Segurança pública: prioridade para 2024, por Oscar Vilhena Vieira

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Reduzir a violência é não apenas um imperativo moral, mas também uma condição para a prosperidade econômica

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023)

Folha de São Paulo, 30/12/2023

Em 2023 a democracia foi salva e a economia parece estar entrando nos eixos. A agenda climática foi retomada, assim como as principais políticas sociais. Feitos nada triviais para um governo minoritário e recebido com grande desconfiança pelo mercado.

O centrão, como era de se esperar, demonstrou-se mais leal aos seus interesses pragmáticos que à agenda obscurantista dos antigos habitantes da Esplanada (com exceções). O governo soube alinhar suas prioridades às ambições da maioria parlamentar. Tudo isso, evidentemente, ao régio custo de emendas. O fato, porém, é que a coisa andou. O governo governou.

O grande desafio para 2024 é estabelecer alguma ordem e racionalidade no campo da segurança pública. A redução da violência e da criminalidade, que brutalizam a vida de milhões de brasileiros todos os dias, constitui não apenas um imperativo moral, mas também uma precondição para a prosperidade econômica e para a sobrevivência do próprio Estado democrático de direito.

Desde a transição para a democracia os diversos governos federais têm se evadido da responsabilidade de coordenar as políticas e modernizar as agências de justiça e segurança, alegando que essa é uma responsabilidade dos estados. Essa omissão levou ao crescimento do crime organizado, à deterioração do sistema de segurança, assim como abriu um enorme mercado eleitoral para a extrema direita, com suas receitas simples, diretas e, sobretudo, erradas no campo da segurança pública. Armar a população, aliviar os controles sobre a atividade policial, promover o encarceramento indiscriminado e fechar os olhos para as milícias pode gerar votos, mas, no final do dia, apenas contribui para o aprofundamento da crise de segurança, levando a mais mortes e degradação do tecido social.

Nas últimas décadas houve um avanço muito grande no campo da segurança pública, com forte impacto sobre a redução da violência em diversas partes do mundo e também no Brasil. Como não se cansava de salientar Paul Chevigny, professor emérito da Universidade de Nova York e autor de dois clássicos estudos sobre polícia, falecido no último mês, múltiplos são os fatores que promovem a criminalidade e a violência. Múltiplas, portanto, devem ser as políticas e instituições envolvidas na contenção da criminalidade. Logo, não é uma tarefa apenas das polícias estaduais, no caso brasileiro.

Isso impõe ao governo federal assumir um protagonismo, ainda que partilhado, na construção de política nacional de segurança pública, com foco na redução dos homicídios e na retomada dos territórios hoje dominados pelo crime e pelas milícias. Perdoem o truísmo, mas estados são constituídos e governos são eleitos para enfrentar os problemas centrais de uma sociedade. E assegurar a paz é o problema primordial de qualquer sociedade.

Se o governo federal não entende ser conveniente criar um Ministério da Segurança Pública para executar políticas de segurança, deveria ao menos criar uma Secretaria de Estado, com mandato e autoridade para articular junto ao parlamento, aos governadores e mesmo às polícias uma ampla reforma das políticas criminais, bem como a modernização das agências de aplicação da lei, além de promover a integração de outras políticas sociais com as políticas de segurança. A indisposição para enfrentar racionalmente os desafios da segurança pública será inevitavelmente punida pelo eleitor. Desnecessário lembrar que as principais vítimas continuarão a ser pretos e pobres.

Desejo às leitoras e aos leitores um bom ano! Lembrando, apenas, que o ano não será melhor se cochilarmos no ponto.

Austeridade econômica pavimenta o caminho para o fascismo. Entrevista por Clara Mattei

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Precisamos saber como a classe dominante opera para preservar um sistema injusto” – Clara Mattei

A professora e escritora Clara Mattei é objetiva: já no título de seu mais recente livro ela fala da conexão direta entre austeridade econômica e o fascismo. Em The Capital Order: How Economists Invented Austerity and Paved the Way to Fascism (ainda sem título em português – em tradução livre: “A ordem do capital: como os economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo”) ela destrincha essa relação. O livro será lançado no Brasil ainda este ano pela editora Boitempo.

Clara Mattei, autora de livro sobre o tema [austeridade fiscal], foi a convidada da semana no BdF Entrevista.

A entrevista é de José Eduardo Bernardes, publicada por Brasil de Fato, 04-07-2023.

Mattei foi a convidada do Brasil de Fato Entrevista desta semana.

Ela contou sobre o processo para elaboração da obra, que é fruto de dez anos de estudo. Italiana radicada nos Estados Unidos (ela é professora de Economia na The New School for Social Research, em Nova Iorque), a pesquisadora cita personagens como Benito Mussolini, Donald Trump e a atual primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, como frutos políticos de um caminho trilhado com apoio na lógica da austeridade econômica.

“Para o capitalismo funcionar, a maioria das pessoas deve estar desempoderada, precarizada e dependente do mercado. E é isso que a austeridade faz. Tira recursos da maioria das pessoas, que ganham dinheiro através de um salário, e entrega a uma minoria, cuja riqueza vem de patrimônios e rendas”, afirma ela, que destaca que a alternativa a esse sistema passa pela organização das pessoas em suas comunidades locais.

Eis a entrevista.

A senhora passou dez anos escrevendo o livro que nasceu da sua tese de doutorado. Como e quando decidiu se aprofundar neste assunto?

Tudo começou quando estava vivendo os anos de grande austeridade de Mario Monti, na Itália. Ele chegou ao poder após a crise da dívida soberana em nosso país e estava estudando e vivendo na pele, assim como a maioria das pessoas no mundo ainda vive hoje, os efeitos da austeridade, a redução de verbas para a educação e saúde pública. Vi as pessoas na Itália ficarem cada vez mais pobres a olhos vistos. Era um país em que não tínhamos pessoas morando na rua e as ruas estavam ficando cheias de gente. Não havia moradia.

Mas você passou dez anos pesquisando e procurando material em arquivos, certo?

Sim, é um trabalho em economia histórica e política. É baseado em fontes primárias e na reconstrução do passado através de uma nova perspectiva, analisando material que ainda não havia sido publicado. O tipo de debate sobre austeridade que estava ocorrendo na mídia, na política pública e até entre movimentos de esquerda era muito insatisfatório porque era muito apolítico.

Transformaram a austeridade em uma ferramenta técnica para gerir a economia e a discussão era se a austeridade estava ou não funcionando para equilibrar o orçamento e promover crescimento. Era um debate sem solução. E não muito útil para entender por que a austeridade continuava emergindo mesmo que claramente não estivesse gerando crescimento, nem ajudando a resolver a questão da dívida.

Então o estudo histórico é muito importante porque nos dá uma análise com perspectiva de classe que estava ausente no debate econômico contemporâneo, que era muito tecnocrático. A tentativa era então olhar para o que aconteceu 100 anos atrás e mostrar como a austeridade tem uma clara lógica política que visa manter todos nós em uma situação de precariedade, de dependência do mercado, desempoderando assim a população para que o sistema se proteja e mantenha a ordem do capital, que é o título do livro: A ordem do capital, para se manter intacto.

Se olharmos para a história, isso só é visível porque aconteceu em um momento em que o capitalismo foi muito contestado depois da Primeira Guerra, e assim realmente vemos como a austeridade operava como uma contraofensiva usada pelas elites para impedir qualquer alternativa ao nosso sistema.

Na apresentação do livro, você fala sobre várias crises econômicas e políticas em países do mundo todo, já que essas crises e essa austeridade são intrínsecas à nossa sociedade moderna.
Nos últimos anos, mais uma vez vimos uma crise do neoliberalismo no mundo todo, algo que já se dizia no início do século passado. Esse modelo econômico não é o mais adequado, certo?

Sim, com certeza. Estamos em outro momento em que as pessoas não acreditam no sistema, penso eu. Aliás, é por isso que a austeridade voltou com força total. Não só no Brasil. Eu moro nos Estados Unidos e o motivo pelo qual o Federal Reserve, o [equivalente ao] Banco Central, está aumentando a taxa de juros é porque a maioria das pessoas não está voltando ao trabalho.

Muitos trabalhadores estadunidenses, 46 milhões, em 2022, largaram seus empregos porque estão cansados da exploração e porque veem que o sistema não trabalha para eles e sim para uns poucos que enriquecem constantemente. Então é nessa situação que a austeridade deve voltar para nos convencer que, na verdade, estamos enganados e não existe outra saída a não ser através do sacrifício dos trabalhadores e, em última instância, do corte de salários para atrair a confiança dos investidores.

E o capital parece tentar se reestabilizar e se preservar o tempo todo.
Mesmo diante de uma crise, os bancos, o sistema inteiro, e até os governos liberais, ainda tentam protegê-lo.

Com certeza. Mas acho que existe aí uma mensagem de esperança que surge quando levamos a História a sério: o capital não é fixo, não é algo dado e não é uma coisa, não é um objeto. É uma relação social e se traduz em uma maioria que aceita sua condição e aceita sua condição de vender sua capacidade por um salário.

A relação social não é de maneira alguma estática. É dinâmica e pode ser subvertida. É dinâmica e pode ser subvertida. Então a realidade é que a ordem do capital é muito frágil. E é por isso que a austeridade é tão cara a ela, porque a protege de todas essas demandas de transformação social que vão surgindo.

A mensagem aqui é que precisamos saber como a classe dominante opera para preservar um sistema injusto. Precisamos parar de idealizar o capitalismo como um sistema que pode ser reformado e que tem flexibilidade para incorporar nossas necessidades, e perceber que o capitalismo tem limites rígidos. É um sistema que só cresce e produz para gerar lucro e isso requer austeridade.

A tese central aqui é que a austeridade não é uma exceção no capitalismo, não é algo que só se vê nas etapas neoliberais, começando nos anos 80. Ela é muito mais intrínseca à longa história do capitalismo. Está no DNA do sistema exatamente porque, para o capitalismo funcionar, a maioria das pessoas deve estar desempoderada, precarizada e dependente do mercado. E é isso que a austeridade faz. Tira recursos da maioria das pessoas, que ganham dinheiro através de um salário, e entrega a uma minoria, cuja riqueza vem de patrimônios e rendas.

A pesquisa aborda os primeiros anos do século 20 até a atualidade. E a austeridade esteve sempre presente, como você acaba de dizer, desde o período entreguerras, que é onde começa a pesquisa.

Você disse que a austeridade foi uma ferramenta técnica e despolitizada para a ascensão de lideranças autoritárias. Por que unir Mussolini, Jair Bolsonaro, Viktor Orbán e Giorgia Meloni, por exemplo? A pergunta é: “o que os une?”

É muito importante aqui dar um passo para trás. No livro, faço uma reconstrução da crise do capitalismo após a Primeira Guerra, há exatos 100 anos. Em 1919 e 1920, a população em geral tinha desistido do capitalismo, pensando que haveria um futuro melhor após a reconstrução pós-guerra. E todos esses experimentos que surgem de conselhos de trabalhadores demandam democracia econômica, o que significa que as pessoas estavam se reapropriando da produção e distribuição de recursos. Isso estava acontecendo concretamente.

Meu foco é o movimento de Antonio Gramsci, em Torino, L’Ordine Nuovo, em que é possível ver um esforço real não só para pensar diferente, como também para agir diferente. E só se podia agir diferente realmente pensando diferente e só se podia pensar diferente agindo diferente. Então é a importância da prática, de uma sociedade diferente nascer de experimentos dentro das fábricas e também no campo, em que as pessoas se reapropriaram dos meios de produção e da organização do trabalho.

Nessa situação explosiva, a burguesia ficou muito assustada. Porque, é claro, ela se beneficiava do capitalismo, queriam protegê-lo e qualquer forma de distribuição e democracia econômica teria significado, de certo modo, o fim dos seus privilégios. É nesse momento em que vemos emergir a austeridade como uma contraofensiva e aqui há dois fatores relacionados à sua pergunta. O primeiro é que os economistas participaram muito ativamente na construção de modelos econômicos supostamente “neutros”, teorias “neutras”, conhecimento científico, para dizer às pessoas que elas eram ignorantes, que elas não entendiam e, em suma, que estavam vivendo por conta própria e tinham que aceitar a verdade dura, como diziam, do trabalho duro e abster-se de consumir.

Então esse lema de austeridade, “consuma menos, produza mais”, foi imposto à população italiana e inglesa. Esses dois países são o foco dos meus estudos porque meu interesse é mostrar que a austeridade surge onde a democracia econômica é mais palpável. E naquele momento na
Europa as pessoas tinham ganhado o direito ao voto, por exemplo. Mas o que se vê é uma aliança entre economistas e governos. Os economistas são convocados pelos governos para ajudar a impor à população a austeridade. E a austeridade veio em uma variedade de formas. Não foram só cortes de gastos, foi, em primeiro lugar, cortes de gastos sociais, taxação regressiva. Então houve aumento em impostos sobre o consumo, como ainda vemos no mundo todo hoje, mais impostos para pessoas físicas e corte de impostos para ricos e impostos corporativos ou sobre patrimônio etc.

Também se tratava de aumentar as taxas de juros, que também vemos hoje, ou seja, austeridade monetária, e, por último, aquilo que chamo de medidas industriais, que são ataques diretos a sindicatos, privatização, desregulação do trabalho e arrocho salarial. Então essa tríade da austeridade; fiscal, monetária e industrial; foi imposta à população também graças a economistas que estavam dizendo: “Este é o caminho certo a seguir e somos especialistas e objetivos”. Nesse sentido, fica evidente que os economistas desempenharam um papel bastante classista, participaram nessa guerra de uma classe contra o resto dos cidadãos e isso poderia ter sido feito de outro jeito, como foi na Inglaterra, onde a democracia liberal usou a austeridade contra seu povo e isso aumentou o desemprego e assim disciplinou os trabalhadores.

Eles tiveram que deter as greves, voltar ao trabalho com um salário bem menor e em piores condições. Voltando à pergunta, na Itália, vemos que Benito Mussolini, o fundador do fascismo, foi o mais eficiente implementador e aprendiz da austeridade. Mussolini chegou ao poder através de uma eleição, não um golpe, assim como Giorgio Meloni e Orbán hoje. Mas com uma intenção explícita de impor austeridade, dizendo às pessoas para não se preocuparem porque iriam fazer os cidadãos italianos pararem as greves, as reclamações e voltarem ao trabalho.

Agora, eu acho que hoje vemos muitos desses políticos “autoritários parafascistas” emergirem porque as pessoas estão insatisfeitas com a austeridade. A austeridade venceu a um ponto em que não há mais a noção de classe: as pessoas pensam que são indivíduos [isolados], e é uma típica mensagem de austeridade: “Não há classes, não há antagonismo, só indivíduos. E são os empresários que lideram a máquina econômica, não os trabalhadores.”

Então, no caso da Itália, para mim, Meloni chegou ao poder porque prometeu redistribuição de renda, e é claro que não cumpriu, porque assim que assumiu o poder mais uma vez impôs austeridade, como Mussolini e outros regimes autoritários.

Sobre isso, você diz que a austeridade não teve sucesso em estabilizar a crise econômica, mas teve sucesso em estabilizar as relações de classe. Estamos vendo agora uma mudança global nas relações de trabalho. Os sindicatos estão enfraquecidos, perdendo poder em alguns países. Como poderíamos ver nascer uma nova organização de trabalhadores?

Tenho algumas ideias sobre isso. Em primeiro lugar, mesmo se existe essa ideia de que os trabalhadores estão enfraquecidos, isso se deve à ação da austeridade sobre nossa vida por mais de 100 anos. Ela foi muito bem-sucedida, como você disse. A austeridade não teve sucesso em atingir os objetivos estabelecidos de crescimento econômico e pagamento da dívida, mas teve muito sucesso em atingir seu verdadeiro maior objetivo: garantir que as pessoas não pensem que podem viver em outro tipo de sociedade, aceitem sua condição de trabalhadores assalariados. Mais uma vez, impondo a ordem do capital. E isso também é uma armadilha para a mente porque os modelos econômicos reafirmam que os trabalhadores não importam, só os empresários.

Então é justo e correto afastar os recursos dos preguiçosos e favorecer os supostamente meritórios. Eles oferecem justificativas para essas políticas de extração de todos nós.

Claramente a austeridade teve sucesso e vemos que, historicamente, os trabalhadores perderam poder, o poder de barganha, o poder de imaginar um novo futuro. Dito isso, quero chamar atenção ao fato de que, no capitalismo, a luta de classes nunca para. É uma constante. Nosso sistema está em movimento, é um processo, não há nada fixo, mesmo que os economistas queiram que acreditemos que há algo fixo. Porque acreditar que algo é fixo nos desempodera e aprisiona nossa imaginação.

Então quero dizer que, é claro, existe um motivo por que a coisa não vai tão bem para os trabalhadores neste momento histórico, mas não é à toa que existem muitas mobilizações novas.
Nos Estados Unidos, por exemplo, é o setor de serviços: pessoas em restaurantes, hotéis, em áreas em que normalmente o trabalho é muito precarizado e individualizado, estão agora se sindicalizando. Starbucks, Amazon, Chipotle. E isso está assustando muito as classes dominantes.

Eu diria que estamos em um momento, na verdade, em que existe novamente certa turbulência. Claro, não é o espírito revolucionário de 100 anos atrás, mas há muita demanda por libertação.

Respondendo a sua pergunta, me sinto muito esperançosa. Há pouco estive na África do Sul, apresentando o livro, e me organizei e me encontrei com ativistas das townships [áreas urbanas comparáveis a favelas].

As townships são lugares onde o apartheid ainda existe, em termos de precarização econômica. No entanto, há muita energia no território, muita gente das novas gerações que abandonou as velhas categorias e estão pensando o novo.

Acho que o importante, para avançarmos, é abrir espaço para essas iniciativas que buscam recuperar independência e autossuficiência.

Trata-se de romper a principal armadilha, que é a dependência do mercado. O que quero dizer? Que a maioria de nós, para poder viver, precisa ter dinheiro no bolso. Se quiser comer, tem que comprar algo no supermercado. Se quiser morar, tem que pagar aluguel. Se quiser ser curado, tem que pagar pelos médicos. Se quiser ir à escola, muitas vezes tem que pagar. Este é o resultado da austeridade.

A mercantilização de todos os aspectos da nossa vida para nos desempoderar cada vez mais.

Acho que a primeira missão aqui é ser capaz de recuperar nosso poder através da organização, de conselhos, da vizinhança, de atividades locais, de formas de produzir e distribuir por nossa conta. Assim não dependeremos do salário dos capitalistas e não gastaremos nosso dinheiro em supermercados, para que o dinheiro não vá embora assim que entrar. Precisamos que os recursos permaneçam dentro da comunidade. E acho que esse é um primeiro passo importante para engajar as pessoas na ideia de organizar, colaborar e perceber que não é suficiente só votar nas eleições.

Votar nas eleições é um ato muito superficial. E é algo que mantém viva a servidão econômica.

Então é preciso romper e combater a servidão econômica. E esse seria um primeiro passo em um projeto muito mais ambicioso, que vai além da democracia social. É a derrubada das relações salariais em si. Repito que isso está acontecendo. Está acontecendo nas townships, eu estive lá há pouco. Está acontecendo no Chile, onde os conselhos são fortes.

Acho que está acontecendo no mundo todo, mas a mídia não fala disso.

Mas é suficiente para se envolver, ir para a rua, conhecer sua vizinha, ver que essas realidades existem e a austeridade está aí justamente para parar esses processos. Mas nós precisamos lutar contra isso.

Você mencionou a viagem à África do Sul. Seu livro será publicado no Brasil no segundo semestre, editado pela Boitempo. Está preparada para esse tour ao redor do mundo?

Tenho um filho de 8 meses que está viajando conosco. Seria melhor não ter que me mover tanto, mas faço isso porque acredito no poder do conhecimento, em ajudar a levar processos adiante.

Novamente, a mudança tem que vir de baixo, de quem está mobilizado. Mas acho que as bolsas de estudo de militância podem ajudar a desenvolver ferramentas para afiar a mente e o conhecimento sobre as estratégias inimigas. E é por isto que a História é útil, para abrir espaço a novas maneiras de fazer as coisas, para fomentar a imaginação política porque, no passado, houve muitos esforços para mudar a nossa sociedade. E ainda existem esforços assim e acho que meu papel é fazer a discussão avançar e dar esperança às gerações mais novas.

A ideia de ter um orçamento elevado é o debate central no Brasil hoje.

Esse debate eterno torna impossível avançar em direção a uma agenda positiva para o país. Por outro lado, muita gente, incluindo o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, acredita que os juros altos vão barrar o crescimento econômico e que o controle da inflação não deveria ser o foco principal. Essa ideia sobre o orçamento primário tem a mesma origem que a austeridade?

Com certeza. É exatamente isto que a austeridade faz. Passa a mensagem de que não há alternativa. Equilibrar o orçamento é uma prioridade indiscutível. É uma prioridade neutra e necessária. Agora, sabe que a mensagem do livro não é que esses economistas estão necessariamente errados. Acho que em boa parte dos casos, principalmente em países do Sul, nos quais os limites do capitalismo são reais, é realmente um problema que a inflação esteja alta, que a moeda esteja desvalorizada. Mas isso dialoga com a violência econômica que é muito estrutural no sistema.

Por isso a solução não é só fazer remendos no nosso sistema, com algumas reformas. Porque o estrangulamento é forte.

E é verdade que, sob o capitalismo, dependemos da confiança dos investidores para o crescimento econômico. E como você atrai investidores? Só se mantiver baixas as taxas sobre grandes riquezas e as taxas empresariais. Só se abrir às privatizações. O que ocorre agora é que grandes gestores de ativos estão comprando infraestrutura, imóveis, para tirar o máximo de taxas e renda, para aumentar o máximo possível as nossas necessidades diárias. Mas é exatamente isto que o Estado capitalista deve fazer, em suma, abrir-se a esses investidores privados. Essa é a realidade do sistema. É por isso que é muito idealista pensar que o Estado capitalista pode se opor a essas tendências globais de austeridade. É por isso, repito, que temos que encontrar formas através de processos de libertação da propriedade privada, meios de produção e relações salariais. Porque o capitalismo realmente nos aprisiona. Não sei se isso faz sentido.

Esse debate entre economistas soa, é claro, como se não fosse uma escolha política. E podemos dizer que obviamente é uma escolha política. Mas também é uma escolha restritiva porque são decisões políticas favoráveis à manutenção da estabilidade de certa forma de mercado capitalista, certo? E isso requer nossa subordinação às leis do mercado que nos estrangulam e beneficiam uma minoria muito pequena. Essas escolhas políticas são restritivas. Mas nós podemos pensar grande, querer mais que migalhas para manter o povo controlado. Precisamos pensar grande, pensar em realmente romper com a nossa posição de subordinação ao mercado.

Aqui no Brasil, em 2016, o governo, que aliás não tinha sido eleito pelo povo, criou um marco fiscal conhecido como “teto de gastos”. A ideia era controlar o orçamento e a relação entre gasto público e PIB. Na verdade, vimos uma drástica redução em investimentos sociais, como educação, saúde pública e outros programas sociais. Essa política de austeridade, junto a outros eventos do sistema político brasileiro, pavimentaram o caminho para a eleição de Jair Bolsonaro.

Movimentos como esse poderiam dar lugar ao avanço de partidos de extrema direita?

Sim, esse é outro exemplo de que a austeridade não é um erro. Muita gente na esquerda diz que é fruto de uma economia ruim, que é um erro. Infelizmente, não é um erro. O que você descreveu mostra o sucesso da austeridade. As pessoas foram tão desempoderadas, que perderam seu senso de união de classe. Perderam a noção da luta coletiva contra o inimigo, que é a minoria que se beneficia do sistema, e terminaram votando por essa minoria que se beneficia do sistema. Porque a austeridade nos individualiza, nos convence que todos nós podemos ser empresários se nos esforçarmos e que deveríamos sentir vergonha de ser pobres. O motivo por que as pessoas votam em alguém como Trump é exatamente o sucesso da austeridade. Não acho que podemos culpá-las por votarem em Bolsonaro ou Trump. Deveríamos culpar a elite dominante, incluindo, infelizmente, o Partido Democrata [dos Estados Unidos] e todos os partidos supostamente progressistas que, de forma hipócrita, já vinham praticando a austeridade.

A austeridade atravessa fronteiras partidárias. Infelizmente, aqueles que supostamente representam o povo, incluindo os sindicatos, apoiaram a austeridade, criaram a sensação de falta de esperança e de que deveríamos fazer o possível para nos salvar como indivíduos, sem olhar para o fato de que somos, na verdade, produtores, produtores coletivos que deveriam lutar contra a exploração e contra aqueles que nos exploram. Então é só através da recriação do senso de coesão de classe e da conscientização de classe que podemos nos libertar da armadilha de pensar que regimes autoritários vão nos salvar. Eles não vão. Mas o mesmo vale para partidos democratas, como o de Biden, que estão desfinanciando todos os setores sociais. Por toda parte.

A sorte visita quem arruma a casa!, por André Roncaglia

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Com parcos recursos institucionais e políticos, o governo lidou com numerosas frentes de batalha

André Roncaglia, Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo, 29/12/2023

Ao avaliar as “Possibilidades econômicas do governo Lula”, destaquei que Lula inaugurara um governo sitiado, enfrentando um Congress arredio e pronto para desidratar suas propostas.

O governo passou pela “ponte do rio que cai”, equilibrando-se na “pinguela para o futuro” deixada por Temer e Bolsonaro, enquanto as forças armadas —e o sindicato do rentismo na imprensa e no Bacen— torpedeavam o governo de uma posição privilegiada e segura.

Com parcos recursos institucionais e políticos, o governo lidou com numerosas frentes de batalha. A priorização da agenda econômica trouxe custos políticos e institucionais, tais como a hipertrofia das emendas parlamentares (R$ 53 bilhões).

Logo após a vitória, o governo Lula, ainda não empossado, aprovação a PEC da Transição, abrindo necessário espaço fiscal para “arrumar a casa” em 2023.

Com efeito, manutenção e reforço do Bolsa Família, elevação real do salário mínimo, dos salários do funcionalismo e do limite de isenção do Imposto de Renda, reativação da Farmácia Popular, reajuste das bolsas de estudo e pesquisa, alívio do endividamento das famílias (Desenrola), dentre outras medidas, produziram efeitos macroeconômicos benignos.

O PIB deve crescer 3%, surpreendendo as previsões —eleitoralmente ressentidas— do mercado (0,8% no início do ano). Haja sorte!

Lula concentrou sua crítica na Selic que subiu a jato até a estratosfera e, agora, cai de paraquedas, asfixiando os investimentos produtivos. Fernando Haddad teve vitórias marcantes contra a vergonhosa injustiça tributária: o fim da isenção de fundos exclusivos e offshore, regularização das importações via e-commerce e a eliminação de distorções tributárias (como o impacto das subvenções do ICMS sobre gastos em custeio nos impostos federais).

O marco fiscal sustentável substituiu o disfuncional teto de gastos, oferecendo uma trajetória dura (e previsível) de ajuste fiscal que acalmou os mercados e viabilizou a queda da Selic a partir de agosto. Com a melhora do cenário externo (e a ajuda do Fed), a bolsa de valores bateu máxima histórica (134 mil pontos e 26% de valorização no ano); os juros longos e a taxa de câmbio despencaram.

A desinflação global da energia e dos alimentos se aliou à apreciação cambial, derrubando a inflação —que deve fechar o ano em 4,7%— e aumentando o apoio a cortes maiores na taxa Selic (hoje em 11,75%).

O saldo recorde da balança comercial (cerca de US$ 90 bilhões) gerou o mais baixo déficit em conta corrente em mais de uma década (US$ 0,2 bilhão). As exportações da agropecuária e do setor extrativo-mineral foram importantes motores do crescimento, mas representam uma fatia irrisória dos quase 2 milhões de empregos criados em 2023.

Foi o setor de serviços que puxou a elevação robusta da renda real do trabalho até o terceiro trimestre deste ano (3,9% na comparação interanual). A manutenção deste ritmo é um dos grandes desafios para 2024, assim como a ampliação dos investimentos públicos.

A reforma tributária aprovada em dezembro coroou o esforço fiscal e consolidou a boa imagem do governo fora do país, aproximando-nos do grau de investimento. Resta avançar na reforma tributária da renda, do patrimônio e da folha de pagamentos.

A neoindustrialização ganha corpo com a restauração do foco industrial e na inovação do BNDES, a folga da política de preços da Petrobras e a reativação da CEITEC (estatal dos chips), medidas de suporte ao Novo PAC. Falta ainda coerência nas políticas externa e energética (ingresso na OPEP+ na COP28 e a paralisia no caso Eletrobras).

Com a melhoria do cenário externo, as reformas de longo prazo efetivadas podem ampliar o horizonte do cálculo econômico e repetir, em 2024, parte desta “sorte” que visita quem deixa a casa arrumada.

Analisarei os desafios no novo ano.

Que venha 2024!

Morre Robert Solow, pioneiro no estudo do crescimento econômico, por Bernardo Guimarães

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Ao avaliarmos políticas públicas, precisamos pensar no que pode gerar um próspero 2044

Bernardo Guimarães, Doutor em economia por Yale, foi professor da London School of Economics (2004-2010) e é professor titular da FGV EESP

Folha de São Paulo, 27/12/2023

Morreu na semana passada, aos 99 anos, Robert Solow, um grande macroeconomista e vencedor do Prêmio Nobel. Solow fez sua carreira como professor do MIT e foi um pioneiro na moderna literatura sobre crescimento econômico.

O que gera desenvolvimento econômico? O que fez com que a renda por habitante da China tenha ido do nível da Etiópia em 1980 para maior que a do Brasil 40 anos depois? E como a China era tão pobre há 50 anos? O que fez Botswana ser 8 vezes mais rica que o vizinho Zimbabwe? Como alguns países do leste asiático que eram muito mais pobres que nós em 1950 são hoje tão desenvolvidos quanto países europeus? E por que a maioria dos países não conseguiu esse feito?

Como disse Robert Lucas, outro grande economista que morreu em 2023, quando começamos a nos perguntar sobre isso, é difícil pensar em outra coisa. Especialmente para países pobres e de renda média, um bom crescimento econômico por algumas décadas faria com que muitas pessoas tivessem vidas mais longas, saudáveis, confortáveis e felizes.
Robert Solow abriu caminhos para pesquisa nesse campo. Nos anos 1950 e 1960, ele mostrou, com modelos teóricos e dados, que acumulação de capital por si só não traria crescimento econômico duradouro.

Teoricamente, essa conclusão segue da ideia de que capital tem retornos decrescentes: mantendo tudo o mais constante, quanto mais capital há numa empresa, menos importante é acrescentar mais capital. Se há muito poucos computadores, um a mais torna a empresa bem mais produtiva. Mas se os computadores são bons e abundantes, investir mais nisso não aumenta significativamente a produtividade.

Empiricamente, Solow mostrou, usando 50 anos de dados dos Estados Unidos, que o crescimento econômico tinha menos a ver com acumulação de capital e mais a ver com fatores tecnológicos, educacionais ou culturais.

Esses seus artigos estimularam muito trabalho na área. Como eu não conseguiria fazer um resumo decente neste espaço, fecho com algumas implicações dessa literatura acadêmica para a nossa realidade.

Como gerar condições para crescimento econômico duradouro?

É lugar-comum dizer que precisamos investir mais em educação —ao mesmo tempo em que se desprezam aulas e livros.

Contudo, o Brasil gasta cerca de 5,5% do PIB com educação, percentual similar ao de outros países. Há muita pesquisa, inclusive de economistas, sobre o que podemos fazer para melhorar o retorno desse investimento.

Nós achamos que entendemos a importância de medidas que possam forjar o crescimento econômico por décadas, mas o jogo político foca sempre na evolução do PIB e a inflação atual.

Parece que esquecemos que o PIB do Brasil em 2023 será por volta de R$ 10 trilhões, não R$ 5 trilhões, nem R$ 20 trilhões, não por causa do que o governo Lula fez em 2023 ou o governo Bolsonaro fez em 2022, mas por tudo o que foi feito no passado.

Claro, isso não quer dizer que nosso destino foi escrito há 500 anos. Em 1950, a renda por habitante da Costa Rica era parecida com a da Guatemala. Hoje é quatro vezes maior. Poucas décadas podem fazer uma baita diferença.

A literatura acadêmica moderna enfatiza a importância de instituições que estimulem o investimento, a produção e a alocação eficiente de recursos. Precisamos de mais reformas nessa direção.

Esse é o momento de nos desejarmos um feliz 2024, mas, ao avaliarmos políticas públicas, precisamos pensar no que pode gerar um próspero 2044.

Pacto pelo Emprego

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Com o avanço da tecnologia em todas as áreas e setores, a sociedade passa por momentos de grandes transformações com impactos sobre o mundo do trabalho. De um lado percebemos o crescimento das tecnologias digitais, o aumento da competição, o crescimento da inteligência artificial, novas estruturas produtivas, novos modelos de negócio e grandes exigências para todos os indivíduos, buscando constante atualização e novos conhecimentos, além de novas habilidades que demandam recursos financeiros, levando muitos trabalhadores a não conseguirem estes recursos para investimentos, privando-os desta qualificação fundamental para sua inserção no mercado contemporâneo.

Vivemos momentos de incertezas, instabilidades e, ao mesmo tempo, grandes desenvolvimentos no mundo da tecnologia, que aumentam a produtividade do trabalho, consolidando novos setores, impulsionando o surgimento de novos modelos de negócios. Como imaginaríamos duas décadas atrás o surgimento de empresas como o Uber, a Netflix, o WhatsApp, dentre outras, com novos modelos, novas dinâmicas e capacidade de transformar as formas de organização social e política.

Diante destas transformações cotidianas, que se caracterizam pela rapidez destas alterações na sociedade, um dos grandes desafios para a economia global é a criação de emprego, fundamental para que os indivíduos consigam sobreviver de forma decente e diminuindo a dependência de políticas públicas desenvolvidas por governos nacionais, garantindo maior autonomia e novas formas de inserção na sociedade contemporânea, tão marcadas por grandes desigualdades, exclusões sociais e violências urbanas que se espalham em todas as regiões do mundo.

Para estimularmos os investimentos produtivos é fundamental que os governos nacionais desenvolvam projetos que auxiliem os setores privados e públicos para incrementarem os investimentos produtivos, sem investimento é impossível aumentar a geração de emprego na sociedade. Vivemos numa comunidade marcada por educação de baixa qualidade, impostos elevados para os setores produtivos e que se acostumou com as taxas escorchantes de juros, que estimulam fortemente o rentismo e a especulação financeira, inibindo os investimentos produtivos e contribuindo maciçamente para o aumento das desigualdades sociais e a degradação econômica que crescem rapidamente, estimulando as exclusões e a violência, que afugentam os investimentos produtivos, a geração de emprego e a melhora das condições sociais.

Numa sociedade marcada por grandes desenvolvimentos tecnológicos, dos negócios digitais, da internet das coisas e com o crescimento da inteligência artificial, as nações desenvolvidas estão aumentando os investimentos das pesquisas científicas, na formação de capital humano, melhorando as condições de trabalho dos profissionais da educação, que devem ser vistos como os profissionais imprescindíveis para a nova sociedade do conhecimento, estimulando a qualificação destes profissionais e deixando de lado discursos ideológicos mesquinhos que atrasam as grandes movimentações em curso na educação mundial.

Vivemos momentos de grandes transformações energéticas na sociedade internacional, neste cenário, somos dotados de grandes ativos estratégicos que precisam ser estimulados, fortalecendo energias alternativas, preservando o meio ambiente, construindo estruturas para a preservação da Amazônia, combatendo garimpos ilegais e fortalecendo a indústria nacional, adotando políticas de reindustrialização produtiva. Todas estas políticas têm forte potencial na geração de emprego e renda, garantindo empregos melhores e qualificados, com novas regulamentações e novas formas de fiscalização.

Todos os dias percebemos o crescimento da insegurança urbana, novas formas de exploração na sociedade, além do incremento do tráfico de drogas, dos conflitos das facções e do incremento das milícias, que crescem numa sociedade que se esfacela todos os dias, marcada por polarizações políticas e a busca constante por interesses imediatos, individualistas e corporativos. Um pacto pelo emprego pode ser o início da reconstrução nacional de uma sociedade que, infelizmente, desaprendeu a capacidade de sonhar.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Dowbor: Assim o rentismo tornou-se doutrina

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Livro apresenta o homem que forjou o receituário corporativo do capitalismo improdutivo: cortar gastos obsessivamente, criar competição tóxica e buscar o lucro máximo, a qualquer custo.

Fórmula inspirou personagens como Lemann

Ladislau Dowbor – Outras Palavras, 21/12/2023

A principal transformação do capitalismo nas últimas décadas é de ter migrado do lucro sobre processos produtivos como eixo central, para a maximização dos rendimentos financeiros, materializados em dividendos para acionistas. Trata-se do rentismo moderno, da maximização de dividendos por meio de sistemas especulativos, recompra de ações, cortes de empregos e de salários, evasão fiscal por meio de paraísos fiscais e outros mecanismos, no que tem sido chamado de financeirização. Há numerosos trabalhos sobre esta nova fase neoliberal do capitalismo, e de primeira linha, como de Joseph Stiglitz, que qualifica esses lucros de “unearned income”, ou seja, rendimentos não merecidos; de Thomas Piketty, que os qualifica de “rentas” (rentes em francês); de Mariana Mazzucato, que se refere ao “extractive capitalism”; de Michael Hudson, que os apresenta como bactérias que matam o hospedeiro (Killing the Host); de Gabriel Zucman (The Triumph of Unjustice), isso sem falar dos que abriram os caminhos, como François Chesnais e David Harvey. É uma visão que está se tornando dominante na economia em geral. Bom senso em construção.

Mas o aporte de David Gelles, no livro The man who broke capitalism: how Jack Welch gutted the heartland and crushed the soul of corporate America – and how to undo his legacy, é contundente, pela análise detalhada de corporações concretas, como a General Electric – como exemplo básico – mas também da Amazon, AT&T, Boeing, BlackRock, Unilever, Paypal, e também, particularmente interessante para nós, da 3G Capital. Esta última é controlada por Lemann, Sicupira e Telles, responsáveis pelas fraudes bilionárias das Lojas Americanas, e que constituem o grupo privado mais poderoso hoje no Brasil, conforme vemos na edição da Forbes sobre bilionários brasileiros.

O trabalho de Gelles alimenta sem dúvida uma visão de conjunto da financeirização, mas construída a partir do comportamento detalhado das grandes corporações, no cotidiano da tomada de decisão dos executivos. Poucas obras são tão ricas em termos de fazer compreender os mecanismos deste bicho novo que ainda chamamos de capitalismo, mas que funciona de maneira diferente e obedece a regras que nos escapam. Ainda se auto-qualificam de “mercados”, mas estão muito mais próximos de uma “aristocracia capitalista”, como as qualifica Michael Sandel.

David Gelles escreve de maneira excepcionalmente clara. Jornalista e colunista do New York Times, e pesquisador sobre o funcionamento concreto de corporações financeiras e tecnológicas, navega com conforto na área, e torna a temática muito acessível. A realidade é que escreve muito bem, o livro “se lê”. E a seriedade da pesquisa, riqueza de fontes e facilidade de consulta faz deste trabalho, a meu ver, uma das melhores ferramentas para entender a dimensão atual dos nossos desafios. Não precisa ser economista, Gelles insiste em que os mecanismos sejam entendidos. Queiramos ou não, esses gigantes corporativos, com seu alcance global, estão definindo os rumos das nossas economias, dos nossos empregos, inclusive Jack Welch é um protagonista central. Executivo da uma das maiores corporações mundiais, a General Electric, ele conseguiu, em 20 anos, entre 1981 e 2001, transformar uma empresa de ponta de produção de utilidades domésticas em um gigante financeiro que compra e revende empresas de qualquer setor da economia, seguindo à risca os conselhos de Milton Friedman, de que se trata de maximizar o retorno dos acionistas, pouco importa como e a que custo. Friedman deu a benção acadêmica para essa economia do vale-tudo corporativo: The business of business is business. Essa fratura entre a busca de lucros e dividendos, e os interesses da sociedade é central. “A lucratividade da corporação já não se traduz em ampla prosperidade econômica”, escreve Gelles, citando William Lazonick. (65).

Eu me familiarizei com Jack Welch ao ler há alguns anos o seu principal livro, Straight from the Gut, título que sugere uma escrita enraizada nos sentimentos mais profundos e sinceros, mas um dos livros de gestão mais cínicos que já tive entre as mãos. E teve impacto planetário, legitimando o vale-tudo, ao mostrar como os acionistas da GE passaram a ganhar muito mais dinheiro, e valorizando a empresa na bolsa. De certa forma, o que Friedman fez para os economistas, liberando-os de qualquer relação com ética e valores em geral, Welch o fez para uma geração de executivos pelo planeta afora, um impacto impressionante, mas que coincide com os interesses de se fazer dinheiro a qualquer custo. Basta olhar o que “os mercados” aprontam no Brasil. Não à toa hoje enfrentamos a “economia desgovernada”.

Uma das técnicas de Welch que ficou famosa e foi muito replicada consiste em organizar a empresa em unidades, cujo chefe é obrigado, a cada fim de ano, a definir quais são os 20% de trabalhadores mais produtivos, os 70% seguintes, e os 10% menos produtivos, que seriam despedidos. Isso gera uma guerra permanente em todos os departamentos, luta pela sobrevivência, em vez de sistemas colaborativos e sentimento de equipe. Acompanhado de despedimentos em massa (downsizing), de liquidação de segmentos menos lucrativos, substituindo-os por terceirizados, e compras dispersas de qualquer empresa que pudesse gerar mais lucro ao ser fragmentada e revendida, o resultado foi um dreno poderoso a favor dos acionistas, na linha, precisamente, da maximização de dividendos. Dos desastres gerados resulta a batalha atual de muitas empresas, de promover o ESG (Environment, Social, Governance), tentando recolocar no horizonte empresarial não só o lucro dos acionistas (shareholders), mas também os impactos sociais e ambientais (stakeholders).

Como exemplo de comportamentos lucrativos mas desastrosos de grandes corporações, o autor aponta a 3G Capital, controlada por Lemann, Sicupira e Telles, os maiores bilionários brasileiros, que drenam recursos não só das Lojas Americanas, por quaisquer meios legais ou ilegais, mas de uma imensa rede de empresas controladas por participações de diversos tipos. “No caminho, escreve Gelles, os brasileiros desenvolveram uma reputação de cortadores selvagens de custos e de demitidores despiedados (merciless downsizers).” Gelles cita o próprio Lemann: “Na realidade, somos copiadores. É o que somos. A maior parte do que aprendemos foi de Jack Welch, de Jim Collins (autor de Good to Great), da GE, da Walmart. De certa maneira juntamos tudo isso” (p. 178). Centrar tudo no lucro financeiro e no curto prazo é hoje a filosofia de inúmeras corporações, e explicam em grande parte o paradoxo de tantos avanços tecnológicos, enquanto as economias estagnam, aumentam a desigualdade, o desemprego e os empregos precários. É uma deformação sistêmica, que no Brasil atingiu dimensões absurdas, inclusive com desindustrialização.

“Considerem, escreve Gelles, o caso da 3G Capital, um grupo privado de acionistas que controla marcas incluindo Budweiser, Burger King, e Kraft Heinz. Fundado por um grupo de financistas brasileiros, os homens por trás da 3G Capital são os Neutron Jacks (apelido dado a Jack Welch por sua capacidade de explodir empresas, LD) do século 21, implacavelmente adquirindo empresas, cortando custos e cabeças, e extraindo lucros para si mesmos e investidores enquanto pareciam ignorar o bem-estar da sua força de trabalho e a necessidade de pesquisa e desenvolvimento” (p. 177). É importante entender que essa maximização de apropriação de dividendos pelos acionistas leva à redução de investimentos produtivos na empresa, fragilizando-a. “As corporações, que outrora compartilhavam generosamente os lucros com os seus trabalhadores no país todo (EUA), agora canalizam a parte do leão da riqueza que criam para investidores institucionais e executivos. Enquanto nos anos 1980 menos de metade dos lucros corporativos voltavam para investidores, durante a última década, este número subiu (soared) para 93%” (p. 183).

Para claro o contraste, David Gelles, descreve a tentativa do grupo 3G Capital de controlar a Unilever, fazendo uma proposta dourada ao seu executivo Paul Polman (anteriormente da Nestlé).

Seria uma aquisição gigantesca, da ordem de US$143 bilhões, o que dá uma ideia da força financeira internacional deste grupo. Polman resistiu, e orientou a Unilever para uma linha que prioriza o desenvolvimento produtivo, com equilíbrio entre dividendos, remuneração dos trabalhadores e reinvestimento na empresa. “Temos de sair desta corrida de ratos” disse Polman.

“Era uma transação puramente financeira que era atraente no papel, mas constituía na realidade dois sistemas econômicos conflitantes” (p. 206). Segundo Gelles, “os brasileiros tinham mal avaliado a sua presa.”

Eu queria muito recomendar a leitura desse livro. Sem frescuras, academicismos ou gráficos complexos, mas com muita documentação de apoio e pesquisa, é a melhor radiografia que li sobre como se deformou o que conhecíamos antigamente como capitalismo industrial, e que hoje conhecemos como “mercados”, aos quais temos de obedecer, se não “ficam nervosos”, e temos pagar obedientemente os juros extorsivos, e acreditar que se eles ficam ricos – sem gerar produtos, pagando mal os poucos empregos que geram, e evitando os impostos – a economia irá prosperar.

Bem, é o que os consultores na mídia comercial nos repetem todo dia.

Não estamos equipados para tanta complexidade, por Suzana Herculano-Houzel

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Precisamos do presente mais valioso de todos: tempo livre

Suzana Herculano-Houzel, Bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).

Folha de São Paulo, 26/12/2023

O mundo está indo para o ralo. Democracias quebradas, liberalismo econômico que só atende aos mais ricos, extremos de temperatura e clima, cada vez mais desinformação e desigualdade inclusive em como se faz ciência (eu volto a isto na próxima coluna, prometo). Por quê? Eu me atrevo a arriscar uma resposta bastante simples: a complexidade galopante do mundo que estamos criando hoje excede em muito o tempo que temos disponível para aprender a lidar com ela.

Vejo o problema nas portas que deixamos se fecharem a torto e a direito exatamente porque perdemos o controle da velocidade em que geramos aquilo que um dia trouxe novas oportunidades àquela que, olhando para trás, chamamos de nossa espécie: tecnologia. Falo da tecnologia de maneira geral, que colocou em movimento a bola de neve do nosso destino ao transformar em polpa alimentos até então duros e difíceis de comer e nos dar o presente mais valioso de todos: tempo livre.

Por definição, tecnologia é tudo aquilo que gera tempo livre para fazer outras coisas e usar nossos neurônios criativamente. No caso da história humana, a tecnologia tem sido triplamente transformadora porque mamíferos com mais neurônios (cortesia número um da tecnologia) têm cada vez mais capacidade de resolver problemas aqui e enxergar novos ali (cortesia número dois) e vidas cada vez mais longas para continuar enxergando e resolvendo problemas (cortesia número três).

Elefantes têm um monte de neurônios, mas comem grama, então sua realidade é não ter tempo para nada além de comer o dia todo. Humanos, ao contrário, são aqueles primatas que inventaram truques para comer a energia de que precisam mais rápido, e assim foram ficando ao mesmo tempo mais capazes tanto de facilitar sua própria vida quanto de… complicá-la.

A razão é exatamente a mesma que explica nenhum adulto ainda gostar de jogo da velha ou damas: o que era dificuldade, mas a gente aprendeu a resolver rápido, não tem mais graça nenhuma, porque o esforço não vale mais a pena quando não há nada de novo ali para ser aprendido. Por isso, o que todo animal quer é sarna para se coçar.

O problema é que, para o animal humano, a sarna que a gente quer coçar é a própria tecnologia.

Como aprender a usar a da vez é necessário e divertido, usamos o tempo livre de que dispomos graças à tecnologia para criar e usar… ainda mais tecnologia. Nossa história moderna é a bola de neve resultante dessas conquistas que se retroalimentam —e que agora está virando uma avalanche que cada vez menos gente dispõe das habilidades para entender.

Interromper a avalanche, ou ao menos mitigar seu estrago, exige cidadãos que aprendam a fazer bom uso do tempo livre que a tecnologia lhes dá: cidadãos que usem esse tempo para olhar para trás, olhar ao redor e um ao outro, para aprender a lidar com a complexidade de várias verdades contraditórias do mundo moderno e, sobretudo, para se manterem inteligentes. Pois inteligência é a capacidade de agir para manter portas abertas, e nossa incapacidade crescente de lidar com um mundo cada vez mais complexo torna a humanidade burra, tomando decisões que fecham portas para o seu próprio futuro —exatamente como o mau uso da tecnologia que um dia nos tornou humanos hoje apenas nos torna gordos.

A incompetência da extrema direita em segurança, por Thiago Amparo

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A voz grossa do extremismo busca, sem sucesso, esconder sua inépcia

Thiago Amparo, Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

Folha de São Paulo, 21/12/2023

Precisamos falar sobre o quão incompetente é a extrema direita em segurança pública. Digo isso apesar da eficiência de sua retórica linha-dura no tema: mais armas nas mãos de cidadãos e mais polícia sem controle nas ruas equivaleriam a menos crimes. Nada mais falso. Quando olhamos por baixo do tapete da retórica, o que vemos é descontrole da polícia, o amadorismo em segurança e a precarização do trabalho das polícias.

Isto é o que se percebe em São Paulo e no Rio no momento. Vejamos exemplos apenas deste mês. Cenas de arrastão em carros na rodovia no Guarujá, litoral paulista. Dois ataques a carros-fortes, no interior e no ABC paulista, em apenas 48 horas entre os dias 11 e 13 deste mês. Crescimento de ações de “justiceiros” (eles mesmos criminosos) nas ruas de Copacabana, no Rio. Governo sob Castro e prefeitura sob Paes, juntos, buscando na Justiça apreender adolescentes (sabemos a cor deles), sem flagrante e em violação à lei.

Não são apenas casos isolados. Os oito primeiros meses de 2023 foram os que tiveram mais roubos no centro paulistano em toda a série histórica dos últimos 22 anos. Permitir que policiais adulteram as câmeras corporais em São Paulo, colocar secretário de Segurança condecorado por deputado ligado a miliciano no Rio, aprovar com a bancada da bala o desmonte das ouvidorias, eis a solução da extrema direita que revela sua incompetência no tema.

A verdade é que as melhores políticas de segurança pública no país foram adotadas por governos não extremistas de direita. Estudo do Instituto Sou da Paz, de abril de 2023, faz um balanço de algumas dessas políticas. Iniciativas sérias como Mesa de Situação em Alagoas em 2015, Em Defesa da Vida no Ceará em 2014 e Estado Presente em 2011 no Espírito Santo são alguns exemplos de políticas de segurança baseadas em evidências e com resultado.

A voz grossa da extrema direita em segurança é estridente porque busca, sem sucesso, esconder sua incompetência.

Desigualdade aumenta o gasto social em segurança patrimonial, por André Roncaglia

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Democratização das oportunidades diminui a oferta de mão de obra ao crime e cria ambiente mais seguro

André Roncaglia, Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo, 22/12/2023

A América Latina é uma região violenta. Responsável por quase metade das vítimas de homicídio no mundo, ela detém pouco mais de 8% da população global. É também uma das regiões mais desiguais do planeta.
Estudo recente do Fundo Monetário Internacional (FMI) mostra que, além das dolorosas perdas familiares, a criminalidade inibe a acumulação de capital. Ao afugentar investidores temerosos de roubo e violência e elevar os custos de vida e de operação das empresas, a insegurança diminui a produtividade ao desviar recursos para investimentos menos produtivos, como a segurança residencial.

O combate ao crime melhora a alocação de recursos, mas é importante atacar as suas causas mais profundas. Estudo de Daniel Hicks e Joan Hicks (2014) trouxe evidências de correlação entre criminalidade e desigualdade: regiões dos EUA em que havia maior consumo conspícuo (carros, joias, restaurantes caros etc.) também sofriam com maior criminalidade.

O Brasil é um dos países com maior desigualdade econômica no mundo. Aqui, R$ 20 de cada R$ 100 gerados correm para o 0,5% mais rico da população. A privação econômica, a concentração de riqueza e a sensação de insegurança impulsionam a necessidade de proteção patrimonial.

Pesquisa do Instituto Datafolha mostrou que a insegurança cresce com o nível de renda. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública justificam o med o: crimes contra o patrimônio, como roubos e furtos, têm aumentado nos últimos anos no Brasil.

A concentração espacial de riqueza também se relaciona a taxas mais altas de crimes contra o patrimônio. Propriedades de alto valor se tornam alvos atrativos para criminosos, o que leva proprietários a investir em sistemas de segurança mais sofisticados. Isso inclui a contratação de seguranças particulares, a instalação de câmeras de vigilância e de sistemas de alarme, com segurança particular, blindagem de automóveis, camadas de segurança cibernética contra golpes e crimes financeiros e, a partir de 2019, com armas, muitas armas.

Um trágico evento recente exemplifica este padrão. Estimulado pela política de violência pública de Bolsonaro, o empresário paranoico com sua segurança residencial disparou suas duas pistolas contra uma policial civil e estimulou seu segurança privado a fazer o mesmo. Os três acabaram mortos.

A plataforma DataViva mostra que, entre 2003 e 2021, a renda mensal neste setor cresceu de R$ 400 milhões para R$ 2 bilhões, tendo o gasto mensal direto em atividades de segurança e vigilância variado de R$ 193 milhões para mais de R$ 1 bilhão, enquanto o número de empregos cresceu de 266 mil para 500 mil.

Para a maioria da população, contudo, esta proteção não é acessível. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua mostrou que, em 2021, cerca de 1,8 milhão de brasileiros foram vítimas de roubo (1,1% da população), dos quais 63,2% eram pretas ou pardas e 38,6% das vítimas tinham até o ensino médio incompleto. A riqueza concentrada no topo gera insegurança generalizada no andar de baixo.

Problemas comuns requerem atuação do Estado. Como na saúde e na educação, a política de segurança pública não pode ser terceirizada ao cidadão comum, sob pena de gerar mais insegurança às forças policiais, tragédias familiares e má alocação de recursos na economia.

O caminho mais efetivo para combater a criminalidade é reduzir a desigualdade de riqueza e ampliar a oferta de bens públicos, via tributação progressiva e crescimento econômico inclusivo.

A democratização das oportunidades diminui a oferta de mão de obra ao crime e cria um ambiente mais seguro e equitativo para todos, não apenas para quem pode pagar.

Pacto pela Produção

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A comunidade econômica internacional está percebendo grandes transformações nas discussões teóricas nos governos, nas universidades e nos construtores das políticas públicas, onde destacamos o retorno das discussões referentes as políticas de intervenção dos governos nacionais retomando momentos de maior intervencionismo. Neste momento, as políticas protecionistas estão sendo adotadas, sempre destacando que estas políticas foram utilizadas por todos os governos nacionais como forma de estimular seus setores produtivos, uns deixando mais claras e efetivas, enquanto outras nações se escondiam em discursos surreais de uma defesa incondicional do livre mercado e da livre competição.

Neste momento, percebemos que estamos vivendo um momento interessante na economia nacional, com indicadores positivos, com melhoras sensíveis nos empregos, com queda das taxas de juros, redução da inflação, melhora nas contas externas, aumento das exportações e perspectivas positivas. Estas melhoras no campo econômico são sempre necessárias e imprescindíveis, mas precisamos entender, que os desafios são imensos e exigem esforços de todos os grupos sociais e políticos para que a sociedade enterre décadas de estagnação e baixo crescimento econômico, que trouxeram um incremento da degradação social, aumento da pobreza e da indignidade, além de facilitar o crescimento das polarizações políticas, aumentando os conflitos sociais, as violências e a desagregação.

Nos últimos quarenta anos, a economia nacional deixou de lado os grandes geradores de emprego em detrimento dos financistas e dos donos do capital financeiro, que passaram a controlar a agenda econômica, os meios de comunicação, impedindo as discussões democráticas e passaram a adotar uma pauta que garantem e perpetuassem de seu poder econômico e financeiro em detrimento da geração de riqueza real para a comunidade, controlando as autoridades monetárias, com taxas de juros escorchantes que garantem lucros e dividendos estratosféricos, com isso, percebemos uma situação surreal, uma economia estagnada, uma população endividada, desemprego nas alturas, empresas em dificuldades e bancos e sistema financeiro garantindo lucros e dividendos elevados.

Precisamos reconstruir um pacto pela produção, pela defesa da dignidade, em defesa do potencial produtivo da sociedade brasileira, estimulando os grupos que impulsionam a economia nacional, os pequenos, médios e grandes empresários, os trabalhadores das cooperativas, dos grupos econômicos vinculados as associações, os grandes produtores do campo, do agronegócio, todos aqueles que estão vinculados com a construção de riquezas nacionais, desta forma, precisamos alavancar investimentos produtivos, gerando empregos de qualidade, fortalecendo a formação e a instrução nas universidades, fomentando a ciência, a pesquisa e o conhecimento, canalizando recursos para a economia real, gerando emprego, taxas de juros condizentes e uma perspectiva de dignidade da população, impedindo um colapso social em curso na sociedade brasileira, um país imensamente rico, dotado de grandes vantagens comparativas, energias alternativas, economia verde e dotado de grande potencial de inclusão social e, infelizmente, convivendo com o crescimento exponencial dos moradores de ruas, das violências urbanas e no crescimento do mercado das drogas, das milícias e dos entorpecentes.

O predomínio da agenda dos grupos financistas e dos setores vinculados ao mercado financeiro fragilizaram uma visão de sociedade, criando uma análise imediatista, reduzindo os investimentos de longo prazo e levando os gestores privados a estimularem os ganhos imediatos e os pagamentos de dividendos elevados em detrimentos de investimentos produtivos, rechaçando o planejamento estratégico, garantindo lucros imediatos para os acionistas e fragilizando os negócios no longo prazo.

Vivemos numa sociedade paradoxal que privilegia setores que pouco contribuem para a geração de riqueza social e nos esquecemos dos verdadeiros geradores de progresso econômico e produtivo, sem estes não conseguiremos construir uma nação de cidadãos, apenas construindo consumidores.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

A lógica do capital, por Alysson Mascaro

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Alysson Leandro Mascaro – A Terra é Redonda -24/12/2023

Ao capitalismo, o Brasil já é o que deve ser. O desenvolvimento será socialista

As posições relativas dos países no desenvolvimento capitalista mundial não são devidas a incapacidades ou omissões ou ausência de vontades e de acordos suficientes para o progresso. São, fundamentalmente, posições materialmente bastantes de exploração, dominação e acumulação. Por isso, não cabe a imagem de um topo geopolítico mundial ao qual alguns países subiram por esforço e mérito, cabendo aos demais chegarem também.

A divisão de classes e as diferenças entre países e formações sociais no plano externo e interno são exatamente o modelo de reprodução social capitalista. O Brasil, mesmo sendo periférico no quadro mundial, é grande o suficiente para não poder se resolver de modo autônomo sem impactar os interesses do capital internacional, que se interpenetra de modo indissolúvel com o capital brasileiro. Nessa dialética de potência e limite, não faltaram meios econômicos, quadros nem ideias que ensejassem um pleno desenvolvimentismo capitalista brasileiro: faltam estruturas de sociabilidade.

A contradição do Brasil é exatamente a mesma contradição do capitalismo no plano mundial. Não será por melhor astúcia, acordo, suavidade, concórdia, boa razão, republicanismo, legalidade e cumprimento dos princípios constitucionais, ou por exaustão das mesmas tentativas, que o desenvolvimento estável e inclusivo então chegará ao Brasil: o erro é na forma da luta, não na arte do empreendimento. Pelo século XX, formações sociais de grande peso no mundo, como é o peso da brasileira, só cambiaram com êxito mediante revoluções socialistas.

Os casos russo e chinês dão demonstrações de refundações da sociabilidade e de suas instituições que se provaram suficientes para uma reescrita pujante de suas próprias histórias. Muito disso se deve à aglutinação social das classes trabalhadoras – via de regra forjada mediante guerras – e, em especial, pela tomada de poder autonomista e progressista que altera estruturalmente instituições como as forças armadas (no caso russo e chinês, reformuladas a partir de novo padrão, de exércitos populares) ou mesmo as funções institucionais executivas, legislativas e judiciárias (também reescritas em tais países mediante o centralismo de partidos comunistas).

Os casos de câmbio progressista dentro do sistema capitalista só se deram sob subordinação aos Estados Unidos e mediante estrito interesse geopolítico deste – Europa sob plano Marshall, Coreia do Sul e Japão como cunhas no oriente soviético-chinês. Mas o Brasil representa aos interesses dos EUA, exatamente, aquilo que já é. Tudo o que caminhar a ser distinto altera posições e sofre imediato bloqueio. E, no que tange às relações sociais internas, as classes capitalistas e os grupos dominantes do Brasil não esperam outro tipo de pujança nem se orientam pela igualdade e pelo progresso de pobres e trabalhadores, igual a qualquer outra classe capitalista e dominante de qualquer outro país capitalista do mundo.

A lógica do capital é a manutenção suficiente e ótima dos próprios padrões de acumulação já dados, ou a modulação apenas para sua ampliação. Por isso, uma transformação social progressista só pode se dar mediante as classes trabalhadoras. Sob condições capitalistas, o capital e suas instituições destroem as lutas inclusivas logo que tal processo comece a se concretizar. Somente a ruptura das formas, com novas coesões e forjas de poder, ação e interesses, conduzindo ao término da dinâmica de acumulação do capital, é capaz de reestruturar a sociedade brasileira, bem como qualquer outra sociedade.

Todas as outras tentativas, operando dentro das formas do capital, são tragadas e bloqueadas pelas próprias formas e instituições já dadas. Avista-se, para as contradições estruturais das lutas sob o capitalismo, apenas uma fresta estreita na história, a revolução que altere o modo de produção. Os câmbios socialistas são difíceis como o foram e têm sido já há quase dois séculos por muitas plagas do mundo, mas, peculiarmente, são ainda assim mais fáceis do que mudar uma sociedade da exploração para a inclusão mantendo o quadro geral das formas e instituições que só operam a acumulação e que bloqueiam o câmbio progressista. A história é aberta. A utopia é concreta. O desenvolvimento é possível. Se existir de modo vitorioso e perene, ele será socialista.

*Alysson Leandro Mascaro é professor da Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros livros, de Estado e forma política (Boitempo).
“Teses sobre desenvolvimento e capitalismo”, publicado originalmente no livro Utopias para Reconstruir o Brasil, organizado por Gilberto Bercovici, João Sicsú e Renan Aguiar. Rio de Janeiro, Editora Quartier Latin do Brasil, 202

A era da distopia, por Samuel Kilsztajn

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Samuel Kilsztajn – A Terra é Redonda – 11/12/2023

Estamos todos mergulhados no sistema orquestrado pelo despotismo da mercadoria

A população mundial, praticamente estável em 300 milhões de pessoas durante todo o primeiro milênio da Era Cristã, cresceu paulatinamente para atingir um bilhão em 1750, início da Revolução Industrial. Antes da Revolução Industrial, o que se passou a chamar de renda per capita era relativamente constante desde a Antiguidade e também diferia muito pouco entre as diversas sociedades ao redor do mundo, tanto as consideradas pobres como as abastadas.

Adam Smith, que viveu na Inglaterra no bojo da Revolução Industrial, publicou em tempo real, já em 1776, na crista da onda, a obra que marcou o nascimento da economia política, Uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações (abreviada para A riqueza das nações).

A Revolução Industrial alavancou a produção de alimentos, bens de consumo e instrumentos de trabalho a patamares nunca antes imaginados. Podia-se antever então uma nova era de fartura, o paraíso terrestre, a utopia realizada, em que a carestia seria completamente eliminada da face da terra.

O ano da publicação de A riqueza das nações, 1776, também marca a independência dos Estados Unidos da América do domínio inglês, a Revolução Americana. Em 1789 caiu a Bastilha e, no início do século XIX, a Revolução Francesa ganhou a Europa Continental (a Inglaterra, já em 1688, havia se livrado da monarquia absolutista, que foi submetida ao parlamento; o Império Russo, por outro lado, tendo derrotado Napoleão, manteve-se refratário às conquistas liberais e aos plenos direitos civis).

No início do século XX a Europa vivia a Belle Époque, oh là là! que não durou muito, porque estourou a Grande Guerra que poria fim à Era dos Impérios. Em meio à guerra, o absolutista Império Russo, com atraso de um século, enfim ruiu; e os impérios centrais Alemão, Austro-Húngaro e Otomano foram dissolvidos. A Inglaterra não cumpriu o ideário marxista e coube à retrógrada Rússia a instauração do socialismo, como uma forma de desenvolver a sua economia arcaica. A Revolução Industrial cunhou A riqueza das nações e a ideologia do progresso e do desenvolvimento das forças produtivas.

Durante a guerra, o exército alemão foi destroçado pela gripe espanhola, o que levou a Alemanha a aceitar o humilhante armistício, mesmo com o seu exército estacionado em território inimigo, sem que o exército dos aliados tivesse adentrado o território alemão (o que deu margem ao mito da “punhalada pelas costas”).

No pós-guerra, enquanto os Estados Unidos viviam os anos dourados da Era do Jazz, a Alemanha, submetida a pagar pesadas reparações de guerra, mergulhou em severa crise, com alto nível de desemprego, pobreza, hiperinflação e desarticulação social. Em 1924, a Alemanha conseguiu se restabelecer e seguiram-se cinco anos de relativa prosperidade, que terminou por força da grande depressão mundial de 1929.

Em 1928 o partido nazista de Hitler contava com 2,6% dos votos na Alemanha; cinco anos depois, em meio à grande depressão, ao alcançar 43,9% dos votos, os nazistas tomaram o poder, inaugurando o Terceiro Reich e se preparando para o novo embate que elevaria Deutschland, Deutschland über alles, über alles in der welt, a Alemanha, Alemanha acima de tudo, acima de tudo no mundo.

Os alemães, que primam pela eficiência, instituíram na prática as teorias racistas que dominaram a ciência e a civilização ocidental na primeira metade do século XX. O Terceiro Reich, que aterrorizou a Alemanha, a Europa e a humanidade, programado para viver por um milênio, sobreviveu por intermináveis doze longos anos, suficientes para mergulhar o planeta na barbárie.

No pós-Segunda Guerra Mundial, o Império Russo, sob a insígnia de União Soviética, reabilitado sobre uma economia planificada e um sistema político extremamente autoritário, ao lado de seus estados satélites do Leste Europeu, dividiu a hegemonia internacional com o liberal império americano e seus aliados do Atlântico Norte (OTAN), período denominado Guerra Fria.

Após o colapso da União Soviética em 1991, o império chinês, sob a insígnia de República Popular da China, igualmente reabilitado sobre uma economia planificada e um sistema político extremamente autoritário, entrou em cena para se vingar da humilhação sofrida nas Guerras do Ópio na metade do século XIX, quando a Inglaterra submeteu o longínquo e milenar império, que foi levado à desarticulação. A OTAN e o império chinês dividem hoje a hegemonia internacional.

Além da OTAN, do império chinês e do império russo, participa do cenário internacional a Organização de Cooperação Islâmica, que representa os dois bilhões de muçulmanos que vivem em países do norte da África, África Ocidental, Oriente Médio, Ásia Central e Sudeste Asiático, países que não necessariamente atuam em bloco.

Apesar da Revolução Industrial, a fantástica riqueza das nações não erradicou a miséria da maior parte da população mundial, nem os bolsões de pobreza no interior das nações mais desenvolvidas do planeta. As faculdades de “ciências econômicas” ensinam que o aumento na produtividade é acompanhado pelo crescimento e diversificação das necessidades humanas. Novos produtos e novas necessidades vão sendo criados, muito além dos básicos produtos alimentícios, vestuário e habitação necessários para a vida.

Em 2023, na Cidade de São Paulo, quando saio às ruas, fico amargurado ao ver os transeuntes passando impassíveis por inúmeras pessoas dormindo ao longo das calçadas, algumas na diagonal, enroladas nos cobertores cinzas de resíduos de fibras sintéticas que a prefeitura anda distribuindo. Plagiando Hobsbawm, penso, essa é a era da distopia.

A Revolução Industrial, que nos levaria à era da utopia, o fim da carestia para a humanidade, engendrou, ao contrário, a atual era da distopia, em que uma parafernália de novos produtos supérfluos é produzida, consumida e descartada, por uma sociedade do espetáculo, do consumo, do desperdício e da produção de lixo que convive com uma população que revira o lixo das grandes cidades em busca de alimentos e de materiais recicláveis para revenda.

Como é que os laboratórios farmacêuticos poderiam sobreviver sem fornecer pastilhas de fibras para as pessoas que enriquecem o lixo doméstico com os bagaços descartados de seu saudável suco matinal de laranja? Como é que alguém pode sobreviver sem acesso a alimentos dietéticos altamente processados e prontos para o consumo, um tênis de marca e um celular de última geração? Como é que a desigualdade no interior das sociedades e entre as nações, que foi acirrada pela Revolução Industrial, pode dispensar a produção de engenhos de segurança e armamentos para proteger os esnobes ricaços dos marginalizados amigos do alheio?

Estamos todos mergulhados no sistema orquestrado pelo despotismo da mercadoria. Quem hoje ousaria se contrapor à mercadoria, ao progresso e ao desenvolvimento econômico? Só não são afetados pela mercadoria os povos que vivem fora do sistema, a exemplo das populações indígenas do Brasil. Mesmo assim, vários indígenas abandonam suas comunidades, fisgados pelas “maravilhas” da sociedade do consumo.

O consumo supérfluo enfeitiça as pessoas com a promessa da felicidade neste lado do paraíso. Não é nem propriamente o consumo que importa, mas a perda da sociabilidade e o consequente impessoal espírito de competição. O que vale mesmo é deixar o seu vizinho de queixo caído ao ver você sair da garagem com o carrão do ano.

Não acho que a questão atinja apenas os pobres. Os ricos também são presas do sistema que faz com que sejam apêndices da mercadoria e de seu consumo; e se percam em valores mundanos em que a solidariedade humana não encontra mais lugar. Apesar da filantropia e das aparências, a artificialidade da vida dos ricos não permite que eles vivam plenamente em lugar algum, nem na estratosfera.

Além disso, não é o consumo das camadas privilegiadas da sociedade que justifica o sistema capitalista, mas sim os investimentos, o progresso e o desenvolvimento econômico. Por que será que a fantástica produção mundial nunca é suficiente para abastecer a humanidade? O destino dos pobres é passar necessidades básicas de forma a justificar os investimentos (que, contudo, ratificam a estratificação social), o progresso e o desenvolvimento econômico orquestrado pelo mundo da mercadoria.

A China, ao que tudo indica, é a herdeira do projeto civilizatório orquestrado pelo mundo da mercadoria. O império chinês, que provê e alimenta seus trabalhadores autômatos despersonalizados a serviço da mercadoria, tem tudo para ser a última fase do capitalismo, que vai arrastar consigo o império americano. O Partido Comunista Chinês, por linhas tortas, vai conseguir cumprir o seu ideal, desestruturar o sistema capitalista e enfim implodir o reino da mercadoria.

Imponentes impérios se sucederam às margens do Mediterrâneo durante a Antiguidade. Após a queda de Roma, seguiu-se a chamada Idade das Trevas, que se estendeu por todo um milênio. O capitalismo industrial, que criou “maravilhas maiores que as pirâmides do Egito”, que vem devastando o planeta e enfim açambarcou o longínquo império chinês, ainda não completou três séculos de vida.

* Samuel Kilsztajn é professor titular em economia política da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de Do socialismo científico ao socialismo utópico.

Transformações globais

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Neste espaço todas as semanas fazemos reflexões sobre questões interessantes para a sociedade internacional, assuntos econômicos relevantes que impactam sobre a sociedade, comentários políticos e análises sociais que repercutem com a comunidade. Diante disso, estamos percebendo o surgimento de novos horizontes econômicos e políticos que estão ganhando relevância na sociedade mundial, como a retomada de políticas protecionistas, subsídios para setores estratégicos e novas formas de atuação dos governos nacionais, que estão crescendo e se tornando visíveis na economia dos Estados Unidos, que antes era visto como um paraíso da globalização e do livre comércio, percebemos alterações evidentes como o incremento das políticas protecionistas, abandando o livre comércio de forma pragmática para defender seus interesses econômicos e financeiros.

Neste cenário, os governos norte-americanos, desde Donald Trump e mais incisivamente o atual presidente Joe Biden, vem adotando políticas fortemente protecionistas, com o despejo de trilhões de dólares para alavancar a produção nacional, com medidas tarifárias para proteger a produção interna, atraindo grandes conglomerados asiáticos para o mercado interno e a geração de emprego local, como forma de reconstruir laços industrializantes que foram perdidos num momento de crescimento das finanças em detrimento da estrutura industrial. Essa política deve ser vista como o reconhecimento da sociedade norte-americana de que sua estrutura econômica e produtiva não é mais hegemônica e dominante no cenário global, sentindo a concorrência da economia chinesa, que como destacou o renomado jornal inglês Financial Times: “Desculpem, EUA, a China tem uma economia maior do que a sua”.

Neste momento, percebemos que a economia norte-americana que liderou a economia internacional, saindo de um cenário unipolar para uma estrutura global descrita, por especialistas, de uma sociedade multipolar, onde encontramos novos eixos que lideram a economia mundial, surgindo novos conceitos, novos valores e novos comportamentos, exigindo das nações novos conceitos, buscando novas formas de autonomia e novas formas de soberania, além de liderança e capacidade de compreender os novos desafios da sociedade contemporânea.

Todas as nações que se desenvolveram buscaram fortalecer seu capital humano, com forte investimento em educação, capacitando e qualificando sua população e criando instrumento para a competição desta nova economia internacional, centrada no mundo digital, de novas tecnologias, de novas inovações e de novas oportunidades para os cidadãos. O mundo criado e estimulado pela globalização pelos Estados Unidos está perdendo espaço para uma nova sociedade, mais protecionista, onde o Estado Nacional está ganhando uma nova centralidade, criando os instrumentos de política econômica e de política públicas para estimular seus atores econômicos e produtivos, melhorando a produtividade, gerando mais e melhores empregos, incrementando a renda dos trabalhadores e melhorando as condições de vida dos cidadãos.

Neste novo horizonte, os mitos econômicos estão sendo repensados, as ideologias perdem espaço para a realidade contemporânea, defendemos liberalismo e a livre concorrência como forma de chegar ao oásis do progresso material quando estamos no pódio maior do crescimento econômico mas, nossas atitudes e comportamentos mudam quando nos vemos ameaçados, desta forma repensamos nossas ciências e retomamos, novamente, nosso histórico de protecionismo e passamos a retomar o pragmatismo e adotamos a expressão: faça o que eu digo mas não faça aquilo que eu faço.

Neste momento, percebemos que as nações desenvolvidas estão retomando políticas estratégicas de desenvolvimento econômico, incrementando investimentos para suas comunidades, retomando empresas estratégicas, melhorando instrumentos de fiscalização e consolidando suas capacidades de regulamentação e, ao mesmo tempo, as nações em eterno subdesenvolvimento se esforçam para entregar suas riquezas para grandes conglomerados internacionais, perpetuando nossa indignidade, nossa exploração e nosso eterno subdesenvolvimento.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

A quem interessa reduzir a formação básica dos jovens no ensino médio? por Cássio e Cara

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Proposta na Câmara corta 30 minutos por dia de acesso ao conhecimento

Fernando Cássio, Professor da Faculdade de Educação da USP, integra a Rede Escola Pública e Universidade (Repu) e o comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Daniel Cara, Professor da Faculdade de Educação da USP, é coordenador honorário da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Folha de São Paulo, 11/12/2023

Tramita na Câmara dos Deputados o projeto de lei 5.230/2023 que pretende corrigir a reforma do ensino médio.

Elaborado pela equipe do MEC como resultado de uma consulta pública, o texto do PL precisa ser aperfeiçoado, mas expressa o incontestável: o novo ensino aprovado a toque de caixa no governo Temer era pior do que se imaginava.

Além de amplificar desigualdades escolares, a reforma se mostrou administrativamente inviável, com escolas e redes de ensino tendo que planejar a oferta e a alocação de professores em dezenas (e até centenas) de disciplinas com pouco conteúdo científico. Maltratou a saúde física e mental do professorado e sabotou os sonhos de muitos jovens.

Milhões de estudantes que há pouco fizeram as provas do Enem não tiveram aulas durante metade do ensino médio. Eles próprios afirmam que um itinerário formativo sobre sustentabilidade envolvendo empreendedorismo com sucata ou a fabricação de tijolos não pode ser chamado de “aula”.

Entre avanços e tropeços do PL de agora, há uma disputa em torno da carga horária da chamada “formação geral básica” (FGB). A proposta do MEC é reservar, dentro das 3.000 horas letivas totais do ensino médio, uma carga horária mínima de 2.400 horas para a FGB (as 13 disciplinas escolares), que a atual reforma havia minguado para 1.800 horas.

Na Câmara, o relator designado para o PL — Mendonça Filho (União-PE)— é o ex-ministro da Educação de Michel Temer que aprovou a reforma de 2017 e já se declarou mobilizado na defesa do “legado” do ex-presidente. Ele tem o apoio de secretários estaduais de Educação para cortar 300 horas da formação científica dos estudantes. O objetivo é driblar a necessidade de contratação de professores nas redes estaduais —simplificar o currículo para baratear a educação dos mais pobres.

Uma nota técnica produzida por pesquisadores que estudam políticas de ensino médio, que também analisaram as 79 emendas apresentadas ao PL 5.230/2023, mostrou que essa redução para 2.100 horas significa retirar dos estudantes 30 minutos por dia de acesso ao conhecimento. É como se o ensino médio durasse apenas 2,7 anos nas escolas públicas, em comparação aos três anos das particulares.

Antes de defenderem o encurtamento da formação escolar nas escolas públicas, parlamentares e secretários de Educação deveriam responder quantas das aulas de física ou história eles trocariam por oficinas de “brigadeiro gourmet” nas escolas privadas de seus filhos e netos.

Dificuldade em lidar com conceitos filosóficos ou antipatia pelas aulas de biologia são comuns para jovens que ainda estão por perceber que o conhecimento que parece inútil nos torna pessoas pensantes e capazes de dar sentidos inéditos às coisas do mundo. Sim, precisamos conhecer os estados de oxidação do carbono para entender a enrascada climática em que nos encontramos. E, sim, precisamos de aulas de sociologia para problematizar mazelas que se perpetuam na mesma proporção do enriquecimento das elites nacionais.

Elites que, representadas por especialistas em educação fabricados por institutos e fundações empresariais, propuseram e defenderam a atual reforma do ensino médio, e seguem convencidas de que é preciso surrupiar horas-aula da formação científica de estudantes da escola pública para “modernizar” o currículo.

Futebol e dinheiro, por Francisco Fernandes Ladeira

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Francisco Fernandes Ladeira, A Terra é Redonda, 10/12/2023

O futebol virou negócio até nos resultados. Frequentemente, vence quem tem mais dinheiro
Segundo um conhecido ditado popular, dinheiro não traz felicidade. Entretanto, no cenário futebolístico dos últimos anos, dinheiro tem, de alguma forma, trazido felicidade; pelo menos para as torcidas dos clubes que possuem recursos suficientes para investir nas contratações dos melhores jogadores.

Não por acaso, no recém-terminado Campeonato Brasileiro, os três elencos mais caros do país – Flamengo, Palmeiras e Atlético Mineiro – estiveram entre os quatro primeiros colocados. Além disso, o último campeão nacional não pertencente a este trio “bilionário” foi o Corinthians, em 2017.

Em âmbito subcontinental, o fato de o Brasil ter vencido as cinco últimas edições da Taça Libertadores da América também pode ser explicado pelo poderio financeiro, pois, nossos clubes, além de repatriarem jogadores que atuavam na Europa (diferentemente de argentinos e uruguaios, com bem menos recursos), têm contratado atletas que se destacam em outros países sul-americanos. Assim, ao mesmo tempo em que se reforçam, enfraquecem seus rivais.

Na Europa, onde cifras astronômicas são investidas no esporte mais popular do planeta, as diferenças entre clubes são ainda maiores. Isso reflete no fato de as principais ligas e torneios do continente serem dominados por alguns poucos clubes, como Barcelona, Real Madrid, Liverpool, Manchester City e Bayern de Munique.

Já em torneios mundiais, quando se enfrentam as principais equipes da Europa (verdadeiras “seleções do mundo”) e da América do Sul, o predomínio europeu é gritante. Afinal de contas, desde 2013, o mundial de clubes é vencido apenas por times do Velho Continente.

Isso não significa, evidentemente, afirmar que jogadores europeus são melhores do que seus congêneres sul-americanos (basta mencionar, por exemplo, que a última campeã mundial é a Argentina).

Em outras épocas, quando o futebol ainda não era tão globalizado e o poderio monetário não desequilibrava, os clubes da América do Sul, em geral, eram melhores do que os da Europa (haja vista a vantagem no número de vitórias em torneios internacionais, registrada até a década de 1990).

Lembrando o título de uma famosa música, interpretada pela cantora estadunidense Cyndi Lauper, “money changes everything” (dinheiro muda tudo). No caso abordado neste texto, muda até o futebol, já não tão “imprevisível” como outrora. Quem tem dinheiro, investe maciçamente, tem os melhores jogadores e, consequentemente, vence os principais torneios.

*Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em geografia na Unicamp. Autor, entre outros livros, de A ideologia dos noticiários internacionais (CRV).

A ideologia do empreendedorismo, por Cesar Sanson

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Cesar Sanson, A Terra é Redonda, 09/12/2023

Dois séculos e meio depois assistimos ao retorno das origens do capitalismo nas relações de trabalho

O capitalismo (re)descobriu uma nova forma de organizar o trabalho sem precisar se responsabilizar com os direitos e ainda por cima com uma vantagem, transfere aos próprios trabalhadores os custos de financiamento de direitos básicos, como por exemplo a previdência social.

Ao menos dois exemplos evidenciam esta nova realidade, o primeiro é a uberização em que trabalhadores exercem o seu trabalho desvinculados da garantia de direitos; o segundo, é o contrato entre empregador e trabalhador utilizando-se do recurso do microempreendedor individual (MEI). Essa modalidade é também conhecida como pejotização. As mudanças na regulação da terceirização que não distingue meios e fins da atividade laboral e a Reforma Trabalhista, fez explodir a contratação via MEI. Em ambas as formas, o capital não assume o pagamento de direitos.

Vemos agora milhares de trabalhadores trabalhando sem direito nenhum ou tendo que financiar seus próprios direitos. A pergunta é porque os trabalhadores aceitam esta condição. Para além dos problemas estruturais do mercado de trabalho brasileiro caracterizado pela informalidade em que a falta de alternativas empurra as pessoas para a aceitação desta situação, há outras razões nem sempre tão explícitas.

Uma delas, é que estas mudanças vêm acompanhadas e sustentadas pela ideologia do empreendedorismo que parte do pressuposto que o sucesso de uma pessoa, particularmente na vida laboral, depende apenas dos seus esforços, da sua perfomance, da sua vontade, de sua perseverança e de suas intuições visionárias. Muitos creditam o crescimento das modalidades de trabalho por conta própria a esta ideologia.

Engana-se, porém, quem acha que estes trabalhadores se consideram empreendedores. Há evidências que uma porção significativa é seduzida para o labor sem direitos menos em função do discurso ideológico e mais pela pretensa autonomia que a modalidade uberização e pejotização promete.

Foi-se o tempo em que trabalho com carteira assinada e jornada de 8 horas era o emprego sonhado.

A resistência ao emprego fordista se deve a jornada de trabalho padronizada em que o trabalhador precisa estar num mesmo local pela mesma quantidade de horas diariamente e muitas vezes subordinado a um chefe ou supervisor autoritário. Este tipo de emprego garante direitos – salário regular e mínimo, férias, adicional de férias, 13º, previdência social – porém nele a autonomia é tolhida.

Há outro problema com o emprego de padrão fordista, paga-se muito pouco.
Colocado tudo na balança, entre um emprego com carteira assinada engessado e um “emprego” do tipo Uber, muitos optam pela segunda alternativa. Não é incomum em conversas com trabalhadores uberizados os mesmos afirmarem que largaram o emprego porque agora se sentem mais autônomos e ganham o mesmo ou até mais.

A adesão de milhares a uberização e pejotização do trabalho se encaixa unicamente a partir das explicações acima? É evidente que não. Assim como é evidente – as pesquisas revelam – que os trabalhadores uberizados querem direitos, porém, preservando a sua autonomia. Vem daí a resistência a “celetização” – contrato CLT – da regulação do trabalho. É crescente o número de trabalhadores que não aceitam e não querem mais trabalhar de forma subordinada.

Trata-se de uma mudança significativa no mundo do trabalho porque dessa vez o discurso do capitalismo, de que você pode ganhar dinheiro organizando a sua própria vida, encontra forte adesão entre os trabalhadores.

A luta de classes permanece, mais se tornou mais complexa.

*Cesar Sanson é professor de sociologia do trabalho do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), autor de O Trabalho nos Clássicos da Sociologia, o – Marx, Durkheim e Weber (Expressão Popular, 2021).

A dolorosa queda do Santos, por Juca Kfouri

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Nada marcará mais o futebol brasileiro em 2023 do que o rebaixamento santista

Juca Kfouri, Jornalista, autor de “Confesso que Perdi”. É formado em ciências sociais pela USP.

Folha de São Paulo, 10/12/2023

O menino tinha oito, nove, dez anos, e acordava cedo mesmo nas férias escolares de dezembro e janeiro para ser o primeiro a pegar o jornal na porta de casa no Itaim Bibi.

Era corintiano, mas, nos tempos em que as notícias não chegavam a jato, o garoto queria não ler nas páginas do caderno de esportes (sim, em 1958/59/60, havia caderno de esportes nos jornais) que Pelé tinha sido vendido para o Real Madrid, Benfica ou Milan, que viviam anunciando interesse em contratá-lo.

Uma criança se preocupava porque o melhor jogador de um time rival poderia desfalcá-lo.

Diga-se que naqueles tempos a seleção brasileira tinha uma importância tão grande como os tais cadernos de esportes, e, guardadas as proporções, com o time de camisas amarelas aconteceu meio que a mesma coisa.

Voltemos.

Pelé e Santos eram faces de moeda única, e torcer pelo time de camisas imaculadamente brancas, obrigatório para quem gostasse de futebol.

Porque nunca houve na história do futebol um time como aquele em seu auge, no começo da década de 1960.

O Real Madrid é o maior clube de futebol do mundo, é inegável, mas como aquele Santos que enfiou 5 a 2 no Benfica na decisão do Mundial, no estádio da Luz, em Lisboa, em 1962, jamais houve nada igual.

Os tempos passaram, e a Vila Belmiro testemunhou outros ótimos esquadrões, campeoníssimos, embora nada nem parecido.

É possível dizer que o Santos é tão grande, mas tão grande, que sua grandeza só é superada pela do Rei Pelé.

Alfredo Di Stéfano não é maior que o Real Madrid, Lionel Lionel Messi não é maior que o Barcelona, Diego Maradona não é maior que o Boca Juniors, Zico não é maior que o Flamengo etc.
Pelé, tivesse jogado em quaisquer desses gigantes, seria maior que eles.

Porque Pelé só não é maior que o próprio futebol, irmão gêmeo dele e sinônimo.

Pelé é o Pelé dos Pelés, como Michael Jordan é o Pelé do basquete e Muhammad Ali é o do boxe.

O menino cresceu, e o Santos do Rei passou 11 anos sem perder para o time dele.

Empilhou taças e mais taças enquanto o Corinthians jejuava por inacreditáveis 23 anos.

O mundo reverenciava o Santos como a nenhum outro time brasileiro então —e até hoje.

Só a camisa branca santista rivalizava em excelência com a merengue madridista. Nenhuma outra.

Resumi-la a Pelé seria, além de injusto, impreciso, até porque nada se resume em Pelé, tudo extrapola.

E Dorval, Mengálvio, Coutinho e Pepe. E Gylmar, Cejas e Rodolfo Rodrigues. E Carlos Alberto Torres, Mauro Ramos de Oliveira, Calvet, Ramos Delgado, Zito, Pagão, Jair Rosa Pinto, Clodoaldo, Edu, Giovanni e Paulo Henrique Ganso. E os Meninos da Vila, e os que vieram depois em 2002, Diego, Robinho, Elano e Neymar.

Nenhum deles, por tudo o que fizeram pelos gramados mundo afora, merece a dor do rebaixamento.

Economia Verde

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Vivemos num momento de grandes alterações em todos os setores da sociedade internacional, a globalização e o incremento da competição nas estruturas produtivas está transformando a economia global, com o surgimento de novos modelos de produção, novos negócios, novas exigências e qualificações dos trabalhadores e o crescimento da chamada economia verde, ao mesmo tempo, que as antigas formas de energia vem perdendo espaço na economia mundial, gerando incertezas e instabilidades, além das resistências dos grupos econômicos que sempre ganharam com o modelo energético atual, fortemente dependente dos combustíveis fósseis.

As transformações do sistema econômico e produtivo internacional estão moldando o nascimento de uma sociedade, exigindo políticas efetivas, consistentes, sérias e rigorosas para a construção de um novo consenso da necessidade e de uma matriz energética alternativa para dinamizar a estrutura produtivo. Esse consenso é imprescindível para a legitimação das ações da sociedade para a construção de um modelo energético mais limpo e com menor dependência dos combustíveis fósseis, mas numa sociedade marcada por grandes polarizações políticas, discursos inflamados e debates centrados em notícias falsas, este consenso, embora imprescindível, nos parece muito distante.

Somos uma nação dotada de grandes vantagens energéticas, poucas nações do mundo apresentam um potencial tão elevado como a brasileira, somos dotados de energia variada e dotada de grande conhecimento nesta área, ou seja, estamos vivendo um momento imprescindível para aproveitar essas oportunidades, reduzindo as dívidas sociais acumuladas à muitos séculos, construindo políticas públicas que possibilitem investimentos em educação, saúde e bem-estar social, desta forma, impulsionando os dispêndios em ciência e tecnologia, fundamentais para a construção de uma sociedade desenvolvida, mais igualitária e com maior autonomia no cenário internacional.

Mas percebemos que essa transformação energética apresenta grandes dificuldades estruturais, embora percebamos que a sociedade global esteja percebendo os graves desequilíbrios no meio ambiente, as alterações climáticas, o calor exagerado, o crescimento de maremotos e tsunamis, mas é imprescindível destacar que muitos setores grupos sociais e econômicos ganham com este modelo econômico e produtivo, desta forma, utilizam seu forte poderia financeiro para impedir alterações que podem reduzir seus ganhos substanciais.

Se compararmos os valores prometidos para os países desenvolvidos nos grandes fóruns internacionais na casa dos 100 bilhões de dólares para combater os impactos do aquecimento global, percebemos que essa quantia é imensamente menor do que os dispêndios das nações desenvolvidas para financiar a indústria bélica, cujos gastos militares está na casa dos 2 trilhões de dólares, recursos que poderiam retirar, em definitivo, mais de 800 milhões de pessoas que passam fome na sociedade global, segundo dados atualizados pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Neste cenário, a sociedade brasileira tem todos os instrumentos para receber bilhões de dólares de investimentos produtivos, gerando empregos, melhorando a renda da população, atraindo empresas e organizações produtivas em todas as regiões, atraindo empresas que demandam energias a custos menores e não os encontram em seus países de origem. Os próximos anos são imprescindíveis para atrairmos novos investimentos, para isso, precisamos fortalecer as instituições nacionais, aumentando os dispêndios na educação e na saúde, garantindo um capital humano altamente qualificado e capacitado para compreender os desafios da era do conhecimento.

A economia verde pode abrir novos horizontes e novas perspectivas para a economia nacional, somos dotados de grandes vantagens competitivas para enfrentarmos os desafios contemporâneos, reconstruir nossa indústria é imprescindível, além de elaborar um projeto sólido de nação, exigindo sólidas contrapartidas dos grupos internacionais, investindo na educação, na pesquisa e abandonando o complexo de vira-lata que predomina a suposta elite nacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Circular, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

A crise climática, segundo Thomas Piketty

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Fiona Harvey – A Terra é Redonda – 04/12/2023

A desigualdade em matéria de carbono é atualmente um dos problemas mais prementes do mundo

As questões de classe social e econômica devem estar no centro de nossa resposta à crise climática, para enfrentar as enormes desigualdades entre a pegada de carbono dos ricos e dos pobres e evitar um retrocesso contra as políticas climáticas, afirmou o economista Thomas Piketty.

Serão necessárias regulamentações para proibir bens e serviços que tenham emissões de gases de efeito de estufa desnecessariamente elevadas, como jatos privados, veículos de grandes dimensões e voos de curta distância, disse ele numa entrevista ao jornal The Guardian.

Os países ricos também devem criar impostos progressivos sobre o carbono que levam em consideração a renda das pessoas e sua capacidade de reduzir as emissões, uma vez que as políticas atuais não se adaptam às necessidades reais das pessoas.

“Temos que colocar a classe e os estudos sobre a desigualdade entre as classes sociais no centro de nossas análises sobre os desafios ambientais em geral”, afirmou Thomas Piketty. “Se não o fizermos, não conseguiremos obter uma maioria [de pessoas a favor de uma ação forte] e não seremos capazes de realizar isso”.

O proeminente economista francês é o autor da obra seminal O capital no século XXI e um dos principais pensadores mundiais sobre a desigualdade. Seu trabalho foi muito influente após a crise financeira de 2008 e ele está cada vez mais atento à crise climática como codiretor do World Inequality Lab.

Até o momento, embora os ambientalistas tenham apontado o dedo para os países desenvolvidos, contrastando suas elevadas emissões com a difícil situação do mundo em desenvolvimento, qualquer forma de análise de classe – abordando as preocupações das pessoas pobres nos países ricos – tem estado em grande parte ausente, segundo Thomas Piketty. “Um dos grandes fracassos do movimento ambientalista tem sido sua tendência em ignorar a dimensão de classe e a desigualdade social. Acho isso muito surpreendente”.

Ele disse que a questão da desigualdade em matéria de carbono é atualmente um dos problemas mais prementes do mundo. A profunda desigualdade em matéria de carbono “é agora maior do que já foi alguma vez desde o século XIX”, afirmou. Este é um fator importante para os ataques que estão sendo feitos à política climática por alguns setores.

As políticas energéticas mal orientadas em todo o mundo sobrecarregam as pessoas pobres, para quem a energia, a alimentação e a habitação representam uma parte muito maior dos orçamentos familiares do que para os mais abastados. Segundo Thomas Piketty, este fato está provocando uma reação negativa.

Se as políticas climáticas forem vistas como injustas, afetando as pessoas de baixa renda enquanto as que têm estilos de vida luxuosos continuam intocadas, movimentos de protesto surgirão, como os “gilets jaunes” que paralisaram a França há cinco anos, disse. “Todas as pessoas compreendem agora que todos terão que fazer algum esforço [para reduzir as emissões], não serão apenas os ricos. Mas este esforço tem que ser distribuído de uma forma que possa ser aceito pela população. Se não abordarmos esta questão, vamos ter um movimento gigantesco de coletes amarelos em todos os lugares. E é um pouco isso o que temos”.

Para além da regulamentação destinada a limitar as emissões mais desnecessárias, Thomas Piketty sugere um “imposto progressivo sobre o carbono”, através do qual todos teriam uma permissão de livre emissões cobrindo as necessidades normais, mas as atividades que ultrapassassem esse limite – como voos frequentes de férias, casas grandes ou veículos grandes – seriam tributadas com aumentos maiores, de modo que as atividades mais poluentes fossem sujeitas a “uma enorme tributação”.

Ele acredita que esta abordagem seria popular. Atualmente, muitas pessoas menos abastadas estão preocupadas com o fato de serem elas que suportarão o peso das medidas de redução das emissões. “Muitas pessoas, e os grupos socioeconômicos mais desfavorecidos, sentem que é tudo contra eles e que eles vão pagar por todos, especialmente as pessoas das zonas rurais. Essa é uma grande parte da dificuldade política que temos atualmente”, afirmou. “Temos que tentar fazer tudo o que pudermos para convencer esses grupos de que as pessoas no topo estão pagando sua parte justa. Temos que começar no topo, [com] as pessoas que andam de jato privado”.

A crise climática é frequentemente vista como uma oposição entre os países desenvolvidos, o chamado norte global, e os países em desenvolvimento, no sul global. Mas as pessoas pobres dos países ricos correm o risco de serem seduzidas por políticos nacionalistas ou populistas que se opõem à ação climática.

Thomas Piketty argumenta que essas pessoas precisam ter certeza de que seus interesses também estão sendo considerados. “Se quisermos escapar deste tipo de sentimento nacionalista, de país contra país, temos que desenvolver uma nova forma de solidariedade de classe que vá além do Estado-nação”, afirma. “Temos que convencer a classe média e os grupos com rendas mais baixas do Norte [global] de que, ao obrigar os grupos mais ricos a contribuir muito mais e a reduzir seu estilo de vida, estaremos ajudando a resolver o problema do Sul [global], mas isso pode ao mesmo tempo resolver alguns problemas do Norte”.

Sem essas reformas, disse Thomas Piketty, “teremos uma grande catástrofe climática”, uma vez que as políticas atuais não estão funcionando.

Fiona Harvey é jornalista.

Menos China e mais EUA no GPS da economia, por Marcos Vasconcellos.

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Parece um bom momento para repensar a ‘diversificação geográfica’ do seu dinheiro

Marcos Vasconcellos, Jornalista, assessor de investimentos e fundador do Monitor do Mercado

Folha de São Paulo, 04/12/2023

Todo o mundo se acostumou com uma China cujo PIB (Produto Interno Bruto) cresceu mais de 6% anualmente desde 1991. Até 2015, aliás, eram mais de 7% ao ano. Agora, é hora de recalcular a rota da economia mundial pensando que o termo “crescimento chinês” pode não ser mais a mesma hipérbole de antes.

Os analistas do Goldman Sachs, gigante global dos investimentos, apontaram na semana passada que trabalham com a perspectiva de que a China se estabilize com um crescimento anual de 4%. O que não seria pouco para outros players.

De 2010 até hoje, o Brasil só cresceu mais de 4% duas vezes (2010 e 2021). Os Estados Unidos, só uma vez (2021).

O setor imobiliário é grande pilar no aquecimento da economia chines, mas uma crise imobiliária gigantesca (o caso da Evergrande foi a ponta do iceberg) detonou o sistema financeiro.

O governo comunista —centralizador, por definição— usa o seu controle para tentar aquecer o mercado. O gigante asiático possui cidades-fantasma, criadas para inflar a demanda da construção civil, mas sem que haja gente interessada em morar nelas (vale a pena gastar uns minutos no YouTube, aliás, para conhecer as impressionantes construções abandonadas).

No mercado primário —o de lançamentos—, o governo chinês está acostumado a controlar desde a fixação de preços de terras até o controle das vendas das incorporadoras.

O governo não tem tanto poder, entretanto, sobre o chamado mercado secundário, ou seja, quando a transação é feita entre pessoas. E agora o país trabalha para conter cerca de US$ 8,4 trilhões em dívidas pendentes de hipotecas e de incorporadoras.

Enquanto eles descobrem como lidar com o novo problema, a economia local segue travada, e os preços das commodities, como aço e petróleo, sofrem. Neste ano, o preço do petróleo tipo Brent já caiu mais de 7,5%. O aço longo é vendido, hoje, por 85% do valor de janeiro.

Mas o dinheiro segue as leis da física e não pode simplesmente desaparecer. Ele muda de mãos. Os dados da EPFR, empresa que monitora o fluxo do dinheiro em fundos por todo o mundo, mostram que os fundos transnacionais chegaram à marca de US$ 70 bilhões em ativos nos EUA, em novembro, enquanto na China, depois de terem esbarrado nos US$ 20 bilhões em maio, hoje estão perto de zero.

O crescimento do PIB dos EUA acima do chamado consenso de mercado explica em parte esse movimento, enquanto a China ainda tenta achar o passo para o novo ritmo da música.

A Bolsa brasileira segue com a representatividade econômica de uma gota nesse oceano financeiro, mas, a depender do quanto a sua carteira de investimentos depende da exportação para a China, parece um bom momento para repensar a “diversificação geográfica” do seu dinheiro.