Pessoa em situação de mendigo, por Antonio Prata

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Qualquer corrupção linguística para maquiar sua condição serve só para amenizar nossa culpa

Antonio Prata, Escritor e roteirista, autor de “Por quem as panelas batem”

Folha de São Paulo, 04/05/2025

Tenho ódio sempre que ouço essa aberração do politicamente correto: “Pessoa em situação de rua”. Primeiro porque não existe, em nosso idioma, ninguém “em situação” de nada. Nunca estive ou conheci alguém “em situação de gripe”. Lá pelo meio-dia não estou “em situação de fome” e depois da meia-noite nunca me descreveria “em situação de sono”. Não sei de onde importaram essa frase horrível, só sei que ela não foi bem adaptada à nossa “situação de língua”.

Não é a “situação de aberração”, porém, que me revolta mais ao falarmos “pessoa em situação de rua”. É a mentira que a frase, em sua deliberada assepsia semântica, tenta passar. É como se o sujeito que tá dormindo na calçada, em cima de uma caixa de papelão aberta, coberto com aquela manta de proteger móvel em mudança, com uma garrafa (vazia) de cachaça ao lado, sem tomar banho há semanas, sem laços sociais, familiares, talvez viciado em crack, enfim, é como se essa pessoa ferrada estivesse numa “situação” momentânea que logo, logo, vai ser resolvida. Tipo: o cara perdeu o último ônibus pro seu bairro, ficou em “situação de rua”, mas amanhã pegará o busão e estará “em situação de casa”.

Mendigo é o nome dessa pessoa. Mendigo não é alguém que simplesmente não tem casa. Não tá em “situação de rua” e nem é “sem teto”. É sem tudo. É o fundo do fundo do alçapão no fundo do alçapão do poço. Qualquer corrupção linguística para maquiar sua condição serve só para amenizar nossa culpa. É calhorda. É covarde. Em vez de tentar salvar a pessoa da degradação total, fingimos que ela não está assim tão mal. “Só uma situação”.

Fingir é uma grande habilidade nossa, brasileira. Difícil viver e ser são neste país sem fingir barbaramente um monte de coisa. Finge que o cara tá “em situação de rua”. Finge que não vê os miseráveis nos faróis de trânsito. Finge que não vê o mar de favelas sob o Rodoanel. Finge que não teve tentativa de golpe. Finge que é normal o “o orçamento secreto”.  Finge que a CBF tem algum interesse na melhoria do futebol brasileiro. Pensando bem, não é só um fenômeno brasileiro. O mundo finge que não tá acabando.

Tudo isso pra chegar na grande mágica, no grande fingimento, não só semântico, mas concreto, urbano, proposto pelo vice da prefeitura: trocar mendigos por carros embaixo do Minhocão. Tirar “pessoas em situação de rua” e colocar “carros em situação de estacionamento”.

Se a gambiarra semântica da esquerda parece bizarra, por “amaciar” a existência dos mendigos, o que a direita propõe agora em São Paulo vai muito além. É a metonímia feita ação. É a falta de vergonha: “vamos sumir com esses pobres!”. Vai ter matéria mostrando como a área do Minhocão ficou mais bonita. Mais segura. Vai gerar renda. Não tenho a menor dúvida. Varrer a miséria pra longe sempre melhora o perto. Eu, se morasse ali, não seria hipócrita. Adoraria a medida. A questão é que esses pobres existem. Continuarão na rua, em outra rua. Na frente da casa de outra pessoa. E continuarão sem casa, sem trabalho, sem banho, sem porra nenhuma, “em situação de mendigo”, em algum lugar.

 

O dilema dos bancos centrais após as tarifas, por Ana Paula Vescovi

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Autoridades monetárias enfrentam desafio histórico, sem registro em mais de meio século

Ana Paulo Vescovi, Economista-chefe do Santander Brasil

Folha de São Paulo, 04/05/2025

Estamos testemunhando uma transformação no comércio internacional, na geopolítica e na tecnologia. A expressão “mudança de regime” tem sido muito frequente nos últimos dias. A crença predominante é que estamos diante de uma ruptura nas relações produtivas e políticas que reconfigurarão a economia global nos próximos anos.

A ausência de clareza nunca foi tão alta. O Índice de Incerteza da Política Econômica nos EUA, medido por Baker, Bloom & Davis, atingiu seu ponto mais alto desde 1985, superando em quase 100% o recorde anterior, da pandemia da Covid-19. Esse cenário de imprevisibilidade contaminou o mundo, elevando o Índice Global de Incerteza da Política Econômica de volta ao pico observado na crise sanitária.

Anualmente, na primavera do hemisfério Norte, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial realizam reuniões em Washington (EUA), para discutir a economia global e seus impactos regionais. Paralelamente, ocorrem encontros com gestores públicos, como ministros da Fazenda, secretários do Tesouro e diretores de bancos centrais. Neste ano, a mudança de gestão nos EUA, com a política tarifária do governo, foi o tema central.

O “tarifaço de Trump” é inédito: 10% no geral; 25% em alguns setores; e medidas tarifárias recíprocas “individualizadas”, elevadas em razão do tamanho do déficit comercial dos EUA com outros países. A China, com retaliação, enfrenta alíquotas superiores a 100%. As tarifas médias sairiam de cerca de 2,5%, no final do ano passado, para mais de 20%.

A maioria aposta em um cenário nos EUA de estagflação, quando há baixo crescimento com inflação elevada, devido ao choque de oferta causado pelo aumento das tarifas; e uma desaceleração mais acentuada na China, que enfrenta um choque de demanda.

Segundo o presidente do Federal Reserve (Fed, o banco central dos EUA), Jerome Powell, a política de tarifas é algo nunca visto na história moderna, o que leva a interpretar que o Fed navega em águas desconhecidas. Com taxas de importação elevadas e alta incerteza, o risco é o de crescimento fraco, desemprego alto e inflação acelerada. Recentemente, houve um descolamento entre expectativas de inflação, crescentes, e projeções de crescimento, que indicam desaceleração. Se a desaceleração for brusca, o Fed priorizará seu mandato em relação ao crescimento e poderá reduzir taxas de juros no segundo semestre. Ademais, analistas esperam uma política monetária mais cautelosa e reativa, o que poderá mudar o patamar da inflação nos EUA.

No Brasil, os membros do Copom têm sido cautelosos. Qual será o impacto das tarifas? Haverá recessão ou desaceleração suave? O choque de oferta afetará a inflação?

O Banco Central brasileiro está comprometido com a meta de inflação de 3%, ainda que em um horizonte mais longo. É possível esperar uma “desinflação oportunística” se a desaceleração global, especialmente na China, abrir capacidade ociosa na economia brasileira, ajudando a controlar a inflação por aqui.

Contudo, as medidas fiscais e parafiscais expansionistas anunciadas pelo governo desafiam o Banco Central. Com expectativas de inflação desancoradas e crescentes para o próximo ano, acreditamos que haverá mais uma alta da Selic na próxima semana, antes da pausa em junho. Se a desaceleração global e local se confirmar, o ciclo de corte de juros no Brasil poderá começar ainda neste ano, mais lentamente, considerando dois cortes nos EUA no segundo semestre.

Entretanto, os bancos centrais não podem resolver tudo. Trata-se de um ambiente no qual as instituições edificadas desde o pós-Segunda Guerra Mundial tornam-se mais frágeis.

Se a guerra comercial ganhar contornos mais suaves, com acordos bilaterais de comércio com Índia, Japão, China, União Europeia e Canadá e México (USMCA), as tarifas globais poderão ser mais altas que o padrão anterior, mas mais baixas que as anunciadas no “Liberation Day” — definição dada por Trump ao dia 2 de abril de 2025, quando anunciou as novas alíquotas tarifárias. Isso reduziria os impactos disruptivos nos mercados e na economia real. Caso contrário, as políticas econômicas globais precisarão se reposicionar rapidamente, devido a um possível forte rebalanceamento do fluxo de capitais entre as regiões do planeta.

Há uma quebra de confiança que levará países e regiões a buscar maior autonomia em energia, terras-raras, tecnologia (semicondutores), defesa militar e até em temas sanitários, como medicamentos e equipamentos hospitalares. Essa busca por autonomia tende a estar associada a conflitos geopolíticos.

As rupturas nas cadeias produtivas durante a pandemia deixaram um gosto amargo. Subsídios a setores estratégicos e tarifas irão reconfigurar as cadeias produtivas globais. A Europa já mudou sua abordagem, reforçada pelo estímulo fiscal trilionário anunciado pela Alemanha. A China irá endurecer sua postura comercial e militar e buscar refazer suas alianças, inclusive no Oriente Médio.

Os bancos centrais terão de lidar com temas nunca tratados nos manuais de economia. A quebra de regime tão comentada implica dizer que os incentivos econômicos não mais ditarão as relações comerciais entre as nações, e sim a estratégia de domínio de cadeias produtivas e de tecnologias estratégicas. Antever os possíveis impactos da inteligência artificial generativa sobre a produtividade global ainda se coloca como um desafio.

Em tempos tão incertos, a melhor reação para a política monetária passa por estratégia de reação transparente ao risco inflacionário, gradualismo e moderação.

 

O cérebro ideológico, por Hélio Schwartsman

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Livro de neurocientista política mostra que indivíduos capturados por ideologias passam por transformações neurológicas.

Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”

Folha de São Paulo, 04/05/2025

Uma boa pedida para quem quer entender melhor os tempos estranhos em que vivemos é “The Ideological Brain”, da neurocientista política Leor Zmigrod.

Gostamos de imaginar que aqueles que abraçam ideologias com as quais não concordamos são pessoas rasas, que nem se dão ao trabalho de pensar direito sobre as questões em relação às quais se posicionam. Zmigrod mostra que não é bem assim.

Na mais simples de suas muitas definições, a ideologia é um tipo de narrativa que conta uma história atraente sobre o mundo. Mas, diferentemente das histórias produzidas pela cultura, as da ideologia têm caráter absolutista e cobram adesão dogmática. Não toleram contestação e vêm com prescrições. Quem se torna presa de uma ideologia passa por transformações cerebrais profundas, que deixam marcas físicas. Em casos extremos, a ideologia sequestra o próprio pensamento. A pessoa se torna menos singular, menos curiosa, menos livre.

“The Ideological…” não é um livro difícil, mas não simplifica. As inafastáveis descrições neuroanatômicas estão presentes, mas restritas a poucas passagens. Idem para os vários experimentos (da própria autora e de outros) que tentam mostrar quais são os tipos psicológicos mais vulneráveis à ideologia. A rigidez cognitiva é provavelmente o melhor preditor de suscetibilidade.

Histórica e filosoficamente informada (graduou-se em Cambridge), Zmigrod traça a genealogia do termo ideologia, cunhado por Louis Claude de Tracy no século 18 para designar o que deveria ser a ciência que estuda como temos ideias.

Uma desavença entre De Tracy e Napoleão fez com que, após campanha do corso, a palavra fosse ganhando contornos pejorativos até tornar-se quase que um palavrão com Karl Marx.

Algo que chama a atenção é a transparência com que Zmigrod apresenta as limitações e os pontos fracos de suas pesquisas. Se é o antidogmatismo que caracteriza o pensamento não ideológico, Zmigrod nos oferece uma prova prática de como agir.

 

O socialismo e a excepcionalidade chinesa, por Elias Jabbour

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 Elias Jabbour – A Terra é Redonda – 02/05/2025

Chegou a momento de discutir a excepcionalidade chinesa enquanto um socialismo com as características daquela formação histórica que está impondo vitórias sucessivas ao seu próprio povo e derrotas ao imperialismo

O sério e respeitável intelectual e militante Valerio Arcary nos entregou recentemente sua análise particular do processo em curso na China. O texto chamado de “A excepcionalidade chinesa”, publicado no site A Terra é Redonda é mais uma prova da vasta cultura política e histórica de Valerio. Na verdade, ele não trata de uma única excepcionalidade chinesa, mas de algumas – sendo que a linha de cada uma das excepcionalidades leve à constatação de o país ter restaurado o capitalismo, amiúde não ter transformado o regime político; o que em si já instigaria um estudo.

O núcleo do argumento de Valerio Arcary é muito claro e vai na direção dos riscos da esquerda mundial em abraçar um novo campismo em torno da China. Vamos aqui trocar ideias sobre alguns pontos levantados no texto de forma não de criticar os pressupostos do escrito, mas no sentido de demonstrar que o desenrolar da experiência chinesa nos demanda não somente uma completa reformulação da gramática política sobre as experiências socialistas.

Devemos rediscutir o próprio socialismo diante dos inegáveis avanços à classe trabalhadora chinesa de um projeto que, antes de mais nada, advoga o socialismo. E não outro “ismo” como nos lembra Xi Jinping.

O verdadeiro “campismo”

De imediato não acredito neste risco. Valerio Arcary fala em “o melhor da esquerda mundial” e os riscos dela se alinhar aos chineses. Em primeiro lugar, o que seria esta esquerda mundial? Se for a esquerda baseada em um marxismo que não se livrou da Europa e que hoje é hegemônica em todo o mundo onde PCs não ocupam o poder político, o risco do campismo não existe. Esta esquerda rejeita as experiências socialistas e observam a China com a mesma cosmovisão que os europeus enxergam os negros, índios, latinos etc.

O que deverá ocorrer, e já ocorre, é a crescente simpatia, de forças nacionalistas revolucionárias que hoje pipocam na África e desalojam governos pró-imperialistas, pela experiência chinesa. São bandeiras chinesas que as pessoas empunham no Níger, Burkina-Faso e alhures como inspiração às suas lutas. Neste sentido, o melhor da esquerda mundial não está no Brasil, na Europa e nos EUA e sim na África onde essa esquerda que enfrenta e derrota o imperialismo francês não é financiada por fundações e/ou ONGs de partidos socialdemocratas europeus como vemos no Brasil e na América Latina operando uma tragédia política de grandes proporções.

Logo, o campismo é entre a esquerda “Open Society” e as forças políticas que integraram o marxismo às suas realidades nacionais. Assim ao africanizar o marxismo, forças políticas que operam no campo oposto da “Open Society” nos entrega esperança, não o niilismo da esquerda no ocidente e sua franja.

A China aí é força política com amplo e decisivo papel positivo no fortalecimento da consciência nacional e revolucionária da periferia africana e asiática do sistema. Suas relações “Sul-Sul” via Iniciativa Cinturão e Rota demonstram com clareza as diferenças entre a globalização financeira que “africanizou a África” e as tendências que o desenvolvimento chinês entrega aos povos do mundo.

Equívocos básicos

Valerio Arcary comete equívocos básicos em seu texto. Por exemplo, Deng Xiaoping não foi preso e torturado na Revolução Cultural, nem tampouco existe uma formulação oficial do governo chinês de uma “NEP de longa duração”, “transição ao capitalismo” e em seguida “um novo giro histórico e reiniciar a passagem ao socialismo.

A formulação oficial é simples objetiva: a China encontra-se na etapa primária do socialismo, etapa esta caracterizada pela convivência de diversas formas de propriedade sob a dominância da propriedade pública. Outro equívoco básico é a colocar acento no “modelo econômico que aprofunda a desigualdade social por uma etapa indefinida não pode ser considerada socialista”.

Aliás, concordo com Valerio Arcary nisso, mas os dados dizem o contrário. Uma pesquisa rápida e fácil nos demonstrará a que as desigualdades sociais e territoriais na China está em curva descendente há pelo menos 20 anos e que esta mesma burguesia que, segundo ele, se favorece de uma ilimitada acumulação de capital tem visto seu patrimônio cair em um terço nos últimos cinco anos, fruto de uma operação em que a contabilidade da firma se submete cada vez mais à contabilidade social. Aqui vou dispensar as fontes, apenas sugerindo pesquisar cada afirmação que exponho aqui.

Valerio Arcary não demonstra conhecimento das políticas executadas pela governança chinesa voltadas ao controle da expansão do capital privado, o verdadeiro enquadramento de sua burguesia a uma ordem política que se tem demonstrado cada vez mais hostil a ela e a inexistência de elementos de contabilidade da firma nas decisões de investimentos estratégicos: o capitalismo é incapaz, em qualquer momento histórico, de entregar 45000 km de trens de alta velocidade em apenas vinte anos.

Outro ponto, que não se trata de um equívoco em si, é o fato de no texto não existir nenhum dado que demonstre de fato que houve uma restauração capitalista na China. Valerio Arcary se contradiz ao propor um estudo capaz de entender a tal da “contrarrevolução social” (sic) sem mudança de regime. Qual o regime anterior a 1978? Não podemos tratar, também, como equívoco a sua alusão ao “massacre” da Praça Tiananmen de 1989. Guarda certa ingenuidade não perceber ou mesmo não se dar ao trabalho de ler os relatórios liberados pela CIA sobre aqueles acontecimentos.

O mesmo pode se dizer sobre a comparação entre Deng Xiaoping e Mikhail Gorbachev. São figuras históricas e políticas antagônicas, inclusive na gramática política chinesa o homem que destruiu a URSS é tratado como um traidor e idiota (adjetivo usado por Deng Xiaoping). As reformas econômicas chinesas nada tem a ver com a Perestroika e a Glasnost. A primeira legitimou um Estado Socialista e as outras duas foram funcionais à destruição da primeira experiência socialista de nossa época.

A “burocracia”

Um dos problemas que identifico nas formulações da corrente política a qual se afilia o professor Valerio Arcary é um certo universalismo de noções pari passu a um envelhecimento das mesmas. Por exemplo, o que não se encaixa em um check-list pode ser considerada “restauração capitalista”. O mesmo se aplica ao conceito amplamente utilizado, e de forma muito séria e competente por León Trótsky, de “burocracia”.

É inescapável em trabalhos de trotskistas o refúgio nessas noções. Aqui eu sugiro substituir o universalismo (um desvio claramente liberal) pela categoria de formação econômico-social. O que significa que a burocracia descrita por León Tróstky, herdeira do czarismo, pouco tem a ver com a burocracia herdeira do modo de produção asiático.

Evidente que a tendência da burocratização é o aburguesamento e digo mais, à corrupção. Esse fenômeno também ocorre na China e é inegável. Não proponho passar por cima desta contradição, que não se tornou uma “contradição antagônica” na China, mas observar que essa burocracia simplesmente realiza: retirou 800 milhões de pessoas da linha da pobreza em 40 anos, construiu 45000 km de trens de alta velocidade em 20 anos, construiu uma imensa economia baseada no setor público capaz de rivalizar a colocar de joelhos o capitalismo estadunidense.

E entrega aumentos salariais nos últimos dez anos acima da inflação, do crescimento do PIB e da produtividade do trabalho, enquadra e coloca limites na burguesia, expropria seus bens e delibera pela distribuição ao povo, constrói um sistema de assembleias populares e de comitês de bairros que foram fundamentais na mobilização de quatro milhões de profissionais da saúde voluntários para enfrentar a morte em Wuhan, planeja a destruição criativa schumpeteriana a ponto de deslocar 200 milhões de chineses do campo às cidades em dez anos sem o risco de favelização etc. etc. etc.

Esta burocracia é herdeira da casta de burocratas que exerciam a administração estatal desde antes de Cristo ocupada com o gerenciamento e execução de imensas obras públicas. A perda de capacidade desta burocracia em entregar grandes obras levava massas camponesas influenciadas por Laotsé a derrubar dinastias.

Ao invés de enveredar a discussões abstratas sobre o “substitucionismo social” seria mais interessante entender a dialética entre o papel histórico do camponês chinês, sua capacidade de pressão sobre a burocracia e as razões de a China não ter sucumbido à contrarrevolução de 1989: os camponeses estavam com o socialismo e não ladeando com um levante pró-imperialista. Hoje esses camponeses são trabalhadores urbanos responsáveis por rebeliões de diversa ordem, colocando contra a parede os herdeiros de Mao Zedong.

Não se entende a China sem conhecer profundamente sua história. O que significa que se é atual a velha máxima do “mandato dos céus ser revogável pelo povo”, não é difícil concluir, conhecendo as minúcias de como aquela sociedade funciona, e a história dessas minúcias, que se trata de um país onde ceder a frágeis noções de “país fechado” e “autoritarismo” para descrever um país e sociedade onde o niilismo não comparece e onde se respira futuro.

“Defesa incondicional de realizações”?

Em 1949 a expectativa de vida dos chineses era de 35 anos. Hoje ultrapassou os EUA. As mulheres estavam submetidas ao processo de enfaixar seus pés de forma a criar uma sinistra forma artística para agradar os homens e hoje ocupam postos de destaque em todos os âmbitos da sociedade. O Tibet era uma semicolônia inglesa submetida por uma teocracia escravista e hoje seu padrão de vida melhora de forma mais rápida que as verificadas em outras regiões do país. A China derrotou o imperialismo em sua guerra civil e na Guerra da Coreia e hoje a derrota novamente no campo comercial e tecnológico.

Os avanços sociais incontestes aprofundados desde 1978, não reduzindo à eliminação da pobreza extrema, mas também a possibilidade de um camponês pobre ser submetido a intervenções cirúrgicas complexas e gratuitas há milhares de km de distâncias por um médico mediado por esquemas de inteligência artificial deveria por si ser um desmentido ao despautério de apontar na China uma “contrarrevolução social” quando ocorre simplesmente o oposto e sua realização não se separa do poder político erigido por uma longa luta revolucionária.

Nenhum cidadão chinês minimamente informado concordaria com uma afirmação tão irreal quanto absurda vendo camponeses pobres se transformando em cientistas e uma vibrante democracia de base enviar mais de 3000 emendas às resoluções da última Assembleia Popular Nacional. A decadência da ciência social ocidental, que atinge duramente o marxismo, não está no não reconhecimento dos feitos da revolução chinesa e sim na elaboração de noções sem nenhuma conexão com aquela realidade e a igualando com completa miséria extrema que assola um país, esse sim, de capitalismo dinâmico como a Índia. É o fundo do poço.

Reconhecer os feitos das revoluções socialistas é um ato de humanismo em um mundo onde a miséria, a fome e a guerra se tornam a regra. É negar a tendência ao ceticismo e ao niilismo e uma quase adesão ao racismo; pois é de racismo que se trata quando lemos os veredictos de intelectuais sem nenhum compromisso com o poder político e influenciado pela decadência do marxismo ocidental. Não é o caso de Valerio Arcary, evidente. A humanidade pode vencer e qualquer indicador social chinês nos demonstra isso.

Seria “campismo” o reconhecimento desses feitos? Não. Seria demonstração de fé no futuro. Isso não significa fechar os olhos para as imensas contradições que afetam a sociedade chinesa. A corrupção, a luxuria, a existência (cada vez menor) de bilionários e milionários, crise ambiental, fosso social formado por imensos equívocos de políticas executadas na segunda fase de reformas.

Tudo isso está apontado em meus livros e artigos sobre a China. Mas só se cria contradições onde o Partido Comunista se propõe a ser motor do desenvolvimento. Nada do que ocorreu após 1978 foi planejado milimetricamente. Não, o que veio foi um gigantesco processo de desenvolvimento e suas contradições proporcionais a este processo, além do altíssimo preço deste desenvolvimento.

A “prova do pudim” de um Partido Comunista no poder está no exercício absoluto de seu poder sobre todas as esferas da produção, da finança e impor à burguesia o seu ritmo e objetivos. Afora isso, este teste também se estende à demonstração de capacidade de o Partido Comunista em perceber a contradição e indicar rumos à sua superação.

Desafio alguém me mostrar que o Partido Comunista da China não enfrenta, e está vencendo e apontando rumos, a todas as contradições criadas pelo seu processo de desenvolvimento.

Discutindo o socialismo em nossa época como adultos

A experiência chinesa, imersa tanto em contradições quanto em ferramentas políticas e institucionais para enfrentar suas contradições, deveria nos obrigar não a temer um “campismo” ou nos refugiar em noções criadas na década de 1930 para compreender os limites da URSS sob a ótica de uma corrente política derrotada e sem nenhuma experiência pratica de poder político desde 1917. Deveríamos os render a mais abstrações (visão de processo histórico) e menos prisões no abstrato (visão ideológica e imersa em apriorismos).

Chegou a momento de discutir a excepcionalidade chinesa enquanto um socialismo com as características daquela formação histórica que está impondo vitórias sucessivas ao seu próprio povo e derrotas ao imperialismo vistas somente na 2ª Guerra Mundial.

É preciso encarar o objeto e penetrar nele; descobrir as suas regularidades e coerência interna. Observar como adultos seria colocar todas as contradições daquele processo em perspectiva de movimento real da mesma forma como observamos seus encaminhamentos resultando em um país estranhamente capitalista que nunca passou por uma crise. As estruturas de propriedade baseadas na propriedade pública e crescente participação de conselhos de trabalhadores em decisões de investimento, o amplo controle do Partido Comunista sobre o setor privado.

É descobrir como após 75 anos de poder político exercido no então país mais pobre do mundo, hoje observamos essa forma histórica encaminhando soluções tanto às três questões centrais de nossa época: o desenvolvimento, a paz e a crise climática. É inescapável não colocar, repetindo, que a base dessas realizações é o próprio poder político que se propõe a revolucionar a sua sociedade em saltos qualitativos e fazendo com que a ciência penetre nos poros de seu tecido social.

No detalhe, é ir fundo na investigação de como aquela experiência consegue dar início, meio e fim a todos os projetos as quais ela se propõe. Aqui, percebemos que a ciência do projetamento criada por Ignacio Rangel se realiza na China sob diversas formas. Por exemplo, o sucesso de um grande projeto depende da equalização das estruturas de custo e benefício de todas as cadeias produtivas envolvidas, por exemplo, no projeto de erradicação da pobreza.

A prática de construção de mais de cem anos de socialismo no mundo nos coloca a evidência empírica de que somente o socialismo é capaz de operar essa equalização e que a mesmo sob o capitalismo hoje é impossível e quando foi possível (consenso keynesiano) ocorreu às custas de desperdício imenso de recursos.

O socialismo ainda está no início de sua trajetória histórica, portanto com regularidades ainda em construção. Em nossa época, a experiência chinesa pode nos entregar uma definição de socialismo que a relaciona com a transformação de ciência em instrumento de governo.

Penetrando à fundo na experiência, percebemos que o “socialismo com características chinesas” se distingue dos estados desenvolvimentistas, além da natureza do poder político e da estrutura de propriedade, pelo fato de dar forma a um Estado Socialista que absorve a natureza do Estado Desenvolvimentista e a supera de forma que se demonstre capaz de introduzir contradição no seio do organismo econômico, gerando movimento e corrida da sociedade empenhada no exercício de observar “just in time” a matriz insumo-produto e entregar as soluções institucionais para promover a transferência intersetorial de recursos.

Está aí a excepcionalidade chinesa. O contrário seria admitirmos que o capitalismo – dados os feitos da experiência chinesa – tem um ainda largo caminho civilizatório pela frente. Precisamos sair do jardim da infância que ainda domina o debate sobre o socialismo.

Elias Jabbour é professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ. Autor, entre outros livros, junto com Alberto Gabriele, de China: o socialismo do século XXI (Boitempo) 

A corrosão da cultura acadêmica, por Márcio Luiz Miotto

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Márcio Luiz Miotto – A Terra é Redonda – 01/05/2025

A universidade brasileira está sendo afetada pela ausência, cada vez mais notável, de uma cultura leitora e acadêmica

É notório que a universidade brasileira sofre diversos ataques externos. Mas há algo ocorrendo dentro dela e que talvez ofereça outros perigos para sua própria existência. Trata-se da ausência, cada vez mais notável, de uma cultura leitora e acadêmica.

A falta de cultura leitora diz respeito à notável repulsa (sistemática? crescente?) de muitos universitários em enfrentar os textos, argumentos, deduções de fórmula, memorizações de observação (enfim: desafios, lógicas internas, problemas inerentes aos conteúdos que estudam), fazendo com que o “ensino superior” se transforme numa série de conteúdos e programas rasos, cabíveis em manuais simplificados e plataformas facilmente voltadas ao online.

Essas generalizadas faltas de base e/ou negligência, que provavelmente têm origem fora da universidade (via redes sociais, o “horror ao textão” cultivado nos últimos anos, a pandemia, os problemas de formação etc.), sob certos aspectos tornam-se interiores a ela, pois com frequência as universidades encontram dificuldades para combater certo senso comum não-leitor e atitudes refratárias ao estudo. Na universidade dever-se-ia aprender a ler textos, linguagens e argumentos complexos, a deduzir fórmulas, a (re)construir lógicas e arquiteturas conceituais etc.

Disso advém a corrosão da cultura acadêmica. Sem um senso comum leitor de base ou certa disposição espontânea para uma cultura leitora, as demais práticas constituintes da universidade tendem a esfarelar ou implodir. E a universidade tende a se transformar, ou na melhor das hipóteses a se confundir com outros tipos de ensino não necessariamente universitários, tais como o técnico, o profissionalizante etc.

O resultado visível da erosão da cultura acadêmica é o enfraquecimento da pesquisa, da extensão, da assistência estudantil (a qual permitiria dedicação maior aos afazeres universitários), dos projetos acadêmicos ligados ao ensino (monitorias que deveriam ser iniciações à docência e não meras aulas de reforço, redução das pesquisas monográficas, rarefação dos eventos científicos ou de bolsas de atividades acadêmicas etc.), enfim, daquilo que compõe a universidade no que ela tem de público e universalista.

Essas ameaças à cultura acadêmica talvez sejam reforçadas por algumas reações das próprias universidades a isso. Um exemplo notável é a perspectiva que reduz a pedagogia ao pedagogo, isto é, que individualiza o ensino na simples figura do professor, fazendo dele uma espécie de self made man, de “empresário de si”, enfim, transformando-o em algo como um animador de plateia, alguém cujas estratégias devem necessária e suficientemente garantir a educação (pois a pedagogia, enfim, reduziu-se ao pedagogo).

Se não há um cenário de fundo delimitando o que significa estudar e quais deveriam ser os horizontes de estudo, ou mesmo se esse cenário perdeu seu valor, ao fim resta à figura individual do professor a ingrata tarefa de transformar a pedagogia em picadeiro (sob cenários que, aliás, também são pressionados pelo tema da evasão das universidades). A partir daí, as fórmulas de sucesso e insucesso docente tendem a se resumir em receituários pessoais, convicções de ego, perfis e canais de rede social e expressões do tipo “é, mas comigo (não) é assim”.

A redução da pedagogia ao pedagogo ocorre devido ao apagamento de uma cultura de fundo, aquela que serviria de base para formar eventuais projetos pedagógicos e reunir atuações individuais. E essa redução, bem como esse apagamento, são especialmente vistos nas disciplinas de ciências humanas.

Nas ciências naturais, por exemplo, há debates recorrentes entre aqueles professores que não abrem mão da forma e do rigor (pois afinal, uma fórmula independe de circunstância) e os outros que defendem que o rigor não poderia ser destituído de preocupações pedagógicas ligadas aos perfis dos alunos. Seja qual for o desfecho, ambos os termos desses debates dizem respeito (ou deveriam dizer) a critérios pedagógicos de fundo, os quais presumivelmente servem de horizonte à atuação de qualquer profissional da área, independente de suas escolhas pedagógicas individuais.

Afinal, quer se penda para um ou para o outro lado desse debate, algo permanece o mesmo: um estudante que se depara com uma matéria de ciências exatas sabe que ali haverá questões direta ou indiretamente ligadas a cálculos, experimentos etc., cabendo à pedagogia a pergunta sobre como oferecer melhor essas racionalidades.

Algo correlato poderia ser visto nas matérias de ciências biológicas: a não ser que o professor ludibrie o aluno, independente do cenário uma matéria como a de anatomia, para ser razoavelmente ensinada, sempre exigirá uma racionalidade analítica detalhada, baseada em métodos de observação e certos rituais de análise e memorização. Sem o que, caberia imaginar um oftalmologista que desconhece a anatomia do olho, um neurocientista que desconhece as localizações cerebrais, um fisioterapeuta que desconhece a anatomia do corpo etc.

Em humanidades, entretanto, o apagamento de um horizonte leitor e acadêmico de fundo, e a redução da pedagogia ao pedagogo, por vezes são ainda mais visíveis, dando vazão a práticas – e juízos – bem diversos. É o que alimenta preconceitos como o de que os cursos de humanas seriam sem objetividade, eivados de meras opiniões (“cursos-coxa”, como se diz em algumas gírias paulistas), ou ainda desnecessários ou supérfluos.

Ou em via contrária, há também os juízos de que matérias de humanidades seriam atraentes não devido ao rigor ou ao conteúdo, mas a motivadores ocasionais e arbitrários como as discussões em grupo, os momentos de “descontração” ou o carisma individual do professor, a emulação de memes, a confusão entre a divulgação científica (tão bem feita por gente como Leandro Karnal ou Mario Cortella, dentre outros) e o estudo da ciência etc.

Essa individualização das estratégias, unida ao apagamento da cultura do texto, é muito bem descrita por textos como O método da leitura estrutural, de Ronaldo Macedo (MACEDO, 2007). A simples necessidade de que métodos de leitura sejam ensinados aos ingressantes do estudo superior evidencia que a leitura já não é um item óbvio e natural (como o era na época das fotocópias – pois mesmo se as pessoas apenas fotocopiassem, isso não disfarçava que havia uma injunção materialmente dirigida à leitura generalizada…), e o esforço dos professores para que os alunos leiam significa, mais uma vez, a simples inexistência de uma cultura difundidamente leitora.

Mas há mais: Ronaldo Macedo demonstra em seu texto algumas pesquisas nas quais o Brasil teria ficado entre os últimos lugares no quesito “leitura” (MACEDO, 2007, p. 14). Motivos? Não se trata de sustentar o velho preconceito da diferença entre as escolas “ricas” versus as “pobres”, pois Macedo destaca que os mesmos prejuízos ocorreriam em ambas. Trata-se, sim, de mostrar que quando o brasileiro estuda, e mesmo nas ditas “melhores” escolas, ele não estuda para compreender e articular a lógica de um texto, e sim para resolver questões demandadas por testes (isso quando, pelo contrário, não se abandona à simples opinologia).

Em miúdos: muitos brasileiros lêem textos (quando lêem) de forma apenas provocada e dirigida, isto é, de modo heterônomo e orientado por terceiros, como se respondessem a questões de teste, e isso em áreas nas quais escolheram estudar. Isso não à toa lembra as críticas de Richard Feynman ao ensino de física brasileiro dos anos 1950, nas quais “os estudantes haviam memorizado tudo, mas desconheciam o significado” de suas matérias (FEYNMAN, 2017).

Diante disso, para além do apagamento da cultura do texto e da redução das iniciativas a estratégias pedagógicas individuais, talvez não seja inútil lembrar que as ciências humanas, todas elas, também possuem uma cultura de fundo. Bastaria, para detectar essa cultura, retornar ao século XIX e à querela dos métodos dos alemães – a mesma que instaurou a psicologia científica (como a de Wilhelm Wundt), os debates sobre explicação versus compreensão desde Wilhelm Dilthey, as abordagens explicativas e compreensivas em sociologia, as contra-reações positivistas e assim por diante. Desde seu surgimento, seja subordinando-se às ciências naturais, seja – pelo contrário – apelando à sua irredutibilidade e especificidade, as ciências humanas não deixaram jamais de reclamar para si mesmas um espaço próprio.

E se há alusão a um espaço próprio, isso significaria no mínimo que há algo como um campo (por mais disperso que seja, e é, o que não significa que isso não tenha uma história e uma lógica), com contribuições e racionalidades específicas. Dentro das ditas “ciências humanas”, por mais diferenciado que seja um estudo sobre dança contemporânea, sobre uma tribo originária ou sobre história da filosofia, tem-se o pressuposto mais geral de que tais estudos não implicam imediatamente o mesmo tipo de racionalidade daquele praticado por um físico ou um biólogo. O que não significa dizer que ali não exista um outro rigor, encontrável na especificidade de cada ramo das ciências humanas, com seu estudo, textos e lógicas próprios.

Há, sim, uma cultura de fundo em humanidades, e ela perpassa o rigor conceitual (mesmo que não seja o do cálculo, o do experimento ou o das descrições anatômicas) e a análise textual, bem como outros métodos desenvolvidos em cada área específica. O que, mais uma vez, supõe o seguinte: para além das escolhas individuais dos docentes, há ou deveria haver um cenário de fundo, uma figura de rigor, por mínima e abrangente que seja, está sim a orientar as atuações individuais. Grosso modo, tal como se dizia no início do século XX, independente das ciências humanas desejarem ou contestarem uma objetividade naturalista, elas não deixam de ser, cada qual a seu modo, ciências “de rigor”.

Isso deveria dizer respeito, como se ilustrava mais acima, a uma cultura leitora e acadêmica, aquela que permitiria um estudante apontar o dedo e dizer “isso são humanidades” – sem reduzir a questão ao simples carisma do professor ou aos preconceitos de frouxidão de conteúdo. Se um estudante de exatas reconhece sob o fundo de suas matérias o cálculo como uma das racionalidades inerentes ao campo, e o de biológicas reconhece o raciocínio analítico-anatômico, por que o de humanidades muitas vezes, ao apontar o dedo, aponta ao professor para falar bem ou mal do assunto, e quando aponta ao campo costuma enxergar incertezas (isso quando enxerga algo)?

Não deveria haver um reconhecimento geral de que, diante de uma matéria de humanidades, haveria ali uma racionalidade baseada por baixo em análise de textos e rigor conceitual? Pois estes dois componentes – o rigor frente ao texto e aos conceitos – são, no fim das contas, comuns em todas as áreas.

Um aluno de ciências humanas que vai estudar estatística reconhece espontaneamente que ali haverá cálculo. Sendo isso dado em seu currículo, ele também reconhece que, mesmo que não utilize estatística depois, sua formação será precarizada caso não aprenda, pois aquilo lhe servirá de componente formativo. E o mesmo ocorre para quem precisa estudar peças anatômicas ou observar tecidos e células num microscópio.

Afinal, universidade não se reduz a curso profissionalizante. Mas por que, então, certa dúvida sobre o correlato disso em ciências humanas (e até em alguns cursos de formação)? Por que motivo, quando as matérias são de ciências humanas, a necessidade de ler textos e analisar conceitos (no nível mais amplo e geral, pois sabe-se que não se reduz a isso) aparece em tantos cenários como algo não espontaneamente óbvio? Por que aparece como algo que até poderia ou deveria ser minimizado ou desviado por outros subterfúgios?

De todo modo, conforme sugerido, a crise do rigor, ou da cultura acadêmica, não pertence apenas às humanidades (a citação acima de Feynman que o diga). E a crise das universidades não é apenas interna, embora internamente também diga respeito a certa erosão de uma cultura leitora e acadêmica.

Mas a resolução dessa crise não poderia ser reduzida a critérios individualizantes, pois estes são os mesmos que compõem o problema. Há quem gostaria de desfazer de vez o caráter acadêmico das universidades, reduzi-las a cursos online sob conteúdos pré-formatados, sem pesquisa e extensão.

Igualmente, há quem queira reduzir a atuação docente a uma espécie evolucionismo ingênuo (abandonando cada professor a uma fórmula de “esforço” e “eficácia” individuais, o que inevitavelmente redunda em comportamentos de sobrevivência e manada, cartéis e alianças de ocasião para amenizar o primado da competição), há quem queira reduzir a pedagogia ao pedagogo. Pois aí estão também os vínculos de trabalho precarizados e provisórios, bem como as inviabilizações da pesquisa e da extensão a longo prazo. A redução da pedagogia ao pedagogo e a individualização dos processos de ensino contribuem, enfim, para aquilo mesmo que se deveriam combater.

O reconhecimento de que cada campo tem especificidades próprias, a defesa de cada racionalidade inerente ao campo, a composição de cenários pedagógicos de fundo, talvez não acabem com a erosão da cultura acadêmica e leitora (pois muito dela é, como se disse, exterior à universidade). Mas a universidade, e cada docente, não são passivos diante disso. A maior prova é a de que a escolha mais simples ocorre por vezes sob a via individual. Mas afinal, isso também prova que há escolha

Marcio Luiz Miotto é professor de psicologia na Universidade Federal Fluminense (UFF).

Bibliografia

FEYNMAN, R. Richard Feynman: sobre a educação no BrasilMedium, 2017.

FEYNMAN, R. Surely You’re Joking, Mr. Feyman! [s.l: s.n.].

MACEDO, R. O método de leitura estrutura Cadernos Direito GV, v. 4, n. 2, 2007.

 

 

EUA – o novo paraíso fiscal global? por Joseph Stiglitz

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Joseph Stiglitz – A Terra é Redonda – 01/05/2025

Donald Trump está transformando a América em um paraíso fiscal, segue desmantelando salvaguardas e alimentando a desigualdade por meio da desregulamentação global

1.

Donald Trump está rapidamente transformando os Estados Unidos no maior paraíso fiscal da história. Basta observar quatro ações: (i) a decisão do Departamento do Tesouro de se retirar do regime de transparência que compartilha as identidades reais dos proprietários das empresas; (ii) a retirada do governo das negociações para estabelecer uma Convenção das Nações Unidas sobre Cooperação Tributária Internacional; (iii) a recusa em aplicar a Lei de Práticas de Corrupção no Exterior; (iv) a desregulamentação maciça de criptomoedas.

Isso parece fazer parte de uma estratégia mais ampla para minar 250 anos de história de defesa de salvaguardas institucionais. O governo de Donald Trump violou tratados internacionais, ignorou conflitos de interesse, desmantelou freios e contrapesos, deslocou fundos alocados pelo Congresso. O governo não debate mais políticas, pois, ao contrário, atropela o estado de direito.

Mas Donald Trump adora um tipo de imposto: as tarifas de importação. Ele parece acreditar que os estrangeiros vão pagar a conta que ele cria, fornecendo assim fundos para cortar impostos para bilionários. Ele também parece acreditar que as tarifas eliminarão os déficits comerciais e devolverão a fabricação de bens industriais aos EUA. Não importa que as tarifas sejam de fato pagas pelos importadores, elevando assim os preços domésticos, e estejam sendo cobradas no pior momento possível, quando os EUA estão se recuperando de um episódio inflacionário.

Além disso, a macroeconomia elementar mostra que os déficits comerciais multilaterais refletem a disparidade entre a poupança doméstica e o investimento doméstico. Os cortes de impostos de Donald Trump para bilionários aumentarão essa lacuna já que os déficits reduzem a poupança nacional doméstica. Pode parecer bem irânico, mas as políticas de cortes de impostos para bilionários e corporações tendem a elevar o déficit comercial.

Desde Ronald Reagan, os conservadores afirmam que os cortes de impostos se pagam porque impulsionam o crescimento econômico. Mas isso não funcionou no governo Reagan; não funcionou também durante o primeiro mandato de Donald Trump. A pesquisa empírica confirma que os cortes de impostos para os ricos não têm impacto mensurável no crescimento econômico ou no desemprego, mas aumentam a desigualdade de renda de maneira imediata e persistentemente. A proposta de extensão da Lei de Cortes de Impostos e Empregos de 2017 – quando ocorreram os maiores cortes de impostos corporativos da história dos EUA – vai adicionar cerca de US$ 37 trilhões à dívida nacional dos EUA nos próximos 30 anos, sem entregar o impulso econômico prometido.

2.

Donald Trump também está piorando o déficit comercial no nível microeconômico. Os EUA se tornaram uma economia de serviços. Entre suas maiores exportações estão turismo, educação e saúde. Mas Trump minou sistematicamente cada um deles. Que turista, estudante ou paciente gostaria de vir para os EUA sabendo que poderia ser detido arbitrariamente e mantido por semanas? O enfraquecimento das principais instituições de ensino da América, o cancelamento arbitrário de vistos de estudante e o desfinanciamento da pesquisa científica lançaram uma mortalha profunda sobre esses setores críticos.

A abordagem estrategicamente falha de Donald Trump já está saindo pela culatra. A China é um dos maiores parceiros comerciais dos Estados Unidos; como se sabe, os EUA dependem de importações críticas vinda da China. Sabendo disso, ela já retaliou. O medo do “estagflação” – inflação mais alta combinada com crescimento estagnado – atingiu já os mercados de ações e títulos. E isso é apenas o começo.

Graças ao Departamento de Eficiência Governamental de Elon Musk, as receitas fiscais podem despencar mais de 10% este ano devido ao enfraquecimento da fiscalização. Uma redução de cerca de 50.000 trabalhadores desse departamento resultará provavelmente em US$ 2,4 trilhões em receita perdida nos próximos dez anos, em comparação com o aumento projetado de US$ 637 bilhões sob as disposições da Lei de Redução da Inflação que visava aumentar a força de trabalho desse órgão. A agenda é clara: não apenas taxas de impostos mais baixas para os ricos, mas também uma fiscalização mais fraca.

Em um mundo onde o capital e os indivíduos ricos podem cruzar as fronteiras livremente, a cooperação internacional é a única maneira de os governos garantirem que as corporações multinacionais e as pessoas ultra ricas sejam tributadas de forma justa. Nesse contexto, interromper a aplicação da coleta de dados da propriedade tributável, tolerar mercados de criptomoedas que aumentam o anonimato e abandonar o processo de conclusão de uma nova convenção tributária da ONU, abdicar de um imposto mínimo global, tudo isso revela um padrão deliberado: desmantelar estruturas multilaterais destinadas a combater a evasão fiscal e a lavagem de dinheiro. A “pausa” da aplicação da Lei de Práticas de Corrupção no Exterior indica que os EUA não se importam mais nem mesmo com suborno e suborno.

O que estamos testemunhando é uma aparente tentativa de Donald Trump, Elon Musk e seus comparsas bilionários de forjar uma espécie de capitalismo modelado a partir das zonas sem lei do mundo offshore. Não é apenas uma revolta fiscal; trata-se de um ataque incondicional a qualquer lei que ameace o acúmulo extremo de riqueza e de poder.

Em nenhum ponto isso é mais evidente do que na adoção da criptografia. A explosão do mercado de criptomoedas, cassinos online e plataformas de apostas pouco regulamentadas estão impulsionando a economia ilícita global. Sob Donald Trump, o Departamento do Tesouro suspendeu sanções e regulamentos sobre plataformas que escondem as transações feitas. Trump até assinou uma ordem executiva para estabelecer uma “reserva estratégica de criptomoedas” e realizou a primeira cúpula de criptomoedas da Casa Branca. O Senado dos EUA seguiu o exemplo, matando uma disposição que exigiria que as plataformas de criptomoedas identificassem e denunciassem usuários.

Donald Trump emitiu uma moeda do tipo meme controversa; em breve, ele pode lançar um videogame baseado no jogo conhecido como “Monopólio”; ele instalou um defensor das criptomoedas no comando da Comissão de Valores Mobiliários. Paul Atkins é membro de um grupo de políticas que defende criptoativos e sistemas financeiros não bancários.

As plataformas de criptomoedas têm uma característica central: o sigilo das operações que ali acontecem. O sistema econômico atual se baseia em boas moedas, tais como o dólar, o iene, o euro e outras mais. Há plataformas de negociação eficientes para a compra de bens e serviços. A demanda por criptomoedas vem do desejo de esconder dinheiro e de fazer operações sigilosas com dinheiro. É por isso que as pessoas envolvidas em atividades criminosas, incluindo aí a lavagem de dinheiro e a evasão fiscal, as utilizam: assim, as operações feitas deixam de ser facilmente rastreáveis.

3.

O resto do mundo não pode ficar parado, assistindo a tudo isso.  Vimos que a cooperação global pode funcionar, como mostra o imposto mínimo global de 15% sobre os lucros das multinacionais, que mais de 50 países estão introduzindo agora. Dentro do G20, o consenso forjado no ano passado sob a liderança do Brasil exige que os indivíduos muito ricos paguem sua parte justa.

Os EUA se distanciaram dos acordos internacionais, mas, paradoxalmente, a ausência de sua diplomacia pode ajudar a fortalecer as negociações multilaterais para obter um resultado mais ambicioso. No passado, os EUA primeiro exigiam que um acordo fosse enfraquecido (normalmente para beneficiar um interesse especial), mas no final se recusavam a assiná-lo mesmo assim. Foi o que aconteceu durante as negociações da OCDE para a tributação das empresas multinacionais. Agora, o resto do mundo pode continuar com a tarefa de projetar uma arquitetura tributária global justa e eficiente.

Abordar a desigualdade extrema por meio da cooperação internacional e de instituições inclusivas é a alternativa real ao crescente autoritarismo. O autoisolamento dos Estados Unidos cria uma oportunidade para reconstruir a globalização em bases verdadeiramente multilaterais – criando um G-menos-um para o século XXI.

Joseph E. Stiglitz é ganhador do Prêmio Nobel de economia e professor na Columbia University (New York). Autor, entre outros livros, de O Grande Abismo Sociedades Desiguais e o que Podemos Fazer Sobre Isso (Alta Books)

A Economia de Francisco

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A semana passado trouxe uma grande infelicidade para a grande maioria dos cristãs que comungam os ideais religiosos do catolicismo, algo em torno de dois bilhões de pessoas no globo, a morte do Papa Francisco gerou muitas tristeza e desespero, levando a sociedade mundial a refletir sobre suas encíclicas, seus sermões e escritos que se espalharam para toda a sociedade internacional.

Vivemos numa sociedade marcada pela fragilização da solidariedade humana, onde encontramos a degradação dos laços sociais e sentimentais, nesta sociedade, percebemos o crescimento indiscriminado do individualismo, do imediatismo e da busca frenética pelo lucro monetário, deixando de lado os interesses do humanismo e dos valores mais sólidos e consistentes dos seres humanos. Estamos cultivando diuturnamente os interesses mesquinhos do imediatismo e dos valores do capital, da imagem deturpada das redes sociais e dos interesses centrados dos donos do capital, que controlam as mentes e distorcem a realidade, levando os indivíduos a buscarem os prazeres imediatos, do hedonismo e nos afastando dos valores da civilização.

Nesta sociedade, encontramos discussões equivocadas e desnecessárias, representantes políticos incapazes de compreender os valores e os anseios  mais sólidos da comunidade, o incremento da violência urbana em todas as áreas e setores, o aumento de profissionais incapazes de compreender os desafios da contemporaneidade, empresas e organizações perdidas num ambiente de transformações e mutações constantes, o  crescimento vertiginoso de moradores de ruas e pessoas degradadas numa economia hostil, o aumento dos financistas, economistas e homens de negócios que se ocupam dos discursos da austeridade dos gastos públicos e da redução das políticas públicas, pregando cortes constantes de custos e defendendo um sistema tributário desumano e cruel, com discursos pomposos que servem apenas para esconder seus interesses imediatos, manter seus poderes imediatos e a perpetuação dessa penúria que vive uma população marginalizada e constantemente explorada.

Neste ambiente, marcado pelo crescimento de um capital financeiro, improdutivo e parasitário, dotado de grande poder econômico e força política, que encontra no Papa Francisco novos instrumentos de reflexão, um apóstolo oriundo do mundo subdesenvolvido e dotado de grande capacidade intelectual e moralidade, que propõe uma sociedade mais igualitária, com mais solidariedade, mais acolhedora e menos julgadora, mais centrada no ensinar e no empregar e menos da exploração e da degradação, com isso, ajudando a construir novos valores, novos comportamentos e novos sentimentos, recriando a esperança e novos horizontes, ao contrário de uma sociedade calcada na exploração e na deturpação dos indivíduos.

A economia de Francisco traz novos instrumentos de reflexão e ação imediata, pregando o respeito ao ser humano e uma valorização da mãe natureza e do meio ambiente, trocando a exploração e estimulando a solidariedade humana, fomentando a reflexão individual e a conversação na comunidade, rechaçando o financismo e o capital parasitário que dominam a sociedade global e que prega o individualismo do cotidiano, destruindo os valores do humanismo e da solidariedade.

A economia de Francisco nos traz novos horizontes e um alento para uma sociedade mundial que, infelizmente, estimula o egoísmo e a busca frenética pelos interesses materiais, com isso, percebemos mais claramente a degradação da civilização.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Sociologia do Trabalho e Exclusão Social, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

 

Pejotização e o colapso silencioso da Previdência, por Erik Chiconelli Gomes

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Além de precarizar, a multiplicação de contratos PJ corrói a base de financiamento de uma conquista histórica – e abre espaço para a enésima contrarreforma. Debate no STF, portanto, não é apenas jurídico. Envolve o futuro dos direitos e proteções que constituem a cidadania

Erik Chiconelli Gomes – OUTRAS PALAVRAS – 29/04/2025

A transformação das relações laborais no Brasil tem apresentado uma tendência preocupante desde a implementação da reforma trabalhista. O fenômeno conhecido como “pejotização” – a contratação de trabalhadores como pessoas jurídicas em vez de empregados formais – representa não apenas uma mudança nos arranjos contratuais, mas uma profunda alteração na própria estrutura das relações sociais de produção, revelando novas formas de exploração do trabalho que precisam ser analisadas a partir de uma perspectiva historiográfica que valorize a agência dos trabalhadores e as dimensões morais da economia.

Segundo estudo realizado por pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas, a pejotização custou aos cofres públicos entre R$ 89 bilhões e R$ 144 bilhões entre 2018 e 2023. Como observa Nelson Marconi, coordenador do curso de graduação em administração pública da FGV, “do ponto de vista social, os trabalhadores têm perdas em termos de direitos, como férias, décimo terceiro e aviso prévio. Para o lado da empresa, isso flexibiliza o mercado de trabalho e diminui encargos. Mas, do ponto de vista econômico, tem um impacto muito forte na arrecadação. Diminui o dinheiro para financiar políticas públicas.” (Desidério, 2025).

Esta transformação nas relações de trabalho não pode ser compreendida como um mero ajuste técnico ou jurídico no sistema produtivo brasileiro. Representa, antes, um movimento histórico que ressignifica a própria noção de trabalho, alterando profundamente os laços sociais e a consciência de classe dos trabalhadores. A substituição do vínculo empregatício formal por uma relação comercial entre empresas mascara relações de poder e dominação historicamente constituídas, criando a falsa impressão de autonomia e empreendedorismo.

Como argumenta David Harvey em seu estudo sobre a condição pós-moderna, o que testemunhamos é parte de um processo mais amplo de acumulação flexível, que impõe novas formas de controle do trabalho enquanto dissolve conquistas históricas dos trabalhadores. “A acumulação flexível envolve rápidas mudanças nos padrões de desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado ‘setor de serviços’.” (Harvey, 1992).

A análise das perdas arrecadatórias decorrentes da pejotização revela não apenas um problema fiscal, mas sobretudo uma profunda contradição no projeto econômico vigente. As simulações apresentadas pelos pesquisadores da FGV indicam que, caso metade dos trabalhadores CLT em 2023 se tornassem trabalhadores por conta própria, a perda de arrecadação chegaria a mais de R$ 384 bilhões em apenas um ano. Tal cenário, descrito como “extremo, mas possível” pelos próprios pesquisadores, evidencia o potencial desestabilizador dessa prática para as finanças públicas e, consequentemente, para a manutenção das políticas sociais.

A historiadora Bárbara Weinstein, em seu estudo sobre a formação da classe trabalhadora brasileira, nos lembra que “as transformações nas relações de trabalho nunca são meros reflexos de mudanças econômicas ou tecnológicas, mas constituem processos ativamente disputados, negociados e contestados pelos diversos atores sociais envolvidos.” (Weinstein, 1996). A pejotização contemporânea, portanto, deve ser compreendida como um campo de disputa onde se confrontam interesses antagônicos e visões distintas sobre o valor social do trabalho.

O fenômeno da pejotização emerge não como desenvolvimento natural ou inevitável das relações produtivas, mas como resultado de escolhas políticas deliberadas e de interpretações jurídicas específicas. O crescimento exponencial do número de trabalhadores por conta própria após a reforma trabalhista evidencia o caráter induzido dessa transformação, que responde a interesses econômicos específicos em detrimento da proteção social historicamente construída.

Ricardo Antunes, ao analisar as metamorfoses no mundo do trabalho, argumenta que “o que vemos hoje no Brasil é parte de um processo global de precarização estrutural do trabalho, que combina o desmonte dos direitos sociais com novas formas de gestão e controle da força de trabalho. A pejotização representa uma dessas novas modalidades de precarização, que transfere para o trabalhador individual os riscos e custos anteriormente assumidos pelo capital.” (Antunes, 1999).

A dimensão moral dessa transformação não pode ser subestimada. Ao se reconfigurarem as relações de trabalho sob a aparência de contratos entre pessoas jurídicas, opera-se também uma profunda alteração nas expectativas recíprocas entre empregadores e trabalhadores, nas noções compartilhadas de justiça e nas práticas de solidariedade que tradicionalmente caracterizavam as relações laborais. A economia, como sempre enfatizaram os historiadores sociais britânicos, nunca é apenas uma questão de números, mas também um campo de relações morais historicamente construídas.

Olivia Pasqualeto, professora de Direito da FGV, observa com precisão um dos aspectos mais problemáticos desse processo quando afirma que “quando o STF diz que qualquer relação vai ser lícita, ficamos sem saber qual elemento vai diferenciar uma coisa da outra. Fica nebuloso saber o que deve ser regido pela CLT.” (Desidério, 2025). Esta nebulosa distinção revela-se não apenas um problema técnico-jurídico, mas um sintoma da crescente descaracterização do trabalho como relação social dotada de proteções específicas

O historiador Sidney Chalhoub, em seus estudos sobre trabalho, cidadania e direitos no Brasil, nos oferece uma perspectiva valiosa ao afirmar que “as transformações nas relações de trabalho no Brasil sempre foram mediadas por intensas disputas políticas e jurídicas, nas quais os trabalhadores nunca foram sujeitos passivos, mas agentes que continuamente reinterpretam e contestam as imposições das classes dominantes.” (Chalhoub, 1986).

A análise histórica do fenômeno da pejotização deve considerar não apenas seus impactos econômicos imediatos, mas também suas implicações para a construção da cidadania no Brasil. Ao se substituir a relação empregatícia formal por contratos comerciais, fragilizam-se os mecanismos de proteção social que, historicamente, serviram como porta de entrada para direitos sociais mais amplos na sociedade brasileira.

Mike Davis, em sua análise sobre o trabalho precário global, argumenta que “a informalização e precarização das relações de trabalho não representam um retorno a formas pré-modernas de exploração, mas constituem modalidades inteiramente novas de extração de mais-valor, adaptadas às condições do capitalismo financeirizado contemporâneo.” (Davis, 2006).

O embate jurídico em curso no Supremo Tribunal Federal, que suspendeu todos os processos sobre o tema até um julgamento definitivo, ilustra como as lutas dos trabalhadores por reconhecimento e direitos se deslocaram para a arena judicial. Este deslocamento, contudo, não diminui o caráter essencialmente político e social da questão; apenas reconfigura os termos do conflito e os espaços institucionais onde ele se desenvolve.

A suspensão das quase 460 mil ações sobre reconhecimento de relação trabalhista em 2024 representa não apenas uma questão jurídica, mas um momento crítico para a reconfiguração das relações entre capital e trabalho no Brasil contemporâneo. O resultado deste embate determinará não apenas o futuro imediato de milhares de trabalhadores, mas estabelecerá precedentes para toda a classe trabalhadora brasileira nas próximas décadas.

O impacto da pejotização sobre o sistema previdenciário brasileiro revela uma dimensão particularmente alarmante desse processo. Estamos diante de um desmantelamento silencioso da seguridade social, operado não através de uma reforma aberta e transparente, mas por meio de uma erosão gradual da sua base de financiamento. Quando um trabalhador deixa de contribuir como empregado formal e passa a fazê-lo como microempreendedor individual, a diferença de arrecadação não representa apenas um número nas contas públicas – simboliza o esvaziamento de um pacto social que, por décadas, garantiu dignidade a milhões de brasileiros na velhice, na doença e na incapacidade laboral.

Este esvaziamento ocorre em um contexto demográfico de envelhecimento populacional, no qual a sustentabilidade da Previdência já enfrenta desafios consideráveis. A pejotização, portanto, acelera e agrava uma crise anunciada, comprometendo a viabilidade futura de um sistema que representa uma das maiores conquistas sociais da história brasileira. Não se trata apenas de um problema fiscal, mas de uma questão ética fundamental sobre o tipo de sociedade que estamos construindo e os valores que a orientam.

A história das relações trabalhistas no Brasil revela um padrão recorrente de formalização precária, no qual direitos são concedidos no plano legal, mas continuamente subvertidos na prática cotidiana. A pejotização contemporânea representa um novo capítulo nessa história, com a particularidade de utilizar instrumentos jurídicos formais – como a constituição de pessoas jurídicas – para legitimar a evasão de obrigações trabalhistas e previdenciárias. O verniz de legalidade que recobre essas práticas torna-as particularmente insidiosas, pois dificulta seu reconhecimento como formas de precarização e exploração.

A experiência histórica nos ensina, contudo, que as relações de trabalho nunca são estáticas e que sua configuração depende fundamentalmente das lutas sociais em curso. A pejotização, apesar de sua aparente solidez jurídica e econômica, não está imune à contestação e à resistência dos trabalhadores. Novas formas de organização coletiva já começam a emergir entre trabalhadores “pejotizados” que, apesar da fragmentação de seus vínculos formais, compartilham experiências comuns de precariedade e insegurança.

Este movimento de ressignificação e reapropriação da própria condição de trabalho representa uma continuidade histórica com as tradições de luta da classe trabalhadora brasileira, que sempre encontrou formas criativas de resistência mesmo nos contextos mais adversos. A compreensão desta agência histórica dos trabalhadores – sua capacidade de interpretar, contestar e transformar as condições de sua própria exploração – é fundamental para qualquer análise crítica do fenômeno da pejotização que não se limite a reproduzir determinismos econômicos ou legalismos superficiais.

O que está em jogo, portanto, não é apenas uma questão técnica de classificação jurídica de relações laborais, mas a própria redefinição do horizonte de direitos e proteções que constituem a cidadania social no Brasil contemporâneo. A disputa sobre a pejotização é, em última instância, uma disputa sobre o valor social do trabalho e sobre a responsabilidade coletiva frente aos riscos e vulnerabilidades inerentes à condição humana. Seu desfecho dependerá não apenas de decisões judiciais ou políticas, mas da capacidade de mobilização e organização dos próprios trabalhadores em defesa de um projeto de sociedade que reconcilie desenvolvimento econômico com justiça social e dignidade no trabalho.

Referências

ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho: Ensaio sobre a Afirmação e a Negação do Trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999.

CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: O Cotidiano dos Trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. São Paulo: Brasiliense, 1986.

DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006.

DESIDÉRIO, Mariana. Pejotização custou ao menos R$ 89 bilhões e ameaça Previdência, diz estudo. UOL, São Paulo, 26 abr. 2025.

GOMES, Angela de Castro. A Invenção do Trabalhismo. Rio de Janeiro: FGV, 2005.

HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: Uma Pesquisa sobre as Origens da Mudança Cultural. São Paulo: Loyola, 1992.

VAN DER LINDEN, Marcel. Trabalhadores do Mundo: Ensaios para uma História Global do Trabalho. Campinas: Editora da Unicamp, 2013.

WEINSTEIN, Barbara. For Social Peace in Brazil: Industrialists and the Remaking of the Working Class in São Paulo, 1920-1964. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1996.

 

 

Por que os EUA perderão para a China, por Martin Wolf

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O país não confiável de Trump está jogando fora os ativos de que precisa

Martin Wolf, Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

Folha de São Paulo – 29/04/2025

O “Dia da Libertação” de Donald Trump, com supostas tarifas recíprocas contra o resto do mundo —possivelmente as propostas de política comercial mais excêntricas já feitas— transformou-se, após uma rápida recuada sob pressão dos mercados, em uma guerra comercial com a China. Isso pode (ou não) ter sido o que se pretendia desde o início.

Então, Trump pode vencer esta guerra contra a China? Na verdade, os Estados Unidos, como estão agora após o segundo mandato de Trump, podem esperar ter sucesso em sua rivalidade mais ampla com a China? A resposta para ambas as perguntas é não. E isso se dá não porque a China é invencível, longe disso. Mas sim porque os EUA estão jogando fora todos os ativos de que precisam para manter seu status no mundo contra uma potência tão enorme, capaz e determinada como a China.

“Guerras comerciais são boas e fáceis de vencer”, Trump publicou em 2018. Como ideia geral, isso é falso: guerras comerciais prejudicam ambos os lados. Um acordo que deixe ambas as partes mais beneficiadas do que antes pode ser alcançado. Mas, mais provavelmente, qualquer acordo deixará um lado melhor do que antes e o outro pior. Este último tipo de acordo é, presumivelmente, o que Trump espera que surja: os EUA vencerão e a China perderá.

No momento, os EUA impõem uma tarifa de 145% sobre importações chinesas, enquanto a China impõe uma tarifa de 125% sobre os EUA. A China também restringiu exportações de terras raras para os EUA. Essas são barreiras comerciais muito altas, de fato proibitivas. Isso parece um “impasse mexicano”, que nenhum dos lados pode vencer, entre as duas superpotências.

Entende-se que o plano dos EUA (se é que existe um) é “persuadir” parceiros comerciais a impor pesadas barreiras às importações da China em troca de um acordo favorável sobre comércio (e talvez em outras áreas, como segurança) com os EUA. Esse resultado é plausível? Não.

Uma razão é que a China também tem cartas poderosas. Muitas potências significativas já fazem mais comércio com a China do que com os EUA: isso inclui Austrália, Brasil, Índia, Indonésia, Japão e Coreia do Sul. Sim, os EUA são um mercado de exportação mais importante do que a China para muitos países importantes, em parte devido aos déficits comerciais dos quais Trump reclama. Mas a China também é um mercado significativo para muitos. Além disso, a China é uma fonte de importações essenciais, muitas das quais não podem ser facilmente substituídas. Importações são, afinal, o propósito do comércio.

Acima de tudo, os EUA deixaram de ser confiáveis. Um EUA “transacional” está sempre buscando um acordo melhor. Nenhum país sensato deve apostar seu futuro em tal parceiro, especialmente contra a China. O tratamento de Trump ao Canadá foi um momento decisivo. Os canadenses responderam reelegendo os liberais.

Trump aprenderá com isso? Um leopardo pode mudar suas manchas? É assim que ele é. Ele também é um homem que os eleitores americanos elegeram duas vezes. Além disso, romper com a China seria arriscado: a China não esquecerá e provavelmente não perdoará.

Não menos importante, a China acredita que seu povo pode suportar a dor econômica melhor que os americanos. Além disso, para o país asiático, a guerra comercial é principalmente um choque de demanda, enquanto para os EUA é principalmente um choque de oferta. É mais fácil substituir a demanda perdida do que a falta de fornecimento.

Em suma, os EUA não conseguirão os acordos que aparentemente buscam e a vitória sobre a China que esperam. Minha suposição é que, à medida que isso se torne evidente para a Casa Branca, Trump recuará pelo menos parcialmente das suas guerras comerciais, declarando vitória, enquanto segue em alguma outra direção.

No entanto, isso não muda a realidade de que os EUA estão de fato competindo com a China por influência global. Infelizmente, o EUA que muitos querem que se saia bem nessa história não é este EUA.

Os EUA de Trump não se sairão bem. Sua população é um quarto da da China. Sua economia tem praticamente o mesmo tamanho, porque é muito mais produtiva. Sua influência, cultural, intelectual e política, ainda é muito maior que a da China porque seus ideais e ideias são mais atraentes. Os EUA foram capazes de criar alianças poderosas com países de mentalidade semelhante que reforçam essa influência. Em suma, herdaram e foram abençoados com enormes ativos.

Agora, considere o que está acontecendo sob o regime Trump: tentativas de transformar o Estado de direito em um instrumento de vingança; o desmantelamento do governo; desprezo pelas leis que são a base de um governo legítimo; ataques à pesquisa científica e à independência das grandes universidades americanas; guerras contra estatísticas confiáveis; hostilidade em relação aos imigrantes (e não apenas os ilegais), embora eles tenham sido a base do sucesso dos EUA em todas as gerações; um repúdio total da ciência médica e da ciência climática; uma rejeição total das ideias mais básicas na economia do comércio; uma equivalência ou (muito pior que isso) preferência por Vladimir Putin, o tirano da Rússia, sobre Volodimir Zelenski, presidente da Ucrânia democrática; e desprezo aberto pelo conjunto de alianças e instituições de cooperação sobre as quais repousa a ordem global construída pelos EUA. Tudo isso nas mãos de um movimento político que abraçou a insurreição de janeiro de 2021.

Sim, a ordem econômica global precisava de melhorias. O argumento para que a China mude para um crescimento liderado pelo consumo é esmagador. Também está claro que muitas reformas são necessárias dentro dos EUA. No entanto, o que está acontecendo agora não é reforma, mas a ruína dos fundamentos do sucesso dos EUA, em casa e no exterior. Será difícil reverter os danos. Será impossível para as pessoas esquecerem quem e o que os causou.

Um EUA que está tentando substituir o Estado de direito e a Constituição por um capitalismo corrupto de compadrio não superará a China. Um EUA puramente transacional não receberá o apoio incondicional de seus aliados. O mundo precisa de um EUA que compita e coopere com a China. Este EUA, infelizmente, falhará em fazer bem qualquer uma das duas coisas.

 

Os desafios da segurança pública, por Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

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Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo – A Terra é Redonda – 28/04/2025

Benedito Mariano trata de uma questão central para o país no seu livro “Segurança Pública: o calcanhar de aquiles da esquerda e do campo democrático”

1.

No dia 25 de abril, não por acaso no aniversário da Revolução dos Cravos, o Instituto Novos Paradigmas promoveu em Porto Alegre o lançamento do livro Segurança Pública: o calcanhar de aquiles da esquerda e do campo democrático, de Benedito Mariano.

Benedito Mariano construiu uma trajetória rara, que combina militância democrática, experiência institucional e formulação crítica. Fundador do Movimento Nacional dos Direitos Humanos (MNDH), nos anos 1990 foi nomeado o primeiro ouvidor das polícias do Estado de São Paulo, no governo de Mário Covas, e desde então tem se dedicado a fortalecer os mecanismos de controle externo e promover uma visão cidadã da segurança pública.

Ao longo dos anos, atuou em diversas gestões municipais – São Paulo, Osasco, Diadema, São Bernardo do Campo – implementando políticas orientadas pela prevenção da violência, pelo policiamento comunitário, pela valorização das guardas municipais e, sobretudo, pela ideia de que segurança se faz com diálogo, legalidade e políticas sociais, mas também com políticas públicas de segurança.

O livro agora publicado sintetiza esse percurso. Mas vai além. Ele lança um olhar honesto e necessário sobre a incapacidade da esquerda em consolidar um programa para a segurança pública. Na visão de Benedito Mariano, apesar da esquerda ter produzido as melhores propostas para o setor, com base nos direitos humanos e na democracia, essas propostas raramente se traduziram em políticas efetivas quando essa mesma esquerda chegou ao poder. Essa contradição – entre discurso e prática – é o eixo em torno do qual o livro se estrutura.

A partir desse ponto, gostaria de compartilhar algumas reflexões, provocadas pela leitura da obra de Benedito Mariano e por acompanhar esse debate ao longo dos últimos 30 anos.

2.

A meu ver, as dificuldades da esquerda para consolidar uma agenda transformadora na área da segurança pública, que vá além dos chavões e da crítica à violência estatal, decorrem de dois fatores principais. O primeiro é a fragilidade da base teórica que fundamenta o pensamento da esquerda brasileira de maneira geral, e que tem consequências diretas sobre o tema segurança pública.

Daí decorre o fato de que o tema foi sempre tratado como periférico, ou como um epifenômeno social, o que resultou na ausência de um programa coerente sobre como transformar, de fato, as instituições policiais, o sistema penal e as formas de enfrentamento da criminalidade. A cada eleição, novas propostas são formuladas, mas não chegam a constituir uma base comum em torno da qual a militância política se articule, no Congresso e nos diferentes espaços sociais, por apresentar-se muitas vezes como um discurso de ocasião, sem enraizamento nas premissas teóricas que fundamentam uma perspectiva de esquerda que ainda não superou velhos chavões.

O segundo fator é o peso dos setores sindicais e corporativos na definição das prioridades políticas, o que muitas vezes dificultou o avanço de reformas institucionais mais necessárias e produziu frequentemente um alinhamento acrítico com a permanência de mecanismos institucionais que resistem à transparência, à responsabilização e à modernização das corporações policiais.

Em que pese tenha havido governos petistas que, em determinados contextos, alcançaram algum sucesso na gestão da segurança, fato é que não se construiu um acúmulo coletivo sólido para todo o campo da esquerda. O conhecimento e as propostas mais avançadas foram, muitas vezes, desenvolvidos no campo acadêmico, especificamente no campo da Sociologia da Violência, da Segurança Pública e da Administração da Justiça Penal, e não politicamente apropriados ou traduzidos em ação governamental consistente.

Um exemplo desse fenômeno foi a publicação, em 2018, do livro Agenda de segurança cidadã: por um novo paradigma, pela Comissão de Assuntos Estratégicos da Câmara dos Deputados, sob encomenda do deputado Paulo Teixeira. O livro, fruto do trabalho de um grupo de pesquisadores, consolidou uma compreensão ampla, contemporânea e avançada sobre o campo da segurança pública e da justiça penal, oferecendo propostas concretas para a transformação do setor.

Muitas dessas propostas foram encaminhadas à equipe de transição do terceiro governo Lula. No entanto, diante das urgências do setor e da não implementação do Ministério da Segurança Pública, acabaram sendo em grande medida deixadas de lado, mais uma vez adiando a construção de uma política de segurança pública consistente a partir do governo federal.

Ainda assim, seria injusto dizer que a esquerda não acumulou boas experiências no campo da segurança pública. Nas últimas duas décadas, houve iniciativas importantes que precisam ser reconhecidas e valorizadas. O Pronasci, implementado pelo então ministro da Justiça Tarso Genro durante o segundo governo Lula, foi uma tentativa corajosa e inovadora de articular repressão qualificada e políticas sociais de prevenção da violência, colocando a União no papel de indutora de políticas estaduais e municipais.

É preciso lembrar também da experiência pioneira do governo Olívio Dutra no Rio Grande do Sul, com José Paulo Bisol à frente da Secretaria da Justiça e da Segurança. Bisol foi um dos primeiros intelectuais brasileiros a formular, dentro de um governo estadual, uma concepção de segurança pública baseada na dignidade da pessoa humana, no respeito aos direitos fundamentais e no combate à seletividade penal.

Sua atuação deixou um legado que ainda inspira aqueles que acreditam que é possível conjugar autoridade e legitimidade policial. Entre outras coisas, foi na gestão de Bisol que primeiro se ousou propor uma política de controle da utilização da força pelas polícias, assim como foi implementado um amplo processo de formação qualificada e integrada das forças policiais. Além disso, foi conferida à Brigada Militar a possibilidade de lavratura do Termo Circunstanciado para os delitos de menor potencial ofensivo, iniciativa depois acompanhada por quase todos os estados brasileiros.

3.

Fora do eixo dos governos petistas, encontramos experiências bem-sucedidas de gestão democrática da segurança. Em Pernambuco, o Pacto pela vida, no governo de Eduardo Campos, mostrou que é possível combinar metas, inteligência policial, monitoramento rigoroso e ação social com resultados consistentes na redução dos homicídios. O Espírito Santo, sob o governo de Renato Casagrande, tem seguido uma linha semelhante, valorizando a coordenação federativa e a profissionalização das polícias, assim como a gestão por resultados.

E, mais recentemente, o governo Eduardo Leite, no Rio Grande do Sul, vem demonstrando que é possível enfrentar o crime organizado, a violência letal e a criminalidade urbana com eficiência, com iniciativas baseadas em evidências, mas dentro dos marcos da legalidade e do controle institucional. Todas estas experiências demonstram que é possível reduzir a violência e a criminalidade apostando na qualificação das polícias, na gestão integrada e no monitoramento permanente dos resultados, e sem recorrer ao populismo punitivo.

Entretanto, a esquerda, e especialmente o PT, ainda enfrenta dificuldades para reconhecer a importância dessas experiências, muitas vezes por razões eleitoreiras, mas também por uma resistência histórica a absorver elementos da tradição liberal na gestão pública – como a cultura da responsabilização, da transparência e da eficiência democrática nas instituições de segurança, a ideia de interdição de comportamentos por meio do direito penal e de responsabilização criminal dentro da lei e do devido processo, agregando a estas ferramentas institucionais as políticas de prevenção ao delito.

Superar essas resistências é hoje um desafio fundamental para a consolidação de uma agenda democrática na segurança pública, pois é esse um dos vetores do crescimento da extrema-direita e do populismo penal. Não se trata apenas de disputar narrativas, mas de construir um programa realista, factível e transformador, capaz de combinar repressão qualificada, prevenção social e reconstrução da confiança entre o Estado e a sociedade.

Não se trata, portanto, de mimetizar o punitivismo irracional dos candidatos a autocrata, mas de buscar, por meio de uma ampla coalizão, o enfrentamento ao medo e à insegurança.

Esse caminho não será trilhado por um partido isoladamente. Ele exige uma nova coalizão política, que inclua a esquerda, o centro democrático e os setores comprometidos com o Estado de Direito. Uma Frente Ampla Democrática pela Segurança, incorporando as experiências exitosas como uma plataforma de gestão, é a única via capaz de sustentar as reformas que o país precisa – e que a população demanda com urgência.

A proposta da PEC da Segurança Pública, construída pelo Ministro Ricardo Lewandowski, aponta nessa direção. Trata-se de uma iniciativa que visa consolidar a arquitetura institucional do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), fortalecendo a coordenação entre União, estados e municípios, e dando maior clareza às competências e responsabilidades de cada ente.

A PEC da Segurança Pública estabelece diretrizes nacionais, mas respeita o pacto federativo. E, ao propor a consolidação de um sistema nacional, abre espaço para políticas baseadas em evidências, com metas, controle externo e avaliação permanente. Seus méritos estão justamente na busca por institucionalidade, estabilidade e compromisso com os fundamentos do Estado democrático de direito.

Neste cenário, o livro de Benedito Mariano se apresenta como uma leitura essencial. Não apenas porque denuncia a omissão histórica da esquerda no tema, mas porque oferece um ponto de partida para superá-la. É uma obra que nos provoca, nos compromete e, mais importante, nos convoca a agir com coragem e responsabilidade.

Em sociedades complexas e atravessadas por fortes desigualdades, a consolidação democrática, se ainda for possível como horizonte a ser alcançado, passa pelo reconhecimento de que a interdição de comportamentos lesivos é uma função legítima da ordem jurídica, devendo ser realizada por meio da aplicação de sanções que garantam não apenas a contenção e a retribuição proporcionada ao delito, mas também a construção de condições para o enfrentamento das vulnerabilidades sociais que afetam a trajetória de grande parte dos apenados.

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedosociólogo, é professor titular da Escola de Direito da PUC-RS.

Referência

Benedito Mariano. Segurança pública: o calcanhar de aquiles da esquerda e do campo democrático. São Paulo, Editora Contracorrente, 2025, 312 págs.