Neofascismo contemporâneo, por Fernando Nogueira da Costa

0

Fernando Nogueira da Costa – A Terra é Redonda – 03/06/2024

O neofascismo é mais velado em suas expressões de racismo e autoritarismo, utilizando as mídias sociais para difundir suas mensagens e conectar seguidores globalmente

fascismo italiano e o nazismo alemão emergiram e se consolidaram em repúblicas democráticas, aproveitando-se contextos de graves crises econômicas, sociais e políticas. Essas crises criaram um ambiente propício para movimentos autoritários ganharem apoio eleitoral e tomarem o poder. Depois, destruíram a democracia.

Valer recordar, sinteticamente, os fatores específicos para o sucesso eleitoral e subsequente consolidação de poder por parte do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha. O neofascismo ameaça em vários Estados contemporâneos, onde a extrema direita se organizou por meio de rede sociais, religiosas e policiais-militares, inclusive no Brasil: temos de aprender com a lamentável história.

A Itália, apesar de ter ficado do lado vitorioso na Primeira Guerra Mundial, sofreu grandes perdas humanas e materiais. O país sentiu-se traído pelo Tratado de Versalhes, porque não atendeu plenamente às suas aspirações territoriais.

A economia italiana estava em ruínas, com alta inflação, desemprego em massa e agitação social, incluindo greves e ocupações de fábricas por trabalhadores. O sistema político italiano era frágil, com uma série de governos de coalizão ascendendo e colapsando rapidamente. A incapacidade dos governos democráticos de lidar com os problemas econômicos e sociais aumentou o descontentamento popular.

Benito Mussolini e seu Partido Nacional Fascista usaram táticas de intimidação e violência paramilitar (por meio dos “camisas negras”) para criar um clima de medo e desordem. Em outubro de 1922, Benito Mussolini organizou a Marcha sobre Roma, uma demonstração de força para pressionar o rei Vítor Emanuel III a nomeá-lo como primeiro-ministro.

Uma vez no poder, Benito Mussolini rapidamente tomou medidas para consolidar seu controle. Ele obteve poderes de emergência, suprimindo a oposição e transformando a Itália em um Estado de partido único. A propaganda fascista e a repressão violenta de adversários políticos garantiram Mussolini manter-se no poder até a Segunda Guerra Mundial.

A Alemanha, derrotada na Primeira Guerra Mundial, foi severamente punida pelo Tratado de Versalhes, resultando em perdas territoriais, desmilitarização e pesadas reparações de guerra. Isso gerou um profundo ressentimento entre a população alemã.

A humilhação nacional e a percepção de traição (“a lenda da punhalada nas costas”) foram exploradas por grupos nacionalistas em ambiente econômico propício à sublevação. A hiperinflação no início dos anos 1920 e a Grande Depressão a partir de 1929 devastaram a economia alemã, causando desemprego em massa, pobreza e desespero generalizado.

A incapacidade da República de Weimar de lidar eficazmente com a crise econômica e a instabilidade política levou a uma perda de confiança nas instituições democráticas. Temia-se uma rebelião em massa, dada a revolta popular.

O Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP), liderado por Adolf Hitler, capitalizou o descontentamento popular com promessas de restauração da grandeza alemã, revogação do Tratado de Versalhes e recuperação econômica.

Em eleição realizada em 1932, o NSDAP se tornou o maior partido no Reichstag, mas não obteve a maioria absoluta. Em janeiro de 1933, após uma série de manobras políticas e pressão das elites conservadoras, Adolf Hitler foi nomeado chanceler pelo presidente Paul von Hindenburg.

Após o incêndio do Reichstag, em fevereiro de 1933, Hitler usou o evento como pretexto para suspender liberdades civis e prender opositores políticos. A Lei de Plenos Poderes, aprovada em março de 1933, permitiu a Hitler governar por decreto, efetivamente estabelecendo uma ditadura.

A repressão violenta de adversários, a criação de um Estado policial e a propaganda intensa consolidaram o controle nazista sobre a Alemanha.

Tanto o fascismo italiano quanto o nazismo alemão emergiram em contextos de crise extrema, onde as instituições democráticas eram vistas como incapazes de resolver os problemas da sociedade.

Em ambos os casos, líderes carismáticos utilizaram táticas de intimidação, violência e propaganda para obter apoio popular.

Porém, uma vez no poder, rapidamente desmantelaram as estruturas democráticas para estabelecer regimes autoritários. A combinação de desespero econômico, instabilidade política e ressentimento nacional criou as condições para a ascensão desses movimentos autoritários.

O nazifascismo e o neofascismo contemporâneo compartilham algumas semelhanças ideológicas e táticas, mas também apresentam diferenças significativas, devido às mudanças nos contextos históricos, sociais e políticos. Apresento abaixo uma análise esquemática das semelhanças e diferenças entre esses movimentos.

(i) Nacionalismo extremado: ambos os movimentos enfatizam um forte nacionalismo, frequentemente acompanhado por um sentimento de superioridade nacional e xenofobia. (ii) Autoritarismo: tanto o nazifascismo quanto o neofascismo advogam por um governo autoritário, rejeitando o liberalismo, a democracia representativa e as liberdades civis. (iii) Culto à personalidade: os dois movimentos promovem líderes carismáticos vistos como “salvadores da pátria”, necessitando de poder quase absoluto para realizar suas visões.

(iv) Uso da violência e intimidação: a violência e a intimidação contra opositores políticos, minorias e outras comunidades marginalizadas são comuns em ambos os movimentos com uso de grupos paramilitares e milícias para esses fins. (v) Propaganda e controle da mídia: no uso da propaganda para manipular a opinião pública e controlar a narrativa política, a mídia é atacada e desacreditada.

Mas há diferenças entre Nazifascismo e Neofascismo Contemporâneo: (a) Contexto histórico: o nazifascismo surgiu na Europa no período entre as duas guerras mundiais, em um contexto de crise econômica, instabilidade política e ressentimento pós-Primeira Guerra Mundial; o neofascismo emergiu após a Segunda Guerra Mundial e, especialmente nos últimos anos, em resposta a crises econômicas, globalização, imigração em massa e mudanças sociais rápidas.

(b) Foco ideológico: o nazismo, em particular, era centrado no racismo biológico e no antissemitismo extremo, promovendo a ideia de uma “raça superior ariana”, mas o fascismo italiano também era nacionalista e imperialista, embora com menor ênfase racial diante do nazismo; o neofascismo contemporâneo, ainda xenófobo, expressa sua islamofobia e racismo, na oposição à imigração e em um nacionalismo cultural, além de usar a retórica da “defesa da civilização ocidental” contra o multiculturalismo.

(c) Estratégias e táticas: o nazifascismo tomou o poder através de golpes de estado ou manipulação de sistemas democráticos e rapidamente estabeleceu regimes totalitários com controle total sobre o Estado; o neofascismo usa mais táticas de infiltração dentro dos sistemas democráticos existentes, tentando influenciar políticas através de partido(s) político(s), movimentos sociais e meios de comunicação, sendo mais adaptável às leis democráticas ao operar dentro das fronteiras da legalidade para evitar repressões enquanto não ascende ao poder – depois altera seu comportamento.

(d) Tecnologia e comunicação: o nazifascismo utilizava os meios de comunicação de massa disponíveis na época, como rádio, cinema e imprensa; o neofascismo explora a internet e as redes sociais para disseminar sua ideologia, recrutar membros e organizar ações, tornando-se muito mais eficaz em termos de alcance e mobilização rápida.

Portanto, o nazifascismo, incluindo tanto o fascismo italiano de Benito Mussolini quanto o nazismo alemão de Adolf Hitler, e o neofascismo contemporâneo compartilham algumas semelhanças ideológicas e de estilo. Mas também apresentam diferenças significativas devido a mudanças históricas, sociais e políticas.

O neofascismo mantém um forte nacionalismo com foco na identidade nacional e na oposição à imigração e à globalização. Sua xenofobia e racismo transparece de forma mais velada.

Promove ideias autoritárias, como a centralização do poder, restrição das liberdades civis, e uma ênfase na lei e ordem. De maneira anacrônica, expressa sua ideologia de extrema-direita ao se opor à esquerda como ela ainda fosse adepta do comunismo (ou socialismo real), utilizando a retórica da ultrapassada Guerra Fria para mobilizar apoio.

O neofascismo continua a adotar estratégias populistas, apresentando-se como “a voz do povo comum” contra as elites corruptas. Defende o armamentismo e políticas demagógicas, em suposto benefício de sua base de apoio, insustentáveis em longo prazo.

As maiores diferenças entre nazifascismo e neofascismo dizem respeito aos distintos contextos históricos e sociais. O neofascismo surge em um contexto de globalização, crises econômicas contemporâneas, imigração em massa, e a ascensão das mídias sociais. As ameaças percebidas e as questões centrais são diferentes das do período entreguerras.

Embora inclua elementos de racismo e xenofobia, tenta evitar a retórica explicitamente racista e antissemita do nazismo por ela ser considerada crime em países atentas para seu mal. Em lugar dela, foca em retórica anti-imigração e islamofóbica, disfarçada de preocupações culturais e de segurança.

Como estratégias de comunicação, o nazifascismo utilizou propaganda estatal centralizada, rádio, jornais e eventos públicos para mobilizar apoio. O neofascismo utiliza extensivamente as mídias sociais e a internet para espalhar suas ideias, mobilizar seguidores e organizar eventos. A descentralização e a natureza viral das mídias sociais permitem uma disseminação mais rápida e ampla das ideias neofascistas.

Ele se organiza de forma menos hierárquica e mais descentralizada, se comparado às milícias paramilitares como os SA e SS na Alemanha nazista. Brota de grupos informais, movimentos online e partidos políticos com negação de ser fascistas, embora adotem ideologia de extrema direita.

Embora se apresente como nacionalista, ele se conecta internacionalmente com essa extrema-direita através de redes online. Compartilha suas táticas e retóricas, mas sem as mesmas ambições imperialistas explícitas do nazifascismo.

Embora o neofascismo contemporâneo compartilhe várias características ideológicas e táticas com o nazifascismo histórico, ele opera em um contexto significativamente diferente. Por isso, adaptou suas estratégias de comunicação, organização e retórica para se ajustar às realidades políticas e sociais do século XXI.

O neofascismo tende a ser mais velado em suas expressões de racismo e autoritarismo, utilizando as mídias sociais para difundir suas mensagens e conectar seguidores globalmente. A evolução dos meios de comunicação e as mudanças nas condições socioeconômicas moldaram a maneira como essas ideologias são promovidas e percebidas hoje.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP).

Em defesa de um Judiciário transparente, por Gregory Michener e Sérgio Praça

0

Nossos juízes não deveriam esperar que a sociedade tolere baixa transparência em troca de garantias democráticas

Gregory Michener, Professor da FGV-Ebape e fundador do Programa de Transparência Pública

Sérgio Praça, Professor e pesquisador da FGV-CPDOC – Escola de Ciências Sociais

Folha de São Paulo, 03/06/2024

“A camada dirigente atua em nome próprio, servida dos instrumentos políticos derivados de sua posse do aparelhamento estatal”, escreveu o jurista Raymondo Faoro em “Os Donos do Poder”, de 1958 (pág. 705).

Parece que pouco mudou desde que Raymundo Faoro escreveu essas palavras. Embora a democratização parecesse prometer uma transição de um “Estado autocentrado” para um Estado que serve ao interesse público, a República Brasileira continua sendo indulgente. Um exemplo disso é que o país arrecada a mesma receita tributária de seus cidadãos que países como Canadá e Dinamarca, embora devolva comparativamente pouco em termos de valor.

Grande parte desses excessos tem a ver com salários grotescamente desproporcionais. Com todos os seus benefícios, os juízes brasileiros ganham em um mês mais do que a maioria dos brasileiros ganha em um ano.

Não é de admirar, então, que no ano passado o Judiciário tenha consumido o equivalente a 1,2% do PIB, com mais de 80% desse montante gasto em salários. Em comparação, o Judiciário de um país europeu médio custa menos de 0,5% do PIB. Isso significa que o Brasil gasta mais do que o dobro do que países desenvolvidos, o que é inaceitável, considerando as dificuldades financeiras que temos para realizar gastos sociais e investimentos que resultem em crescimento econômico.

A autogenerosidade do Judiciário brasileiro reflete uma instituição, em grande medida, orientada mais por interesses privados do que públicos. A falta de transparência é um sintoma disso. Há pouco mais de uma década, o Programa de Transparência Pública da FGV descobriu que os níveis de conformidade do Judiciário com a Lei de Acesso à Informação do Brasil estavam entre os mais baixos de todos os órgãos públicos.

Parece que, infelizmente, pouco mudou desde então, especialmente no que diz respeito ao STF (Supremo Tribunal Federal).

Tomemos como exemplo a recente controvérsia sobre o uso de aviões da FAB por ministros do Supremo. Após jornalistas iniciarem uma investigação sobre os gastos dessas viagens, o TCU (Tribunal de Contas da União) tomou uma decisão, em 30 de abril, permitindo que “altas autoridades” —incluindo os próprios ministros— mantivessem a informação sob sigilo por “razões de segurança”.

O portal de transparência do STF saiu do ar para uma “atualização” e, ao retornar, não disponibilizava os dados sobre os gastos com viagens internacionais. Tais ações levantam sérias dúvidas sobre o compromisso do STF com a transparência e o acesso à informação. Afinal, a informação pode estar disponível online, mas se não for facilmente encontrável, não pode ser considerada verdadeiramente transparente.

Outro exemplo preocupante são as recentes decisões do STF sobre casos de corrupção. O Estado brasileiro gasta bilhões a cada ano para pagar os salários daqueles que deveriam investigar, processar e julgar a corrupção. No entanto, decisões recentes, anulações e generosos habeas corpus beneficiando pessoas indiscutivelmente corruptas deixam claro que montanhas de dinheiro público alocado para combater a corrupção são desperdiçadas.

Como resultado, a impunidade está em ascensão e a confiança pública no STF está diminuindo. De acordo com o AmericasBarometer (Latin American Public Opinion Project), 40% dos entrevistados em 2023 expressaram desconfiança no Supremo Tribunal. Em 2010, esse número era de 32,6%.

Um possível alento para a instituição pode ser o reconhecimento pelo papel importante, após a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, na defesa da democracia. No entanto, um recente estudo de Diego Zambrano, Ludmilla Martins, Rolando Miron e Santiago Rodríguez publicado no Journal of Democracy mostra que esse comportamento de defesa da Constituição contra presidentes autoritários tem sido praxe na América Latina. Considerando isso, nossos juízes não deveriam esperar que a sociedade tolere baixa transparência em troca de garantias democráticas.

A crítica à falta de transparência e à cultura de privilégios no Judiciário brasileiro não é mera retórica. O Brasil precisa e merece um Judiciário modesto, frugal e orientado ao interesse público —e não uma instituição com “conteúdo aristocrático, da nobreza da toga e do título”, para citar, mais uma vez, Raymundo Faoro.

O alarmante apagão docente, por Débora Garófalo e Bernardo Soares

0

Há crescente escassez de professores qualificados, comprometendo o ensino

Folha de São Paulo, 03/06/2024

Débora Garófalo, Professora e gestora na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, é mestra em educação (PUC-SP) e professora universitária convidada do ICMC-USP

Bernardo Soares, Professor, é mestre em educação (Universidade de Lisboa) e pesquisador em formação docente e tecnologias digitais na educação

Em texto para o jornal português Diário de Notícias, o professor Antônio Nóvoa afirmou que, das muitas profissões que desaparecerão no futuro, os professores não estarão nesse grupo. A partir disso, o pesquisador destaca o papel insubstituível do docente, mesmo diante de uma escola cada vez mais influenciada pelas tecnologias, que, de início, parecem ameaçar seu trabalho.

De fato, em um cenário de transformações estruturais na educação, o professor é a base das mudanças — realidade exposta em estudos recentes de pesquisadores escoceses, os quais reforçam que reformas “de cima para baixo” são ineficazes, sendo necessária a liderança docente nesse caminho de inovação.

Porém, há um contexto de desvalorização dessa classe no Brasil, especialmente no que diz respeito à formação inicial e à continuada, tornando a profissão cada vez menos atraente, satisfatória e, por fim, impactante.

O apagão docente já é uma realidade preocupante no nosso cenário educacional. Estudos divulgados pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) indicam uma crescente escassez de professores qualificados, comprometendo a qualidade do ensino. Para ilustrar a gravidade da situação, há escolas pelo território brasileiro que enfrentam dificuldades para preencher vagas em disciplinas essenciais, como matemática e língua portuguesa, gerando turmas superlotadas, sobrecarga de trabalho e impactando negativamente o aprendizado e a equidade.

Faltam, ainda, incentivo, definição clara da carreira, salários coerentes e condições de trabalho, contribuindo para o desinteresse, a desmotivação e a evasão de profissionais, além da dificuldade na atração de novos talentos para a carreira.

A BNCC (Base Nacional Comum Curricular) destaca a importância da valorização do educador e da promoção de uma formação de qualidade, além de ressaltar que o desenvolvimento profissional deve ser pautado por princípios éticos, políticos e estéticos, buscando a formação integral do estudante e a garantia de uma educação de qualidade.

Destaca, ainda, a necessidade da reflexão sobre a prática pedagógica, que inclui novas metodologias ativas, abordagens como a cultura maker e a robótica, atualização constante e busca por aprimoramento profissional. Assim, deve-se fazer valer esse documento para reverter o jogo.

Para isso, são necessárias políticas públicas efetivas e a compreensão do docente como agente crucial na construção de uma sociedade mais justa e desenvolvida, com medidas que busquem a valorização profissional e a preocupação com sua saúde física e mental.

Para a valorização profissional, deve-se promover planos de carreira atrativos que ofereçam perspectivas de crescimento e valorizem sua experiência e qualificação, a exemplo da Secretaria Municipal da Educação de São Paulo, que se destaca nessa área. Convém, também, implementar programas de formação continuada de qualidade para a atualização e o aprimoramento de práticas e habilidades alinhadas à atualidade.

Além disso, a saúde mental precisa ser considerada para promover o bem-estar dos educadores, visto que a sobrecarga, o estresse, a pressão por resultados e a falta de apoio emocional são fatores que podem impactá-los negativamente. Por isso, é fundamental adotar programas de apoio psicológico e acompanhamento emocional através de espaços de acolhimento e orientação profissional; promover a capacitação para o autocuidado, a gestão do estresse e da saúde mental para que possam lidar com as demandas diárias; e incentivar a prática de atividades físicas e de lazer. Criar espaços de interação entre os educadores também fortalece as relações de apoio e o sentimento de pertencimento.

A educação é pilar essencial para o progresso da nação, e os docentes são cruciais nesse processo. Na verdade, ousamos dizer que educação se faz com professores no centro do debate. É urgente reconhecer e valorizar seu trabalho, garantindo condições necessárias para que possam exercê-lo com excelência e equidade e, então, impactar a aprendizagem. Só assim será possível superar esse alarmante apagão e construir um futuro promissor para a educação e o nosso país.

Há crises, como a do clima, que o mercado não resolve, avalia Nobel de Economia

0

Professor de Chicago, Lars Hansen diz que é preciso descobrir formas de encorajar parcerias para preservar a Amazônia

Douglas Gavras – Folha de São Paulo, 31/05/2024

Diferentemente de políticos que se valem dos economistas de Chicago para referendar suas duras críticas ao Estado, Lars Hansen prefere a ponderação: o importante é sempre questionar se o governo pode resolver aquele problema melhor do que o setor privado.

“Há situações, como as mudanças climáticas, que o mercado por si só não consegue resolver e é preciso algum tipo de intervenção. Há outras em que os governos tentam fazer coisas que o setor privado pode executar melhor”, reforça o acadêmico.

Em 2013, ao lado de Eugene Fama e Robert Shiller, o professor da Universidade de Chicago conquistou o Prêmio Sveridge Riksbank em Ciências Econômicas em Memõria de Alfred Nobel (conhecido popularmente como Nobel de Economia), em reconhecimento a estudos de análise sobre preços de ativos, como ações e títulos.

Em meados de maio, o norte-americano participou, por videoconferência, de uma homenagem organizada pelo Insper a José Alexandre Scheinkman, economista brasileiro e professor da Universidade Columbia, em Nova York. Os dois têm estudado o potencial da amazônia para alavancar o crescimento sustentável.

Eles cooperaram, por exemplo, com o professor da PUC-Rio Juliano Assunção em um estudo que calcula quanto o Brasil ganharia ao deixar a floresta se regenerar. “O que descobrimos é que os custos econômicos são bastante modestos para mudar a orientação da amazônia. Agora é preciso encontrar maneiras de fazer com que esses custos sejam compartilhados com outros países”, diz.

Como o sr. vê os discursos de alguns políticos ultraliberais, que dizem se inspirar na Escola de Chicago para questionar a função e o tamanho do Estado?

A história da economia de Chicago tem sido muito impressionante. Quando era mais novo, em um curto intervalo de tempo, creio que de seis anos, quatro dos meus colegas ganharam o Prêmio Nobel.

Os economistas de Chicago levam a economia a sério, no sentido de que ela deveria ajudar-nos a resolver os problemas. Problemas reais.

É claro que há situações, como as mudanças climáticas, que o mercado por si só não consegue resolver e é preciso algum tipo de intervenção. Há outras em que os governos tentam fazer coisas que o setor privado pode executar melhor.

Então, acho que, do ponto de vista de Chicago, sempre é preciso perguntar se o governo pode realmente fazer determinada coisa melhor do que o setor privado. Se a resposta for não, então talvez seja necessário descobrir formas de encorajar o setor privado a ajudar a resolver o problema.

Os economistas acabam pagando a conta de certos discursos vazios?

Não estou dizendo que os economistas de Chicago sempre acertam nos cálculos. Há situações em que é muito importante que haja alguma forma de intervenção governamental, mas você quer entender o porquê disso.

Portanto, a influência de Chicago nem sempre funciona exatamente da maneira correta. Mas creio que é importante tentar garantir que se compreenda o que o privado pode fazer melhor e quando os governos são realmente necessários.

Há uma enorme quantidade de dados disponíveis atualmente para os pesquisadores, isso mudou a forma de fazer estudos em economia?

O ambiente para estudar economia mudou dramaticamente ao longo dos anos. Surgiram diversos conjuntos de ferramentas e métodos para analisar dados, e tudo isso foi positivo. Mas também acho que é muito importante ter bases conceituais para compreender o mundo, que vai além dos dados.

A própria Universidade de Chicago era uma espécie de referência em construir pontes entre uma área e outra, mas as áreas [da economia] tornaram-se cada vez mais especializadas, e tem sido difícil encontrar pessoas com experiência em múltiplos campos.

O pós-pandemia trouxe alguma mudança permanente no funcionamento da sociedade, como se chegou a cogitar durante a crise sanitária?

A pandemia pegou as pessoas de surpresa pela sua magnitude, e ainda há muito aprendizado importante a ser feito, questões que terão consequências de longo prazo, sobretudo se pensarmos no mercado de trabalho.

Antigamente, as pessoas saíam para trabalhar todos os dias, algumas delas viajavam longas distâncias para chegar ao trabalho, e isso era apenas visto como parte da rotina. A crise ensinou o trabalhador a ser produtivo mesmo sem estar o tempo todo no escritório.

Parece que cada vez mais empresas e instituições acadêmicas abriram opções flexíveis de trabalho em casa. Durante a pandemia, tivemos de fazer isso, e acredito que as consequências disso são permanentes, mesmo agora, na busca por um emprego.

O sr. fez alguns trabalhos em parceria com o economista brasileiro José Scheinkman, da Universidade Columbia. Como vocês se aproximaram?

José rapidamente se tornou um dos meus melhores colegas (se ele não tiver sido o melhor), quando estava na Universidade de Chicago. Era possível conversar com ele sobre diversos assuntos. Se observarmos seu trabalho, veremos que as áreas nas quais ele contribuiu são realmente impressionantes.

Fiquei triste quando ele decidiu sair de Chicago, mas mantivemos contato desde então. O fato de ele ser do Brasil é ainda melhor. Não consigo pensar em um economista brasileiro mais importante do que ele neste momento.

Vocês estudaram, por exemplo, os impactos positivos do reflorestamento da amazônia, em lugar de expandir a fronteira do agronegócio. A floresta pode ajudar a financiar a transição verde?

A amazônia é fascinante. O que descobrimos é que os custos econômicos são bastante modestos para que se altere a orientação da floresta.

A agricultura praticada na Amazônia brasileira não é tão produtiva em comparação com a performance do setor, em geral. No Brasil e no mundo. Isso faz com que o custo econômico da transição para atividades alternativas que preservem a floresta tropical não seja alto para a sociedade. É claro que existem desafios importantes em termos de implementação.

É preciso descobrir maneiras de fazer com que esses custos sejam antes de tudo compartilhados com outros países além do Brasil. Temos esperança de descobrir formas de encorajar investimentos externos para ajudar a preservar a floresta tropical. Isso não só ajudará o Brasil mas também o resto do mundo.

O Rio Grande do Sul está enfrentando uma catástrofe climática agora. Como os países podem se preparar para outros eventos assim?

Em termos gerais, acredito realmente que a melhor saída para essa situação é tecnológica.

Desenvolver novas tecnologias que sejam muito mais limpas e produtivas, mas isso leva tempo.

Conseguimos algumas melhorias marginais, mas, se quisermos pensar em mudanças maiores, como a fusão nuclear ou a geoengenharia solar [também chamada de modificação da radiação solar], teremos de começar a fazer coisas agora.

A questão é saber como podemos nos colocar em uma posição em que esse tipo de alternativa tenha maiores chances de sucesso. Esse é um problema no qual estou muito interessado e certamente requer continuar a pensar na redução de emissões.

Os governos nem sempre alocam recursos da maneira mais eficiente. É muito importante que os países mais desenvolvidos invistam em pesquisas e que continuem a descobrir formas de reduzir as emissões, para dar ao progresso tecnológico uma maior oportunidade de sucesso.

Salvar o planeta é o grande desafio que temos hoje?

É um enorme desafio que estamos enfrentando. Suponha que a gente consiga descobrir como lidar com a floresta tropical no Brasil. Isso certamente poderia ser parte da solução, mas há países como a China que ainda estão fortemente envolvidos com a produção de carvão, embora eles estejam fazendo esforços para fabricar carros elétricos.

A Índia tem uma população enorme e, no futuro, poderá também constituir um desafio importante para as alterações climáticas. E economias avançadas, como a dos Estados Unidos, estão envolvidas no consumo de combustíveis fósseis há muito tempo.

Então, como podemos ajudar a incentivar um país a tomar atitudes que sejam do interesse de todos? É um enorme problema, e certamente espero que possamos fazer mais progressos para resolvê-lo. Para mim, uma fonte de otimismo é a nossa capacidade de criar tecnologias novas e melhores.

As universidades americanas têm sido palco de protestos contra a ação de Israel em Gaza, e as imagens dos estudantes repercutiram mundialmente. Como esse movimento é visto por dentro?

Quando eu era jovem, o grande problema era a Guerra do Vietnã. Houve protestos estudantis
massivos. Alguns deles não foram muito produtivos, outros até terminaram em violência. Mas, na verdade, os estudavam provaram estar, em muitos aspectos, do lado certo na história. Tudo o que aprendemos nas últimas décadas foi que o Vietnã foi uma aventura militar imprudente dos Estados Unidos.

Na situação atual, o problema é muito complexo —e quero dizer que o que acontece aos cidadãos de Gaza é incrivelmente triste, mas todas as partes têm de assumir alguma culpa nisso. Existem tantas complexidades aqui. E também tem uma perspectiva histórica. Ao sair da Segunda Guerra Mundial, não está claro se havia uma forma muito prudente de resolver esse problema, e alguns aspectos disso nunca foram realmente resolvidos muito bem.

Creio que os campi universitários lidaram com isso de maneiras diferentes. Em Columbia, as coisas explodiram, infelizmente. Acho que Chicago lidou muito bem: deixou os protestos continuarem até que eles começaram a atrapalhar aspectos da vida acadêmica. A universidade cobrou uma resolução, e tudo caminhou pacificamente.

Esse movimento pode ter impactos que vão além da causa palestina?

Temo agora que haja um grupo de jovens, eleitores em potencial [já que nos Estados Unidos o voto não é obrigatório], que estão tão irritados com toda essa situação que não irão votar nas eleições deste ano. Acho que seria tremendamente triste se isso acontecesse.

Creio que os campi universitários lidaram com isso de maneiras diferentes. Em Columbia, as coisas explodiram, infelizmente. Acho que Chicago lidou muito bem: deixou os protestos continuarem até que eles começaram a atrapalhar aspectos da vida acadêmica. A universidade cobrou uma resolução, e tudo caminhou pacificamente.

Esse movimento pode ter impactos que vão além da causa palestina?

Temo agora que haja um grupo de jovens, eleitores em potencial [já que nos Estados Unidos o voto não é obrigatório], que estão tão irritados com toda essa situação que não irão votar nas eleições deste ano. Acho que seria tremendamente triste se isso acontecesse.

Lars Hansen, 71
Economista norte-americano, é professor da Universidade de Chicago (EUA) e uns dos ganhadores do Nobel de Economia de 2013, por estudos de análise sobre preços de ativos. Nos últimos anos, tem pesquisado os impactos positivos da preservação do meio ambiente para a economia

Desenraizamento institucional, por Oscar Vilhena Vieira

0

Nesta semana assistimos a mais um festival de deslealdades com o nosso combalido Estado de Direito

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023).

Folha de São Paulo, 01/06/2024

O ambiente institucional brasileiro vem passando por um preocupante processo de degradação na última década, que se reflete numa dificuldade cada vez maior de a lei servir como instrumento de determinação de condutas e estabilização de expectativas. E onde a lei não impera, prevalecem o arbítrio, a violência, o oportunismo, o mandonismo e uma perversa forma de extrativismo institucional.

A fragilidade do direito brutaliza a vida das pessoas, especialmente daquelas que estão mais
vulneráveis ao crime, ao arbítrio e à negligencia do Estado ou mesmo à ação predatória de algumas poderosas corporações. A fragilidade da lei deteriora a eficácia das políticas públicas, das instituições democráticas e, por consequência, a confiança na democracia. A fragilidade da lei, por fim, reduz a eficiência dos mecanismos de mercado, inibe investimentos e emperra processos de desenvolvimento econômico e social mais sustentáveis e equitativos.

É fato que a lei jamais foi levada muito a sério entre nós. A indecente e persistente desigualdade, a perversa “cordialidade”, o patrimonialismo têm conspirado incessantemente contra um enraizamento mais profundo do império da lei nessas paragens. O pacto constitucional de 1988, no entanto, favoreceu algum avanço no fortalecimento de nossas instituições. Esse processo positivo, ainda que ambíguo, começou a descarrilhar a partir de 2013, desaguando na tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, em 8 de janeiro de 2023. Se é verdade que sobrevivemos, ainda que por um triz, o processo de degradação do Estado de Direito não foi interrompido.

Importa lembrar que direito não tem força própria. Sua efetividade depende, primariamente, dum delicado equilíbrio entre aqueles que têm poder na sociedade. Sem que os poderosos se convençam de que é mais vantajoso resolver suas disputas e conflitos por intermédio das regras do jogo, o Estado de Direito não para de pé. Quando esse equilíbrio político não é alcançado ou se rompe, a vida social, política e econômica se degradam.

A efetividade do governo das leis também depende da disposição daqueles que habitam as suas instituições em cumprir com suas responsabilidades de elaborar, implementar e aplicar as leis de maneira correta e consistente. Quando as instituições responsáveis pela produção e aplicação do direito não cumprem com suas atribuições, o direito deixa de ser um instrumento crível para contribuir com a coordenação pacífica da sociedade. Sem que os detentores do poder vejam vantagem em resolver seus conflitos de acordo com as regras do jogo, o Estado de Direito não sobrevive.

Nesta semana assistimos a mais um festival de deslealdades com o nosso combalido Estado de Direito patrocinadas por maiorias parlamentares, governadores de estado e até ministro do Supremo. A resistência às câmeras policiais, a implosão de acordos de delação, o jogo perverso de vetos são apenas exemplos dessa insurgência contra o direito, por parte de quem jurou defender e garantir a Constituição e as leis.

Essa completa falta de cerimônia, manipulação ostensiva e desrespeito à legalidade têm aprofundado uma perigosa sensação de anomia —de ausência de regras—, gerando um ambiente em que prevalecem apenas as lógicas da dominação, do arbítrio e do ardil. Romper esse círculo viscoso de degradação da legalidade é hoje nosso maior desafio. Sem o enraizamento do império da lei, dificilmente alcançaremos soluções para os outros enormes desafios que temos pela frente.

Atenção aos sinais, por Oded Grajew

0

Mudança climática e desigualdade estão conectadas e se retroalimentam

Oded Grajew. Presidente emérito do Instituto Ethos, conselheiro do Instituto Cidades Sustentáveis e idealizador do Fórum Social Mundial; fundador e ex-presidente da Fundação Abrinq

Folha de São Paulo, 30/05/2024

Meus pais eram judeus e viveram na Polônia nos anos 1930. Hitler assumiu o poder na Alemanha em 1933 e iniciou a perseguição aos judeus promulgando leis chamadas de “proteção do sangue”, que excluíam qualquer direito ao povo judaico. Em 1938, promoveu a Noite dos Cristais, que causou a destruição de lojas de judeus e a prisão de muitos deles, levados para campos de concentração.

Em todos os seus discursos, Hitler anunciava seus planos de exterminar o povo judeu. A partir da invasão da Polônia em 1938, ele começou a colocar em prática seus planos que resultaram no Holocausto.

Meus pais então levaram a sério as ameaças e os sinais e resolveram emigrar para Israel, em 1938, um pouco antes da invasão da Polônia. Tentaram convencer familiares a fazerem o mesmo.

Infelizmente, não os consideraram e foram quase todos assassinados pelos nazistas. Devo a minha vida aos meus pais terem levado a sério os sinais, o que me ensinou sobre a importância dos alertas.

Vejo agora com grande tristeza e preocupação como o mundo tem desprezado os sinais. Apesar dos alertas da quase totalidade dos cientistas sobre as consequências das mudanças climáticas promovidas por ações humanas, das evidências, de conhecer as medidas necessárias para enfrentar os riscos e de termos recursos para isso, pouquíssimas ações são efetivadas para reverter o processo. Grandes conferências do clima terminam com declarações e promessas dos governantes que quase nunca são cumpridas. Os governos se restringem a correr atrás dos prejuízos e a renovar as promessas. Enquanto isso, vidas e patrimônios são destruídos, os desastres se sucedem, o planeta continua se aquecendo e se aproximando de um caminho sem retorno que inviabilizará a vida humana.

Processo semelhante ocorre com a forma como a maioria da sociedade e dos governos encaram as desigualdades sociais. Os dados são alarmantes: os 10% mais ricos detêm 76% da riqueza e 52% da renda; metade mais pobre da população fica com apenas 2% da riqueza e 8,5% da renda. O Brasil é o oitavo país mais desigual do planeta, apesar de estar entre as dez maiores economias (vergonha!). E pior: as desigualdades no mundo estão crescendo a cada ano! As desigualdades resultam em sociedade de castas, de dominadores e subordinados, de superiores e inferiores, de lutas pela ascensão social, de conflitos e violência, dentro e entre os países. Isso quando dispomos de armas cada vez mais potentes e do aumento a cada ano dos bilionários orçamentos militares.

As desigualdades fazem as pessoas desacreditarem na democracia, causam revolta, violência e a busca por bodes expiatórios. É um terreno fértil para políticos autoritários, extremistas e populistas.

Os dois fenômenos, mudanças climáticas e desigualdades, são conectados e se retroalimentam. As mudanças climáticas aumentam as desigualdades e as desigualdades aumentam a devastação ambiental. Os dois processos representam um enorme risco para a humanidade. Sinais não faltam: desastres ambientais cada vez mais frequentes e potentes, conflitos cada vez maiores e ameaçadores, crescimento de movimentos políticos extremos e ameaças cada vez maiores às democracias. Ou levamos a sério os sinais e agimos preventivamente ou corremos o risco de chegarmos a uma situação em que seja tarde demais para remediar.

Década perdida

0

Vivemos momentos de grande apreensão na sociedade internacional. Nesse cenário, as estruturas econômicas, sociais, culturais e políticas estão passando por grandes inquietações, modelos novos e consistentes estão sendo degradados, empresas anteriormente consolidadas estão perdendo espaço no mercado, as transformações no mundo do trabalho estão reconfigurando as atividades profissionais, exigindo novas qualificações e variadas capacitações, exigindo esforços intelectuais elevados e dispêndios de recursos monetários, gerando uma nova sociedade, mais integrada, mais competitiva, mais individualista, mais imediatista e mais, cada vez mais, centrada na instabilidade, na insegurança e na financeirização das atividades cotidianas.

Nesta nova sociedade, percebemos que estamos caminhando a passos largos para mais uma década perdida, cujo crescimento produtivo é insuficiente e limitado para vislumbrarmos o tão sonhado desenvolvimento econômico. Percebemos ainda, que esse baixo crescimento da economia e somado a altas taxas de juros contribuem fortemente para engordar a renda e o poder político dos rentistas, dos financistas e donos do capital, além de degradar a renda dos trabalhadores e atuando ativamente para incrementar as desigualdades sociais que perpetuam nosso atraso institucional.

A década perdida dos anos 80 do século passado ficou conhecida como um momento marcado por baixo crescimento econômico, taxa de inflação elevada, desindustrialização da economia, crescimento do endividamento externo, incremento da concentração de renda e perspectivas sombrias para a estrutura econômica e produtiva. Neste período, definido como a década perdida, o Brasil perdeu espaço na economia internacional, perdendo mercados preciosos no comércio global, reduzindo seu dinamismo industrial e, diante disso, percebeu-se o crescimento e a consolidação de concorrentes diretos, principalmente nações asiáticas, que se projetaram no comércio mundial, adotando políticas industriais exitosas, desbancando atores importantes no cenário global e passaram a ganhar espaço nos grandes fóruns internacionais.

Nos anos 1980, a economia internacional passava por grandes transformações no modelo produtivo, a sociedade global vislumbrava uma nova revolução industrial, com o crescimento da informática e das telecomunicações, marcadas por novas tecnologias e exigindo das nações mais investimentos em capital humano, melhoras significativas na educação, além de pesquisas científicas e no fomento tecnológico. Neste momento, perdemos essa proeminência acumulada em décadas anteriores, perdemos ainda o dinamismo produtivo, perdemos cérebros imprescindíveis para alavancar o crescimento econômico e passamos a amargar um crescimento econômico medíocre, que nesse ritmo levaríamos muitos séculos para melhorarmos os nossos indicadores sociais.

Com o incremento da concorrência internacional, onde a tecnologia passou a ser o agente fundamental para o crescimento econômico, faz-se necessário que as nações em desenvolvimento cresçam de forma mais consistente, melhorando sua estrutura produtiva, investindo em capital humano, consolidando políticas públicas para melhorar os indicadores sociais, reduzindo as desigualdades das nações. Neste cenário, percebemos que o Brasil vem caminhando muito lentamente, seu crescimento econômico nos últimos quarenta anos foi muito limitado, taxas de juros elevadas, venda de patrimônios públicos entregues a preços irrisórios e um sucateamento educacional, desta forma não estamos conseguindo enfrentar frontalmente os grandes desafios da sociedade contemporânea, mesmo alterando os governantes a situação pouco avança, deixando a impressão de que estamos nos afastando dos países desenvolvidos. Será que estamos nos acostumando com as décadas perdidas? Cabe uma reflexão imediata.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Economista e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Muralha Paulista: Tarcísio mira a distopia, por Mariana Braghini

0

Governador quer impor gigantesco sistema de vigilância – e contrata corporação ligada ao bolsonarismo. Promete até prever crimes com reconhecimento facial e espionagem. É projeto-vitrine da gestão que bate recorde de letalidade policial

Mariana Braghini – OUTRAS PALAVRAS, 22/05/2024

Nas últimas semanas, uma série de reportagens tem sido publicada acerca da proposta do governo do estado de São Paulo para o programa denominado Muralha Paulista, um projeto high-tech de segurança pública que promete reduzir os índices de criminalidade nas cidades paulistas. Em parceria com uma empresa militar estrangeira, a gestão Tarcísio tem articulado uma megaestrutura de espionagem em massa da população do estado, ignorando legislações sobre proteção de dados e direitos constitucionais. Além disso, está priorizando uma proposta de alto custo, enquanto faltam embasamentos sobre a eficácia e o custo-benefício dessas tecnologias para a segurança pública.

Um marco importante da gestão Tarcísio na segurança pública tem sido as taxas de letalidade policial, que vem estabelecendo novos recordes. Em apenas um ano, mortes causadas por policiais militares cresceram 138% no estado. Uma iniciativa que também é digna de atenção, com potencial de atentar contra direitos civis e que tem tudo para perdurar durante governos futuros, é o Muralha Paulista, que conta com um esquema de vigilância integrada, captação de dados, imagens e compartilhamento das informações. O programa é operado essencialmente por meio de centros de comando e controle herdados da estratégia do Exército para o esquema de segurança de grandes eventos internacionais que ocorreram no país, como as Olimpíadas e a Copa do Mundo de futebol.

Para o Muralha Paulista, o governo vem somando esforços com uma empresa árabe de defesa e segurança, a Edge Group, representada no Brasil por Marcos Degaut, ex-secretário do Ministério da Defesa no governo de Jair Bolsonaro. Desde que chegou ao Brasil, a gigante de defesa já comprou duas empresas estratégicas brasileiras, a Siatt, fabricante de mísseis, e a Condor, fabricante de armamento não letal. Em seu amplo leque de atuação, a Edge também está associada a empresas que fornecem softwares de espionagem de celulares. Com um eufemismo corporativo para evitar conotações pejorativas aos serviços que fornece, é mais comum que se encontre termos como “equipamentos de monitoramento“ ou, para inglês ver, equipamentos de surveillance.

Estas estruturas, bem como sua aquisição e operação, são de alto custo. Com foco principal em tecnologias de reconhecimento facial, elas requerem câmeras de alta resolução espalhadas pelas cidades e softwares avançados de leitura automatizada de imagens. Para garantir a empreitada, a Edge e o governo apostam no projeto batizado de Bola de Cristal. É notável um apelo místico, que seduz governantes (e até mesmo populações) com a promessa de soluções mágicas para problemas sociais complexos. A ideia de Bola de Cristal é a ideia de que é possível prever crimes antes que eles ocorram, semelhante ao roteiro do filme Minority Report e que, na realidade, se manifesta como perfilamento racial potencializado à era do algoritmo.

A proposta da gestão Tarcísio, com o apoio da Edge, se apoia em um conjunto de palavras-chave como “melhor alocação de recursos”, “estruturação de dados” ou “integração de soluções”, uma retórica apelativa que cria um véu de um posicionamento técnico e objetivo de seu escopo, algo comum nas tecnopolíticas. O que falta ser evidenciado é o seu conteúdo, e como essa proposta é uma solução embasada e de longo prazo para a segurança pública.

Perguntas importantes a serem colocadas são: quais outras respostas estão sendo negligenciadas para dar lugar a um programa de alto custo e com falta de estudos que comprovem sua eficácia como política pública? O foco no esquema de mega vigilância da população se dá em detrimento de quais outras respostas que um estado pode dar para promover segurança pública?

Com uma operacionalização que exige altos investimentos, é de se perguntar quais outras escolhas o governo está deixando de considerar. Ainda mais quando se trata de um projeto controverso que envolve a vigilância de toda a população paulistana por uma variedade de dispositivos. Um sistema C4ISR, como aquele oferecido pela Edge em parceria com o governo estadual, vai além da simples captação de imagens. Ele rapidamente amplia sua coleta para incluir uma vasta gama de fluxos informacionais deixados pelas pessoas em seus ambientes privados e públicos. Hoje em dia, hábitos e localizações são informações facilmente obtidas, representando rastros que podem ser captados sem o consentimento ou conhecimento das pessoas. A partir desse universo de dados captados e processados que se determina o padrão de normalidade ou de ameaça que são infligidos aos cidadãos.

O que a Edge Group, está vendendo para o governo do estado é uma solução criada para contextos de conflito armado internacional (os sistemas C4ISR), de guerra, de ambientes altamente militarizados. O que está sendo feito é uma transposição dessa concepção para uma política de segurança pública. Guerra e segurança pública são campos diferentes, que têm raízes diferentes e não podem contar com as mesmas soluções. Quem pensa segurança pública como guerra não pensa em soluções de longo prazo, pensa em violação de direitos civis como emergência em tempos de
exceção.

O governo do estado inicia cometendo ilegalidades já na apresentação desse sistema a grupos de interesse, ao apresentar seu aparato de espionagem em tempo real para população civil, burlando a legislação vigente sobre proteção de dados e outros direitos constitucionais.

Conforme evidenciado por notícias veiculadas, a proposta do governo do estado de SP é reunir
imagens captadas pelas câmeras de condomínios, de comércios, empresas de transporte público, hospitais e centros de saúde, espaços de lazer e mais. Em última consequência, qualquer infraestrutura da cidade é uma infraestrutura de vigilância em potencial.

Aqui, não há preocupação com a necessidade de proteger direitos civis e são criadas as bases para espionagem em massa da população, com o auxílio de empresas privadas estrangeiras.

Os limites dessa atuação e da responsabilização não podem ser deixados nas mãos das próprias empresas, que muitas vezes regulam suas próprias atividades, como é comum entre empresas de inteligência artificial e outras Big Techs. Essa fiscalização também não pode ficar apenas a cargo das entidades policiais, que não estão imunes de corrupção. É essencial que esses limites sejam estabelecidos em um ambiente democrático.

Se há potencial para melhorar a segurança pública, mas também um potencial para espionagem em massa da população, os governos devem se envolver ativamente na definição desses limites e garantir o direito da sociedade à transparência. Ao mesmo tempo, as empresas devem ser responsabilizadas por suas atividades que possam violar os direitos civis. Afinal, quando falamos de tecnologias com potencial para melhorar a segurança e, ao mesmo tempo, para infringir direitos civis, é crucial que haja controle, transparência, debate público e accountability.

Ou é isso, ou continuamos avançando em direção a distopias em que um pequeno grupo de empresas e governantes exerce um poder autoritário sobre as populações através de sistemas de vigilância e dispositivos tecnológicos.

Extrema direita e neoliberalismo matam e ampliam destruição no RS, por Eleonora de Lucena

0

Governador e prefeito devastaram proteção ambiental e instituições públicas

Eleonora de Lucena, Jornalista e editora do TUTAMÉIA; ex-editora-executiva da Folha (2000 a 2010).

Folha de São Paulo, 26/05/2024

Meus irmãos ainda recolhem o entulho do que sobrou da casa em que vivi na infância e adolescência no Menino Deus, em Porto Alegre. Submersos havia dez dias, móveis, roupas, papéis, livros, quadros, eletrodomésticos formam agora uma montanha de rejeitos na calçada. Em frangalhos e com o fedor de podridão, a história dali vai junto com os destroços reunidos pelos vizinhos, muitos deles moradores do lugar desde os anos 1960, quando o bairro começou a tomar forma, com calçadas largas, plátanos, cinamomos, escolas.

Familiares e amigos ainda não sabem o que restou de suas casas. Nos históricos assentamentos do MST, pioneiros na produção orgânica na região metropolitana, as perdas de uma construção de 30 anos foram imensas: produção, animais, estoque, maquinário. Pequenos agricultores viram a enxurrada levar seus projetos, suas perspectivas de futuro. Nos abrigos, dezenas de milhares choram.

Como é praxe no Brasil, são os mais pobres, os negros que mais sofrem com a lama, o frio, a perda, a desesperança. Mais de 160 pessoas morreram; dezenas ainda estão desaparecidas.

Não precisava ter sido assim. As políticas neoliberais do governador Eduardo Leite (PSDB) e a voraz destruição realizada pelo prefeito bolsonarista Sebastião Melo (MDB) amplificaram em muito as consequências das chuvas. Submetidos aos interesses dos plantadores de soja, das construtoras e dos capitalistas que querem sugar tudo o mais rapidamente possível, o governador que posa de modernoso e o prefeito da extrema direita cumpriram um roteiro já bem conhecido: devastaram as leis de proteção ambiental, demoliram instituições públicas com privatizações, desmantelaram órgãos de planejamento e sucatearam criminosamente sistemas que defendiam a capital gaúcha de inundações.

Pior. Seguem com sua sanha predatória no meio da catástrofe. Têm pressa em entregar nacos do poder público a interesses privados, mirando negócios mirabolantes no processo de reconstrução.

Rapidamente, fecham acertos com consultorias que integram o esquema da extrema direita mundial, cujo histórico é de jogadas que beneficiam os mais ricos e descartam os mais pobres, jogando-os para longe dos espaços gourmetizados, colonizados e deslumbrados. Ignoram o conhecimento acumulado de cientistas, engenheiros, urbanistas que, principalmente nas universidades, estudam essas questões há décadas.

Não será surpresa se empresas estadunidenses ou suas aliadas aparecerem para pegar os contratos de construção. Como se sabe, as firmas nacionais do setor foram dizimadas pela Lava Jato, com assessoria do Estado norte-americano, no processo do golpe de 2016 que culminou com a chegada de
Jair Bolsonaro ao Planalto, a perda de soberania, a passagem da boiada e a mortandade promovida na pandemia. A extrema direita, como já ficou provado também no Brasil, faz o governo dos ricos, do salve-se quem puder, do entreguismo, da violência, da morte.

Não é outro o desenho das alardeadas “cidades provisórias”. Elas desprezam as necessidades dos que não têm onde morar agora, transferindo-os para locais distantes, sem infraestrutura mínima, tirando-os da paisagem para, quem sabe, tentar incentivar o turismo em Gramado!

É sabido que boa parte da elite econômica do Rio Grande do Sul é de direita e flerta com o fascismo. O avanço da monocultura da soja reforçou o domínio dessa ideologia, que foi base da ditadura militar e do governo Bolsonaro. Seu rastro autoritário e reacionário acompanhou a expansão da fronteira agrícola para o Centro-Oeste e o Norte do país.

Agora, os mesmos que propagandeavam as maravilhas do livre mercado olham para suas perdas e correm para pedir socorro ao Estado, aquele espezinhado até anteontem e que trataram de esmigalhar para lucrar. Está cristalino que, sem a ação do Estado, resta o caos —o alvo maior da extrema direita.

Mas a população do Rio Grande do Sul e de Porto Alegre já demonstraram que podem mudar. Lideraram transformações sociais e protagonizaram avanços. É possível começar a descartar o entulho da obscuridade que encharca com podridão as ruas da metrópole.

O legado de uma década perdida, por Renato Janine Ribeiro

0

Renato Janine Ribeiro – A Terra é Redonda – 22/05/2024

A esquerda é inteiramente representativa do senso comum de nossa sociedade – tudo de bom que acontece, e tudo de ruim, é só do Presidente

Não sou um fã das instituições, quero dizer: não considero que a chave para a democracia esteja nelas. Na verdade, há duas vertentes para se pensar a política moderna – uma é a da ação, outra a da instituição. Desenvolvi este tema em meu livro A sociedade contra o social, de 2000, resumo-o rapidamente aqui.

Nicolau Maquiavel rompe com a Idade Média e a ideia do “buon governo” ao liberar a ação do príncipe das amarras morais do cristianismo. Mostra que a doutrina do rei bom, porque cristão e moral, mascara a realidade de reis que foram bem-sucedidos quando souberam descumprir os preceitos religiosos, sempre que necessário para a busca de mais poder. Por isso, não é fortuito que Gramsci veja, no partido revolucionário, o príncipe: é quem age sem estar preso ao velho mundo que está morrendo, é quem ajuda a nascer o mundo novo, a ordem nova que é o nome da organização que ele lidera antes de ser preso pelo fascismo.

Bernard Mandeville, menos conhecido, duzentos anos depois do Príncipe escreve a Fábula das abelhas, sustentando que vícios privados podem gerar benefícios públicos. A ganância, vício e mesmo pecado, estimula o empreendedor a produzir melhor e mais barato – esse, o grande exemplo.

O capitalismo depende de se saber canalizar uma pulsão (para usar a linguagem freudiana) amoral ou mesmo imoral para fins positivos socialmente. É o que dá vigor às instituições, que fazem que a falta de bondade (ou mesmo, a maldade) humana se canalize em boas direções. Montesquieu até diz que Inquisição e monarquia absoluta se combinam bem na Espanha, porque cada uma delas – más – limita a outra. É o fundamento para o equilíbrio dos três poderes constitucionais.

Quem apoia revoluções ou mudanças fortes – no limite, a utopia – vai valorizar a ação. Quem deseja, não necessariamente o statu quo, mas uma evolução política mais lenta, vai de instituições. Ora, desde que as revoluções ficaram na periferia do sistema mundial, que elas deixaram de ocorrer nos países desenvolvidos, a via institucional se consagrou.

Mas o que aconteceu entre nós, no período que começa em novembro de 2014?

Foi um esvaziamento e transferência de poder entre instituições. Costuma-se dizer, parafraseando-se Aristóteles (“a natureza tem horror ao vácuo”), que na política, se houver vácuo, ele é prontamente ocupado. Assim sucedeu entre nós.

Dilma Rousseff, reeleita em 2014, imediatamente mudou sua política econômica, o que – traduzindo em bom português – teve forte impacto na política social. (Política econômica é como a direita chama o que a esquerda entende ser política social, indo ao essencial). A base de esquerda decepcionou-se e deixou de apoiá-la concretamente. Não promoveu sua destituição, mas também não se bateu em defesa de seu mandato – basta ver o silêncio com que a esquerda viveu a votação do impeachment, sem sublevação, sem indignação nas ruas.

Esvaziou-se o Poder Executivo e, neste quadro, o Legislativo cresceu, sob a chefia de Eduardo Cunha – que significativamente iniciou o golpe fazendo votar uma emenda constitucional que dava, a cada parlamentar individualmente, pleno controle de um porcentual do orçamento. Essa medida, a meu ver inconstitucional, faz que esse valor, para se tornar lei, não precise do voto das Casas Legislativas nem da sanção presidencial. É a privatização de uma parcela do orçamento – parcela esta que desde então só cresceu.

Na sequência, uma série de pautas-bomba diminuiu a possibilidade do Governo Federal controlar as finanças e a economia. (O cenário ora se repete). O Congresso, e especialmente Eduardo Cunha, se fortaleceu, até se chegar ao momento em que a oposição nele e nas ruas, diante das denúncias de crimes que acabariam por leva-lo à cadeia, saiu proclamando “somos todos Eduardos Cunhas”.

Mas esse fortalecimento deixava de lado qualquer coisa que fosse positiva para o País. Era negativo: impedia o Governo de governar. Impedia, antes mesmo do impeachment. Mas não desenhava uma alternativa. Por isso, ficava um vazio – que foi ocupado pelo terceiro poder, o único não eleito, aquele que dá estabilidade ao sistema, aquele que é (me atrevo a dizer) mais instituição do que os outros, justamente porque não provém do voto popular nem por este é renovado: o Judiciário ou, no caso, o STF. Pois foi este que decidiu a tramitação do impeachment, não foi o Congresso. (Lembrem a frase do político do MDB, “com o Supremo, com tudo” – que incluía as Forças Armadas, é bom lembrar).

Finalmente, como o próprio STF não podia governar, uma figura cresceu, no vácuo que tínhamos: um juiz proativo, que não se continha diante das limitações legais ou éticas, e que se pôs a condenar quem ele quisesse. Não à toa, tornou-se uma espécie de favorito dos políticos; ajudou a eleição de Jair Bolsonaro e dele recebeu um ministério importante. Se mais tarde desabou, foi por sua hybris, sua soberba – até porque o governo que o ex-juiz apoiou foi o mesmo que enterrou a LavaJato, que ele havia comandado.

Neste vazio, elegeu-se o mais improvável, o mais inepto dos candidatos (não sei se o cabo Daciolo seria pior, francamente…). E no governo ele se mostrou incapaz de tocar a máquina. Fazia circo com suas motociatas, com suas falas mais adequadas ao SuperPop do que ao Alvorada. O poder ficou entre o Legislativo e o Judiciário. O primeiro, ele agradou vitaminando a privatização dos recursos do orçamento. O segundo, na verdade, limitou suas aventuras.

Um dia se saberá – talvez – por que o STF, que havia tomado as decisões que levaram Lula à cadeia, não hesitando com isso em prender mais milhares de pessoas que não tinham condenação transitada em julgado, mudou de ideia. Terá sido por ser o primeiro a perceber o monstro que a desordem institucional havia parido? Bons jornalistas, bons historiadores deveriam investigar esse momento obscuro de nossa história. Mas continuemos.

Desde 2020, a par de uma oposição bastante desorganizada, quase acéfala devido ao encarceramento de Lula, foi o Supremo que conteve os piores excessos. Verdade que alguns governadores – basicamente, os de oposição (no Nordeste) e o de São Paulo, João Doria – lutaram pela vacina e pela redução da altíssima mortalidade causada pela covid, enquanto o presidente e seus aliados, inclusive o governador do Rio Grande do Sul, que hoje se apresenta como o nome mais fofo da direita, passavam pano. Ah, honra se lhe faça: Ronaldo Caiado, o governador muito direitista de Goiás, também apoiou a vacinação. O Judiciário conteve a marcha da insensatez, do morticínio, ao reconhecer às autoridades locais o direito de limitar as atividades que poderiam espraiar, ainda mais, a morte precoce.

No Judiciário, a chave de defesa da democracia foi encabeçada por Alexandre de Moraes, com apoio de alguns ministros decisivos, em especial Gilmar Mendes. Não foi uma atuação de todos os ministros, havendo aqueles que se aproximaram de Jair Bolsonaro, por pensamentos e palavras, pelo menos.

Aqui, o poder que tinha sido o último a falar, no esvaziamento dos poderes em 2014-16, foi o primeiro a se mobilizar. O Senado, é verdade, enquanto teve Renan Calheiros na direção, também agiu – depois, não. A Câmara também, mas só enquanto Rodrigo Maia a presidia. Depois, não.

Hoje, assistimos à necessária luta do presidente Lula para recuperar os poderes que cabem ao Poder Executivo. Quando lemos que 60% do orçamento da Saúde está capturado pelas emendas parlamentares, vemos de que maneira o planejamento, mais que necessário nessa área, foi sequestrado pela política de bairro. Mas essa luta é mais do que árdua. O presidente da Câmara, Arthur Lira, visivelmente faz de tudo para inviabilizar a recuperação do protagonismo político por quem é a única autoridade eleita por convicção, num pleito que quase sempre passa por um segundo turno, a fim de definir quem representa o País. Temos hoje um quase-parlamentarismo, mas sem responsabilidade parlamentar.

É esta a disputa que hoje vivemos. O Judiciário, que foi o poder de resistência, enquanto o Executivo destruía o país, e o Congresso negociava com ele algum tipo de vantagens, agora está próximo da Presidência, na tentativa de limitar o poder centrífugo que ainda reside nas casas legislativas. Mas não é e não será fácil.

Não é fácil, até porque aquela que seria a base de esquerda do Governo não entende, ou mais provavelmente não quer entender, que nosso presidencialismo hoje é uma aparência. Sim, vivemos numa sociedade que quer o regime presidencial. (Parlamentarismo, aqui, ou é uma simpatia de intelectuais, como eu, boa para conversar num papo-cabeça de bar – ou o recurso que a direita procura sacar sempre que percebe que vai perder a disputa: como aconteceu em 1961, para bloquear o presidente Jango, e várias vezes na década passada, para tirar o PT).

Mas, como “o fraco rei faz fraca a forte gente”, seis anos com dois presidentes que sobreviveram no poder devido a acordos menores viciaram nosso tecido político. Nosso presidencialismo é uma fachada – porém, a esquerda não percebe ou não quer perceber isso, e por todos os males culpa o presidente. Seria ele que teria imposto o arcabouço fiscal, seria ele que negaria aumentos salariais, seria ele que não revogaria a reforma do ensino médio. Em outras palavras – e neste ponto a esquerda é inteiramente representativa do senso comum de nossa sociedade – tudo de bom que acontece, e tudo de ruim, é só do Presidente.

*Renato Janine Ribeiro é professor titular aposentado de filosofia na USP. Autor, entre outros livros, de Maquiavel, a democracia e o Brasil (Estação Liberdade).