A quem interessa que a Saúde seja luxo? por Ladislau Dowbor

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Há vastos exemplos de que sistemas públicos são mais eficientes. Mas modelo hiperfinanceirizado dos EUA se espalha pelo mundo, com remédios caríssimos, marketing trapaceiro e seguros abusivos. Resultado: mortes, sofrimento e dívidas

Ladislau Dowbor – OUTRAS PALAVRAS – 13/05/2024

A indústria de Saúde tornou-se uma área-chave da atividade econômica. Está sendo rapidamente privatizada, com resultados profundamente negativos, exceto para os poucos felizardos no topo da pirâmide de riqueza. O mercado livre e irrestrito pode funcionar melhor para a escolha de sapatos. Mas para a Saúde, é um desastre. Não é uma questão de ideologia, mas de observar exemplos daquilo que funciona melhor.
(Ladislau Dowbor)

Longe de fornecer Saúde Universal, o legado dos aportes das instituições de financiamento ao desenvolvimento em saúde privada com fins lucrativos tem mais chance de resultar em uma crescente concentração de riqueza e poder nas mãos de um pequeno número de homens escandalosamente ricos.¹

As simplificações ideológicas na economia são uma maldição, e são baseadas não apenas na ignorância, mas sobretudo no interesse financeiro. O Paxlovid, um tratamento recente da Pfizer para covid, com 30 pílulas, está sendo vendido por US$ 1.390 – no entanto, pesquisadores de Harvard descobriram que o custo de produção para o tratamento completo é de cerca de US$ 13. Até onde pode ir esse despropósito? A questão-chave aqui é que as decisões são tomadas não com base em quanto se pode melhorar a Saúde, mas quanto dinheiro é possível extrair, ainda que reduza drasticamente o acesso. Para os algoritmos que calculam a otimização de marketing, é óbvio que, nas comunidades abastadas, os clientes não verão muita diferença entre pagar cem ou mil dólares, ao sentirem que sua saúde está ameaçada – eles são muito sensíveis – e pagarão qualquer preço. Os algoritmos refletirão a lógica que incorporaram: maximizar lucros. A ideologia confere o sentimento de justiça: acumular dinheiro é correto e moral neste esporte.

Poderiam justificar com a alegação de que tiveram que gastar muito em pesquisa. Isso é parcialmente verdadeiro, claro, e válido para várias das grandes corporações farmacêuticas. Mas a verdade é que o enorme progresso feito pela humanidade em pesquisa em Saúde é principalmente herdado dos avanços científicos amplos que nos deram o entendimento do DNA, a microscopia eletrônica, bioinformática, IA, nanotecnologia e tantas transformações estruturais nas bases tecnológicas da pesquisa. Quando uma corporação oferece um produto final, pelo qual a população terá que pagar, mas que a maior parte dos insumos de capacidade de pesquisa usados para produzi-lo foi herdada e paga por nossos impostos, isso representa, como Gar Alperovitz e Lew Daly chamaram, “merecimentos injustos”.

O esquema OxyContin nos revela outra dimensão, na qual causar mortes em grande escala é irrelevante, desde que o produto se pague. A crise dos opioides “evoluiu, começando com pílulas sob prescrição médica e terminando com o fentanil sendo produzido ilicitamente, além de outras drogas que juntas já foram responsáveis por 800 mil vidas americanas nos últimos 25 anos, com previsões de mais um milhão de mortes até o final da década”. As famílias Sackler, Purdue e Johnson & Johnson foram levadas à justiça, mas foram penalizadas com apenas algumas multas: “Os reguladores federais e promotores não foram capazes de aproveitar o momento. Mais uma vez, as grandes farmacêuticas escaparam. Os promotores negociaram um acordo no qual a Purdue pagou uma grande multa, mas foi autorizada a continuar vendendo OxyContin praticamente sem restrições. Foi feito apenas um acordo para que seus executivos se declarassem culpados de contravenções e evitassem a prisão… Os EUA ainda não conseguem aprender as lições de uma catástrofe unicamente norte-americana, são incapazes de romper a influência do dinheiro de grandes corporações sobre a medicina, a regulamentação de drogas e a responsabilidade política”.²

Podemos encontrar milhares de exemplos de fraudes, marketing mentiroso e outras ilegalidades. É possível encontrá-los em uma rápida pesquisa na internet, colocando o nome de qualquer grande corporação farmacêutica junto com “acordos”. A lógica é simples: trata-se de uma área diferente de responsabilidade legal, na qual os culpados pagam somas enormes, mas que são como troco de bala em comparação com seus lucros. Assim, seus donos se livram não apenas da prisão, mas também de admitir culpa. A Wikipedia também fornece uma “lista dos maiores acordos farmacêuticos”, cada um na casa dos bilhões de dólares, por violações da Lei de Reivindicações Falsas [False Claims Act é uma lei estadunidense que pune entidades ou indivíduos que defraudam programas governamentais] e similares. Tudo é feito com exércitos de advogados e especialistas de primeira linha em negócios, finanças e até mesmo em drogas. Não é uma questão de não saberem o que estão fazendo. E eles interrompem seu programa de TV com uma garota simpática dizendo que esse medicamento será maravilhoso para você. O consumidor paga por esse comercial, cujo custo está incluído no preço dos produtos. Cerca de 27% do preço de um produto da Johnson & Johnson são para custos de marketing, não para pesquisa.

Esses poucos exemplos se referem à Big Pharma, mas uma lógica similar se aplica a tantos outros serviços de saúde privatizados. A questão que levantamos aqui é: a privatização é compatível com a garantia de vidas saudáveis, ou apenas com os lucros provenientes de serviços de saúde? O problema básico é que um sistema de saúde privatizado, com suporte de regulação pública, que é o modelo dos EUA, é um fracasso sistêmico. É incompetente e ineficiente. No Brasil, como nos EUA e outros países, os oligipólios de saúde assumiram as instituições de regulação. Alega-se frequentemente que a “autorregulação” é suficiente. Mas é um desastre.

Os gastos com Saúde nos EUA, em 2019, foram de US$ 10.921 per capita, e a expectativa de vida de 77,3 anos. Trata-se do sistema basicamente privatizado e não regulamentado que vimos. No Canadá, onde a Saúde é basicamente pública, gratuita e com acesso universal, o custo per capita foi de US$ 5.048, menos da metade, e a expectativa de vida de 81,7 anos. A lógica não é complexa: nos países onde os sistemas são pensados para garantir a saúde da população de fato, as políticas se concentram, entre outros, na saúde preventiva, na água limpa, no controle de emissões, em vacinas, em cidades mais saudáveis. A preocupação central não está em vender o máximo possível de medicamentos e serviços de cura. Trata-se de saúde, não de negócios.

Este estudo do Banco Mundial é esclarecedor. No Reino Unido, os números correspondentes são US$ 4.313 de gasto per capita e 80,9 anos de expectativa de vida, apesar de tantos ataques ao NHS [Sistema Nacional de Saúde]. A Dinamarca é outro caso interessante onde há serviço de saúde basicamente público: US$ 6.003 e 82 anos. Na França, US$ 4.492 e 82 anos. Em outro nível, Cuba é um exemplo interessante, com gastos de US$ 1.032 e 79 anos, superior aos 77 anos dos EUA. Para o Brasil, os números são US$ 853, e uma expectativa de vida de 76 anos, graças, em grande medida, ao Sistema Único de Saúde. Os grupos de seguro de saúde brasileiros, alguns deles propriedade de corporações de saúde privadas dos EUA como United Health, ou da indústria de gestão de ativos como BlackRock, são um exemplo impressionante de ineficiência sistêmica. Eles drenam recursos financeiros de cerca de 50 milhões de pessoas. Mas quando você se aposentar, não poderá mais pagar por eles, na idade em que mais precisaria.

Os serviços de saúde privados tornaram-se uma enorme arena financeira. No geral, os serviços de saúde representam quase 20% do PIB nos EUA – é sua maior indústria, com resultados dramaticamente pobres, a menos que você esteja no clube dos ricos com acesso a ilhas de serviços de saúde privados de luxo. “Enquanto isso, um terço dos americanos sem seguro não pode pagar seus medicamentos, e quase metade dos que não têm cobertura solicitou aos médicos opções mais baratas. A presidente da Câmara dos Deputados, Nancy Pelosi (Democrata da Califórnia), apresentou na semana passada o plano de seu partido para permitir que o governo participe da definição dos preços dos medicamentos prescritos. O projeto foi nomeado de ‘Ato para Reduzir Agora os Custos dos Medicamentos’.”³ Eles ainda estão lutando.

O que é impressionante é que os EUA oferecem o modelo mais ineficiente e caro, mas é ele que está sendo gradualmente expandido em muitos países. Porque é lucrativo, mesmo que deixe a maior parte da população em situações dramáticas. A razão é que faz parte de um sistema financeiro integrado global. Eu pago a uma faxineira, um dia por semana, para limpar minha casa em São Paulo. Ela tem problemas de saúde, então entrou em um grupo de seguro saúde privado, o Notre Dame. Verifiquei dados sobre essa corporação e encontrei, entre seus investidores, a BlackRock. Assim, parte do que pago a uma pessoa modesta no Brasil é transferida para acionistas internacionais, em frações de segundo, como dinheiro virtual. Esta capilaridade de drenos financeiros com dinheiro virtual funciona em escala mundial. Precisamos de saúde, e em situações desesperadoras pagamos qualquer coisa, e nos endividamos – ou adiamos a busca por cuidados até que as coisas piorem, e fiquem mais caras. É um sistema de gestão globalmente falho.
Há uma óbvia dimensão ética. Tornar o acesso à saúde mais difícil, para ganhar mais dinheiro, é simplesmente imoral. E as empresas ganham mais dinheiro quando atende aos mais ricos. Que haja tanta desgraça em um país abastado como os EUA é algo simplesmente absurdo. O que os gigantes da gestão de ativos sabem sobre serviços de saúde, exceto em relação a quanto dinheiro podem extrair? Mas a dimensão econômica é igualmente absurda. E trata-se de economia básica: com muitos produtores e uma riqueza de escolhas, a concorrência pode estimular melhores produtos e preços. Não é o que acontece no caso do sistema de saúde.

Um amigo médico resumiu de forma clara para mim: ele trabalha em um hospital privado e precisa cumprir cotas de procedimentos, que o hospital cobrará do seguro saúde, que por sua vez dificulta a aprovação de procedimentos, exigindo que se avalie caso a caso. O grupo de seguro de saúde cobrará tanto quanto possível dos clientes. Ele geralmente está ligado a uma grande gestora de ativos, e o retorno para os investidores é central. No triângulo entre o médico, o hospital e os seguros de saúde, os interesses do paciente vêm por último. É caro e ineficiente – e aumenta o PIB. Mas o que precisamos é de mais saúde, serviços melhores e mais baratos. Quando você aumenta custos e preços, você aumenta o PIB, mas da maneira errada.

A ideia básica que estou tentando transmitir aqui é que algumas atividades funcionam claramente melhor em um ambiente de mercado livre, como produzir bicicletas, tomates ou abrir um bar. Mas colocar nossa saúde nas mãos de corporações financeiras em um ambiente de maximização de lucros é um tributo à incompetência. E as mortes e sofrimento resultantes são dramáticos, sem falar no sentimento permanente de insegurança, para nós e para nossas famílias. É apenas uma questão de seguir os exemplos comprovados do que funciona melhor: acesso público universal gratuito. Quanto tempo mais os norte-americanos continuarão cruzando a fronteira para o Canadá?

Ladislau Dowbor, Economista e professor titular de pós graduação.

Ricardo Antunes analisa o inferno da precarização

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Dicionário Marielle Franco mostra: hoje, o “andar de baixo” divide-se entre o temor do desemprego e o fardo da precarização. É hora de retomar uma pauta do século XIX: a redução da jornada de trabalho, como forma de gerar empregos e mitigar a exploração…

Ricardo Antunes – OUTRAS PALAVRAS – 03/05/2024

Nos últimos anos, diante de uma crise internacional do trabalho e do capital, a classe trabalhadora brasileira sofreu graves retaliações, como parte do processo de desindustrialização e da diminuição das garantias de direitos sociais sob a racionalidade neoliberal. Este impacto vem trazendo graves consequências, como o aumento da precarização das relações de trabalho, razão pela qual a população brasileira vem sofrendo com a informalidade, a uberização e a retirada de direitos trabalhistas. Para piorar este quadro, passamos pelos duros anos da pandemia da covid-19, o que fez com que as relações de trabalho ficassem ainda mais precarizadas. Além do aumento da fome, tivemos ainda o aumento do desemprego, o que levou muitos trabalhadores à informalidade chegando a marca de quase 39 milhões de brasileiros no mercado informal apenas em 2023, com dados revelados pelo IBGE.

Sabemos que tal crise, relacionada aos direitos trabalhistas aqui no Brasil, não se inicia hoje. A classe trabalhadora brasileira, em toda a sua diversidade e interseccionalidade, tem lutado há décadas por reconhecimento e redistribuição, tanto em seu trabalho produtivo quanto reprodutivo. A conquista dos direitos das trabalhadoras domésticas no Brasil, por exemplo, aconteceu de forma parcelada. Por um longo período direitos conquistados por outras categorias foram negados às trabalhadoras domésticas e até hoje a maior parte da categoria trabalha na informalidade e de forma precarizada. Inclusive, atualmente, as relações entre produção e reprodução têm sido cada vez mais conflituosas. Em 2017, por exemplo, protagonizamos grandes mobilizações nacionais contra a Reforma Trabalhista, apesar da criação da lei nº 13.467, responsável pelas mudanças bruscas nas leis que protegiam os(as) trabalhadores(as) formais brasileiros(as). Desde então, além do aumento da quantidade de trabalhadores(as) sem carteira assinada, as condições de trabalho passaram a ser mais instáveis, fortalecendo, assim, um novo modelo de contrato de trabalho intermitente, sem o pagamento de horas in itinere e de horas extras (em detrimento do banco de horas) e sem a consideração em relação ao tempo de mobilidade para o trabalho e ao tempo de almoço durante a jornada, por exemplo.

Além disso, passados alguns anos desde as reformas, em 2024 o debate sobre a uberização do trabalho volta à tona, e ganha cada vez mais o noticiário (e as ruas). Trabalhadores(as) de aplicativo vêm protestando quase que semanalmente nas avenidas das capitais em crítica às propostas governamentais e empresariais postas à mesa, que não garantem qualquer direito ao trabalhador(a) e fortalecem o papel da Indústria 4.0 – uma nova fase de impulsão capitalista marcada por uma enorme reestruturação produtiva permanente do capital. De acordo com matéria publicada no Brasil de Fato, em julho de 2023, “atrás do aplicativo (app) de transporte da norte-americana Uber, vieram os de comida, de entregas e de compras. Hoje existem cerca de 1,27 milhão de pessoas trabalhando como motoristas e outras 385 mil como entregadores para aplicativos no Brasil”.

Os dados compartilhados por esta mesma matéria revelam ainda o perfil destes(as) trabalhadores(as), levando em conta questões como raça, renda e tempo de jornada, com base em informações cedidas pelos próprios apps – 99, Uber, iFood, Zé Delivery e Amazon: “Entre os motoristas, 95% são homens, dos quais 62% declaram-se negros ou pardos, e têm em média 39 anos. Já entre os entregadores, 97% são homens, dos quais 68% se declaram negros ou pardos, com idade média de 33 anos”. O dado é de uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia.

A informalidade se soma, neste caso, ao racismo estruturado nas relações sociais e de trabalho no Brasil. Muitos(as) destes(as) trabalhadores(as) acabam sendo também criminalizados, marginalizados e perseguidos, seja dentro dos elevadores dos prédios em bairros nobres ou nas ruas, quando em busca da garantia do seu ganho de vida. A realidade das condições de trabalho informal e, em especial, dos(as) trabalhadores(as) da rua, como os ambulantes e camelôs, é também, há muito, degradante – ainda mais considerando, por exemplo, a cidade turística e super populosa do Rio de Janeiro. Diante das violações de direitos agravadas nos últimos anos, o Movimento Unidos do Camelôs (Muca), do Rio de Janeiro, trava há décadas uma luta contra a Guarda Municipal do Rio de Janeiro. Ou seja, não basta sofrer com retrocessos nas leis, ainda sofrem com a criminalização do próprio meio de trabalho pelas ruas da cidade.

O mundo do trabalho tem passado por constantes transformações tecnológicas, mas há cada vez mais retrocessos nas relações e nas garantias de direitos, sendo um deles os direitos trabalhistas. A população brasileira, mais uma vez, tem suas camadas sociais empobrecidas no meio desse jogo entre governos e empresas que visam cada vez mais o lucro – e que negociam direitos sem mesmo ter um sindicato ou organização com representação trabalhistas nas mesas de negociações, o que é o caso dos motoristas de Uber. Dentro disso, infelizmente, sabemos quem são as pessoas mais atingidas no nosso país, são elas: negras, pardas, não brancas, pobres, faveladas e periféricas.

Para refletirmos sobre esses desafios, considerando o papel político da classe trabalhadora, destacamos a entrevista com o sociólogo Ricardo Antunes, realizada pela EPSJV/Fiocruz, em abril de 2024, e publicada como verbete no Dicionário de Favelas Marielle Franco. (Introdução: Gizele Martins e Clara Polycarpo)

A classe trabalhadora não nasce sabendo o que fazer

Ricardo Antunes em entrevista a equipe da EPSJV/Fiocruz

Ricardo Antunes, sociólogo marxista e um dos mais influentes pensadores do país no tema mundo do trabalho, atualmente é professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e leciona disciplinas como Sociologia do Trabalho e Sociologia de Karl Marx. Antunes é também um dos mais importantes teóricos da obra marxiana da América Latina. Nesta entrevista, realizada e originalmente publicada na Revista Escola Politécnica em Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), em abril de 2024, Antunes avalia a realidade atual do mundo do trabalho no Brasil e no mundo nesta entrevista alusiva ao Dia Internacional dos Trabalhadores.

Já se passaram cerca de 140 anos desde a greve em Chicago que originou a celebração do 1º de maio demandava a redução da jornada de trabalho para 8 horas diárias. Isto continua a ser uma demanda?

A jornada de trabalho atualmente é um tema de gravidade relevante para aqueles setores que mais se expandem no mundo do trabalho: o do trabalho intermitente, o trabalho em plataforma, o trabalho uberizado ou o trabalho no setor de serviços. Nestes setores, que reforço, são os que mais se expandem, a jornada é ilimitada.

Veja que o Projeto de Lei Complementar do governo Lula – o PLP 12/2024 –, pasmem, sugere uma jornada limite por aplicativo de 12 horas. Imagine um trabalhador ou trabalhadora que opte por trabalhar em dois aplicativos. Em tese, num cálculo abstrato, eles podem chegar a 24 horas de jornada por dia! Se trabalhassem seis, sete horas, por aplicativo, chegariam facilmente a uma jornada de 13, 14 horas, como as nossas pesquisas têm mostrado. Então, a questão da jornada de trabalho hoje tem uma importância, de certo modo, semelhante a do século 18 e 19. Por quê?

Porque se a moda pega, ou se a porteira for aberta, nós não mais teremos jornadas de trabalho.

O que singulariza o trabalho intermitente em plataformas ou assemelhados é que se trabalha quando há trabalho disponível, e não se trabalha quando não há trabalho, e o tempo de espera não é contabilizado em termo de jornada. Trabalhamos este tema em nossos livros Icebergs à Deriva e Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. Jornadas de 12, 13, 14 horas, no Brasil e em vários países do mundo, não são mais a exceção, vêm se tornando a regra, especialmente se se contabilizar o tempo de espera. Para que todo mundo entenda bem: num shopping center, por exemplo, se um trabalhador que está numa loja comercial não atende clientes, ele está recebendo.

Um motorista ou entregador, em sua jornada diária, se não tem clientes mas está disponível para o trabalho, esse tempo não é contabilizado. Isto é uma questão crucial.

Também não se considera o tempo médio que se gasta em deslocamento, correto? Muitos trabalhadores saem de casa cinco, seis horas da manhã para voltar às oito da noite…

Pesquisas de Brasília mostram, por exemplo, que um trabalhador de moto que trabalha naquele cinturão ao lado de Brasília já leva 40 minutos – de moto! – para chegar ao trabalho no centro de Brasília. Imagine quando esse deslocamento não é de moto, mas de carro ou de transporte público.

A redução da jornada de trabalho para abertura de novas vagas deveria se manter como pauta, então?

Este é um desdobramento crucial desse tema, da jornada de trabalho. Atualmente há no mundo centenas de milhões de pessoas que trabalham 12, 14, 16, 18 horas por dia. E, ao mesmo tempo, temos centenas de milhões de pessoas que não trabalham nenhuma hora por semana, porque não têm nenhum trabalho. Seria muito elementar dizer: ‘vamos fazer uma média, trabalhemos seis horas por dia, todos e todas, de modo que ninguém fique sem trabalho’.

Ou seja, a redução da jornada de trabalho é um tema crucial hoje. E por que ele não entra na pauta? Porque as grandes corporações não aceitam essa conversa.

Elas querem extrair ao máximo tudo que a força de trabalho pode oferecer, num processo de exploração, expropriação e espoliação.

Como a demanda pela redução da jornada de trabalho, prévia ao próprio estabelecimento do Dia Internacional dos Trabalhadores, perdeu seu alcance mesmo a realidade atual sendo esta que você descreve?

São muitos os elementos que explicam isto. Primeiro, há hoje no mundo inteiro, com raras exceções, um desemprego estrutural, que não é exclusivo do Sul global, mas é grande e forte nos países capitalistas do centro, como se constata em tantos setores que desapareceram, indústrias que foram fechadas e no trabalho imigrante, que é recorrentemente buscado porque é aquele trabalho em que vale tudo e passa ao largo da legislação protetora do trabalho.

O segundo elemento: o maior temor da humanidade, hoje, é o desemprego. Não é que houve uma perda de consciência, por descuido dos movimentos organizados de trabalhadores. Se eu não tenho trabalho nenhum e o que me oferecem é uma jornada ilimitada, eu aceito, porque não tenho trabalho nenhum.

Neste novo tipo de emprego que não é emprego, de trabalho que não é considerado trabalho, nessa nova modalidade de prestação de serviço – que também é equivocada porque não é serviço –, as empresas querem esconder a condição de assalariamento, para, a partir da ideia de que são empreendedores ou colaboradores, obliterar as condições de assalariamento. Desse modo, você pode burlar a legislação social protetora do trabalho.

Então, em síntese, nós estamos vivendo uma crise estrutural, não estamos vivendo uma crise conjuntural. A crise é da humanidade, da civilização.

A lógica destrutiva capitalista levou a natureza a esse nível de destruição e o trabalho a esse nível de devastação, trouxe xenofobia, racismo, o neofascismo. Tudo isso se expande.

Este cenário faz com que eu só possa defender e lutar por um trabalho, ainda que ele não seja portador de direito nenhum. Porque se eu não tiver este, eu não tenho nada.

Um cenário de Estado de Bem-Estar Social parece cada dia mais distante. Os sindicatos têm responsabilidade nisto?

Os sindicatos se acomodaram. Isto vale também para o cenário europeu. Quando a gente fala em bem-estar social hoje é preciso tomar muito cuidado. Porque estes direitos de bem-estar não chegam aos imigrantes.

Trabalhadores imigrantes não têm direito algum. São tratados quase como párias sociais. Esta dificuldade faz com que a jornada não ganhe o estatuto da questão crucial para a classe trabalhadora, em sentido amplo. Porque a questão crucial é ter emprego para sobreviver. Eu só vou lutar por uma jornada melhor depois que eu tiver emprego.

Os operários ingleses dos séculos 18 e 19 passaram a lutar fortemente pela redução da jornada de trabalho, uma luta de muitas décadas, quando o emprego lhes estava garantido porque o mundo industrial estava em expansão. Hoje nós vivemos um mundo industrial, de agroindústria e de serviços em crise. Financeirizado. Nele, a prioridade é lutar pelo emprego, pela sobrevivência.

Feito isso, vêm a segunda luta, a terceira luta, e as lutas retornam.

A migração de plantas produtivas e a entrada de novos contingentes de mão de obra colaboram de que forma para este cenário? Qual o impacto de você ter um bilhão de trabalhadores chineses, por exemplo, sendo incorporados ao mercado de trabalho de uma economia globalizada?

O capitalismo do nosso tempo é muito diferente daquele que tínhamos nos anos 1980 e mesmo 1990.

Por quê? Além de toda a explosão tecnológica e do aguçamento da crise estrutural do capital, que só cresce destruindo a natureza, o trabalho e o gênero humano, a grande maquinofatura do mundo hoje está na China. Isso trouxe desindustrialização dos países europeus e de vários países do Sul global. As grandes empresas capitalistas estão na China. A Volkswagen está na China, a Fiat está na China, a Mercedes-Benz está na China. Todas elas migraram.

A China se transformou, de uma revolução socialista autárquica e fechada em si mesma, que possui tudo aquilo que ela precisa para sobreviver, como era o projeto de Mao Tsé-Tung, em uma China pós-maoista em que há criação do socialismo de mercado, que para mim é um eufemismo para defender o capitalismo. O nível de exploração do trabalho na China dez anos atrás era brutal, e foi preciso ocorrerem muitas greves do operariado chinês para que fosse reduzida esta brutalidade. Há o sistema chinês que chamam de 996, no qual você trabalha das 9h da manhã às 9h da noite, seis dias por semana. É brutal, é uma superexploração do trabalho. Mas isso mudou a máquina.

Além disso, o capitalismo hoje se sustenta numa economia financeirizada, que impulsiona as taxas de lucro no setor de serviços.

Houve, portanto, a transformação capitalista dos serviços. De públicos, eles se tornaram privados. Ou seja, nós temos hoje um ramo em expansão da indústria no mundo inteiro: a indústria de serviços. Porque a indústria de transformação, está na China abocanhou. Isto é uma mudança profunda no cenário mundial.

O setor de serviços engloba diferentes categorias, dos trabalhadores de aplicativos até médicos, por exemplo. Todos se enxergam como trabalhadores?

Não. Se você falar, em uma greve de professores universitários, que eles são classe trabalhadora, vai ter professor que vai ficar nervoso, vai se incomodar. Isso vale para médico, advogado, o segmento assalariado das classes médias. Mesmo que as classes médias estejam descendo um elevador em direção à proletarização na vida real, elas sonham com o elevador que as
vai levar ao céu. Elas sonham com o paraíso, ainda que estejam derrapando para o inferno.

O setor que mais se expande é o proletariado de serviços: call center, indústria hoteleira, fast food, trabalhadores em plataformas… Estes são proletários, o que não quer dizer que tenham esta consciência. A classe trabalhadora da Inglaterra de 1730 também não tinha consciência de sua condição operária. Muitos estavam saindo do mundo servil, feudal, rural.

A consciência de classe é um fenômeno muito complexo e difícil. Sabe por quê? É nele que o ideário capitalista e que o neoliberalismo vêm operando há mais ou menos 50 anos, desde a década de 1970.

Isto explica por que trabalhadores que hoje trabalham como entregadores, de motos e até mesmo bicicletas alugadas, se jogam na ideologia do empreendedorismo.

As plataformas são tão impressionantes que quem entra com o carro? O trabalhador. Quem entra com a moto? O trabalhador. Quem entra com a bicicleta? O trabalhador. Quem entra com o celular? O trabalhador. Ou seja, a responsabilidade de prover o instrumental de trabalho foi transferida para o trabalhador.

O impacto da ideologia neoliberal continua muito forte, apesar da crescente dificuldade para subsistir?

Quando eu trabalhei na universidade inglesa, em Sunderland, entre 1997 e 1998, convidado pelo meu amigo István Mészáros, preparava meu livro para o concurso de professor titular, que foi Os
Sentidos do Trabalho. Nele eu lembrava que a Margaret Thatcher, em seus primeiros discursos após ganhar as eleições, dizia querer que cada indivíduo do Reino Unido sonhasse em ser um indivíduo possessivo, um indivíduo que fosse proprietário de si mesmo. Esse discurso se perpetuou no governo John Major e, no período em que lá estive, continuava presente durante a gestão de Tony Blair.

O representante da chamada “Terceira Via”…

Sim, a Margaret Tatcher dizia o seguinte sobre ele: “Esse menino é um menino de futuro”. Os ingleses críticos chamavam o Tony Blair de ‘Tory’ Blair, porque ‘tory’ é o nome do partido conservador inglês. Eu estava lendo os discursos que ela tinha feito uma década antes (anos 1980), e naquela época (1997-998) eu dizia: ‘Não é possível!’. E a verdade é que isto foi possível e entrou no mundo todo. Nós estamos vivendo uma era de desencanto do mundo. Estamos vivendo uma era de derrotas muito duras. O projeto socialista russo e soviético terminou tragicamente.

Em 2008, 2009, nós estávamos animados aqui com a revolta da Tunísia, Occupy Wall Street, vitória das esquerdas na Grécia, depois revolta em Portugal… Nada disso avançou.

A possibilidade de uma ‘Internacional’ hoje é mais factível para a extrema direita do que para a esquerda?

A direita está se organizando globalmente. O [Jair] Bolsonaro é uma peça de um cenário que tem o [Donald] Trump, o [Viktor] Orbán na Hungria, o [Matteo] Salvini e a [Giorgia] Meloni na Itália, que tem crescimento em Portugal, na Inglaterra, o ressurgimento da extrema direita na Alemanha, na Suíça… Nós temos um movimento, digamos, favorável ao ressurgimento do neofascismo, do neonazismo. Muito forte, aliás. Tudo isso dificulta a ação da classe trabalhadora. Quando tudo vai mal na Terra, a única esperança é que exista um reino fora da Terra, em que as coisas funcionam. Daí a crença na teologia da prosperidade.

Esta teologia parece crescer junto ao ideal neoliberal. É como se ela fosse a tradução litúrgica de um novo ideário individualista?

Exatamente. Está certo dizer ‘eu vou resolver o meu problema’. Eu tenho que abraçar uma religião na qual a solidariedade é o que menos conta. Eu tenho é que fazer a coisa certa e fazer a coisa certa significa começar a enriquecer na Terra. Nem todos os evangélicos são de extrema direita, mas há uma forte extrema direita majoritária entre eles, que está nos Estados Unidos, em países da Europa e aqui no Brasil também. E está entrando na Argentina.

Já se fala em uma quinta revolução industrial, na qual os seres humanos e a inteligência artificial precisariam aumentar sua colaboração em prol dos objetivos da empresa. Como você avalia este tipo de discurso?

Eu entrei há uns meses atrás no SAC [Serviço de Atendimento ao Cliente] do site da OpenAI, que é a criadora do ChatGPT 4. Eu ainda não sei se continua lá em seu site, mas ela dizia que era inimaginável o número de trabalhos que iriam desaparecer com a Inteligência Artificial. Eu quase caí de costas. Inteligência artificial, robotização, automatização, internet das coisas, tudo isso significa o trabalho vivo desaparecer e o trabalho morto não ser mais uma máquina, algo dotado de materialidade, mas algo informacional, digital e algorítmico. Esta nova ‘máquina’ comanda você.

Não resta mais a opção ‘ludista’, de se voltar contra o avanço da tecnologia, correto? Não há nenhuma máquina para se quebrar…

É, se você quiser quebrar o algoritmo, você não o vê. Eu estudo esse tema há dez anos e nunca vi o algoritmo. Entendeu o tamanho da complexidade? Essas mudanças exploram o trabalho no mundo inteiro.

É o trabalho que subsidia as informações para a Inteligência Artificial. Eu chamei isso de privilégio da servidão de escravidão digital.

Nós estamos adentrando um mundo onde somos escravos digitais, em várias dimensões e em várias amplitudes. O resultado disso é que o cronômetro do Taylor [Frederick Taylor andava por sua fábrica com um cronômetro com o qual media a relação entre o trabalho realizado e o volume de recursos utilizados através do tempo] não faz mais sentido, porque ele foi substituído pelas metas que são interiorizadas em nossa subjetividade. Todos os entregadores e motoristas que eu entrevistei dizem: ‘eu só paro de trabalhar quando cumpro minha meta’.

O que leva a lista de doenças relacionadas ao trabalho passar a considerar o esgotamento pela síndrome de burnout, ansiedade, depressão…

Qual é o ideário empresarial? Termos resiliência e sinergia. Bom, isto é uma empulhação, é a adulteração completa do léxico. Eu já tratei disso em vários estudos: você querer ser resiliente e trabalhar 48 horas num dia, mesmo ele só tendo 24 horas… Você ter que dar mais do que pode, a resiliência, gera o burnout, o estresse, a depressão e até mesmo o suicídio.

Este é o cenário, e a síntese é: a resiliência é a porta de entrada do burnout. Chega uma hora em que eu apago, e daí eu tenho que ir para um psiquiatra, um médico.

Por quê? Porque eu não dou conta mais deste inferno.

Como enfrentar isto e não ficar paralisado diante dessa realidade?

A classe trabalhadora não nasce sabendo o que fazer. Ela adquire o sentido coletivo na experiência. O chamado Breque dos Apps, em plena pandemia, entrou para a história da luta dos trabalhadores uberizados do Brasil, como várias outras que ocorreram na Inglaterra, na França, na Itália, nos Estados Unidos, na Índia, na China, na África do Sul.

Nós estamos lançando agora, daqui a alguns dias, um livro que vai se chamar Trabalho em plataformas digitais – Regulamentação ou desregulamentação?. Enquanto termino a obra, eu olho para o exemplo do que ocorre na Europa. O Parlamento Europeu aprovou na semana passada a diretiva da União Europeia de que nós precisamos ter a presunção de que todos os trabalhadores das plataformas são empregados e não autônomos. Esta é a presunção. Tem que valer para todo trabalho. ‘Ah, professor, mas isso a gente não consegue’. Aí entra o ponto dois: conseguir isto através de organização e luta. Eu estou citando a diretiva da União Europeia, não uma reivindicação socialista.

É preciso tirar a aparência de neutralidade das plataformas, dos algoritmos. Precisamos desnudar o algoritmo. As empresas não abrem isso, mas têm que abrir. Então, as lutas são as mesmas do operariado do século 18, com a diferença que nós não estamos no século 18 mas no 21. Olhe que tragédia! Nós estamos numa era de monumental avanço tecnológico controlado pelos Elon Musk e Jeff Bezos [segundo e terceiro homens mais ricos do mundo] et caterva.

E qual é o momento da instabilidade, da ruptura? Ninguém sabe, isto é o que é genial da História, é imprevisível. Então, nós temos que lutar. Sem luta, não chegamos a ele, sem organização, consciência e força social também não chegamos a ele, mas há um momento em que, lembrando [Karl] Marx, “tudo que é sólido desmancha no ar”.

Ricardo Antunes,
É um sociólogo marxista brasileiro. Atualmente é professor titular da Universidade Estadual de Campinas.

A Universidade funcionalista, por Jean Pierre Chauvin

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Jean Pierre Chauvin – A Terra é Redonda – 11/05/2024

O contrato de orientação entre professores e orientandos não deve(ria) funcionar como se a universidade fosse um balcão de negócios

Desde os anos 1980 Marilena Chauí [1] oferece-nos diagnósticos precisos sobre o contágio da universidade pelos pressupostos neoliberais, dentre eles o deslocamento da pesquisa e da docência extracurricular, que passaram de atividades-fim para meios de se obter financiamento – quase sempre segundo as regras do capital privado, pautado pela ideologia da “competência” e “performance”.

Em sua tese de livre-docência, defendida em 2002 na área de Literatura Brasileira, João Adolfo Hansen sugeria que, desde o início da década de 1980, a universidade passara a se estruturar e funcionar como uma grande empresa, com o advento dos pressupostos que orbitam os modelos de gestão e estimulam a concorrência entre colegas, segundo a (anti)ética do lucro.

Como sabemos, a discussão é antiga também em outros países. Entre as décadas de 1950 e 1960, Edgar Morin [2] foi um dos primeiros a observar que o intelectual ocupava lugar ambivalente na sociedade dita “pós-moderna”, pois corria o risco de irradiar juízos críticos sobre a instituição que o sustentava.

Decorridas seis décadas, o que dizer da relação entre pesquisadores e docentes, quando seus projetos são submetidos aos desígnios das grandes empresas, bancos e corporações?

Em que estágio está a universidade, hoje? Ela está a “superar” a si mesma, na campanha de estrita obediência aos ditames do neoliberalismo. Quero dizer, a instituição de ensino superior aprimorou o perfil “operacional” (como mostrava Chauí), refinando a concepção “gerencial” (como aventara Hansen), reforçando os questionáveis critérios da avaliação quantitativa.

Obviamente, as métricas que orientam as agências de fomento se combinaram aos rigores crescentes da instituição de ensino.

Uma das razões do mal-estar docente reside no fato de nos sentirmos julgados sem cessar por um tribunal onipresente (instalado desde os departamentos até a reitoria), correndo o sério risco de lidarmos com sentenças recriminatórias sobre a pequena “produção” ou nossa inapetência em “captar recursos”.

Ora, e como se captam recursos? Apresentando-se projetos de pesquisa rentáveis (aos olhos do “mercado”), de preferência pragmáticos e exequíveis, que carreiem o nome da universidade para além do território nacional, com a logomarca da empresa em primeiro plano.

Mas deixemos a estratosfera do grande capital. Em escala mais modesta, digamos, entre os corredores e as salas de aula, crescem episódios protagonizados por alunos que, antes mesmo de amadurecer seus projetos de pesquisa (sejam de Iniciação científica, sejam de Pós-graduação), correm atrás dos docentes em busca de recompensas pecuniárias por trabalhos que sequer iniciaram.

Repare-se. Não se está a negar a importância das bolsas e auxílios: o pesquisador tem direito a eles, considerando a sua ocupação na universidade e fora dela. Por sinal, uma das nossas lutas se dá justamente pela ampliação dos recursos que promovam e estimulem as pesquisas. O que se está a questionar é a aparente inversão das prioridades (e das etapas) relacionadas ao trabalho acadêmico: a pesquisa é um fim; não um pretexto para recompensa antecipada.

Salvo engano, a universidade funcionalista está a naturalizar a relação de barganha entre alunos e docentes, segundo uma racionalidade utilitária, mediada pela relação interpessoal pragmática e o espírito da livre-concorrência. Ainda a esse respeito, supomos que, para além dos conteúdos didáticos, possa-se rediscutir os pressupostos, réguas e pretensões do mercado.

Contudo, quando as aulas e as atividades de pesquisa cedem o lugar (da curiosidade, do conhecimento, da reflexão) à transação financeira, cumpre recordar que o contrato de orientação entre professores e orientandos não deve(ria) funcionar como se a universidade fosse um balcão de negócios.

*Jean Pierre Chauvin é professor de Cultura e literatura brasileira na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros de Sete Falas: ensaios sobre tipologias discursivas.

Notas

[1] Refiro-me a Escritos sobre a universidade. São Paulo: Unesp, 2001.
[2] Cultura de Massas no Século XX – O Espírito do Tempo – Neurose e Necrose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2018.

Brasil é pior inimigo do Brasil na busca por liderança internacional, por Daniel Buarque

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Problemas domésticos prejudicam ascensão na hierarquia global, aponta pesquisa

Daniel Buarque – Folha de São Paulo – 12/05/2024

[RESUMO] Autor apresenta conclusões de sua pesquisa de doutorado, em que realizou 94 entrevistas com membros da comunidade de política externa para mapear a imagem internacional do Brasil. Embora aspire a ser um líder global, o país é percebido como um peão no xadrez geopolítico, um ator periférico prestigiado pelas grandes potências só quando convém a elas. Falta de reconhecimento é reflexo de problemas internos do país, aponta estudo.

Desde o início da invasão da Ucrânia pela Rússia, o Brasil se ofereceu para ser um mediador entre os dois países, tanto com Jair Bolsonaro (PL) quanto sob Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Quando começou o atual governo, a “doutrina Lula” tentou construir a ideia de que “o Brasil voltou” e quis melhorar a sua imagem internacional.

O Brasil começou a buscar protagonismo em questões ambientais, quis retomar uma liderança em temas regionais, procurou grandes acordos comerciais e até buscou conduzir uma votação pelo cessar-fogo na Faixa de Gaza. Além disso, retomou a aposta no multilateralismo e na busca pela reforma da governança global, reiterando o interesse em um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.

Lula até encontrou boa vontade internacional, a imagem do país melhorou e ele conseguiu liderar o Conselho de Segurança por um mês e presidir o G 20, além de ganhar o direito de sediar a conferência do clima.

No entanto, a maioria das tentativas de ter um papel realmente significativo em questões internacionais importantes, motivadas em ampla medida pela ambição de ser um ator de peso na política global, continua esbarrando na falta de reconhecimento internacional de um alto status do país.

Mesmo com todo o esforço para aumentar o prestígio brasileiro, a percepção das nações mais poderosas do planeta é que o país não é suficientemente relevante para influenciar as grandes questões internacionais. Isso vale especialmente para quando elas envolvem discussões sobre segurança, guerra e paz. Para as grandes potências globais, o Brasil não passa de um peão no xadrez da geopolítica global.

Apesar do trabalho sério desenvolvido pelo Itamaraty ao longo de décadas, o problema não está necessariamente no que o Brasil faz em sua atuação internacional. A falta de reconhecimento para o prestígio é um reflexo, em ampla medida, de problemas internos do país, que precisam ser o foco antes de qualquer tentativa de projeção internacional.

Esses são alguns dos pontos centrais do livro “Brazil’s International Status and Recognition as na Emerging Power: Inconsistencies and complexities”, recém-publicado pela editora Palgrave Macmillan. A obra reúne os principais achados de uma pesquisa desenvolvida durante meu doutorado pelo King’s College, de Londres. O estudo analisou a longa aspiração brasileira por alto status internacional em contraste com a percepção externa sobre o papel que o país pode desempenhar no mundo.

Para entender o lugar ocupado pelo Brasil na complexa geopolítica desde o fim da Guerra Fria, a pesquisa se baseou em 94 entrevistas com a comunidade de política externa dos países que já são reconhecidos como potências globais: EUA, China, Rússia, Reino Unido e França —os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU.

UM ‘PEÃO COBIÇADO’

As grandes potências veem o Brasil como um país sem peso na política internacional. A percepção é que o Brasil não passa de um país médio que não tem legitimidade para atuar em questões importantes de segurança global.

Uma razão para essa avaliação é geográfica. O Brasil é percebido como periférico e pacífico, localizado em uma região longe das principais ameaças e disputas do mundo, e por isso não precisaria nem deveria se envolver nesses casos.

Outro ponto importante é que o país enfrenta limites em suas capacidades militares e econômicas, portanto não teria poder suficiente para ser preponderante em escala global.

Paradoxalmente, o Brasil é desejado como um aliado por essas mesmas potências, que buscam utilizá-lo como uma peça estratégica em suas rivalidades e seus interesses globais. Apesar de ser visto como um peão, seu apoio é cobiçado dentro do grande jogo da geopolítica.

Isso explica a frustração do Ocidente com a “equidistância” do país em relação à Guerra da Ucrânia e sobre as críticas de Lula a Israel. Ajuda a entender também a mobilização da China para manter o país envolvido nas ações do Brics e na tentativa de fortalecer outras moedas como alternativa ao dólar em negociações internacionais.

Na realpolitik, cada potência está interessada apenas em avançar seus próprios interesses geopolíticos. O Brasil recebe apoio e alguma forma de reconhecimento somente quando isso indica algum benefício para elas.

BRASIL CONTRA BRAZIL

Ser visto como um peão vai contra a histórica ambição de grandeza do país nas relações internacionais. Isso, contudo, ultrapassa as limitações geográficas e de poder econômico e militar. O Brasil é o maior inimigo do Brasil em sua busca por maior status internacional, avaliaram muitos dos entrevistados na pesquisa.

A percepção externa é que, embora o Brasil realmente tenha muito potencial e sua imagem internacional seja geralmente positiva, o país não alcançou um alto status por causa de seus próprios problemas domésticos, que prejudicam seu desenvolvimento e sua ascensão na hierarquia global. Uma situação doméstica —social, econômica e política— de desordem e incerteza mina a influência internacional mais que qualquer atuação no exterior.

Para essas nações poderosas, países com ambição de emergir entre os mais importantes do mundo devem “fazer sua lição de casa” e “arrumar as coisas internamente” antes de serem aceitos no clube de “alto status internacional”.

Trata-se de uma visão meritocrática da ordem internacional —e uma interpretação do prestígio global que pode ser criticada—, mas que reflete a forma como a comunidade de política externa das nações mais poderosas pensa sobre a ordem global.

Ao observar o Brasil nas últimas décadas, há fortes evidências da importância da situação doméstica para seu prestígio. A estabilização e o crescimento da economia, a expansão da classe média, o fato de o país ter se tornado autossuficiente na produção de energia, a expansão das commodities e a consolidação da democracia no final dos anos 1990 levaram a uma narrativa sobre o aumento do status internac ional do Brasil. Em 2009, a revista britânica The Economist estampava em sua capa a imagem do Cristo Redentor decolando.

Em 2013, contudo, uma série de crises sociais, políticas e econômicas mudou essa situação. Os anos seguintes foram de recessão, escândalos de corrupção, violência e violações de direitos humanos, autoritarismo, negacionismo científico e ameaça à democracia, tornando mais difícil para o Brasil alcançar reconhecimento externo.

Entender a importância do contexto doméstico pode servir como referência para repensar as estratégias do país na construção de um lugar para o Brasil no mundo.

O estudo apresentado aqui indica que focar questões internas (especialmente na economia) e corrigir problemas domésticos são percebidos como os meios mais eficientes para aumentar o status internacional de um país.

Ao buscar destaque em sua atuação internacional, o Brasil deveria dar mais atenção ao que acontece dentro do país, melhorando sua realidade antes de querer se projetar ao mundo.

EUA perderam a América Latina para a China, por Igor Patrick

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Políticos latinos dizem que em Pequim encontram promessas de investimentos; de Washington, voltam com palestras

Igor Patrick, Jornalista, mestre em Estudos da China pela Academia Yenching (Universidade de Pequim) e em Assuntos Globais pela Universidade Tsinghua

Folha de São Paulo, 11/05/2024

Na semana que vem, o Congresso americano vai precisar votar a renovação da concessão de fundos à Corporação Financeira de Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos (DFC, na sigla em inglês), o resultado de uma fusão de várias agências de promoção ao desenvolvimento criado durante o governo de Donald Trump para fazer frente à Iniciativa Cinturão e Rota.
Acompanhei in loco o debate na Câmara e adianto: os argumentos levantados durante a audiência pública sobre o tema deixam claro que os EUA vão perder o trem na competição com a China por influência na América Latina.

Há várias razões para esta conclusão. Para começar, não acho que ninguém minimamente informado acreditou algum dia que a DFC conseguiria fazer frente aos chineses. O fundo que financia as operações da corporação chega a US$ 60 bilhões, contra quase US$ 1 trilhão prometido pelos chineses no lançamento da Cinturão e Rota.

A distribuição do dinheiro também está sujeita a uma série de requisitos, sendo o pior o fato de que ao criar o órgão, congressistas americanos limitaram a maior parte dos recursos a países classificados de pobres pelo Banco Mundial. Essa regra não faz nenhum sentido, e mesmo os coordenadores da DFC admitem isso. Ao ranquear as economias de países ao redor do mundo, o Banco Mundial não leva em consideração questões como variação cambial, poder de paridade de compra e desigualdade. A própria instituição nem sequer usa apenas essa variável na hora de conceder empréstimos.

Consequentemente, países como o Brasil são classificados de “renda média superior”, o que automaticamente nos exclui de receber investimentos substanciais por parte dos americanos. Alguém aí diria que nossa infraestrutura é semelhante à chinesa, outro país posto pelo Banco Mundial sob o mesmo guarda-chuva?

Além disso, o dinheiro que vem de Washington geralmente vem atrelado a uma série de compromissos, como a promoção de reformas políticas e melhora do ambiente de negócios. Não são regras necessariamente ruins, claro, mas atrasam significativamente a aprovação e o recebimento das verbas.

Para um país de tamanho e economia médios, faz pouco sentido esperar anos por um dinheiro que, os chineses, muito mais pragmáticos e desinteressados em interferir na governança doméstica de nações terceiras, conseguem entregar em meses. Políticos latinos também têm por tradição abraçar projetos de infraestrutura que possam mostrar em suas campanhas eleitorais —e o calendário das eleições nem sempre é compatível com o tempo necessário para garantir a sustentabilidade de tais obras.

Por fim, só agora começa a cair a ficha em Washington que a presunção ao tratar a América Latina como seu quintal de influência estava baseada em premissas frágeis. Não me entendam mal, é inegável que os EUA ainda são parceiros essenciais de vários dos nossos vizinhos, mas agora há uma nova opção: a China.

Mesmo assim, não vemos nenhuma movimentação para mudar o panorama. Os EUA estão ocupados demais resolvendo a miríade de disputas políticas internas e agora se veem às voltas com a possibilidade de eleger um candidato abertamente isolacionista.

Não há clima no Congresso para ampliar um auxílio financeiro para atenuar o enorme déficit de infraestrutura na América Latina. O dinheiro disponível está fluindo para o Indo-Pacífico, única região no mundo cuja importância é consenso bipartidário, dada a necessidade de fazer frente aos chineses.

Quando encontro fontes do governo Joe Biden, essas pessoas quase sempre gostam de defender o que vêm fazendo pelos latino-americanos e enunciam de cabeça uma série de projetos na região. É só perguntar sobre o valor empreendido em cada um deles para fazê-los corar e invariavelmente admitir que deveriam estar gastando mais se quiserem competir de verdade com Pequim.

Ao longo dos últimos meses ouvi de dezenas de políticos latinos que, quando viajam à China, voltam para casa com acordos e promessas de investimentos. Dos EUA, voltam com uma palestra sobre o que deveriam estar ou não fazendo. Os cães ladram e o dragão passa.

Universidades como fábricas, por Eleutério F. S. Prado

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Eleutério F. S. Prado

A Terra é Redonda – 10/05/2024
Sob a hegemonia do neoliberalismo, vem ocorrendo uma subjugação franca e brutal de todas as relações sociais às relações de mercado, inclusive as que se dão em uma universidade
Faz-se aqui uma introdução a um pequeno e certeiro artigo de Branko Milanovic [1] que foi publicado no portal Sin permiso em 05 de maio de 2024, com o título acima. Eis o que constata: sob a hegemonia do neoliberalismo, vem ocorrendo uma subjugação franca e brutal de todas as relações sociais às relações de mercado, inclusive as que se dão em uma universidade.

Apresenta-se em sequência, uma tradução do seu escrito que fala do comportamento repressivo das autoridades universitárias diante do levante de grupos de estudantes nos Estados Unidos em favor da causa palestina. Ao fim de sua acusação – ela diz que as universidades estão sendo administradas como fábricas – segue-se um comentário que visa mostrar que esse tipo de “governança” é imanente ao neoliberalismo, ora hegemônico. Veja-se, portanto, de início, o que
ele próprio escreveu em seu blog:

A denúncia de Milanovic

Vi e li sobre muitos casos em que a polícia expulsou estudantes que protestavam das universidades. A polícia vinha ao campus por ordem das autoridades descontentes com os oásis de liberdade criados pelos estudantes. Ela chegava, armada, agredia os estudantes e punha fim ao protesto. A administração universitária se colocava ao lado dos estudantes, invocava “a autonomia da universidade” (isto é, o direito de ficar fora da vigilância policial), ameaçava renunciar ou se demitir. Este era o padrão usual.

O que foi novo, para mim, na atual onda de manifestações pela liberdade de expressão nos Estados Unidos, foi ver que foram os próprios administradores das universidades aqueles que chamaram a polícia para atacar os estudantes. Em pelo menos um caso, em Nova York, a polícia ficou perplexa com o pedido de intervenção e até achou que ela seria contraproducente.

É bem compreensível que essa atitude de autoridades universitária possa ocorrer em países autoritários, onde são nomeadas pelos poderes constituídos para manter a ordem nos campi. Como são, obviamente, funcionários obedientes, elas apoiam a polícia em sua atividade de “limpeza”, embora raramente tenham autoridade para convocá-la.

Mas nos EUA, os administradores universitários não são nomeados por Joe Biden ou pelo Congresso. Por que então atacariam seus próprios alunos? Seriam eles seres malvados que adoram subjugar os mais jovens?

A resposta é não. Eles simplesmente assumiram uma nova missão. Eles não veem mais o seu papel como defensores da liberdade de pensamento, tal como ocorria nas universidades tradicionais.

Eles não estão tentando mais transmitir às gerações mais jovens valores de liberdade, moralidade, compaixão, altruísmo, empatia ou o que mais for considerado desejável.

O seu papel hoje é o de diretores de fábricas que são ainda chamadas de universidades. Essas fábricas têm uma matéria-prima chamada estudantes, a qual é convertida, em intervalos anuais regulares, em novos graduados para os mercados. Portanto, qualquer interrupção nesse processo de produção é como uma interrupção em uma cadeia de suprimentos.

Ela deve ser removida o mais rápido possível para que a produção possa ser retomada. É preciso dar saída aos estudantes graduados, trazer os novos, embolsar o dinheiro, encontrar doadores, obter mais fundos. Se os alunos interferirem nesse processo, eles devem ser disciplinados, se necessário pela força. A polícia deve ser acionada para que a ordem seja restaurada.

Os gestores não estão interessados em valores, mas em demonstração de resultados. O seu trabalho é equivalente ao de um diretor geral no Walmart, Amazon ou Burger King. Para tanto, poderão usar o discurso sobre valores, ou sobre um “ambiente intelectualmente desafiador”, ou mesmo sobre um “debate vibrante” (ou o que quer que seja!), tal como se vê nos discursos promocionais habituais que os altos gestores das empresas produzem hoje ao primeiro sinal de dificuldade.

Não é que ninguém acredite nesses discursos. Mas é preciso pronunciá-los. Trata-se de uma hipocrisia amplamente aceita. A questão é que tal nível de hipocrisia ainda não era totalmente comum nas universidades porque, por razões históricas, elas não eram exatamente vistas como semelhantes às fábricas de salsichas. Eles deveriam produzir pessoas melhores. Mas isso foi esquecido na corrida por renda e dinheiro de doadores. Como tais, as fábricas de salsichas não podem parar e a polícia precisa ser chamada [quando elas iniciam um protesto].

Um comentário crítico

O que é, afinal, o neoliberalismo? Uma boa resposta para essa pergunta é necessária para compreender melhor o fato histórico relatado por Branko Milanovic.

A compreensão do neoliberalismo, ao contrário do que pensa Dardot e Laval, não pode ser encontrada antes em Michel Foucault do que em Karl Marx. Pois, é preciso ver que o primeiro filósofo fornece apenas um modo quase idealista de compreender esse fenômeno sociocultural. A sua característica marcante é que privilegia o discurso (que configura as interações sociais) em detrimento de uma compreensão da práxis (atuação social fundada em determinadas relações sociais de produção).

Veja-se que é por meio de uma análise do discurso como aparato de poder que chegam a uma compreensão desse fenômeno: “o neoliberalismo, antes de ser uma ideologia ou uma política econômica” – dizem eles –, é em primeiro lugar e fundamentalmente uma racionalidade e, como tal, tende a estruturar e organizar não apenas a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos governados”. (Dardot e Laval, 2016, p. 17).

A filosofia da práxis não se concentra em examinar os discursos, pois procura apresentar antes a lógica de reprodução do sistema econômico baseado na relação de capital, as classes que daí se originam, o Estado que procura selar as contradições, assim como as ideologias que tentam bloquear uma boa compreensão dessas contradições e de sua lógica de desenvolvimento, para que o próprio sistema prospere sem contestações radicais. Aqui se examina apenas as ideologias tendo por base os estudos clássicos de Ruy Fausto.

Ora, ideologia não vem a ser pretensão de saber que falsifica a realidade tendo em vista algum interesse, mas uma compreensão do social que se instala e se fixa na aparência dos fenômenos, procurando bloquear uma conscientização sobre a sua essência. Como diz Ruy Fausto, “a ideologia é o bloqueio das significações”. Assim, ela “torna positivo (…) aquilo que é em si mesmo negativo, aquilo que contém negatividade” (Fausto, 1987, p. 299).

Essa compreensão de ideologia, que a vincula à práxis social no modo de produção capitalista, permite entender melhor as três grandes que se impuseram na história do capitalismo, a saber, o liberalismo clássico, o liberalismo social e o neoliberalismo. Pois, elas dão forma a três modos de bloquear o aparecimento da contradição que move o capitalismo, qual seja ela, a contradição entre o capital e o trabalho assalariado. Para compreendê-las é preciso ver que esse modo de produção tem uma aparência, os mercados em que se vendem e se compram mercadorias em regime de competição, e uma essência, a subsunção do trabalho ao capital e, assim, a exploração do trabalho vivo pelo trabalho morto (agenciado como capital) nas fábricas em geral.

Assim, por exemplo, o liberalismo clássico guarda do capitalismo apenas a sua aparência de economia de mercado; desse modo, ele afirma a igualdade e a liberdade dos contratantes que buscam, supostamente, o seu auto-interesse. Contudo, quando se examina criticamente a relação contratual de troca entre o capitalista e o trabalhador, como aparência de uma relação de produção que vincula capital e trabalho, como relação entre o dono dos meios de produção e os possuidores de força de trabalho, vê-se que o capitalismo se eleva sobre a negação da igualdade e da liberdade dos contratantes, sobre a negação do auto-interesse já que ele consiste apenas numa subordinação dos interesses privados ao “interesse” maior da valorização do capital. Ao fixar a aparência da circulação, o liberalismo como ideologia oculta a contradição que mora na produção, para que o sistema possa prosperar.

Na história do capitalismo, o liberalismo clássico foi substituído, primeiro, pelo liberalismo social (que apareceu também como social-democracia) e, depois, pelo neoliberalismo.
O liberalismo com preocupação social – escreveu-se já há quase vinte anos atrás (Prado, 2005) – surge historicamente quando a aparência do modo de produção é desmentida na prática social, quando se torna perigoso para os capitalistas aferrarem-se à mera forma exterior da relação social de produção, quando a conservação do sistema torna-se ameaçada pela radicalidade das lutas sociais e pelas crises econômicas que as tornam ainda mais profundas. Então, a ideologia não pode mais se sustentar apenas na aparência da relação social, qual seja ela, a circulação e concorrência mercantil; ela precisa agora, de certo modo, ter em conta a própria essência dessa relação.

A fórmula que emerge consiste em apresentar a essência, não como contradição, mas como diferença; a contradição é assim reificada como forças sociais em confronto. E essas forças são distintas: uma delas é mais fraca do que a outra; uma delas consome insuficientemente e a outra poupa demais; uma delas não encontra ocupação e a outra não está criando ocupações em número suficiente para que seja mantida a paz social. Nessa perspectiva, afigura-se que cabe ao Estado atuar como poder equilibrador.

Assim, a política econômica keynesiana e a política social-democrática, a partir dos anos 1930, passaram a ocupar um lugar central na condução da política socioeconômica. Não é mais, pois, a identidade, mas a mera diferença, que oculta agora a contradição.

O liberalismo clássico se afigura como uma hipocrisia; ele pressabe da contradição na base do sistema, mas aceita como saber válido apenas aquilo que a dissumula de um modo objetivo; a ordem social lhe parece uma ordem natural; a autorregulação, proporcionada que é pela competição mercantil, lhe parece uma lei objetiva dessa ordem. Como sintetizou Adam Smith por meio do principio da mão invisível: eis que o egoísmo mercantil cria sem qualquer boa intenção “aquela riqueza universal que se estende as camadas mais baixas do povo” (Smith, 1983, p. 45).

O liberalismo social opta pelo reformismo; ele sabe da contradição, mas não a apreende como contradição; admite que mira um sistema social que falha na criação de empregos e que cria diferenças sociais gritantes, mas sustenta que boas políticas econômicas podem atenuar ou mesmo consertar os seus defeitos; a ordem social não é negada como ordem social; ao contrário, é tomada como ordem algo desordenada que falha e que precisa de reparo para que crie riqueza e bem-estar para a sociedade como um todo.

O neoliberalismo, por sua vez, vem a ser um cinismo; ele sabe da contradição, mas a apreende como paraconsistência de um sistema complexo; eis que este resultou de uma evolução espontânea das instituições e que, por isso mesmo, tem de ser aceito como tal. Para ocultar a contradição, não afirma que há igualdade de contratantes ou, alternativamente, que existem diferenças redutíveis entre as diversas posições sociais; afirma, isso sim, que todos estão numa condição similar na luta pela existência e que as diferenças decorrem do caráter lotérico do sistema econômico.

Uns detêm capital em dinheiro e em títulos financeiros, outros são donos de capital industrial ou comercial, outros ainda possuem mais ou menos capital humano. A riqueza é mal repartida, há posições sociais inferiores e superiores etc.? Sim, mas tudo isso deve ser.

Para ele, portanto, a evolução progressiva possível tem de estar submissa à logica discricionária dos mercados em geral; a ordem social é pensada agora como ordem espontânea que deve ser aceita como emergência histórica e, assim, como um imperativo moral; a competição mercantil deve ser acolhida e reverenciada porque se constitui como origem da sociedade atomizada – mera agregação de indivíduos enlaçados objetivamente por normas que se esmeram em proibir apenas os comportamentos desviantes e destruidores dessa ordem. Fora daí, tudo – pelo menos para os mais extremistas – deve ser permitido: venda dos próprios órgãos, venda dos filhos, as fakes news como estratégia de competição política etc.

Como mostra o artigo de Branko Milanovic, o neoliberalismo apregoa e implementa a sociabilidade mercantil; ela precisa se impor em todos os âmbitos sociais, com exceção talvez da família, entendida como ordem paternalista que prepara os indivíduos para os mercados. E o faz de forma mentirosa, autoritária e mesmo totalitária conduzindo de fato a humanidade ao suicídio – num curso trágico em que matar a velha universidade é apenas um detalhe. O capitalismo é hoje apenas um sistema suicidário.

*Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Capitalismo no século XXI: ocaso por meio de eventos catastróficos (CEFA Editorial).

Referência

Dardot, Pierre e Laval, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 17.
Fausto, Ruy. Marx – Lógica e Política. Tomo II. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
Prado, Eleutério F. S. Desmedida do valor – Crítica da pós-grande indústria. São Paulo: Xamã, 2005.
Smith, Adam. A riqueza das nações – investigações sobre sua natureza e suas causas. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

Nota

[1] Economista sérvio-americano. Professor visitante do Centro de Pós-Graduação da City University of New York (CUNY). Foi economista-chefe do Departamento de Pesquisa do Banco Mundial.

Desafio de Lula é resgatar o presidencialismo, por Almir Felitte

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Enquanto não eliminar as amarras legais acionadas desde 2016, presidente ficará refém do Congresso, numa espécie de parlamentarismo não declarado. Porque políticas como o teto de gastos inviabilizam o país, e obrigam a passar o pires todo ano

Almir Felitte, Advogado e estudioso de Políticas de Segurança Pública

OUTRAS PALAVRAS – 01/12/2022

A eleição presidencial de outubro de 2022 era apenas uma das muitas lutas a serem travadas e vencidas por aqueles que sonham em reerguer nosso país após longos anos de crise e destruição.

Para além do insistente golpismo, cada vez mais reduzido, mas também mais armado e violento, o grande desafio que se apresenta à nossa frente é a construção efetiva do Governo Lula e a
realização de seu projeto.

O processo de transição, porém, já tem nos mostrado que os obstáculos neste caminho serão enormes. Neste ponto, todo o debate envolvendo a chamada “PEC da Transição” é central, e devemos estar atentos às possíveis armadilhas que uma aparente vitória pode esconder.

O grande ponto da “PEC da Transição” gira em torno do orçamento do país para o ano que vem deixado pelo governo Bolsonaro. É ponto comum entre o futuro governo Lula, o Congresso e até mesmo a imprensa que ele é simplesmente inviável. Reduzido e amarrado pelo teto de gastos, este legado liberal tornaria impossível a realização das políticas sociais mais básicas, como o próprio Auxílio Brasil.

O novo Governo Lula foi eleito com base na ideia de retomar os investimentos públicos e a expansão do Estado Social no Brasil, com maior participação pública na economia e ampliação de programas sociais. Um programa que reconhece que a austeridade da agenda neoliberal imposta ao país é a grande causa de nossa crise econômica e social. Mas também um programa que só pode ser posto em prática se o orçamento bolsonarista for revisto.

Diante disso, há duas saídas para Lula. A primeira, mais imediata, é a que vemos agora sendo feita por sua equipe de transição: negociar uma PEC com o Congresso que libere “furos” no teto de gastos para que ao menos alguns programas sociais prometidos sejam viáveis. Neste caminho, todo o orçamento do ano fica sujeito às negociações com o Poder Legislativo, que é quem de fato vai decidir o que pode e o que não pode furar a mordaça do teto de gastos.

O problema é que esta saída seria pontual, já que as amarras fiscais seriam mantidas. Dessa forma, até o fim de seu mandato, Lula seria obrigado a sentar com o Congresso todo fim de ano para negociar, novamente, quais gastos poderiam furar o teto. Em outras palavras, o Legislativo teria surrupiado de vez a função presidencial de definir o orçamento público do país, impondo um parlamentarismo forçado e ignorando o programa de governo eleito pelas urnas.

Este cenário, aliás, não seria novidade. Segundo a FGV, entre 2019 e 2022, Bolsonaro conseguiu realizar gastos acima do teto que somaram quase R$ 800 bilhões, boa parte destes conseguidos apenas através da autorização do Congresso.

Como as presidências do Senado e da Câmara estiveram bem alinhadas à agenda econômica de Temer e Bolsonaro, as poucas divergências entre Executivo e Legislativo fizeram com que este parlamentarismo imposto fosse menos aparente nos últimos anos. No novo cenário, onde o programa de governo de Lula é incompatível com a agenda ultraliberal de um Congresso mais radicalizado à direita, talvez este parlamentarismo forçado fique mais visível.

Assim, o povo brasileiro corre o risco de assistir a um verdadeiro golpe eleitoral, no qual o Congresso tornaria inviável, ano após ano, que o programa presidencial vencedor fosse colocado em prática por Lula. Ou, em uma hipótese menos pior, todo fim de ano, os parlamentares cobrariam um preço caro demais para permitir que Lula o realizasse. De uma maneira ou de outra, anualmente, o programa de governo do país seria definido pelo Legislativo.

Por isso, é tão importante debater a segunda saída possível para este entrave, inclusive defendida pelo próprio Lula como promessa de campanha: a revogação do teto de gastos. Nem gastarei mais linhas aqui para falar sobre o suicídio econômico e social que este teto representou para o país nos últimos anos. Os fatos falam por si, e até mesmo liberais insuspeitos já consideram um absurdo que esta política continue.

A questão é que, como podemos enxergar com clareza agora, o teto de gastos não foi uma camisa-de-força apenas para a nossa economia e nosso Estado social. Na verdade, o teto de gastos acabou sendo uma amarra ao próprio sistema político brasileiro, colocando em xeque nosso histórico presidencialismo.

Aliado ao terrorismo econômico da grande imprensa liberal, o teto de gastos representa uma ameaça constante de impeachment a qualquer Presidente que ouse discordar de uma cartilha de austeridade que só beneficia especuladores. Não importa qual programa de governo o povo brasileiro tenha escolhido, o teto de gastos sempre fará com que o orçamento que o sustenta fique sujeito às vontades de um Congresso, sob risco de outro golpe parlamentar. Novamente, um parlamentarismo que nós não escolhemos viver.

A revogação do teto de gastos, desse modo, não seria só uma forma de retomar os investimentos públicos no país e os programas sociais que beneficiam os mais pobres, mas também uma maneira do Brasil retomar o seu próprio sistema presidencialista. Seria, aliás, a única forma de viabilizar o programa de governo lulista eleito pela maioria dos brasileiros.

O grande problema é que esta revogação também deve passar pelo crivo do Congresso. Diante disso, é vital que a equipe de Lula se organize para além das negociações em torno da PEC da Transição. Apesar do ainda grande eleitorado bolsonarista, há um sentimento majoritário na população de que o governo de Jair e as reformas dos últimos anos não trouxeram benefícios e pioraram a vida da população.

Em outras palavras, temos a possibilidade de construir um sentimento geral forte o suficiente para formar uma campanha popular por um “revogaço” de medidas impopulares impostas nos últimos anos, como a Reforma Trabalhista, a Reforma da Previdência e o próprio teto de gastos. Para isso, é mais do que necessário aproveitar o gás dado pela vitória eleitoral e pelo início do novo governo para a esquerda recuperar sua capacidade de mobilização perdida na última década.
Lula não pode nem deve ter medo de chamar o povo para governar com ele. No campo social e econômico, muitas reformas desaprovadas pelo povo foram passadas nos últimos tempos de forma antidemocrática e atropelada. Nessa área, campanhas por plebiscitos e referendos podem ser o impulso necessário para retomar uma capacidade de mobilização que coloque o Congresso em seu devido lugar, force as necessárias revogações e viabilize o programa de governo eleito.

Nesse sentido, recuperar o presidencialismo no Brasil é mais do que confiar toda a esperança de novos tempos para o país apenas nas mãos de Lula. Recuperar o presidencialismo seria, antes de tudo, uma forma de recuperar a própria soberania do povo brasileiro. Esta é uma luta que vai muito além de grupos de engravatados tratando da transição do governo. É uma luta que passa pela reconstrução dos nossos movimentos sociais e populares. Uma luta árdua e exigente, mas que certamente definirá nosso rumo como povo e país nos próximos anos.

Que gastos públicos deveríamos cortar?, por Paulo Kliass

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Fernando Haddad insiste em driblar investimento mínimo em Saúde e Educação. Enquanto isso, paga em juros, aos rentistas, o dobro do orçamento destas duas pastas somadas. Se é para reduzir gastos, poderia começar por essa parasitagem

Paulo Kliass, Doutor em Economia e membro de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.

Outras Palavras – 03/10/2023

O empenho da área econômica do governo em promover a ferro e fogo a política de austeridade fiscal surpreende a todos e todas que não estão muito habituados a acompanhar com certo detalhe e proximidade a evolução do debate e das decisões do Ministério da Fazenda a esse respeito. Na verdade, a postura de Fernando Haddad não tem deixado quase nenhuma diferença com relação aos representantes do financismo quando se trata de recomendações para medidas de orientação da política fiscal.

Essa tendência em atender aos desejos do sistema financeiro começou a tomar forma já no período que transcorreu entre a oficialização da vitória de Lula em outubro do ano passado e a posse em 1º de janeiro. Naquele momento foi gestada a chamada PEC da Transição, que deveria ter tido por objetivo apenas assegurar recursos orçamentários para que o novo governo pudesse começar o exercício de 2023 com dinheiro suficiente para cumprir com algumas de suas principais promessas de campanha. Mas aquele teria sido também o instrumento adequado para estabelecer a revogação da EC 95, dispositivo que abrigava o famigerado teto de gastos. A referida PEC foi promulgada sob a forma da Emenda Constitucional 126/22.

Mas o problema é que Haddad incluiu na medida uma condicionante inesperada para a eliminação de tal instrumento extremo de austeridade. Ao invés de simplesmente revogá-lo, como havia sido prometido por Lula durante a campanha, a política do bom mocismo estabeleceu uma novidade preocupante. A proposta estabelecia que o teto só seria extinto a partir do momento em que o governo eleito encaminhasse ao Congresso Nacional, até o mês de agosto, uma lei complementar que tratasse de um “novo arcabouço fiscal”. A sequência é conhecida de todo mundo. O titular da Fazenda fechou-se em copas, atendendo apenas às demandas e sugestões do presidente do Banco Central e dos demais dirigentes do capital financeiro privado. O prazo de agosto foi encurtado para evitar maiores discussões públicas e críticas ao modelo que foi sendo construído. O governo encaminhou a proposta ao legislativo ainda em abril.

A austeridade segue a todo vapor

A sanção da Lei Complementar nº 200/23 ocorreu em 31 de agosto e o novo arcabouço fiscal passou a substituir as regras muito mais draconianas do teto de gastos. Porém, o artifício retórico de comparar o novo modelo com a desgraceira representada pelo teto de Temer & Meirelles não resiste ao menor debate a respeito do conteúdo da proposta da neo-austeridade. Não é por outra razão que o sistema proposto por Haddad foi logo chamado “carinhosamente” de calabouço fiscal. Afinal, ele mantém as mesmas ideias equivocadas de mirar na busca de superávit primário, de restringir o crescimento de despesas orçamentárias em relação ao crescimento das receitas, de proibir a capitalização de empresa estatais e de não incluir as despesas financeiras no cálculo dos gastos a serem limitados. Enfim, pode-se dizer que se trata de um teto de novo tipo.

Passada a fase de aprovação dos dispositivos da austeridade, agora vem a etapa da implementação de novos ajustes. O alerta que fazíamos desde o início a respeito da compressão que seria provocada pela existência de pisos constitucionais para saúde e educação ganha agora a centralidade no debate. E representantes da área econômica já falam abertamente que o governo deve enviar uma PEC para eliminar a vinculação dos mínimos de ambas as áreas sociais à receita tributária da União. Uma loucura! Imaginemos um governo progressista, com uma proposta desenvolvimentista para o país, fazendo o trabalho sujo que nenhum outro governo de direita ousou ou teve força para implementar. Pior do que isso, foi o Executivo ter enviado uma consulta ao Tribunal de Contas da União (TCU) pedindo autorização à corte de para o descumprimento de determinação constitucional. Ao invés de limitar as atribuições do Tribunal às suas funções de controle, o próprio governo busca, de forma escancaradamente oportunista, uma via para reforçar o austericídio presente na cabeça dos formuladores da área econômica.

A memória curta parece não trazer à tona o doloroso processo de impedimento de Dilma Rousseff, quando esse mesmo TCU criou jurisprudência própria e encomendada para que as tais “pedaladas fiscais” fossem utilizadas de forma ilegal para justificar o afastamento da Chefe do Executivo. A partir do momento que o governo solicita a um órgão de controle autorização para não cumprir a Constituição, abre-se uma avenida de ilegitimidade para decisões posteriores ao arrepio dos princípios democráticos e republicanos.

Cortar nas despesas juros e não em gastos sociais

Mas se o governo insiste mesmo em cortar gastos para atingir o fatídico zeramento do déficit fiscal, talvez fosse o caso de olhar com mais honestidade e transparência para o estado atual das despesas da União. A esse título, vale registrar as informações trazidas pelo Banco Central em sua recente Nota sobre Estatísticas Fiscais. Ali se percebe que o governo federal gastou, apenas durante o mês de agosto passado, o equivalente a R$ 84 bilhões a título de pagamento de juros da dívida pública. Com isso, cai por terra a máscara falaciosa a respeito da necessidade de cortar despesas nas áreas sociais. Se somarmos os valores dos últimos 12 meses, a conta total dos dispêndios com juros sobe a R$ 690 bilhões.

Mas como a malandragem da metodologia das últimas décadas foca apenas nas despesas “primárias”, os gastos financeiros (não primários) ficam de fora dos cálculos. Ora, que os representantes do financismo pensem e ajam de tal forma é até compreensível. Mas não cabe a um governo eleito com um projeto de retomar o desenvolvimento econômico e social do país e de promover a redução de desigualdades de toda ordem incorporar esse tipo de análise distorcida e visada da realidade econômica.

Se vamos cortar mesmo gastos, por que não começar pelas despesas que são inquestionavelmente as mais parasitas do Orçamento e de menor impacto positivo sobre a recuperação da atividade da economia de forma geral? Mas não! A equipe econômica insiste em responsabilizar saúde, educação, previdência, assistência social, saneamento, investimento, salários de servidores e similares como sendo os “vilões” da busca desenfreada de um mítico equilíbrio nas contas públicas no curto prazo a qualquer custo.

O próprio presidente Lula já estabeleceu que, em seu governo, a responsabilidade fiscal não pode ser desassociada da responsabilidade social. Além disso, ele definiu por diversas ocasiões que as rubricas em saúde e em educação, por exemplo, devem ser consideradas como investimento e não como mero gasto corrente. Tais abordagens mudam completamente a forma de se avaliar e solucionar as equações da área fiscal. Apenas a título de comparação, o total de despesas previstas para saúde para o presente ano é de R$ 183 bi e o da educação é de R$ 147 bi. Ou seja, os dois somados não atingem nem a metade do valor dos gastos com juros da dívida.

A intenção é mesmo essa de promover o corte de gastos orçamentários? Então que a tesoura comece pelas despesas financeiras. Como os adeptos do austericídio gostam de dizer, há muita gordurinha para queimar nas rubricas associadas ao pagamento de juros da dívida pública.

Classe média em crise

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Vivemos numa sociedade marcada por grandes incertezas e instabilidades, onde os grupos sociais passam por grandes movimentações estruturais, os grupos dominantes, que controlam os setores econômicos mais pujantes, ganham força e dominam as bases da sociedade, controlam a classe política, ditam as regras e controlam as agendas dos parlamentos e garantem grandes retornos financeiros. Os grupos mais fragilizados financeiramente percebem que as transformações em curso na sociedade contemporânea estão gerando empregos precarizados, com parcos ganhos monetários e financeiros, além de serviços públicos cada vez mais escassos e degradados, levando os indivíduos a condições de sobrevivência marcadas pela exclusão e pela indignidade.

No meio destes grupos sociais encontramos uma classe média cada vez mais atordoada, degradada e precarizada financeiramente, assustada com as movimentações políticas e culturais, pendurada nas dívidas bancárias e impostos escorchantes, sem perspectivas profissionais e marcadas pelos medos e pelas ansiedades crescentes. Neste cenário, essa classe que sempre se destacou pela capacidade intelectual e pela bagagem cultural, exemplo de ascensão social, se entregou para os ganhos imediatos, acolheu o fanatismo das discussões políticas, abraçou o individualismo e a meritocracia, flertou com pensamentos antidemocráticos e perdeu a essência fundamental para a construção de um futuro mais consistente para a sociedade brasileira.

Com a mercantilização da sociedade contemporânea, tudo se transformou e passou a ser visto como uma verdadeira mercadoria, produtos comercializados em todos os mercados, desde que, os indivíduos possam arcar com os custos monetários e financeiros, desta forma, percebemos que os ganhos da classe média vem perdendo rendimentos, levando-a para uma condição secundária e de indignidade, seus proventos foram degradados, seus salários vem perdendo espaço para a inflação e seu status social, anteriormente sempre positivo, perdeu relevância.

Os gastos crescentes da classe média vêm degradando suas condições financeiros e monetárias, o aumento dos gastos educacionais pesam fortemente sobre seu orçamento, os valores dispendidos para manter a saúde crescem muito mais que seus recursos cotidianos, gerando crises constantes, pressões diárias e incertezas. Além disso, os recursos destinados para manter o pagamento dos tributos degradam sua renda mensal, desequilibrando seus fluxos financeiros, levando esse grupo social a se endividarem com bancos e instituições financeiras, entrando numa espiral de juros crescentes, endividamentos contínuos e desequilíbrios emocionais, com impactos generalizados sobre a saúde, o trabalho e o ambiente familiar.

As mudanças no mundo do trabalho estão impactando sobre a classe média, a tecnologia vem reduzindo a mão de obra e exigindo maior qualificação dos trabalhadores, as políticas de austeridades adotadas pelos governos nacionais limitam os recursos públicos, reduzindo os dispêndios das políticas públicas, diminuindo a contratação de trabalhadores, exigindo novas habilidades e gerando novas formas de contratação, mais degradadas e com salários mais achatados e precarizados, desta forma, os sonhos de salários maiores vem se perdendo numa sociedade degradada e imediatista.

O sonho da ascensão social vem se perdendo nas lutas cotidianas, vivemos numa guerra constante e duradoura, as pressões sociais, emocionais e profissionais são violentas e agressivas, as ansiedades crescem de forma acelerada e o sonho de um futuro melhor se esgota todos os dias ao testemunharmos os conflitos e os desequilíbrios do mundo contemporâneo.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Sociologia do Trabalho e Exclusão Social, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário

A rebelião dos manés – derrota provisória? por Laymert Garcia dos Santos

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Laymert Garcia dos Santos – A Terra é Redonda – 06/05/2024
Considerações a partir do livro “8/1 A rebelião dos manés ou Esquerda e direita nos espelhos de Brasília”

1.
Ao que parece, nas últimas semanas, a percepção de alguns integrantes do governo Lula e de parte da esquerda institucional está mudando, em relação à atuação da extrema direita. Como se estivesse caindo a ficha de que o fascismo opera em termos de mobilização permanente e que, portanto, a vitória nas urnas não é garantia de paz social nem de uma neutralização da ameaça.

Muito pelo contrário, o exercício das forças fascistas nas mais diversas frentes – no Congresso, no mercado financeiro, no agronegócio, nas igrejas pentecostais, nas ruas e nos crimes contra os pobres e as mulheres – explicitam que há uma inversão da máxima de Clausewitz: a guerra deixou de ser a continuação da política por outros meios; hoje, o que vigora é que a política é a continuação da guerra.

Aos poucos, então, vai ficando cristalina a necessidade de ter de enfrentar a mobilização fascista com todos os recursos disponíveis. A ideia de que bastaria melhorar as condições de vida do povo através de recuperação de políticas públicas, de crescimento da atividade econômica, de retomada do desenvolvimento, de promoção dos direitos humanos… mostrou sua insuficiência. Passados um ano e cinco meses de governo, a sociedade continua dividida e envenenada, os efeitos das mudanças positivas seguem desapercebidos por parcelas importantes da população (segundo Jean Marc von der Weid, em virtude do alto preço dos alimentos), as agressões e o clima de ódio são estimulados diariamente como dantes, as campanhas de desinformação sistemática se renovam e se intensificam o tempo todo.

Não basta, portanto, procurar melhorar a comunicação do governo, tentar “esclarecer” uma população presa fácil das mais poderosas tecnologias de mobilização permanente, cujos interesses econômicos, políticos e ideológicos estão intimamente interligados. E a própria dificuldade renitente em se regular minimamente as redes sociais para buscar neutralizar o seu caráter tóxico já é indício do tamanho do problema. Seria preciso uma decisão política radical de enfrentamento da mobilização fascista. Mas, aparentemente, não há vontade ou força para tanto.

É nesse contexto que precisa ser apreciado o recente livro de Pedro Fiori Arantes, Fernando Frias e Maria Luíza Meneses, intitulado 8/1 A rebelião dos manés ou Esquerda e direita nos espelhos de Brasília. Muito já se escreveu, e se leu, sobre a escandalosa ocupação da Praça dos Três Poderes, uma semana depois da posse do Presidente Lula. Com certeza ainda há muitas questões no ar. Tenho, porém, a impressão de que os autores foram certeiros ao investigarem a participação dos populares bolsonaristas no episódio golpista do 8 de Janeiro. Porque demonstraram que ela não é nada óbvia, e só uma avaliação simplista a reduz à caricatura, que dificulta o entendimento do real papel desempenhado pelo “gado”.

2.
O livro deixa claro que os manés foram ao mesmo tempo cúmplices e vítimas da prolongada manipulação de massas fascista. Cúmplices porque se engajaram, literalmente, de corpo e alma na tentativa de golpe – nesse sentido, foram protagonistas ativos e, portanto, criminosos, por transgredirem a ordem estabelecida; vítimas porque, abduzidos por uma “realidade paralela”, não tinham o tirocínio político e jurídico da ilegalidade de suas ações, funcionando, assim, como mera bucha de canhão para interesses poderosos, que não eram deles.

Ora, é essa condição ambivalente que se torna objeto de análise. Os manés sabem o que estão fazendo, mas ignoram o caráter perverso do papel que lhes cabe dentro da lógica do golpe, que abarca políticos, empresários, militares, policiais, em suma a extrema-direita organizada – esta teria tudo a ganhar, caso fosse possível emplacar a vitória através do recurso à Garantia da Lei e da Ordem, validando uma interpretação fajuta do art. 142 da Constituição Federal.

Os manés se sentem heróis de uma guerra contra o establishment, acreditam piamente na pantomima canalha de Bolsonaro contra “o sistema”, desejam intensamente uma ruptura constitucional em favor de uma regressão colonial. E nem mesmo seu abandono pelo líder máximo e pelas “forças da ordem” os fará acordar para o fato de terem sido usados e abusados o tempo todo. São pobres coitados fazendo selfie na beira do abismo, imaginando que a batalha estava ganha com a ocupação e depredação consentidas das instalações dos Três Poderes da República.

Para demonstrarem essa condição ao mesmo tempo grotesca e miserável dos manés (que na sequência vão arruinar suas vidas quando o braço de ferro da lei e da ordem se abater sobre elas), os autores recorrem, logo no primeiro capítulo, ao conceito brechtiano de “distanciamento”. Tal recurso se impõe porque, do ponto de vista político e simbólico, historicamente, desde a Revolução Francesa, a tomada de palácios governamentais sempre foi obra de camadas populares insurretas visando à mudança de regime, isto é a revolução.

Mas tanto no ataque ao Capitólio pela massa trumpista quanto no ataque a Brasília pela massa bolsonarista, há uma inversão de sinal – agora são as massas radicalizadas de extrema-direita que praticam o assalto ao centro do poder estabelecido. Tal aberração suscita estranhamento.

Como observam os autores, quem executou o feito não foram os sem-terra, sem-teto, povos indígenas, nem black-blocs, petistas, estudantes ou comunistas; a autoria foi dos autodenominados “patriotas”, “cristãos” e “cidadãos de bem”.

Daí a pergunta: “O que o ataque (…) revela sobre o Brasil contemporâneo? Como expõe a capacidade de pensamento e ação da esquerda e da direita, no sentido de atuar para mudar a história em seu favor/” A resposta será buscada à luz do “distanciamento”. Segundo Bertold Brecht, “distanciar um acontecimento ou um caráter significa antes de tudo retirar do acontecimento ou do caráter aquilo que parece óbvio, o conhecido, o natural, e lançar sobre eles o espanto e a curiosidade”.

Estranhando, os autores distanciam o acontecimento e, na distância, percebem como se deu, no Brasil, a inversão de papéis entre esquerda e direita, a partir das Jornadas de 2013, que selaram uma ruptura entre a esquerda institucional, no poder, e uma nova esquerda, insurgente e anticapitalista. Em seu entender, foi esse desencontro histórico que possibilitou a ascensão da extrema-direita e, com ela, o risco à democracia.

Não cabe aqui nos estendermos sobre os diversos acontecimentos que, desde então, foram aprofundando a tendência desencadeada em 2013. Mas importa notar que a inversão de papéis está na matriz da transformação que torna a direita insurgente, enquanto a esquerda se torna gestora do sistema, da conciliação, da manutenção da ordem e da pacificação.

Assim, o 8 de Janeiro explicita o jogo intrincado e perverso em que surgem os manés, auto-identificados como os perdedores de uma eleição dita fraudada, ou seja manés submetidos à “malandragem” dos ministros do STF, supostamente mancomunados com os “bandidos” do PT. Vale lembrar que o ataque a Brasília pelos “patriotas” em fúria foi convocado como “Levante dos Manés”. Nesse impulso, nesse “espantoso deslizamento semântico entre esquerda e direita”, escreveu Paulo Arantes, a extrema direita, mirando-se no espelho da esquerda, se viu como radical antissistema, adepta da “guerra insurrecional”.

3.
Nos capítulos seguintes, os autores vão pontuando como, de deslizamento em deslizamento, a evolução do processo foi tirando o “fazer a história” das mãos das classes populares e depositando-o nas mãos dos bolsonaristas. Cabe assinalar a influência que Olavo de Carvalho exerceu na dinâmica de apropriação indébita de símbolos, discursos, práticas e armas da luta de classes e povos, e sua conversão em instrumentos do repertório da extrema-direita.

Também vale a pena destacar as apropriações cínicas e debochadas do MBL, bem como a performance patética de Sara Winter e dos “300 do Brasil”, inspiradas em filmes de quinta categoria. Tudo isso, antes da invasão do Capitólio, em 6 de Janeiro de 2021, expressão máxima de levante da extrema direita, que iria se constituir no modelo a ser imitado pelo “Levante dos Manés”.

A insurreição vinha sendo preparada e alimentada desde antes da eleição e da vitória de Lula, conforme ficaríamos sabendo depois, com a revelação dos projetos de golpe de Jair Bolsonaro pela Operação Tempus Veritatis. Preparada e alimentada em duas esferas distintas, mas obviamente com intersecções. Em primeiro lugar, na esfera do poder e do dinheiro, mobilizando Jair Bolsonaro, o clã, assessores, políticos, especialistas em mobilização de redes, militares, pastores e empresários. O que talvez pudesse ser caracterizado como os mandantes do golpe.

Em segundo lugar, na esfera do “gado”, dos manés, da massa de manobra convocada para dar à insurreição o seu caráter “popular”. Ao que as investigações ainda em curso indicam, as duas esferas entrariam em cena em momentos diferentes: primeiro os manés, acampados em frente aos batalhões das Forças Armadas, instaurariam a desordem em Brasília e em outros lugares; na sequência, militares e policiais interviriam, restabelecendo a “ordem” e, com ela, instaurando o golpe fascista.

Ocorre que o golpe falhou, por razões que não estão esclarecidas, pois ainda continua parcialmente nebulosa para a opinião pública a conduta criminosa dos atores envolvidos na esfera do poder e do dinheiro. O segundo momento não aconteceu, a GLO não foi proclamada, as Forças Armadas não se posicionaram, o ex-presidente ficou em silêncio em seu refúgio na Disney…

E os manés, feito patetas, se viram sozinhos dentro de uma armadilha, pois agora seus protetores militares os entregavam à polícia, que os levava para a Papuda e a Colméia, onde posteriormente seriam enquadrados como “terroristas”.

Ora, tal criminalização conta com o apoio entusiasmado da esquerda institucional que, já tendo recalcado sua fração insurgente, agora pode aderir à repressão dos subversivos. Fecha-se assim, sob a aparência de um círculo virtuoso, o círculo vicioso. Pois os espelhos quebrados de Brasília configuram tanto a insurgência da extrema direita quanto a emasculação da esquerda institucional e rebelde; a institucional por não ter força até agora para obrigar os militares a responderem pelo envolvimento institucional das Forças Armadas, que saem ilesas, entregando as “ovelhas negras”, mas buscando manter incólume a sua pretensão de “poder moderador” acima dos Poderes da República; e a esquerda rebelde por não conseguir articular minimamente uma resposta à altura da ameaça, incapaz de sair da inércia.

Assim, a “vitória” da democracia no pós-8 de Janeiro é mais do que relativa. Como se o golpe tivesse sido apenas suspenso, deixando, entretanto, pouco comprometida a máquina infernal que pode voltar a ser acionada num momento mais propício. Daí a pergunta inquietante dos autores, na parte final do livro: Depois de Janeiro, a paz será total? Em seu entender, ela só seria viável se o bolsonarismo for desarticulado na esfera dos mandantes; mas os indícios de que isso acontecerá são muito tênues.

Por outro lado, como está muito bem analisado nos últimos capítulos, a punição exemplar apenas dos manés pode ensejar o que os autores designam como “punitivismo às avessas” – afinal, a pesada criminalização dos “terroristas” pode um dia se voltar contra os verdadeiros contestadores da ordem estabelecida, isto é, aqueles que, à esquerda, querem ir além da defesa da ordem neoliberal injusta e garantidora da reprodução da espantosa desigualdade vigente.

Por isso, na última página do livro, escrevem os autores: “O governo Lula 3 é um tampão contra a ascensão neofacista no Brasil, mas se não lutarmos pela justiça social e por futuros emancipatórios, seguiremos submetidos à pacificação pró-mercado, ao novo punitivismo às avessas e logo abriremos o caminho para que a extrema-direita se reorganize e retome o comando”.

Com efeito, nem bem escreveram estas palavras de advertência, e já se vê no Congresso Nacional, na insolência de certos militares, na desenvoltura dos deputados bolsonaristas, na eterna cruzada neopentecostal, na idolatria de Elon Musk, os sinais de retomada da mobilização permanente…

*Laymert Garcia dos Santos é professor aposentado do departamento de sociologia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Politizar as novas tecnologias (Editora 34).
Referência
Pedro Fiori Arantes, Fernando Frias e Maria Luíza Meneses. 8/1 A rebelião dos manés ou Esquerda e direita nos espelhos de Brasília. São Paulo, Hedra, 2024, 184 págs.