O militar e a fé religiosa, por Manuel Domingos Neto

0

Manuel Domingos Neto – A Terra é Redonda – 07/07/2024

Como um Estado proclamado laico deve lidar com o ativismo religioso em suas entranhas?
Um vídeo circulou essa semana mostrando um auditório repleto de militares numa celebração religiosa falsamente apresentada como neopentecostal. Na verdade, tratava-se de rotineira celebração da Páscoa dos militares que, desde a Segunda Guerra Mundial, ocorre à margem do calendário da Igreja Católica.

A postagem maldosa inquietou brasileiros preocupados com as ameaças à democracia: de instituições militares e policiais contaminadas por fundamentalismos religiosos só cabe esperar aberrações sem limites.

Até a recente invasão da Faixa de Gaza, eu recorria à descrição da tomada de Jerusalém do bispo francês Raymond d’Agile para exemplificar a santificação do derramamento de sangue: “Coisas admiráveis são vistas… Nas ruas e nas praças da cidade, pedaços de cabeça, de mãos, de pés. Os homens e os cavaleiros marcham por todos os lados através de cadáveres… No Templo e no Pórtico, ia-se a cavalo com o sangue até a brida. Justo e admirável o julgamento de Deus que quis que esse lugar recebesse o sangue dos blasfemos que o haviam emporcalhado. Espetáculos celestes… Na Igreja e por toda a cidade o povo rendia graças ao Eterno”.

Sabemos dos estragos do fanatismo religioso na política: falseia o escrutínio da representação popular e explode a institucionalidade. Sabemos também que a composição do Congresso Nacional não representa o espectro político-ideológico brasileiro. O que não sabemos é a profundidade da penetração do discurso neopentecostal nos instrumentos de força do Estado. Apenas temos consciência de que existe e tem potencial nefasto.

Como um Estado proclamado laico deve lidar com o ativismo religioso em suas entranhas? Eis um problema permanente da modernidade, que se exprime de forma aguda no quartel.

A entidade que justifica a guerra entre civilizados é a nação, também designada pátria. Ao destacar os cenotáfios (túmulos sem restos mortais) na construção desse ente, Benedict Anderson demonstrou como sua legitimação deriva da religiosidade: remete ao passado longínquo e à eternidade. O encarregado de sustentar a nação pelas armas é, sem escapatória, envolvido por sua sacralidade.

O combatente contemporâneo se veste de mandatário do “bem” em luta sagrada contra o “mal”. Presta juramento e reverencia a bandeira nacional feito um cruzado medieval diante da cruz. Não desatualiza a mordacidade de Voltaire: “o maravilhoso, nesta empresa infernal (a guerra), é que todos os chefes de assassinos fazem benzer as bandeiras e invocam solenemente Deus antes de exterminar o próximo”.

Guerreiros, em qualquer tempo e lugar, são levados a cultivar a “bela morte”: amam a vida, gostam de facilidades materiais e projeção social, mas perseguem a glória, algo além daquilo que a existência terrena pode oferecer. Heróis de guerra são reverenciados em todas as sociedades. Fascinam, galvanizam multidões e estimulam processos sociais.

A disposição do moderno de ver a guerra como algo excepcional demanda cortes arbitrários como os estabelecidos entre o “religioso”, o “político”, o “econômico”, o “científico”, o “diplomático” e o “militar”. A rigor, nenhum desses domínios pode ser compreendido como desconexo.

As distinções arbitrárias, bem como os sempre frustrados acordos de desarmamento, as tentativas fracassadas de classificar e regulamentar o comportamento de combatentes de vida e morte ou ainda as quiméricas neutralidades nos conflitos entre Estados nacionais, camuflam o mal-estar provocado pela eliminação dos semelhantes.

Se o Estado laico não pode interditar atividades religiosas no quartel, é fundamental que estabeleça limites. Isso requer garantia da plena liberdade de crença, incompatível com a prevalência formal da Igreja Católica, e a contenção do fanatismo.

É hora de rever a chamada capelania: missionários não podem ser admitidos como funcionários remunerados. Cabe assegurar a presença, no quartel, do mosaico de crenças da sociedade brasileira. Aos comandos, cumpre observar o estrito respeito à diversidade religiosa.

Quanto à pessoa que apresentou falsamente o vídeo sobre a celebração da Páscoa dos militares, saiba que conseguiu angustiar os que gostam da democracia e irritar em vão os que, no quartel, buscavam o agasalho de Cristo. Que tal arranjar outra coisa para fazer?

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). Autor, entre outros livros de O que fazer com o militar – Anotações para uma nova Defesa Nacional (Gabinete de Leitura)

A uberização e a crise da previdência, por Pedro Henrique M. Aniceto

0

Pedro Henrique M. Aniceto – A Terra é Redonda – 05/07/2024

A desvalorização do trabalho humano é contrária aos cânones de justiça e equidade que fundamentam a lógica da previdência social

Nos últimos anos, a transformação do mercado de trabalho, impulsionada pelo avanço tecnológico e pelo crescimento das plataformas digitais, trouxe à tona um fenômeno denominado “uberização do trabalho”. Esse modelo, caracterizado pela intermediação entre prestadores de serviço e clientes por meio de aplicativos, promete flexibilidade e autonomia aos trabalhadores. No entanto, ao se analisar mais profundamente, especialmente sob a ótica social, torna-se mais que evidente que essa aparente liberdade vem acompanhada de uma série de precariedades e significativos problemas.

A previdência social desempenha um papel importante e necessário na proteção dos trabalhadores, garantindo uma rede de segurança que lhes permite enfrentar momentos de vulnerabilidade, como doença, desemprego ou velhice. O sistema previdenciário foi concebido para assegurar que, após anos de contribuição, os trabalhadores tenham direito a uma aposentadoria digna, proporcionando-lhes estabilidade financeira na terceira idade.

No modelo tradicional de emprego, essa segurança é garantida por contribuições regulares tanto dos empregados quanto dos empregadores, criando uma base sólida para o financiamento dos benefícios sociais e manutenção da seguridade da sociedade. A previdência é um componente essencial do Estado de bem-estar social, promovendo a equidade e a justiça social ao redistribuir renda e oferecer proteção a todos os trabalhadores, independentemente de sua posição econômica.

No contexto da uberização do trabalho, essa estrutura de proteção é significativamente enfraquecida. Os trabalhadores de plataformas digitais, muitas vezes classificados como autônomos, não têm acesso aos mesmos direitos e benefícios dos empregados formais. A ausência de contribuições previdenciárias regulares por parte desses trabalhadores compromete não apenas sua própria segurança futura, mas também a sustentabilidade do sistema previdenciário como um todo.

Sem a garantia de um contrato formal e das contribuições correspondentes, esses trabalhadores ficam desprotegidos e enfrentam uma maior incerteza econômica. Esse modelo de trabalho exacerba a vulnerabilidade dos trabalhadores, que são frequentemente sujeitos a jornadas de trabalho extenuantes e a uma instabilidade financeira crônica, sem o amparo de uma rede de proteção social.

A precarização das condições de trabalho decorrente da uberização também afeta diretamente a arrecadação fiscal. Com menos trabalhadores contribuindo regularmente para a previdência, a capacidade do sistema de fornecer benefícios adequados é severamente reduzida.

Isso não apenas coloca em risco a aposentadoria de milhões de pessoas, mas também a viabilidade de outros benefícios sociais, como o seguro-desemprego e o auxílio-doença, que são essenciais para a estabilidade econômica dos trabalhadores em momentos de crise. A redução na arrecadação fiscal também limita a capacidade do governo de investir em outras áreas críticas, como saúde e educação, exacerbando ainda mais as desigualdades sociais.

Além disso, a importância da previdência se torna ainda mais evidente quando consideramos o envelhecimento da população. À medida que a expectativa de vida aumenta, mais pessoas dependem dos benefícios previdenciários para manter um padrão de vida digno após a aposentadoria. A uberização, ao promover relações de trabalho mais flexíveis e menos regulamentadas, ameaça agravar o desequilíbrio financeiro dos sistemas previdenciários.

Sem uma base ampla e estável de contribuições, a capacidade de atender às necessidades de uma população envelhecida é comprometida, colocando em risco o bem-estar de futuras gerações. A ausência de contribuições contínuas e regulares pode resultar em um déficit previdenciário extremamente significativo, forçando o Estado a adotar medidas de austeridade que podem prejudicar ainda mais os trabalhadores e a economia como um todo.

O processo de uberização também levanta questões sobre a dignidade e a valorização do trabalho.

Em muitos casos, os trabalhadores de plataformas digitais recebem remuneração abaixo do salário-mínimo, não têm acesso a benefícios básicos e são expostos a condições de trabalho perigosas e insalubres.

Essa desvalorização do trabalho humano é contrária aos cânones de justiça e equidade que fundamentam a lógica da previdência social. A falta de regulamentação adequada e a exploração dos trabalhadores pela lógica do lucro máximo das plataformas criam um ambiente de trabalho hostil e insustentável, onde os direitos humanos básicos são frequentemente violados.

Portanto, a previdência social é um pilar essencial para a segurança e a dignidade dos trabalhadores, oferecendo uma rede de proteção contra as incertezas econômicas e os riscos da vida. A uberização do trabalho, ao afastar-se dos modelos tradicionais de emprego formal, impõe sérios desafios a essa estrutura, enfraquecendo a rede de segurança que sustenta milhões de trabalhadores.

Reconhecer a importância da previdência social e enfrentar as implicações desse novo modelo de trabalho é crucial para garantir uma proteção social justa e eficaz em um mundo cada vez mais digitalizado.

*Pedro Henrique M. Aniceto é graduando em ciências econômicas na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

Novo desenvolvimentismo, por Luiz Carlos Bresser Pereira

0

Luiz Carlos Bresser Pereira – A Terra é Redonda – 07/07/2024

Por ocasião do lançamento do meu mais recente livro Novo desenvolvimentismo – introduzindo uma nova teoria econômica e economia política, um repórter perguntou-me o que é o Novo Desenvolvimentismo.

E aproveitou para perguntar se não seria melhor que ‘o presidente trabalhasse mais’ e deixasse de dar entrevistas e criticar o presidente do Banco Central, que faziam o preço do dólar aumentar. Eis minha resposta.
2.
Sobre o Novo Desenvolvimentismo: Um artigo fundador da Teoria Novo-Desenvolvimentista, de 2001, fazia uma crítica cerrada à alta taxa de juros, mostrando que seu nível era mais alto do que o necessário para controlar a inflação e que a despesa fiscal envolvida era enorme.

A Teoria Novo-desenvolvimentista é uma macroeconomia do desenvolvimento que oferece políticas focadas na taxa de juros, na taxa de câmbio, e na crítica aos déficits em conta corrente. Mostra que a taxa de juros deve e pode ser razoavelmente baixa.

A taxa de câmbio deve ser competitiva, ou seja, deve garantir que as empresas que usam a melhor tecnologia sejam internacionalmente competitivas. E a conta corrente (balança comercial mais serviços) deve ser equilibrada; não ser deficitária e, assim, apreciar a taxa de câmbio.

É uma teoria heterodoxa que defende o equilíbrio fiscal, mas defende mais ainda o equilíbrio da conta corrente, que a ortodoxia liberal ignora, não se importando com déficits na conta corrente recorrentes.

Além de uma teoria econômica e uma economia política que foi inicialmente pensada para o Brasil, mas interessa a todos os países, principalmente dos de renda média.

O livro Novo desenvolvimentismo – introduzindo uma nova teoria econômica e economia política foi inicialmente escrito por encomenda de uma editora inglesa e foi publicado em janeiro no Reino Unido. A versão brasileira é uma versão melhorada da inglesa.

Sobre o equilíbrio fiscal: O Brasil precisa cortar gastos para interromper o crescimento da dívida pública, mas concordo com o presidente Lula: o ajuste não deve ser pago pelos mais pobres.

Entendo que rentistas e os financistas também deviam pagar a sua parte concordando em baixar os juros ao invés de fazerem uma guerra para não deixar que a taxa de juros caia. Discordo, porém, do presidente em um ponto: é preciso vincular as aposentadorias à inflação, não ao salário-mínimo.

Sobre o senhor Roberto Campos Neto: O presidente trabalha muito, e tem razão em criticar o presidente do Banco Central, que hoje é o líder da coalizão financeiro-rentista que domina o país e captura o patrimônio público. O aumento do preço do dólar é pura especulação, é parte dessa guerra contra o Brasil.

Sobre o Plano Real: Ele foi uma maravilha porque, de um dia para o outro, acabou com a alta inflação que assolou o país por 14 anos. Foi um plano rigorosamente heterodoxo baseado na teoria da inflação inercial que eu ajudei a desenvolver no início dos anos 1980. É um engano, porém, supor que ele não teve custo.

Seus economistas, ao assumiram o governo, tornaram-se ortodoxos e estabeleceram juros reais absurdos. Desde então, eles baixaram um pouco mas, com sua ‘bênção’, continuam hoje escandalosamente altos. Por isso eu tenho dito que a herança maldita do Plano Real foram os juros altos.

*Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor Emérito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e ex-ministro da Fazenda. Autor, entre outros livros, de Em busca do desenvolvimento perdido: um projeto novo-desenvolvimentista para o Brasil (Editora FGV).

Referência
Luiz Carlos Bresser-Pereira. Novo desenvolvimentismo – introduzindo uma nova teoria econômica e economia política. São Paulo, Editora contracorrente, 2024, 348 págs.

O privatismo sem critério de Tarcísio de Freitas, por André Roncaglia

0

É imperativo evitar privatização da empresa de saneamento do estado mais rico do Brasil

André Roncaglia, Professor da Unifesp, pesquisador associado do Ibre-FGV e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo, 06/07/2024

Depois do escândalo da privatização da Eletrobras, a Sabesp é a bola da vez.

A venda de participação acionária da empresa teve a ampla concorrência… de uma empresa interessada. Indagado a este respeito, o governo Tarcísio reagiu com a novilíngua privatista:

“Não é falta de concorrência, é uma aderência ao que a gente vem colocando desde o início”.

Especializada em energia elétrica, a Equatorial conta com uma “vasta experiência” de dois anos no setor de saneamento, “conquistada” com a privatização do serviço no Amapá, feita pelo governo Bolsonaro em 2021, sob a batuta do atual governador carioca de São Paulo.

Se efetivada a operação, a Equatorial deterá 15% das ações da Sabesp, adquiridas a preços abaixo dos vigentes no mercado (R$ 67 contra R$ 75). Sim, a privatização do ativo público, subsidiada com o dinheiro do contribuinte, é vista com naturalidade pela patrulha liberal.

Reportagens da Folha fizeram uma radiografia picotada da privataria tarcisiana. Deixe-me organizar os dados para o leitor. Ao se tornar “acionista de referência”, a empresa terá participação acionária de 15% e o poder desproporcional de indicar o CEO da Sabesp, o presidente e três membros do conselho de administração.

Os principais acionistas da Equatorial são “o Opportunity, do banqueiro Daniel Dantas, as gestoras Atmos, Capital World Investors, Squadra Capital e o fundo americano de investimentos Blackrock”. Com efeito, o “futuro plano de eficiência” da Sabesp prevê “redefinir a relação com sindicatos, otimizar benefícios e políticas de remuneração”. E, claro, a governança da Sabesp seguirá a “cultura de dono”, isto é, o “alinhamento de incentivos por performance”. Traduzindo: corte no quadro de funcionários e elevação da remuneração da diretoria executiva. Este arranjo tem dado certo com a Enel em São Paulo, não?

A otimização de custos operacionais e da estrutura de capital da Sabesp visa aumentar o endividamento da empresa para fazer caixa e, assim, aumentar a distribuição de lucros aos acionistas. Com este nível da taxa de juros brasileira, o acionista ganha o retorno hoje e o usuário paulista paga os juros com tarifa mais alta no futuro.

Neste ponto, a racionalidade técnica do exterminador de estatais tem uma solução: utilizar os ganhos com a privatização para subsidiar, nos primeiros anos, as tarifas pagas pelo consumidor paulista. Sim, o governo vai usar o ganho com a venda da casa para financiar o aluguel da casa. “Imprecionante”!

Diferentemente do Amapá, onde a cobertura de serviços de saneamento é muito baixa —apenas metade da população tinha acesso a água tratada e meros 4,5% da população contava com coleta de esgoto—, a situação da cobertura no estado de São Paulo é próxima de total. Em 2022, os índices de cobertura de água (98%), de esgoto (92%) e de tratamento de esgoto coletado (85%) deixam nítido que o contribuinte paulistano já amortizou o investimento na estatal paulista desde 1973, quando foi fundada.

A Sabesp é uma empresa altamente lucrativa e com capital aberto em Bolsa. Mesmo assim, o governo Tarcísio não conseguiu gerar concorrência para privatizar a maior empresa de saneamento do país.

É um feito e tanto!

Com controle da Sabesp, a Equatorial se consolidará como “empresa multiutilidades”; em 2023, sua margem de lucro foi de 77%. A ironia desta história é que um governo bolsonarista está subsidiando, à custa do contribuinte paulista, uma nova campeã nacional.

A reestatização do saneamento em Paris e Berlim —dentre dezenas de cidades mundo afora— questiona a fé inabalável na gestão privada dos recursos hídricos. É imperativo evitar este retrocesso no estado mais rico do Brasil.

Guerras, guerras e mais guerras

0

Na sociedade contemporânea, percebemos o crescimento acelerado de conflitos econômicos e produtivos, além de mais confrontos bélicos e militares, que contribuem fortemente para o incremento das incertezas e das instabilidades, que somados aos desequilíbrios emocionais, afetivos e as instabilidades financeiras, estamos vivenciando momentos marcados por grandes volatilidades.

As guerras econômicas crescem de forma generalizada em todas as regiões do globo. As nações desenvolvidas estão aumentando as políticas protecionistas, criando barreiras para a entrada de concorrentes externos, desta forma, buscam proteger suas estruturas produtivas, defendendo a geração de empregos, garantindo a manutenção da renda e dos salários dos trabalhadores domésticos, evitando um processo constante de desnacionalização de seus setores econômicos e a dependência de outras economias.

Destacamos ainda os conflitos financeiros que crescem todos os dias, nações buscam defender suas moedas e seus interesses imediatos, cada país tenta fortalecer seus setores financeiros e garantindo maiores ganhos nas finanças, desta forma, percebemos o crescimento de novos padrões monetários para fragilizar o modelo centrado no dólar americano, criado no período posterior a segunda guerra mundial e foi o responsável pelo fortalecimento da economia dos Estados Unidos no cenário internacional.

Vivemos num momento de grandes conflitos militares, elevando os dispêndios em armas, máquinas e tecnologias bélicas. No momento, percebemos a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, cujos gastos militares estão na casa dos quatrocentos bilhões de dólares, gerando fortes constrangimentos para a sociedade internacional, impactando fortemente sobre a Europa, região que sente na pele os custos deste conflito militar, com aumento generalizado de combustíveis e de alimentos. Isso sem falar das guerras no Oriente Médio, cujas destruições crescentes tendem a ter um potencial muito elevado, impactando fortemente sobre a sociedade internacional, gerando conflitos regionais, aumento da imigração e desequilíbrios econômicos e produtivos.

As guerras e os conflitos militares impulsionam as tecnologias bélicas, novos investimentos em pesquisa científica impactam fortemente sobre a sociedade, grande parte das novas tecnologias que utilizamos no cotidiano foram desenvolvidas dentro das pesquisas militares. De outro lado, os investimentos militares tendem a gerar grandes destruições e alimentam a economia das guerras, aumentando os lucros e os dividendos dos detentores destes conglomerados, somente os custos militares de mais de duas décadas de ocupação das forças norte-americanas no Iraque e no Afeganistão são calculados em mais de 1 trilhão de dólares.

As guerras econômicas, financeiras e militares, além da degradação do Meio Ambiente, do desemprego crescente e da precarização do mundo do trabalho, tudo somado contribuem fortemente para o desenho do novo cenário internacional, gerando mais desesperança na sociedade global, mais medo, rancores e ressentimentos e ajudando a compreender as grandes transformações no ambiente político global, onde destacamos a ascensão da extrema direita em todos os quadrantes da sociedade mundial, defendendo xenofobia, racismo e a intolerância.

A história nos mostra claramente que a sociedade internacional já passou por momentos parecidos e os resultados não foram auspiciosos, muito pelo contrário, os resultados foram a degradação, a violência, os rancores e os ressentimentos que perduram a muitas décadas.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Brasil – sociedade autoritária, por Fernando Lionel Quiroga.

0

Fernando Lionel Quiroga – A Terra é Redonda – 01/07/2024

O que constitui e reproduz uma sociedade altamente autoritária é a imagem cada vez mais distante da noção de democracia — uma sociedade em que a liberdade é cada vez mais parte da publicidade de mercado do que da vida propriamente dita

Cabe uma paráfrase sociológica à pergunta feita por Nietzsche em Ecce Homo, “Como alguém se torna o que é” que, reformulada, consistiria na questão: como uma sociedade se torna o que é? A esta questão, segue-se outra: Por quê, no Brasil, resiste uma tradição intensamente autoritária?

Tais questões não oferecem respostas prontas, conhecimentos acabados e embalados, prontos para o uso. E a dificuldade reside no caráter ambíguo de conceitos-chave para a construção das
respostas: o modo pelo qual nos colocamos diante de noções abertas como “democracia”, “direitos humanos”, “sociedade”, “justiça”, “respeito” etc. direciona nosso olhar, ora para um lado, ora para outro.

Embora possa-se admitir algo de imanente na ideia de democracia, de justiça etc. restam os usos sociais e o corpus representacional acerca delas, impedindo que concepções objetivadas coincidam com as formas sociais que elas adquirem nos diversos campos onde se inserem. Assim: a justiça entre irmãos não é a mesma que a justiça entre um casal de namorados. Os múltiplos detalhes da vida cotidiana, uma vez que se acumulam ao longo do tempo, produzem códigos sutis que dão forma à noção de justiça posta entre eles. É na noção de “meio”, desse “entre nós” que termina por ampliar e modelar, como puxando o fluxo temporal da ideia original; e o estrangulando como uma massa colorida, o instrumental de conceitos que utilizamos para explicar a realidade.

Anunciamos, no título deste ensaio, a autoridade reinante na sociedade brasileira. Mas, o que ela é e o que a torna durável, reproduzível? Vamos às pistas. Dizemos que a sociedade é autoritária, e não exclusivamente este ou aquele governo. Eis o ponto: a democracia, no contexto cultural brasileiro, precisa ser reescrita — o que não significa apagar da memória os exemplos daqueles que pelejaram pela sua construção e expansão.

Adianto: a reescrita da democracia não pede um novo texto constitucional. O marco constitucional de 1988 já é o redesenho da democracia após mais de duas décadas de regime militar. Ocorre que, mal a redemocratização havia começado, logo o neoliberalismo vampiresco já presente nas veias abertas da América Latina, especialmente no Chile sob Pinochet, chegava ao Brasil de modo incisivo, dando as caras por meio da hiperinflação que acompanhou todo o governo Sarney (1985-1990), seguido de sucessivos e fracassados planos econômicos.

A ele, seguiu-se, nada mais, nada menos, que Fernando Collor de Mello (1990-1992) – um protótipo neoliberal do que, anos mais tarde, se converteria no estereótipo da extrema direita representada, aqui, por Jair Bolsonaro (2019-2022), nos EUA, por Donald Trump (2017-2021), na Hungria, Viktor Orbán (desde 2010), na Turquia, Recep Tayyip Erdoğan (Primeiro-ministro, 2003-2014; Presidente desde 2014), na Polônia, Andrzej Duda (desde 2015), nas Filipinas, Rodrigo Duterte (2016-2022), na Itália, Matteo Salvini (Líder da Liga Norte, ex-Vice Primeiro-Ministro e Ministro do Interior, 2018-2019).

Descontado o período em que o Brasil foi governado pelo PT, primeiro por Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) e, depois, por Dilma Rousseff (2011-2016), os quais merecem um olhar de maior profundidade em face dos efeitos reais produzidos na sociedade, como o surgimento da nova classe média, a expansão da universidade pública, a redução da pobreza e da desigualdade social, dentre outros, de resto, segue-se que, no Brasil, o neoliberalismo coincidente com o processo de redemocratização, dizia respeito à construção de uma nova mentalidade, cujo ponto de partida consistia na satisfação das expectativas mais profundas da população: a da passagem da sociedade controlada – marcada pelos anos da ditadura – para a sociedade livre, inclusiva e plural.

E, então, o corolário dos novos tempos trazia em seu bojo a noção da diversidade e, consequentemente, das pautas identitárias como maiores expressões dessa nova democracia com ares de liberdade. Eis aí um primeiro sinal das engrenagens que perpetuam o funcionamento da sociedade autoritária: a substituição da pauta historicamente legítima da tensão exploração-trabalho por pautas fragmentadas em bolhas reivindicatórias. É o caráter do especialismo introjetado no coração da luta de classes.

Outro sinal é a distribuição de autoridade (e, por extensão, de discurso) por meio do que Pierre Bourdieu chamou de “Inflação de diplomas”, cujas consequências sociais, além do aumento da competitividade em benefício exclusivo do mercado, implica na desvalorização relativa em razão da substituição da noção de distinção por requisito e, por último, a frustração resultante da “promessa” intrínseca no diploma, em contraste ao “poder” do discurso que ele produz, especialmente se considerarmos a inflação de diplomas em níveis mais elevados de formação, como de mestres e doutores.

Então, juntemos as peças do que constitui e reproduz uma sociedade altamente autoritária: a imagem cada vez mais distante da noção de democracia (uma sociedade em que a liberdade é cada vez mais parte da publicidade de mercado do que da vida propriamente dita); as pautas reivindicatórias fragmentárias, ideologicamente orientadas; a autoridade do discurso chancelada por um diploma opaco, a que se segue um desesperador ressentimento e cinismo. E, finalmente, podemos compreender porque o ódio é a característica central na sociedade brasileira contemporânea — e porque é urgente repensar a democracia.

*Fernando Lionel Quiroga é professor de Fundamentos da Educação na Universidade Estadual de Goiás (UEG).

Necropolítica nacional sentou praça no Congresso, por Marcelo Leite

0

Com decisão sobre maconha, STF se curva à amoralidade parlamentar

Marcelo Leite, Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

Folha de São Paulo – 30/06/2024

Após nove anos cozinhando o galo, o STF (Supremo Tribunal Federal) botou um ovo de serpente ao se pronunciar sobre o porte de Cannabis para uso pessoal. Policiais seguirão na função de juízes, decidindo na rua quem é traficante ou usuário.

O STF reconheceu, é verdade, que havia viés racial na prática anterior de quase sempre enquadrar pretos e pobres como traficantes, como bem celebrou Djamila Ribeiro. Talvez o arbítrio dos agentes resulte um pouco dificultado com o limite objetivo que rebaixou de crime para ilícito a posse de até 40 g da maconha. Talvez.

Já o advogado Cristiano Maronna, que representou o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) na ação de 2015 no Supremo, apontou a Mônica Bergamo que a decisão favorece “apenas o playboy” consumidor da droga.

“A pressão que a extrema direita fez sobre o STF funcionou”, disse ele à colunista. “O STF se impôs uma autocontenção exagerada. Ficou aquém das decisões tomadas pelas Supremas Cortes de Argentina, Colômbia, México e África do Sul.”

A premissa dos 40 g pode terminar posta de lado quando houver testemunho policial e provas ancoradas nele. Se PMs se investem do poder de matar jovens pardos a qualquer tempo, o que os impedirá de dar falso testemunho e forjar provas?

Maronna assinalou ainda que muitos dos alvos da violência policial são usuários de outras drogas, como o crack. Por prudência ou pusilanimidade (decida o leitor), o ministro Gilmar Mendes as excluiu de seu voto inicial. Abriu a porteira, e a carneirada passou.

Não existe motivo plausível, jurídico ou científico, para fazer essa distinção entre maconha e outras drogas, como observou Hélio Schwartsman. Ela deriva de puro cálculo político; melhor dizendo, do temor de que a decisão constitucional espicaçasse a húbris parlamentar.

Sobre as supremas cabeças paira a PEC das Drogas, desembainhada em setembro pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), após o STF ousar avançar na pauta. Na mesma terça-feira (25) da decisão tão protelada, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) oficializou a comissão especial que a analisará.

A comissão já havia sido formalizada uma semana antes por Lira, mas ele só a fez publicar quando a corte se pronunciou. Também na mesma data o deputado alagoano completou 55 anos, que comemorou em Portugal durante festa do grupo Esfera Brasil, um “esquenta” do Fórum Jurídico de Lisboa, vulgo “Gilmarpalooza”.

Pela praxe da Câmara, a composição da comissão seguirá a proporcionalidade das bancadas. Em outras palavras, será dominada pela centro-direita com que cinco ministros do Supremo confraternizam sem corar no convescote lisboeta de Gilmar.

Nenhum dos comensais, juiz, empresário ou banqueiro, se incomoda com Pacheco e Lira brandirem a PEC das Drogas não por convicção, mas oportunismo. Para manter controle sobre a própria sucessão, querem adular a bancada da bala e da bíblia, que depende de realimentar pânico moral entre apoiadores para se reeleger.

Pouco importa se meninos e rapazes escuros forem mortos ou encarcerados injustamente, ao arrepio de garantias constitucionais. A necropolítica sentou praça no Congresso –eis o maior legado das trevas bolsonarianas com que o andar de cima e a Faria Lima voltam a flertar.

O que esperar, se não a mais abjeta amoralidade, de gente que propõe tratar como assassinas garotas estupradas que ultrapassam a 22ª semana de gravidez porque profissionais de saúde fundamentalistas se recusam a realizar abortos a que elas têm direito por lei?

O Real não foi só um plano econômico, por Aloizio Mercadante

0

Programa teve êxito contra a inflação, mas não garantiu a retomada do crescimento

Aloizio Mercadante, Economista, é presidente do BNDES. Foi ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República e ministro da Educação e da Ciência, Tecnologia e Inovação

Folha de São Paulo – 30/06/2024

O Plano Real teve sucesso em acabar com a alta inflação, diminuindo o grau de indexação da economia brasileira. A Unidade Real de Valor (URV) permitiu a saída de forma criativa e organizada da alta inflação inercial, sem congelamento de preços. Outro elemento crucial foi a renegociação e a securitização da dívida externa pelo Plano Brady.

Na preparação do Real, o governo renegociou a dívida externa velha, abriu a conta de capitais e elevou brutalmente o juro real, para evitar fuga de capitais domésticos e atrair capital de curto prazo, o que viabilizou a transição da URV para o Real.

A valorização inicial do câmbio foi essencial para a rápida redução da inflação, mas trouxe um alto custo: o início da era de elevados juros reais. De 1994 a 1999, a taxa básica média de juro real foi de 22% ao ano.

Para atrair recursos externos e promover o ajuste fiscal, o governo liquidou ativos estatais por preços reduzidos, sem o planejamento de uma política industrial e sem avaliação estratégica dos desdobramentos.

Depois de 30 anos, a história mostra que o Plano Real teve êxito ao reduzir a inflação, mas não em garantir a estabilidade macroeconômica e a retomada do crescimento. Para reeleger FHC, a âncora cambial foi prorrogada, com a apreciação do câmbio e a deterioração das contas externas, empurrando o país para grave crise cambial, econômica e social.

Do lado financeiro, o déficit em transações correntes aumentou de 2,5% do PIB, em 1995, para 4,5% do PIB, em 1999. Do lado social, o arrocho monetário e fiscal produziu alta no desemprego, de 4,6%, em 1995, para 7,6%, entre 1995 e 1999.

O governo FHC expôs o país a um ataque especulativo decorrente do desequilíbrio das contas externas, recorreu ao FMI e se submeteu ao chamado “Consenso de Washington”. Mesmo assim, não evitou nova crise cambial e novo pedido de ajuda ao FMI (2002), selando o destino dos governos do PSDB, que não venceram mais eleições presidenciais e amargaram uma crise partidária, agravada pelo apoio ao golpe de 2016 e pela adesão de lideranças ao bolsonarismo.

A estabilização do Plano Real só se completou no governo Lula, quando o país quitou a dívida com o FMI e começou a acumular reservas internacionais, que até hoje nos dão autonomia de política econômica. Do lado fiscal, a estabilização está incompleta. Esgotaram-se as estratégias de queima de patrimônio público e de metas de resultado primário ambiciosas, que geraram uma política fiscal pró-cíclica que aprofundou as flutuações da economia.

Ao analisar o Plano Real, o PT reconheceu o mérito da desindexação da economia, mas denunciou a manutenção da âncora cambial, com a apreciação do câmbio e a deterioração das contas externas, e o elevado custo econômico e social, que precarizou a vida da população.

É preciso reconhecer a competência e a inovação da equipe técnica que criou o Plano Real, em particular Pérsio Arida e Lara Resende. Eles têm imensa responsabilidade pelas vitórias do PSDB, mas pressões eleitorais no ninho tucano impediram a saída organizada da âncora cambial e empurraram o país para grave crise cambial, desindustrialização, endividamento público elevado e recessão econômica prolongada.

A despeito das nossas divergências, o país sente saudade do tempo em que a polarização se dava entre o PT e o PSDB. Naquele período, havia disputa acirrada, mas qualificada, sem renunciarmos ao compromisso com o Estado democrático de Direito e com a cidadania.

Até quando esperar para começar as mudanças? por João Pedro Stédile

0

Só a agricultura familiar pode esfriar o planeta, protegendo a biodiversidade e combatendo a fome

João Pedro Stédile, Economista, é integrante da Direção Nacional do MST

Folha de São Paulo, 01/07/2024

Os crimes e as tragédias ambientais se repetem no Brasil com frequência cada vez maior. Secas na Amazônia, enchentes no Maranhão e em Recife, queimadas no pantanal, desmatamento e rebaixamento do lençol freático no cerrado, a reserva hídrica das três maiores bacias hidrográficas do país…

A tragédia no Rio Grande do Sul é apenas a ponta do iceberg de tantas agressões que atingem milhões de pessoas e obriga a sociedade, e, sobretudo, os governos, nos três níveis, a refletir
sobre a necessidade de mudanças urgentes.

Foi uma tragédia anunciada. Há muito tempo a comunidade científica vinha alertando que o monocultivo de grãos e as pastagens levam a um desequilíbrio na distribuição das chuvas.

As mudanças no Código Florestal, defendidas e aprovadas pela bancada ruralista na década de 2000, diminuíram o tamanho das áreas de cobertura vegetal nas margens dos córregos e rios e desobrigaram a reposição de áreas de desmate. Sem qualquer fiscalização, foi uma festa.

O governo gaúcho ainda mudou centenas de artigos da lei estadual ambiental. Tudo para ajudar o agronegócio, que nem sequer deixa riquezas no estado, porque exporta commodities agrícolas sem pagar um centavo de ICMS, graças à Lei Kandir, do governo FHC.

Somam-se a esse desplante as ações predadoras da mineração, em todos os cantos, desde a retirada de areia até as grandes mineradores de ferro, além dos crimes dos garimpeiros.

Por fim, o uso de agrotóxicos talvez seja a maior agressão à natureza. O Brasil é o país que mais usa agrotóxicos, inclusive produtos proibidos na Europa, que eliminam a biodiversidade, alteram o equilíbrio da natureza e contaminam o lençol freático. Mas quem se importa se isso é controlado por meia dúzia de empresas transnacionais, que não pagam impostos, mas financiam políticos?

Os crimes estão aí, escancarados. E os mais afetados são sempre os pobres, que pagam com suas vidas. São os moradores de locais não adequados, empurrados pela especulação imobiliária das cidades para encostas; são os ribeirinhos; são os agricultores familiares.

O que fazer? Não precisamos mais derrubar nenhuma árvore para plantar ou criar gado. O desmatamento zero precisa ser estendido da amazônia aos demais biomas, como o cerrado, a mata atlântica e o pantanal. Essa política deve ser combinada com um grande plano nacional de reflorestamento nesses biomas, nas cidades, na beira das estradas e nas margens de córregos e rios. Empresas estatais deveriam criar viveiros e distribuir mudas de árvores nativas e frutíferas.

Precisamos colocar limites ao avanço do agronegócio, ao modelo predador que enriquece apenas as empresas transnacionais exportadoras e meia dúzia de fazendeiros.

Somente a agricultura familiar pode “esfriar” o planeta, protegendo a biodiversidade e combatendo a fome.

Para isso, devemos estimular a policultura de alimentos saudáveis, com um grande programa de agroecologia, que distribua insumos necessários aos agricultores familiares, com uma política de reindustrialização que forneça máquinas agrícolas adequadas e fertilizantes orgânicos.

A reforma agrária é uma política fundamental para garantir acesso à terra aos agricultores que não as têm —muitos expulsos pelo avanço do agronegócio— e para realocar os atingidos climáticos.

Nas cidades, é primordial garantir moradia digna em locais com segurança e futuro.

Tudo isso custa muito dinheiro, mas é melhor prevenir e salvar as vidas e a natureza do que chorar depois. O Rio Grande do Sul vai precisar agora de R$ 60 bilhões apenas para repor perdas.

Vamos continuar correndo atrás da reparação ou vamos nos preparar para uma vida melhor para todos?

Plano Real: Trinta anos

0

No começo de julho comemoramos trinta anos do nascimento do Plano Real, o plano econômico responsável por debelar a inflação galopante que dominava a economia nacional, gerando grandes avanços econômicos para a sociedade brasileira, controlando os preços relativos, criando novos desafios e abrindo horizontes para a economia brasileira.

A inflação deve ser vista como o aumento generalizado de preços na economia, seus impactos são generalizados no sistema econômico e produtivo, garantindo ganhadores e perdedores, como tudo na sociedade. Os grandes ganhadores da inflação são, inicialmente o governo federal, responsável pelos ganhos de senhoriagem, ou seja, a capacidade dada ao Estado Nacional na emissão de moedas no sistema econômico. Outro grande ganhador do processo inflacionário são os bancos e o sistema financeiro, que ganham com recursos monetários parados em contas correntes, garantindo ganhos reais, grandes recursos monetários para seus acionistas, além de grandes somas de recursos para investimentos em novas tecnologias bancárias, levando nosso setor bancário a se destacar na sociedade mundial.

De outro lado, destacamos os perdedores do processo inflacionário, que eram os setores mais fragilizados na sociedade, indivíduos que não conseguiam compreender as dinâmicas dos preços e não tinham acesso a contas indexadas, instrumentos utilizados para reduzir as perdas inflacionárias. Desta forma, a inflação sempre foi um instrumento de concentração de renda da economia nacional, contribuindo negativamente para os incrementos das desigualdades que perpassam a sociedade nacional.

O Plano Real foi construído para estabilizar a economia nacional e garantir condições para um salto de crescimento nas décadas posteriores, um plano pensado, planejado, estruturado e muito ambicioso, que garantiram aos seus proponentes a condição de ganhar a próxima eleição presidencial e angariar votos significativos para assumir estados importantes da federação.

Esses ganhos reais estavam relacionados com a queda da inflação e com a elevação da renda dos trabalhadores, que garantiram grandes somas de recursos monetários para consumo e melhoras substanciais imediatas. Para absorver as demandas crescentes dos governos o governo estimulou a entrada de produtos importados e novas empresas estrangeiras chegaram nos mais variados setores da economia, gerando novos movimentos na estrutura produtiva, evidenciando uma desnacionalização, com empresas nacionais sendo adquiridas por grupos internacionais, além de uma tendência de desindustrialização, com perdas de competitividade da indústria nacional, com incremento dos empregos industriais e uma avalanche de empregos de baixa qualificação e salários degradantes.

O Plano Real, que ora comemoramos trinta anos, foi fundamental para a estabilização da moeda nacional, aumentando a autoestima da nação, trazendo grandes ganhos para a população, mas nos trouxe novos desafios numa economia globalizada e marcada pela forte competição. Ao negligenciarmos com o câmbio valorizado e as taxas de juros elevadas e se acostumando com as euforias iniciais e ilusórias do plano, a sociedade se “esqueceu” de aprofundar as discussões estruturais que aumentam o nosso subdesenvolvimento, postergando medidas imediatas para melhorarmos os indicadores sociais. Depois de trinta anos de Plano Real, precisamos fazer uma autocrítica séria, madura e inadiável, sem isso, nosso subdesenvolvimento tende a se aprofundar rapidamente.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Ultradireita: perigosa, inútil e deselegante, por Ricardo Viveiros

0

Guerra não é avanço, falta de humanidade é atraso civilizatório

Ricardo Viveiros, Jornalista, professor e escritor, é doutor em educação, arte e história da cultura; autor, entre outros, de “A Vila que Descobriu o Brasil” (Geração), “Justiça Seja Feita” (Sesi-SP) e “Memórias de um Tempo Obscuro” (Contexto).

Folha de São Paulo, 27/06/2024

A história é útil à evolução da sociedade. Assimilar técnicas atende ao capitalismo, por isso é valorizada.

Entretanto, a emancipação humana requer mais do que acúmulo de riqueza. Boa saúde, educação, cultura, ética, respeito são bens que superam muitas coisas. Qualquer pensamento político que não privilegie as pessoas e a vida delas está no caminho errado. Tem sido assim com regimes autoritários, como nazismo, fascismo, franquismo (nazi-fascista), salazarismo e outros.

Comum aos governos opressores está a sustentação política de partidos da direita. Observa-se, além das ditaduras do Oriente Médio —de fundamentação religiosa—, na Europa, na África, nos Estados Unidos e, também, na América do Sul que a direita tem cooptado a população.

A desigualdade crescente impulsiona uma revolta que aproxima o povo, com ênfase nos menos politizados, de promessas populistas. Persiste um vácuo deixado pela esquerda mundial, que não consegue se comunicar como a direita, que se vale de fake news.

No Brasil, em 2018 e nos quatro anos seguintes, assim como na Ópera dos Três Vinténs, de Bertolt Brecht e Kurt Weill, a democracia esteve fragilizada pela miséria e pela corrupção. Desalentados agarraram-se a bizarros discursos eivados de ódio e mentiras e elegeram um radical prepotente que (des)governou o país.

A triste receita da aceitação tem sido próspera aos políticos de direita. Um exemplo é Donald Trump, que aumenta sua popularidade na mesma proporção de seu ódio aos estrangeiros e de suas condenações nos tribunais. Se as eleições fossem hoje, seria eleito e aumentaria a cultura etnocentrista.

A invasão ao Capitólio, em 6/1/2021, foi a mais esdrúxula manifestação de tentativa de golpe na denominada maior democracia do planeta. Um incentivo para que, no Brasil, em 8/1/2023, houvesse a reedição tropical de tentativa de golpe de Estado. As duas ações marcadas pela dissonância cognitiva dos envolvidos e pela força das instituições que contiveram, investigaram e puniram os vândalos. E hoje combatem injustificadas tentativas de anistia.

Depois da desonra mundial que o nazismo trouxe à Alemanha, a Europa transitou entre a hegemonia dos grupos de centro e flertes com a esquerda. A atual aproximação da ultradireita é fato.

Os resultados nas eleições europeias consolidam a liderança do centro. Mas a ultradireita terá destaque em países que, historicamente, ditam a política do continente, como França e Alemanha.

Brasileiros que moram no exterior, atenção: a xenofobia é ameaça crescente aos imigrantes, sobretudo a pretos, pardos e indígenas. Até no berço do Iluminismo o respeito se tornou artigo de luxo.

Como disse o filósofo Norberto Bobbio, o domínio da violência é a principal característica da existência dos Estados e, por consequência, o mais efetivo poder. A direita utiliza esse poder sem limite. Perigoso.

Intolerantes que administram as nações têm uma fórmula de governo que sempre deixa a fúria como opção viável. A guerra não é avanço, falta de humanidade é atraso civilizatório. A ignorância e a má-fé da ultradireita no trato com pautas sociais são apenas uma das faces da política reacionária. A preservação do planeta, a tolerância com as pessoas, o combate aos preconceitos e a visão emancipatória do humano inexistem.

A ultradireita, além de perigosa e inútil, é deselegante.

Vícios coletivos exigem ações coletivas, por Vera Iaconelli

0

Falar sobre o vício dos pequenos esbarra no fato de que, ainda que consigamos limitar o acesso às telas, estamos longe de limitar nosso uso

Vera Iaconelli, Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “Criar Filhos no Século XXI” e “Manifesto antimaternalista”. É doutora em psicologia pela USP

Folha de São Paulo, 25/06/2024

Redes sociais são a forma perfeita de exploração do trabalhador. Estamos à sua disposição nas 24 horas dos 7 dias da semana, e com prazer.

O prazer decorre de sua estrutura viciante que vem sendo comparada por pesquisadores como Marc Potenza da Universidade de Yale à dependência em substâncias químicas. Os vícios comportamentais, como têm sido chamadas as adições à internet, passam batido pelo radar dos pais, costumeiramente tão zelosos com o uso de drogas em geral.

Faz mais de uma década que esse assunto vem sendo levantado e que os estudos se acumulam, provando que a forma como usamos a internet é nociva e, no caso das crianças, temerária. Não sabemos que tipo de subjetividade advirá desse uso, mas já temos a comprovação da primeira perda de quociente de inteligência (QI) dessa geração em relação à anterior.

Se hoje o livro de Jonathan Haidt, “A Geração Ansiosa”, se tornou a coqueluche da estação, isso se dá menos pela originalidade do autor do que pelo fato de que talvez já não possamos deixar de encarar o estrago anunciado.

Falar sobre o vício dos pequenos esbarra no delicado fato de que, ainda que consigamos limitar o acesso às telas, estamos longe de limitar nosso próprio uso. Assim, tiramos o cigarro da boca delas, mas as mantemos como fumantes passivas dentro de casa, onde adultos continuam a trabalhar para as big techs em turnos infindáveis.

A desculpa dos pais e responsáveis é que eles estão fazendo algo necessário ao trabalho deles ou que, tendo trabalhado o dia todo, agora sim merecem se divertir com os entretenimentos das redes. Sem a mudança de comportamento dos pais, existe pouca esperança na limitação do uso das crianças. A máxima “faça o que eu digo não faça o que faço” nunca funcionou na educação.

Um amigo me alerta que os filmes já estão sendo produzidos levando-se em conta que olhamos para a televisão e para o celular alternadamente e que, portanto, as explicações sobre o que está se passando na trama precisam ser retomadas de tempos em tempos.

O fenômeno conhecido como “segunda tela” faz uso de vários truques, entre eles uma espécie de “resumo dos capítulos anteriores” dentro do próprio episódio. Não é difícil imaginar como essa tática pode afetar a experiência do cinema, lugar onde ainda se supõe que os celulares devam estar desligados.

O vício nas redes costuma estar associado à perda de qualidade na vida social, desenvolvimento de sintomas psicossomáticos, distorções de autoimagem, automutilações, ansiedade, depressões, enfim, uma gama de sintomas que exige intervenção profissional.

Se só usarmos os casos graves como paradigma de danos, corremos o risco de nos eximir da conta dos “viciados”. Dessa forma ignoramos, convenientemente, que todos nós sofremos a perda de qualidade de vida decorrente da interação abusiva com as redes.

Estive de férias nas últimas duas semanas e aproveitei para me desligar. Fiquei surpresa com a quantidade de livros que li neste período. Isso não se deve só ao óbvio ganho de tempo, foram duas semanas agitadíssimas, mas também ao considerável aumento de concentração. Tomei algumas providências aqui para lidar com a volta, entre elas limitar o “horário do expediente”.

No entanto, para lidarmos com um vício coletivo, de proporções mundiais e com efeitos já conhecidos sobre as novas gerações, não podemos nos apoiar em soluções individuais. Embora elas possam servir de inspiração, estado, empresas e sociedade civil precisam desenterrar a cabeça da areia, ops, das telas, se quiserem evitar mais essa catástrofe geracional.

Homem branco privilegiado (não) é o centro do universo? por Michael França

0

Sistema educacional difunde um ideal que perpetua desigualdades

Michael França, Ciclista, doutor em teoria econômica pela Universidade de São Paulo; foi pesquisador visitante na Universidade Columbia e é pesquisador do Insper.

Folha de São Paulo, 25/06/2024

Nosso sistema educacional foi estruturado de maneira a favorecer as contribuições dos europeus e seus descendentes.

A influência dos colonizadores é evidente nos currículos escolares, onde suas narrativas e conquistas são supervalorizadas em detrimento das histórias e realizações de outros grupos. Ao apagar ou minimizar as contribuições de mulheres, negros e indígenas na formação do Brasil, perpetua-se um ideal de superioridade dos homens brancos privilegiados.

A hegemonia cultural deles resultou em uma valorização desproporcional dessa parcela da população.

Eles estão sobrerepresentados em todas as fases da formação escolar e fora dela. São as figuras históricas, os cientistas, os escritores e os líderes políticos. No mundo das artes e da literatura, essa predominância também é evidente.

No cinema e na televisão, eles geralmente são os protagonistas e heróis, enquanto os papéis de destaque para mulheres, negros e outras minorias são limitados ou estereotipados. Na indústria da moda, os padrões de beleza frequentemente promovidos são baseados em características eurocêntricas, marginalizando outras formas de beleza.

Nas ruas das cidades, estátuas de homens brancos estão por toda parte. Seus nomes também adornam ruas, praças e até salas de aula em instituições como o Insper, onde trabalho. No mundo corporativo, a liderança executiva é majoritariamente composta por homens brancos, o que perpetua a desigualdade de oportunidades e a falta de diversidade nas decisões empresariais.

Na esfera acadêmica, os pensadores e filósofos que moldam os currículos das universidades são predominantemente homens brancos, o que limita a amplitude de perspectivas e conhecimentos.

Mesmo nas ciências sociais e humanas, onde a diversidade de experiências talvez seja ainda mais relevante para uma compreensão mais profunda das sociedades, as teorias e abordagens de estudiosos que não são homens brancos muitas vezes são subvalorizadas ou ignoradas.

Esse contexto perpetua a ideia de que apenas eles têm valor histórico e cultural, ignorando as significativas realizações de mulheres, negros, indígenas e outras minorias. Esse desequilíbrio simbólico não apenas reforça a dominância de homens brancos privilegiados, mas também afeta a autoimagem e as aspirações das pessoas pertencentes a grupos subrepresentados.

Com esse grande favorecimento, especialmente quando consideramos os homens brancos mais ricos, torna-se difícil distinguir entre aqueles que alcançaram suas posições por mérito próprio e aqueles que, apesar de incompetentes, se beneficiaram das vantagens historicamente acumuladas.

Essa desigualdade sistêmica ofusca a verdadeira medida do mérito, perpetuando um ciclo de privilégios na roda da história que favorece continuamente o mesmo grupo.

A hegemonia masculina branca não apenas distorce a realidade e perpetua estereótipos, mas também priva a sociedade de uma compreensão mais profunda da humanidade. Subverter esse processo requererá muito trabalho para desmantelar todas as fontes de vantagens do grupo dominante.

Nesse contexto, não se pode esperar grandes mudanças sociais enquanto o sistema educacional continuar complacente com uma representação incompleta da realidade, contribuindo para perpetuar um imaginário silencioso que coloca mulheres, negros e indígenas em posições de inferioridade na sociedade brasileira.

Jovens bem formados e sem emprego fortalecem a direita radical? por Hélio Schwartsman

0

Hipótese é levantada por Peter Turchin no livro ‘End Times’

Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”.

Folha de São Paulo, 25/06/2024

Mesmo que o presidente Emmanuel Macron consiga evitar que o Rassemblement National (RN) saia com um primeiro-ministro das eleições legislativas que começam no próximo domingo (30), é líquido e certo que o grupo da ultradireita avançará várias casas. E, a crer nas pesquisas, os jovens são em grande medida responsáveis pelo crescimento do partido comandado por Marine Le Pen.

Boa parte da imprensa se pergunta como jovens, cujos avós deflagraram a revolução sexual e cujos pais asseguravam boas votações a partidos de esquerda, puderam ir tão para a direita. Sabe-se que a orientação política tem forte componente hereditário.

Para tornar o quebra-cabeças ainda mais intrigante, um elemento recorrente nos fenômenos de radicalização política, a deterioração das condições econômicas, não está no momento muito presente. Ao contrário, os ventos são favoráveis: a pandemia passou, a inflação vai sendo controlada e o desemprego, problema crônico na França, anda bem-comportado.

Uma hipótese que merece consideração é a levantada por Peter Turchin no livro “End Times”, que já comentei aqui. Para Turchin, um dos fatores que explicam períodos de turbulência é a superprodução de elites. Quando tudo vai bem, as pessoas se preparam para um futuro melhor.

Estudam mais na esperança de encontrar empregos que paguem bem e tragam satisfação pessoal. Só que, quando tudo vai realmente bem, temos a superprodução de elites: muito mais gente se preparando para assumir bons postos do que vagas disponíveis. Em algum momento, esses jovens percebem que o futuro pode não ser tão bom, o que se traduz em votos radicais, às vezes até antissistema. Para Turchin, a superprodução de elites é um fenômeno cíclico que se repete a cada 100 ou 200 anos.

Se é mesmo isso que está por trás da ascensão da ultradireita nos países ricos, então lidamos com um problema muito mais estrutural e difícil de resolver do que se imaginava.

Juros altos são herança maldita do Plano Real, diz ex-ministro Bresser-Pereira

0

Economista que comandou a Fazenda comemora sucesso da moeda, mas critica mercado pela captura do patrimônio público

Douglas Gravas – Folha de São Paulo – 23/06/2024

SÃO PAULO

Na visão de Luiz Carlos Bresser Pereira, 89, ter domado a inflação descontrolada que castigava o Brasil antes do lançamento do real é, sem dúvida, o grande mérito do plano econômico que em 2024 chega aos 30 anos.

Mas é preciso também fazer críticas a ele. “As pessoas esquecem, porque ficam só no oba-oba: Sim, o Plano Real foi uma maravilha, mas junto com ele foi feita uma elevação de juros absolutamente alta”, diz o economista, que avalia que o país caiu em uma armadilha de juros e câmbio.

Ainda que considere o saldo das últimas três décadas positivo, o professor emérito da FGV (Fundação Getulio Vargas), que também foi ministro da Fazenda no governo de José Sarney, aponta que a equipe que fez o plano e depois ajudou a compor o governo Fernando Henrique Cardoso adotou completamente a ortodoxia liberal.

Quais são as primeiras lembranças que o sr. tem do Plano Real?

Em 1993, fui visitar [o então ministro da Fazenda] Fernando Henrique Cardoso e disse a ele: se você levar adiante esse plano de estabilização, no ano que vem vai ser eleito presidente da República.

Nem se falava nisso naquela época, mas eu sabia que nós estávamos com uma alta inflação inercial, autônoma da demanda, que aumentava automaticamente porque os agentes econômicos, as empresas, os consumidores, os trabalhadores, todos, indexavam os seus preços formal e informalmente.

Tinha desenvolvido o modelo básico dessa teoria com o economista Yoshiaki Nakano, antes do pessoal da PUC-Rio, com quem sempre me associei nos esforços para combater a inflação. Quando eles fizeram o Plano Cruzado [em 1986], ajudei no que pude. Quando eu fiz o meu Plano Bresser [em 1987], eles também me ajudaram de várias maneiras.

O que ele tinha de diferente dos planos anteriores?

A diferença do Plano Real para o Cruzado e o Bresser é a forma de neutralizar a inflação inercial, era preciso estabilizar os preços sem que ninguém saísse perdendo. Na linguagem dos economistas, que os preços relativos continuassem constantes.

É fácil entender o problema quando você faz um plano de estabilização baseado no congelamento de preços, como foram o Cruzado e o Bresser: se você congela em um determinado dia, quem aumentou os preços no dia anterior fica ótimo e quem ia aumentar no dia seguinte está ferrado.

Por isso, havia uma tabela de conversão que nós fazíamos, a tablita, e isso não existiu no plano Collor, e por isso ele não deu certo. No Plano Real, em vez de usar esse sistema de congelamento, optou-se pela URV [Unidade Real de Valor], um sistema de moeda indexada bolado pelo André Lara Rezende.

Ele escreveu um belo artigo a respeito, uma coisa muito sofisticada, em que se neutralizava, então, a inflação, criando-se uma segunda moeda. E depois, dava-se um prazo para que todas as empresas e as pessoas acertassem os seus preços. Os preços continuavam na moeda em circulação, em cruzeiros reais, mas todo mundo tinha que pôr também o preço em URV. Então, depois que todo mundo teve tempo para fazer esse ajuste, a URV virou real. E com isso neutralizou-se a inércia inflacionária perfeitamente, brilhantemente.

Esse mecanismo foi uma das chaves para o sucesso do plano?

Esse era um sistema que Nakano e eu havíamos pensado em fazer quando eu fiz o meu plano —não o Plano Bresser, que sabia que ia ser difícil e era uma coisa de urgência, feita no meio de uma crise imensa. Mas, quando planejei fazer o segundo, depois que o outro não deu certo, ia fazer uma otimização. O Plano Real foi uma coisa brilhante, uma grande vitória do Brasil, afinal, depois de 14 anos de alta inflação.

O saldo após três décadas, portanto, é positivo?

É preciso dizer uma coisa, que as pessoas esquecem, porque ficam só no oba-oba: Sim, o Plano Real foi uma maravilha, mas junto com ele foi feita uma elevação de juros absolutamente alta, chegando a 45%. Você pode dizer: bom, mas era preciso fazer isso, para desestimular quem quer que fosse e, com isso, também se fez uma espécie de âncora cambial. Então, o câmbio ficou fixado, não é? Graças a esses juros tão altos.

Os juros não precisavam ter sido tão altos?

É difícil saber se precisavam. Agora, o que eu tenho absoluta certeza é que deviam ter sido reduzidos muito mais depressa do que foram. FHC saiu [para disputar a eleição], a equipe que ficou era a mesma. Quando chegou o governo do próprio FHC, toda a equipe que tinha feito o real foi para o governo dele, viraram donos da casa, da área econômica. E mantiveram os juros de maneira escandalosa durante muito tempo.

O plano foi em 1994 e me lembro que em 2010 o Pérsio Arida argumentava que 10% [em termos reais] era a taxa natural de juros, ou seja, com estabilidade de preços.

A partir do Plano Real, o mercado financeiro e os rentistas (e os economistas que trabalham para os rentistas e os financistas) passaram a capturar o patrimônio público. Eles estão, no ano da graça de 2024, portanto 30 anos depois do real, capturando 7% do PIB [Produto Interno Bruto].

Essa é uma herança do Plano Real?

Isso é uma herança do Plano Real ou é uma herança da ortodoxia liberal.
Uma coisa que é importante entender também é que nós éramos economistas heterodoxos —André, Pérsio, Chico Lopes, [Edmar] Bacha e eu. Agora, quando assumiram o Ministério da Fazenda e o Banco Central, eles ficaram completamente ortodoxos, adotaram a ortodoxia liberal completamente.

A única diferença é que André, mais recentemente, a partir de 2015, voltou à heterodoxia. É um homem muito inteligente.

Tenho falado que nesses últimos 40 anos o Brasil é um país semiestagnado. Não posso atribuir isso ao plano. Ou, se quiser, posso atribuir ao plano o fato de que os juros ficaram altos demais, mas o resto, não.

Parte dos economistas que criticaram o plano também tinha uma preocupação com a desindustrialização do país. Esse foi um efeito que se confirmou?

Não pelo plano em si, a não ser pela questão dos juros. Digo há muitos e muitos anos que entramos em uma armadilha da taxa de juros e da taxa de câmbio, algo que eu também chamo de “armadilha da liberalização”. Essa foi uma armadilha que o Brasil caiu e não com o Plano Real.

Caiu antes, em 1990, quando o [ex-presidente Fernando] Collor fez a abertura comercial e financeira.

Outra das críticas na época era que o plano não resolveria os problemas estruturais da economia.
Bom, isso nunca resolveu mesmo, mas não era para resolver também. O Plano Real é bem-sucedido por ter sido feito para acabar com a inflação e ter terminado com ela. Não se pode querer que ele resolvesse o problema fiscal brasileiro, que exige um programa recorrente. Não era para resolver o problema cambial brasileiro, que estava absolutamente mal parado.

O que se pode cobrar dele, e essa é a única coisa que eu cobrei, foi a questão dos juros.

Tem gente que entende o Plano Real como sendo tudo o que aconteceu depois dele. Não é. O Plano Real acabou ali no fim daquele ano de 1994. Ou, se quisermos, ele estava terminado um ano depois da implementação. E tinha acabado com sucesso, ponto.

Luiz Carlos Bresser Pereira, 89
Nasceu em São Paulo. Economista, foi ministro da Fazenda e da Administração Federal e da Reforma do Estado. É diretor do Centro de Estudos do Novo Desenvolvimentismo da FGV (Fundação Getulio Vargas). É autor e coautor de diversos livros, como “Construindo o Estado Republicano” (1994) e “Macroeconomia Desenvolvimentista” (com José Luis Oreiro e Nelson Marconi, 2016)

Só redes sociais explicam a crise de saúde mental dos jovens, diz Jonathan Haidt

0

Autor do best-seller ‘A Geração Ansiosa’ compara o uso das mídias por adolescentes ao vício em heroína

BÁRBARA BKUM

FOLHA DE SÃO PAULO – 24/06/2024

De acordo com Jonathan Haidt, as crianças não estão bem.
Segundo dados da pesquisa mais ampla dos Estados Unidos sobre saúde e uso de drogas, o percentual de adolescentes que relataram ao menos um episódio depressivo grave saltou de menos de 15% em 2005 para quase 30% em 2020. No Brasil, os registros de ansiedade entre adolescentes superaram os de adultos pela primeira vez na história em 2023.

Para Haidt, que é psicólogo e professor da Universidade de Nova York, só há uma narrativa capaz de oferecer a explicação completa do problema, diante de hipóteses como as crises climáticas e econômicas a nível global: o livre acesso a redes sociais e smartphones.

Na última semana, a tese de Haidt ganhou tração quando a maior autoridade de saúde dos Estados Unidos, Vivek Murthy, pediu que plataformas de mídias sociais, como Instagram, TikTok e YouTube, incluíssem um aviso de que o uso pode ser prejudicial à saúde.
A posição de Murthy foi contestada, tanto por lobistas da big tech, quanto por cientistas que apontaram outras hipóteses para a derrocada na saúde mental infantil, e diziam que elas deveriam ser consideradas.

Uma delas é o aumento da consciência sobre saúde mental entre os jovens, que poderia ter aumentado os números de deprimidos e ansiosos. Haidt responde a isso com dados alarmantes de hospitais psiquiátricos, que mostraram aumento em casos de automutilação e tentativa de suicídio. Mas mesmo esses dados são contestados. O jornalista David Wallace-Wells escreveu, no The New York Times, que os índices de suicídio aumentaram em todas as faixas etárias.

Desde 2010, a taxa de meninas de 10 a 14 anos atendidas por casos como esses cresceu 188%, segundo o CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA). Wallace-Wells sinaliza que, em 2011, por causa de uma mudança com a implementação do Obamacare (a expansão da saúde pública nos EUA), indagações sobre saúde mental passaram a fazer parte do pacote de cuidado.

Haidt reúne essas informações e rebate algumas críticas no best-seller “A Geração Ansiosa”, que sai em julho no Brasil pela Companhia das Letras, sob o mote de que houve uma derrocada na saúde mental a partir do momento em que celulares com acesso a mídias sociais se tornaram parte integrante da infância e da adolescência.

Foi por volta de 2010 que a câmera frontal se disseminou nos smartphones, com a chegada do iPhone 4. Dois anos depois, o Instagram passou para as mãos do Facebook, hoje Meta, de Mark Zuckerberg. De 2011 a 2013, a rede foi de 10 milhões de usuários para 90 milhões. Hoje, estimativas do Statista apontam para 2 bilhões de pessoas com contas no aplicativo.

“Quando o smartphone com mídias sociais entra na sua vida, ele vai ficar no centro dela para sempre”, diz Haidt em entrevista à Folha. Com isso em mente, ele sugere que essa entrada demore um pouco mais –um limite de 13 anos de idade para o primeiro celular e 16 para redes sociais.

Assim, segundo ele propõe na obra, seus cérebros passariam pelos períodos mais críticos da puberdade protegidos dos mecanismos viciantes que fragmentam a atenção em troca de pequenas doses de dopamina.

A humanidade viu o surgimento da TV e da internet e seu efeito nas crianças. O que mudou com a chegada do smartphone a ponto de o sr. nomear esse período como ‘a grande reconfiguração’? Pessoas mais velhas sempre temem as tecnologias usadas pelos mais jovens. É razoável se perguntar se tudo isso é um pânico moral. Mas há diferenças.

Observamos que no mesmo ano em que a maioria das crianças passou a usar smartphones, houve o maior aumento já registrado em distúrbios psíquicos.

Em 2012, as estatísticas de saúde mental nos Estados Unidos mudaram drasticamente. Não havia sinal de problema até 2011. Depois, meninas nos EUA e em outros países começaram a dar entrada nos prontos-socorros psiquiátricos.

Não víamos organizações de jovens baby boomers pedindo que programas de TV viciantes não fossem feitos, mas vemos isso na geração Z. É uma emergência de saúde mental.

Então, basicamente, ficamos sem alternativas além dos celulares para explicar a crise. Nos EUA, poderiam haver outras explicações. Mas a tendência se repete no Reino Unido, Canadá, Austrália, Nova Zelândia. Há evidências em estudos correlacionais, longitudinais, experimentais e empíricos.

O sr. menciona no livro que a crise é com os jovens, mas parece que essa mudança social da tecnologia afetou a sociedade como um todo, mudou a relação que temos uns com os outros. Com certeza. No século 20, a pesquisa feita em torno da TV não estabeleceu se ela era uma causa clara para distúrbios psíquicos. Mas as mudanças sociais foram gigantes. As pessoas deixaram de estar com seus vizinhos para ficar em casa vendo TV.

Mídias sociais, por outro lado, não nos tornam consumidores passivos, mas pessoas cheias de opiniões, prontas para reclamar de tudo.

“A Geração Ansiosa” se preocupa em distinguir as mídias sociais da internet como um todo. Por que fazer essa distinção hoje? Um mistério enorme é: por que os millennials estão bem e a geração Z está tão mal se eles também cresceram na internet, com celulares?

Até 2010, quase ninguém tinha smartphone. Eram celulares flip ou tijolões. Não havia Instagram nem câmera frontal e pouca gente tinha internet banda larga. Não se passava o dia no celular em 2010.

Mas, em 2015, ao menos nos países ricos, todo mundo já tinha um celular com câmera frontal. As meninas estavam no Instagram e a internet rápida estava amplamente disponível.

Quando o smartphone com mídias sociais entra na sua vida, ele vai ficar no centro dela para sempre. Mas, para os millennials, isso não aconteceu até o fim da puberdade. Quando você se tornou usuária assídua de Instagram?

Provavelmente lá pelos meus 19 anos. É esse meu argumento. É por isso que você está bem. Bem, eu não sei se você está bem, mas sua geração, os nascidos até 1995, de modo geral, estão bem.

Porque aos 19 anos o seu cérebro já tinha praticamente passado pela puberdade. Mas se você tiver uma irmã alguns anos mais jovem… Ela tem celular?

Tem, mas sem Instagram. O negócio dela é o YouTube. O pior é o Instagram. Mas os shorts [vídeos curtos] do YouTube são horríveis. São terrivelmente viciantes. Não têm benefícios. Esses vídeos de 10 a 15 segundos são pequenas doses de dopamina fácil e barata. Ninguém abaixo dos 18 anos deveria ver isso.

Hoje de manhã [17 de junho], a principal autoridade de saúde dos Estados Unidos [Vivek Murthy] pediu ao Congresso que colocasse avisos em mídias sociais, de que elas podem ser um risco à saúde mental.

Como se fosse um alimento com alto teor de açúcar. Sim, mas se pais decidissem criar seus filhos numa dieta de baixo açúcar, eles poderiam. Se pais quiserem seus filhos fora das mídias sociais, a única forma é vetar a internet como um todo e trancafiá-los. A vida em família, em todo o mundo, é uma briga em torno do tempo de tela.

O sr. diz no livro que há uma dicotomia entre uma parentalidade superprotetora com os filhos no mundo físico, mas permissiva no mundo digital. Qual a relação dessa infância orientada ao smartphone com essa superproteção? Nos EUA e no Reino Unido, nós perdemos a confiança uns nos outros nos anos 1990. Havia histórias de abuso sexual, algumas reais, outras não, e paramos de deixar que nossos filhos saíssem de casa.

Naquele momento, já existiam computadores pessoais. As crianças os adoravam, especialmente os meninos. Todos estavam felizes. Mas esses predadores sexuais não estão nos parquinhos. Eles estão no Instagram.

A internet era segura no começo. Claro que havia conteúdo inapropriado, mas não era opressivo. Até as redes sociais não eram tão ruins. Mas quando surge o feed, o botão de curtida, por volta de 2009 a 2011, ela não é mais uma rede consistente, é uma plataforma.

Cada criança está numa plataforma, fazendo uma performance para o mundo, torcendo para ter o holofote sobre ela.

Vi um artigo no [jornal americano] The Wall Street Journal em que mães de meninas influenciadoras admitiam saber que os seguidores de suas filhas eram homens adultos que se masturbavam para as fotos delas, mas diziam que as meninas precisavam daqueles seguidores. O Instagram está transformando famílias em cafetinas.

Por que a crise de saúde mental da geração Z afeta meninas de forma tão desproporcional? Se você olhar só para os índices de ansiedade, depressão e automutilação, as meninas estavam na frente em 2010. Existe evidência clara que isso está relacionado às mídias sociais.

No caso dos meninos, a conexão com a mídia social é menos clara. Mas depois de publicar o livro, pensei que deveríamos procurar esses meninos e meninas depois de já adultos.

As mulheres continuam deprimidas e ansiosas. Mas os homens estão desempregados e solteiros, porque a puberdade era só videogame e pornografia. Eles não fazem ideia de como flertar e tem problemas para olhar as pessoas nos olhos. Seus cérebros foram moldados por dopamina rápida, então eles são incapazes de trabalhar por uma recompensa a longo prazo.

Pais também são usuários assíduos de mídias sociais e celulares. Será que eles não deveriam se preocupar em ser exemplos melhores, além de regular os comportamentos? Sim, mas não acho que tenha grande impacto. Adolescentes estão 99% focados no que seus colegas estão fazendo e pensando. Eles não se importam com a opinião dos pais. Se eu começar a ler a revista The Economist em casa, minha filha de 14 anos vai começar a ler? Claro que não.

Devemos ser modelos melhores e devemos ter regras claras para uso de celular em família, como durante as refeições. Não leve o celular para a cozinha ou sala de jantar. Nada de celulares pouco antes de dormir.

Mas as crianças não estão nos copiando. Elas estão respondendo à maior força social que uma criança pode encontrar, que é ser incluída.

O sr. propõe marcos de idade para se ter um smartphone [13 anos] e para uso de mídias sociais [16 anos]. Como equilibrar isso com essa pressão social? Há dez anos, a idade média em que se adquiria um smartphone era 13 anos, por aí. No Reino Unido, um quarto das crianças de 5 a 7 anos têm seu próprio celular. Logo nós vamos implantar telefones no útero.

Eu acredito que seja um problema de ação coletiva. Damos celulares às crianças porque todo mundo dá. Os pais estão encurralados, exaustos e desmoralizados. Isso explica o sucesso do meu livro.

Ele está dizendo, “ei, você não está maluco, isso faz mal aos seus filhos”. E podemos sair dessa juntos a um custo de zero dólares.

Por isso a posição da autoridade máxima da Saúde nos EUA é importante. Isso dá suporte aos pais que querem negar acesso ao Instagram aos seus filhos de 10 anos. Ele está sugerindo normas.

Podemos fazer essa reforma com normas e não leis, mas algumas são necessárias.

Como o sr. sugere que essas leis e normas funcionem? Podemos expressar nossa raiva e pedir ação aos políticos. Podemos processar as empresas. E podemos nos organizar coletivamente nas escolas, proibindo os celulares.

Não permitir o uso na aula e pedir que os alunos deixem o aparelho no bolso é como permitir que um viciado em heroína leve a droga para uma clínica de reabilitação, desde que a mantenha no bolso. O vício é tão grave que é necessário trancar os celulares e só devolver na saída.

Apesar de sua restrição a mídias sociais e smartphones, o sr. não parece restritivo com relação ao uso de outros tipos de tela. Existe tempo de tela de qualidade? Com certeza. Ver filmes é ótimo. Se seu filho de 6 ou 7 anos vê uma ou duas horas de TV por dia, sem problemas.

Mas a geração Z nunca tem oportunidade de prestar meia hora de atenção. São sempre interrompidos. A tela em si não é o problema. O problema é a fragmentação da atenção.

JONATHAN HAIDT, 60
Professor da Stern Business School da Universidade de Nova York, é doutor em psicologia social pela Universidade da Pensilvânia e pesquisa os fundamentos da moral em diferentes culturas. Antes de “A Geração Ansiosa”, publicou “A Mente Moralista” (Alta Cult), “A Mente Justa” (Edições 70) e “A Hipótese da Felicidade” (LVM Editora).

Negacionistas veem colapso climático como oportunidade de negócios, por Ailton Krenak

0

‘A Terra Inabitável’, de David Wallace-Wells, mostra dezenas de fins de mundo possíveis sob Capitaloceno do presente

Ailton Krenak, Escritor e líder indígena. Autor de ‘Ideias para Adiar o Fim do Mundo’ e ‘Futuro Ancestral’

Folha de São Paulo, 23/06/2024

Eu falei para vocês no mês passado que iria sempre trazer aqui algum personagem para vocalizar a mensagem da vez. Convoco hoje David Wallace Wells, um jornalista que nasceu em Nova York e que não se considera um ambientalista, mas mesmo assim é o autor de “A Terra Inabitável: uma História do Futuro” (Companhia das Letras), que reúne alguns dos mais impactantes ensaios sobre o colapso climático que estamos vivendo.

Quando recebi meu exemplar do livro de David, em 2019, mesmo ano em que publiquei “Ideias para adiar o Fim do Mundo”, fiquei com uma dezena de trailers para possíveis “fins de mundo” passando na cabeça. Compreendi, então, que cada artigo de “A Terra Inabitável” nos apresenta um cenário possível —e mesmo provável— de fim de mundo.

As tantas hipóteses do livro são todas advindas de pesquisas feitas pelo autor e também resultado de suas conversas com cientistas do clima —essa novíssima casta de cientistas que ocupou nos anos 1980 e 1990 o debate “mais quente” sobre o estado de destruição dos diversos ecossistemas terrestres— buscando saídas para o pior cenário, visto que já havíamos cruzado a linha que divide a restauração de diversos ecossistemas para o estágio da mitigação de danos.

“A Terra Inabitável” nos mostra dezenas de cenários, todos apresentando riscos de desaparecimento de milhares de espécies não humanas, desordem social e crescente risco de conflitos de alcance global, com perdas irreparáveis para povos e nações.

Os cientistas que informam a pesquisa de David Wallace-Wells apontam várias tentativas de “mitigar a situação de caos ecológico previsto para a primeira metade do século 21”, todas de elevado custo material e humano pela exigência de investimentos em tecnologias inacessível aos pobres países periféricos.

Um dos ensaios mais distópicos é aquele em que cientistas desenvolvem um aparato bélico, capaz de bombardear a atmosfera do planeta para provocar a transformação do carbono que satura nosso clima terrestre, visando encerrar os eventos cíclicos e extremos de calor intenso e tempestades de água e gelo —catástrofes capazes de afundar sob as águas cidades inteiras, como Porto Alegre mostrou recentemente ao mundo.

Mesmo assim, alguns negacionistas, também no campo das ciências do clima, ainda são capazes de tomar essa tragédia planetária como oportunidade para grandes negócios. Eliminar o efeito estufa com bombardeios na atmosfera, por exemplo, se insere na lista de negócios do futuro, enquanto anúncios de viagens espaciais se confundem com filmes da década de 1960 em que os Jetsons rodopiam pelo espaço aéreo terrestre enquanto não colonizam outros planetas.

Queridas leitoras e leitores, trata-se de um vale tudo entre especulação científico-tecnológica e guerra nas estrelas nesta única economia que parece validada no planeta, o manjado e velho capitalismo sob nova direção: o Capitaloceno.

A mente adolescente e as redes sociais, por Priscilla Bacalhau

0

Número de pacientes com ansiedade já é maior em crianças e adolescentes que em adultos

Priscilla Bacalhau, Doutora em economia, consultora de impacto social e pesquisadora do FGV EESP CLEAR, que auxilia os governos do Brasil e da África lusófona na agenda de monitoramento e avaliação de políticas.

Folha de São Paulo, 21/06/2024

Quando a puberdade chega, parece que acende um alerta vermelho na mente adolescente. O corpo muda, os sentimentos ficam mais complexos, a interação com a família diminui enquanto a com amigos aumenta. A ansiedade toma conta e pode levar a caminhos tortuosos.

É isso o que acontece com Riley, personagem da animação “Divertida Mente 2”, que estreia nesta quinta (20) nos cinemas. Jovens (e adultos) vão se reconhecer nas cenas em que a ansiedade controla a torre de comando mental.

Na vida real, de onde vem tanta ansiedade? Obviamente, a explosão de hormônios tem papel relevante. Mas o mundo do século 21 traz mais complicadores para o ambiente. A digitalização das relações, o aparelho celular como extensão do braço e a proliferação de redes sociais chegaram para revolucionar a revolução da puberdade adolescente.

Apesar de essa realidade ser relativamente recente, já existem diversas evidências sobre os efeitos negativos do uso excessivo da tecnologia no desenvolvimento e na saúde mental de crianças e jovens. As redes sociais, desenhadas para serem viciantes, têm potencial avassalador nos jovens, cujos cérebros e sistemas de autocontrole ainda estão em formação.

O livro “A geração Ansiosa”, do psicólogo americano Jonathan Haidt, mostra o aumento de doenças mentais em adolescentes de países desenvolvidos: há mais depressão, ansiedade e até tentativa de suicídio, especialmente de meninas.

No Brasil, os números não são melhores, e os registros de pacientes com ansiedade já é maior entre crianças e adolescentes em comparação com adultos, como mostra levantamento da Folha.

Como qualquer problema complexo, as soluções não são simples para essa epidemia de ansiedade jovem exacerbada pelas redes sociais. Banir completamente o uso do celular é uma proposta. Celulares não smart, como nossos velhos Nokia, são outro caminho que vem sendo adotado.

Mas quaisquer dessas medidas serão ineficazes, e potencialmente prejudiciais, se não forem coletivas.

Ser o único da turma sem acesso ao celular compromete, inevitavelmente, sua sociabilização. Ninguém quer se sentir de fora, principalmente nessa fase. Além disso, para boa parte dos brasileiros, o celular é o único meio de acesso ao mundo digital. Letramento digital é crucial e jovens pobres não podem ser excluídos.

Pelo menos em um ponto parece que já temos consenso: não dá mais para permitir o uso indiscriminado de celular nas escolas. Tampouco podemos fugir de aumentar a regulação das redes, que estão se provando tão (ou mais) viciantes e prejudiciais quanto álcool e cigarro.

Para efeitos de entretenimento, a experiência da personagem Riley pode parecer individual. Mas, fora do cinema, o problema é coletivo e precisa ser tratado como tal.

Retorno do protecionismo

0

Nos momentos de grandes incertezas e instabilidades da sociedade internacional, como a que vivenciamos na contemporaneidade, percebemos o incremento das políticas protecionistas como forma de proteger suas estruturas econômicas e produtivas, proteger suas empresas nacionais, defender seus empregos e proteger a renda agregada da população. Neste cenário, percebemos o crescimento das políticas protecionistas que passaram a ganhar relevância na agenda das nações e discussões nos fóruns internacionais, tais medidas estão impulsionando conflitos e constrangimentos globais que podem, no extremo, gerar confrontos bélicos e desequilíbrios diplomáticos.

No campo econômico internacional, percebemos o crescimento da volatilidade das finanças, levando as nações a adotarem políticas de proteção e defender seus interesses nacionais, com o incremento dos subsídios internos e os mais variados tipos de barreiras comerciais, além de taxações e tributações visando a proteção das estruturas econômicas e produtivas.

Nações desenvolvidas que conseguiram ao longo da história se desenvolver econômica e industrialmente passaram a exigir abertura econômica e concorrência crescente como forma de alavancar economicamente as nações em desenvolvimento, pressionando-as como forma de encontrar o crescimento econômico e, posteriormente, o desenvolvimento social e a melhora das condições de vida de suas populações.

As políticas protecionistas sempre foram utilizadas pelas nações ao longo da história, os países ricos se utilizaram fortemente destes instrumentos para ganhar escala e produtividade como forma de alavancar suas estruturas produtivas, crescendo economicamente e fortalecendo suas empresas, desta forma, expandiram para todos os cantos da sociedade mundial e passaram a impor seus modelos produtivos, suas formas de enxergar o mundo e a dominar os atores econômicos e políticos internos, com isso, angariando forte poder político para impor seus interesses imediatos.

Desde os anos 1980 as nações desenvolvidas disseminaram para todas as regiões do mundo o chamado Consenso de Washington, um conjunto de políticas de liberalização econômica criada pelas nações desenvolvidas para que países mais atrasados ou em desenvolvimentos adotassem como forma de alavancar o crescimento de suas economias. Dentre as medidas estimuladas eram a abertura econômica, a desnacionalização dos setores produtivos, a privatização, a redução do protecionismo e a diminuição do papel do Estado na economia.

Depois de mais de trinta anos, os resultados foram interessantes, as nações que se entregaram a esse ideário neoliberal conseguiram diminuir a inflação, aumentaram a dependência externa, fortaleceram uma economia agroexportadora de produtos primários, aumentando sua desindustrialização e incrementando suas dívidas interna e externa, perdendo espaços na exportação mundial e se entregando facilmente a um predomínio da dependência financeira internacional. As nações que se distanciaram do pensamento neoliberal tiveram dados macroeconômicos mais sólidos e consistentes, fortaleceram seus papeis políticos no cenário mundial e angariaram espaços econômicos pouco vistos na história da economia internacional, vide por exemplo os países asiáticos, como a China e a Coréia do Sul, países camponeses, pobres e miseráveis e, atualmente, gigantes da tecnologia, da inovação e da complexidade econômica.

Diante disso, todos sabemos quais os caminhos escolhidos pela sociedade brasileira, abraçamos abertamente um ideário neoliberal, abrimos nossa economia, desnacionalizamos nossa estrutura produtiva, estimulamos nossa desindustrialização e perpetuamos nossa situação periférica, marcado pela dependência tecnológica e ideológica, importamos e estimulamos pensamentos que nos levam ao atraso e a submissão.

Ary Ramos da Silva Júnior, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Um Estado forte para uma democracia forte, por Luiz Carlos Bresser Pereira

0

Luiz Carlos Bresser Pereira – A Terra é Redonda – 17/06/2024

Há de se resistir às pressões do neoliberalismo e de seu bebê maligno: o nacional-populismo de direita

Para as sociedades capitalistas, o paradigma desejável e possível é o de um Estado forte, capaz, para uma democracia igualmente forte. A ideia de um Estado forte parece estar em contradição com uma democracia forte, mas não é isso o que mostra a realidade.

A Suiça e a Finlândia são exemplos de países nos quais esse ideal está próximo de ser alcançado, mas esta afirmação requer definir o que é uma democracia forte e um Estado capaz.

O Estado é o sistema constitucional-legal e a organização que o garante, enquanto o Estado-nação é a sociedade político-territorial soberana formada por uma nação, um Estado e um território. Um Estado é capaz quando a Constituição e demais leis do país são cumpridas. Algo que não depende apenas do poder de polícia do Estado, mas também e principalmente da coesão da sociedade em torno do Estado.

Em outras palavras, depende de toda a sociedade entender que a lei é necessária para a vida da sociedade, e de que cada cidadão considere seu dever denunciar aqueles que agem contra ela. Ao agir assim, ele não será um “dedo-duro”, mas um cidadão que cumpre o seu dever. No plano econômico, é capaz o Estado que tem o poder efetivo de tributar – de aumentar impostos quando isto é necessário para assegurar o equilíbrio fiscal.

A nação é a forma de sociedade de cada Estado; ela compartilha uma origem, uma história e objetivos comuns, estes explícitos ou implícitos no sistema jurídico. Uma “boa” sociedade é aquela que é relativamente coesa. Nunca é plenamente coesa, porque há a luta de classes e um número infinito de conflitos entre os cidadãos, mas esta luta ou estes conflitos não são radicais, não implicam uma relação de vida ou morte – e, portanto, podem coexistir com uma nação ou uma sociedade civil (outro nome da sociedade de cada Estado) relativamente coesa.

A democracia forte, por sua vez, é a democracia consolidada. É a democracia existente em um país ou Estado-nação que completou sua revolução capitalista – já formou seu Estado-nação e realizou a sua revolução industrial. E, por isso, a nova classe dominante burguesa já não precisa do controle direto do Estado para se apropriar do excedente econômico (ela pode realizá-lo no mercado através do lucro).

É o regime político no qual as novas e amplas classe média e classe trabalhadora que nasceram da revolução capitalista preferem a democracia. Na prática, uma democracia forte é aquela que soube resistir às pressões antidemocráticas do neoliberalismo e, depois, do seu bebê maligno – o nacional-populismo de direita.

Embora a democracia seja o melhor regime político para um país que completou sua revolução capitalista, essa mesma democracia enfraquecerá o Estado dos países que ainda não a realizaram. E poderá igualmente enfraquecer os Estados de países de renda média, que já realizaram sua revolução capitalista, como é o caso do Brasil, ao ser essa democracia caracterizada por uma polarização que a torna incapaz de fazer compromissos necessários para realizar as reformas institucionais. O império sabe disso, e usa a democracia para garantir a sua dominação sobre os países da periferia do capitalismo.

A prioridade dos países de renda média é, portanto, fortalecer o seu Estado, porque assim estarão fortalecendo sua democracia; é tornar sua nação mais coesa; é livrá-la do conflito entre os liberais que se submetem ao império e os que buscam soluções nacionais para os problemas.

Não existe um caminho claro para alcançar maior coesão nacional. Porém, o simples fato de as elites sociais – não apenas as econômicas, mas também as políticas, intelectuais e organizacionais – saberem da necessidade dessa maior coesão já é um passo nessa direção.

O Brasil é um “Estado-nação-quase-estagnado” há 44 anos, cresce mais lentamente que os países ricos e mesmo que as demais nações em desenvolvimento – não realiza, portanto, o esperado alcançamento (“catching up“). Precisa, portanto, dramaticamente fortalecer a sua nação e o seu Estado para deixar de ficar para trás – como tem ficado neste quase meio século.

*Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor Emérito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e ex-ministro da Fazenda. Autor, entre outros livros, de Em busca do desenvolvimento perdido: um projeto novo-desenvolvimentista para o Brasil (Editora FGV).