Tempos estranhos

0

Vivemos momentos estranhos na sociedade internacional. Os valores estão invertidos, os ganhos monetários e financeiros se tornaram o grande objetivo social, onde os indivíduos estão sendo vistos através de seu poderio econômico, os valores estão centrados no imediatismo, no individualismo e na busca frenética pelas riquezas materiais, deixando de lado valores centrados no humanismo, na solidariedade e na busca do bem-estar social, desta forma estamos caminhando a passos largos a uma fragilização civilizacional.

Nesta sociedade, encontramos descobertas científicas e tecnológicas que contribuíram para novos horizontes de melhorias sociais, doenças vistas como incuráveis, responsáveis por ceifar milhões de vidas, foram controladas por novas drogas, novos medicamentos e tratamentos revolucionários. Regiões inóspitas e inabitadas foram transformadas pela ciência, pelas pesquisas científicas que contribuíram para melhorar o clima e a vegetação, levando a riqueza material, a fartura alimentar e a melhora das condições de vida da população, deixando a pobreza e a indigência nos registros dos livros e nas anotações acadêmicas.

Vivemos numa sociedade que a tecnologia se transformou no agente instrumental da transformação social e econômica, trazendo uma aproximação física entre os indivíduos, aumentando a comunicação entre os seres humanos, barateando novos produtos, máquinas e serviços que estão revolucionando as relações sociais, alterando o convívio das pessoas, mudando seus comportamentos, modificando seus relacionamentos e impactando sobre as convenções sociais, criando novos modelos de negócios, novos desafios e oportunidades. Nesta sociedade, encontramos várias contradições, tais como uma tecnologia que nos aproxima virtualmente e, ao mesmo tempo, nos torna cada vez mais distantes fisicamente, mais solitários e infelizes, num verdadeiro paradoxo contemporâneo.

A atual sociedade revolucionou as descobertas espaciais, levando satélites, criando estações estelares e investindo trilhões de dólares para conhecer os segredos planetários e, ao mesmo tempo, percebemos que estamos se degradando com conflitos íntimos e pessoais, trabalhamos em excesso, acumulamos cada vez menos recursos monetários e estamos envoltos em crises existenciais crescentes e numa busca generalizada pelo sentido da vida, levando muitas pessoas a se entregarem em soluções milagrosas e elixires mágicos que, posteriormente, aumentam sua indigência emocional e afetiva. Neste cenário, os especialistas em saúde pública acreditam que estamos vivendo um incremento de desequilíbrios emocionais e espirituais, com aumento da depressão, das ansiedades crescentes e um aumento generalizado dos suicídios diretos e indiretos, ceifando milhões de pessoas em todas as regiões do mundo.

Desde o desenvolvimento industrial da humanidade, encontramos novas técnicas de gestão, novos instrumentos de incremento da produtividade, elevando o conhecimento da sociedade, melhorando os sistemas educacionais e, ao mesmo tempo, percebemos que estamos degradando mais efetivamente o meio ambiente, levando inúmeras espécies humanas à extinção, aumentamos a temperatura do Planeta Terra e estamos degradando regiões inteiras e plantações tradicionais, gerando riquezas para poucos e espalhando a miséria e a indigência para muitas pessoas do mundo, neste cenário, ainda encontramos inúmeros céticos, por desconhecimento ou por conveniência?

Vivemos momentos preocupantes e tempos estranhos, como destacou o sociólogo polonês radicado em Londres Zygmunt Bauman, onde as tecnologias da comunicação estão sendo utilizadas para espalhar inverdades e ressentimentos, aumentando os conflitos sociais e políticos, aumentando as tensões sociais e os conflitos dentro das comunidades, exigindo dos governos nacionais uma atitude cada vez mais agressiva para controlar os desequilíbrios, gerando mais repressões, mais prisões e mais dispêndios econômicos e fragilizando os orçamentos públicos.

Vivemos momentos estanhos, assustadores e preocupantes, neste cenário, precisamos de lideranças capacitadas e, urgentemente, repensar o modelo econômico dominante na sociedade brasileira, que estimular o rentismo, o imediatismo e o individualismo que aprofundam as desigualdades que caracterizam a sociedade nacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre e Doutor em Sociologia.

Carta Mensal – Junho 2023

0

O mês de junho de 2023 completou seis meses do governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva, um momento de grandes expectativas no cenário econômico, além de grandes incertezas políticas e inseguranças sociais, geradas por movimentos de polarizações constantes, que levaram o governo a adotar políticas serenas com o objetivo de gerar maiores instabilidades no campo econômico, cujo potencial é elevado e pode criar graves constrangimentos para o governo e, ao mesmo tempo, um conjunto de medidas que deveriam iniciar o sepultamento de políticas anteriores criadas e estimuladas no governo anterior.

Destacamos neste mês grandes desafios no campo econômico, onde destacamos as votações do chamado Novo Arcabouço Fiscal (NAF), medida criada pelo governo com o intuito de substituir o modelo anterior, chamado de Teto de Gastos, implementado no governo de Michel Temer e que congelava os gastos públicos num período de vinte anos, mesmo sabendo que os recursos fiscais fossem aumentados, gerando impactos sobre os chamados gastos sociais e públicos.

Depois de uma costura cotidiana, onde o Ministro da Fazendo Fernando Haddad, conseguiu aprovar o novo arcabouço, contando com o forte apoio do governo federal, além de seus integrantes e do Presidente da Câmara, Arthur Lira, o grande e poderoso no cenário nacional, detentor de forte representatividade na eleição de fevereiro no Congresso Nacional.

O chamado Novo Arcabouço Fiscal (NAF) pode ser visto como uma forte vitória do governo Lula da Silva, angariando força política perante os mercados e um fortalecimento do Ministro da Fazendo, visto como muitos políticos e empresários, o próximo candidato para a próxima eleição presidencial, se o atual governante não aceitar uma reeleição.

O NAF pode ser visto como um acerto entre o governo e o mercado, como forte potencial de elevar os indicadores econômicos nacionais, onde destacamos a valorização da moeda nacional, que o dólar saiu de mais de R$ 5,40 no começo do ano e, no momento, está na casa dos R$ 4,80, um movimento interessante que está contribuindo ativamente para melhorar o ambiente de negócio e reduzir as taxas de inflação, aliviando os preços internos e melhorando a renda do consumidor nacional e criando novos horizontes para o segundo semestre.

Outro assunto que precisamos destacar é os dados referentes a inflação, que está dando sinais claros de redução, depois de anos de forte crescimento e que levou o Banco Central a elevar as taxas de juros ao patamar de 13,75%, a maior taxa de juros entre as economias internacionais, que contribuiu para que o comportamento da economia nacional fosse preocupante e assustador, reduzindo os investimentos produtivos e elevando os recursos ligados aos setores rentistas da economia nacional.

A queda da inflação está ligada a variados movimentos, onde destacamos a chegada de um novo ambiente externo marcado por viagens internacionais e novos acordos comerciais com outras nações, onde destacamos as medidas adotadas na viagem da China, onde várias empresas estão sinalizando novos investimentos produtivos para o Brasil, destaque para o setor automobilístico, que está recebendo novos projetos bilionários, como a chegada da empresa BYD, conglomerado chinês líder em baterias elétricas, além de carros, caminhões e outros produtos variados.

A chegada de novos investimentos deve se somar aos novos acordos com a renovação do Mercosul, com conversas bilaterais e os acordos comerciais com a União Europeia que, no momento, está sendo rediscutido e futuramente será implementado totalmente ou parcialmente, só o tempo pode responder essa indagação.

A chegada de recursos internos, valorizou a moeda nacional, além de novos horizontes fiscais, com o NAF, que podem melhorar o ambiente de negócios, melhorando as condições econômicas e produtivas, atraindo investimentos externos e novas levas de geração de emprego.

Destacamos ainda a Reforma Tributária em curso na economia nacional, com potencial de simplificar as questões tributárias, diminuindo os custos com a questão dos impostos, vistos como um grande emaranhado complexo e centrado na ineficiência e nos desperdícios elevados, desta forma, a aprovação dessa reforma na Câmara dos Deputados pode trazer boas sinalizações no horizonte para a economia brasileira e atraindo novos investimentos internos e internacionais.

Muitos foram os avanços neste seis meses de governo, embora muitos críticos acreditem que as mudanças sejam pontuais, percebemos que muitos analistas estão sendo excessivamente críticos com as mudanças neste período, se esquecendo que se o governo anterior continuasse no poder, as questões econômicos seriam muito mais agressivas e degradantes, com isso, percebemos que falta uma maior complacência com um governo que assumiu a poucos meses, depois de um verdadeiro tsunami de degradação e destruição.

Embora destaque as muitas medidas positivas, é importante destacar, que o governo se tornou muito dependente do presidente da Câmara dos Deputados, responsável por grandes vitórias do governo, mas sabemos que todas as vitórias capitaneadas por Arthur Lira, tem uma fatura salgada para o governo nacional, como aconteceu no período da presidente Dilma Rousseff que culminaram no impeachment.

Destacamos ainda os movimentos de reindustrialização da economia brasileira que estão em curso e estão apresentando frutos interessantes, embora saibamos que os verdadeiros frutos tendem a demorar muitos anos, mas é fundamental que essa política seja estimulada por todo governo, uma medida de governo que una todos os setores econômicos, políticos e sociais, como uma forma de transformar um projeto é uma verdadeira Missão, como destaca a economista italiana Mariana Mazzucatto.

Neste cenário, destacamos a desoneração de carros de até 120 mil reais, como forma de estimular a produção, reduzir os estoques das montadoras e dar um alívio para a economia nacional, mobilizando os setores econômicos e produtivos, garantindo empregos e movimentando a economia.

A medida foi criticada por muitos críticos, que acreditam que essa medida piora as condições das cidades, aumentando a quantidade de carros circulando nas vias públicas, aumentando a emissão de dióxido de carbono e estimulando um setor produtivo com forte impacto sobre a economia linear em detrimento da chamada economia circular.

Depois de seis meses, os avanços são visíveis, embora saibamos que os desafios contemporâneos sejam elevados e as perspectivas podem ser positivas, mesmo sabendo que os riscos são elevados e as preocupações são muitas e prescinde de atenção constantes…

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Poder e progresso, por Hélio Schwartsman.

0

Livro mostra que avanços tecnológicos podem virar concentração de renda ou prosperidade compartilhada

Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”.

Folha de São Paulo, 16/07/2023

Daron Acemoglu, um dos autores do best-seller “Por que Nações Fracassam”, volta à carga com mais um livro importante. Trata-se de “Power and Progress” (poder e progresso), desta vez em parceria com Simon Johnson.

Os autores admitem, por óbvio, que avanços científicos e tecnológicos estão na base da era de bem-estar material em que nos encontramos. Hoje, mesmo os mais pobres vivem vidas mais longas, mais saudáveis e com acesso a confortos com que nossos ancestrais de 300 anos atrás nem sequer podiam sonhar. O ponto da dupla é que nem todos os progressos tecnológicos se convertem automaticamente em prosperidade para todos.

Em algumas circunstâncias conseguimos transformar os avanços em bem-estar compartilhado, mas em várias outras o que se vê são elites se apropriando dos ganhos de produtividade, podendo até mesmo levar a maioria a experimentar uma piora nas condições devida. Foi o que ocorreu, por exemplo, com vários dos grupos que trocaram a caça/coleta pela agricultura/pastoreio. Foi também o destino das primeiras levas de trabalhadores sob a revolução industrial.

Acemoglu e Johnson analisam mil anos de história e tentam mostrar as razões para a diferença. Os detalhes obviamente variam muito, mas a repartição dos ganhos só ocorreu de forma mais equitativa quando a sociedade conseguiu desenvolver instituições, como sindicatos, imprensa etc. que lograram fazer com que as decisões sobre a tecnologia e a organização do trabalho não ficassem unicamente a cargo das elites.

Com esse instrumental, a dupla também aborda vários temas quentes do momento, como a inteligência artificial e as ameaças à democracia representadas pelas redes sociais. No capítulo final, eles elencam medidas que ajudariam a robustecer a sociedade civil, transformando-a numa força capaz de contrabalançar a tendência de concentração de poder e riqueza nas mãos de grupos cada vez mais restritos.

Professores, uni-vos!, por Jean Pierre Chauvin

0

A Terra é Redonda -11/07/2023

Iean Pierre Chauvin

Um voto de protesto contra o discurso nefasto sobre o duro, incompreendido e desvalorizado ofício de professor

Uma das notícias mais tristes, nos últimos anos, foi constatar a existência de colegas que não só votaram no mitômano especializado em matar,[i] mas continuam a defendê-lo em 2023, apesar de tudo o que ele negou, distorceu, corrompeu e desfez; a despeito de todas as ignomínias que cometeu; apesar do absoluto deboche com que desgovernou as pessoas, as coisas, as culturas, as leis e as contas do país, em favor de si mesmo e de seus asseclas, todos situados muito abaixo da mediocridade.

Ora, se nem mesmo a hecatombe sanitária por negligência federal foi capaz de sensibilizar alguns professores durante a pandemia, o que o discurso leviano do seu filho poderia despertar? É nisso que tenho refletido desde que o deputado comparou “professores doutrinadores” a “traficantes” – em prejuízo moral dos educadores –, durante o final de semana, em ato que “coincidiu” com os seis meses do atentado aos três Poderes da República, no dia 8 de janeiro de 2023.

Alguém objetará que resulta inútil propor qualquer forma de diálogo com essa turma nefasta; mas, persisto.

Comecemos pela suspeita de que pouca gente lembra ou sabe que entre os antigos romanos, o verbo “doutrinar” subjazia o ato de lecionar, ou seja, era prática inerente à relação entre Mestre e Discípulo (veja-se o que ensinou Antônio Geraldo Cunha em seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa).

Entretanto, o correr dos séculos, a mudança dos regimes, as novas formas de conceber o mundo, emprestaram caráter pejorativo ao termo doutrinação. Se até o final do Oitocentos, doutrina traduzia um conjunto de preceitos e, por extensão, a ideia de sistema, o fato é que a palavra assumiu caráter negativo ao longo do século XX, especialmente quando ela passou a ser empregada como sinônimo de perversão, desvio ético e/ou intelectual dos “puros” alunos, por obra do professor “doutrinador”.

Se resgatar a etimologia de doutrina pode resultar em argumento inconsistente (já que foram atribuídas muitas camadas de sentido a essa palavra, ao longo dos séculos), consideremos o uso que Paulo Freire fez dela em Pedagogia do Oprimido – publicado em 1968. Contrariando o que disparam seus detratores sem tê-lo lido, repare-se que em nenhum momento ele defendeu o papel doutrinário do professor, mas o seu propósito libertário, no trabalho com os alunos.

Uma explicação possível. A concepção freiriana de ensino-aprendizagem pressupunha solidariedade contra antagonismo; educação crítica em lugar de escolarização ingênua. Em suma, superar a contradição oprimido-opressor envolveria a relação horizontal entre educador-educando e educando-educador.

A lição pode soar óbvia aos colegas familiarizados com a extensa obra de Paulo Freire; mas, provavelmente será condenada como peça de pedagogia “doutrinária” pela extrema direita e seus adeptos – especialistas em ressentimento que fingem acreditar nos absurdos que eles mesmos criam e disseminam, em nome de quimeras como “Pátria” (quintal dos EUA), “Deus” (da prosperidade), “Família” (das aparências) e “Propriedade” (do latifúndio improdutivo) etc.

O que seres dessa estirpe simulam esquecer é que não há professor neutro, tampouco ensino isento de parcialidade. O que eles teriam a dizer sobre coachs apologetas do neoliberalismo, que transferem toda a cota do insucesso para o indivíduo “fracassado”? Sobre instrutores que “ensinam” o empreendedorismo como se fosse um valor absoluto, alheio aos limites do indivíduo e infenso às assimetrias sociais? Sobre líderes “religiosos” que espoliam os fiéis mais carentes, em benefício próprio? Sobre sujeitos na política que se divertem enquanto alvejam os profissionais da educação?

Professores, uni-vos!

Jean Pierre Chauvin é professor de Cultura e literatura brasileira na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros de Sete Falas: ensaios sobre tipologias discursivas.

A economista que desmascarou a “austeridade”

0

A poucos meses de lançar seu livro no Brasil, Clara Mattei sustenta: “Falta de recursos” é armadilha ideológica. Dinheiro, os Estados criam o tempo todo. Corte de serviços públicos visa disciplinar as maiorias, forçando-as a aceitar qualquer trabalho

Outras Mídias – 06/07/2023

A professora e escritora Clara Mattei é objetiva: já no título de seu mais recente livro ela fala da conexão direta entre austeridade econômica e o fascismo. Em The Capital Order: How Economists Invented Austerity and Paved the Way to Fascism (ainda sem título em português – em tradução livre: “a ordem do capital: como os economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo”) ela destrincha essa relação. O livro será lançado no Brasil ainda este ano pela editora Boitempo.

Mattei foi a convidada do Brasil de Fato Entrevista desta semana. Ela contou sobre o processo para elaboração da obra, que é fruto de dez anos de estudo. Italiana radicada nos Estados Unidos (ela é professora de Economia na The New School for Social Research, em Nova Iorque), a pesquisadora cita personagens como Benito Mussolini, Donald Trump e a atual primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, como frutos políticos de um caminho trilhado com apoio na lógica da austeridade econômica.

“Para o capitalismo funcionar, a maioria das pessoas deve estar desempoderada, precarizada e
dependente do mercado. E é isso que a austeridade faz. Tira recursos da maioria das pessoas, que ganham dinheiro através de um salário, e entrega a uma minoria, cuja riqueza vem de patrimônios e rendas”, afirma ela, que destaca que a alternativa a esse sistema passa pela organização das pessoas em suas comunidades locais.

A senhora passou dez anos escrevendo o livro que nasceu da sua tese de doutorado. Como e quando decidiu se aprofundar neste assunto?

Tudo começou quando estava vivendo os anos de grande austeridade de Mario Monti, na Itália. Ele chegou ao poder após a crise da dívida soberana em nosso país e estava estudando e vivendo na pele, assim como a maioria das pessoas no mundo ainda vive hoje, os efeitos da austeridade, a redução de verbas para a educação e saúde pública. Vi as pessoas na Itália ficarem cada vez mais pobres a olhos vistos. Era um país em que não tínhamos pessoas morando na rua e as ruas estavam ficando cheias de gente. Não havia moradia.

Mas você passou dez anos pesquisando e procurando material em arquivos, certo?

Sim, é um trabalho em economia histórica e política. É baseado em fontes primárias e na reconstrução do passado através de uma nova perspectiva, analisando material que ainda não havia sido publicado. O tipo de debate sobre austeridade que estava ocorrendo na mídia, na política pública e até entre movimentos de esquerda era muito insatisfatório porque era muito apolítico.

Transformaram a austeridade em uma ferramenta técnica para gerir a economia e a discussão era se a austeridade estava ou não funcionando para equilibrar o orçamento e promover crescimento. Era um debate sem solução. E não muito útil para entender por que a austeridade continuava emergindo mesmo que claramente não estivesse gerando crescimento, nem ajudando a resolver a questão da dívida.

Então o estudo histórico é muito importante porque nos dá uma análise com perspectiva de classe que estava ausente no debate econômico contemporâneo, que era muito tecnocrático. A tentativa era então olhar para o que aconteceu 100 anos atrás e mostrar como a austeridade tem uma clara lógica política que visa manter todos nós em uma situação de precariedade, de dependência do mercado, desempoderando assim a população para que o sistema se proteja e mantenha a ordem do capital, que é o título do livro: A ordem do capital, para se manter intacto.

Se olharmos para a história, isso só é visível porque aconteceu em um momento em que o capitalismo foi muito contestado depois da Primeira Guerra, e assim realmente vemos como a austeridade operava como uma contraofensiva usada pelas elites para impedir qualquer alternativa ao nosso sistema.

Na apresentação do livro, você fala sobre várias crises econômicas e políticas em países do mundo todo, já que essas crises e essa austeridade são intrínsecas à nossa sociedade moderna.

Nos últimos anos, mais uma vez vimos uma crise do neoliberalismo no mundo todo, algo que já se dizia no início do século passado. Esse modelo econômico não é o mais adequado, certo?

Sim, com certeza. Estamos em outro momento em que as pessoas não acreditam no sistema, penso eu.

Aliás, é por isso que a austeridade voltou com força total. Não só no Brasil. Eu moro nos Estados Unidos e o motivo pelo qual o Federal Reserve, o [equivalente ao] Banco Central, está aumentando a taxa de juros é porque a maioria das pessoas não está voltando ao trabalho.

Muitos trabalhadores estadunidenses, 46 milhões, em 2022, largaram seus empregos porque estão cansados da exploração e porque veem que o sistema não trabalha para eles e sim para uns poucos que enriquecem constantemente. Então é nessa situação que a austeridade deve voltar para nos convencer que, na verdade, estamos enganados e não existe outra saída a não ser através do sacrifício dos trabalhadores e, em última instância, do corte de salários para atrair a confiança dos investidores.

E o capital parece tentar se reestabilizar e se preservar o tempo todo. Mesmo diante de uma crise, os bancos, o sistema inteiro, e até os governos liberais, ainda tentam protegê-lo.

Com certeza. Mas acho que existe aí uma mensagem de esperança que surge quando levamos a História a sério: o capital não é fixo, não é algo dado e não é uma coisa, não é um objeto. É uma relação social e se traduz em uma maioria que aceita sua condição e aceita sua condição de vender sua capacidade por um salário.

A relação social não é de maneira alguma estática. É dinâmica e pode ser subvertida. É dinâmica e pode ser subvertida. Então a realidade é que a ordem do capital é muito frágil. E é por isso que a austeridade é tão cara a ela, porque a protege de todas essas demandas de transformação social que vão surgindo.

A mensagem aqui é que precisamos saber como a classe dominante opera para preservar um sistema injusto. Precisamos parar de idealizar o capitalismo como um sistema que pode ser reformado e que tem flexibilidade para incorporar nossas necessidades, e perceber que o capitalismo tem limites rígidos. É um sistema que só cresce e produz para gerar lucro e isso requer austeridade.

A tese central aqui é que a austeridade não é uma exceção no capitalismo, não é algo que só se vê nas etapas neoliberais, começando nos anos 80. Ela é muito mais intrínseca à longa história do capitalismo. Está no DNA do sistema exatamente porque, para o capitalismo funcionar, a maioria das pessoas deve estar desempoderada, precarizada e dependente do mercado. E é isso que a austeridade faz. Tira recursos da maioria das pessoas, que ganham dinheiro através de um salário, e entrega a uma minoria, cuja riqueza vem de patrimônios e rendas.

A pesquisa aborda os primeiros anos do século 20 até a atualidade. E a austeridade esteve sempre presente, como você acaba de dizer, desde o período entreguerras, que é onde começa a pesquisa.

Você disse que a austeridade foi uma ferramenta técnica e despolitizada para a ascensão de lideranças autoritárias. Por que unir Mussolini, Jair Bolsonaro, Viktor Orbán e Giorgia Meloni, por exemplo? A pergunta é: “o que os une?”

É muito importante aqui dar um passo para trás. No livro, faço uma reconstrução da crise do capitalismo após a Primeira Guerra, há exatos 100 anos. Em 1919 e 1920, a população em geral tinha desistido do capitalismo, pensando que haveria um futuro melhor após a reconstrução pós-guerra. E todos esses experimentos que surgem de conselhos de trabalhadores demandam democracia econômica, o que significa que as pessoas estavam se reapropriando da produção e distribuição de recursos. Isso estava acontecendo concretamente.

Meu foco é o movimento de Antonio Gramsci, em Torino, L’Ordine Nuovo, em que é possível ver um esforço real não só para pensar diferente, como também para agir diferente. E só se podia agir diferente realmente pensando diferente e só se podia pensar diferente agindo diferente. Então é a importância da prática, de uma sociedade diferente nascer de experimentos dentro das fábricas e também no campo, em que as pessoas se reapropriaram dos meios de produção e da organização do trabalho.

Nessa situação explosiva, a burguesia ficou muito assustada. Porque, é claro, ela se beneficiava do capitalismo, queriam protegê-lo e qualquer forma de distribuição e democracia econômica teria significado, de certo modo, o fim dos seus privilégios. É nesse momento em que vemos emergir a austeridade como uma contraofensiva e aqui há dois fatores relacionados à sua pergunta. O primeiro é que os economistas participaram muito ativamente na construção de modelos econômicos supostamente “neutros”, teorias “neutras”, conhecimento científico, para dizer às pessoas que elas eram ignorantes, que elas não entendiam e, em suma, que estavam vivendo por conta própria e tinham que aceitar a verdade dura, como diziam, do trabalho duro e abster-se de consumir.

Então esse lema de austeridade, “consuma menos, produza mais”, foi imposto à população italiana e inglesa. Esses dois países são o foco dos meus estudos porque meu interesse é mostrar que a austeridade surge onde a democracia econômica é mais palpável. E naquele momento na Europa as pessoas tinham ganhado o direito ao voto, por exemplo. Mas o que se vê é uma aliança entre economistas e governos. Os economistas são convocados pelos governos para ajudar a impor à população a austeridade. E a austeridade veio em uma variedade de formas. Não foram só cortes de gastos, foi, em primeiro lugar, cortes de gastos sociais, taxação regressiva. Então houve aumento em impostos sobre o consumo, como ainda vemos no mundo todo hoje, mais impostos para pessoas físicas e corte de impostos para ricos e impostos corporativos ou sobre patrimônio etc.

Também se tratava de aumentar as taxas de juros, que também vemos hoje, ou seja, austeridade monetária, e, por último, aquilo que chamo de medidas industriais, que são ataques diretos a sindicatos, privatização, desregulação do trabalho e arrocho salarial. Então essa tríade da austeridade; fiscal, monetária e industrial; foi imposta à população também graças a economistas que estavam dizendo: “Este é o caminho certo a seguir e somos especialistas e objetivos”. Nesse sentido, fica evidente que os economistas desempenharam um papel bastante classista, participaram nessa guerra de uma classe contra o resto dos cidadãos e isso poderia ter sido feito de outro jeito, como foi na Inglaterra, onde a democracia liberal usou a austeridade contra seu povo e isso aumentou o desemprego e assim disciplinou os trabalhadores.

Eles tiveram que deter as greves, voltar ao trabalho com um salário bem menor e em piores condições. Voltando à pergunta, na Itália, vemos que Benito Mussolini, o fundador do fascismo, foi o mais eficiente implementador e aprendiz da austeridade. Mussolini chegou ao poder através de uma eleição, não um golpe, assim como Giorgia Meloni e Orbán hoje. Mas com uma intenção explícita de impor austeridade, dizendo às pessoas para não se preocuparem porque iriam fazer os cidadãos italianos pararem as greves, as reclamações e voltarem ao trabalho.

Agora, eu acho que hoje vemos muitos desses políticos “autoritários parafascistas” emergirem porque as pessoas estão insatisfeitas com a austeridade. A austeridade venceu a um ponto em que não há mais a noção de classe: as pessoas pensam que são indivíduos [isolados], e é uma típica mensagem de austeridade: “Não há classes, não há antagonismo, só indivíduos. E são os empresários que lideram a máquina econômica, não os trabalhadores.”

Então, no caso da Itália, para mim, Meloni chegou ao poder porque prometeu redistribuição de renda, e é claro que não cumpriu, porque assim que assumiu o poder mais uma vez impôs austeridade, como Mussolini e outros regimes autoritários.

Sobre isso, você diz que a austeridade não teve sucesso em estabilizar a crise econômica, mas teve sucesso em estabilizar as relações de classe. Estamos vendo agora uma mudança global nas relações de trabalho. Os sindicatos estão enfraquecidos, perdendo poder em alguns países. Como poderíamos ver nascer uma nova organização de trabalhadores?

Tenho algumas ideias sobre isso. Em primeiro lugar, mesmo se existe essa ideia de que os trabalhadores estão enfraquecidos, isso se deve à ação da austeridade sobre nossa vida por mais de 100 anos. Ela foi muito bem-sucedida, como você disse. A austeridade não teve sucesso em atingir os objetivos estabelecidos de crescimento econômico e pagamento da dívida, mas teve muito sucesso em atingir seu verdadeiro maior objetivo: garantir que as pessoas não pensem que podem viver em outro tipo de sociedade, aceitem sua condição de trabalhadores assalariados. Mais uma vez, impondo a ordem do capital. E isso também é uma armadilha para a mente porque os modelos econômicos reafirmam que os trabalhadores não importam, só os empresários.

Então é justo e correto afastar os recursos dos preguiçosos e favorecer os supostamente meritórios. Eles oferecem justificativas para essas políticas de extração de todos nós.

Claramente a austeridade teve sucesso e vemos que, historicamente, os trabalhadores perderam poder, o poder de barganha, o poder de imaginar um novo futuro. Dito isso, quero chamar atenção ao fato de que, no capitalismo, a luta de classes nunca para. É uma constante. Nosso sistema está em movimento, é um processo, não há nada fixo, mesmo que os economistas queiram que acreditemos que há algo fixo. Porque acreditar que algo é fixo nos desempodera e aprisiona nossa imaginação.

Então quero dizer que, é claro, existe um motivo por que a coisa não vai tão bem para os trabalhadores neste momento histórico, mas não é à toa que existem muitas mobilizações novas.

Nos Estados Unidos, por exemplo, é o setor de serviços: pessoas em restaurantes, hotéis, em áreas em que normalmente o trabalho é muito precarizado e individualizado, estão agora se sindicalizando. Starbucks, Amazon, Chipotle. E isso está assustando muito as classes dominantes.

Eu diria que estamos em um momento, na verdade, em que existe novamente certa turbulência. Claro, não é o espírito revolucionário de 100 anos atrás, mas há muita demanda por libertação.

Respondendo a sua pergunta, me sinto muito esperançosa. Há pouco estive na África do Sul, apresentando o livro, e me organizei e me encontrei com ativistas das townships [áreas urbanas comparáveis a favelas]. As townships são lugares onde o apartheid ainda existe, em termos de precarização econômica. No entanto, há muita energia no território, muita gente das novas gerações que abandonou as velhas categorias e estão pensando o novo.

Acho que o importante, para avançarmos, é abrir espaço para essas iniciativas que buscam recuperar independência e autossuficiência. Trata-se de romper a principal armadilha, que é a dependência do mercado. O que quero dizer? Que a maioria de nós, para poder viver, precisa ter dinheiro no bolso. Se quiser comer, tem que comprar algo no supermercado. Se quiser morar, tem que pagar aluguel. Se quiser ser curado, tem que pagar pelos médicos. Se quiser ir à escola, muitas vezes tem que pagar. Este é o resultado da austeridade. A mercantilização de todos os aspectos da nossa vida para nos desempoderar cada vez mais.

Acho que a primeira missão aqui é ser capaz de recuperar nosso poder através da organização, de conselhos, da vizinhança, de atividades locais, de formas de produzir e distribuir por nossa conta. Assim não dependeremos do salário dos capitalistas e não gastaremos nosso dinheiro em supermercados, para que o dinheiro não vá embora assim que entrar. Precisamos que os recursos permaneçam dentro da comunidade. E acho que esse é um primeiro passo importante para engajar as pessoas na ideia de organizar, colaborar e perceber que não é suficiente só votar nas eleições.

Votar nas eleições é um ato muito superficial. E é algo que mantém viva a servidão econômica.
Então é preciso romper e combater a servidão econômica. E esse seria um primeiro passo em um projeto muito mais ambicioso, que vai além da democracia social. É a derrubada das relações salariais em si. Repito que isso está acontecendo. Está acontecendo nas townships, eu estive lá há pouco. Está acontecendo no Chile, onde os conselhos são fortes. Acho que está acontecendo no mundo todo, mas a mídia não fala disso. Mas é suficiente para se envolver, ir para a rua, conhecer sua vizinha, ver que essas realidades existem e a austeridade está aí justamente para parar esses processos. Mas nós precisamos lutar contra isso.

Você mencionou a viagem à África do Sul. Seu livro será publicado no Brasil no segundo semestre, editado pela Boitempo. Está preparada para esse tour ao redor do mundo?

Tenho um filho de 8 meses que está viajando conosco. Seria melhor não ter que me mover tanto, mas faço isso porque acredito no poder do conhecimento, em ajudar a levar processos adiante.

Novamente, a mudança tem que vir de baixo, de quem está mobilizado. Mas acho que as bolsas de estudo de militância podem ajudar a desenvolver ferramentas para afiar a mente e o conhecimento sobre as estratégias inimigas. E é por isto que a História é útil, para abrir espaço a novas maneiras de fazer as coisas, para fomentar a imaginação política porque, no passado, houve muitos esforços para mudar a nossa sociedade. E ainda existem esforços assim e acho que meu papel é fazer a discussão avançar e dar esperança às gerações mais novas.

A ideia de ter um orçamento elevado é o debate central no Brasil hoje. Esse debate eterno torna impossível avançar em direção a uma agenda positiva para o país. Por outro lado, muita gente, incluindo o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, acredita que os juros altos vão barrar o crescimento econômico e que o controle da inflação não deveria ser o foco principal.

Essa ideia sobre o orçamento primário tem a mesma origem que a austeridade?

Com certeza. É exatamente isto que a austeridade faz. Passa a mensagem de que não há alternativa. Equilibrar o orçamento é uma prioridade indiscutível. É uma prioridade neutra e necessária. Agora, sabe que a mensagem do livro não é que esses economistas estão necessariamente errados. Acho que em boa parte dos casos, principalmente em países do Sul, nos quais os limites do capitalismo são reais, é realmente um problema que a inflação esteja alta, que a moeda esteja desvalorizada. Mas isso dialoga com a violência econômica que é muito estrutural no sistema. Por isso a solução não é só fazer remendos no nosso sistema, com algumas reformas. Porque o estrangulamento é forte.

E é verdade que, sob o capitalismo, dependemos da confiança dos investidores para o crescimento econômico. E como você atrai investidores? Só se mantiver baixas as taxas sobre grandes riquezas e as taxas empresariais. Só se abrir às privatizações. O que ocorre agora é que grandes gestores de ativos estão comprando infraestrutura, imóveis, para tirar o máximo de taxas e renda, para aumentar o máximo possível as nossas necessidades diárias. Mas é exatamente isto que o Estado capitalista deve fazer, em suma, abrir-se a esses investidores privados. Essa é a realidade do sistema. É por isso que é muito idealista pensar que o Estado capitalista pode se opor a essas tendências global de austeridade. É por isso, repito, que temos que encontrar formas através de processos de libertação da propriedade privada, meios de produção e relações salariais. Porque o capitalismo realmente nos aprisiona. Não sei se isso faz sentido.

Esse debate entre economistas soa, é claro, como se não fosse uma escolha política. E podemos dizer que obviamente é uma escolha política. Mas também é uma escolha restritiva porque são decisões políticas favoráveis à manutenção da estabilidade de certa forma de mercado capitalista, certo? E isso requer nossa subordinação às leis do mercado que nos estrangulam e beneficiam uma minoria muito pequena. Essas escolhas políticas são restritivas. Mas nós podemos pensar grande, querer mais que migalhas para manter o povo controlado. Precisamos pensar grande, pensar em realmente romper com a nossa posição de subordinação ao mercado.

Aqui no Brasil, em 2016, o governo, que aliás não tinha sido eleito pelo povo, criou um marco fiscal conhecido como “teto de gastos”. A ideia era controlar o orçamento e a relação entre gasto público e PIB. Na verdade, vimos uma drástica redução em investimentos sociais, como educação, saúde pública e outros programas sociais. Essa política de austeridade, junto a outros eventos do sistema político brasileiro, pavimentaram o caminho para a eleição de Jair Bolsonaro.

Movimentos como esse poderiam dar lugar ao avanço de partidos de extrema direita?

Sim, esse é outro exemplo de que a austeridade não é um erro. Muita gente na esquerda diz que é fruto de uma economia ruim, que é um erro. Infelizmente, não é um erro. O que você descreveu mostra o sucesso da austeridade. As pessoas foram tão desempoderadas, que perderam seu senso de união de classe. Perderam a noção da luta coletiva contra o inimigo, que é a minoria que se beneficia do sistema, e terminaram votando por essa minoria que se beneficia do sistema. Porque a austeridade nos individualiza, nos convence que todos nós podemos ser empresários se nos esforçarmos e que deveríamos sentir vergonha de ser pobres. O motivo por que as pessoas votam em alguém como Trump é exatamente o sucesso da austeridade. Não acho que podemos culpá-las por votarem em Bolsonaro ou Trump. Deveríamos culpar a elite dominante, incluindo, infelizmente, o Partido Democrata [dos Estados Unidos] e todos os partidos supostamente progressistas que, de forma hipócrita, já vinham praticando a austeridade.

A austeridade atravessa fronteiras partidárias. Infelizmente, aqueles que supostamente representam o povo, incluindo os sindicatos, apoiaram a austeridade, criaram a sensação de falta de esperança e de que deveríamos fazer o possível para nos salvar como indivíduos, sem olhar para o fato de que somos, na verdade, produtores, produtores coletivos que deveriam lutar contra a exploração e contra aqueles que nos exploram. Então é só através da recriação do senso de coesão de classe e da conscientização de classe que podemos nos libertar da armadilha de pensar que regimes autoritários vão nos salvar. Eles não vão. Mas o mesmo vale para partidos democratas, como o de Biden, que estão desfinanciando todos os setores sociais. Por toda parte.

Quase trinta anos depois

0

O começo de julho completou quase trinta anos do Plano Real, um plano de estabilização monetária que trouxe grandes alterações na economia brasileira, gerando algum tipo de estabilidade, melhora nos indicadores de preços e o incremento do ambiente de negócio, efetivando a redução dos preços que assolavam a economia nacional a décadas, atraindo novas formas de investimento, deixando claro nossos horizontes e os novos desafios para a sociedade brasileira.

Neste mês estamos comemorando quase trinta anos de sucesso no controle inflacionário, embora encontremos muitos especialistas que duvidem deste sucesso, as taxas de inflação caíram sensivelmente, trazendo suspiros e sonhos de que a economia brasileira se consolidassem de forma mais efetiva como uma das economias mais pujantes, se caracterizando como uma das maiores economias mundiais, donas de um potencial invejável, com espaços de crescimento econômico e, posteriormente, nos levando a vislumbrar a possiblidade, concreta, de seu desenvolvimento econômico, com melhorias substanciais para a população, impulsionando o bem-estar social e deixando para trás anos de subdesenvolvimento e heranças coloniais degradantes.

No começo dos anos 1990, a sociedade brasileira era vitimada por taxas elevadas de inflação e degradação do poder de compra da moeda, contribuindo efetivamente para a vergonhosa concentração de renda da sociedade nacional, onde os grandes setores econômicos e produtivos conseguiam se defender das taxas elevadas de inflação, garantindo ganhos reais, em contrapartida, uma parte substancial da população tinham suas rendas e salários mensais degradados pela elevada inflação, reduzindo seus rendimentos e contribuindo ativamente para que as condições de vida e de desigualdade fossem mais precárias.

O Plano Real pode ser visto como uma engenharia financeira muito sofisticada. Inicialmente, o governo dialogou constantemente com os setores econômicos e políticos, deixando de lado as medidas drásticas que foram utilizadas anteriormente, que distorcia o comportamento dos agentes econômicos e contribuíram para gerar desconfiança e descrédito. De outro lado, o Plano buscou um equilíbrio fiscal e, num próximo momento, inaugurou uma nova moeda, o Real, que substituiu a moeda anterior, marcada por grande depreciação e a perda crescente de poder de compra.

O Plano Real trouxe grandes transformações na economia brasileira, a estabilização monetária permitiu uma melhora da situação econômica, atraindo grandes fluxos financeiros para os sistemas produtivos, valorizando a moeda nascente e valorizando demasiadamente o câmbio, facilitando a importação, atraindo novos investidores e prejudicando os setores exportadores, contribuindo ativamente para o processo que vivemos na contemporaneidade, de desindustrialização da economia brasileira.

O câmbio valorizado trouxe grandes investimentos externos, melhorando o ambiente econômico, atraindo empresas internacionais, mas contribuiu, negativamente para fortalecer nosso potencial exportador de produtos industrializados, levando a economia nacional a uma desindustrialização.

Embora a desindustrialização não seja uma característica apenas da economia brasileira, grande parte das economias ocidentais perderam força de seus setores industriais e garantiram aos países asiáticos novos espaços na economia internacional, levando esses países a liderarem setores industriais no cenário global, onde destacamos a China, Coréia do Sul, Taiwan, dentre outras nações.

O câmbio valorizado contribuiu para reduzir os preços internos e contribuíram para debelar a forte inflação, mas levou a economia nacional a perder espaço na indústria global, muitas empresas tradicionais foram vendidas ou foram anexados por conglomerados internacionais, perdendo o dinamismo industrial, levando-nos a um caso único na economia mundial, de uma nação que se desindustrializou sem ter conhecido um setor industrial de ponta, ficamos mais uma vez, pelo caminho e fomos ultrapassados por outras nações, que na atualidade colhem os louros da industrialização e, novamente, ficamos para trás na competição internacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia do Setor Público, Mestre, Doutor em Sociologia. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 12/07/2023.

Por que os jovens saem precocemente da escola? por vários autores

0

Distorção idade-série é um fator antecedente e determinante da evasão

Folha de São Paulo, 11/07/2023

Paulo Tafner, Economista e pesquisador da Fipe/USP; autor de “Reforma da Previdência: Debates, Dilemas e Escolhas” (2005), “Demografia: a Ameaça Invisível” (2010) e “Reforma da Previdência: a Visita da Velha Senhora” (2015)

Sergio Guimarães Ferreira, Economista e diretor de pesquisa do Imds

Leandro Rocha, Economista e pesquisador do Imds

Matheus Leal, Economista e pesquisador do Imds

O Brasil, segundo projeção do IBGE, tinha no ano passado 21,7 milhões de jovens entre 15 e 21 anos. Desses, 2,8 milhões não frequentavam a escola. E também não concluíram a educação básica, segundo dados do mesmo ano do Suplemento de Educação da Pnad Contínua.

É um número preocupante. A educação é essencial para o desenvolvimento de habilidades que favorecem a inserção no mercado de trabalho e a mobilidade social dos jovens. Além disso, a evasão escolar reflete a desigualdade social que limita as chances de ascensão dos mais pobres. A maioria dos jovens que deixam a escola (60%) pertence aos 40% mais pobres da população, enquanto apenas 5% estão entre os 20% mais ricos.

Os motivos para o abandono escolar variam conforme o sexo e a idade dos jovens. Entre os homens, os principais fatores são a necessidade de trabalhar e a falta de interesse pelos estudos. Entre as mulheres, a gravidez é o principal motivo. A gravidez afeta especialmente as mulheres mais pobres: dentre aquelas que evadem, 26% citam a gravidez como a razão para sair da escola. A necessidade de realizar afazeres domésticos ou cuidar de pessoas e a falta de interesse são outros motivos que afetam de forma mais ampla as mulheres pobres.

As diferenças entre os principais motivos para deixar de frequentar a escola variam conforme a idade. Entre os homens, a falta de interesse é o motivo mais frequente para os jovens de 14 a 18 anos, enquanto a necessidade de trabalhar é o motivo mais comum para os jovens de 19 a 21 anos.

Para as mulheres, o motivo mais relevante varia entre a falta de interesse e a gravidez. Entretanto, conforme a idade aumenta, a necessidade de trabalhar torna-se mais relevante.

Uma política integrada de combate à evasão deve reunir desde incentivos financeiros à permanência (um exemplo é o “Poupança Jovem Piauí”) até programas de Busca Ativa (existem diversos exemplos, entre os quais podemos destacar o executado pelo estado de Pernambuco pela sua focalização em jovens em territórios mais vulneráveis), de cunho mais reativo.

Contudo, prevenir é melhor e mais barato do que remediar. A distorção idade-série é um fator antecedente e determinante da evasão escolar. No Brasil, a taxa de abandono é de 17% dentre alunos com dois anos ou mais de atraso escolar em relação à série, e apenas 2% dentre alunos com um ano ou menos de atraso, segundo os dados do Inep de 2019 organizados pelo Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (Imds). Logo, a evasão no ensino médio resulta da desatenção da escola com relação aos seus alunos mais vulneráveis nos primeiros anos do ensino fundamental.

Uma política de combate à evasão é prioritária e deve envolver estados e municípios, já que esses últimos são os responsáveis por boa parte do ensino fundamental público. E não deve ser tarefa somente das secretarias de Educação, mas também, e no mínimo, das secretarias de Assistência Social e de Saúde, todas atuando de maneira integrada. E muitas vezes atores como varas de infância e adolescência, nos casos em que a infrequência escolar é sinal de violação de outros direitos da criança.

Concentrar esforços, integrar áreas de atuação do Estado e focalizar ações específicas devem ser prioridade da gestão governamental. Não se trata de falta de recursos.

Paulo Tafner diretor-presidente do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (Imds), Sergio Guimarães Ferreira diretor de pesquisa do Imds, Leandro Rocha pesquisador do Imds, Matheus Leal pesquisador do Imds

IA não é inteligência e sim marketing para explorar trabalho humano, diz Nicolelis

0

Neurocientista diz que a mente humana resulta de milhões de anos de evolução: ‘quero ver ChatGPT sobreviver a um jogo do Palmeiras’

Pedro S. Teixeira

SÃO PAULO – FOLHA DE SÃO PAULO, 08/07/2023

O ChatGPT funciona como uma ferramenta de marketing por gerar desigualdades na relação entre empregador e força de trabalho, diz o neurocientista Miguel Nicolelis. Para ele, a inteligência é o resultado de milhões de anos de evolução, que não podem ser computados em código binário.

Nicolelis trabalha há 30 anos com redes neurais, mecanismo por trás dos atuais algoritmos de aprendizado de máquina. Referência em interfaces entre cérebro e máquina, atuou no desenvolvimento de neuropróteses capazes de restaurar movimentos do corpo. Durante a abertura da Copa de 2014, na capital paulista, um cadeirante chutou a bola ao gol com o auxílio de um equipamento desenvolvido por ele.

Nicolelis afirma à Folha que é absurdo dizer que os modelos de linguagem como o ChatGPT são dez vezes mais inteligentes que um ser humano por escreverem de forma veloz ou se comunicarem em diversos idiomas, como fez Geoffrey Hinton, cientista da computação que inventou as redes neurais e foi sócio e conselheiro do Google por mais de uma década. “A tartaruga é extremamente inteligente, só é lenta.”

O sr. criticou o escritor Yuval Harari. Por quê?

Ele mistura coisas de outras áreas sem ter conhecimento profundo. No Sapiens, ele mistura as referências e interpreta os nossos resultados de uma maneira que não tem absolutamente nada a ver com o que fizemos. É um trabalho que gastei 30 anos da minha vida. Quando ele fala que no futuro vamos colocar essa coisa chamada interface cérebro-cérebro, que era algo experimental que fiz entre ratos, fiz entre macacos e fizemos entre seres humanos, para reabilitação. Mas não é que eu vou trocar meus sentimentos com outras pessoas. É uma troca de comandos motores, coisas apropriadas para reduzir a lógica digital. Ele fez uma interpretação disso como se eu estivesse lendo a mente de alguém, o que nunca vai acontecer. Ele fala: ‘nós vamos viver até os 200 anos’, ‘vamos acabar com o envelhecimento’. Tudo isso é fantasia.

E sobre o que Harari diz da inteligência artificial?

Ele vive de lacração em lacração. Ele escreveu que a inteligência artificial sequestrou o sistema; ela não sequestrou nada. A espécie humana está sequestrando sua própria evolução.
Por trás da inteligência artificial, existem exércitos de pessoas que anotam dados.

E tem exércitos de evangelistas. Nunca gostei dessa palavra, porque ela denota que a vasta maioria dos movimentos humanos viraram religiões. Tudo parece religião. Do ponto de vista científico, digo isso há anos, e agora Noam Chomsky usa a mesma frase, a inteligência artificial não é nem inteligente nem artificial. Não é artificial porque é criada por nós, é natural. E não é inteligente porque a inteligência é uma propriedade emergente de organismos interagindo com o ambiente e com outros organismos. É um produto do processo darwiniano de seleção natural. O algoritmo pode andar e fazer coisas, mas não são inteligentes por definição. Se estivesse vivo, Charles Darwin teria um infarto com isso.

Chamar de aprendizado de máquina é melhor?

Aprendizado de máquina, deep learning, machine learning, são grandes nomes que usam palavras que nós nos acostumamos coloquialmente a usar, relacionadas ao cérebro humano ou de qualquer animal, para definir coisas que nós fazemos com lógica binária. A inteligência humana não é binária. Por isso, é um nome impróprio.

O criador das redes neurais Geoffrey Hinton diz que ele tenta simular a estrutura do neurônio, para pensar esses algoritmos.

Ele comenta um monte de absurdo também. Ele falou que a inteligência artificial já é dez vezes superior à inteligência humana, o que é um absurdo. Nós temos esses marqueteiros dessas áreas de tecnologia que alegam coisas que parecem verdade. Mas eles não têm a prova.

Ele trabalha com resultados. Ele fala da velocidade com a qual ele entrega respostas, vários idiomas.

A tartaruga é extremamente inteligente. Ela é lenta. Mas o que nós estamos falando é tentar usar a linguagem do mercado para definir o que a vida faz. O mercado quer coisas rápidas, eficientes, com lucro infinito e gasto zero. A inteligência não tem esse compromisso. A inteligência do organismo tem o compromisso de fazê-lo sobreviver o máximo possível em um ambiente em contínua mudança. Só porque um computador joga xadrez mais rápido e ganha de um campeão mundial, não indica que ele é inteligente. Ele só é mais eficiente, porque o xadrez é um jogo com regras predeterminadas. Esse computador não consegue sobreviver no estádio do Palmeiras em uma noite de jogo, não entende os motivos de uma briga, porque não tem a capacidade de generalizar sua inteligência.

A pesquisadora do instituto Open Philantropy, Ajeya Cotra, estimou que, no atual modelo de sociedade, a mente humana corre o risco de estar obsoleta até 2037 em termos de produção para o mercado de trabalho. Isso faz sentido?

Depende do que você chama de produção e do que chama de obsolescência. Existe um limite da lógica digital. Acabei de ler um livro de um dos melhores intelectuais da área de IA, o Michael Wildridge, da Universidade de Oxford. Saiu em 2021. No livro ele fala: sabemos que existe um limite determinado por fenômenos não computáveis, nos quais não há um algoritmo, não há uma fórmula matemática solucionável com um programa. Só que ele põe dois parágrafos sobre a coisa mais importante do livro, e comenta que os pesquisadores não prestam muita atenção nisso porque têm muita coisa para fazer. Mas a mente humana é repleta de fenômenos não computáveis: inteligência, intuição, criatividade, senso estético, definições de beleza, de criatividade, tudo isso é não computável. Qual é a fórmula para a beleza?

Uma jovem publicou no Twitter que seu tio foi acusado de plágio porque um professor pegou um trecho do trabalho dele e perguntou se havia sido feito pelo ChatGPT para o ChatGPT. A plataforma não é feita para reconhecer se um texto foi feito por inteligência artificial e sempre responde que é o autor de qualquer texto.

De certa maneira, o ChatGPT é um grande plagiador, porque pega o material feito por um monte de gente, mistura e gera algo que chama de produto novo, mas, na realidade, é em grande parte influenciado pelo produto intelectual de milhares e milhares de seres humanos. Para o sistema capitalista atual, moderno, a inteligência artificial é a grande ferramenta de marketing, porque gera uma total desigualdade no relacionamento com a força de trabalho.

Um patrão pode dizer: tenho um aplicativo de inteligência artificial, se o trabalhador não aceitar o salário que estou disposto a pagar, que é 10% do que ganha hoje, demito e uso o aplicativo.

Existe toda uma ideologia de substituição do trabalho humano, que não pode ser feita 100%, não há como.

Dá para dizer que ganha espaço na sociedade um pensamento mais utilitarista?

Esse é o problema, isso não tem nada a ver com a máquina. O que está se fazendo é forçar a biologia humana a seguir regras de mercado. As regras de mercado não são divinas, elas são abstrações criadas pela mente humana. O que elas produziram na história da humanidade? Uma estrondosa desigualdade de distribuição de renda. Nós temos gente gastando dinheiro para mergulhar para ver o Titanic explodindo no meio do oceano. Se alguém andar da avenida Paulista até aqui, como eu fiz, vê dezenas de milhares de pessoas morrendo de fome nas ruas. Tudo isso está sendo ignorado porque esses sistemas são convenientes. Eles aumentam a nossa produtividade e nosso alcance como ser humano.

O sr. está mais alinhado com o pensamento de que hoje esses modelos de linguagem são mais como papagaios estatísticos?

Totalmente. Deep learning nada mais é do que redes neurais com múltiplas camadas, mais camadas, mais neurônios e mais conexões entre essas camadas. O cérebro faz isso também. Todavia, é impossível simular os mecanismos biológicos que o cérebro usa para tomar essa decisão.

O cérebro gasta muito menos energia do que supercomputadores de IA para entregar o mesmo processamento.

É um processo de otimização de milhões de anos. Não é à toa que nós descemos das árvores, levou 4 milhões de anos para sairmos andando. É uma coisa muito mais elaborada: 20% da energia que seu corpo produz vai para cá [aponta para a cabeça]. A energia do cérebro dá para acender uma lâmpada, mais ou menos. É um troço extremamente otimizado que sofreu modificações brutais desde que a vida apareceu na Terra. E não é computável. O próprio Alan Turing sabia disso, depois de propor sua tese, disse: há certos problemas que essa minha máquina teórica, que já virou máquina de Turing e gerou os computadores, não vai conseguir resolver. E quando eu tiver esse impasse, só tem uma solução. Tenho que chamar um oráculo para tomar uma decisão. O oráculo é um ser humano.

Mas dentro dessa lógica de concorrência entre máquina e ser humano, o senhor concorda com os riscos para a espécie aventados por pesquisadores e gente da indústria de tecnologia?

Os riscos são tremendos. Essas ferramentas têm de ser usadas sob a supervisão humana. Na programação de um sistema de IA, a pessoa pede algo, mas pode não considerar que os meios para alcançar o objetivo são indesejados. É o que ocorre com o computador HAL do filme “2001 – Uma Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick. A missão dele era chegar com a tripulação a um local. Só esqueceram de falar que HAL não podia matar a tripulação. Esqueceram os cenários em que a missão seria completa, mas não sobraria gente para ver. Quando alguém delega para algo fazer uma missão em seu nome, não vai ser possível oferecer para essa coisa todas as restrições que temos de imediato por causa da evolução.

Esses mecanismos podem ser úteis, em termos de pesquisa, como são seus estudos em neurociência?

Uso redes neurais para interpretar padrões de atividade neural reais desde os anos 1990. Não as mesmas redes de hoje, mas mais simples. É um método estatístico de reconhecimento padrão.

Não concordo com transformar uma ferramenta estatística em um novo Deus e construir embaixo dele toda uma religião, como está acontecendo. Eu chamo a igreja da tecnologia.

RAIO-X
Miguel Nicolelis, 62
Chefiou, o Centro de Neuroengenharia da Universidade de Duke, antes de se aposentar como professor emérito em 2021. Médico, ele é referência no estudo da interface entre cérebro e máquina e coordenou comitê científico do Consórcio Nordeste. Foi o primeiro brasileiro a publicar um artigo na capa da revista científica Science.

Dowbor: Assim o rentismo tornou-se doutrina

0

Livro apresenta o homem que forjou o receituário corporativo do capitalismo improdutivo: cortar gastos obsessivamente, criar competição tóxica e buscar o lucro máximo, a qualquer custo. Fórmula inspirou personagens como Lemann

Ladislau Dowbor – Outras Palavras, 27/06/2023

A principal transformação do capitalismo nas últimas décadas é de ter migrado do lucro sobre processos produtivos como eixo central, para a maximização dos rendimentos financeiros, materializados em dividendos para acionistas. Trata-se do rentismo moderno, da maximização de dividendos por meio de sistemas especulativos, recompra de ações, cortes de empregos e de salários, evasão fiscal por meio de paraísos fiscais e outros mecanismos, no que tem sido chamado de financeirização. Há numerosos trabalhos sobre esta nova fase neoliberal do capitalismo, e de primeira linha, como de Joseph Stiglitz, que qualifica esses lucros de “unearned income”, ou seja, rendimentos não merecidos; de Thomas Piketty, que os qualifica de “rentas” (rentes em francês); de Mariana Mazzucato, que se refere ao “extractive capitalism”; de Michael Hudson, que os apresenta como bactérias que matam o hospedeiro (Killing the Host); de Gabriel Zucman (The Triumph of Unjustice), isso sem falar dos que abriram os caminhos, como François Chesnais e David Harvey. É
uma visão que está se tornando dominante na economia em geral. Bom senso em construção.

Mas o aporte de David Gelles, no livro The man who broke capitalism: how Jack Welch gutted the heartland and crushed the soul of corporate America – and how to undo his legacy, é contundente, pela análise detalhada de corporações concretas, como a General Electric – como exemplo básico – mas também da Amazon, AT&T, Boeing, BlackRock, Unilever, Paypal, e também, particularmente interessante para nós, da 3G Capital. Esta última é controlada por Lemann, Sicupira e Telles, responsáveis pelas fraudes bilionárias das Lojas Americanas, e que constituem o grupo privado mais poderoso hoje no Brasil, conforme vemos na edição da Forbes sobre bilionários brasileiros. O trabalho de Gelles alimenta sem dúvida uma visão de conjunto da financeirização, mas construída a partir do comportamento detalhado das grandes corporações, no cotidiano da tomada de decisão dos executivos. Poucas obras são tão ricas em termos de fazer compreender os mecanismos deste bicho novo que ainda chamamos de capitalismo, mas que funciona de maneira diferente e obedece a regras que nos escapam. Ainda se auto-qualificam de “mercados”, mas estão muito mais próximos de uma “aristocracia capitalista”, como as qualifica Michael Sandel.

David Gelles escreve de maneira excepcionalmente clara. Jornalista e colunista do New York Times, e pesquisador sobre o funcionamento concreto de corporações financeiras e tecnológicas, navega com conforto na área, e torna a temática muito acessível. A realidade é que escreve muito bem, o livro “se lê”. E a seriedade da pesquisa, riqueza de fontes e facilidade de consulta faz deste trabalho, a meu ver, uma das melhores ferramentas para entender a dimensão atual dos nossos desafios. Não precisa ser economista, Gelles insiste em que os mecanismos sejam entendidos. Queiramos ou não, esses gigantes corporativos, com seu alcance global, estão definindo os rumos das nossas economias, dos nossos empregos, inclusive das nossas políticas.

Jack Welch é um protagonista central. Executivo da uma das maiores corporações mundiais, a General Electric, ele conseguiu, em 20 anos, entre 1981 e 2001, transformar uma empresa de ponta de produção de utilidades domésticas em um gigante financeiro que compra e revende empresas de qualquer setor da economia, seguindo à risca os conselhos de Milton Friedman, de que se trata de maximizar o retorno dos acionistas, pouco importa como e a que custo. Friedman deu a benção acadêmica para essa economia do vale-tudo corporativo: The business of business is business. Essa fratura entre a busca de lucros e dividendos, e os interesses da sociedade é central. “A lucratividade da corporação já não se traduz em ampla prosperidade econômica”, escreve Gelles, citando William Lazonick. (65).

Eu me familiarizei com Jack Welch ao ler há alguns anos o seu principal livro, Straight from the Gut, título que sugere uma escrita enraizada nos sentimentos mais profundos e sinceros, mas um dos livros de gestão mais cínicos que já tive entre as mãos. E teve impacto planetário, legitimando o vale-tudo, ao mostrar como os acionistas da GE passaram a ganhar muito mais dinheiro, e valorizando a empresa na bolsa. De certa forma, o que Friedman fez para os economistas, liberando-os de qualquer relação com ética e valores em geral, Welch o fez para uma geração de executivos pelo planeta afora, um impacto impressionante, mas que coincide com os interesses de se fazer dinheiro a qualquer custo. Basta olhar o que “os mercados” aprontam no Brasil. Não à toa hoje enfrentamos a “economia desgovernada”.

Uma das técnicas de Welch que ficou famosa e foi muito replicada consiste em organizar a empresa em unidades, cujo chefe é obrigado, a cada fim de ano, a definir quais são os 20% de trabalhadores mais produtivos, os 70% seguintes, e os 10% menos produtivos, que seriam despedidos. Isso gera uma guerra permanente em todos os departamentos, luta pela sobrevivência, em vez de sistemas colaborativos e sentimento de equipe. Acompanhado de despedimentos em massa (downsizing), de liquidação de segmentos menos lucrativos, substituindo-os por terceirizados, e compras dispersas de qualquer empresa que pudesse gerar mais lucro ao ser fragmentada e revendida, o resultado foi um dreno poderoso a favor dos acionistas, na linha, precisamente, da maximização de dividendos.

Dos desastres gerados resulta a batalha atual de muitas empresas, de promover o ESG (Environment, Social, Governance), tentando recolocar no horizonte empresarial não só o lucro dos acionistas (shareholders), mas também os impactos sociais e ambientais (stakeholders).

Como exemplo de comportamentos lucrativos mas desastrosos de grandes corporações, o autor aponta a 3G Capital, controlada por Lemann, Sicupira e Telles, os maiores bilionários brasileiros, que drenam recursos não só das Lojas Americanas, por quaisquer meios legais ou ilegais, mas de uma imensa rede de empresas controladas por participações de diversos tipos. “No caminho, escreve Gelles, os brasileiros desenvolveram uma reputação de cortadores selvagens de custos e de demitidores despiedados (merciless downsizers).” Gelles cita o próprio Lemann: “Na realidade, somos copiadores. É o que somos. A maior parte do que aprendemos foi de Jack Welch, de Jim Collins (autor de Good to Great), da GE, da Walmart. De certa maneira juntamos tudo isso” (p. 178).

Centrar tudo no lucro financeiro e no curto prazo é hoje a filosofia de inúmeras corporações, e explicam em grande parte o paradoxo de tantos avanços tecnológicos, enquanto as economias estagnam, aumentam a desigualdade, o desemprego e os empregos precários. É uma deformação sistêmica, que no Brasil atingiu dimensões absurdas, inclusive com desindustrialização.

“Considerem, escreve Gelles, o caso da 3G Capital, um grupo privado de acionistas que controla marcas incluindo Budweiser, Burger King, e Kraft Heinz. Fundado por um grupo de financistas brasileiros, os homens por trás da 3G Capital são os Neutron Jacks (apelido dado a Jack Welch por sua capacidade de explodir empresas, LD) do século 21, implacavelmente adquirindo empresas, cortando custos e cabeças, e extraindo lucros para si mesmos e investidores enquanto pareciam ignorar o bem-estar da sua força de trabalho e a necessidade de pesquisa e desenvolvimento” (p. 177). É importante entender que essa maximização de apropriação de dividendos pelos acionistas leva à redução de investimentos produtivos na empresa, fragilizando-a. “As corporações, que outrora compartilhavam generosamente os lucros com os seus trabalhadores no país todo (EUA), agora canalizam a parte do leão da riqueza que criam para investidores institucionais e executivos.

Enquanto nos anos 1980 menos de metade dos lucros corporativos voltavam para investidores, durante a última década, este número subiu (soared) para 93%” (p. 183). Para claro o contraste, David Gelles, descreve a tentativa do grupo 3G Capital de controlar a Unilever, fazendo uma proposta dourada ao seu executivo Paul Polman (anteriormente da Nestlé).

Seria uma aquisição gigantesca, da ordem de US$143 bilhões, o que dá uma ideia da força financeira internacional deste grupo. Polman resistiu, e orientou a Unilever para uma linha que prioriza o desenvolvimento produtivo, com equilíbrio entre dividendos, remuneração dos trabalhadores e reinvestimento na empresa. “Temos de sair desta corrida de ratos” disse Polman. “Era uma transação puramente financeira que era atraente no papel, mas constituía na realidade dois sistemas econômicos conflitantes” (p. 206). Segundo Gelles, “os brasileiros tinham mal avaliado a sua presa.”

Eu queria muito recomendar a leitura desse livro. Sem frescuras, academicismos ou gráficos complexos, mas com muita documentação de apoio e pesquisa, é a melhor radiografia que li sobre como se deformou o que conhecíamos antigamente como capitalismo industrial, e que hoje conhecemos como “mercados”, aos quais temos de obedecer, se não “ficam nervosos”, e temos pagar obedientemente os juros extorsivos, e acreditar que se eles ficam ricos – sem gerar produtos, pagando mal os poucos empregos que geram, e evitando os impostos – a economia irá prosperar. Bem, é o que os consultores na mídia comercial nos repetem todo dia.

O comunismo está chegando? por Luís Miguel Felipe.

0

Luís Miguel Felipe – A Terra é Redonda -03/07/2023

Segundo o Datafolha, metade dos brasileiros teme a chegada do comunismo. Mas, afinal, o que se entende por comunismo? O que essa metade entende por capitalismo e as implicações que ele tem em sua vida?

Metade dos brasileiros teme que o país vire comunista, diz o Instituto de pesquisas Datafolha.
Pesquisas de opinião precisam ser analisadas com precaução. Como Pierre Bourdieu demonstrou há meio século, elas tratam como convicções o que são meras respostas a perguntas que, na verdade, as pessoas nem fazem a si mesmas.

Ainda assim, é preciso perguntar: que cazzo seria o comunismo, para que metade dos nossos compatriotas achem que ele está para chegar?

Um sentido de “comunismo” remete a sociedades em que tudo é comum a todos. Em que não há “meu” e “teu”. Como em tantos povos não europeus, para os quais a primeira tarefa do colonizador foi ensinar o sentido de “propriedade privada”.

O Brasil de hoje está neste caminho? Difícil de acreditar.

Outro sentido de comunismo se refere à sociedade imaginada por Karl Marx. Nela, não existiria Estado, repressão ou desigualdade. A necessidade estaria abolida e todos seriam integralmente livres. A harmonia entre indivíduo e comunidade ocorreria naturalmente.
Estamos chegando lá? Não parece.

É mais razoável imaginar que, por “comunismo”, as pessoas indicam o tipo de governo autoritário que imperou na antiga União Soviética e que hoje permanece em países como China, Coreia do Norte e Cuba. Alguém realmente acredita que há, no Brasil, alguma força política relevante que planeja implantar esse modelo?

Há um quarto sentido de “comunismo”. É tudo o que não é a extrema direita delirante. Quem difundiu essa acepção foi o (hoje calado) Olavo de Carvalho, que dizia que o governo FHC estava comunizando o Brasil. Então “comunista” é a Rede Globo, o Gilmar Mendes, o Joe Biden, o Emmanuel Macron. Até Sérgio Moro teve sua fase comunista, no curto período de tempo em que ficou de mal com Jair Bolsonaro e tentou se fazer de “terceira via”.

Seria bacana se, em vez de alimentar o medo irracional de um bicho-papão criado pela desinformação da direita, o eleitor brasileiro fosse capaz de discutir o que realmente quer para o seu país. Se entendesse o que é o capitalismo e quais as implicações que ele tem em sua vida, o que é e o que pode ser o socialismo, como uma democracia efetiva deveria funcionar.

Para chegarmos lá, só tem um caminho: educação política. Cabe à esquerda promovê-la – porque, para a direita, a alienação e a desinformação são vantagens.

*Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil (Autêntica).