os efeitos nocivos que elas têm produzido, cuja base científica é bastante expressiva a respeito

Políticas públicas sérias apoiam-se em fatos sociais, não em experiências locais, sejam elas exitosas ou não. O êxito e o fracasso, aliás, são sempre questões localizadas dentro de um contexto específico. Demandam reflexão e exercício de crítica, algo que se distancia da “febre histórica” e do entusiasmo que costuma acompanhar o fetiche da novidade.

O conceito de “fato social”, de Émile Durkheim, diz respeito aos modos de agir, pensar e sentir localizados fora do indivíduo, já que são impostos socialmente, de modo coercitivo, sobre eles. Daí a ingenuidade de esperar respostas individuais a tais problemas. Apoiar-se nelas implica não enxergar os sentidos sociais que orientam nossas trajetórias e determinam, parafraseando a formulação irônica de Pierre Bourdieu, nossa própria “escolha do destino”.

O anúncio recém-publicado pelo Ministério da Educação acerca do projeto de  lei que prevê a proibição dos aparelhos celulares nas escolas é um sinal de que seu uso, no ambiente escolar, tem se tornado mais problemático do que exitoso. É o que apontam diversos estudos em várias regiões do planeta, que vem regulamentando ou mesmo proibindo seu uso na escola, como França, Espanha, Grécia, Dinamarca, Finlândia, Holanda, Itália, Suíça etc.

Nestes estudos, de modo genérico, não faltam exemplos dos efeitos perniciosos que estes aparelhos causam no desenvolvimento intelectual de crianças e adolescentes. Citamos alguns: o cyberbullying, a nomofobia (abreviação de no mobile phone phobia) ou medo extremo de ficar sem acesso ao celular ou a serviços digitais, como internet e redes sociais, o aumento da ansiedade, a precarização do sono, a desinformação, a dessubjetivação, a desinformação, a esmagadora predominância do uso para entretenimento, o hikomori (termo japonês usado para descrever pessoas, geralmente jovens, que se isolam socialmente por longos períodos muitas vezes vivendo reclusos em seus quartos ou casas e evitando qualquer tipo de interação presencial com a sociedade), a desintegração da memória, a fadiga cognitiva, dentre outros.

Um belo livro, rico em fontes de estudos sérios acerca de cada um destes aspectos é o do neurocientista francês Michel Desmurget – A fábrica de cretinos digitais.

Mas há outro problema, central, a meu ver, que é o mais profundo de todos eles. O que o uso intensivo do celular tem produzido (uso intensivo, aqui, é o que costuma-se chamar de “novo normal”) e que tem se apresentado como fato social, é a perda da capacidade de atenção.

O que o frenesi do uso do smartphone e ecrãs (telas) de modo geral tem produzido como efeito colateral ao entretenimento ininterrupto, é a depauperação da capacidade de atenção. Para isto é fundamental a compreensão do que é que estamos perdendo em troca do magnetismo presente das telas. Segundo o filósofo alemão Christoph Türcke, a atenção seria o ponto fulcral da constituição do próprio fundamento da humanidade, do homo sapiens tal como o conhecemos, de um processo de aproximadamente 300 mil anos de evolução.

Segundo o filósofo, “nos primórdios da humanidade (a atenção) estava entre as coisas mais difíceis. Era algo que não existia ainda em parte alguma na natureza. Apenas coletivamente podia entrar em andamento: quando a repetição compulsiva (termo cunhado por Freud em Além do princípio de prazer), ritualizada do horror vivido se direcionava a algo mais elevado – a um destinatário comum. Sua imaginação foi equivalente tanto à inauguração do espaço mental quanto à constituição da atenção humana”.

Foi por meio da reprodução do horror (os rituais de sacrifício) pela própria imaginação como “mecanismo de legítima defesa” que o homem conseguiu controlar o horror natural. Por meio da produção de uma descarga capaz de produzir um refúgio da experiência em face do horror. Foi por meio da busca pela redenção, do alívio contra tais experiências produzidas pela natureza: ameaças naturais, tempestades, catástrofes, invasões de tribos inimigas, etc. que teria se dado à hominização. “Buscava-se a redenção, encontrou-se a cultura”, escreve Christoph Türcke. A atenção, portanto, não pode ficar restrita ao conjunto de disposições sociais como civismo, solidariedade e empatia.

A atenção diz respeito ao berço de toda cultura. Trata-se do ponto decisivo que nos permitiu, após milênios de evolução, chegar até as civilizações modernas. Interessante é a ideia que Christoph Türcke recupera de Malebranche sobre a atenção. Segundo este, a atenção seria uma “oração natural”. Decorre da atenção o desenvolvimento da imaginação. A imaginação nasce do tédio profundo, do ócio, da contemplação desinteressada. É a partir desse aparente vazio, desse espaço intersticial e amorfo que a imaginação encontra sua verdadeira vocação.

Ora, o que ocorre na atmosfera digital é a captura total desta função. E, finalmente, chegamos à intencionalidade política desta condição, cuja principal característica é a desintegração da mentalidade. A alma é o último recurso natural a ser explorado pela selvageria capitalista. Mas essa é a mesma história desde a colonização pela Companhia de Jesus, alguém poderia observar. Sim e não. A diferença daquele para o modelo atual de colonização neoliberal movida pelas forças de um oligopólio avassalador e apocalíptico é que, ao invés de operar pelo método da inculcação, o faz através de algo que aqui chamamos de uma “descompressão cognitiva” como resultado da lógica behaviorista subjacente aos artefatos digitais.

Observados estes pontos, ainda que de modo grosseiramente resumidos, constatamos que as tecnologias digitais ultrapassam de longe o significado de “ferramentas” quando incorporadas ao ambiente escolar. Todavia, ainda que elas o sejam, e é preciso admitir seu enorme potencial em favor do ensino nas mais variadas áreas do conhecimento, deve-se olhar também para seus efeitos mais nocivos, como o cyberbullying, a depauperação da ética, a concorrência desleal de atenção entre conteúdos da escola e o maravilhoso mundo das redes sociais, etc. É preciso mudar de perspectiva para a compreensão do que quer que seja a noção de ferramentas.

Herbert Marcuse, no livro Tecnologias, guerra e fascismo, reflete sobre o uso das tecnologias, especialmente por meio da propaganda nazista e de técnicas de instauração do medo coletivo como elementos-chave para a formação de uma “nova mentalidade alemã”. Elas (as tecnologias) são, portanto, ferramentas. Mas são esmagadoramente ferramentas à serviço do capital. Daí que sua incorporação à sala de aula e à escola deve-se precaver contra a ingenuidade de tratá-las como ferramentas neutras.

Por último, é em razão da ambiguidade inerente às tecnologias que o projeto de lei que está em curso tende à polêmica. O momento exige um debate de natureza essencialmente ética. Não se trata de localizar o aspecto nuclear quanto ao uso ou não de celulares no espaço escolar, justamente porque não há núcleo: a ambiguidade é sua principal característica.

Neste sentido, a mensagem histórica que o tema nos provoca a pensar diz respeito a uma decisão digna de um dos célebres diálogos socráticos. “Deve-se ou não banir o celular no ambiente escolar?” – é uma dessas questões implicadas no enfrentamento, de um lado, da febre histórica que promove a disseminação desenfreada de tecnologias digitais em tantos espaços da vida quanto for possível e, de outro, da ideologia embutida por meio de algoritmos nas plataformas digitais.

O que deve orientar a decisão não são tanto argumentos em favor ou contra as tecnologias, mas sobre os efeitos nocivos que elas têm produzido, cuja base científica é bastante expressiva a respeito. O peso da decisão sugere uma reflexão sobre qual dos pratos da balança mais tem cedido para, a partir daí, e mesmo que para o atual momento isso signifique o afastamento total destes aparelhos no espaço escolar, tome-se a decisão balizada pela ética e pela ciência, e sobretudo orientada para a garantia do próprio futuro das novas gerações.

*Fernando Lionel Quiroga é professor de Fundamentos da Educação na Universidade Estadual de Goiás (UEG).

Combater crime organizado exige mais democracia, não menos, por Sylvia Colombo

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Solução para o problema vai na contramão das alternativas setorizadas propostas por figuras como Milei e Bukele

Sylvia Colombo, Historiadora e jornalista especializada em América Latina, foi correspondente da Folha em Londres e em Buenos Aires, onde vive.

Folha de São Paulo, 06/10/2024

Não é de hoje que a expressão “crime organizado” circula nas campanhas eleitorais nacionais e regionais, impulsionando candidatos de extrema direita e propostas cada vez mais belicosas como soluções para o problema.

Na América Latina, a situação não é diferente, e vemos diversos políticos que colocam a democracia em risco ao prometer enfrentar o problema sem se importar com as consequências para ela. Exemplos disso são Nayib Bukele, em El Salvador, Javier Milei, na Argentina, e Daniel Noboa que, em alta de popularidade, desponta como o favorito para ser reeleito presidente do Equador nas eleições que ocorrerão no início do próximo ano.

Uma possível vitória de Donald Trump nos Estados Unidos em novembro reforçaria essa tendência, dando força a mais propostas como as que hoje encantam a ex-esquerdista Xiomara Castro, de Honduras, e a ministra argentina Patricia Bullrich. Ambas querem criar em seus países prisões de segurança máxima inspiradas no modelo de El Salvador.

Entretanto, quando permitimos, como mídia e sociedade, que o crime organizado ocupe uma caixinha isolada, separada de temas tradicionais como saúde, educação e até mesmo de problemas específicos como roubo de celulares, estamos tratando o problema de forma setorizada, sem enxergá-lo pelo que realmente é: um ator central nesses processos.

Essa foi a conclusão a que cheguei após ler o ensaio “How Organized Crime Threatens Latin America” (Como o Crime Organizado Ameaça a América Latina), de Javier Corrales, professor do Amherst College (em Amherst, Massachusetts), e Will Freeman, do Council on Foreign Relations, publicado na edição mais recente do Journal of Democracy, da Johns Hopkins University Press.

Ambos os acadêmicos nos lembram que, embora estejamos muito preocupados com figuras caricatas que surgem a cada eleição e atuam tanto dentro quanto fora do sistema, há um personagem muito mais perigoso, enraizado nas teias do poder, capaz de minar a democracia em tempo recorde. Quando isso acontecer, aquelas figuras serão apenas o rosto de uma destruição que compromete valores, ameaça os direitos humanos e civis e nos fará retroceder no tempo.

Para os autores, “os cartéis de drogas e seus chefes substituíram generais sedentos de poder, guerrilheiros marxistas e elites empresariais predatórias como as forças mais inimigas da democracia”.

Além disso, algumas organizações criminosas atualmente possuem inteligência e recursos muito maiores do que os atores políticos do passado e sabem interagir de outras formas com governos, não necessariamente tirando-os do poder, mas os manipulando de maneira habilidosa.

Os acadêmicos concluem: “Se as democracias da América Latina não conseguirem desenvolver meios para conter o poder do crime organizado, elas se verão corroídas de várias maneiras: grupos criminosos com influência sobre territórios intimidarão candidatos e protegerão outros; autoridades civis frustradas sentir-se-ão tentadas a conceder poder excessivo aos militares; presidentes de caráter autoritário adotarão políticas de combate ao crime que corroem as liberdades civis e a separação constitucional dos Poderes; as instituições do Estado continuarão a funcionar mal sob a influência do crime organizado, que corrompe e distorce”, dizem.

Apontar uma solução para essa questão não é simples, mas envolve os pilares do que entendemos como democracia. Diante de suas falhas, é preciso atuar com ainda mais democracia, criando mais organismos de transparência, renovando a independência entre os Poderes e envolvendo a sociedade numa democracia contínua e participativa.

 

 

A encruzilhada do desemprego juvenil, por Erik Chiconelli Gomes

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Ele é maior do que a média nacional, a informalidade é alta e 67% não possuem qualificação. Há desajustes profundos entre o sistema educacional e o mercado de trabalho. E o “empreendedorismo” não resolverá o problema: uma política robusta de primeiro emprego é necessária

Erik Chiconelli Gomes – OUTRAS PALAVRAS – 01/10/2024

O mercado de trabalho brasileiro tem apresentado uma dinâmica complexa nos últimos anos, com tendências aparentemente contraditórias que merecem uma análise aprofundada. Por um lado, observamos uma queda na taxa geral de desemprego, que atingiu 6,6% no trimestre encerrado em agosto de 2024, o menor patamar para esse período desde o início da série histórica da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) em 2012 (IBGE, 2024a, p. 3). Por outro lado, os dados revelam uma situação preocupante para os jovens entre 18 e 24 anos, cuja taxa de desemprego permanece significativamente acima da média nacional, em torno de 14% (IBGE, 2024b, p. 7).

Esta disparidade entre a situação geral do mercado de trabalho e a realidade enfrentada pelos jovens não é um fenômeno novo, mas sua persistência e intensidade demandam uma reflexão crítica sobre as estruturas socioeconômicas e as políticas públicas vigentes no país. Como argumenta Pochmann (2023, p. 45), “o desemprego juvenil é um sintoma de desajustes profundos no sistema educacional e no mercado de trabalho, refletindo a incapacidade da sociedade em promover uma transição suave e efetiva da escola para o mundo profissional”.

Para compreender a complexidade desse cenário, é necessário analisar não apenas os números absolutos, mas também os fatores históricos e sociológicos que contribuem para a manutenção dessa disparidade. A formação do mercado de trabalho brasileiro, marcada por um processo de industrialização tardio e dependente, criou estruturas que perpetuam desigualdades e dificultam a inserção dos jovens no mercado formal (Furtado, 2022, p. 112).

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) destaca que “a taxa de desemprego entre os jovens de 18 a 24 anos é historicamente maior do que a taxa geral, refletindo dificuldades estruturais de inserção desse grupo no mercado de trabalho” (IPEA, 2024, p. 23). Essa constatação nos leva a questionar se as políticas públicas e as estratégias de desenvolvimento econômico têm sido eficazes em abordar as necessidades específicas desse segmento populacional.

Um aspecto particularmente preocupante é o alto índice de demissões a pedido entre os jovens, que chega a 40% do total de desligamentos nessa faixa etária, contra 34% na média geral (DIEESE, 2024, p. 18). Esse dado pode indicar uma insatisfação generalizada com as condições de trabalho oferecidas, bem como uma possível inadequação entre as expectativas dos jovens e as oportunidades disponíveis no mercado.

A precarização do trabalho, fenômeno que se intensificou nas últimas décadas com a flexibilização das leis trabalhistas e o avanço da chamada “gig economy”, afeta de maneira desproporcional os trabalhadores mais jovens. Como observa Antunes (2023, p. 87), “a uberização do trabalho e a proliferação de contratos temporários e intermitentes atingem com maior intensidade os jovens, que se veem forçados a aceitar condições laborais instáveis e pouco protegidas”.

O descompasso entre a formação educacional e as demandas do mercado de trabalho é outro fator crucial para entender o desemprego juvenil. Apesar do aumento no nível de escolaridade da população brasileira nas últimas décadas, persiste uma lacuna significativa entre as habilidades desenvolvidas no sistema educacional e aquelas requeridas pelo setor produtivo (Schwartzman, 2022, p. 156).

A questão da qualificação profissional emerge como um ponto nevrálgico nesse debate. O IBGE (2024c, p. 12) aponta que “entre os jovens desempregados, 67% não possuem qualificação técnica específica para as vagas disponíveis no mercado”. Essa estatística revela uma falha sistêmica na preparação dos jovens para o mundo do trabalho, demandando uma reavaliação urgente das políticas educacionais e de formação profissional.

A dimensão regional do desemprego juvenil também merece atenção. As disparidades econômicas entre as diferentes regiões do Brasil se refletem nas oportunidades de trabalho para os jovens. Segundo o IPEA (2024, p. 45), “as regiões Norte e Nordeste apresentam taxas de desemprego juvenil significativamente maiores que as regiões Sul e Sudeste, evidenciando a necessidade de políticas regionalizadas de geração de emprego e renda”.

O fenômeno dos “nem-nem” – jovens que nem estudam nem trabalham – é outro aspecto preocupante dessa realidade. O IBGE (2024d, p. 8) estima que “cerca de 23% dos jovens entre 18 e 24 anos se encontram nessa situação, o que representa um desperdício de potencial humano e um risco para a coesão social”. Essa parcela da juventude, muitas vezes invisibilizada nas estatísticas oficiais de desemprego, demanda atenção especial das políticas públicas.

A questão de gênero adiciona uma camada extra de complexidade ao problema do desemprego juvenil. As mulheres jovens enfrentam taxas de desemprego consistentemente mais altas que seus pares masculinos, além de serem mais afetadas pela informalidade e pela precarização do trabalho (DIEESE, 2024, p. 27). Essa disparidade reflete padrões históricos de discriminação e segregação ocupacional que persistem no mercado de trabalho brasileiro.

O impacto da revolução tecnológica e da automação sobre o emprego juvenil é outro fator que não pode ser ignorado. Como observa Schwab (2023, p. 134), “a Quarta Revolução Industrial está reconfigurando rapidamente o panorama do trabalho, com implicações particularmente profundas para os trabalhadores mais jovens, que precisam se adaptar a um ambiente em constante mutação”.

A pandemia de Covid-19 exacerbou muitas das tendências preexistentes no mercado de trabalho, afetando de maneira desproporcional os jovens. O IPEA (2024, p. 56) destaca que “os setores econômicos mais impactados pelas medidas de distanciamento social, como serviços e comércio, são justamente aqueles que tradicionalmente empregam mais jovens”. A recuperação pós-pandemia tem se mostrado desigual, com os jovens enfrentando maiores dificuldades para se reinserirem no mercado.

A questão da informalidade é particularmente relevante para a análise do desemprego juvenil. O IBGE (2024e, p. 15) aponta que “40% dos jovens ocupados estão na informalidade, um percentual significativamente maior que a média geral da população”. Essa alta taxa de informalidade entre os jovens não apenas reflete a precariedade de suas condições de trabalho, mas também compromete sua proteção social e perspectivas de desenvolvimento profissional a longo prazo.

A interseccionalidade entre raça e desemprego juvenil revela outra faceta das desigualdades estruturais do mercado de trabalho brasileiro. Segundo o DIEESE (2024, p. 33), “jovens negros enfrentam taxas de desemprego 30% maiores que jovens brancos na mesma faixa etária”. Essa disparidade racial no acesso ao emprego é um reflexo direto do racismo estrutural que permeia a sociedade brasileira e demanda ações afirmativas específicas.

O empreendedorismo juvenil tem sido frequentemente apontado como uma possível solução para o desemprego nessa faixa etária. Contudo, como argumenta Nogueira (2023, p. 78), “a narrativa do empreendedorismo como panaceia para o desemprego juvenil muitas vezes mascara a precarização do trabalho e transfere a responsabilidade da geração de emprego do Estado e do setor produtivo para o indivíduo”.

A questão da rotatividade no emprego entre os jovens também merece atenção. O alto índice de demissões a pedido nessa faixa etária pode ser interpretado de diversas formas. Por um lado, pode indicar uma maior disposição dos jovens em buscar melhores oportunidades e condições de trabalho. Por outro, pode refletir uma insatisfação generalizada com as opções disponíveis no mercado e uma dificuldade em encontrar posições que atendam suas expectativas e aspirações profissionais.

As políticas públicas voltadas para o emprego juvenil têm se mostrado insuficientes para enfrentar a magnitude do problema. Programas como o Jovem Aprendiz e o ProJovem, embora bem-intencionados, têm alcance limitado e nem sempre conseguem proporcionar uma inserção duradoura no mercado de trabalho formal (IPEA, 2024, p. 67). É necessário repensar essas políticas, ampliando seu escopo e efetividade.

Neste contexto, é fundamental destacar o papel do Sistema Nacional de Emprego (SINE) como uma ferramenta essencial para combater o desemprego juvenil. O SINE, presente em praticamente todas as cidades brasileiras, oferece uma gama de serviços cruciais para a inserção dos jovens no mercado de trabalho. Além da divulgação de vagas e intermediação de mão-de-obra, o SINE também proporciona qualificação profissional, orientação profissional e fomento a atividades autônomas e empreendedoras. O fortalecimento e a modernização do SINE pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) representam um passo importante para melhorar as perspectivas de emprego para os jovens brasileiros.

A questão do primeiro emprego continua sendo um desafio significativo para os jovens brasileiros. A exigência de experiência prévia por parte dos empregadores cria um ciclo vicioso, no qual os jovens não conseguem obter experiência porque não são contratados, e não são contratados porque não têm experiência. Romper esse ciclo demanda uma mudança de mentalidade por parte do setor empresarial e políticas públicas que incentivem a contratação de jovens sem experiência.

O papel da educação superior na empregabilidade dos jovens é outro ponto que merece reflexão. Embora o acesso ao ensino superior tenha se expandido nas últimas décadas, isso não se traduziu automaticamente em melhores perspectivas de emprego para os jovens graduados. Como observa Neri (2023, p. 112), “há um descompasso entre a formação oferecida pelas universidades e as demandas do mercado de trabalho, resultando em um fenômeno de subemprego de jovens graduados”.

Em conclusão, o desemprego juvenil no Brasil é um problema multifacetado que reflete e perpetua desigualdades estruturais profundas na sociedade brasileira. Sua solução demanda uma abordagem holística que envolva não apenas políticas de geração de emprego, mas também reformas educacionais, combate às discriminações de gênero e raça, incentivos à inovação e ao empreendedorismo sustentável, e uma reconstrução do pacto social em torno do trabalho digno. Somente através de um esforço coordenado e de longo prazo, que envolva governo, setor privado, academia e sociedade civil, será possível criar um ambiente no qual os jovens brasileiros possam desenvolver plenamente seu potencial e contribuir para o desenvolvimento econômico e social do país.

Referências

Antunes, R. (2023). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo.

DIEESE. (2024). A situação do trabalho no Brasil na primeira metade da década de 2020. São Paulo: DIEESE.

Furtado, C. (2022). Formação econômica do Brasil: edição comemorativa 60 anos. São Paulo: Companhia das Letras.

IBGE. (2024a). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNAD Contínua. Rio de Janeiro: IBGE.

IBGE. (2024b). Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de Janeiro: IBGE.

IBGE. (2024c). Aspectos das relações de trabalho e sindicalização. Rio de Janeiro: IBGE.

IBGE. (2024d). Educação 2023. Rio de Janeiro: IBGE.

IBGE. (2024e). Economia Informal Urbana. Rio de Janeiro: IBGE.

IPEA. (2024). Mercado de Trabalho: conjuntura e análise. Brasília: IPEA.

Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). (2024). Rede SINE: Entenda o que é e como funciona.

Neri, M. (2023). Juventude e trabalho no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: FGV Social.

Nogueira, M. A. (2023). Educação, saber, produção em Marx e Engels. São Paulo: Cortez.

Pochmann, M. (2023). Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira. São Paulo: Boitempo.

Schwab, K. (2023). A Quarta Revolução Industrial. São Paulo: Edipro.

Schwartzman, S. (2022). Educação e trabalho no Brasil do século XXI. São Paulo: Editora Unesp.

 

Medo do crescimento

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O Brasil sempre se caracterizou por uma sociedade profundamente desigual, marcada por uma grande concentração de renda e de propriedade, salários muito baixos, educação deficiente, ausência de saneamento básico e condições de indignidade para uma parte significativa da população, ao mesmo tempo percebemos um país que se destaca por uma grande riqueza natural, clima favorável e com condições naturais positivas.

Ao analisar as condições naturais e geográficas do cenário global, o Brasil deve ser visto como uma das nações mais ricas de recursos naturais do cenário internacional, sempre fomos vistos como um fornecedor global de alimentos e de minérios que auxiliaram no desenvolvimento de outras nações. Desta forma, o Brasil sempre foi inserido no ambiente produtivo internacional, desde o descobrimento estamos inseridos no cenário mundial como uma nação produtora e exportadora de produtos primários de baixo valor agregado e como importadores de produtos manufaturados, cuja relação de troca, no comércio global, sempre foi desfavorável para o Brasil.

No século XX, a sociedade brasileira ganhou relevância no cenário internacional, fomos uma das economias que mais cresceram no século anterior, modificando toda a estrutura produtiva, angariando espaços interessantes no cenário internacional, passando de uma economia de industrialização intermediária e nos tornando uma das dez maiores economias do mundo, levando nações asiáticas a buscarem compreender os passos seguidos pelo Brasil, visto que nos anos 1970 o Brasil se transformou num exemplo claro de expansão e transformação econômica e produtiva.

Depois dos anos 1980 perdemos o dinamismo econômico e produtivo, a indústria nacional perdeu espaço e passamos a perder posições relevantes no comércio internacional. Com o início da abertura econômica dos anos 1990, as privatizações e a redução do papel do Estado na economia eram vistas como novos horizontes de modernidade. Conseguimos estabilizar a economia nacional mas, infelizmente se perderam na política cambial e elevamos demais as taxas de juros, criando uma categoria muito forte, dotada de grande poder econômico e político, os chamados rentistas e financistas, que passaram a controlar os sistemas econômico e financeiro, manipulando as taxas de juros e controlando os lucros, os dividendos e seus retornos imediatos, garantindo suas isenções fiscais e tributárias, que garantem seus ganhos elevados em detrimento de uma classe média empobrecida, desesperançada e marcadas por rancores e ressentimentos.

Depois de décadas de baixo crescimento econômico e produtivo, aumento do desemprego, redução dos salários reais, a fragilização da indústria nacional, além da venda de empresas nacionais ou o repasse dos ativos mais interessantes do Estado para seus apaniguados, percebemos alguns lampejos de recuperação econômica, recuperação dos salários, inflação controlada, superávits comerciais, Bolsas em ascensão e perspectivas de melhorias econômicas. Neste cenário, percebemos ecos de elevação das taxas de juros que impactam imediatamente sob o sistema econômico e postergam a melhora dos indicadores positivos da economia nacional, reduzindo a criação de empregos e limitando o incremento da renda dos trabalhadores e, ao mesmo tempo garantindo mais ganhos financeiros para poucos grupos, perpetuando uma desigualdade em ascensão e nos deixando claro quem são os verdadeiros donos do poder na sociedade brasileira.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Era da superficialidade

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Estamos vivendo numa sociedade muito interessante, assustadora e preocupante, as pessoas sonham com o enriquecimento, com o luxo e com o glamour, buscam a fama, sonham com os chamados realitys shows, a exposição exagerada e buscam virar celebridade, mesmo que seja por um curto período de tempo, desde que esse tempo seja suficiente para acumular recursos financeiros, neste cenário, os indivíduos acreditam piamente que vão conseguir acumular fortunas sem fazer esforços sistemáticos, sem estudos e sem qualificações cotidianas.

Antigamente as pessoas buscavam uma profissão, queriam estudar, lutavam para adquirir um diploma de um curso superior, buscavam uma qualificação profissional, conversavam com pessoas inteligentes, compravam livros e queriam fazer cursos de capacitação, mas agora, na contemporaneidade o que reina é o sonho da acumulação sem esforços individuais, cultivando a violência, indivíduos malhando o corpo em excesso, se expondo nas redes sociais, cultuando a superficialidade, acreditando que ao ler a “orelha” de um livro o faz especialista em qualquer assunto, difundindo a ignorância e o negacionismo e estimulando o individualismo que se espalham na sociedade, neste cenário, as pessoas se assustam com os rumos da sociedade mundial.

Ao folhear os livros do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, percebemos a importância de refletir sobre a sociedade contemporânea, compreender os desafios dos seres humanos e perceber que estamos num momento imprescindível para analisar os hiatos que crescem nos valores da comunidade.

Educação superior pública: precisamos de um novo caminho, por Piva, Passos e Wongtswski

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Não há forma de o país crescer sem ensino superior de qualidade, e o modelo atual esgotou-se

Horácio Lafer Piva, Pedro Passos e Pedro Wongtschowski, Empresários.

Folha de São Paulo, 01/09/2024

O Brasil tem 2.574 instituições de ensino superior, das quais 313 são públicas. Dentre as públicas, 134 são estaduais e 119 são instituições federais. Das instituições federais, 69 são universidades. Das instituições privadas, 91 são universidades –as demais são faculdades isoladas ou centros universitários.

Das cerca de 9 milhões de matrículas, 7 milhões estão em instituições privadas e 2 milhões em instituições públicas. Enquanto 8% dos estudantes de entidades públicas usam ensino a distância (EAD), nas privadas 51% dos alunos o utilizam.

O ensino superior no Brasil só atende a 18% dos jovens entre 18 e 24 anos, bem abaixo da meta de 33% estabelecida para 2024 pelo Plano Nacional de Educação, e as taxas de evasão são muito altas: 56% dos alunos das instituições privadas e 39% dos alunos de instituições públicas não terminam os seus cursos.

O governo federal aplica cerca de R$ 150 bilhões por ano em educação; 27% deste valor vai para o ensino superior. Apesar disso, as inovações mais significativas são de iniciativa de instituições privadas. Exemplos são os cursos de engenharia do Insper e do Inteli, ambos em São Paulo, e os programas de graduação de duas organizações sociais, o Impa Tech, no Rio de Janeiro, e a Ilum Escola de Ciência, em Campinas.

O Brasil se sai muito mal nos rankings internacionais. A instituição mais bem colocada segundo o “Times Higher Education Ranking”, a USP (Universidade de São Paulo), está no grupo 201 a 250. A Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), entre 351 e 400. E as demais se situam no arco de 601 a 800 (ou ainda mais atrás).

As universidades brasileiras são muito grandes: a USP tem cerca de 100 mil alunos, a UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), 70 mil, e muitas outras (Unicamp, UFMG, UFF, UFRGS, UNB, UFP) têm entre 40 mil e 50 mil alunos. No ranking internacional, as cinco melhores têm uma média de 17 mil, e as 20 melhores, uma média de 20 mil alunos.

É muito difícil ser grande e excelente, a burocracia e o corporativismo sufocam as universidades brasileiras. Mas é pior do que isso: tirando as universidades estaduais paulistas (USP, Unicamp, Unesp e Univesp) que têm um sistema inteligente de alocação de recursos públicos e grande autonomia de gestão, as federais vivem à míngua, com instalações precárias, obras inconclusas e recursos discricionários (para cobrir todos os custos fora salários) recorrentemente menores do que 10% do seu orçamento. Mais ainda, todas as universidades, por exigência constitucional, devem obedecer “ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.

Como bem apontam membros da Academia Brasileira de Ciências em artigo recente, “em nenhum país a democratização do ensino superior ocorreu só pelas dispendiosas universidades de pesquisa. Diferentemente do nosso modelo quase exclusivo de universidades de pesquisa, em diversos países predomina a diversificação de instituições: universidades, faculdades, faculdades comunitárias, instituições de ensino vocacional ou técnico de nível superior, entre outras”.

A solução é clara: criar, segundo um processo meritocrático, garantida certa diversidade regional, um grupo menor de universidades de pesquisa públicas federais, que teriam forte apoio e recursos para atender aos seus objetivos constitucionais, e transformar as demais em instituições destinadas primordialmente ao ensino superior. Estas deveriam ter outra solução institucional que assegurasse, simultaneamente:

  1. alta qualidade docente;
  2. instalações físicas adequadas que atraíssem alunos e facilitassem o aprendizado;
  3. sistema de contratação que incentivasse a presença de docentes com atuação profissional fora do ensino;
  4. poder à organização para contratar e demitir docentes, assegurando dinamismo e qualidade de ensino;
  5. escolha de cursos em áreas em que haja demanda da sociedade.

Esta seria a melhor maneira de atender ao clamor dos jovens por ensino de qualidade, flexibilidade e possibilidade de migração de uma parcela dos formados para universidades de pesquisa.

Há outras questões que devem ser endereçadas neste processo, como a necessidade de atração de estudantes e docentes estrangeiros, compatibilização do ensino presencial com o EAD em um sistema híbrido, melhora da governança das instituições públicas, simplificando a sua estrutura e procedimentos e aumentando a influência e o poder da sociedade em sua gestão e, finalmente, criação de um sistema externo poderoso de avaliação de cursos e formados.

Não há forma de o país crescer sem ensino superior de qualidade. O modelo atual esgotou-se e não atingiremos as metas do Plano Nacional de Educação sem reformas profundas no ensino público. Este é um dos nossos grandes desafios, e uma das poucas formas de promover a formação de cidadãos, a mobilidade social e o aumento de produtividade, justas demandas da sociedade brasileira.

 

Fragilidade fiscal da União colocou Brasil em enrascada, por Salto e Pellegrini

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País está vulnerável e precisa construir consenso político em torno de medidas de ajuste das contas públicas

Felipe Salto, Economista-chefe da Warren Investimentos. Foi secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo (2022) e diretor-executivo da IFI (Instituição Fiscal Independente) do Senado

Josué Pellegrini, Doutor em economia pela USP e economista da Warren Investimentos. Foi diretor da IFI (Instituição Fiscal Independente) do Senado

Folha de São Paulo, 29/09/2024

A estabilização da dívida pública federal, necessária para lidar com a situação frágil das finanças da União, requer um ajuste de dois pontos percentuais do PIB, argumentam autores, que sugerem medidas como a redução de benefícios tributários e de transferências para estados e municípios, pelo lado da receita, e alteração da política do salário mínimo, reformulação de programas sociais e nova fórmula de cálculo de emendas parlamentares, pelo lado da despesa.

Após várias decisões tomadas ao longo dos anos que fragilizaram as finanças da União, o país se se meteu em uma enrascada. As iniciativas partiram tanto do Congresso Nacional quanto do Executivo federal. A debilidade deste Poder diante daquele e a polarização política agravaram o problema.

Uma parcela da população foi beneficiada por essas mudanças, mas também grupos de interesse, empresas e entes subnacionais. Em muitos casos, as decisões não seriam justificáveis, submetidas a uma análise mais detida, pelo menos não na dimensão dos custos assumidos.

Concretamente, a fragilidade da União se traduz em déficits primários sucessivos e elevados, vale dizer, despesas mais elevadas que as receitas, já descontadas as receitas e as despesas financeiras e a partilha da receita com os demais entes federados. Como os déficits precisam ser financiados, a dívida pública sobe continuamente, sem perspectiva de estabilidade em um horizonte aceitável.

A dívida pública do Brasil, medida pela dívida bruta do governo geral, chegou a 78,5% do PIB em julho e cresce rapidamente, 4,1 pontos percentuais do PIB apenas neste ano. Relativamente a países de nível similar de desenvolvimento, nossa dívida é uma das maiores. A comparação com países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), como EUA e Japão, não faz sentido, pois os “limites” e as condições são bem mais dilatados nesses casos.

De acordo com nossas projeções para o déficit primário e a taxa de juros, a dívida deverá chegar a 95% do PIB até 2033. É muito tempo com um passivo crescente. Não se pode operar testando limites, sem margem para enfrentar imprevistos, como tragédias climáticas ou de saúde pública, eventos cada vez menos raros.

Os reflexos na economia da fragilidade fiscal da União são vulnerabilidade a crises e taxas de juros elevadas, dois dos principais inimigos dos investimentos produtivos. Esse é o canal que leva ao crescimento sustentável, com aumento da capacidade produtiva e da produtividade. A parcela mais pobre da população é a mais afetada pelo desempenho aquém do esperado.

Qual o tamanho do desafio?

Em 2024, o déficit primário do governo central deverá ser de 0,5% do PIB. Em 2025, dificilmente ficará abaixo de 0,6% do PIB, conforme se depreende do PLOA (projeto de lei orçamentária anual) da União, recém-enviado ao Congresso Nacional. Mesmo que o déficit vá a zero em todo o período 2026-2033, a dívida ultrapassará os 90% do PIB em 2032.

Será preciso gerar superávits primários para estabilizar a dívida pública em proporção do PIB. Supondo-se ação imediata, com revisão do PLOA 2025, se o resultado melhorar 0,5 ponto percentual de PIB por ano, a partir do déficit de 0,5% do PIB de 2024, chegaremos ao superávit de 1,5% do PIB em 2028. Com isso, a dívida estabilizará perto do nível de 82% do PIB, permitindo alguma redução do superávit nos anos seguintes.

Se precisamos passar de déficit de 0,5% do PIB em 2024 para superávit de 1,5% do PIB em 2028, o ajuste requerido é de algo como dois pontos percentuais do PIB, ou cerca de R$ 230 bilhões, com base no PIB de 2024. Seriam quase R$ 60 bilhões por ano no período.

O ajuste necessário poderá ser maior se o chamado déficit estrutural, de 2024, estiver acima de 0,5% do PIB. Esse conceito de déficit desconta as receitas e as despesas atípicas ou afetadas pelo ciclo econômico. Se assim for, o ponto de partida seria pior, o que exigiria mais tempo para chegar ao superávit desejado, com a estabilização da dívida em um nível mais alto.

A boa notícia é que o custo do ajuste pode ser reduzido pelo efeito da melhoria progressiva do resultado primário da União sobre a taxa de juros. Isso dependeria da apresentação de um programa confiável, com detalhamento das medidas de ajuste e respectivos impactos esperados para cada ano do período coberto. A aprovação da LOA 2025 com as medidas necessárias para levar ao déficit zero, por exemplo, já produziria importante impacto nesse aspecto.

Os efeitos positivos seriam mais significativos com a inclusão do programa no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal, algo também recomendável por se tratar de um programa que envolveria mais de um mandato presidencial. Vale observar que a busca da sustentabilidade fiscal está prevista em artigos da Constituição Federal.

O que fazer pelo lado da receita?

O diagnóstico acima talvez não gere grandes controvérsias. Discordância maior reside nas medidas de aumento de receitas e de corte de despesas a serem adotadas para fortalecer as finanças da União. A distribuição dos custos parte da definição de prioridades e passa pela análise dos efeitos positivos e negativos das diferentes políticas públicas existentes.

A carga tributária do Brasil parece ter encontrado um limite máximo, já que não tem ultrapassado os 33% do PIB desde os anos 1990. Esse percentual já está bem próximo da média de 34% do PIB dos países da OCDE.

A opção mais promissora para aumentar a receita em relação ao PIB (e melhorar a progressividade) é reduzir os benefícios tributários, de modo que a carga cresce, mas apenas para os antigos beneficiários dos respectivos incentivos.

Outro modo de incrementar as receitas da União é reduzir a participação das partilhas com os entes subnacionais. Em relação ao PIB, as transferências subiram de 3,5% do PIB, em 2013, para 4% do PIB, em 2023, enquanto a receita primária total da União caiu de 22,5% do PIB para 21,5% do PIB. Como consequência, a relação entre as transferências e a receita primária total da União subiu de 15,7% para 18,6% no mesmo período. Esses percentuais correspondem à média de cinco anos.

Essa mudança na participação tende a elevar as despesas do setor público, assim como o déficit e a dívida. Os entes subnacionais não têm a sustentabilidade fiscal e a estabilidade macroeconômica entre suas atribuições, não havendo razão para gerar superávits primários. Um motivo para isso seria a necessidade de pagar a dívida junto à União, mas as sucessivas renegociações dessa dívida e o uso de meios judiciais desde 2014 reduziram significativamente os pagamentos feitos.

Nesse sentido, dois projetos complementares que tramitam no Congresso Nacional agravam o problema fiscal do país, de modo que recomendamos fortemente a não aprovação. O projeto de lei complementar número 121, de 2024 , aprovado no Senado e em tramitação sob regime de urgência na Câmara dos Deputados, alonga o prazo da dívida estadual junto à União e abre margem para a redução a zero da taxa de juros incidente sobre essa dívida.

Por sua vez, o projeto de lei complementar número 164, de 2012, já aprovado na Câmara e em tramitação no Senado, muda o artigo 19 da Lei de Responsabilidade Fiscal, com o objetivo de afrouxar os limites para a despesa de pessoal dos entes federados.

Outra mudança veio com os artigos 12 e 13 da emenda constitucional número 132, de 2023. Foram criados dois fundos que transferem mais recursos da União para os estados. Essas transferências começarão com R$ 8 bilhões em 2025, mas subirão continuamente até chegar a R$ 40 bilhões ao ano em 2033 e a R$ 60 bilhões em 2043.

Essa perda da União não foi considerada no ajuste fiscal requerido calculado acima de dois pontos percentuais do PIB. Francamente, assim, a conta não fecha. Esses artigos da emenda precisam ser revistos. Eis aqui um exemplo de como a vulnerabilidade política do Executivo federal tem permitido aprovar medidas danosas ao país.

A proposta de redução da partilha em relação à receita total da União não significa diminuição das transferências em percentual do PIB. Para tanto, seria necessário destinar exclusivamente à União os ganhos de receita com a redução dos benefícios tributários, mediante emenda constitucional. Vejamos como isso operaria.

A renúncia estimada com benefícios tributários subiu de 3,5% do PIB na média do triênio 2009-2011 para 4,7% do PIB no triênio 2022-2024. A retirada de benefícios não gera receita equivalente à estimativa de renúncia por causa da esperada reação dos contribuintes.

Mesmo assim, a revogação de benefícios de modo a reduzir a renúncia de volta para os 3,5% do PIB poderia render, digamos, algo como 1% de PIB de receitas para a União, ótima contribuição para um ajuste esperado de dois pontos percentuais do PIB.

Se o 1% do PIB fosse integralmente destinado à União, esse ente recuperaria os 22,5% do PIB de receita total observados em 2013 e as transferências permaneceriam em 4% do PIB, mantendo o aumento de meio ponto a mais que os entes subnacionais tiveram nos últimos anos. A relação entre as transferências e a receita total da União, por sua vez, cairia de 18,6% para 17,8%, ainda bem acima dos 15,7% observados em 2013.

É claro que o nosso sistema tributário precisa ser mais equânime, neutro e simples, mas para isso vemos providências que levam mais à redistribuição da carga entre diferentes contribuintes do que à elevação dessa carga, que é o relevante do ponto de vista fiscal.

Em que pese a frágil situação fiscal da União, pululam propostas de desoneração tributária. Evidentemente, elas precisam ser rechaçadas. Uma proposta que pode gerar perdas significativas é a que estende a faixa de isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física para R$ 5.000, de iniciativa do próprio Executivo federal.

Se for aprovada, terá que ser juntamente com uma fonte certeira que compense as perdas, como determina o artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal. Esperamos que não reproduza o interminável embate pela compensação da desoneração da folha de pagamento das empresas e municípios.

Aliás, a história da desoneração da folha, iniciada em 2011 (terminará em 2027?), é um verdadeiro estudo de caso sobre como é difícil retirar um tratamento favorecido, uma vez que entra no ordenamento e no Orçamento.

O que fazer pelo lado da despesa?

Se houver a preferência dos governantes ou da própria sociedade por distribuir igualmente os custos do ajuste entre receitas e despesas, então, o ponto percentual do PIB de ajuste restante recairia sobre as despesas. Aqui, a missão é mais árdua, pois é preciso também conter aumentos em curso de componentes da despesa obrigatória. Sem isso, não há regra fiscal que sobreviva.

Em um primeiro momento, a compressão das despesas discricionárias leva à flexibilização da regra (vide o subsídio à compra do gás de cozinha, ainda em tramitação no Congresso). Em um estágio posterior, a ameaça de interrupção do funcionamento da administração pública culmina na revogação, sob a alegação de que a regra seria muito severa.

Entre as despesas obrigatórias, destaque para a despesa previdenciária, que representa 40% da despesa total, excluindo-se precatórios e sentenças judiciais. Tal despesa subiu de 6,6% do PIB, na média de 2012-2014, para 7,8% do PIB, em 2023, mesmo sob os efeitos da reforma aprovada no fim de 2019.

Essa despesa subirá ainda mais devido ao envelhecimento da população e da nova fórmula de correção do salário mínimo. Será preciso uma nova reforma, em breve, bem como a revisão da política do mínimo ou a desvinculação entre o mínimo e o menor benefício. Entretanto, ainda que se adotem essas providências, não se pode esperar mais delas que a estabilidade da despesa previdenciária em relação ao PIB.

As despesas assistenciais respondem por outros 15,5% da despesa total. Incluem-se aí o abono salarial, o seguro-desemprego, o Benefício de Prestação Continuada e o Bolsa Família. Houve aumento desse conjunto de gastos, de 1,9% do PIB na média de 2012-2014 para 3% do PIB em 2023, especialmente em razão dos saltos do Bolsa Família em 2022 e 2023 (incluindo o extinto Auxílio Brasil).

Aqui, também se aplica a necessidade de alterar a política do salário mínimo ou desvincula-lo dos benefícios. Mas cabe ainda uma reformulação geral que integre os programas assistenciais, de modo a evitar o pagamento duplicado e a levar a resultados mais efetivos, especialmente quanto ao enfrentamento da pobreza. Além da contenção da despesa em relação ao PIB, seria possível obter uma economia equivalente ao orçamento do abono salarial, que chegou a 0,23% do PIB em 2023.

Precatórios e sentenças judiciais, complementação do Fundeb (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), gastos com saúde e educação e emendas parlamentares também vêm crescendo. Nesses casos, entendemos que as providências poderiam visar à redução, em relação ao PIB, frente ao patamar atual.

Os precatórios e sentenças judiciais subiram de 0,32% do PIB na média de 2012-2014 para 0,86% do PIB na média de 2022-2024. Quando essa despesa entra no Orçamento, só resta pagar. O foco de ação deve ser nas fases anteriores, evitando a judicialização e a perda das ações. É um trabalho contínuo e persistente, a exemplo da revisão de gastos. Alguns entendem que um estoque de decisões judiciais está sendo desovado, mas não há certeza do que teremos pela frente.

As regras da complementação da União ao Fundeb também poderiam ser ajustadas, pois a aplicação da emenda constitucional nº 108, de 2020, elevará progressivamente essa despesa de 0,2% para 0,48% do PIB entre 2020 e 2026.

Trata-se de aumento muito brusco, não compatível com a atual situação fiscal da União. A reversão gradual do atual percentual de complementação, de 19%, para 15% em 2028, levaria essa despesa para 0,31% do PIB. O espaço fiscal iria de 0,06% do PIB em 2025 para 0,17% do PIB em 2028, mas manteria a complementação em valor bem superior ao observado em 2020.

Na sequência, temos os gastos com saúde e educação e as emendas parlamentares, todos vinculados à evolução da receita da União. Trata-se de procedimento impróprio, pois o gasto não é dado pela necessidade, mas pelo simples fato de a receita ter mudado. Ademais, somam-se às despesas obrigatórias para “espremer” ainda mais rapidamente as discricionárias, não protegidas.

O desejável seria não haver vinculação de qualquer tipo de despesa à receita, mas, na impossibilidade, alguma fórmula alternativa poderia ser tentada para a saúde. A correção pelo mesmo fator aplicado para calcular o limite de despesa a partir de 2025 traria espaço fiscal, mas apenas se tomasse como base o gasto de 2023. O ganho seria de 0,12% do PIB, no primeiro ano, crescendo para 0,15% do PIB em 2028. Ainda assim, o mínimo da saúde ficaria em 1,6% do PIB, mesmo percentual gasto em 2023.

Essa mesma proposta não é apropriada no caso das emendas parlamentares. São duas as questões envolvidas. A primeira é do uso adequado dos recursos. A discussão que começou por iniciativa do STF deverá trazer avanços importantes. Quanto à segunda questão, diz respeito à fragilidade fiscal da União.

As emendas simplesmente chegaram a um montante inviável, próximo de R$ 50 bilhões, na LOA de 2024. O artigo 166 da Constituição teria que ser revisto para retirar a vinculação à receita e, eventualmente, definir alguma fórmula que chegasse a um montante razoável.

Uma opção seria um percentual das despesas discricionárias. Em caso de contingenciamento, haveria partilha proporcional automática do corte entre as emendas e as demais discricionárias. No biênio 2018-2019, as emendas totais correspondiam, na média, a cerca de 8% das despesas discricionárias. Considerando-se as discricionárias atuais, esse percentual equivaleria a R$ 16 bilhões, bastante expressivo. Se tal comando vigorasse em 2024, criaria um espaço fiscal de 0,27% do PIB.

As quatro propostas acima levam a um ajuste da despesa de 0,82 ponto percentual de PIB (0,23 + 0,17 + 0,15 + 0,27). O restante 0,18 ponto percentual do PIB poderia vir da chamada revisão do gasto, com base no emprego da avaliação de políticas públicas, além do combate à fraude, análise mais criteriosa dos pedidos de benefícios e providências para enfrentar a judicialização. A revisão de 0,18 ponto representaria um corte de menos de 1% do total das despesas da União, atualmente acima de 19% do PIB, sem perda de bem-estar.

Conclusões

O país está vulnerável, sujeito a crises e baixo crescimento, o que dificulta o enfrentamento da questão social, devido a decisões que fragilizaram a situação fiscal da União.

O ajuste requerido para estabilizar a dívida pública em relação ao PIB é de dois pontos percentuais do PIB. Sugerimos providências que levam a um ponto percentual de receita extra para a União e um ponto percentual de corte de despesa.

Todas as medidas requerem amplo consenso político, algo difícil de alcançar. O fato é que o país não poderia ter chegado a essa situação. Fomos sinceros ao dizer que estamos em uma enrascada. Não será a primeira em nossa história. Outros países passaram ou passam pela mesma situação. Temos que superar.