Ricardo Antunes analisa o inferno da precarização

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Dicionário Marielle Franco mostra: hoje, o “andar de baixo” divide-se entre o temor do desemprego e o fardo da precarização. É hora de retomar uma pauta do século XIX: a redução da jornada de trabalho, como forma de gerar empregos e mitigar a exploração…

Ricardo Antunes – OUTRAS PALAVRAS – 03/05/2024

Nos últimos anos, diante de uma crise internacional do trabalho e do capital, a classe trabalhadora brasileira sofreu graves retaliações, como parte do processo de desindustrialização e da diminuição das garantias de direitos sociais sob a racionalidade neoliberal. Este impacto vem trazendo graves consequências, como o aumento da precarização das relações de trabalho, razão pela qual a população brasileira vem sofrendo com a informalidade, a uberização e a retirada de direitos trabalhistas. Para piorar este quadro, passamos pelos duros anos da pandemia da covid-19, o que fez com que as relações de trabalho ficassem ainda mais precarizadas. Além do aumento da fome, tivemos ainda o aumento do desemprego, o que levou muitos trabalhadores à informalidade chegando a marca de quase 39 milhões de brasileiros no mercado informal apenas em 2023, com dados revelados pelo IBGE.

Sabemos que tal crise, relacionada aos direitos trabalhistas aqui no Brasil, não se inicia hoje. A classe trabalhadora brasileira, em toda a sua diversidade e interseccionalidade, tem lutado há décadas por reconhecimento e redistribuição, tanto em seu trabalho produtivo quanto reprodutivo. A conquista dos direitos das trabalhadoras domésticas no Brasil, por exemplo, aconteceu de forma parcelada. Por um longo período direitos conquistados por outras categorias foram negados às trabalhadoras domésticas e até hoje a maior parte da categoria trabalha na informalidade e de forma precarizada. Inclusive, atualmente, as relações entre produção e reprodução têm sido cada vez mais conflituosas. Em 2017, por exemplo, protagonizamos grandes mobilizações nacionais contra a Reforma Trabalhista, apesar da criação da lei nº 13.467, responsável pelas mudanças bruscas nas leis que protegiam os(as) trabalhadores(as) formais brasileiros(as). Desde então, além do aumento da quantidade de trabalhadores(as) sem carteira assinada, as condições de trabalho passaram a ser mais instáveis, fortalecendo, assim, um novo modelo de contrato de trabalho intermitente, sem o pagamento de horas in itinere e de horas extras (em detrimento do banco de horas) e sem a consideração em relação ao tempo de mobilidade para o trabalho e ao tempo de almoço durante a jornada, por exemplo.

Além disso, passados alguns anos desde as reformas, em 2024 o debate sobre a uberização do trabalho volta à tona, e ganha cada vez mais o noticiário (e as ruas). Trabalhadores(as) de aplicativo vêm protestando quase que semanalmente nas avenidas das capitais em crítica às propostas governamentais e empresariais postas à mesa, que não garantem qualquer direito ao trabalhador(a) e fortalecem o papel da Indústria 4.0 – uma nova fase de impulsão capitalista marcada por uma enorme reestruturação produtiva permanente do capital. De acordo com matéria publicada no Brasil de Fato, em julho de 2023, “atrás do aplicativo (app) de transporte da norte-americana Uber, vieram os de comida, de entregas e de compras. Hoje existem cerca de 1,27 milhão de pessoas trabalhando como motoristas e outras 385 mil como entregadores para aplicativos no Brasil”.

Os dados compartilhados por esta mesma matéria revelam ainda o perfil destes(as) trabalhadores(as), levando em conta questões como raça, renda e tempo de jornada, com base em informações cedidas pelos próprios apps – 99, Uber, iFood, Zé Delivery e Amazon: “Entre os motoristas, 95% são homens, dos quais 62% declaram-se negros ou pardos, e têm em média 39 anos. Já entre os entregadores, 97% são homens, dos quais 68% se declaram negros ou pardos, com idade média de 33 anos”. O dado é de uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia.

A informalidade se soma, neste caso, ao racismo estruturado nas relações sociais e de trabalho no Brasil. Muitos(as) destes(as) trabalhadores(as) acabam sendo também criminalizados, marginalizados e perseguidos, seja dentro dos elevadores dos prédios em bairros nobres ou nas ruas, quando em busca da garantia do seu ganho de vida. A realidade das condições de trabalho informal e, em especial, dos(as) trabalhadores(as) da rua, como os ambulantes e camelôs, é também, há muito, degradante – ainda mais considerando, por exemplo, a cidade turística e super populosa do Rio de Janeiro. Diante das violações de direitos agravadas nos últimos anos, o Movimento Unidos do Camelôs (Muca), do Rio de Janeiro, trava há décadas uma luta contra a Guarda Municipal do Rio de Janeiro. Ou seja, não basta sofrer com retrocessos nas leis, ainda sofrem com a criminalização do próprio meio de trabalho pelas ruas da cidade.

O mundo do trabalho tem passado por constantes transformações tecnológicas, mas há cada vez mais retrocessos nas relações e nas garantias de direitos, sendo um deles os direitos trabalhistas. A população brasileira, mais uma vez, tem suas camadas sociais empobrecidas no meio desse jogo entre governos e empresas que visam cada vez mais o lucro – e que negociam direitos sem mesmo ter um sindicato ou organização com representação trabalhistas nas mesas de negociações, o que é o caso dos motoristas de Uber. Dentro disso, infelizmente, sabemos quem são as pessoas mais atingidas no nosso país, são elas: negras, pardas, não brancas, pobres, faveladas e periféricas.

Para refletirmos sobre esses desafios, considerando o papel político da classe trabalhadora, destacamos a entrevista com o sociólogo Ricardo Antunes, realizada pela EPSJV/Fiocruz, em abril de 2024, e publicada como verbete no Dicionário de Favelas Marielle Franco. (Introdução: Gizele Martins e Clara Polycarpo)

A classe trabalhadora não nasce sabendo o que fazer

Ricardo Antunes em entrevista a equipe da EPSJV/Fiocruz

Ricardo Antunes, sociólogo marxista e um dos mais influentes pensadores do país no tema mundo do trabalho, atualmente é professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e leciona disciplinas como Sociologia do Trabalho e Sociologia de Karl Marx. Antunes é também um dos mais importantes teóricos da obra marxiana da América Latina. Nesta entrevista, realizada e originalmente publicada na Revista Escola Politécnica em Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), em abril de 2024, Antunes avalia a realidade atual do mundo do trabalho no Brasil e no mundo nesta entrevista alusiva ao Dia Internacional dos Trabalhadores.

Já se passaram cerca de 140 anos desde a greve em Chicago que originou a celebração do 1º de maio demandava a redução da jornada de trabalho para 8 horas diárias. Isto continua a ser uma demanda?

A jornada de trabalho atualmente é um tema de gravidade relevante para aqueles setores que mais se expandem no mundo do trabalho: o do trabalho intermitente, o trabalho em plataforma, o trabalho uberizado ou o trabalho no setor de serviços. Nestes setores, que reforço, são os que mais se expandem, a jornada é ilimitada.

Veja que o Projeto de Lei Complementar do governo Lula – o PLP 12/2024 –, pasmem, sugere uma jornada limite por aplicativo de 12 horas. Imagine um trabalhador ou trabalhadora que opte por trabalhar em dois aplicativos. Em tese, num cálculo abstrato, eles podem chegar a 24 horas de jornada por dia! Se trabalhassem seis, sete horas, por aplicativo, chegariam facilmente a uma jornada de 13, 14 horas, como as nossas pesquisas têm mostrado. Então, a questão da jornada de trabalho hoje tem uma importância, de certo modo, semelhante a do século 18 e 19. Por quê?

Porque se a moda pega, ou se a porteira for aberta, nós não mais teremos jornadas de trabalho.

O que singulariza o trabalho intermitente em plataformas ou assemelhados é que se trabalha quando há trabalho disponível, e não se trabalha quando não há trabalho, e o tempo de espera não é contabilizado em termo de jornada. Trabalhamos este tema em nossos livros Icebergs à Deriva e Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. Jornadas de 12, 13, 14 horas, no Brasil e em vários países do mundo, não são mais a exceção, vêm se tornando a regra, especialmente se se contabilizar o tempo de espera. Para que todo mundo entenda bem: num shopping center, por exemplo, se um trabalhador que está numa loja comercial não atende clientes, ele está recebendo.

Um motorista ou entregador, em sua jornada diária, se não tem clientes mas está disponível para o trabalho, esse tempo não é contabilizado. Isto é uma questão crucial.

Também não se considera o tempo médio que se gasta em deslocamento, correto? Muitos trabalhadores saem de casa cinco, seis horas da manhã para voltar às oito da noite…

Pesquisas de Brasília mostram, por exemplo, que um trabalhador de moto que trabalha naquele cinturão ao lado de Brasília já leva 40 minutos – de moto! – para chegar ao trabalho no centro de Brasília. Imagine quando esse deslocamento não é de moto, mas de carro ou de transporte público.

A redução da jornada de trabalho para abertura de novas vagas deveria se manter como pauta, então?

Este é um desdobramento crucial desse tema, da jornada de trabalho. Atualmente há no mundo centenas de milhões de pessoas que trabalham 12, 14, 16, 18 horas por dia. E, ao mesmo tempo, temos centenas de milhões de pessoas que não trabalham nenhuma hora por semana, porque não têm nenhum trabalho. Seria muito elementar dizer: ‘vamos fazer uma média, trabalhemos seis horas por dia, todos e todas, de modo que ninguém fique sem trabalho’.

Ou seja, a redução da jornada de trabalho é um tema crucial hoje. E por que ele não entra na pauta? Porque as grandes corporações não aceitam essa conversa.

Elas querem extrair ao máximo tudo que a força de trabalho pode oferecer, num processo de exploração, expropriação e espoliação.

Como a demanda pela redução da jornada de trabalho, prévia ao próprio estabelecimento do Dia Internacional dos Trabalhadores, perdeu seu alcance mesmo a realidade atual sendo esta que você descreve?

São muitos os elementos que explicam isto. Primeiro, há hoje no mundo inteiro, com raras exceções, um desemprego estrutural, que não é exclusivo do Sul global, mas é grande e forte nos países capitalistas do centro, como se constata em tantos setores que desapareceram, indústrias que foram fechadas e no trabalho imigrante, que é recorrentemente buscado porque é aquele trabalho em que vale tudo e passa ao largo da legislação protetora do trabalho.

O segundo elemento: o maior temor da humanidade, hoje, é o desemprego. Não é que houve uma perda de consciência, por descuido dos movimentos organizados de trabalhadores. Se eu não tenho trabalho nenhum e o que me oferecem é uma jornada ilimitada, eu aceito, porque não tenho trabalho nenhum.

Neste novo tipo de emprego que não é emprego, de trabalho que não é considerado trabalho, nessa nova modalidade de prestação de serviço – que também é equivocada porque não é serviço –, as empresas querem esconder a condição de assalariamento, para, a partir da ideia de que são empreendedores ou colaboradores, obliterar as condições de assalariamento. Desse modo, você pode burlar a legislação social protetora do trabalho.

Então, em síntese, nós estamos vivendo uma crise estrutural, não estamos vivendo uma crise conjuntural. A crise é da humanidade, da civilização.

A lógica destrutiva capitalista levou a natureza a esse nível de destruição e o trabalho a esse nível de devastação, trouxe xenofobia, racismo, o neofascismo. Tudo isso se expande.

Este cenário faz com que eu só possa defender e lutar por um trabalho, ainda que ele não seja portador de direito nenhum. Porque se eu não tiver este, eu não tenho nada.

Um cenário de Estado de Bem-Estar Social parece cada dia mais distante. Os sindicatos têm responsabilidade nisto?

Os sindicatos se acomodaram. Isto vale também para o cenário europeu. Quando a gente fala em bem-estar social hoje é preciso tomar muito cuidado. Porque estes direitos de bem-estar não chegam aos imigrantes.

Trabalhadores imigrantes não têm direito algum. São tratados quase como párias sociais. Esta dificuldade faz com que a jornada não ganhe o estatuto da questão crucial para a classe trabalhadora, em sentido amplo. Porque a questão crucial é ter emprego para sobreviver. Eu só vou lutar por uma jornada melhor depois que eu tiver emprego.

Os operários ingleses dos séculos 18 e 19 passaram a lutar fortemente pela redução da jornada de trabalho, uma luta de muitas décadas, quando o emprego lhes estava garantido porque o mundo industrial estava em expansão. Hoje nós vivemos um mundo industrial, de agroindústria e de serviços em crise. Financeirizado. Nele, a prioridade é lutar pelo emprego, pela sobrevivência.

Feito isso, vêm a segunda luta, a terceira luta, e as lutas retornam.

A migração de plantas produtivas e a entrada de novos contingentes de mão de obra colaboram de que forma para este cenário? Qual o impacto de você ter um bilhão de trabalhadores chineses, por exemplo, sendo incorporados ao mercado de trabalho de uma economia globalizada?

O capitalismo do nosso tempo é muito diferente daquele que tínhamos nos anos 1980 e mesmo 1990.

Por quê? Além de toda a explosão tecnológica e do aguçamento da crise estrutural do capital, que só cresce destruindo a natureza, o trabalho e o gênero humano, a grande maquinofatura do mundo hoje está na China. Isso trouxe desindustrialização dos países europeus e de vários países do Sul global. As grandes empresas capitalistas estão na China. A Volkswagen está na China, a Fiat está na China, a Mercedes-Benz está na China. Todas elas migraram.

A China se transformou, de uma revolução socialista autárquica e fechada em si mesma, que possui tudo aquilo que ela precisa para sobreviver, como era o projeto de Mao Tsé-Tung, em uma China pós-maoista em que há criação do socialismo de mercado, que para mim é um eufemismo para defender o capitalismo. O nível de exploração do trabalho na China dez anos atrás era brutal, e foi preciso ocorrerem muitas greves do operariado chinês para que fosse reduzida esta brutalidade. Há o sistema chinês que chamam de 996, no qual você trabalha das 9h da manhã às 9h da noite, seis dias por semana. É brutal, é uma superexploração do trabalho. Mas isso mudou a máquina.

Além disso, o capitalismo hoje se sustenta numa economia financeirizada, que impulsiona as taxas de lucro no setor de serviços.

Houve, portanto, a transformação capitalista dos serviços. De públicos, eles se tornaram privados. Ou seja, nós temos hoje um ramo em expansão da indústria no mundo inteiro: a indústria de serviços. Porque a indústria de transformação, está na China abocanhou. Isto é uma mudança profunda no cenário mundial.

O setor de serviços engloba diferentes categorias, dos trabalhadores de aplicativos até médicos, por exemplo. Todos se enxergam como trabalhadores?

Não. Se você falar, em uma greve de professores universitários, que eles são classe trabalhadora, vai ter professor que vai ficar nervoso, vai se incomodar. Isso vale para médico, advogado, o segmento assalariado das classes médias. Mesmo que as classes médias estejam descendo um elevador em direção à proletarização na vida real, elas sonham com o elevador que as
vai levar ao céu. Elas sonham com o paraíso, ainda que estejam derrapando para o inferno.

O setor que mais se expande é o proletariado de serviços: call center, indústria hoteleira, fast food, trabalhadores em plataformas… Estes são proletários, o que não quer dizer que tenham esta consciência. A classe trabalhadora da Inglaterra de 1730 também não tinha consciência de sua condição operária. Muitos estavam saindo do mundo servil, feudal, rural.

A consciência de classe é um fenômeno muito complexo e difícil. Sabe por quê? É nele que o ideário capitalista e que o neoliberalismo vêm operando há mais ou menos 50 anos, desde a década de 1970.

Isto explica por que trabalhadores que hoje trabalham como entregadores, de motos e até mesmo bicicletas alugadas, se jogam na ideologia do empreendedorismo.

As plataformas são tão impressionantes que quem entra com o carro? O trabalhador. Quem entra com a moto? O trabalhador. Quem entra com a bicicleta? O trabalhador. Quem entra com o celular? O trabalhador. Ou seja, a responsabilidade de prover o instrumental de trabalho foi transferida para o trabalhador.

O impacto da ideologia neoliberal continua muito forte, apesar da crescente dificuldade para subsistir?

Quando eu trabalhei na universidade inglesa, em Sunderland, entre 1997 e 1998, convidado pelo meu amigo István Mészáros, preparava meu livro para o concurso de professor titular, que foi Os
Sentidos do Trabalho. Nele eu lembrava que a Margaret Thatcher, em seus primeiros discursos após ganhar as eleições, dizia querer que cada indivíduo do Reino Unido sonhasse em ser um indivíduo possessivo, um indivíduo que fosse proprietário de si mesmo. Esse discurso se perpetuou no governo John Major e, no período em que lá estive, continuava presente durante a gestão de Tony Blair.

O representante da chamada “Terceira Via”…

Sim, a Margaret Tatcher dizia o seguinte sobre ele: “Esse menino é um menino de futuro”. Os ingleses críticos chamavam o Tony Blair de ‘Tory’ Blair, porque ‘tory’ é o nome do partido conservador inglês. Eu estava lendo os discursos que ela tinha feito uma década antes (anos 1980), e naquela época (1997-998) eu dizia: ‘Não é possível!’. E a verdade é que isto foi possível e entrou no mundo todo. Nós estamos vivendo uma era de desencanto do mundo. Estamos vivendo uma era de derrotas muito duras. O projeto socialista russo e soviético terminou tragicamente.

Em 2008, 2009, nós estávamos animados aqui com a revolta da Tunísia, Occupy Wall Street, vitória das esquerdas na Grécia, depois revolta em Portugal… Nada disso avançou.

A possibilidade de uma ‘Internacional’ hoje é mais factível para a extrema direita do que para a esquerda?

A direita está se organizando globalmente. O [Jair] Bolsonaro é uma peça de um cenário que tem o [Donald] Trump, o [Viktor] Orbán na Hungria, o [Matteo] Salvini e a [Giorgia] Meloni na Itália, que tem crescimento em Portugal, na Inglaterra, o ressurgimento da extrema direita na Alemanha, na Suíça… Nós temos um movimento, digamos, favorável ao ressurgimento do neofascismo, do neonazismo. Muito forte, aliás. Tudo isso dificulta a ação da classe trabalhadora. Quando tudo vai mal na Terra, a única esperança é que exista um reino fora da Terra, em que as coisas funcionam. Daí a crença na teologia da prosperidade.

Esta teologia parece crescer junto ao ideal neoliberal. É como se ela fosse a tradução litúrgica de um novo ideário individualista?

Exatamente. Está certo dizer ‘eu vou resolver o meu problema’. Eu tenho que abraçar uma religião na qual a solidariedade é o que menos conta. Eu tenho é que fazer a coisa certa e fazer a coisa certa significa começar a enriquecer na Terra. Nem todos os evangélicos são de extrema direita, mas há uma forte extrema direita majoritária entre eles, que está nos Estados Unidos, em países da Europa e aqui no Brasil também. E está entrando na Argentina.

Já se fala em uma quinta revolução industrial, na qual os seres humanos e a inteligência artificial precisariam aumentar sua colaboração em prol dos objetivos da empresa. Como você avalia este tipo de discurso?

Eu entrei há uns meses atrás no SAC [Serviço de Atendimento ao Cliente] do site da OpenAI, que é a criadora do ChatGPT 4. Eu ainda não sei se continua lá em seu site, mas ela dizia que era inimaginável o número de trabalhos que iriam desaparecer com a Inteligência Artificial. Eu quase caí de costas. Inteligência artificial, robotização, automatização, internet das coisas, tudo isso significa o trabalho vivo desaparecer e o trabalho morto não ser mais uma máquina, algo dotado de materialidade, mas algo informacional, digital e algorítmico. Esta nova ‘máquina’ comanda você.

Não resta mais a opção ‘ludista’, de se voltar contra o avanço da tecnologia, correto? Não há nenhuma máquina para se quebrar…

É, se você quiser quebrar o algoritmo, você não o vê. Eu estudo esse tema há dez anos e nunca vi o algoritmo. Entendeu o tamanho da complexidade? Essas mudanças exploram o trabalho no mundo inteiro.

É o trabalho que subsidia as informações para a Inteligência Artificial. Eu chamei isso de privilégio da servidão de escravidão digital.

Nós estamos adentrando um mundo onde somos escravos digitais, em várias dimensões e em várias amplitudes. O resultado disso é que o cronômetro do Taylor [Frederick Taylor andava por sua fábrica com um cronômetro com o qual media a relação entre o trabalho realizado e o volume de recursos utilizados através do tempo] não faz mais sentido, porque ele foi substituído pelas metas que são interiorizadas em nossa subjetividade. Todos os entregadores e motoristas que eu entrevistei dizem: ‘eu só paro de trabalhar quando cumpro minha meta’.

O que leva a lista de doenças relacionadas ao trabalho passar a considerar o esgotamento pela síndrome de burnout, ansiedade, depressão…

Qual é o ideário empresarial? Termos resiliência e sinergia. Bom, isto é uma empulhação, é a adulteração completa do léxico. Eu já tratei disso em vários estudos: você querer ser resiliente e trabalhar 48 horas num dia, mesmo ele só tendo 24 horas… Você ter que dar mais do que pode, a resiliência, gera o burnout, o estresse, a depressão e até mesmo o suicídio.

Este é o cenário, e a síntese é: a resiliência é a porta de entrada do burnout. Chega uma hora em que eu apago, e daí eu tenho que ir para um psiquiatra, um médico.

Por quê? Porque eu não dou conta mais deste inferno.

Como enfrentar isto e não ficar paralisado diante dessa realidade?

A classe trabalhadora não nasce sabendo o que fazer. Ela adquire o sentido coletivo na experiência. O chamado Breque dos Apps, em plena pandemia, entrou para a história da luta dos trabalhadores uberizados do Brasil, como várias outras que ocorreram na Inglaterra, na França, na Itália, nos Estados Unidos, na Índia, na China, na África do Sul.

Nós estamos lançando agora, daqui a alguns dias, um livro que vai se chamar Trabalho em plataformas digitais – Regulamentação ou desregulamentação?. Enquanto termino a obra, eu olho para o exemplo do que ocorre na Europa. O Parlamento Europeu aprovou na semana passada a diretiva da União Europeia de que nós precisamos ter a presunção de que todos os trabalhadores das plataformas são empregados e não autônomos. Esta é a presunção. Tem que valer para todo trabalho. ‘Ah, professor, mas isso a gente não consegue’. Aí entra o ponto dois: conseguir isto através de organização e luta. Eu estou citando a diretiva da União Europeia, não uma reivindicação socialista.

É preciso tirar a aparência de neutralidade das plataformas, dos algoritmos. Precisamos desnudar o algoritmo. As empresas não abrem isso, mas têm que abrir. Então, as lutas são as mesmas do operariado do século 18, com a diferença que nós não estamos no século 18 mas no 21. Olhe que tragédia! Nós estamos numa era de monumental avanço tecnológico controlado pelos Elon Musk e Jeff Bezos [segundo e terceiro homens mais ricos do mundo] et caterva.

E qual é o momento da instabilidade, da ruptura? Ninguém sabe, isto é o que é genial da História, é imprevisível. Então, nós temos que lutar. Sem luta, não chegamos a ele, sem organização, consciência e força social também não chegamos a ele, mas há um momento em que, lembrando [Karl] Marx, “tudo que é sólido desmancha no ar”.

Ricardo Antunes,
É um sociólogo marxista brasileiro. Atualmente é professor titular da Universidade Estadual de Campinas.

A Universidade funcionalista, por Jean Pierre Chauvin

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Jean Pierre Chauvin – A Terra é Redonda – 11/05/2024

O contrato de orientação entre professores e orientandos não deve(ria) funcionar como se a universidade fosse um balcão de negócios

Desde os anos 1980 Marilena Chauí [1] oferece-nos diagnósticos precisos sobre o contágio da universidade pelos pressupostos neoliberais, dentre eles o deslocamento da pesquisa e da docência extracurricular, que passaram de atividades-fim para meios de se obter financiamento – quase sempre segundo as regras do capital privado, pautado pela ideologia da “competência” e “performance”.

Em sua tese de livre-docência, defendida em 2002 na área de Literatura Brasileira, João Adolfo Hansen sugeria que, desde o início da década de 1980, a universidade passara a se estruturar e funcionar como uma grande empresa, com o advento dos pressupostos que orbitam os modelos de gestão e estimulam a concorrência entre colegas, segundo a (anti)ética do lucro.

Como sabemos, a discussão é antiga também em outros países. Entre as décadas de 1950 e 1960, Edgar Morin [2] foi um dos primeiros a observar que o intelectual ocupava lugar ambivalente na sociedade dita “pós-moderna”, pois corria o risco de irradiar juízos críticos sobre a instituição que o sustentava.

Decorridas seis décadas, o que dizer da relação entre pesquisadores e docentes, quando seus projetos são submetidos aos desígnios das grandes empresas, bancos e corporações?

Em que estágio está a universidade, hoje? Ela está a “superar” a si mesma, na campanha de estrita obediência aos ditames do neoliberalismo. Quero dizer, a instituição de ensino superior aprimorou o perfil “operacional” (como mostrava Chauí), refinando a concepção “gerencial” (como aventara Hansen), reforçando os questionáveis critérios da avaliação quantitativa.

Obviamente, as métricas que orientam as agências de fomento se combinaram aos rigores crescentes da instituição de ensino.

Uma das razões do mal-estar docente reside no fato de nos sentirmos julgados sem cessar por um tribunal onipresente (instalado desde os departamentos até a reitoria), correndo o sério risco de lidarmos com sentenças recriminatórias sobre a pequena “produção” ou nossa inapetência em “captar recursos”.

Ora, e como se captam recursos? Apresentando-se projetos de pesquisa rentáveis (aos olhos do “mercado”), de preferência pragmáticos e exequíveis, que carreiem o nome da universidade para além do território nacional, com a logomarca da empresa em primeiro plano.

Mas deixemos a estratosfera do grande capital. Em escala mais modesta, digamos, entre os corredores e as salas de aula, crescem episódios protagonizados por alunos que, antes mesmo de amadurecer seus projetos de pesquisa (sejam de Iniciação científica, sejam de Pós-graduação), correm atrás dos docentes em busca de recompensas pecuniárias por trabalhos que sequer iniciaram.

Repare-se. Não se está a negar a importância das bolsas e auxílios: o pesquisador tem direito a eles, considerando a sua ocupação na universidade e fora dela. Por sinal, uma das nossas lutas se dá justamente pela ampliação dos recursos que promovam e estimulem as pesquisas. O que se está a questionar é a aparente inversão das prioridades (e das etapas) relacionadas ao trabalho acadêmico: a pesquisa é um fim; não um pretexto para recompensa antecipada.

Salvo engano, a universidade funcionalista está a naturalizar a relação de barganha entre alunos e docentes, segundo uma racionalidade utilitária, mediada pela relação interpessoal pragmática e o espírito da livre-concorrência. Ainda a esse respeito, supomos que, para além dos conteúdos didáticos, possa-se rediscutir os pressupostos, réguas e pretensões do mercado.

Contudo, quando as aulas e as atividades de pesquisa cedem o lugar (da curiosidade, do conhecimento, da reflexão) à transação financeira, cumpre recordar que o contrato de orientação entre professores e orientandos não deve(ria) funcionar como se a universidade fosse um balcão de negócios.

*Jean Pierre Chauvin é professor de Cultura e literatura brasileira na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros de Sete Falas: ensaios sobre tipologias discursivas.

Notas

[1] Refiro-me a Escritos sobre a universidade. São Paulo: Unesp, 2001.
[2] Cultura de Massas no Século XX – O Espírito do Tempo – Neurose e Necrose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2018.

Brasil é pior inimigo do Brasil na busca por liderança internacional, por Daniel Buarque

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Problemas domésticos prejudicam ascensão na hierarquia global, aponta pesquisa

Daniel Buarque – Folha de São Paulo – 12/05/2024

[RESUMO] Autor apresenta conclusões de sua pesquisa de doutorado, em que realizou 94 entrevistas com membros da comunidade de política externa para mapear a imagem internacional do Brasil. Embora aspire a ser um líder global, o país é percebido como um peão no xadrez geopolítico, um ator periférico prestigiado pelas grandes potências só quando convém a elas. Falta de reconhecimento é reflexo de problemas internos do país, aponta estudo.

Desde o início da invasão da Ucrânia pela Rússia, o Brasil se ofereceu para ser um mediador entre os dois países, tanto com Jair Bolsonaro (PL) quanto sob Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Quando começou o atual governo, a “doutrina Lula” tentou construir a ideia de que “o Brasil voltou” e quis melhorar a sua imagem internacional.

O Brasil começou a buscar protagonismo em questões ambientais, quis retomar uma liderança em temas regionais, procurou grandes acordos comerciais e até buscou conduzir uma votação pelo cessar-fogo na Faixa de Gaza. Além disso, retomou a aposta no multilateralismo e na busca pela reforma da governança global, reiterando o interesse em um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.

Lula até encontrou boa vontade internacional, a imagem do país melhorou e ele conseguiu liderar o Conselho de Segurança por um mês e presidir o G 20, além de ganhar o direito de sediar a conferência do clima.

No entanto, a maioria das tentativas de ter um papel realmente significativo em questões internacionais importantes, motivadas em ampla medida pela ambição de ser um ator de peso na política global, continua esbarrando na falta de reconhecimento internacional de um alto status do país.

Mesmo com todo o esforço para aumentar o prestígio brasileiro, a percepção das nações mais poderosas do planeta é que o país não é suficientemente relevante para influenciar as grandes questões internacionais. Isso vale especialmente para quando elas envolvem discussões sobre segurança, guerra e paz. Para as grandes potências globais, o Brasil não passa de um peão no xadrez da geopolítica global.

Apesar do trabalho sério desenvolvido pelo Itamaraty ao longo de décadas, o problema não está necessariamente no que o Brasil faz em sua atuação internacional. A falta de reconhecimento para o prestígio é um reflexo, em ampla medida, de problemas internos do país, que precisam ser o foco antes de qualquer tentativa de projeção internacional.

Esses são alguns dos pontos centrais do livro “Brazil’s International Status and Recognition as na Emerging Power: Inconsistencies and complexities”, recém-publicado pela editora Palgrave Macmillan. A obra reúne os principais achados de uma pesquisa desenvolvida durante meu doutorado pelo King’s College, de Londres. O estudo analisou a longa aspiração brasileira por alto status internacional em contraste com a percepção externa sobre o papel que o país pode desempenhar no mundo.

Para entender o lugar ocupado pelo Brasil na complexa geopolítica desde o fim da Guerra Fria, a pesquisa se baseou em 94 entrevistas com a comunidade de política externa dos países que já são reconhecidos como potências globais: EUA, China, Rússia, Reino Unido e França —os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU.

UM ‘PEÃO COBIÇADO’

As grandes potências veem o Brasil como um país sem peso na política internacional. A percepção é que o Brasil não passa de um país médio que não tem legitimidade para atuar em questões importantes de segurança global.

Uma razão para essa avaliação é geográfica. O Brasil é percebido como periférico e pacífico, localizado em uma região longe das principais ameaças e disputas do mundo, e por isso não precisaria nem deveria se envolver nesses casos.

Outro ponto importante é que o país enfrenta limites em suas capacidades militares e econômicas, portanto não teria poder suficiente para ser preponderante em escala global.

Paradoxalmente, o Brasil é desejado como um aliado por essas mesmas potências, que buscam utilizá-lo como uma peça estratégica em suas rivalidades e seus interesses globais. Apesar de ser visto como um peão, seu apoio é cobiçado dentro do grande jogo da geopolítica.

Isso explica a frustração do Ocidente com a “equidistância” do país em relação à Guerra da Ucrânia e sobre as críticas de Lula a Israel. Ajuda a entender também a mobilização da China para manter o país envolvido nas ações do Brics e na tentativa de fortalecer outras moedas como alternativa ao dólar em negociações internacionais.

Na realpolitik, cada potência está interessada apenas em avançar seus próprios interesses geopolíticos. O Brasil recebe apoio e alguma forma de reconhecimento somente quando isso indica algum benefício para elas.

BRASIL CONTRA BRAZIL

Ser visto como um peão vai contra a histórica ambição de grandeza do país nas relações internacionais. Isso, contudo, ultrapassa as limitações geográficas e de poder econômico e militar. O Brasil é o maior inimigo do Brasil em sua busca por maior status internacional, avaliaram muitos dos entrevistados na pesquisa.

A percepção externa é que, embora o Brasil realmente tenha muito potencial e sua imagem internacional seja geralmente positiva, o país não alcançou um alto status por causa de seus próprios problemas domésticos, que prejudicam seu desenvolvimento e sua ascensão na hierarquia global. Uma situação doméstica —social, econômica e política— de desordem e incerteza mina a influência internacional mais que qualquer atuação no exterior.

Para essas nações poderosas, países com ambição de emergir entre os mais importantes do mundo devem “fazer sua lição de casa” e “arrumar as coisas internamente” antes de serem aceitos no clube de “alto status internacional”.

Trata-se de uma visão meritocrática da ordem internacional —e uma interpretação do prestígio global que pode ser criticada—, mas que reflete a forma como a comunidade de política externa das nações mais poderosas pensa sobre a ordem global.

Ao observar o Brasil nas últimas décadas, há fortes evidências da importância da situação doméstica para seu prestígio. A estabilização e o crescimento da economia, a expansão da classe média, o fato de o país ter se tornado autossuficiente na produção de energia, a expansão das commodities e a consolidação da democracia no final dos anos 1990 levaram a uma narrativa sobre o aumento do status internac ional do Brasil. Em 2009, a revista britânica The Economist estampava em sua capa a imagem do Cristo Redentor decolando.

Em 2013, contudo, uma série de crises sociais, políticas e econômicas mudou essa situação. Os anos seguintes foram de recessão, escândalos de corrupção, violência e violações de direitos humanos, autoritarismo, negacionismo científico e ameaça à democracia, tornando mais difícil para o Brasil alcançar reconhecimento externo.

Entender a importância do contexto doméstico pode servir como referência para repensar as estratégias do país na construção de um lugar para o Brasil no mundo.

O estudo apresentado aqui indica que focar questões internas (especialmente na economia) e corrigir problemas domésticos são percebidos como os meios mais eficientes para aumentar o status internacional de um país.

Ao buscar destaque em sua atuação internacional, o Brasil deveria dar mais atenção ao que acontece dentro do país, melhorando sua realidade antes de querer se projetar ao mundo.

EUA perderam a América Latina para a China, por Igor Patrick

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Políticos latinos dizem que em Pequim encontram promessas de investimentos; de Washington, voltam com palestras

Igor Patrick, Jornalista, mestre em Estudos da China pela Academia Yenching (Universidade de Pequim) e em Assuntos Globais pela Universidade Tsinghua

Folha de São Paulo, 11/05/2024

Na semana que vem, o Congresso americano vai precisar votar a renovação da concessão de fundos à Corporação Financeira de Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos (DFC, na sigla em inglês), o resultado de uma fusão de várias agências de promoção ao desenvolvimento criado durante o governo de Donald Trump para fazer frente à Iniciativa Cinturão e Rota.
Acompanhei in loco o debate na Câmara e adianto: os argumentos levantados durante a audiência pública sobre o tema deixam claro que os EUA vão perder o trem na competição com a China por influência na América Latina.

Há várias razões para esta conclusão. Para começar, não acho que ninguém minimamente informado acreditou algum dia que a DFC conseguiria fazer frente aos chineses. O fundo que financia as operações da corporação chega a US$ 60 bilhões, contra quase US$ 1 trilhão prometido pelos chineses no lançamento da Cinturão e Rota.

A distribuição do dinheiro também está sujeita a uma série de requisitos, sendo o pior o fato de que ao criar o órgão, congressistas americanos limitaram a maior parte dos recursos a países classificados de pobres pelo Banco Mundial. Essa regra não faz nenhum sentido, e mesmo os coordenadores da DFC admitem isso. Ao ranquear as economias de países ao redor do mundo, o Banco Mundial não leva em consideração questões como variação cambial, poder de paridade de compra e desigualdade. A própria instituição nem sequer usa apenas essa variável na hora de conceder empréstimos.

Consequentemente, países como o Brasil são classificados de “renda média superior”, o que automaticamente nos exclui de receber investimentos substanciais por parte dos americanos. Alguém aí diria que nossa infraestrutura é semelhante à chinesa, outro país posto pelo Banco Mundial sob o mesmo guarda-chuva?

Além disso, o dinheiro que vem de Washington geralmente vem atrelado a uma série de compromissos, como a promoção de reformas políticas e melhora do ambiente de negócios. Não são regras necessariamente ruins, claro, mas atrasam significativamente a aprovação e o recebimento das verbas.

Para um país de tamanho e economia médios, faz pouco sentido esperar anos por um dinheiro que, os chineses, muito mais pragmáticos e desinteressados em interferir na governança doméstica de nações terceiras, conseguem entregar em meses. Políticos latinos também têm por tradição abraçar projetos de infraestrutura que possam mostrar em suas campanhas eleitorais —e o calendário das eleições nem sempre é compatível com o tempo necessário para garantir a sustentabilidade de tais obras.

Por fim, só agora começa a cair a ficha em Washington que a presunção ao tratar a América Latina como seu quintal de influência estava baseada em premissas frágeis. Não me entendam mal, é inegável que os EUA ainda são parceiros essenciais de vários dos nossos vizinhos, mas agora há uma nova opção: a China.

Mesmo assim, não vemos nenhuma movimentação para mudar o panorama. Os EUA estão ocupados demais resolvendo a miríade de disputas políticas internas e agora se veem às voltas com a possibilidade de eleger um candidato abertamente isolacionista.

Não há clima no Congresso para ampliar um auxílio financeiro para atenuar o enorme déficit de infraestrutura na América Latina. O dinheiro disponível está fluindo para o Indo-Pacífico, única região no mundo cuja importância é consenso bipartidário, dada a necessidade de fazer frente aos chineses.

Quando encontro fontes do governo Joe Biden, essas pessoas quase sempre gostam de defender o que vêm fazendo pelos latino-americanos e enunciam de cabeça uma série de projetos na região. É só perguntar sobre o valor empreendido em cada um deles para fazê-los corar e invariavelmente admitir que deveriam estar gastando mais se quiserem competir de verdade com Pequim.

Ao longo dos últimos meses ouvi de dezenas de políticos latinos que, quando viajam à China, voltam para casa com acordos e promessas de investimentos. Dos EUA, voltam com uma palestra sobre o que deveriam estar ou não fazendo. Os cães ladram e o dragão passa.

Universidades como fábricas, por Eleutério F. S. Prado

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Eleutério F. S. Prado

A Terra é Redonda – 10/05/2024
Sob a hegemonia do neoliberalismo, vem ocorrendo uma subjugação franca e brutal de todas as relações sociais às relações de mercado, inclusive as que se dão em uma universidade
Faz-se aqui uma introdução a um pequeno e certeiro artigo de Branko Milanovic [1] que foi publicado no portal Sin permiso em 05 de maio de 2024, com o título acima. Eis o que constata: sob a hegemonia do neoliberalismo, vem ocorrendo uma subjugação franca e brutal de todas as relações sociais às relações de mercado, inclusive as que se dão em uma universidade.

Apresenta-se em sequência, uma tradução do seu escrito que fala do comportamento repressivo das autoridades universitárias diante do levante de grupos de estudantes nos Estados Unidos em favor da causa palestina. Ao fim de sua acusação – ela diz que as universidades estão sendo administradas como fábricas – segue-se um comentário que visa mostrar que esse tipo de “governança” é imanente ao neoliberalismo, ora hegemônico. Veja-se, portanto, de início, o que
ele próprio escreveu em seu blog:

A denúncia de Milanovic

Vi e li sobre muitos casos em que a polícia expulsou estudantes que protestavam das universidades. A polícia vinha ao campus por ordem das autoridades descontentes com os oásis de liberdade criados pelos estudantes. Ela chegava, armada, agredia os estudantes e punha fim ao protesto. A administração universitária se colocava ao lado dos estudantes, invocava “a autonomia da universidade” (isto é, o direito de ficar fora da vigilância policial), ameaçava renunciar ou se demitir. Este era o padrão usual.

O que foi novo, para mim, na atual onda de manifestações pela liberdade de expressão nos Estados Unidos, foi ver que foram os próprios administradores das universidades aqueles que chamaram a polícia para atacar os estudantes. Em pelo menos um caso, em Nova York, a polícia ficou perplexa com o pedido de intervenção e até achou que ela seria contraproducente.

É bem compreensível que essa atitude de autoridades universitária possa ocorrer em países autoritários, onde são nomeadas pelos poderes constituídos para manter a ordem nos campi. Como são, obviamente, funcionários obedientes, elas apoiam a polícia em sua atividade de “limpeza”, embora raramente tenham autoridade para convocá-la.

Mas nos EUA, os administradores universitários não são nomeados por Joe Biden ou pelo Congresso. Por que então atacariam seus próprios alunos? Seriam eles seres malvados que adoram subjugar os mais jovens?

A resposta é não. Eles simplesmente assumiram uma nova missão. Eles não veem mais o seu papel como defensores da liberdade de pensamento, tal como ocorria nas universidades tradicionais.

Eles não estão tentando mais transmitir às gerações mais jovens valores de liberdade, moralidade, compaixão, altruísmo, empatia ou o que mais for considerado desejável.

O seu papel hoje é o de diretores de fábricas que são ainda chamadas de universidades. Essas fábricas têm uma matéria-prima chamada estudantes, a qual é convertida, em intervalos anuais regulares, em novos graduados para os mercados. Portanto, qualquer interrupção nesse processo de produção é como uma interrupção em uma cadeia de suprimentos.

Ela deve ser removida o mais rápido possível para que a produção possa ser retomada. É preciso dar saída aos estudantes graduados, trazer os novos, embolsar o dinheiro, encontrar doadores, obter mais fundos. Se os alunos interferirem nesse processo, eles devem ser disciplinados, se necessário pela força. A polícia deve ser acionada para que a ordem seja restaurada.

Os gestores não estão interessados em valores, mas em demonstração de resultados. O seu trabalho é equivalente ao de um diretor geral no Walmart, Amazon ou Burger King. Para tanto, poderão usar o discurso sobre valores, ou sobre um “ambiente intelectualmente desafiador”, ou mesmo sobre um “debate vibrante” (ou o que quer que seja!), tal como se vê nos discursos promocionais habituais que os altos gestores das empresas produzem hoje ao primeiro sinal de dificuldade.

Não é que ninguém acredite nesses discursos. Mas é preciso pronunciá-los. Trata-se de uma hipocrisia amplamente aceita. A questão é que tal nível de hipocrisia ainda não era totalmente comum nas universidades porque, por razões históricas, elas não eram exatamente vistas como semelhantes às fábricas de salsichas. Eles deveriam produzir pessoas melhores. Mas isso foi esquecido na corrida por renda e dinheiro de doadores. Como tais, as fábricas de salsichas não podem parar e a polícia precisa ser chamada [quando elas iniciam um protesto].

Um comentário crítico

O que é, afinal, o neoliberalismo? Uma boa resposta para essa pergunta é necessária para compreender melhor o fato histórico relatado por Branko Milanovic.

A compreensão do neoliberalismo, ao contrário do que pensa Dardot e Laval, não pode ser encontrada antes em Michel Foucault do que em Karl Marx. Pois, é preciso ver que o primeiro filósofo fornece apenas um modo quase idealista de compreender esse fenômeno sociocultural. A sua característica marcante é que privilegia o discurso (que configura as interações sociais) em detrimento de uma compreensão da práxis (atuação social fundada em determinadas relações sociais de produção).

Veja-se que é por meio de uma análise do discurso como aparato de poder que chegam a uma compreensão desse fenômeno: “o neoliberalismo, antes de ser uma ideologia ou uma política econômica” – dizem eles –, é em primeiro lugar e fundamentalmente uma racionalidade e, como tal, tende a estruturar e organizar não apenas a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos governados”. (Dardot e Laval, 2016, p. 17).

A filosofia da práxis não se concentra em examinar os discursos, pois procura apresentar antes a lógica de reprodução do sistema econômico baseado na relação de capital, as classes que daí se originam, o Estado que procura selar as contradições, assim como as ideologias que tentam bloquear uma boa compreensão dessas contradições e de sua lógica de desenvolvimento, para que o próprio sistema prospere sem contestações radicais. Aqui se examina apenas as ideologias tendo por base os estudos clássicos de Ruy Fausto.

Ora, ideologia não vem a ser pretensão de saber que falsifica a realidade tendo em vista algum interesse, mas uma compreensão do social que se instala e se fixa na aparência dos fenômenos, procurando bloquear uma conscientização sobre a sua essência. Como diz Ruy Fausto, “a ideologia é o bloqueio das significações”. Assim, ela “torna positivo (…) aquilo que é em si mesmo negativo, aquilo que contém negatividade” (Fausto, 1987, p. 299).

Essa compreensão de ideologia, que a vincula à práxis social no modo de produção capitalista, permite entender melhor as três grandes que se impuseram na história do capitalismo, a saber, o liberalismo clássico, o liberalismo social e o neoliberalismo. Pois, elas dão forma a três modos de bloquear o aparecimento da contradição que move o capitalismo, qual seja ela, a contradição entre o capital e o trabalho assalariado. Para compreendê-las é preciso ver que esse modo de produção tem uma aparência, os mercados em que se vendem e se compram mercadorias em regime de competição, e uma essência, a subsunção do trabalho ao capital e, assim, a exploração do trabalho vivo pelo trabalho morto (agenciado como capital) nas fábricas em geral.

Assim, por exemplo, o liberalismo clássico guarda do capitalismo apenas a sua aparência de economia de mercado; desse modo, ele afirma a igualdade e a liberdade dos contratantes que buscam, supostamente, o seu auto-interesse. Contudo, quando se examina criticamente a relação contratual de troca entre o capitalista e o trabalhador, como aparência de uma relação de produção que vincula capital e trabalho, como relação entre o dono dos meios de produção e os possuidores de força de trabalho, vê-se que o capitalismo se eleva sobre a negação da igualdade e da liberdade dos contratantes, sobre a negação do auto-interesse já que ele consiste apenas numa subordinação dos interesses privados ao “interesse” maior da valorização do capital. Ao fixar a aparência da circulação, o liberalismo como ideologia oculta a contradição que mora na produção, para que o sistema possa prosperar.

Na história do capitalismo, o liberalismo clássico foi substituído, primeiro, pelo liberalismo social (que apareceu também como social-democracia) e, depois, pelo neoliberalismo.
O liberalismo com preocupação social – escreveu-se já há quase vinte anos atrás (Prado, 2005) – surge historicamente quando a aparência do modo de produção é desmentida na prática social, quando se torna perigoso para os capitalistas aferrarem-se à mera forma exterior da relação social de produção, quando a conservação do sistema torna-se ameaçada pela radicalidade das lutas sociais e pelas crises econômicas que as tornam ainda mais profundas. Então, a ideologia não pode mais se sustentar apenas na aparência da relação social, qual seja ela, a circulação e concorrência mercantil; ela precisa agora, de certo modo, ter em conta a própria essência dessa relação.

A fórmula que emerge consiste em apresentar a essência, não como contradição, mas como diferença; a contradição é assim reificada como forças sociais em confronto. E essas forças são distintas: uma delas é mais fraca do que a outra; uma delas consome insuficientemente e a outra poupa demais; uma delas não encontra ocupação e a outra não está criando ocupações em número suficiente para que seja mantida a paz social. Nessa perspectiva, afigura-se que cabe ao Estado atuar como poder equilibrador.

Assim, a política econômica keynesiana e a política social-democrática, a partir dos anos 1930, passaram a ocupar um lugar central na condução da política socioeconômica. Não é mais, pois, a identidade, mas a mera diferença, que oculta agora a contradição.

O liberalismo clássico se afigura como uma hipocrisia; ele pressabe da contradição na base do sistema, mas aceita como saber válido apenas aquilo que a dissumula de um modo objetivo; a ordem social lhe parece uma ordem natural; a autorregulação, proporcionada que é pela competição mercantil, lhe parece uma lei objetiva dessa ordem. Como sintetizou Adam Smith por meio do principio da mão invisível: eis que o egoísmo mercantil cria sem qualquer boa intenção “aquela riqueza universal que se estende as camadas mais baixas do povo” (Smith, 1983, p. 45).

O liberalismo social opta pelo reformismo; ele sabe da contradição, mas não a apreende como contradição; admite que mira um sistema social que falha na criação de empregos e que cria diferenças sociais gritantes, mas sustenta que boas políticas econômicas podem atenuar ou mesmo consertar os seus defeitos; a ordem social não é negada como ordem social; ao contrário, é tomada como ordem algo desordenada que falha e que precisa de reparo para que crie riqueza e bem-estar para a sociedade como um todo.

O neoliberalismo, por sua vez, vem a ser um cinismo; ele sabe da contradição, mas a apreende como paraconsistência de um sistema complexo; eis que este resultou de uma evolução espontânea das instituições e que, por isso mesmo, tem de ser aceito como tal. Para ocultar a contradição, não afirma que há igualdade de contratantes ou, alternativamente, que existem diferenças redutíveis entre as diversas posições sociais; afirma, isso sim, que todos estão numa condição similar na luta pela existência e que as diferenças decorrem do caráter lotérico do sistema econômico.

Uns detêm capital em dinheiro e em títulos financeiros, outros são donos de capital industrial ou comercial, outros ainda possuem mais ou menos capital humano. A riqueza é mal repartida, há posições sociais inferiores e superiores etc.? Sim, mas tudo isso deve ser.

Para ele, portanto, a evolução progressiva possível tem de estar submissa à logica discricionária dos mercados em geral; a ordem social é pensada agora como ordem espontânea que deve ser aceita como emergência histórica e, assim, como um imperativo moral; a competição mercantil deve ser acolhida e reverenciada porque se constitui como origem da sociedade atomizada – mera agregação de indivíduos enlaçados objetivamente por normas que se esmeram em proibir apenas os comportamentos desviantes e destruidores dessa ordem. Fora daí, tudo – pelo menos para os mais extremistas – deve ser permitido: venda dos próprios órgãos, venda dos filhos, as fakes news como estratégia de competição política etc.

Como mostra o artigo de Branko Milanovic, o neoliberalismo apregoa e implementa a sociabilidade mercantil; ela precisa se impor em todos os âmbitos sociais, com exceção talvez da família, entendida como ordem paternalista que prepara os indivíduos para os mercados. E o faz de forma mentirosa, autoritária e mesmo totalitária conduzindo de fato a humanidade ao suicídio – num curso trágico em que matar a velha universidade é apenas um detalhe. O capitalismo é hoje apenas um sistema suicidário.

*Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Capitalismo no século XXI: ocaso por meio de eventos catastróficos (CEFA Editorial).

Referência

Dardot, Pierre e Laval, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 17.
Fausto, Ruy. Marx – Lógica e Política. Tomo II. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
Prado, Eleutério F. S. Desmedida do valor – Crítica da pós-grande indústria. São Paulo: Xamã, 2005.
Smith, Adam. A riqueza das nações – investigações sobre sua natureza e suas causas. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

Nota

[1] Economista sérvio-americano. Professor visitante do Centro de Pós-Graduação da City University of New York (CUNY). Foi economista-chefe do Departamento de Pesquisa do Banco Mundial.

Desafio de Lula é resgatar o presidencialismo, por Almir Felitte

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Enquanto não eliminar as amarras legais acionadas desde 2016, presidente ficará refém do Congresso, numa espécie de parlamentarismo não declarado. Porque políticas como o teto de gastos inviabilizam o país, e obrigam a passar o pires todo ano

Almir Felitte, Advogado e estudioso de Políticas de Segurança Pública

OUTRAS PALAVRAS – 01/12/2022

A eleição presidencial de outubro de 2022 era apenas uma das muitas lutas a serem travadas e vencidas por aqueles que sonham em reerguer nosso país após longos anos de crise e destruição.

Para além do insistente golpismo, cada vez mais reduzido, mas também mais armado e violento, o grande desafio que se apresenta à nossa frente é a construção efetiva do Governo Lula e a
realização de seu projeto.

O processo de transição, porém, já tem nos mostrado que os obstáculos neste caminho serão enormes. Neste ponto, todo o debate envolvendo a chamada “PEC da Transição” é central, e devemos estar atentos às possíveis armadilhas que uma aparente vitória pode esconder.

O grande ponto da “PEC da Transição” gira em torno do orçamento do país para o ano que vem deixado pelo governo Bolsonaro. É ponto comum entre o futuro governo Lula, o Congresso e até mesmo a imprensa que ele é simplesmente inviável. Reduzido e amarrado pelo teto de gastos, este legado liberal tornaria impossível a realização das políticas sociais mais básicas, como o próprio Auxílio Brasil.

O novo Governo Lula foi eleito com base na ideia de retomar os investimentos públicos e a expansão do Estado Social no Brasil, com maior participação pública na economia e ampliação de programas sociais. Um programa que reconhece que a austeridade da agenda neoliberal imposta ao país é a grande causa de nossa crise econômica e social. Mas também um programa que só pode ser posto em prática se o orçamento bolsonarista for revisto.

Diante disso, há duas saídas para Lula. A primeira, mais imediata, é a que vemos agora sendo feita por sua equipe de transição: negociar uma PEC com o Congresso que libere “furos” no teto de gastos para que ao menos alguns programas sociais prometidos sejam viáveis. Neste caminho, todo o orçamento do ano fica sujeito às negociações com o Poder Legislativo, que é quem de fato vai decidir o que pode e o que não pode furar a mordaça do teto de gastos.

O problema é que esta saída seria pontual, já que as amarras fiscais seriam mantidas. Dessa forma, até o fim de seu mandato, Lula seria obrigado a sentar com o Congresso todo fim de ano para negociar, novamente, quais gastos poderiam furar o teto. Em outras palavras, o Legislativo teria surrupiado de vez a função presidencial de definir o orçamento público do país, impondo um parlamentarismo forçado e ignorando o programa de governo eleito pelas urnas.

Este cenário, aliás, não seria novidade. Segundo a FGV, entre 2019 e 2022, Bolsonaro conseguiu realizar gastos acima do teto que somaram quase R$ 800 bilhões, boa parte destes conseguidos apenas através da autorização do Congresso.

Como as presidências do Senado e da Câmara estiveram bem alinhadas à agenda econômica de Temer e Bolsonaro, as poucas divergências entre Executivo e Legislativo fizeram com que este parlamentarismo imposto fosse menos aparente nos últimos anos. No novo cenário, onde o programa de governo de Lula é incompatível com a agenda ultraliberal de um Congresso mais radicalizado à direita, talvez este parlamentarismo forçado fique mais visível.

Assim, o povo brasileiro corre o risco de assistir a um verdadeiro golpe eleitoral, no qual o Congresso tornaria inviável, ano após ano, que o programa presidencial vencedor fosse colocado em prática por Lula. Ou, em uma hipótese menos pior, todo fim de ano, os parlamentares cobrariam um preço caro demais para permitir que Lula o realizasse. De uma maneira ou de outra, anualmente, o programa de governo do país seria definido pelo Legislativo.

Por isso, é tão importante debater a segunda saída possível para este entrave, inclusive defendida pelo próprio Lula como promessa de campanha: a revogação do teto de gastos. Nem gastarei mais linhas aqui para falar sobre o suicídio econômico e social que este teto representou para o país nos últimos anos. Os fatos falam por si, e até mesmo liberais insuspeitos já consideram um absurdo que esta política continue.

A questão é que, como podemos enxergar com clareza agora, o teto de gastos não foi uma camisa-de-força apenas para a nossa economia e nosso Estado social. Na verdade, o teto de gastos acabou sendo uma amarra ao próprio sistema político brasileiro, colocando em xeque nosso histórico presidencialismo.

Aliado ao terrorismo econômico da grande imprensa liberal, o teto de gastos representa uma ameaça constante de impeachment a qualquer Presidente que ouse discordar de uma cartilha de austeridade que só beneficia especuladores. Não importa qual programa de governo o povo brasileiro tenha escolhido, o teto de gastos sempre fará com que o orçamento que o sustenta fique sujeito às vontades de um Congresso, sob risco de outro golpe parlamentar. Novamente, um parlamentarismo que nós não escolhemos viver.

A revogação do teto de gastos, desse modo, não seria só uma forma de retomar os investimentos públicos no país e os programas sociais que beneficiam os mais pobres, mas também uma maneira do Brasil retomar o seu próprio sistema presidencialista. Seria, aliás, a única forma de viabilizar o programa de governo lulista eleito pela maioria dos brasileiros.

O grande problema é que esta revogação também deve passar pelo crivo do Congresso. Diante disso, é vital que a equipe de Lula se organize para além das negociações em torno da PEC da Transição. Apesar do ainda grande eleitorado bolsonarista, há um sentimento majoritário na população de que o governo de Jair e as reformas dos últimos anos não trouxeram benefícios e pioraram a vida da população.

Em outras palavras, temos a possibilidade de construir um sentimento geral forte o suficiente para formar uma campanha popular por um “revogaço” de medidas impopulares impostas nos últimos anos, como a Reforma Trabalhista, a Reforma da Previdência e o próprio teto de gastos. Para isso, é mais do que necessário aproveitar o gás dado pela vitória eleitoral e pelo início do novo governo para a esquerda recuperar sua capacidade de mobilização perdida na última década.
Lula não pode nem deve ter medo de chamar o povo para governar com ele. No campo social e econômico, muitas reformas desaprovadas pelo povo foram passadas nos últimos tempos de forma antidemocrática e atropelada. Nessa área, campanhas por plebiscitos e referendos podem ser o impulso necessário para retomar uma capacidade de mobilização que coloque o Congresso em seu devido lugar, force as necessárias revogações e viabilize o programa de governo eleito.

Nesse sentido, recuperar o presidencialismo no Brasil é mais do que confiar toda a esperança de novos tempos para o país apenas nas mãos de Lula. Recuperar o presidencialismo seria, antes de tudo, uma forma de recuperar a própria soberania do povo brasileiro. Esta é uma luta que vai muito além de grupos de engravatados tratando da transição do governo. É uma luta que passa pela reconstrução dos nossos movimentos sociais e populares. Uma luta árdua e exigente, mas que certamente definirá nosso rumo como povo e país nos próximos anos.

Que gastos públicos deveríamos cortar?, por Paulo Kliass

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Fernando Haddad insiste em driblar investimento mínimo em Saúde e Educação. Enquanto isso, paga em juros, aos rentistas, o dobro do orçamento destas duas pastas somadas. Se é para reduzir gastos, poderia começar por essa parasitagem

Paulo Kliass, Doutor em Economia e membro de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.

Outras Palavras – 03/10/2023

O empenho da área econômica do governo em promover a ferro e fogo a política de austeridade fiscal surpreende a todos e todas que não estão muito habituados a acompanhar com certo detalhe e proximidade a evolução do debate e das decisões do Ministério da Fazenda a esse respeito. Na verdade, a postura de Fernando Haddad não tem deixado quase nenhuma diferença com relação aos representantes do financismo quando se trata de recomendações para medidas de orientação da política fiscal.

Essa tendência em atender aos desejos do sistema financeiro começou a tomar forma já no período que transcorreu entre a oficialização da vitória de Lula em outubro do ano passado e a posse em 1º de janeiro. Naquele momento foi gestada a chamada PEC da Transição, que deveria ter tido por objetivo apenas assegurar recursos orçamentários para que o novo governo pudesse começar o exercício de 2023 com dinheiro suficiente para cumprir com algumas de suas principais promessas de campanha. Mas aquele teria sido também o instrumento adequado para estabelecer a revogação da EC 95, dispositivo que abrigava o famigerado teto de gastos. A referida PEC foi promulgada sob a forma da Emenda Constitucional 126/22.

Mas o problema é que Haddad incluiu na medida uma condicionante inesperada para a eliminação de tal instrumento extremo de austeridade. Ao invés de simplesmente revogá-lo, como havia sido prometido por Lula durante a campanha, a política do bom mocismo estabeleceu uma novidade preocupante. A proposta estabelecia que o teto só seria extinto a partir do momento em que o governo eleito encaminhasse ao Congresso Nacional, até o mês de agosto, uma lei complementar que tratasse de um “novo arcabouço fiscal”. A sequência é conhecida de todo mundo. O titular da Fazenda fechou-se em copas, atendendo apenas às demandas e sugestões do presidente do Banco Central e dos demais dirigentes do capital financeiro privado. O prazo de agosto foi encurtado para evitar maiores discussões públicas e críticas ao modelo que foi sendo construído. O governo encaminhou a proposta ao legislativo ainda em abril.

A austeridade segue a todo vapor

A sanção da Lei Complementar nº 200/23 ocorreu em 31 de agosto e o novo arcabouço fiscal passou a substituir as regras muito mais draconianas do teto de gastos. Porém, o artifício retórico de comparar o novo modelo com a desgraceira representada pelo teto de Temer & Meirelles não resiste ao menor debate a respeito do conteúdo da proposta da neo-austeridade. Não é por outra razão que o sistema proposto por Haddad foi logo chamado “carinhosamente” de calabouço fiscal. Afinal, ele mantém as mesmas ideias equivocadas de mirar na busca de superávit primário, de restringir o crescimento de despesas orçamentárias em relação ao crescimento das receitas, de proibir a capitalização de empresa estatais e de não incluir as despesas financeiras no cálculo dos gastos a serem limitados. Enfim, pode-se dizer que se trata de um teto de novo tipo.

Passada a fase de aprovação dos dispositivos da austeridade, agora vem a etapa da implementação de novos ajustes. O alerta que fazíamos desde o início a respeito da compressão que seria provocada pela existência de pisos constitucionais para saúde e educação ganha agora a centralidade no debate. E representantes da área econômica já falam abertamente que o governo deve enviar uma PEC para eliminar a vinculação dos mínimos de ambas as áreas sociais à receita tributária da União. Uma loucura! Imaginemos um governo progressista, com uma proposta desenvolvimentista para o país, fazendo o trabalho sujo que nenhum outro governo de direita ousou ou teve força para implementar. Pior do que isso, foi o Executivo ter enviado uma consulta ao Tribunal de Contas da União (TCU) pedindo autorização à corte de para o descumprimento de determinação constitucional. Ao invés de limitar as atribuições do Tribunal às suas funções de controle, o próprio governo busca, de forma escancaradamente oportunista, uma via para reforçar o austericídio presente na cabeça dos formuladores da área econômica.

A memória curta parece não trazer à tona o doloroso processo de impedimento de Dilma Rousseff, quando esse mesmo TCU criou jurisprudência própria e encomendada para que as tais “pedaladas fiscais” fossem utilizadas de forma ilegal para justificar o afastamento da Chefe do Executivo. A partir do momento que o governo solicita a um órgão de controle autorização para não cumprir a Constituição, abre-se uma avenida de ilegitimidade para decisões posteriores ao arrepio dos princípios democráticos e republicanos.

Cortar nas despesas juros e não em gastos sociais

Mas se o governo insiste mesmo em cortar gastos para atingir o fatídico zeramento do déficit fiscal, talvez fosse o caso de olhar com mais honestidade e transparência para o estado atual das despesas da União. A esse título, vale registrar as informações trazidas pelo Banco Central em sua recente Nota sobre Estatísticas Fiscais. Ali se percebe que o governo federal gastou, apenas durante o mês de agosto passado, o equivalente a R$ 84 bilhões a título de pagamento de juros da dívida pública. Com isso, cai por terra a máscara falaciosa a respeito da necessidade de cortar despesas nas áreas sociais. Se somarmos os valores dos últimos 12 meses, a conta total dos dispêndios com juros sobe a R$ 690 bilhões.

Mas como a malandragem da metodologia das últimas décadas foca apenas nas despesas “primárias”, os gastos financeiros (não primários) ficam de fora dos cálculos. Ora, que os representantes do financismo pensem e ajam de tal forma é até compreensível. Mas não cabe a um governo eleito com um projeto de retomar o desenvolvimento econômico e social do país e de promover a redução de desigualdades de toda ordem incorporar esse tipo de análise distorcida e visada da realidade econômica.

Se vamos cortar mesmo gastos, por que não começar pelas despesas que são inquestionavelmente as mais parasitas do Orçamento e de menor impacto positivo sobre a recuperação da atividade da economia de forma geral? Mas não! A equipe econômica insiste em responsabilizar saúde, educação, previdência, assistência social, saneamento, investimento, salários de servidores e similares como sendo os “vilões” da busca desenfreada de um mítico equilíbrio nas contas públicas no curto prazo a qualquer custo.

O próprio presidente Lula já estabeleceu que, em seu governo, a responsabilidade fiscal não pode ser desassociada da responsabilidade social. Além disso, ele definiu por diversas ocasiões que as rubricas em saúde e em educação, por exemplo, devem ser consideradas como investimento e não como mero gasto corrente. Tais abordagens mudam completamente a forma de se avaliar e solucionar as equações da área fiscal. Apenas a título de comparação, o total de despesas previstas para saúde para o presente ano é de R$ 183 bi e o da educação é de R$ 147 bi. Ou seja, os dois somados não atingem nem a metade do valor dos gastos com juros da dívida.

A intenção é mesmo essa de promover o corte de gastos orçamentários? Então que a tesoura comece pelas despesas financeiras. Como os adeptos do austericídio gostam de dizer, há muita gordurinha para queimar nas rubricas associadas ao pagamento de juros da dívida pública.

Classe média em crise

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Vivemos numa sociedade marcada por grandes incertezas e instabilidades, onde os grupos sociais passam por grandes movimentações estruturais, os grupos dominantes, que controlam os setores econômicos mais pujantes, ganham força e dominam as bases da sociedade, controlam a classe política, ditam as regras e controlam as agendas dos parlamentos e garantem grandes retornos financeiros. Os grupos mais fragilizados financeiramente percebem que as transformações em curso na sociedade contemporânea estão gerando empregos precarizados, com parcos ganhos monetários e financeiros, além de serviços públicos cada vez mais escassos e degradados, levando os indivíduos a condições de sobrevivência marcadas pela exclusão e pela indignidade.

No meio destes grupos sociais encontramos uma classe média cada vez mais atordoada, degradada e precarizada financeiramente, assustada com as movimentações políticas e culturais, pendurada nas dívidas bancárias e impostos escorchantes, sem perspectivas profissionais e marcadas pelos medos e pelas ansiedades crescentes. Neste cenário, essa classe que sempre se destacou pela capacidade intelectual e pela bagagem cultural, exemplo de ascensão social, se entregou para os ganhos imediatos, acolheu o fanatismo das discussões políticas, abraçou o individualismo e a meritocracia, flertou com pensamentos antidemocráticos e perdeu a essência fundamental para a construção de um futuro mais consistente para a sociedade brasileira.

Com a mercantilização da sociedade contemporânea, tudo se transformou e passou a ser visto como uma verdadeira mercadoria, produtos comercializados em todos os mercados, desde que, os indivíduos possam arcar com os custos monetários e financeiros, desta forma, percebemos que os ganhos da classe média vem perdendo rendimentos, levando-a para uma condição secundária e de indignidade, seus proventos foram degradados, seus salários vem perdendo espaço para a inflação e seu status social, anteriormente sempre positivo, perdeu relevância.

Os gastos crescentes da classe média vêm degradando suas condições financeiros e monetárias, o aumento dos gastos educacionais pesam fortemente sobre seu orçamento, os valores dispendidos para manter a saúde crescem muito mais que seus recursos cotidianos, gerando crises constantes, pressões diárias e incertezas. Além disso, os recursos destinados para manter o pagamento dos tributos degradam sua renda mensal, desequilibrando seus fluxos financeiros, levando esse grupo social a se endividarem com bancos e instituições financeiras, entrando numa espiral de juros crescentes, endividamentos contínuos e desequilíbrios emocionais, com impactos generalizados sobre a saúde, o trabalho e o ambiente familiar.

As mudanças no mundo do trabalho estão impactando sobre a classe média, a tecnologia vem reduzindo a mão de obra e exigindo maior qualificação dos trabalhadores, as políticas de austeridades adotadas pelos governos nacionais limitam os recursos públicos, reduzindo os dispêndios das políticas públicas, diminuindo a contratação de trabalhadores, exigindo novas habilidades e gerando novas formas de contratação, mais degradadas e com salários mais achatados e precarizados, desta forma, os sonhos de salários maiores vem se perdendo numa sociedade degradada e imediatista.

O sonho da ascensão social vem se perdendo nas lutas cotidianas, vivemos numa guerra constante e duradoura, as pressões sociais, emocionais e profissionais são violentas e agressivas, as ansiedades crescem de forma acelerada e o sonho de um futuro melhor se esgota todos os dias ao testemunharmos os conflitos e os desequilíbrios do mundo contemporâneo.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Sociologia do Trabalho e Exclusão Social, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário

A rebelião dos manés – derrota provisória? por Laymert Garcia dos Santos

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Laymert Garcia dos Santos – A Terra é Redonda – 06/05/2024
Considerações a partir do livro “8/1 A rebelião dos manés ou Esquerda e direita nos espelhos de Brasília”

1.
Ao que parece, nas últimas semanas, a percepção de alguns integrantes do governo Lula e de parte da esquerda institucional está mudando, em relação à atuação da extrema direita. Como se estivesse caindo a ficha de que o fascismo opera em termos de mobilização permanente e que, portanto, a vitória nas urnas não é garantia de paz social nem de uma neutralização da ameaça.

Muito pelo contrário, o exercício das forças fascistas nas mais diversas frentes – no Congresso, no mercado financeiro, no agronegócio, nas igrejas pentecostais, nas ruas e nos crimes contra os pobres e as mulheres – explicitam que há uma inversão da máxima de Clausewitz: a guerra deixou de ser a continuação da política por outros meios; hoje, o que vigora é que a política é a continuação da guerra.

Aos poucos, então, vai ficando cristalina a necessidade de ter de enfrentar a mobilização fascista com todos os recursos disponíveis. A ideia de que bastaria melhorar as condições de vida do povo através de recuperação de políticas públicas, de crescimento da atividade econômica, de retomada do desenvolvimento, de promoção dos direitos humanos… mostrou sua insuficiência. Passados um ano e cinco meses de governo, a sociedade continua dividida e envenenada, os efeitos das mudanças positivas seguem desapercebidos por parcelas importantes da população (segundo Jean Marc von der Weid, em virtude do alto preço dos alimentos), as agressões e o clima de ódio são estimulados diariamente como dantes, as campanhas de desinformação sistemática se renovam e se intensificam o tempo todo.

Não basta, portanto, procurar melhorar a comunicação do governo, tentar “esclarecer” uma população presa fácil das mais poderosas tecnologias de mobilização permanente, cujos interesses econômicos, políticos e ideológicos estão intimamente interligados. E a própria dificuldade renitente em se regular minimamente as redes sociais para buscar neutralizar o seu caráter tóxico já é indício do tamanho do problema. Seria preciso uma decisão política radical de enfrentamento da mobilização fascista. Mas, aparentemente, não há vontade ou força para tanto.

É nesse contexto que precisa ser apreciado o recente livro de Pedro Fiori Arantes, Fernando Frias e Maria Luíza Meneses, intitulado 8/1 A rebelião dos manés ou Esquerda e direita nos espelhos de Brasília. Muito já se escreveu, e se leu, sobre a escandalosa ocupação da Praça dos Três Poderes, uma semana depois da posse do Presidente Lula. Com certeza ainda há muitas questões no ar. Tenho, porém, a impressão de que os autores foram certeiros ao investigarem a participação dos populares bolsonaristas no episódio golpista do 8 de Janeiro. Porque demonstraram que ela não é nada óbvia, e só uma avaliação simplista a reduz à caricatura, que dificulta o entendimento do real papel desempenhado pelo “gado”.

2.
O livro deixa claro que os manés foram ao mesmo tempo cúmplices e vítimas da prolongada manipulação de massas fascista. Cúmplices porque se engajaram, literalmente, de corpo e alma na tentativa de golpe – nesse sentido, foram protagonistas ativos e, portanto, criminosos, por transgredirem a ordem estabelecida; vítimas porque, abduzidos por uma “realidade paralela”, não tinham o tirocínio político e jurídico da ilegalidade de suas ações, funcionando, assim, como mera bucha de canhão para interesses poderosos, que não eram deles.

Ora, é essa condição ambivalente que se torna objeto de análise. Os manés sabem o que estão fazendo, mas ignoram o caráter perverso do papel que lhes cabe dentro da lógica do golpe, que abarca políticos, empresários, militares, policiais, em suma a extrema-direita organizada – esta teria tudo a ganhar, caso fosse possível emplacar a vitória através do recurso à Garantia da Lei e da Ordem, validando uma interpretação fajuta do art. 142 da Constituição Federal.

Os manés se sentem heróis de uma guerra contra o establishment, acreditam piamente na pantomima canalha de Bolsonaro contra “o sistema”, desejam intensamente uma ruptura constitucional em favor de uma regressão colonial. E nem mesmo seu abandono pelo líder máximo e pelas “forças da ordem” os fará acordar para o fato de terem sido usados e abusados o tempo todo. São pobres coitados fazendo selfie na beira do abismo, imaginando que a batalha estava ganha com a ocupação e depredação consentidas das instalações dos Três Poderes da República.

Para demonstrarem essa condição ao mesmo tempo grotesca e miserável dos manés (que na sequência vão arruinar suas vidas quando o braço de ferro da lei e da ordem se abater sobre elas), os autores recorrem, logo no primeiro capítulo, ao conceito brechtiano de “distanciamento”. Tal recurso se impõe porque, do ponto de vista político e simbólico, historicamente, desde a Revolução Francesa, a tomada de palácios governamentais sempre foi obra de camadas populares insurretas visando à mudança de regime, isto é a revolução.

Mas tanto no ataque ao Capitólio pela massa trumpista quanto no ataque a Brasília pela massa bolsonarista, há uma inversão de sinal – agora são as massas radicalizadas de extrema-direita que praticam o assalto ao centro do poder estabelecido. Tal aberração suscita estranhamento.

Como observam os autores, quem executou o feito não foram os sem-terra, sem-teto, povos indígenas, nem black-blocs, petistas, estudantes ou comunistas; a autoria foi dos autodenominados “patriotas”, “cristãos” e “cidadãos de bem”.

Daí a pergunta: “O que o ataque (…) revela sobre o Brasil contemporâneo? Como expõe a capacidade de pensamento e ação da esquerda e da direita, no sentido de atuar para mudar a história em seu favor/” A resposta será buscada à luz do “distanciamento”. Segundo Bertold Brecht, “distanciar um acontecimento ou um caráter significa antes de tudo retirar do acontecimento ou do caráter aquilo que parece óbvio, o conhecido, o natural, e lançar sobre eles o espanto e a curiosidade”.

Estranhando, os autores distanciam o acontecimento e, na distância, percebem como se deu, no Brasil, a inversão de papéis entre esquerda e direita, a partir das Jornadas de 2013, que selaram uma ruptura entre a esquerda institucional, no poder, e uma nova esquerda, insurgente e anticapitalista. Em seu entender, foi esse desencontro histórico que possibilitou a ascensão da extrema-direita e, com ela, o risco à democracia.

Não cabe aqui nos estendermos sobre os diversos acontecimentos que, desde então, foram aprofundando a tendência desencadeada em 2013. Mas importa notar que a inversão de papéis está na matriz da transformação que torna a direita insurgente, enquanto a esquerda se torna gestora do sistema, da conciliação, da manutenção da ordem e da pacificação.

Assim, o 8 de Janeiro explicita o jogo intrincado e perverso em que surgem os manés, auto-identificados como os perdedores de uma eleição dita fraudada, ou seja manés submetidos à “malandragem” dos ministros do STF, supostamente mancomunados com os “bandidos” do PT. Vale lembrar que o ataque a Brasília pelos “patriotas” em fúria foi convocado como “Levante dos Manés”. Nesse impulso, nesse “espantoso deslizamento semântico entre esquerda e direita”, escreveu Paulo Arantes, a extrema direita, mirando-se no espelho da esquerda, se viu como radical antissistema, adepta da “guerra insurrecional”.

3.
Nos capítulos seguintes, os autores vão pontuando como, de deslizamento em deslizamento, a evolução do processo foi tirando o “fazer a história” das mãos das classes populares e depositando-o nas mãos dos bolsonaristas. Cabe assinalar a influência que Olavo de Carvalho exerceu na dinâmica de apropriação indébita de símbolos, discursos, práticas e armas da luta de classes e povos, e sua conversão em instrumentos do repertório da extrema-direita.

Também vale a pena destacar as apropriações cínicas e debochadas do MBL, bem como a performance patética de Sara Winter e dos “300 do Brasil”, inspiradas em filmes de quinta categoria. Tudo isso, antes da invasão do Capitólio, em 6 de Janeiro de 2021, expressão máxima de levante da extrema direita, que iria se constituir no modelo a ser imitado pelo “Levante dos Manés”.

A insurreição vinha sendo preparada e alimentada desde antes da eleição e da vitória de Lula, conforme ficaríamos sabendo depois, com a revelação dos projetos de golpe de Jair Bolsonaro pela Operação Tempus Veritatis. Preparada e alimentada em duas esferas distintas, mas obviamente com intersecções. Em primeiro lugar, na esfera do poder e do dinheiro, mobilizando Jair Bolsonaro, o clã, assessores, políticos, especialistas em mobilização de redes, militares, pastores e empresários. O que talvez pudesse ser caracterizado como os mandantes do golpe.

Em segundo lugar, na esfera do “gado”, dos manés, da massa de manobra convocada para dar à insurreição o seu caráter “popular”. Ao que as investigações ainda em curso indicam, as duas esferas entrariam em cena em momentos diferentes: primeiro os manés, acampados em frente aos batalhões das Forças Armadas, instaurariam a desordem em Brasília e em outros lugares; na sequência, militares e policiais interviriam, restabelecendo a “ordem” e, com ela, instaurando o golpe fascista.

Ocorre que o golpe falhou, por razões que não estão esclarecidas, pois ainda continua parcialmente nebulosa para a opinião pública a conduta criminosa dos atores envolvidos na esfera do poder e do dinheiro. O segundo momento não aconteceu, a GLO não foi proclamada, as Forças Armadas não se posicionaram, o ex-presidente ficou em silêncio em seu refúgio na Disney…

E os manés, feito patetas, se viram sozinhos dentro de uma armadilha, pois agora seus protetores militares os entregavam à polícia, que os levava para a Papuda e a Colméia, onde posteriormente seriam enquadrados como “terroristas”.

Ora, tal criminalização conta com o apoio entusiasmado da esquerda institucional que, já tendo recalcado sua fração insurgente, agora pode aderir à repressão dos subversivos. Fecha-se assim, sob a aparência de um círculo virtuoso, o círculo vicioso. Pois os espelhos quebrados de Brasília configuram tanto a insurgência da extrema direita quanto a emasculação da esquerda institucional e rebelde; a institucional por não ter força até agora para obrigar os militares a responderem pelo envolvimento institucional das Forças Armadas, que saem ilesas, entregando as “ovelhas negras”, mas buscando manter incólume a sua pretensão de “poder moderador” acima dos Poderes da República; e a esquerda rebelde por não conseguir articular minimamente uma resposta à altura da ameaça, incapaz de sair da inércia.

Assim, a “vitória” da democracia no pós-8 de Janeiro é mais do que relativa. Como se o golpe tivesse sido apenas suspenso, deixando, entretanto, pouco comprometida a máquina infernal que pode voltar a ser acionada num momento mais propício. Daí a pergunta inquietante dos autores, na parte final do livro: Depois de Janeiro, a paz será total? Em seu entender, ela só seria viável se o bolsonarismo for desarticulado na esfera dos mandantes; mas os indícios de que isso acontecerá são muito tênues.

Por outro lado, como está muito bem analisado nos últimos capítulos, a punição exemplar apenas dos manés pode ensejar o que os autores designam como “punitivismo às avessas” – afinal, a pesada criminalização dos “terroristas” pode um dia se voltar contra os verdadeiros contestadores da ordem estabelecida, isto é, aqueles que, à esquerda, querem ir além da defesa da ordem neoliberal injusta e garantidora da reprodução da espantosa desigualdade vigente.

Por isso, na última página do livro, escrevem os autores: “O governo Lula 3 é um tampão contra a ascensão neofacista no Brasil, mas se não lutarmos pela justiça social e por futuros emancipatórios, seguiremos submetidos à pacificação pró-mercado, ao novo punitivismo às avessas e logo abriremos o caminho para que a extrema-direita se reorganize e retome o comando”.

Com efeito, nem bem escreveram estas palavras de advertência, e já se vê no Congresso Nacional, na insolência de certos militares, na desenvoltura dos deputados bolsonaristas, na eterna cruzada neopentecostal, na idolatria de Elon Musk, os sinais de retomada da mobilização permanente…

*Laymert Garcia dos Santos é professor aposentado do departamento de sociologia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Politizar as novas tecnologias (Editora 34).
Referência
Pedro Fiori Arantes, Fernando Frias e Maria Luíza Meneses. 8/1 A rebelião dos manés ou Esquerda e direita nos espelhos de Brasília. São Paulo, Hedra, 2024, 184 págs.

Empresas multinacionais na economia brasileira, por Fernando Nogueira da Costa

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Fernando Nogueira da Costa – A Terra é Redonda – 06/05/2024

No ranking das maiores empresas de tecnologia no Brasil quase todas têm origem estrangeira

A posição total de Investimento Direto no País (IDP) foi de US$ 901,4 bilhões, em 2021, composta por US$ 659,3 bilhões em participação no capital e US$ 242,1 bilhões em operações intercompanhia. Segundo o Relatório de Investimento Direto 2022 do Banco Central do Brasil, em 2021, as empresas residentes atuantes em serviços financeiros, incluindo fundos de investimento, responderam por 20,5% (US$135,1 bilhões) da posição de IDP – Participação no capital (US$ 659,3 bilhões), seguidas por companhias pertencentes ao setor de comércio (8,5%) e extração de petróleo e gás natural (7,6%). Esses dados permitem uma abordagem estruturalista da economia brasileira contemporânea, integrada à economia globalizada, embora distante das cadeias globais de valor do norte rico.

Em direção contrária, pouco menos de um terço (32,4%) do valor investido no exterior por residentes (posição de IDE de US$ 431,9 bilhões) está aplicado em empresas atuantes como veículos para aquisição de ativos financeiros. Em seguida, estão serviços financeiros e atividades auxiliares. Está o Brasil integrado à “financeirização” mundial e/ou demonstra uma fuga de capitais?

Em 2021, permaneceram disseminados os ingressos brutos em IDP – Participação no capital, excluídos lucros reinvestidos, destacando-se os setores de veículos automotores, reboques e carrocerias (9,7% do fluxo bruto), produtos alimentícios (9,5%), comércio exceto veículos (9,4%), agricultura, pecuária e extrativa mineral (9%). Na realidade brasileira, há bastante diversificação, destacando-se ainda serviços de tecnologia da informação (6,85) e serviços financeiros (6,3%).

Quanto às transações brutas de IDP – operações intercompanhia, destacaram-se as empresas com atuação no setor de fabricação de coque, derivados de petróleo e biocombustíveis, e de extração de petróleo e gás natural, tanto nos ingressos quanto nas amortizações. Dedução: o Brasil virou exportador de petróleo!

Isto porque as operações de Pagamento Antecipado de Exportação (PAE), nas quais a empresa residente no Brasil primeiro recebe o pagamento e posteriormente exporta a mercadoria, respondem por parcela significativa das transações IDP – Operações intercompanhia. Em 2021, dos US$ 77,1 bilhões amortizados, US$ 29,2 bilhões (38%) das operações de crédito intercompanhia foram pagos em mercadoria, e não em moeda.

Quanto à lucratividade de IDP – Participação no Capital –, esta variou entre os setores da economia em 2021. Entretanto, todos os setores destacados – metalurgia (23,2% do total), serviços financeiros (9,3%), comércio (7,5%), bebidas (5,7%), extração de petróleo e gás natural (4,6%) – auferiram lucros, inclusive o relacionado à produção e comércio de veículos (8,7%), sem resultados positivos nos sete anos anteriores.

Segundo a Carta ANFAVEA, a produção de todos os autoveículos em 2023 atingiu 2,37 milhões, sendo 481 mil (20%) exportados. Foram licenciados 2,1 milhões deles – e 2,3 milhões se somar os importados. Considerando apenas automóveis de passageiros, esses números foram, respectivamente, 1,825 milhão, 386,4 mil, e 1,577 milhão. Foram licenciados cerca de 165 mil automóveis importados.

Praticamente, todas as marcas internacionais disputam o mercado brasileiro: Audi, BMW, Mini, Caoa (Hyundai e Chery), Subaru, FCA (Chrysler, Dodge, Fiat, Jeep), Ford, General Motors, Honda, Mitsubishi, Suzuki, Jaguar, Land Rover, Mercedes-Benz, Nissan, Peugeot, Citroën, Renault, Toyota, Lexus, Volkswagen. Essas empresas estrangeiras, atuantes na indústria automobilística do Brasil, contribuem para a economia do país ao gerar cerca de 100 mil empregos e impulsionar a produção e as vendas de veículos no mercado doméstico e de exportação.

No Brasil, ao longo das últimas décadas de abertura externa, houve processos de desnacionalização em diversos setores de atividades econômicas, nos quais empresas estrangeiras adquiriram participação significativa ou controle de empresas anteriormente brasileiras, inclusive por privatizações. Alguns exemplos:

(i) Setor de Telecomunicações: empresas estrangeiras, como Telefónica (Espanha) e Telecom Italia (Itália), adquiriram participações em operadoras de telefonia fixa e móvel no Brasil. (ii) Setor de Energia: empresas estrangeiras, incluindo Shell (Países Baixos/Reino Unido) e BP (Reino Unido), têm participação em diversas etapas da cadeia de valor do setor de energia, incluindo exploração e produção de petróleo e gás. (iii) Setor Bancário: bancos estrangeiros, como Santander (Espanha) e HSBC (Reino Unido), adquiriram bancos brasileiros, mas o segundo desistiu.
(iv) Setor de Alimentos e Bebidas: multinacionais como Nestlé (Suíça), Unilever (Países Baixos/Reino Unido) e Coca-Cola (EUA) têm operações no Brasil com produção e distribuição de alimentos, bebidas e produtos de consumo. (v) Setor de Mineração: a Vale (ex-Vale do Rio Doce) se desnacionalizou, levando junto a indústria de mineração do Brasil, com atividades em minério de ferro, níquel, cobre e outros minerais. (vii) Setor de Aviação: companhias aéreas estrangeiras, como American Airlines (EUA), Delta Air Lines (EUA) e Lufthansa (Alemanha), dominam o mercado de aviação brasileiro de voos internacionais, nos locais há Azul, Gol, Latam.

Esses são apenas alguns exemplos dos setores nos quais houve processos de desnacionalização na economia brasileira, com empresas estrangeiras assumindo papel dominante. Essas aquisições e investimentos estrangeiros trazem benefícios, como acesso a novas tecnologias e mercados, mas também colocam em risco a soberania econômica e a concorrência no mercado local.

É interessante destacar: também entre as maiores exportadoras do agronegócio brasileiro, estão empresas estrangeiras. A Cargill, uma das maiores empresas de agronegócio do mundo, com origem nos Estados Unidos, atua no Brasil, no setor de grãos, como soja e milho, além de outras commodities agrícolas.

A Bunge é outra gigante do agronegócio com origem nos Estados Unidos. No Brasil, atua em produção, processamento e comercialização de grãos, óleos vegetais e produtos agrícolas. A ADM (Archer Daniels Midland) é a empresa americana líder global em processamento de grãos e produtos agrícolas. No Brasil, explora a produção e exportação de soja, milho e outros produtos agrícolas.

A Louis Dreyfus Company é uma das maiores empresas de commodities agrícolas do mundo, com sede na Holanda. No Brasil, atua na comercialização e exportação de grãos, óleos vegetais e açúcar.

Entre as empresas multinacionais atuantes na economia brasileira, destaca-se, por exemplo, a Nestlé, uma das maiores empresas de alimentos e bebidas do mundo, aqui com operações em alimentos processados, lácteos, café, chocolates e bebidas. Outra dominante é a Unilever, com presença no Brasil em categorias como alimentos, cuidados pessoais e produtos de limpeza.

Está presente também a Shell, uma das maiores empresas de energia do mundo, com atuação em segmentos como exploração e produção de petróleo e gás, refino e comercialização de produtos petrolíferos. Compete com a Petrobras, a maior empresa de energia do Brasil e uma das maiores do mundo no setor de petróleo e gás, envolvida em todas as etapas da cadeia produtiva, desde a exploração e produção até a distribuição de combustíveis.

A indústria farmacêutica no Brasil não é totalmente desnacionalizada. Mas a presença de empresas multinacionais é dominante no mercado farmacêutico brasileiro, tanto em termos de produção local quanto de importação de medicamentos. Essas empresas trazem tecnologia avançada, expertise em pesquisa e desenvolvimento, e acesso à variedade de produtos farmacêuticos.

Como exportadoras de commodities, além das agrícolas, destacam-se a Petrobras (petróleo e gás) e a Vale (mineração). São multinacionais de origem brasileira, assim como é a Ambev com presença global por meio de várias marcas de bebidas.

Os big five bancos – Itaú, Bradesco, BTG e Banco do Brasil – resistem à desnacionalização. Entre eles, estrangeiro só é o Santander. A Caixa não é uma sociedade aberta, porque 100% de suas ações pertencem ao Tesouro Nacional.

A economia brasileira é muito concentrada em “empresas de valor” e tem poucas empresas de tecnologia locais. Algumas tech companies abriram seu capital, mas elas ainda são relativamente pequenas, com a exceção da WEG, produtora de diversos tipos de produtos industrializados, para clientes de todo o mundo, como motores, tintas e vernizes, entre outros. Fundada em 1961 em Santa Catarina, a WEG é uma das maiores empresas de capital aberto do Brasil, com presença em mais de 135 países.

No ranking das maiores empresas de tecnologia no Brasil quase todas têm origem estrangeira. No mercado de telefonia, há o duopólio da Vivo e da Claro. Na produção de hardware e software empresarial, destacam-se a IBM Brasil, a HP Brasil e a Oracle Brasil. No varejo eletrônico, dominam a Amazon e o Mercado Livre.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP)

Taxação de bilionários não é mais de direita ou esquerda, diz Nobel de Economia

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Esther Duflo vê amplo apoio popular à criação de imposto sobre super-ricos para enfrentar crise climática e pobreza

André Fontenelle, Jornalista baseado em Paris

Folha de São Paulo – 13/04/2024

[RESUMO] Em entrevista à Folha, economista francesa afirma que a cobrança de imposto sobre a fortuna de super-ricos e o aumento da tributação de multinacionais foram incorporados ao espírito do tempo e podem gerar, em todo o mundo, US$ 500 bilhões ao ano para financiar medidas de mitigação de impactos da crise climática sobre populações e países pobres.

Na próxima quarta-feira (17), os ministros da Fazenda dos países do G20 reunidos em Washington ouvirão uma proposta que alguns anos atrás seria inimaginável em um fórum do gênero: usar um imposto sobre os bilionários para lutar contra a pobreza e as consequências da crise climática.

A autora da proposta, Esther Duflo, 51, vencedora doNobel de Economia de 2019, falará como convidada do governo brasileiro, atualmente na presidência rotativa do G 20. Segundo a economista francesa, chegou a hora para articular as duas questões, pobreza e aquecimento global.

Propostas de taxação dos super-ricos vêm ganhando aliados nos últimos anos. Em fevereiro, Fernando Haddad encampou uma dessas propostas, de outro economista francês, Gabriel Zucman, colega de Duflo na Escola de Economia de Paris e especialista em paraísos fiscais.

Segundo Duflo, cobrar 2% sobre a fortuna dos super-ricos e aumentar a tributação das multinacionais arrecadaria US$ 500 bilhões de dólares por ano, que poderiam ser aplicados em favor dos mais pobres do planeta, maiores vítimas da emergência climática. Parte do dinheiro seria diretamente injetado em contas digitais dessas pessoas, parte seria usada como resseguro para os governos obrigados a arcar com os custos das catástrofes e o restante seria investido na adaptação ao calor extremo nas regiões mais afetadas.

A pesquisadora afirma buscar “influenciar o mundo real”: é uma das fundadoras do J-PAL(Laboratório de Ação contra a Pobreza Abdul Latif Jameel) —rede mundial de pesquisa que tem uma representação no Brasil, no Insper, em São Paulo— e lançou na França no ano passado uma série de livros infantis com histórias para conscientizar as crianças dos problemas da miséria.

Em entrevista por videochamada, Duflo antecipou à Folha a proposta que vai apresentar em Washington.

Na última reunião preparatória do G20, em São Paulo em fevereiro, Fernando Haddad mencionou uma proposta de imposto sobre super-ricos. Essa proposta é igual à sua? Não é a mesma, mas eu a conheço muito bem e a apoio. Gabriel Zucman, que está muito envolvido com ela, é meu vizinho de sala em Paris. A minha é, digamos, complementar, porque trata da necessidade de financiamento para adaptação e compensação pelos danos climáticos para as pessoas mais pobres do planeta. O imposto recomendado pelo ministro Haddad em fevereiro é uma dessas fontes.

A sra. dá muita ênfase à viabilidade dessas propostas. Por quê? Não basta mais apresentar argumentos teóricos e morais, do tipo “é só fazer isso”. Temos que ser mais pragmáticos, porque a mudança climática já chegou. As temperaturas já aumentaram. Os últimos 12 meses foram os mais quentes já registrados. Os danos já estão acontecendo, principalmente nos países mais pobres, que não têm condições de se proteger.

Precisamos agir hoje. Até agora, temos demonstrado uma total incapacidade de lidar com esse problema. Não basta fazer declarações ou criar um fundo sem investir dinheiro algum nele.

Nunca se falou tanto em um imposto sobre os super-ricos. Ele está no espírito do tempo? Sim, e o Brasil fez muito para colocá-lo no espírito do tempo. Antes de fevereiro, estava menos que agora. O fato de ter sido encampado pela presidência brasileira do G20 faz uma grande diferença, mas há outros fatores que tornam esse imposto possível.

Por um lado, o aumento da desigualdade e, em especial, das enormes fortunas. Por outro, a constatação de que essas grandes fortunas não pagam Imposto de Renda. Não se trata de tirar a fortuna deles, mas obrigá-los a pagar impostos como os que nós pagamos sobre nossos salários.

O retorno mínimo na Bolsa, para quem é muito rico, é de 5%. Hoje, essa renda não é tributada. Tributar o patrimônio em 2% equivale a tributar cerca de 40% da renda, o que equivale à alíquota superior do Imposto de Renda na maioria dos países. Isso mostra que é possível chegar a um entendimento internacional. Chegou o momento de introduzir o imposto sobre bilionários.

O imposto sobre empresas já está sendo implantado. Ao aumentar um pouco esse imposto ou usar o todo ou parte do imposto sobre os super-ricos, poderíamos financiar até US$ 500 bilhões por ano para os mais pobres do mundo.

A sra. foi convidada a Washington pelo governo brasileiro. Não teme que sua proposta fique associada a um grupo político? Não creio. Foi o G20 que me convidou, como parte da presidência rotativa brasileira, que tem foco na pobreza e na mudança climática. É normal que esse foco reflita a política de Lula, enquanto o G20 geralmente lida mais com os problemas dos países industrializados. A França apoiou imediatamente a proposta, com um governo que não é de esquerda.

Além disso, quando analisamos as pesquisas, o apoio é muito forte. Taxar grandes empresas ou bilionários para ajudar os países pobres a lidar com as mudanças climáticas tem mais de 80% de popularidade. Vai além de direita ou esquerda. É senso comum.

Elon Musk e o STF entraram em conflito sobre a liberdade de expressão. Isso não mostra que haverá resistência dos bilionários a propostas como a sua? É possível. Por outro lado, estamos falando em 2% de suas fortunas. Mesmo que eles não façam nada com essas fortunas —e geralmente fazem—, elas rendem mais de 5% ao ano. Concordar em serem tributados nesse nível totalmente razoável não seria um investimento no tecido social por parte dos bilionários?

Eles podem alegar que já fazem filantropia. Deixaria de ser filantropia, porque seria um imposto: logo, eles não teriam controle. Porém, ainda que seja puramente estratégico, pode ser do interesse deles: “Estamos pagando nossa contribuição razoável para as sociedades em que vivemos”.

Não sei se Elon Musk entenderia isso, mas outros talvez se deem conta de que é um preço pequeno, comparado ao que poderia aguardá-los se houvesse uma revolta popular e populista que saísse do controle. Um bilionário razoável deveria ser a favor.

Como o dinheiro seria aplicado? Podemos dividir as propostas em três “cestos”: primeiro, as individuais. Quando as pessoas recebem dinheiro, podem se mudar temporariamente se houver uma enchente ou muito calor, podem se proteger e seus animais ou não trabalhar por algum tempo se estiver muito quente. Durante a pandemia, vimos que muitos países sabem fazer isso. Qualquer pessoa pode ter uma conta no celular, diretamente conectada a um grande “pipeline” de dinheiro.

Há quem diga: “Mas tem corrupção, o dinheiro não vai chegar”. Não. Hoje, há pesquisas demonstrando que as pessoas que recebem dinheiro o utilizam muito bem. Por isso, é a parte mais importante da proposta.

Depois, as propostas nacionais: quando ocorre um grande desastre climático, os governos são sempre os seguradores de última instância. Portanto, um resseguro para os governos.
Por fim, a adaptação, que pode ser em nível comunitário ou regional, às consequências das mudanças climáticas. No Brasil, há uma tradição muito forte de descentralização, que pode servir de exemplo.

O que a sra. responde a quem diz que as estimativas não estão corretas e que isso não vai acontecer? Não dá para dizer que não vai acontecer porque já está acontecendo. Nos países pobres, já é uma realidade. Basta ver as enchentes do ano passado no Paquistão, a seca intensa no norte da Índia. Tenho certeza de que você pode pensar em exemplos no Brasil. O Níger e todo o Sahel se tornaram áreas onde nada mais pode ser cultivado. Não se trata mais de uma questão do futuro: é uma questão do presente.

Não seria melhor enfrentar a própria existência de bilionários em vez de tributá-los? Estaríamos saindo do meu campo pragmático, para entrar, por exemplo, na proposta de Thomas Piketty de tributar a riqueza em um nível muito mais alto para garantir que não haja bilionários —ou

[tributar] as heranças. São propostas interessantes, mas não estão na mesa no momento. Minha pergunta é concreta: o que podemos fazer hoje?

A partir do momento em que sua proposta for apresentada, quantos anos acha que seriam necessários para colocá-la em prática? Não faço ideia. Não sou muito familiarizada com negociações internacionais. No entanto, se pegarmos o exemplo da tributação de multinacionais, ela demorou uns dez anos até ser feita. Que seja em dez, mas acho que acontecerá e espero que aconteça.

O que a sra. pensa sobre o papel do intelectual na sociedade? Escolhi a economia quando me dei conta de que o economista pode ter uma influência no mundo real. Na maior parte do meu trabalho com o J-PAL, há uma relação clara da intelectual a serviço da política. Os políticos têm ideias, e nós estamos aqui para ajudá-los a encontrar maneiras eficazes de atingir seus objetivos.

Essa proposta é uma postura um pouco diferente da que tive durante toda a minha carreira acadêmica, porque se trata de uma proposta política, não apenas técnica. Pode ser criticada ou melhorada. Ao apresentá-la, me torno uma espécie de porta-voz da ciência atual.

Por que a sra. escreveu uma série de livros infantis sobre a pobreza? As leituras da infância são marcantes. O que vemos nos impressiona, nos choca e nos desafia. Foi essa a minha experiência.

Outro motivo é a literatura atual sobre pobreza e questões ambientais não ser das melhores. Tende a ser extremamente didática ou caricatural. Queria mostrar a riqueza da vida das pessoas pobres. Conscientizar as crianças dos problemas da pobreza e das soluções —porque todos os meus livros oferecem soluções—, só que sutilmente.

Em conferência recente, a sra. falou de um “efeito Bolsonaro” e um “efeito Lula” em relação ao desmatamento. A esquerda se preocupa com o meio ambiente mais que a direita? A política conta. Isso está demonstrado. Uma decisão política afeta outras decisões.

Quanto a Bolsonaro vs. Lula, são duas personalidades específicas. Não acho que Bolsonaro seja representativo da direita, assim como Lula não é necessariamente representativo da esquerda. É verdade que, se observarmos as propostas, os governos de direita tendem em geral a não defender tanto a ecologia quanto os de esquerda. Mas isso não basta para dizer que a direita é menos ecológica que a esquerda.

A sra. parece cética em relação a abordagens baseadas em compromissos voluntários para cumprir as metas de emissões por país. Está pessimista em relação à COP em Belém? Discutem-se muito os termos dos comunicados finais, e, na diplomacia, muitas vezes, o comunicado é a ação. Não sei o que teria acontecido sem as COPs, mas o esforço tem sido muito lento em comparação com a dimensão da necessidade.

Em relação à compensação para os países pobres, está nítido para mim que não é suficiente e que deveríamos fazer melhor e imediatamente. Mas não há só o imposto sobre o carbono. Há também, em tese, a possibilidade de um sistema de cotas por país. Esse era o princípio [do Protocolo] de Kyoto, que não deu certo.

A solução mais justa parecem ser cotas com base na população de cada país. Se conseguíssemos isso, minha proposta não seria mais necessária, porque haveria uma transferência absolutamente maciça para os países mais pobres. Só que não parece estar em pauta.

A sra. lamenta isso? Lamento, mas é preciso encarar o mundo como ele é. Não sou ingênua. Todo o meu trabalho sempre foi fazer o melhor dentro das restrições políticas. O que não quer dizer que não se deva sonhar com sistemas melhores. Tem gente que pode e deve fazer isso, mas meu trabalho sempre foi mais reformista: como fazer o melhor dentro do sistema muito imperfeito existente.

Recentemente, uma reforma tributária foi aprovada no Brasil para simplificar um sistema considerado muito complexo. Esse tipo de reforma pode desempenhar um papel na redução da pobreza? Não estudei [a reforma brasileira], mas ter um sistema mais legível, que unifique diferentes impostos e possibilite calcular a verdadeira extensão da redistribuição, possibilita um debate sobre as questões reais. Na França, temos um Imposto de Renda progressivo, mas também temos um monte de impostos “flat”, o que pode tornar seu caráter redistributivo obscuro.

Qual mensagem a sra. deseja transmitir em Washington? Para mim, é fundamental apresentar essa proposta diante dos ministros das Finanças para obter uma reação e forçá-los a dizer sim ou não e por quê. Isso coloca a proposta oficialmente no debate público. Espero que desemboque em uma declaração do G20 neste ano, que seria um passo importante para a concretização da proposta.

Minha mensagem mais importante será: “Vocês representam os países responsáveis pelas mudanças climáticas, que já estão ocorrendo e causando a perda de vidas nos países pobres. Até que encontrem uma maneira mais eficaz de combater as mudanças climáticas, vocês precisam encontrar

uma forma de compensar as pessoas mais pobres por meio de mecanismos sustentáveis, porque os voluntários não deram certo. Estou ciente da pressão fiscal sobre seus orçamentos, mas existem duas fontes de financiamento justas, realistas, populares, que nos permitiriam arrecadar US$ 500 bilhões de dólares por ano para proteger vidas”.

ESTHER DUFLO, 51
Presidente da Escola de Economia de Paris e professora do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), é cofundadora do J-PAL (Laboratório de Ação contra a Pobreza Abdul Latif Jameel) e vencedora do Prêmio Nobel de Economia de 2019, com Abhijit Banerjee e Michael Kremer. Autora, com Banerjee, de “Good Economics for Hard Times” e “Poor Economics: a Radical Rethinking of the Way to Fight Global Poverty”, entre outros livros.

O mundo sem esperança, por Leonardo Boff

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Leonardo Boff – A Terra é Redonda – 05/05/2024

Estamos assistindo nos dias atuais a um preocupante recuo nas bases populares e em vários movimentos sociais, em particular, de cariz político, do engajamento por uma transformação da sociedade, seja a nível nacional, seja a nível mundial. Importa reconhecer que vigora pesado sentimento de impotência e também de melancolia. À parte desta constatação, estamos igualmente assistindo nos países centrais (EUA e Europa) a juventude universitária se rebelando contra a desproporcional, indiscriminada e genocida reação do Estado de Israel contra a população da Faixa de Gaza como resposta ao ato terrorista do Hamas a 7 de outubro do ano passado.

O establishment político, dominante no mundo, a partir do Norte Global, reage com violência inusitada contra os manifestantes. Na Alemanha qualquer manifestação pro Palestina da Faixa de Gaza é oficialmente proibida e logo reprimida ao menor sinal de apoio à causa palestina e contra genocídio que lá está ocorrendo. Nos EUA a repressão policial ganha expressões violentas contra estudantes e professores universitários, até contra uma candidata à presidência do país.

Entre nós no Brasil e em geral na América Latina se nota marasmo e ausência de manifestações públicas, sequer contra o genocídio, em especial de 14 mil criancinhas e a morte de cerca 80 mil cidadãos sob os pesados bombardeios israelenses, usando de forma criminosa a Inteligência Artificial (IA) para assassinar determinadas pessoas e sua inteira família, dentro de suas próprias casas.

Precisamos tentar entender o porquê essa inércia. Aduzo alguns pontos que nos permitem vislumbrar algum entendimento da atual situação, seja concernente à Ucrânia sendo arrasada pela brutalidade russa e seja ao massacre e ao genocído na Faixa de Gaza.

2.
Vigora em grande parte da sociedade, em particular no Sul Global, mas não excluindo porções no Norte Global, um forte sentimento de impotência. Em primeiro lugar, objetivamente, o sistema capitalista em sua expressão mais exacerbada do neoliberalismo da escola de Viena/Chicago se impôs no mundo todo. Quem resiste sofre repressões políticas, ideológicas e eventualmente golpes de estado como foi o caso do impeachment da Dilma Russeff. Procura-se impor o que Carl Polanyi já em 1944 chamou de A grande transformação: passar de uma sociedade com mercado para uma sociedade de puro mercado. Vale dizer, tudo vira mercadoria, a vida humana, órgãos, sementes, água, alimentos, tudo e tudo é posto no mercado e ganha seu preço. Isso já fora previsto em 1847 por Marx em A miséria da filosofia.

Esse fato objetivo gera uma reação subjetiva: começa-se ver o mundo sem esperança, de que não há alternativa viável à essa enormidade mundializada. Ela se exprime pela TINA (There is no Alternative): “Não há outra Alternativa”. O efeito é um sentimento de impotência e de desencanto recalcado. Daí se deriva uma atitude derrotista de que não vale a pena ir contra o sistema, por ser grande demais e nós pequenos demais.

Obrigam-se a fazer concessões para sobreviver num mundo profundamente desigual e injusto, produtor de melancolia. Esta irrompe quando não se percebe nenhuma luz no fim do túnel. Então, por que se engajar por algo alternativo que não tem chance de triunfar? Este tipo de mundo não tem jeito mesmo, pensam não poucos. Devemos nos adaptar a ele para sofrer o menos possível.

Um segundo ponto é a estratégia perversa elaborada pelo sistema dominante: criar uma cultura do consumo. Oferecer o maior número de objetos desejáveis, mesmo que mais de 90% sejam totalmente fúteis e desnecessários. Trata-se de manipular uma das forças mais poderosas da psiqué humana: o desejo, cuja natureza já vista por Aristóteles e confirmada por Freud é a de ser ilimitada.

Já foi dito por notáveis psicólogos (exemplo: Mary Gomes e Allen Kenner) que “este é o maior projeto psicológico jamais produzido pela espécie humana”: impedir que os cidadãos deixem de se considerar cidadãos para se transformarem em simples consumidores e consumidores viciados no consumo.

Para seduzi-los, gastam-se trilhões de dólares em propaganda pela mídia de massa e com todos os recursos possíveis da sedução. Isto representa seis vezes mais investimento anual necessário para garantir alimentação, saúde, água e educação de qualidade para toda a humanidade. É difícil imaginar perversidade maior. Mas ela é predominante no modo de vida geral da humanidade que daí emergiu.

A impotência e a melancolia internalizadas fazem com que a maioria das pessoas, lastimavelmente, dos jovens, não se animem a engajar-se social e politicamente em algum movimento ou projeto de transformação. A educação em instituições formais é decisiva para a socialização desta leitura da realidade. Vandana Shiva, grande cientista e ecologista-feminista da Índia a chama de “monocultura das mentes”. Essa monocultura gera nos estudantes a convicção de que este mundo é bom e desejável, consciências ingênuas que não se dão conta de que são cooptados pelo sistema imperante e feitos seus reprodutores.

3.
Contra tudo isso Paulo Freire lançou seu projeto educativo e libertador, a começar com a Pedagogia do oprimido, Educação como prática da liberdade e concluindo com a Educação com amor e esperança. Cunhou a expressão “esperançar”: não cruzar os braços (esperar que as coisas por si mudem), mas criar as condições para que a esperança alcance seus objetivos transformadores.

Como se libertar da consciência ingênua manipulada? Não basta apenas o processo de conscientização, pois entender criticamente o que acontece, não quer dizer mudar o que acontece.

Temos que passar a uma prática alternativa, enfrentar o sistema dominante com um paradigma de sociedade diferente, igualitária, não consumista, mas solidária com um modo de produção fundado nos ritmos da natureza (agroeologia e economia circular) e outro tipo de democracia ecológico-social, de baixo para cima, na qual se reconheçam os direitos da natureza e da Mãe Terra, criando o Todo, a humanidade e a natureza incluídas na grande Casa Comum, a Mãe Terra.

*Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de A busca da justa medida: como equilibrar o planeta Terra (Vozes Nobilis).

Sociologia do Brasil, por Erik Chiconelli Gomes

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Erik Chiconelli Gomes – A Terra é Redonda – 05/05/2024

Comentário sobre o livro recém-lançado de Alysson Leandro Mascaro

Em Sociologia do Brasil, Alysson Leandro Mascaro nos apresenta uma análise crítica e renovadora das linhas de pensamento sociológico no país, enfatizando a importância e aplicabilidade do marxismo na compreensão de suas dinâmicas sociais, jurídicas e econômicas.

Este comentário visa explorar as principais contribuições da obra, destacando a maneira como Alysson Leandro Mascaro desafia interpretações tradicionais e propondo uma reavaliação das metodologias utilizadas no estudo da sociologia brasileira.

Alysson Leandro Mascaro inicia sua discussão delineando três principais caminhos de pensamento social que têm guiado a interpretação das questões sociais e jurídicas no Brasil: o juspositivista, o não juspositivista e o marxismo. Cada caminho é explorado não apenas em termos de suas contribuições, mas também de suas limitações, oferecendo um panorama crítico de como a sociologia brasileira tem moldado, e por vezes limitado, a compreensão da realidade social.

O primeiro caminho, o juspositivista, é criticado por sua abordagem de abordagem legal e formalista. Alysson Leandro Mascaro argumenta que essa perspectiva falha em capturar as nuances sociais e econômicas que influenciam a legislação e sua aplicação, conduzindo muitas vezes a interpretações que perpetuam desigualdades. A crítica não se limita a apontar falhas, mas também sublinha o perigo de uma visão descontextualizada do direito, que se desconecta das condições vivenciais da população.

Contrapondo-se, o segundo caminho, o não juspositivista, tenta incluir aspectos sociais e culturais na análise do direito, porém, como aponta Mascaro, frequentemente falha em integrar uma crítica econômica robusta, essencial para compreender as estruturas de poder que permeiam a sociedade. Esta abordagem, embora mais abrangente que a juspositivista, ainda é vista como insuficiente para uma análise profunda das complexidades sociais.

O marxismo é apresentado como uma alternativa crítica e enriquecedora. Alysson Leandro Mascaro defende que esta abordagem oferece as ferramentas possíveis para uma análise mais completa e integrada, abrangendo a interação entre economia, sociedade e direito. O autor destaca trabalhos de teóricos marxistas brasileiros como Caio Prado Jr., Ruy Mauro Marini e Florestan Fernandes, que obtiveram contribuições importantes sobre a realidade brasileira, demonstrando como as lutas de classe e as estruturas econômicas moldam o panorama social e jurídico.

Ao contrastar as limitações dos caminhos juspositivistas e não juspositivistas, Alysson Leandro Mascaro enfatiza como essas abordagens frequentemente não conseguem abordar integralmente as forças econômicas e as estruturas de poder subjacentes. O marxismo, em contrapartida, é apresentado como uma abordagem robusta que integra dimensões econômicas, sociais e jurídicas, permitindo uma compreensão mais abrangente e crítica da realidade brasileira.

A estruturação de Sociologia do Brasil é meticulosa e reflete um esforço do autor para abarcar a complexidade das interpretações sociológicas sobre o Brasil, passando-se de uma revisão histórica até análises contemporâneas.

Alysson Leandro Mascaro organiza o livro em grandes blocos temáticos que permitem ao leitor entender não apenas as diversas correntes de pensamento, mas também como essas correntes interpretam a formação social, econômica e política do Brasil ao longo do tempo, oferecendo, assim, ao leitor, uma contribuição pedagógica de seu pensamento.

Três caminhos do pensamento social brasileiro

Este capítulo estabelece uma base teórica para o livro, dividindo o pensamento social brasileiro em três grandes caminhos: a historicidade do pensamento social, o pensamento social contemporâneo e a sociologia do Brasil.

Essa divisão sugere uma análise crítica da evolução intelectual no país, destacando como diferentes períodos históricos e contextos sociais influenciaram as teorias sociológicas. Mascaro, aqui, discute as limitações e contribuições de cada corrente, enfatizando como o marxismo oferece uma lente crítica essencial para compreender as dinâmicas subjacentes que outros modelos podem ignorar.

As interpretações do Brasil pioneiras

Neste segmento, passa em revista das primeiras interpretações sociológicas do Brasil, que incluem tanto o trabalho de teóricos de destaque na ocupação política direta quanto o de alguns intelectuais que começaram a pensar o Brasil sob uma ótica mais acadêmica e sistemática. Ao detalhar “Os liberalismos pioneiros” e “Os não liberalismos pioneiros”, Alysson Leandro Mascaro aponta para uma análise crítica da formação do pensamento liberal no Brasil e suas alternativas, sublinhando como essas teorias moldaram ou falharam em moldar a compreensão das estruturas sociais e políticas brasileiros.

As interpretações do Brasil liberais

Focando em figuras como Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro, este capítulo examina como o liberalismo influenciou a interpretação da sociedade brasileira. A crítica gira em torno dessas abordagens, que embora inovadoras, possivelmente não capturaram completamente as complexidades das relações de poder e de classe, especialmente em um país marcado por profundas desigualdades sociais e raciais.

As interpretações do Brasil não liberais

Analisando autores como Gilberto Freyre, Guerreiro Ramos e Darcy Ribeiro, Alysson Leandro Mascaro discute como essas interpretações desafiaram as visões liberais, introduzindo novas dimensões na compreensão da sociedade brasileira, como a racial e a cultural. A crítica se concentra em como, apesar de seus avanços, essas teorias também possuem limitações, particularmente em termos de uma análise de classe profunda e de como as estruturas econômicas moldam as relações sociais.

As interpretações do Brasil críticas

Neste tópico, Alysson Mascaro mergulha nas contribuições de pensadores marxistas fundamentais, como Caio Prado Jr., Ruy Mauro Marini e Florestan Fernandes, para revelar uma crítica incisiva às interpretações sociológicas tradicionais do Brasil. Com um foco especial em Ruy Mauro Marini, muitas vezes negligenciado tanto pela sociologia convencional quanto por certas vertentes do marxismo, Alysson Leandro Mascaro reavivou o reconhecimento de suas teorias, crucialmente importantes para compreender as dinâmicas de dependência econômica que caracterizam a história brasileira.

Ao mesmo tempo, Alysson Leandro Mascaro oferece uma reinterpretação revigorante da obra de Florestan Fernandes, especialmente de sua fase mais tardia, que se notabilizou por uma virada radical e profundamente marxista. Ele destaca como Florestan Fernandes, nesta fase, intensificou sua análise das estruturas de classe e dos mecanismos de opressão, posicionando-o como um crítico feroz tanto das políticas liberais quanto das práticas não liberais que moldaram o Brasil.

Alysson Leandro Mascaro empregou essas análises para ilustrar como o marxismo, mais do que apenas uma ferramenta para interpretação econômica, constitui um arcabouço teórico sólido capaz de articular as dimensões econômicas, sociais e políticas. Essa metodologia não só questiona as narrativas liberais e não liberais, como também avança uma maneira crítica de compreensão que visa superar as restrições das perspectivas tradicionais, redirecionando o debate sociológico para uma crítica mais profunda e comprometida com a transformação social. Nesse processo, Mascaro não apenas revisita as contribuições de figuras renomadas marxistas, mas também reformula e amplia a cânone marxista, orientando novos caminhos para interpretação e ação.
A sociedade brasileira – formação
Neste capítulo, Alysson Mascaro examina meticulosamente as raízes da sociedade brasileira, iniciando com a escravidão, que constitui um pilar fundamental na formação socioeconômica do país. Discutindo o “modo de produção escravista colonial”, o autor revela como as práticas econômicas e sociais durante o período colonial cumpriram padrões de desigualdade que persistem até os dias atuais.
Alysson Leandro Mascaro explora a dinâmica entre escravizados e livres, elucidando como a interação desses grupos moldou os contornos sociais que prevalecem. Numa perspectiva crítica, ele destaca as consequências do longo prazo dessa configuração socioeconômica, particularmente através da análise da “sociabilidade assalariada” que surgiu após a abolição da escravatura. O autor argumenta que, embora a escravidão tenha sido formalmente abolida, a transição para um sistema de trabalho livre não conseguiu desmantelar as estruturas de desigualdades hereditárias, perpetuando muitos dos desequilíbrios sociais e econômicos estabelecidos durante o período colonial.
A sociedade brasileira – atualidade
Este segmento aprofunda a discussão iniciada no capítulo sobre a “Formação”, examinando como as estruturas e práticas históricas continuam a influenciar o presente. Mascaro detém-se no “Desenvolvimento da dinâmica capitalista brasileira”, ressaltando como o capitalismo no Brasil é singularmente configurado pelas heranças coloniais e escravocratas. Ele expõe como essas origens moldaram especificidades econômicas que perpetuam desigualdades.
A seção sobre a “Consolidação da reprodução social brasileira” oferece uma análise crítica de como as classes sociais se perpetuam em contextos contemporâneos, mantendo e renovando padrões de desigualdade ao longo das gerações. Por fim, o “Sentido da reprodução social brasileira contemporânea” aborda os desafios atuais enfrentados pela sociedade, destacando a persistente desigualdade social e formas emergentes de exclusão.
Alysson Leandro Mascaro, assim, vincula a história à modernidade, ilustrando como as dinâmicas antigas se adaptam e se manifestam em novos contextos, reforçando a necessidade de uma análise sociológica que seja tanto reflexiva quanto propositiva na busca por justiça social e econômica.
A contribuição dos teóricos marxistas brasileiros, como destacado por Alysson Leandro Mascaro, exemplifica como o marxismo pode ser aplicado para analisar e entender não apenas as questões econômicas, mas também como estas se intersectam com as dinâmicas raciais e de gênero. Teóricos como Clovis Moura, Ciro Flamarion Cardoso, Jacob Gorender, Lélia Gonzales e Décio Saes têm enriquecido o pensamento marxista brasileiro, trazendo para o debate as especificidades do contexto social e histórico do Brasil.
Essas abordagens ressaltam a necessidade de considerar como a opressão e a exploração são moldadas não só por fatores econômicos, mas também por questões raciais e de gênero, oferecendo uma análise mais completa das estruturas de poder.
Por exemplo, Lélia Gonzales e Clovis Moura têm sido fundamentais ao demonstrar como o racismo e o sexismo se entrelaçam com as lutas de classe, ampliando a compreensão de como a exploração e a opressão são vivenciadas de maneira diferenciada por diferentes grupos na sociedade brasileira. Esta abordagem ampliada é crucial, pois permite uma análise mais rica e matizada, que não apenas aborda as desigualdades econômicas, mas também permite outras formas de injustiça social.
Alysson Leandro Mascaro, ao integrar essas contribuições no seu estudo, reafirma o marxismo como uma ferramenta analítica indispensável para a sociologia contemporânea no Brasil. A obra desafia os acadêmicos e pensadores sociais a repensarem suas abordagens metodológicas e teóricas, evoluindo uma compreensão mais holística e engajada nas dinâmicas sociais, econômicas e jurídicas que moldam o país. O autor argumenta que, sem uma compreensão crítica que inclui todas essas dimensões, a análise sociológica corre o risco de ser superficial e inconveniente para enfrentar os desafios sociais contemporâneos.
Ao percorrer os capítulos, percebe-se que Alysson Leandro Mascaro faz uma articulação coerente entre a teoria e a prática, entre a história e a contemporaneidade, evidenciando como as interpretações do Brasil evoluíram e como elas são aplicadas para entender e desafiar a realidade brasileira atual.
O uso do marxismo como ferramenta crítica é central para essa abordagem, permitindo uma análise mais profunda das raízes das desigualdades e oferecendo caminhos para pensar em soluções concretas para os problemas sociais persistentes. Esta obra, portanto, não contribui apenas para o campo da sociologia, mas também para o engajamento político e social mais amplo no Brasil.
Sociologia do Brasil é, portanto, uma obra crucial para quem busca entender as raízes sociológicas das questões que o Brasil enfrenta hoje. Ao revalorizar o marxismo, o autor não apenas resgata uma tradição teórica muitas vezes marginalizada, mas também propõe uma forma de análise que considere todas as camadas da vida social, oferecendo uma visão mais holística e transformadora.
Esta obra é um convite à reflexão crítica e a uma revisão metodológica na sociologia brasileira, tornando-se essencial para estudantes, acadêmicos e todos aqueles interessados em uma compreensão mais profunda das dinâmicas sociais do Brasil.
*Erik Chiconelli Gomes é pós-doutorando na Faculdade de Direito na USP.

Quem quer desligar a TV Cultura? por Eugênio Bucci

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Governador de SP avança seu projeto de desmonte. Agora, sua base na Assembleia abre uma CPI para investigar “irregularidades” na fundação que administra a TV. Denúncias são vagas e infundadas. Seria tentativa de intimidar sua liberdade criativa e informativa?

Eugênio Bucci – OUTRAS MÍDIAS – 03/05/2024

A base do governo na Assembleia Legislativa de São Paulo abriu fogo contra a TV Cultura. No dia 17 de abril, às 19h, protocolou o Projeto de Resolução n° 9/2024 (Processo Número: 9652/2024), com o qual pretende criar uma Comissão Parlamentar de Inquérito para averiguar “irregularidades” na Fundação Padre Anchieta, titular da TV e da Rádio Cultura de São Paulo. O tempo começa a fechar. Se a CPI for mesmo instalada, as relações entre o Palácio dos Bandeirantes e a melhor TV pública do Brasil vão azedar de vez.

A coisa começou mal – e começou muito mal explicada. São pelo menos três os indícios de inépcia
no Projeto de Resolução. O primeiro é a ausência de um evento objetivo a ser apurado. Não se aponta um único fato determinado, só o que se diz é que houve “denúncias de irregularidades na gestão”. Mas quais são as denúncias? Ninguém conta. Só o que existe é uma acusação vaga, indefinida, meio randômica e um tanto aleatória.

Além disso, mesmo que as denúncias fossem reais, não se entende por que uma CPI seria necessária de imediato. Por acaso a Fundação Padre Anchieta se recusou a fornecer à Assembleia ou a quem quer que seja algum dado sobre sua administração? A Fundação está escondendo informações? A resposta é não. Portanto, não há motivo para uma um expediente investigatório tão extremado, que só se justifica quando suspeitas clamorosas de desmandos ou de malversação de fundos não podem ser esclarecidas de outra forma.

O segundo descuido vem na afirmação de que “a Fundação Padre Anchieta é mantida com recursos públicos”. De novo, não é bem assim. Em parte, apenas em parte, o seu sustento vem do Erário, mas, em outra parte – cerca de 50%, na média – o dinheiro tem origem em receitas próprias, que não têm nada a ver com o poder público.

O terceiro atropelo conceitual decorre de uma desinformação primária. Logo na abertura, o documento assevera que a Fundação seria um ente “de direito público”. Errado. A Fundação, na verdade, é regulada pelo direito privado. O próprio Supremo Tribunal Federal, em acórdão de 2019, a descreveu como “fundação pública de direito privado” (item 7 da ementa da decisão sobre o Recurso Extraordinário 716.378).

Será que os parlamentares ignoram a natureza jurídica da instituição que pretendem submeter a inquérito? Ou será que apenas semeiam confusão para insinuar que, por ser de “direito público”, a TV Cultura deveria se curvar às autoridades?

Difícil descobrir. O que se sabe, ao menos até o momento, é que o ataque parlamentar apresenta inconsistências de fundamentação, de precisão e de conhecimento de causa. Parece que alguém ali tem o propósito não de buscar a verdade, mas de pressionar, amedrontar e ameaçar. Afinal, se não há um fato determinado que inspire suspeitas graves e se não há um episódio sombrio que não poderia ser elucidado por meios administrativos ordinários, por que insistir num processo investigativo tão pirotécnico?

É sabido que, no Brasil, a instauração de uma CPI costuma vir acompanhada de um clima de comício policialesco. Será nessa base que o Poder Legislativo paulista vai tratar uma emissora pública que recebe aplausos e prêmios em toda parte? O que devemos esperar daqui em diante? O barraco pelo barraco? A estratégia é asfixiar as atividades da TV Cultura? Estará em curso uma tocaia institucional? Um surto obscurantista? Será que os representantes do povo não sabem conviver com a autonomia de uma boa emissora pública?

Pois deveriam saber. Deveriam saber e ensinar. A autonomia da TV Cultura já faz parte da tradição paulista assim como faz parte do direito positivo. A lei estadual (9.849, de 26 de setembro de 1967) que criou a Fundação Padre Anchieta cuidou de dotá-la, já no artigo primeiro, de “autonomia administrativa e financeira”. A independência jornalística veio como consequência natural, o que só trouxe benefícios para São Paulo e para o Brasil. Não é com vassalagem que se faz uma boa programação noticiosa, analítica, educativa e cultural.

Por fim, como se já não tivéssemos dúvidas suficientes, vai aqui mais uma: o governador concorda com essa investida arbitrária? Será que parte dele a ordem para que se cortem os repasses da Fundação, como vêm acontecendo? O Poder Executivo vai fechar os olhos para essa humilhação reiterada?

Se houver algum juízo no Palácio dos Bandeirantes, a escalada anticultura terá de ser revertida. Ainda temos tempo para dissipar as nuvens inquisitoriais. Um gesto, apenas um gesto, ainda que discreto, poderá mudar o curso dos acontecimentos. A TV Cultura vem apanhando não por supostas “irregularidades” de gestão, que inexistem, mas por dispor de liberdade criativa e informativa. Ela não sofre por seus erros, mas por seus acertos.

Ou mudamos esse quadro, ou só nos restará a vergonha – não para a televisão que sobrevive com brilho, altivez e verba curta, mas para um parlamento e um governo que se terão se deixado instrumentalizar pela intriga a serviço da intimidação.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica).

Investimento estrangeiro – prós e contras, por Paulo Nogueira Batista Júnior

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Paulo Nogueira Batista Júnior – A Terra é Redonda – 03/05/2024

Novos investimentos estrangeiros são apresentados como um selo de confiança ou bom-comportamento, sem levar em conta que o tema é vasto e polêmico

O investimento estrangeiro é positivo ou negativo para um país? Como para muitas questões econômicas, a resposta é: depende. Há vantagens e desvantagens. Convém, portanto, examinar o tema um pouco mais de perto.

Não é o que geralmente se faz. Predominam slogans e simplificações. No governo, por exemplo, tem havido muito oba-oba por ocasião da divulgação de alguns novos investimentos do exterior. Novos investimentos estrangeiros são apresentados como um selo de confiança ou bom-comportamento. “O Brasil está de volta”, proclama-se. (Esse slogan, diga-se de passagem, é um dos mais surrados internacionalmente.) Além disso, foi instituído, com certo estardalhaço, um programa que oferece proteção cambial a determinados investidores estrangeiros.

O tema dos prós e contras do investimento estrangeiro é vasto e polêmico. Não quero me alongar demais e seleciono assim pontos que parecem mais relevantes.

Permita-me, leitor ou leitora, ser de novo um pouco mais técnico neste artigo. Farei o possível para não complicar demais, mas há aspectos inevitavelmente intrincados. Repito a sugestão que fiz em outra ocasião. Se você não for economista, não desanime se uma passagem ou outra lhe parecer incompreensível. Siga em frente e se puder entender, digamos, 70 ou 80% do texto, já terá valido a pena.

Aspectos positivos do investimento estrangeiro: fatos e meias-verdades

Começo pelos aspectos potencialmente positivos do investimento estrangeiro. São basicamente dois: (i) o investimento do exterior traz receitas cambiais e constituiu um tipo de aporte de capital que, além de não aumentar a dívida externa do país, cobre de forma relativamente estável um eventual déficit de balanço de pagamentos em conta corrente; e (ii) o investimento externo pode contribuir para o aumento da formação bruta de capital fixo, traduzindo-se em elevação do crescimento potencial da economia no longo prazo.

Esses argumentos são válidos e têm ampla divulgação. São meias-verdades, porém. E a meia verdade, como dizia Tennyson, é mais perigosa do que a mentira pura e simples. Nada pior do que as “mentiras verdadeiras”, aquelas têm alguma base factual ou lógica, e as mentiras “sinceras”, aquelas que são propagadas com convicção.

É fato, sim, que o investimento externo traz receitas em moeda estrangeira e pode, portanto, ajudar a financiar um desequilíbrio em conta corrente (a parte do balanço de pagamentos que corresponde à balança comercial, serviços e rendas). E, de fato, como receber investimento não constitui uma obrigação financeira, não aumenta a dívida externa líquida do país. A variação desta última corresponde ao déficit em conta corrente deduzida a entrada liquida de investimentos (diretos e de portfólio).

Também é verdade que o investimento pode ser uma forma relativamente estável de compensar um eventual desequilíbrio nas contas externas correntes. Os investimentos em capacidade produtiva podem até sair do país em algum momento futuro, mas não de forma rápida, pois há defasagens temporais significativas entre a decisão de desinvestir e a sua concretização.

Mais importante: os investimentos em capacidade produtiva, designados nas estatísticas como “investimentos diretos”, podem, sim, reforçar o estoque de capital da economia e o seu crescimento de longo prazo.

Parecem então convincentes esses argumentos? Acredito que sim, tanto mais que os termos técnicos podem impressionar os leigos. E tanto mais que brasileiro desconfia do que entende e aceita melhor o que não entende, como dizia Nelson Rodrigues, apontando uma das muitas facetas do nosso complexo de vira-lata: se eu entendo, pensa o brasileiro na sua humildade de cachorro velho, então não deve ser grande coisa. Apesar disso, tento esclarecer, mostrando onde estão as lacunas e falácias nos dois argumentos. Veremos que esses argumentos são apenas parcialmente verdadeiros.

Investimentos estrangeiros e contas externas – corrigindo omissões
Em primeiro lugar, não se deve perder de vista que de pouco vale, do ângulo do comprometimento futuro das contas externas, absorver investimentos em vez de empréstimos. Os investimentos estão, sim, por definição, fora da classificação de dívida externa. Integram, entretanto, o conceito mais amplo de passivo externo líquido de um país.

Este é a soma da dívida e do estoque de investimentos estrangeiros deduzidos os ativos externos do país no exterior na forma de créditos e investimentos. As dívidas geram pagamentos de juros; os investimentos, pagamentos de lucros e dividendos. As dívidas têm calendário de amortização; os investimentos podem ser repatriados, ainda que sem calendário fixo.

O conceito mais abrangente e mais relevante, portanto, é o de passivo externo líquido. O aumento do passivo externo líquido corresponde ao déficit em conta corrente. Havendo déficit, o passivo para com o exterior cresce de qualquer maneira, seja como dívida, seja como investimento. Ao contrário do que talvez pareça, as diferenças entre as duas formas de capital nem sempre são significativas.

Além disso, não é necessariamente verdade que o investimento estrangeiro constitua uma forma mais estável de capital. Há duas formas de investimento nas estatísticas de balanço de pagamentos: o investimento direto e o de portfólio. O investimento direto é aquele potencialmente mais ligado à formação de capital (ou à compra de capacidade produtiva existente). O de portfólio inclui, por exemplo, compra por estrangeiros (não-residentes) de ações na bolsa de valores do país ou aquisição de títulos de dívida (pública e privada).

O capital de portfólio, que pode predominar em determinadas situações, é tipicamente especulativo ou de curto prazo. Não pode ser considerado estável ou confiável. Desse ponto de vista, o endividamento externo de médio e longo prazo é melhor.

Um possível agravante é que os investimentos diretos registrados no balanço de pagamentos incluem uma parcela desconhecida de investimentos de portfólio. Esse problema de classificação, levantado em artigo recente¹, só pode ser esclarecido com acesso detalhado a dados que apenas o Banco Central possui.

Seja como for, é importante considerar que não convém, em geral, incorrer em déficits substanciais nas contas externas correntes, mesmo que cobertos por investimentos diretos strictu sensu. Isso é especialmente verdadeiro nas situações em que ao déficit corrente se adicionam vencimentos importantes de dívida ou riscos de saída abrupta de capitais de portfólio.

Para um país que queira preservar a sua autonomia, é estrategicamente melhor zerar a conta corrente ou, no máximo, incorrer em déficits pequenos. No caso do Brasil, os déficits externos correntes têm sido modestos nos anos recentes. O Banco Central acaba de divulgar um déficit em conta corrente de 1,5% do PIB nos doze meses até março. Os investimentos registrados como “diretos” chegaram ao dobro, alcançando 3% do PIB.

Investimentos estrangeiros e capacidade produtiva

Apesar de tudo, não há dúvida de que a forma mais defensável de capital externo é aquela que toma a forma de investimentos diretos propriamente ditos. Feitas as ressalvas acima, o investimento direto stricto sensu pode, sim, gerar capacidade produtiva nova e, quando o faz, constitui, sim, uma modalidade mais estável e duradoura de capital externo.

Atenção, porém. Há pré-requisitos. E algumas perguntas precisam ser respondidas.

O investimento direto, nas estatísticas habituais, não só pode aparecer misturado com alguns investimentos de portfólio, como já indicado, mas inclui também dois tipos diferentes de investimentos diretos: aqueles que criam capacidade nova (novas empresas ou ampliação de empresas existentes) e aqueles que simplesmente compram capacidade pré-existente. Nesse último caso, o que ocorre é desnacionalização da economia (exceto em casos de aquisição por outros estrangeiros de filiais ou subsidiárias já existentes de empresa externas).

A confusão conceitual costuma ser grande. Se o investimento que ingressa corresponde tão somente à aquisição de empresas existentes, não há nenhum efeito imediato em termos de expansão da demanda e da taxa global de investimento. De início, há mera transferência de propriedade da capacidade produtiva instalada. Só haverá reforço real do investimento, se os novos proprietários tiverem condições e interesse em ampliar as empresas que adquiriram.

A propósito, fala-se em “privatização”, às vezes impropriamente, quando o capital estrangeiro adquire o controle de empresas estatais. Ora, não raro o que acontece é a compra de estatais brasileiras por estatais estrangeiras. Nesse caso, não há privatização alguma, mas desnacionalização pura e simples. Não se cria, pelo menos de imediato, capacidade produtiva nova e os centros de decisão empresarial são transferidos para fora do país.

Outra questão relevante: ao abrir a economia para determinados investimentos diretos estrangeiros, o governo se preocupa em estabelecer contrapartidas estratégicas? Condiciona, por exemplo, a autorização para investir a compromissos de transferência de tecnologia? Negocia compromissos de realizar compras com fornecedores nacionais, estimulando produção e geração de empregos no país?

A China costuma estabelecer esse tipo de condição. O Brasil, pelo seu tamanho, é um dos maiores receptores de investimentos estrangeiros no mundo. Tem, em princípio, poder de barganha para estabelecer requisitos de transferência de tecnologia e compras em território nacional.
Garantias contra risco cambial

O governo parece caminhar em direção diferente. Em vez de negociar contrapartidas, oferece garantias. Anunciou-se há pouco a oferta de hedge cambial para o financiamento de investimentos estrangeiros considerados ambientalmente sustentáveis. Decisão duvidosa, que ainda precisa ser detalhada e merece mais discussão. Se entendi bem, para estimular determinados investimentos do exterior o governo estatiza o risco cambial. Em caso de depreciação acentuada da moeda brasileira, quem paga a conta é o Tesouro.

Trata-se de um programa que gera risco fiscal e risco cambial. O risco de despesas inesperadas é transferido para os cofres públicos. Se a desvalorização da moeda nacional ficar acima do esperado, o governo incorre em perdas cambiais e fiscais, isto é, diminuem as reservas internacionais e aumenta o déficit público. Curiosamente, o mercado financeiro e a mídia, sempre tão alarmados com o risco fiscal, parecem apoiar sem reservas a nova proposta.
Outra questão, esta geralmente ignorada: a suposição é que o investimento garantido contra risco cambial venha a ser de fato adicional, isto é, que ele não aconteceria na ausência da garantia estatal. Pode-se descartar, entretanto, que investimentos beneficiados não ocorreriam de qualquer maneira? Seria o pior dos mundos: na esperança de aumentar o investimento externo, o governo acabaria assumindo o risco cambial de investimentos que ingressariam no país de qualquer
forma. Como os beneficiários dessa decisão são os grandes capitais, ninguém protesta, ninguém reclama.

Rejeição liberal à interferência estatal

Para terminar, um breve comentário sobre as viúvas brasileiras do neoliberalismo. Os representantes dessa velha guarda poderiam argumentar que tentar fixar condições para a entrada de investimentos viola as regras de livre mercado. Se forem coerentes (o que nem sempre acontece) objetariam, pela mesma razão geral, a que o governo ofereça proteção cambial para certos investidores externos.

Mas é frágil essa visão liberal, defunta no mundo, mas ainda presente no Brasil, especialmente no discurso do mercado financeiro e da mídia tradicional. A livre concorrência em mercados pulverizados existe mais em livros-texto do que na realidade das economias. Na prática, o que prevalece é a concorrência oligopólica, limitada, entre grandes corporações e blocos de capital.

O Estado participa e interfere nas economias bem-sucedidas. E assiste, passivo, inerte, nas economias fracassadas.

*Paulo Nogueira Batista Jr. é economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS. Autor, entre outros livros, de O Brasil não cabe no quintal de ninguém

Escolas do futuro são escolas ‘low tech’, por José Ruy Lozano

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Materiais físicos impulsionam habilidades motoras, criatividade e imaginação

José Ruy Lozano, Sociólogo e educador, é autor de livros didáticos e membro da Comunidade Reinventando a Educação (Core)

Folha de São Paulo, 03/05/2024

Chamou a atenção da imprensa, no ano passado, o fato de que o sistema público de educação da Suécia decidiu voltar a usar livros e cadernos físicos como material didático obrigatório no lugar de tablets e lap tops. As razões apresentadas pelos suecos são várias, mas passam pela aprendizagem da leitura e pela manutenção da capacidade de concentração dos estudantes. Em ambos os casos, os materiais físicos apresentam resultados muito melhores.

Os escandinavos não estão sozinhos. Já forma uma longa fileira a lista de países desenvolvidos que vêm progressivamente abandonando equipamentos digitais e retornando ao papel e à caneta. As autoridades educacionais desses países baseiam-se em pesquisas científicas recorrentes, que apontam não só a melhoria do rendimento acadêmico como também o desenvolvimento mais adequado de habilidades motoras e o impulso à criatividade e à imaginação, sempre melhor estimuladas pelo uso de materiais físicos nas escolas.

Não há que se imaginar a escola contemporânea totalmente desconectada do mundo digital. Evidentemente, salas de aulas com computador e conexão à internet, que permitam a exibição de materiais visuais diversos, além de espaços com equipamentos digitais para pesquisa online mostram-se indispensáveis no mundo de hoje. A tecnologia digital, no entanto, não é fetiche ou panaceia. Ela não só não é capaz de solucioná-los, como por vezes termina por ampliá-los.

Jonathan Haidt, professor da Universidade de Nova York, publicou dados alarmantes em seu novo livro, “The Anxious Generation” (“A Geração Ansiosa”), que aborda a deterioração da saúde mental de crianças e adolescentes a partir de 2010. Quadros de depressão, ansiedade, automutilação e suicídio têm aumentado dramaticamente desde então. Não à toa, é justamente a partir de 2010 que se dá a generalização do uso das redes sociais, notadamente o Instagram, difundindo-se entre os mais jovens.

Ao largo das pressões negativas do mundo virtual, que captura a atenção dos mais jovens, corrói sua capacidade de concentração e os transforma em objetos manipulados por algoritmos, educadores têm reiterado a necessidade da redescoberta das relações de proximidade e do mundo físico. Nas mais renomadas escolas do Vale do Silício, na Califórnia, onde estudam os filhos dos executivos das grandes corporações mundiais de tecnologia, há poucas telas de LED e muitas ferramentas. No lugar do computador, lápis e canetas, mas também martelos, chave de fenda, pincéis. A educação “mão na massa”, com objetos e materiais físicos predomina em relação a dispositivos eletrônicos.

Diante da revolução representada pelo Big Data e pelas inteligências artificiais, devemos nos manter firmes como educadores que visam produzir conhecimento, não apenas reproduzir o que está armazenado nas bases de dados de governos e empresas. Afinal, a educação não é apenas dar acesso a informações, mas principalmente fazer refletir e questionar a partir das informações que acessamos.

Limitando o crescimento econômico

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Vivemos momentos interessantes, acumulamos desigualdades históricas, nos acostumamos com uma degradação social que qualquer sociedade normal sentiria vergonha e ojeriza, destacamos as variadas riquezas nacionais, exaltamos o homem cordial que nunca existiu na sociedade brasileira, destacamos a fragilização da educação nacional e, ao mesmo tempo, degradamos a figura do professor, piorando as condições de trabalho e arrochando seu salário, reduzindo investimentos em capital humano e continuamos rezando pela cartilha da ortodoxia, ideias rechaçadas pelos seus criadores e, mais uma vez, ainda continua sendo um mantra dos donos do poder nacional.

No começo dos anos 1990, a economia brasileira apresentava uma inflação galopante, seus níveis degradantes levaram o governo a criar um instrumento engenhoso para controlar os preços
relativos e estabilizar a moeda. Nascia o Plano Real, que trouxe benefícios palpáveis para a sociedade brasileira, melhorando a renda agregada, facilitando a chegada de investimentos externos, aumentando a competição e melhorando o ambiente econômico. É importante destacar ainda, que para estabilizar a economia o governo abusou da política cambial, valorizando-a em excesso, aumentando sensivelmente as taxas de juros, aumentando as importações e contribuindo para fragilizar os setores exportadores e criando, infelizmente, uma elite financeira viciada em juros altos.

Com esse choque dos juros elevados, criamos uma nova capacidade de analistas econômicos, os financistas ou rentistas, especialistas nos movimentos das bolsas de valores e que pouco sabem sobre a economia real, se especializando em defender os interesses dos donos do poder econômico, grupos dotados de grande recurso monetário e forte poder político, defensores contumazes desta política de juros estratosféricos que perduram desde então, criando uma sociedade mais desigual e empobrecida, sem perspectivas, sem esperanças e sem dignidade, acreditando que o problema está sempre nos outros, defendendo interesses imediatistas, fortalecendo uma visão de mundo centrada no individualismo e dos ganhos imediatos, estimulando a polarização política, fomentando conflito entre poderes, fortalecendo demandas ultrapassadas e desnecessárias, fugindo sorrateiramente das discussões de fundo que contribuem para sermos uma sociedade mais desigual, mais violenta e marcada pela exclusão social.

A sociedade brasileira se acostumou com taxas de juros elevadas, desta forma, os investimentos foram reduzidos, o desemprego aumentou, o trabalho se precarizou e, ao mesmo tempo, elevou substancialmente a quantidade de milionários e bilionários, como atesta as publicações especializadas, pessoas que pouco produzem e sobrevivem da renda, os chamados rentistas ou financistas, que engordam rapidamente em detrimento da espoliação da sociedade nacional.

Precisamos rever os nossos conceitos enquanto nação, analisarmos nossas trajetórias históricas, repensar nosso futuro, planejar nosso presente, garantindo recursos monetários e financeiros para investimentos produtivos, juros decentes, aumentando a geração de renda agregada, tributando todos os donos do poder econômico, reduzindo subsídios que degradam as contas públicos e pouco trazem para a comunidade, reduzindo os privilégios para todos os grupos público e privado que se escondem numa sociedade em franca degradação social, política e moral para manter seus ganhos imediatos e clamar por uma suposta meritocracia que não existe em uma sociedade tão marcada pela desigualdade e pela exclusão.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Sociologia do Trabalho e Exclusão Social, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário

No Dia Internacional do Trabalhador, rentismo mostra suas garras, por André Roncaglia

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Novas tecnologias elevam produtividade mas geram questões sobre desemprego estrutural

André Roncaglia, Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo, 02/05/2024

O Dia Internacional do Trabalhador é um emblema das lutas históricas por melhores condições de trabalho, dignidade e justiça social: a jornada de trabalho de oito horas, o direito à organização sindical e a valorização do trabalho humano.

Inspirada pela greve iniciada em 1º de maio de 1886 em Chicago, a celebração continua atual e necessária. Nos últimos 30 anos, o poder de barganha dos trabalhadores foi debelado pela globalização, pela precarização e pela automação.

As novas tecnologias (uberização, automação e robotização) aumentam a eficiência produtiva, mas levantam questões sociais e éticas relativas ao desemprego estrutural, à neutralidade racial e de gênero dos algoritmos e à desigualdade de renda. A popularidade da proposta de renda básica universal no Vale do Silício é sintoma deste temor.

Com efeito, a queda da participação dos salários na renda da economia é fenômeno global e de longo prazo, como mostram estudos da OIT e do FMI. Nos países desenvolvidos, a OCDE registrou recente supressão de salários em várias indústrias, ocupações e níveis de qualificação. No Brasil, os salários somam menos de 40% da renda total, refletindo a desindustrialização precoce, a baixa sindicalização, a desregulamentação e a alta taxa de informalidade no mercado de trabalho: 39% da nossa força de trabalho se encontra em empregos precários e de baixa qualificação.

Insensível a esses fatos, o “banqueiro central dos pobres”, Roberto Campos Neto (RCN), anunciou, em entrevista à CNN em 1º de maio de 2024, que a economia brasileira vive um surpreendente “pleno emprego”, mesmo com 7,9% da força de trabalho desempregada e com taxa de subutilização da mão de obra em 18%.

Traduzindo: para ele, uma renda média mensal de R$ 3.100 é uma exuberância incompatível com a estabilidade macroeconômica. Se a renda do trabalho continuar subindo, o Banco Central (BC) será forçado a elevar a Selic para moderar as demandas salariais —por meio de maior desemprego— e, claro, defender o retorno do capital financeiro improdutivo, com a desculpa do controle da inflação, a qual está caindo sistematicamente.

Na mesma data, os porta-vozes do rentismo defenderam a desvinculação irrestrita dos benefícios sociais com relação ao salário mínimo (SM), alegando que cada R$ 1 a mais aumenta o gasto público em R$ 388 milhões.

Em números: a elevação nominal de 6,4% do salário mínimo entre 2024 e 2025 implica elevação do gasto primário em R$ 35 bilhões. O BC pode compensar esse aumento reduzindo em mero 1 ponto percentual a Selic, poupando R$ 44 bilhões em serviços de juros da dívida pública; mas este é um debate interditado.

A desvinculação focalizada de privilégios com relação ao SM é uma discussão bem-vinda; porém, o silêncio sobre os juros da dívida e a obscena injustiça tributária contrastam com a estridência das críticas aos direitos sociais e ao esforço de reindustrialização.

O ataque coordenado ao BNDES é outro sintoma deste mal-estar do rentismo. Seu modelo de estimação de empregos mostra que, em 2024, os projetos apoiados pelo banco podem adicionar 1,5 milhão de empregos.

A combinação de queda da Selic com a atuação do BNDES e os estímulos ao investimento industrial pelo MDIC ajudam a explicar a criação de 720 mil novas de emprego apenas no primeiro trimestre de 2024. O crescimento da economia previsto para este ano já passa de 2%. Esta “agenda errada” do governo provocou, no mesmo 1º de maio, a melhoria da perspectiva da nota de crédito do Brasil pela agência Moody’s. A agência não comprou o pânico fiscal e gerou muito mau-humor na Faria Lima.

A promoção de emprego e salário dignos e o acesso à seguridade social apenas ameaçam quem teme a tributação progressiva da renda e do patrimônio como pilar central do equilíbrio fiscal. A eutanásia do rentismo é, portanto, condição para o desenvolvimento.

A luta continua!

Dia do Trabalhador para quem? por Thiago Amparo

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Motoboys passam fome e sede, e possuem o dobro do índice geral de pressão alta

Thiago Amparo, Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.
Folha de São Paulo, 02/05/2024

“Liberdade de contrato no trabalho inclui ambas as partes envolvidas; uma tem tanto o direito de comprar quanto a outra de vender trabalho. Não há base razoável, no que diz respeito à saúde, para interferir na liberdade contratual, delimitando as horas de trabalho.” Este é o trecho de uma das mais desastrosas decisões da Suprema Corte dos EUA. Em 1905, no caso Lochner, a Corte decidiu contra uma lei de NY que proibia que padeiros trabalhassem mais que 60 horas por semana ou 10 horas por dia.

Cento e dezenove anos depois, para setores uberizados, pouco mudou: 40% dos entregadores de aplicativos trabalham mais de 60 horas por semana. Os dados são da pesquisa da Unicamp, feita com 200 entregadores em Campinas, publicada pelo The Intercept Brasil.

Nela, ficou claro que o bico na verdade é a principal fonte de renda, que motoboys passam fome e sede, e possuem o dobro do índice geral de pressão alta. Se a esquerda não conseguir reorganizar alianças num mundo pós-emprego, esta estará fadada ao fracasso diante da ilusão, à direita, de trabalhadores precarizados como empreendedores.

Outra faceta é a pejotização, com o Supremo e tudo. Em 85% das mais de 300 ações analisadas pela USP, ministros do STF afastaram sozinhos competência da Justiça do Trabalho. Problemática também é a forma pela qual o STF decide: os togados resolvem com mais rapidez casos trabalhistas do que outros litígios (15,7% deles no máximo em um dia), indica pesquisa da FGV Direito SP.

Liberais preocupados com o déficit fiscal deveriam estar, igualmente, preocupados com o desmantelamento da base tributária e com a pejotização de quem se enquadraria como trabalhador. Acidentes de trabalho têm custo, piora na saúde mental também, desigualdade de gênero e raça empacam o desenvolvimento da economia. Quem ainda não entendeu que os padeiros de 1905 somos todos nós, inclusive a dita classe intelectual precarizada pela inteligência artificial, entendeu nada sobre o sentido do 1º de Maio.

O neoliberalismo e a hegemonia dos valentões, por George Monbiot

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O sistema entende a vida como uma luta na qual só alguns devem vencer, promovendo líderes capazes, desde a infância, de coagir, submeter e ser brutais. Não precisa ser assim. Na competição, todos somos, de algum modo, derrotados

George Monbiot – Outras Palavras – 29/04/2024

Um grande e impressionante estudo sobre o progresso das crianças na idade adulta descobriu que aqueles que promovem bullying e apresentam comportamento agressivo na escola têm maior probabilidade de prosperar no trabalho. Eles conseguem empregos melhores e ganham mais. Os pesquisadores afirmam estar surpresos com suas descobertas, mas será que elas são realmente tão notáveis? A associação de cargos de chefia com comportamentos de intimidação e domínio será, sem dúvida, um choque para muitos.

Isto não significa que todas as pessoas com bons empregos ou que dirigem organizações sejam agressoras. Longe disso. Não é difícil pensar em pessoas boas em posições de poder. O que isto nos diz é que não precisamos de pessoas agressivas para organizar as nossas vidas. Nem a boa liderança, nem o sucesso organizacional, nem a inovação, a visão ou a previsão exigem uma mentalidade de domínio. Na verdade, tudo pode ser inibido por alguém que exerce seu peso.

Seja na teoria dos jogos ou no estudo de outras espécies, você descobre rapidamente como o comportamento dominante de alguns pode prejudicar a sociedade como um todo. Por exemplo, um estudo sobre peixes ciclídeos descobriu que os machos dominantes têm “relações sinal-ruído mais baixas” (som e fúria, sem significar nada) e impactos contraproducentes no desempenho do grupo. Alguma coisa parece familiar?

Uma vitória para os agressores é uma perda para todos os outros: o seu sucesso é um jogo de soma zero. Ou soma negativa: o primeiro estudo que mencionei também descobriu que os agressores escolares são mais propensos a abusar do álcool, fumar, infringir a lei e sofrer problemas de saúde mental mais tarde na vida. Mas o triunfo dos agressores é também um resultado da narrativa dominante dos nossos tempos: durante os últimos 45 anos, o neoliberalismo caracterizou a vida humana como uma luta que alguns devem vencer e outros devem perder. Somente por meio da competição, nesta religião quase calvinista, podemos discernir quem pode ser o digno e o indigno. A competição, claro, é sempre fraudada. O objetivo do neoliberalismo é fornecer justificativas para uma sociedade desigual e coercitiva, uma sociedade onde os valentões governam.

É um círculo perfeito: o neoliberalismo gera desigualdade; e a desigualdade, como mostra outro artigo, está fortemente associada ao bullying na escola. Com maiores disparidades de rendimento e de estatuto, o estresse aumenta, a concorrência aumenta e o desejo de dominar intensifica-se.

A patologia se autoalimenta.

Os pesquisadores que conduziram o primeiro estudo sugerem, tendo descoberto que os agressores prosperam, que deveríamos “ajudar a canalizar esta característica nas crianças de uma forma mais positiva”. Na minha opinião, esta é uma conclusão errada. Em vez disso, deveríamos procurar construir sociedades nas quais a agressão e o domínio não sejam recompensados. Seria melhor que as escolas se concentrassem na dissuasão e no aconselhamento.

Mas em todas as fases de nossa vida somos forçados a uma competição destrutiva. Não somente as crianças são pressionadas repetidamente a participar de concursos de seleção, mas também as escolas. Na Inglaterra, por exemplo, com seus testes Sats e o brutal regime Ofsted, essas competições prejudicam o bem-estar das crianças e dos professores. Como sempre, a competição é organizada para permitir que os ricos e poderosos vençam. Mas, como Charles Spencer explica em seu livro de memórias sobre a vida em um internato, ganhar também é perder: os pais que mandam seus filhos para escolas particulares pagam para criar uma personalidade externa dominante, mas a criança dentro da concha pode estar distorcida em nós de medo, fuga e raiva.

Esta contra-educação é reforçada mais tarde na vida por milhares de livros, websites e vídeos de autoajuda. Por exemplo, um site e programa popular chamado The Power Moves, dirigido pelo cientista social Lucio Buffalmano, ensina “10 maneiras de ser mais dominante”. Estas incluem exercer pressão social, reivindicar território, “agredir, afirmar e punir” e dar tapas na cara. Você também pode aprender oito maneiras de dominar as mulheres, uma lição essencial porque, aparentemente, “as mulheres dormem com homens que as obrigam a se submeter”. As técnicas que Buffalmano promove incluem “segurar o rosto dela se ela se recusar a beijar você”, “empurrá-la de brincadeira para a posição horizontal”, “arrastá-la de brincadeira para a cama” e “penetrar sua mente com ‘Daddy Dominance’”.

Buffalmano afirma que quer “promover a humanidade capacitando homens bons a avançar, liderar e vencer”. O resultado mais provável é aumentar o número de idiotas. Em vez disso, deveríamos aprender a ser atenciosos, pró-sociais e gentis: resistir à dominação, independentemente de quem a exerça.

O bullying óbvio no local de trabalho não é mais tolerado de modo geral. Mas suspeito que, em muitos casos, a aparente melhora é resultado do fato de os agressores aprenderem a mascarar seus impulsos, enquanto continuam a controlar e manipular sem ultrapassar a linha do RH.

Mas o bullying ostensivo está ressurgindo na política. Trump, Putin, Netanyahu, Orbán, Milei e outros fazem pouco para disfarçar seus comportamentos de dominação grosseira. Quando Trump ficou atrás de Hillary Clinton durante o debate presidencial e quando zombou vergonhosamente da deficiência de um jornalista, pudemos ver a criança que ele era e a criança que continua sendo.

Nossos sistemas políticos – centralizados e hierárquicos – estão prontos para serem explorados por valentões. Como nos pátios das escolas de antigamente, as piores pessoas acabam no topo.

A mesma dinâmica opera em nível global. Os governos garantem a seus cidadãos que estão envolvidos em uma “corrida global”: se ficarmos para trás, outra nação nos ultrapassará. Essa história de competição de soma zero justifica todo e qualquer abuso. Ela foi usada pelas nações europeias para racionalizar a construção de seus impérios e guerras eletivas. Logo foi acompanhada por um mito egoísta: o de que a corrida pelo domínio será vencida pela “raça dominante”. Como disse Charles Darwin: “As raças civilizadas do homem quase certamente exterminarão e substituirão as raças selvagens em todo o mundo”. Por meios mais sutis, com justificativas mais sutis, as nações ricas ainda jogam o mesmo jogo: sua riqueza depende, em grande parte, da extração de outros países.

Mas enquanto a corrida unilateral entre as nações continua, corremos coletivamente em direção ao precipício do colapso ambiental. Se alguma vez houve a necessidade de cooperação e colaboração, é agora. Mas a competição reina, uma competição que todos nós estamos destinados a perder.

Em resumo, devemos parar de celebrar o comportamento coercitivo e controlador. Em todas as etapas da educação e da progressão na carreira, bem como na política, na economia e nas relações internacionais, devemos procurar substituir um ethos competitivo por um ethos cooperativo.

Esse é o aspecto surpreendente dos seres humanos, ao contrário dos peixes ciclídeos: não precisa ser assim. Podemos controlar nosso próprio comportamento, além de imaginar e criar formas melhores de organização. Por meio da democracia deliberativa e participativa, tanto na política quanto no local de trabalho, podemos criar sistemas que funcionem para todos. Não há nenhuma lei natural que determine que os agressores de playgrounds devam continuar cobrando tributos pelo resto de suas vidas.