China gira para os emergentes, por Nelson de Sá

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Lula gostaria de não depender tanto de Xi Jinping; Tarcísio também

Nelson de Sá, Correspondente da Folha na Ásia

Folha de São Paulo, 15/03/2024

Os alarmes protecionistas dispararam novamente, a partir dos EUA, diante do salto nas exportações chinesas em janeiro e fevereiro em relação ao mesmo período do ano anterior. A diferença é que, desta vez, o que se quer é que os emergentes se voltem contra a China.

O crescimento das vendas chinesas foi para eles, emergentes, como alternativa às barreiras que estão sendo levantadas por EUA e Europa. Em renminbi, a moeda chinesa, segundo a alfândega do país, citada pelo Asia Times, de Hong Kong, o avanço das exportações se concentrou nos países do Brics, inclusive Índia, e Sudeste Asiático, sobretudo Vietnã e Indonésia. Para o Brasil, o salto nas exportações chinesas teria sido de 37,7%, próximo daquele na direção contrária, das importações chinesas de produtos brasileiros, de 37,1% —que levou o Brasil a novo recorde em superávit comercial no bimestre.

Alguns mercados chamam até mais a atenção, como a Arábia Saudita, com o uso das moedas locais para a exportação chinesa de plásticos, têxteis e maquinário em troca de petróleo. Também Singapura, onde a montadora chinesa BYD deixou a japonesa Toyota para trás, num marco para o Sudeste Asiático.

O movimento acompanha o avanço nos investimentos chineses, cada vez mais direcionados aos emergentes. Na região Ásia-Pacífico, o crescimento no ano passado foi de 37%. No Brasil, segundo o Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), o gigante asiático passou a ser o maior investidor externo em termos de fluxo.

Lula gostaria de não depender tanto de Xi Jimping. Evita a Iniciativa Cirturão e Rota, quer levar centenas de empresários à Índia, insiste no acordo do Mercosul com a União Europeia — só para ver o bloco abraçar mais legislação protecionista, agora contra produtos do cerrado.

O governador paulista Tarcísio de Freitas ambém gostaria. Correu à Europa para que a francesa Alstom participasse do recente leilão ferroviário, mas a chinesa CRRC levou sem concorrentes.

Déficits públicos, por Luiz Carlos Bresser Pereira.

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Luiz Carlos Bresser Pereira – A Terra é Redonda – 13/03/2024

A visão de curto prazo, tanto dos governantes à esquerda quanto à direita, gera déficits na conta corrente, criando uma perfeita sintonia entre o populismo dos políticos e a ortodoxia econômica

Era uma vez um país que poupava e investia 18% do seu PIB, quando os países que crescem rapidamente e fazem o “catching up” poupam cerca de 30%. Por outro lado, o déficit na conta corrente do país era de 2% do PIB, ou seja, o país gastava mais do arrecadava e sua dívida externa aumentava. “O que fazer?”, pergunta o governo. A solução chega rápido a ouvidos ansiosos: é tomar emprestado e crescer com poupança externa. Dez anos depois, porém, o que aconteceu? A taxa de investimento continuou a mesma e o país continuou a crescer pouco, muito pouco.

O excelente correspondente do jornal Valor econômico em Genebra Assis Moreira apresentou em 29 de fevereiro algumas das informações que o Human Development Report 2023/2024 do Pnud/ONU apresentará nos próximos dias. A história triste é que os países, muito parecidos com a nossa historieta do parágrafo anterior, estão muito endividados e semiestagnados. “De 59 economias em desenvolvimento examinadas, 32 têm notas de crédito classificadas abaixo do grau de ‘não investimento’. Pelo menos 36 estão classificadas como em risco ou em alto risco de endividamento”. Pior: “Entre 22 dos países mais pobres, o pagamento do serviço da dívida representa mais de 20% de sua receita”. E, segundo o FMI, representa 59,1% do PIB desses países.

Para não haver dúvida sobre o absurdo da situação, “o Pnud estima que países de baixa renda gastam 2,3 vezes mais em média com o pagamento de juros do que com assistência social para sua população, 1,4 vez mais que com gastos domésticos com saúde ou 60% do que destinam para educação”.

Desculpem a citação, mas aí estão os dados de uma tragédia que está sempre acontecendo – uma tragédia contínua que de tempos em tempos se agrava. E que confirma uma tese mais geral que defendo: quanto mais um país se endivida, menos cresce.

Sei que estou indo contra a corrente – contra o saber estabelecido. Estou dizendo que os países devem evitar o mais possível déficits em conta corrente e, portanto, não devem se endividar em moeda estrangeira.

Um comportamento frequente de ministros de finanças dos países em desenvolvimento é buscarem reduzir o déficit público para conseguir crédito no exterior e, assim, poder contar com a poupança externa. Serem responsáveis no plano fiscal é ótimo, mas não por esta razão. Excetuados alguns casos especiais, o principal deles é o país já estar crescendo em ritmo de milagre.

Então, a propensão marginal a consumir cai, a propensão marginal a investir aumenta, e a taxa de substituição da poupança interna cai, e a poupança externa se soma à interna. Fora dessa situação, os países não devem buscar poupança externa para crescer, porque a poupança externa simplesmente substitui a interna, enquanto o país se endivida.

Não devem tentar crescer com poupança externa por dois motivos que ocorrem sucessivamente. O primeiro deles é uma das ideias básicas do “Novo Desenvolvimentismo”. Quando um país tenta crescer com poupança externa, ou seja, com déficits na conta corrente financiados por empréstimos ou investimentos diretos, a taxa de câmbio do país se aprecia no longo prazo (enquanto estiverem entrando mais dólares do que saindo devido aos déficits), as empresas industriais perdem competitividade, e o país, ao invés de se industrializar, se desindustrializa. Este fato já conta com um número elevado de comprovações empíricas.

O segundo motivo se subdivide em dois. Primeiro, é o elevado peso do serviço da dívida externa pública sobre o PIB, cujos dados recentes vimos acima. Como pode o Estado investir se 20% de sua receita é destinada a pagar juros ao exterior? Sem falar no custo da dívida interna. Segundo, é o risco de o país quebrar, entrando em uma crise de balanço de pagamentos.

Uma crise dessas é provável nos países de renda baixa, mas acontece também em países de renda média, como é o caso da Argentina desde o governo de Mauricio Macri. E pode acontecer até em países ricos, como foi o caso do Reino Unido em 1976. Ela prejudica o crescimento de um país por muitos anos.

Os países ricos ignoram o primeiro motivo, mas não podem ignorar o segundo. Diante da ameaça de crise financeira nos países mais frágeis, eles poderiam limitar seus empréstimos a esses países exportar seus capitais – não os investimentos diretos das multinacionais que não são causa de crise de balanço de pagamentos porque não têm data de vencimento.

Ao invés disto, porém, encontraram uma “solução”. John Williamson, nos anos 1980 (a década da grande crise da dívida externa), formulou o conceito de taxa de câmbio de “equilíbrio fundamental”, que eu prefiro chamar de taxa de câmbio de “equilíbrio de dívida externa”. É um conceito simples: o país pode se endividar em moeda estrangeira desde que seus déficits em conta corrente em relação ao PIB não sejam maiores que o crescimento do PIB. Em outras palavras, desde que a relação dívida externa/PIB não aumente, não ocorrendo, portanto, o problema do peso excessivo de juros, nem a ameaça de crise de balanço de pagamentos.

Há uma fórmula que permite aos economistas ortodoxos calcularem essa taxa de câmbio “de equilíbrio” e a propô-la como o caminho do desenvolvimento para a periferia do capitalismo. Essa política, porém, implica sobreapreciação cambial (o que já é péssimo) e mais, se o país descuidar quanto ao limite do equilíbrio de dívida externa (o que é muito comum), verá o custo do serviço da dívida aumentar senão entrar em crise de balanço de pagamentos.

Estas considerações me levam afirmar que déficits na conta corrente são sempre maus, mesmo se forem financiados por investimentos diretos, porque sempre apreciam o câmbio. E também empréstimos em moeda estrangeira são sempre maus não apenas pelo primeiro, mas pelos dois motivos já discutidos.

Por que, então, os países periféricos insistem em se endividar? Porque no curto prazo, enquanto não operam os motivos negativos, as entradas de capitais de empréstimo podem aumentar a taxa de crescimento. E porque os governantes, sejam de direita ou de esquerda, além de pensarem só no curto prazo, preferem déficits na conta corrente e uma taxa de câmbio porque isto aumenta o poder aquisitivo dos salários e eles são reeleitos. Como se vê, há aqui uma perfeita sintonia entre o populismo dos políticos e a ortodoxia econômica.

*Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor Emérito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e ex-ministro da Fazenda. Autor, entre outros livros, de Em busca do desenvolvimento perdido: um projeto novo-desenvolvimentista para o Brasil (Editora FGV).

Ações afirmativas sob ataque, por Cida Bento.

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Negras, quilombolas e indígenas nas universidades incomodam porque abalam a hegemonia

Cida Bento, Conselheira do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), é doutora em psicologia pela USP

Folha de São Paulo, 14/03/2024

O receio e o sentimento de ameaça sentidos por parcelas da população como reação à crescente presença negra em lugares antes considerados apenas para brancos pode ser o impulso que dá origem à recente retomada dos ataques às políticas de ação afirmativa —no caso, as cotas raciais nas universidades, iniciativas essas que se colocam na contramão da luta pela democracia multicultural.

Até bem pouco tempo atrás tínhamos nas universidades uma cota não explicitada de quase 100% para a juventude branca. Nos últimos anos, no entanto, provocada pelo movimento negro e de mulheres negras, a sociedade brasileira vem sendo obrigada a reconhecer e debater essa relação de dominação na busca de outro tipo de sociedade e novos pactos civilizatórios.

Porém, se cresce a pressão dos movimentos sociais, também cresce a resistência e são retomadas narrativas, antigas, que pensávamos já mortas, focalizando classe versus raça, ou seja: a luta racial vai “dividir a classe trabalhadora”. Ou ainda sobre “grupos étnicos” ou “movimentos identitários” que viriam para sequestrar o debate político verdadeiro, sem falar na ideia surpreendente de que as cotas iriam “racializar” nossa sociedade “não racista”.

A verdade é que as ações afirmativas e as cotas provocam uma redefinição do modo de funcionamento que torna homogêneas e uniformes as universidades brasileiras, induzindo não só a alterações nos processos, nas ferramentas, nos sistemas de valores mas também nos perfis de docentes, discentes e pesquisadores que ajudam o país a se pensar. Ou seja: ações afirmativas e, dentro delas, as cotas pretendem alterar um processo de estruturação institucional excludente que permaneceu intocado durante quase toda a história do país.

A entrada de outros grupos nas universidades, como mulheres negras, quilombolas e indígenas, incomoda porque abala a hegemonia e traz novas perspectivas e paradigmas, oferecendo a negras e negros um papel de protagonistas da ação política contra a expropriação de riquezas e a brutalidade que sustentam a sociedade e o regime político no qual vivemos. E aí vamos ter que enfrentar o desafio de refletir sobre o que a mudança desses sistemas monolíticos fará com a vida das pessoas que dele vêm se beneficiando.

Como informa o economista Mario Theodoro em seu livro “A Sociedade Desigual: Racismo e Branquitude na Formação do Brasil”, o país teve —e perdeu— três oportunidades históricas de alterar a dinâmica da enorme desigualdade que o caracteriza.

Na primeira metade do século 19, o estabelecimento de um imposto exorbitante tolheu a ascensão social do grande número de africanos libertos que exerciam as profissões de pedreiros, alfaiates, sapateiros, entre outras, o que impediu a criação, em escala ampla, de uma classe média negra no país.

O segundo momento destacado é o longo período de industrialização do país, entre 1930 e 1980, quando o crescimento per capita médio do produto interno brasileiro foi de “impressionantes 3,86% anuais”, por 50 anos! No entanto —como explica Theodoro—, o preceito que orientou a política econômica desse período, o de maior prosperidade vivenciado pelo país, foi crescer gerando pobreza, miséria e desigualdade.

Mais recentemente, entre 2004 e 2014, quando políticas do governo federal retiraram mais de 30 milhões de pessoas da pobreza, o percentual de negros entre os 10% mais pobres subiu de 73,2% em 2004 para 76% em 2014.

Para ser enfrentada com eficácia, essa persistência da desigualdade em prejuízo da população negra justifica a implementação de políticas públicas ou privadas de ação afirmativa —das quais as cotas são uma modalidade— para um efetivo combate às diferenças e uma real promoção da equidade entre brancos e negros no trabalho, saúde, educação e moradia.

Entregadores: Saúde mental e a noia sem fim, por Gringo.

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Num momento em que discute-se a regulamentação do trabalho por app, fala uma liderança dos entregadores. Gamificação do trabalho. Esgotamento. Medo de acidentes. Corpo e mente são triturados, diz. Plataformas não podem ser senhores do tempo…

Edgar Francisco da Silva (Gringo)

OUTRAS PALAVRAS -08/03/2024

Nos últimos anos assistimos a expansão de empresas que operam por meio de plataformas digitais no mundo capitalista. Situadas no processo de uberização aprofundam a mercantilização e a precarização do trabalho, em especial quando analisamos os trabalhadores que atuam por meio de aplicativos de serviços, tais como os entregadores. A conivência de Estados neoliberais acabou institucionalizando a precarização e o aumento da informalidade de milhões de trabalhadores, fazendo recair sobre os de maior vulnerabilidade social processos de adoecimento físico e mental profundos. A ausência de normativas governamentais permitiu que empresas, tais como Uber, iFood e Rappi ludibriassem direitos trabalhistas, usurpando horas e horas trabalhadas e não pagas dos trabalhadores.

Historicamente processos de exploração do trabalho são acompanhados de enfrentamento e estratégias diárias de resistência e revolta. Submetidos ao trabalho das empresas-plataforma, entregadores – organizados coletivamente ou não – enfrentam os abusos da relação pautada pelas demandas que chegam pela tela do celular.

O termo empreendedor, usado pelas empresas para definir o trabalhador nessa relação de trabalho sem vínculo jurídico trabalhista, onde este aparece como “dono do seu tempo”, poderia ser traduzido como parte do novo vocabulário encobridor de antigas formas de exploração. As refinadas tecnologias digitais foram definitivas para a manutenção e aperfeiçoamento das formas de organização e gestão que visam o extremo controle do trabalhador. Algoritmos podem controlar os movimentos dos trabalhadores e pressionar por longas jornadas de trabalho com períodos ociosos e sem remuneração, podem direcioná-los para territórios à revelia, são também capazes de estabelecer avaliações, punições e valores de entrega de forma unilateral mantendo regras desconhecidas. O sentimento de desvalorização pelo não reconhecimento do trabalho, a impossibilidade de projeção de planos futuros, a angústia por não ter condições de manter seu veículo de trabalho em dia, o sentimento de injustiça, a ausência de tempo de lazer, a certeza de estar em uma profissão de risco – onde a gamificação os empurra para acidentes muitas vezes fatais -, produzem medo, insegurança, sofrimento.

Tudo isso é apenas parte do processo que leva ao adoecimento, levando o corpo e a mente à exaustão.

Quase 600 mil entregadores estavam nas ruas do país em 2022 executando o trabalho intermitente, com jornadas mais longas e rendimentos inferiores aos trabalhadores não plataformizados (IBGE, 20231), dados que corroboram desigualdades estruturais da nossa sociedade. Estes trabalhadores, em sua maioria homens negros, encontram-se em trabalhos desvalorizados socialmente.

Recentemente, vemos uma profusão de manchetes noticiou diversas formas de violência sofridas por entregadores: racial, de classe, de gênero, urbana e policial, rompendo com a narrativa, construída a partir da pandemia de covid-19, da indispensabilidade dos entregadores para a manutenção do nosso modo de vida e consumo.

No início de 2023, o governo Lula, através do Ministério do Trabalho e Emprego, reuniu trabalhadores, centrais sindicais, sindicatos e representantes das empresas por aplicativos para a construção de uma regulação do trabalho de entregadores e motoristas. O grupo de trabalho (GT) constituído se prolongou por meses sem, contudo, produzir resultados que se mostrassem favoráveis aos trabalhadores.

Diante de um quadro nada promissor, trabalhadores de diferentes associações e coletivos enfrentaram os embates no GT. Sentaram-se à mesa novos e velhos sindicalistas compartilhando experiências e propostas para a categoria. Boa parte desses trabalhadores atravessou transformações profundas com a chegada das empresas-plataforma. Daí, ao compartilharem experiências comuns, expuseram a relação entre trabalho, saúde, adoecimento e acidentes vivenciados no cotidiano. Essa percepção tornou a questão da saúde fundamental para a luta, pautando reivindicações.

Algumas lideranças se destacaram no processo. Gringo é um deles. Edgar Francisco da Silva, 40 anos, motofretista de São Paulo, fundador e presidente da Associação dos Motofretistas de Aplicativos e Autônomos do Brasil (AMABR), criada no 1º de maio de 2018, e membro da ANEA (Aliança Nacional dos Entregadores por Aplicativos), surgida no cerne da luta dos trabalhadores diante da necessidade de integrar o grupo de trabalho organizado pelo governo federal. Possui mais de duas décadas de experiência no trabalho como motoboy.

Na entrevista que se segue, Gringo nos ajuda a compreender, a partir da sua trajetória e com conhecimento de causa, como vem se dando o processo de precarização e seus efeitos nocivos para a saúde e segurança dos trabalhadores, no contexto da plataformização do trabalho.

Sabemos que a plataformização do trabalho é um fenômeno mundial no atual contexto da aceleração de processos de precarização, embora apresentando especificidades nos diversos países e regiões do planeta. O trabalho de entregadores e motoristas por plataformas se apresenta como a ponta de um iceberg da exploração do trabalho no capitalismo. Como você vê o trabalho de entregadores e entregadoras hoje no Brasil?

Sem os entregadores e entregadoras na economia, acaba aquela agilidade toda para resolver problemas urgentes. Acaba a questão de pessoas que precisam se alimentar com rapidez. Que precisam pedir um lanche pra já. Mas eu enxergo a precarização de quem faz esse tipo de serviço e leva as empresas nas costas. Enquanto a gente vê, por um lado, empresas que acabaram de ser criadas virando bilionárias, do outro lado há entregadores que colocam seus bens [como suas motos] na rua cada vez mais precarizados, ao ponto de não terem descanso semanal. E, durante os anos que o entregador trabalha, não tem férias – não as férias do benefício da CLT, mas as férias de descanso para o corpo. É diferente de um outro serviço onde você só vem com a mão de obra, como um segurança, um porteiro… Eles só entram com a mão de obra. Aqui a gente não tem só a mão de obra, tem o custo operacional para exercer a profissão, o custo da máquina; então a gente tem que ganhar pela hora-homem e pela hora-máquina. O aplicativo se aproveita e coloca como se a gente estivesse ganhando o suficiente. Uma comparação: se eu trabalhava no açougue ganhando R$ 1.500, agora vou ganhar R$ 3.000 na moto! E se o entregador catou o fundo de garantia dele e comprou a moto, tirou habilitação, comprou capa de chuva, capacete, celular, bota de chuva, baú… Ele comprou tudo para exercer sua profissão! E aí ele se precariza; a sensação é de uma cenoura no ralador. Daqui a dois anos, quando ele sair da profissão, perceberá que os bens que investiu para poder trabalhar se desgastaram e ele não atingiu nenhum de seus sonhos ou objetivos. O que ganhou foi multa de trânsito ou sofreu algum acidente. Quando não se tem o poder de negociação do preço do serviço e das condições de trabalho, não se é autônomo nem empreendedor.

O que é ser um entregador hoje no Brasil? Há impactos deste processo de plataformização na forma como a categoria profissional se identifica? Com a entrada destas empresas, muda o modo como o motoboy se vê?

A profissão sempre foi vista como um escape para quem está desempregado, para quem saiu da cadeia, para quem teve algum problema. O que equilibrava muito a profissão é que tinha muita gente procurando entregadores, motoboys, motofretistas. E o que era o controle natural da profissão? A profissão matava muitas pessoas por causa dos acidentes e também era [realizada] no guia [mapa de ruas impresso]. O guia era um filtro, hoje tem GPS, mas antes era no mapa de papel, aquilo era difícil de olhar para quem entrava na profissão, você tinha que saber as abreviações e como procurar as ruas. E o guia era o seguinte: está chovendo, como é que você vai [manusear] com a mão molhada, mexer naquele negócio de papel?… Era tipo ensinar a fazer malabarismo, essas coisas que você vê que não é todo mundo que faz… Trabalhar na profissão era dessa forma.

O GPS facilitou para qualquer um começar a andar pela cidade sem conhecimento da cidade. Quando veio os aplicativos pagando muito bem, era coisa da gente ganhar quatro, cinco vezes melhor do que a CLT. A gente viu um sonho.

Uma coisa que não pode deixar de falar é que a CLT estava há tanto tempo estabilizada que o patrão aprendeu a usar ela contra a gente. O patrão fazia a gente fazer serviço de dois em um. E o aplicativo veio com aquela mágica de te pagar muito bem para fazer as entregas, de ganhar mais do que na CLT e livre, sem pressão. Isso fez com que a gente começasse a ter acesso a férias dignas, não férias de tempo afastado do serviço, mas férias merecidas, aquelas aonde eu saio com a minha família, eu consumo, eu me divirto. Os aplicativos surgiram em 2013, eu estou falando entre 2014 e 2018, que era a época boa ainda. Depois de 2018, foi só ladeira abaixo. O aplicativo veio trazendo todas essas facilidades para a vinda de muita mão de obra.

O impacto das plataformas começou quando eles começaram com o oligopólio. Faziam o seguinte: “traz um entregador igual a você para trabalhar aqui e eu te pago”. Aí você trazia o entregador. Você está tirando das empresas de motoboy, entende? “Agora me forneça um cliente que eu te pago R$200 por cada cliente”. O aplicativo está dando dinheiro para aquele cliente usar o aplicativo pela primeira vez para ver se gosta. Tudo isso fez um dumping social: o aplicativo atacou e derrubou todas as empresas existentes, tirando os entregadores e os clientes delas; e isso fez com que o aplicativo se tornasse um oligopólio. E, com isso, muitas pessoas se endividaram para entrar nessa terra dourada. Agora que o aplicativo está saturado, ele baixa o preço. E, quando ele baixa o preço, quem estava acostumado com aquele tipo de vida, pula fora. As pessoas endividadas viram refém. Elas são obrigadas a ficar naquele sistema e eles [as empresas] baixam mais [a remuneração pelo serviço]. Um retrato claro disso foi a pandemia, quando muitos perderam o seu trabalho por causa do lockdown – não os entregadores: pessoas que trabalhavam em outras profissões. Eles perderam seu trabalho, então quem tinha moto foi para o aplicativo. É isso: as plataformas tinha muita gente desempregada com moto, viraram a saída. O que eu quero dizer com tudo isso? Que aumentou a receita dos aplicativos, novos clientes apareceram de tudo quanto é lado, mas o entregador passou a ganhar menos e se expor mais. Porque antes ele fazia 15 entregas a R$10 e aí ele passou a fazer 12, 13 entregas a R$6. Entende? Este é o impacto dos aplicativos.

Antes a gente tinha opção. Por mais precarizado que fossemos, a gente achava trabalho em outras empresas. Hoje não acha, não tem outra opção, virou oligopólio mesmo.

Características dessa forma de organização e controle do trabalho, como o rebaixamento da remuneração dos trabalhadores – levando à necessidade de extensão da jornada de trabalho -, o gerenciamento algorítmico e a falta de acesso às regras de funcionamento das empresas se relacionam com o desgaste e adoecimento físico e mental dos trabalhadores. Estudos apontam o crescimento de índices de acidentes de trânsito associado ao aumento do número de entregadores por aplicativos, acidentes esses que deveriam ser encarados como acidentes de trabalho. Como você observa a relação entre o trabalho e a saúde e segurança dos entregadores e entregadoras?

Na forma que está com essa desvalorização e precarização que os aplicativos vêm fazendo, o entregador passou a absorver o prejuízo. Ele deixou de se alimentar adequadamente, de fazer a manutenção no seu veículo, o que é crucial para sua segurança, passou a fazer gambiarras nos veículos, ficam com excesso de horas em trabalho, o que também é prejudicial. Quem trabalha o dia inteiro como se fosse um atirador de elite ali, precisa ser preciso ao passar no meio do trânsito. Para quem está cansado, isso faz uma diferença gigante: de passar no farol vermelho sem perceber, de acertar um carro ali no meio do corredor sem perceber, por falta de atenção… O cansaço com tomadas de decisões que a gente tem é que coloca nossa vida em risco… Você precisa estar descansado para fazer esse trabalho que a gente faz.

O Ministério do Trabalho reconhece a nossa profissão como uma profissão de risco na lei 12.997 de 2014. Para isso, existe uma regulamentação federal que é a lei 12.009/09. Essa regulamentação serve para diminuir os acidentes, pois exige que o motofretista seja maior de 21 anos e tenha dois de CNH [carteira nacional de habilitação]. Porque se você olhar o ranking de acidentes, a imensa maioria tem idade abaixo dos 21, entre 18, 24, mas abaixo de 21 é tipo o dobro. E dois anos de CNH quer dizer que pelo menos você praticou depois de tirar a habilitação. Enfim, a gente vem com um processo de regulamentação precário, onde os aplicativos não respeitam nenhuma dessas exigências e acabam colocando pessoas sem capacitação para exercer uma profissão de risco, sem os acessórios de segurança, sem o curso. O curso é de 30 horas e 25 delas são teóricas, mostrando os riscos da nossa profissão, como evitar situações desse tipo… Cinco horas são práticas para aprender técnicas de pilotagem que não se aprendeu na autoescola e que vão salvar sua vida no dia a dia. Mas os aplicativos não cumprem essa legislação e ainda estão tirando todas as formas daquela pessoa de exercer a profissão de forma saudável, com disposição de saúde tanto de trabalhar no dia a dia, quanto de estar bem psicologicamente. Porque se barateia o serviço se você não consegue nem fazer a manutenção do veículo, está sem capacitação, mal alimentado, com veículo precarizado e ainda trabalhando numa carga horária excessiva? Qual resultado a gente espera a não ser o aumento de acidentes de trabalho — E eles ainda são escondido como acidente de trânsito.? A soma de tudo não tem como dar em outra, mais cedo ou mais tarde. Quem escapa é como acertar na loteria. É um profissão de risco, com trabalhadores mal alimentados, veículos precarizados, excesso de carga horária, sempre correndo… Porque a gente é forçado a correr pela gamificação, te dão bônus ou te bloqueiam parcialmente se você não fez aquela entrega no tempo certo, então você precisa correr para entregar [os pedidos] no tempo certo, para que o aplicativo não fique sem tocar… E alguém te induzindo a correr… O resultado não tem como ser outro a não ser acidente. E esse acidente termina de três formas: o óbito; ou essa pessoa sequelada; ou, se o acidente não foi tão grave, ela volta [para o trabalho] propícia para um novo acidente. Agora você coloca aí uma pessoa que não está ganhando o suficiente para se manter, na hora que ela recebe o bruto ainda tem que tirar o custo para exercer a profissão, então sobra pouco, ela só está se mantendo. Então, quando ela toma uma multa, quando chega alguma coisa, acontece algum imprevisto financeiro, essa pessoa começa a se desesperar, isso faz com que ela perca o centro dela mesma, ela começa a trabalhar com a cabeça também. Imagina o aplicativo te jogando bônus para você correr, ou “eu vou te bloquear”, essa pressão… O psicológico não aguenta — e muitos nem sabem que estão ficando ruins porque não percebem que estão estressados, tratando a família mal, sem mais paciência com o filho e acham que o filho é o chato. E você fica ali sendo pressionado pelo aplicativo, pelas contas, por toda essa situação, naquela perspectiva de que “vai tocar, vai tocar, vai tocar” e não toca; aquela gamificação do aplicativo. É como o Instagram: quando você entra e aceita algum amigo, fica aparecendo aquele amigo para você o tempo todo; é igual quando você entra no aplicativo: fica saindo corrida o tempo todo para você. Só que daqui a pouco [no Instagram] aquele amigo vai desaparecendo e ele não é mais importante; e eles dão visibilidade para outro. O aplicativo faz a mesma coisa, ele te substitui. Ele já te viciou: “agora que você está viciado, agora vou mandar o vício para outro”. E aí a gente vai colocando todo mundo no esquema e no automático, e todo mundo é um refém com sua força de trabalho, seu tempo, sua saúde, sem segurança e sem o seu psicológico.

Pra você, lutar e se organizar coletivamente é saúde?

Se é saudável para mim, não é. Na minha opinião, o que estão fazendo comigo, como liderança, não é saudável. Eu estou lutando para as pessoas serem valorizadas, para que elas tenham saúde, para que elas tenham segurança, para que elas tenham previdência e para que não sejam refém de um jogo de manipulação, que no caso é o algoritmo dos aplicativos. Mas eu estou passando por tudo isso, sem ser valorizado, sem ganhar o que eu precisava de acordo com o que eu faço, sem saúde, sem previdência e vítima dessa manipulação do sistema. Então para mim não é saudável. E eu sou um insistente, não sei se eu posso dizer teimoso ou persistente –persistente é a teimosia inteligente, não é? Mas, às vezes, me pego como teimoso. Sou persistente quando eu vejo que há uma demora para dar um passo, mas quando esse passo acontece, aí eu vejo que era persistência, não teimosia. Mas eu cansado, estou exausto. E isso começou a comprometer minha saúde, segurança, remuneração… Em 2021, eu estava aqui em casa, aí eu fui para um evento do Detran, que eles pediram minha ajuda, e eu consegui colocar 12 mil motocas lá. Durante aquele negócio doido, aquele monte de pessoa ao meu redor — “e aí Gringo, não sei o que lá etc” — você parece uma celebridade… E aí minha mãe me liga e fala: “olha, cortaram a luz de casa”. Eu estava tendo visibilidade, mas o financeiro não acompanhava aquela minha visibilidade: eu fiquei três dias sem luz aqui em casa numa época de frio. Todo mundo aqui em casa sofreu por minha causa e eu me estressei muito tentando religar [a energia elétrica]. Olha, então, o que acontece nessa luta.

Se a pergunta é para mim como liderança, digo que ela está me fazendo muito mal, mas eu sou persistente.

E como se amplia todo este debate que a gente teve aqui para a sociedade, para além de quem pesquisa esse assunto ou para quem trabalha no dia a dia?

Eu acho que aproveitando essas oportunidades, entendendo o que esses meios de comunicação querem e usar eles a nosso favor. A gente precisa aprender a usar todas as ferramentas disponíveis, ir passando a informação: união, organização, informação e ação.

A vingança do lixo, por Fernanda Mena

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Vai ser difícil escondê-lo como se fazia na Paris de Eugéne Poubelle

Fernanda Mena, Mestre em direitos humanos pela LSE (London School of Economics), doutora em relações internacionais pela USP e repórter especial da Folha.

Folha de São Paulo, 09/03/2024

A lixeira é uma invenção mágica do final do século 19: faz desaparecer tudo o que é depositado nela. Longe dos olhos, não é preciso se responsabilizar pelo que acontece dali por diante com os itens descartados.

Essa mágica da modernidade, atribuída ao francês Eugéne Poubelle (1831-1907), cujo sobrenome batizou as latas de lixo na França, se tornou cada vez mais conveniente. A escalada da urbanização e da industrialização, o crescimento da população e o surgimento do consumo de massa fizeram a produção de resíduos explodir.

Em 1900, as cidades concentravam 13% da população global, ou 220 milhões de pessoas, que produziam 300 mil toneladas de lixo por dia, entre embalagens, restos de alimentos, itens domésticos quebrados e peças de vestuário inutilizadas.

De lá pra cá, a população urbana aumentou 20 vezes e bateu 4,4 bilhões de pessoas (ou 56% da população global), e a produção de resíduos cresceu na mesma proporção, chegando a 6,3 milhões de toneladas diárias.

O peso é equivalente a 121 Titanics de lixo todos os dias. E boa parte dele é descartado de maneira inadequada, já que 2,7 bilhões de pessoas no mundo não têm acesso à coleta regular de lixo, segundo relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma).

O lixo está mais relacionado às mudanças climáticas e à perda da biodiversidade do que se supõe. Ele polui o solo, os lençóis freáticos, os rios e os mares. Estima-se que em 2050 os oceanos deverão ter mais plástico do que peixes.

Sua decomposição em aterros sanitários também é responsável por cerca de 20% das emissões humanas de metano, o pior dos gases de efeito estufa.

Além disso, o ritmo e a escala com que as pessoas compram e descartam embalagens, roupas, alimentos e tudo mais estão diretamente ligados à quantidade de recursos naturais gastos, de energia consumida e de poluição gerada. Não é pouca coisa.

Se nada mudar, em 2050 a produção anual de lixo terá atingido a marca de 3,8 bilhões de toneladas.

Será difícil esconder dos olhos essa quantidade brutal de lixo como se fazia na Paris de Poubelle.

O gerenciamento de resíduos já é o maior gasto de orçamentos municipais pelo planeta, competindo com outras áreas vitais como saúde e educação. Seu custo direto global foi estimado em US$ 252 bilhões (mais de R$ 1,2 trilhão) e pode chegar a US$ 640,3 bilhões (quase R$ 3,2 trilhões) em 2050.

Por outro lado, também segundo a ONU, o lucro líquido potencial de uma economia verdadeiramente circular é de mais de US$ 100 bilhões ao ano, ou quase R$ 500 bilhões.

A vingança do lixo, desprezado desde sempre, é se fazer notar de duas maneiras opostas: como fonte de destruição e doença, num tsunami malcheiroso de tudo o que se queria fazer desaparecer, ou como a chave para novas oportunidades econômicas.
A escolha é urgente.

Negação do Antropoceno tira urgência do clima, por Marcelo Leite

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Decisão contrária de geólogos reforça agenda de viciados em petróleo, como Lula
Marcelo Leite, Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

Folha de São Paulo, 10/03/2024

Especialistas da União Internacional de Ciências Geológicas decidiram que não é o caso, ainda, de designar uma nova etapa na história da Terra, o Antropoceno. A decisão tecnocrática contrasta com a percepção geral de que algo portentoso está afetando o globo.

O pessoal de ciências da Terra pesquisa e pensa sob a égide da imensidão do tempo geológico. O planeta conta 4,5 bilhões de anos; o Universo, 13,7 bilhões. Dessa perspectiva, encerrar o Holoceno (era atual) após meros 11 mil anos pode parecer precipitado.

Deixando de lado razões técnicas para a recusa, por falta de competência para julgá-las, cabe dizer que a decisão veio em má hora. O Antropoceno, categoria indicativa do impacto profundo da atividade humana sobre a Terra, oferece um símbolo poderoso para impulsionar o enfrentamento da crise climática.

Para quem duvida de estarmos deixando marca profunda na história do planeta: nos últimos 250 anos, a concentração atmosférica do dióxido de carbono (CO2), principal gás do efeito estufa, aumentou 50%, de 280 partes por milhão (ppm) para mais de 420 ppm.

A queima de combustíveis fósseis e de florestas lançou cerca de 1,5 trilhão de toneladas de CO2 no ar, engrossando o cobertor que faz subir a temperatura na superfície e nos oceanos. Com os recordes de 2023, em 17 de novembro ultrapassamos pela primeira vez a marca de 2ºC acima da era pré-industrial.

Considerando a média de várias décadas e não o registro diário, como recomendam climatologistas, a atmosfera está 1,17ºC acima do que era até então o normal. Perigosamente perto dos 1,5-2ºC preconizados como limite de segurança no Acordo de Paris (2015).

Pouco se fez de lá para cá para mitigar o aquecimento global. Seguem em alta as emissões de CO2, as marcas dos termômetros e a ocorrência de eventos extremos –como as atuais cheias devastadoras no Acre e secas idem em Roraima, origem de incêndios florestais disseminados no segundo caso.
O governo brasileiro, após a eleição de Lula e a volta de Marina |Silva ao Ministério do Meio Ambiente, até conseguiu reverter a tendência de desmatamento na Amazônia. Mas se mostra impotente diante de desastre pior causado pelo agronegócio no cerrado.

Pior ainda, pisa fundo no acelerador da Petrobras. A desculpa é usar a renda do petróleo para fazer a transição energética, para a qual, no entanto, não tem plano detalhado e exequível.

Considere o contraste com a União Européia (UE), que cogita cobrar das empresas petroleiras a conta da mudança climática desastrosa. Ou com a decisão do governo de Joe Biden, em janeiro, de congelar nos EUA a ampliação de licenças para exportar gás natural liquefeito, outro impulsionador do efeito estufa.

Ambas as iniciativas podem, é verdade, retroceder diante de reviravoltas políticas com a vitória de partidos de direita. A UE se acha sob pressão de agricultores sublevados contra altas nos preços de combustíveis e exigências ambientais. Nos EUA, torna-se cada vez mais provável a eleição do negacionista Donald Trump.

Lula almeja liderança global na onda verde pelo clima, mas seu desenvolvimentismo petroleiro anos 1950 pode erodir-lhe o protagonismo na COP30 de Belém do Pará, no final de 2025. Pesará também sua camaradagem com autocratas violentos montados em jazidas fósseis como Maduro, Putin e Mohammed bin Salman.

Ambos os cenários, nacional e internacional, não auguram nada de bom para a crise do clima. O termostato controlador da transição energética parece estar avariado, e um dos sintomas é a rejeição do Antropoceno –mas ele ainda vai voltar para nos assombrar.

Invasão chinesa

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Vivemos momentos de grandes rupturas e transformações estruturais na sociedade brasileira, os comportamentos estão em franca modificação, o mundo do trabalho está de cabeça para baixo, os relacionamentos se alteram rapidamente, as hegemonias estão em movimento, os modelos de negócios estão sendo reconfigurados e as incertezas crescem de forma acelerada, gerando preocupações, instabilidades e o incremento de novos medos.

Neste ambiente, percebemos as modificações geopolíticas e geoeconômicas na sociedade internacional, países dominantes vêm perdendo espaço e reduzindo seus poderes e outros contendores ganham espaços, surgindo novos modelos de negócios, novas estruturas culturais, novas lideranças e novos desafios surgem cotidianamente. O século XXI nos mostra a ascensão asiática, principalmente o grande crescimento da economia chinesa, com suas especificidades, novas organizações corporativas e novas formas de estruturação socioeconômica.

Nestas novas reconfigurações econômicas e produtivas, percebemos que a economia chinesa vem se transformando na indústria do mundo, com grande capacidade de produção e faturamento superior a mais de US$ 4 trilhões, despertando ressentimentos, preocupações e o crescimento das políticas protecionistas, tudo isso, vem gerando aumento dos conflitos comerciais e confrontos financeiros, com instabilidades na economia global, gerando preocupações geopolíticas e receios de conflitos militares.

A ascensão chinesa está criando espaços de negociação na economia internacional, novas oportunidades de negócios e abrindo novas oportunidades de investimentos e, infelizmente, podem gerar novas formas de dependência financeira e tecnológica. Diante deste quadro, precisamos compreender as movimentações globais das nações, estudar estas novas configurações e criar instrumentos de atuação para evitar a eterna perpetuação de uma histórica dependência estrangeira, inicialmente europeia, passando pela norte-americana e agora, na contemporaneidade, na dependência chinesa.

Com o crescimento das negociações internacionais, faz-se necessário compreendermos os interesses nacionais, o que queremos nos próximos anos e quais os setores que devemos alavancar na economia brasileira nos próximos anos e, a partir daí, criar instrumentos para extrairmos nas conversações globais novas tecnologias que podem impulsionar o crescimento econômico e produtivo, nestas negociações precisamos exigir a transferência de tecnologia para consolidarmos os setores produtivos.

A transferência de tecnologias pode ser vista como forma de encurtarmos os caminhos do desenvolvimento econômico, mas só será exitosa se conseguirmos melhorar os indicadores educacionais, com sólidos e garantidos investimentos em pesquisa científica, somente assim compreenderemos e dominaremos essas tecnologias que crescem, se espalham e dominam a economia internacional.

A ascensão chinesa deve ser vista como uma oportunidade de crescimento dos investimentos e a geração de empregos, mas precisamos compreender que essa entrada de produtos asiáticos pode gerar graves constrangimentos para a economia nacional e fragilizar setores importantes, desta forma, precisamos utilizar o nosso grande mercado interno para angariar vantagens expressivas, ganhando escalas produtivas e garantindo condições de competir numa economia altamente integrada e interdependente. Vivemos um momento de apreensão, de oportunidades e grandes conflitos pela hegemonia mundial, as escolhas nacionais podem mostrar os caminhos que queremos trilhar no século XXI.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Da janela do quartel, por Manuel Domingos Neto

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Manuel Domingos Neto – A Terra é Redonda – 29/02/2024

Por que o militar não gosta de Lula?

O militar não gosta de Lula e o chama de ladrão. Em suas especulações sobre a crise brasileira, salienta a falta de padrão moral consentâneo com a presidência da República. O militar enxerga o mundo da janela do quartel: a sociedade seria demasiado anárquica, indisciplinada, desprovida de formação moral e incapaz de escolher boas lideranças.

Por “militar”, estou designando o tipo preponderante nas Forças Armadas brasileiras. Nas corporações, há diferenças entre seus integrantes, mas predomina a unidade de valores e convicções indispensável à adoção de doutrinas norteadoras da organização e do emprego das fileiras.

O militar não gosta de Lula porque esse líder, mesmo não sendo um reformista radical, acena com mudanças sociais. Instila, de algum modo, esperança em um tempo novo, enquanto o militar cultua o legado colonial.

O militar preza a estabilidade. Mudanças sociais roubam-lhe o azimute. Pretendendo-se criador da nação, constrangeu o constituinte a designar-lhe o papel de mantenedor da lei e da ordem. Admite, no máximo, uma modernização contemporizadora, que preserve o domínio oligárquico característico da sociedade brasileira.

Lula não bate de frente com os poderosos, mas condena iniquidades e promete “incluir o pobre no orçamento”. Em que pese seu gosto pela conciliação de classes, sua carreira política não deixa de desafiar a hierarquia social em que se ampara a organização militar. Seu jeito de ser e de falar incomoda porque anima parcelas socialmente rebaixadas.

Apegado à estabilidade e sem argumentos válidos para se contrapor à mudança social, o militar vê em Lula um demagogo, um espertalhão em busca de proveito próprio. Um político prejudicial à boa ordem. Lula é perigoso: na condição de chefe de Estado, pede desculpas aos africanos pela escravidão. Prega a tolerância e fere a cultura homofóbica do quartel.

Quando o militar condena Lula moralmente, evita o desgaste de rebater seu discurso antiescravagista e de repúdio ao patriarcalismo.

O militar não gosta de Lula por conta de amizades perigosas: abraça João Pedro Stédile, percebido no quartel como encarnação do inimigo interno, negador da lei e da ordem.

Lula sempre atendeu às demandas do quartel. Na cadeia, em Curitiba, disse não entender a animosidade do militar consigo, posto não o contrariara. Retornando à presidência, persiste satisfazendo a caserna. Garante recursos para uma gigantesca escola de sargentos concebida para reforçar a ordem interna no Nordeste, região supostamente propensa à insurreição.

Abona projetos que reforçam a capacidade de combater brasileiros em detrimento da capacidade aeronaval, mais adequada à guerra contra o estrangeiro. Usa, inclusive a expressão “Exército de Caxias”, que significa Exército repressor de insubordinações populares. Rejeita discussão sobre Defesa Nacional para não ferir cânones estabelecidos desde sempre.

A razão principal para o militar se contrapor a Lula está na insegurança quanto ao futuro das corporações. O militar brasileiro integra o esquema de forças liderado por Washington. Raciocina como defensor da “civilização ocidental”. Depende estruturalmente do Pentágono e absorve a pregação ideológica imperial.

Nestes tempos em que se redefine uma nova ordem internacional, o contraditório entre a veleidade de soberania nacional e os laços de dependência das corporações armadas em relação a Washington será crescentemente exposto. O ambiente guerreiro que toma conta do planeta não permite neutralidade. O militar não gosta da aproximação de Lula com nações que considera dominadas por “ditaduras comunistas”.

A indisposição militar com Lula se agravará, não obstante seu empenho em livrar as corporações de responsabilidades quanto à tentativa de quebra da ordem institucional.

Nas democracias modernas, militar não teria que gostar ou desgostar do político, mas obedecê-lo.

A vida real, entretanto, mostra que as predileções políticas do militar contam decisivamente.

O militar considera a polarização política o principal problema brasileiro, mas gostou da demonstração de força da extrema direita na avenida paulista no último final de semana. A docilidade do militar para com Lula é uma quimera que cobrará seu preço.

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). Autor, entre outros livros de O que fazer com o militar – Anotações para uma nova Defesa Nacional (Gabinete de Leitura)

A ofensiva da extrema direita, por Igor Felippe Santos

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Igor Felippe Santos – A Terra é Redonda – 28/02/2024

As milhares de pessoas que participaram do ato na Avenida Paulista no último domingo não se
moveram apenas para apoiar seu líder diante da “perseguição”

Ninguém imaginava uma década atrás que o então deputado federal de baixo clero Jair Bolsonaro poderia chegar à presidência da República e levar milhares de pessoas às ruas. Naqueles tempos, a direita tinha o PSDB como referência política, disputando as urnas e respeitando a “alternância de poder”. Seu projeto neoliberal defendia bandeiras como a “modernização do Estado”, responsabilidade fiscal e políticas sociais focalizadas.

Dez anos depois, com o recrudescimento das contradições da crise mundial do capitalismo, a coalizão tucana naufragou. Emergiu uma força política que rejeita os princípios da Constituição de 1988 e o arranjo institucional da Nova República. As bases de convivência democrática das forças neoliberais e da esquerda moderada foram corroídas, sobretudo, com a manipulação política e midiática de casos de corrupção.

Ganhou força o discurso hipócrita do “tem que mudar tudo que está aí”, com o ódio de parcela da elite e da classe média conservadora tragando a democracia formal. O motivo: os avanços dos direitos dos trabalhadores, especialmente dos mais pobres.

O manejo da pauta conservadora contra as conquistas das agendas das mulheres, da negritude e dos LGBTs aproximou os interesses da extrema direita com a ideologia das igrejas fundamentalistas, colocando uma base popular a serviço dessa força política.

Não se pode subestimar o processo político que está em curso, que tem conexões internacionais e conquista governos pelo mundo. As milhares de pessoas que participaram do ato na Avenida Paulista no último domingo, atendendo o chamado de Jair Bolsonaro, não se moveram apenas para apoiar seu líder diante da “perseguição” que sofre dos seus supostos algozes. Foram, sobretudo, para defender sua visão de mundo, sua ideia de Brasil, seu entendimento de democracia e seu projeto de sociedade – mesmo que ele seja para poucos.

Quem procura analisar os efeitos dessa manifestação na conjuntura nacional, especialmente nos processos contra Jair Bolsonaro, pode concluir que os impactos são pequenos. Em determinada medida, o ato pode até prejudicá-lo, com a inclusão no processo de trecho do discurso no qual o ex-presidente admite que sabia da minuta que previa a decretação de estado de sítio.

O cerco judicial está se fechando e Jair Bolsonaro passa por uma defensiva tática com o avanço das investigações, a prisão de aliados próximos e o aumento da possibilidade de ir para a cadeia. Contraditoriamente, a capacidade de direção política e a coesão ideológica do seu campo, que se expressaram neste domingo em força de mobilização, demonstram que a extrema direita faz uma ofensiva estratégica.

Suplantou a direita tradicional e conquistou a fidelidade de uma base social conservadora. Incidiu sobre setores populares com a aliança com as igrejas fundamentalistas e com a ideologia do medo, que assola das capitais ao interior do país. Ganhou postos na disputa institucional, com uma bancada puro sangue de parlamentares, governadores e prefeitos. Construiu uma máquina de disputa ideológica com a defesa de seus valores.

O presidente Lula venceu a eleição de 2022, na disputa mais acirrada da história recente. O Brasil está profundamente dividido: quase metade do eleitorado votou em Jair Bolsonaro, mesmo depois das contradições de quatro anos de governo. Essa força da extrema direita mantém um nível de coesão; e milhares foram às ruas com a sua engenharia de mobilização de massas.

De um lado, o ódio da elite brasileira e da classe média conservadora contra a esquerda, mobilizada a partir das redes sociais, em defesa de seus interesses de classe. Por outro lado, a articulação das igrejas fundamentalistas, com pesado investimento de recursos, viabilizou caravanas de recorte mais popular, das cidades do interior e de Estados mais próximos.

A manifestação em defesa de Jair Bolsonaro, líder de uma articulação golpista, foi convocada em defesa do Estado de Direito. No entanto, tinha como pano de fundo a defesa de um projeto de sociedade, representado por Jair Bolsonaro, que faz parte de uma rede internacional ultraconservadora.

A tentativa de naturalizar o 8 de janeiro de 2023, relativizando o significado de democracia, os ataques ao presidente Lula e ao MST, a exaltação de discursos religiosos fundamentalistas e o desfile das bandeiras de Israel colocaram nas ruas a ideologia da extrema direita.

Quando a democracia se torna um valor social relativo, com significados diferentes a depender do lado da polarização, defendê-la é insuficiente para enfrentar aqueles que querem destruí-la.

Mais do que nunca, é necessário fazer a disputa de ideias, valores e projetos de sociedade.

*Igor Felippe Santos é jornalista e ativista de movimentos sociais.

Perpetuando Desigualdades

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A sociedade brasileira vem passando por grandes desafios que estão moldando as estruturas econômicas e produtivas, com impactos sociais, políticos e culturais. Neste ambiente centrado por grande concorrência e forte incremento tecnológico, as nações prescindem de lideranças conscientes e qualificadas para superar os grandes desafios contemporâneos, sob pena de perderem o bonde da história, perpetuando desequilíbrios estruturais, aumentando as desigualdades e aprofundando os graves constrangimentos existentes na sociedade.

Dentre os grandes desafios na sociedade brasileira, gostaria de salientar dois desafios que nos parecem urgentes e prescindem de políticas públicas imediatas para reverter essa situação de caos e graves constrangimentos. Destacamos as questões climáticas, cujas alterações tendem a gerar graves desequilíbrios por todo o meio ambiente, com aumento da temperatura e seus impactos sobre toda a estrutura produtiva, com fortes modificações e preocupações que podem gerar graves prejuízos para a agricultura, fragilizando as exportações e impactando a solidez das contas externas.

Estas transformações climáticas em curso na sociedade estão deixando claro que essas mudanças tendem a gerar graves prejuízos materiais e imateriais sobre as cidades, incrementando um caos, com destruições urbanas, com o crescimento de enchentes e mortes na comunidade. Diante destas modificações climáticas, a sociedade precisa tomar a liderança para modificar esse cenário desastroso, estimulando transformações estruturais, aumentando investimentos em energias alternativas, fortalecendo a bioeconomia e consolidando a economia circular, vislumbrando uma melhora no meio ambiente e reduzindo a dependência do combustível fóssil.

Outra questão que a sociedade brasileira precisa se atentar é com relação as desigualdades da renda. Sabemos que existem variadas formas de desigualdade na sociedade, mas quando nos referimos as desigualdades sociais, entramos num ambiente muito pantanoso. Vivemos numa sociedade em que milhões de pessoas vivem ou sobrevivem em condições sociais degradantes e num ambiente marcado por grandes paradoxos e contradições, de um lado percebemos a existência de setores altamente qualificados, dotados de grande desenvolvimento tecnológico, máquinas de primeira geração, inteligência artificial, dentre outros. Do outro lado, percebemos uma parte substancial da população nacional vivendo em condições indignas, sem educação, sem atendimento médico, sem saneamento básico, sem eletricidade, sem esgoto e grande dificuldade de sobrevivência. Esse é o retrato da sociedade brasileira, onde uma parte vive no século XXI e uma outra parte, substancial, sobrevive nos meados do século XIX.

As desigualdades crescem em todas as regiões do mundo, criando grandes conflitos, muitas guerras e violências generalizadas. Anteriormente, essas desigualdades sociais existiam em países pobres e subdesenvolvidos, gerando variadas dificuldades, pobrezas e violências crescentes. Atualmente, essas desigualdades crescem em países ricos e desenvolvidos, gerando novas formas de confrontos sociais e instabilidades políticas, ascendendo setores intolerantes, radicalismos, fascismos e violências crescentes.

O combate desses desequilíbrios que crescem na sociedade brasileira são fundamentais para melhorarmos o ambiente social, criando oportunidades para todos os grupos sociais, evitando que os radicalismos e os extremismos cresçam na sociedade que, com certeza, vai contribuir para a perpetuação das desigualdades que existem deste os primórdios da história da sociedade brasileira.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativo, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário

O grande capital impulsiona o colapso climático e social, por David Castells-Quintana

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David Castells-Quintana

Professor de economia aplicada na Universidade Autônoma de Barcelona

Folha de São Paulo, 27/02/2024

Vivemos em um mundo cada vez mais desigual. Um mundo cada vez mais dominado por grandes multinacionais que geram lucros exorbitantes enquanto pagam salários cada vez mais precários. Em 2023, Saudi Aramco, a grande petroleira saudita, registrou lucros de mais de US$ 247 bilhões. Apple e Microsoft reportaram, respectivamente, US$ 114 bilhões e US$ 95 bilhões.

Enquanto isso, as rendas reais de muitos trabalhadores dessas e de outras empresas se mantêm congeladas há anos. Esse grande poder empresarial está aprofundando as desigualdades. Mas não é só isso, o faz enquanto causa uma degradação constante de nosso planeta, com as emissões de gases de efeito estufa que não param de aumentar, elevando as temperaturas médias globais em quase 2º Celsius em relação aos níveis pré-industriais.

A ganância e as desigualdades

A ganância do capital aumenta a pobreza e a desigualdade; os lucros são a prioridade total. Jan Eeckhout, da Universidade Pompeu Fabra, explica em seu último livro, “The Profit paradox”, como o êxito crescente das grandes empresas aumentou as desigualdades salariais. Além do poder empresarial, as grandes empresas obtiveram a maioria dos lucros derivados dos avanços tecnológicos. Assim, a desigualdade aumentou dada à combinação entre poder de mercado e progresso tecnológico, que favorece a produtividade de alguns em detrimento dos demais.

Por um lado, trabalhadores que veem seus empregos cada vez mais mal remunerados, mecanizados ou deslocados para locais com salários mais baixos. Por outro lado, consumidores pagam preços desnecessariamente altos. Nas palavras de Eeckhout, “em vez de levar os benefícios das melhores tecnologias aos consumidores, essas empresas ‘superestrelas’ aproveitam as novas tecnologias para ganhar margens ainda maiores”.

O resultado é um mundo cada vez mais desigual. Uma desigualdade que se reflete cada vez mais não tanto entre os países, mas dentro deles e, em particular, dentro das cidades. As maiores cidades do planeta, tanto em países ricos quanto nos pobres, concentram hoje tanto os mais ricos quanto os mais pobres. Em cidades como Londres, Paris, Xangai, Lagos, Cidade do México ou Rio de Janeiro, aqueles que acumulam grandes fortunas vivem ao lado de milhares que passam fome todos os dias. Trata-se de dinâmicas que geram importantes fraturas urbanas que atualmente minam a coesão social e estão por trás do recente auge do populismo.

Como ressalta o último relatório sobre desigualdade da Oxfam International, Desigualdade S.A, na história da humanidade, nunca existiu uma desigualdade de renda e riqueza tão alta. Embora a riqueza dos cinco homens mais ricos do mundo tenha duplicado desde 2020, a riqueza dos 5 bilhões mais pobres diminuiu. Este relatório também foca no grande poder empresarial das multinacionais com crescente poder de mercado, que minimizam os custos laborais e evitam o pagamento de impostos.

A ganância empresarial não só aumenta as desigualdades; também intensifica a grande crise ecológica que vivemos. As grandes multinacionais são as maiores responsáveis pelas emissões de gases de efeito estufa e pela destruição de ecossistemas. As multinacionais são as maiores beneficiárias da deterioração do nosso planeta e do sofrimento dos mais pobres.
Mudança climática e desigualdade

Mas além da desigualdade nas emissões, a mudança climática gerada por elas já se tornou outro fator de crescente importância por trás dos recentes aumentos na desigualdade. Com o aumento de temperaturas, as secas, enchentes e outras perturbações climáticas se tornam mais frequentes e intensas. E tudo isso, infelizmente, afeta de forma desproporcional os mais pobres.

Isso não é só anedótico; a análise detalhada dos dados mostra como, nas últimas décadas, os aumentos das temperaturas ajudam a explicar a crescente desigualdade. Nas regiões onde as temperaturas aumentaram mais, a concentração de renda e riqueza também aumentou (ver “The far-reaching distributional effects of global warming”). Os pobres são os mais afetados por secas e desastres climáticos. Por dependerem, em muitos casos, de recursos naturais e da agricultura, são os mais vulneráveis por sua alta exposição e baixa capacidade de adaptação.

Além disso, os pobres geralmente vivem em áreas com maior estresse climático e propensas a desastres como enchentes, deslizamentos de terra ou incêndios. Pior ainda, a mudança climática está associada à maior incidência e intensidade de conflitos por recursos escassos, como a água.

E também à menor produtividade agrícola em áreas tropicais (onde vive a maioria dos pobres globais), maior desnutrição e mortalidade infantil. E, por sua vez, a maior incidência de doenças como a malária e a tuberculose. Tudo isso não só aumenta as desigualdades econômicas, mas também aumenta as diferenças na expectativa de vida em regiões onde ela ainda é baixa.

Um exemplo disso é a realidade de muitas regiões da África Subsaariana, onde as chuvas quase desapareceram nas últimas décadas. A falta de chuvas devastou os meios de subsistência de milhões de pessoas, mergulhando-as na pobreza e em conflito e tornando vários países da região, como Sudão, Sudão do Sul, Somália e Eritreia, em verdadeiros estados falidos.

Colapso ecológico e social

Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em inglês), já é quase inevitável que as temperaturas globais ultrapassem o limite de 2°C, podendo chegar aos 4°C se não reduzirmos drasticamente nossas emissões de gases de efeito estufa. Esses aumentos já estão desencadeando catástrofes ecológicas de longo alcance. Os ecologistas estimam uma taxa atual de extinção de espécies ao menos 1.000 vezes superior à normal, com até 150 espécies desaparecidas a cada ano. Um colapso ecológico sem precedentes.

E o ser humano não está à margem disso. A mudança climática e a degradação de ecossistemas ao redor do mundo estão a caminho de se tornarem o principal motor por trás das crescentes desigualdades globais, a maior barreira na luta contra a pobreza e, provavelmente, o principal motivo de conflitos em todo o mundo.

Como evitar o quase inevitável?

O crescente poder empresarial, as desigualdades no aumento e as mudanças climáticas são problemáticas bastante conectadas e características de um sistema global que só funciona bem para alguns, à custa do sofrimento de muitos outros e de um planeta em preocupante deterioração.

Para evitar o colapso ecológico e social que enfrentamos, faltam reformas profundas nesse sistema econômico global, começando pela descarbonização da nossa sociedade. Isso requer vontade e valentia política, bem como renúncias a níveis de consumo totalmente insustentáveis. Ou agimos

já ou o colapso é inevitável.

David Castells-Quintana é professor associado Serra Húnter na Universitat Autònoma de Barcelona. Doutor em Economia pela Universidade de Barcelona. Mestre em Desenvolvimento pelo Centro de Assuntos Internacionais de Barcelona (CIDOB). Especializado em economia internacional e economia urbana.

Lula está certo sobre Gaza, por Glenn Gleenwald

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Glenn Gleenwald – A Terra é Redonda, 25/02/2024.

A quem pertence a memória do nazismo e da Segunda Guerra? As sentenças proferidas em Nuremberg não podem dar a qualquer país, incluindo Israel, uma justificativa para suas próprias ações

Desde que Lula evocou o Holocausto para denunciar a destruição de Gaza por Israel, a grande mídia brasileira se uniu, com raras exceções, para condená-lo. Na segunda-feira (19) à noite, o jornalista William Waack afirmou na CNN Brasil que a declaração de Lula “ofende judeus no mundo inteiro”.

Deixando de lado a incongruência que é ver William Waack se colocar como vigilante da intolerância e fiscal do que se pode dizer no discurso público, a pergunta que faço é: com base no que ele se coloca como porta-voz dos “judeus no mundo inteiro”?

É verdade que a declaração de Lula enfureceu o governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que declarou Lula “persona non grata” em Israel. Mas equiparar o governo de Israel a “judeus no mundo inteiro” não é só falso, é também antissemitismo.

Como todos os grupos, os judeus não são um monolito. Qualquer pessoa que, como eu, tenha crescido numa família judaica e imersa nessas tradições sabe que o grupo passa longe de ser homogêneo. Há dentre os judeus discussões e divergências sobre os mais diversos assuntos, inclusive o Estado de Israel, o tratamento desumano dispensado aos palestinos e a abjeta imoralidade da destruição de Gaza.

Um mês antes do ataque do Hamas de 7 de outubro, o ex-chefe do Mossad, agência de inteligência israelense, Tamir Pardo – indicado por Benjamin Netanyahu – afirmou que Israel impõe “uma forma de apartheid aos palestinos”. Muitos líderes Israelenses, incluindo o ex-primeiro ministro Ehud Barak, já disseram o mesmo.

O jornalista judeu brasileiro Breno Altman vem repetidamente comparando as ações de Israel em Gaza ao nazismo, ao ponto de estar sendo investigado pela Polícia Federal por expressar sua visão. Um grupo de judeus brasileiros, conforme relatado pelo jornal Folha de S. Paulo, emitiu uma nota para defender as declarações de Lula.

Nesta semana, a escritora judia russa Masha Gessen recebeu o Award, o segundo prêmio mais importante no jornalismo dos EUA, por seu brilhante ensaio na revista New Yorker intitulado “Na Sombra do Holocausto”. No texto, Masha Gessen aponta como o Holocausto é frequentemente evocado para silenciar as críticas aos crimes de guerra de Israel.

Masha Gessen cita a filósofa Hannah Arendt, judia que em 1948 comparou grupos sionistas extremistas ao Partido Nazista, tanto em sua mentalidade quando em suas táticas – isso tudo menos de três anos depois do fim da Segunda Guerra.

No mesmo ano, o físico judeu Albert Einstein e outros importantes intelectuais judeus publicaram uma carta comparando os métodos de atuação de Menachem Begin, o terrorista sionista que se tornaria depois primeiro-ministro de Israel, aos dos nazistas.

Em seu artigo, Masha Gessen documenta como os intelectuais judeus mais importantes do pós-guerra insistiam que as lições do Holocausto deveriam ser aplicadas universalmente, e que nenhum país ou grupo, sionistas inclusive, deveria se furtar de absorver esse aprendizado.

Masha Gessen então descreve como, visitando os museus do Holocausto pelo mundo, se lembrava do sofrimento da população de Gaza nas mãos de Israel.

Sabendo então dessa enorme pluralidade no seio da comunidade judaica, como explicar a pretensão de uma pessoa como William Waack, que, como a grande maioria da mídia brasileira, se sente no direito falar em nome dos judeus e de impor limites às discussões sobre o Holocausto? E os judeus que rejeitam os ditames dos Netanyahu do mundo, quem falará por nós?

Equiparar as ações do governo de Israel à totalidade dos judeus do mundo é ofensivo. Todas as pesquisas mostram que o público israelense se voltou fortemente contra Benjamin Netanyahu e espera ansiosamente para depô-lo. Há protestos contra ele, liderados por judeus israelenses, toda semana. São judeus muitos dos líderes mais vocais em suas denúncias de que a guerra em Gaza é um genocídio.

Mas há ainda um tema muito mais importante trazido à tona pela controvérsia: a quem pertence a memória do nazismo e da Segunda Guerra? Existe alguém com legitimidade para ditar como o Holocausto pode ser discutido, por quem, e com que agenda política? Existem países específicos cujas ações estão imunes, por algum motivo, às comparações com os piores abusos da Segunda Guerra? Se sim, essa imunidade se baseia em quê?

Quando a Segunda Guerra terminou e a real dimensão do Holocausto foi revelada, os países aliados, uma vez vencedores, decidiram não executar imediatamente os líderes nazistas. Em vez disso, foi realizado um processo jurídico transparente, conhecido como o julgamento de Nuremberg.

O objetivo era publicizar e legitimar o veredito –, mais que isso, mostrar ao mundo as evidências das atrocidades cometidas pelos nazistas para, acima de tudo, estabelecer os princípios pelos quais os países deveriam se guiar no futuro.

O procurador-chefe dos EUA no julgamento, Robert Jackson, enfatizou em suas colocações iniciais que a maldade nazista se repetiria no futuro. “Esses prisioneiros nazistas representam uma influência sinistra que continuará no mundo mesmo depois que seus corpos retornarem ao pó.”

Referindo-se às sentenças contra criminosos nazistas específicos, Robert Jackson disse: “Se esse julgamento for ter alguma utilidade no futuro, deverá servir para condenar também a agressão de outras nações, inclusive as que aqui estão na posição de julgadoras”.

Os horrores do Holocausto não foram uma lição sobre a maldade dos alemães ou a vulnerabilidade dos judeus. Foram uma lição sobre a natureza humana e a nossa capacidade para o mal, e como sociedades sofisticadas e educadas podem sucumbir a impulsos genocidas. Por isso, as sentenças proferidas em Nuremberg não podem dar a qualquer país, incluindo Israel, uma justificativa para suas próprias ações. Pelo contrário: os crimes do Holocausto não podem ser repetidos por nenhum país, nunca mais.

Os horrores da destruição de Gaza por Israel já estão visíveis para todos que quiserem ver. O ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant, prometeu no início da guerra: “Estamos impondo um cerco total a Gaza. Nem eletricidade, nem comida, nem água, nem combustível. Tudo bloqueado”. O motivo: “Estamos lutando contra animais e agimos em conformidade”.

Hoje podemos ver que essa promessa, bem como a ideia de que os palestinos são sub-humanos, não era blefe. Segundo relatório da ONU, de todas as pessoas do mundo que enfrentam a fome extrema, 80% estão em Gaza. Trata-de se uma crise humanitária sem paralelo, diz o texto. Há inúmeros casos, incontroversos e amplamente documentados, de crianças à beira da morte por fome.

Ao menos 29 mil pessoas foram mortas em Gaza desde que Israel começou a retaliação aos ataques do Hamas de 7 de outubro: 70% são mulheres e crianças. A destruição da vida civil em Gaza é pior do que qualquer guerra que o mundo tenha visto no século XXI.

Mais bombas foram lançadas por Israel em Gaza, um território pequeno e densamente povoado, na primeira semana do conflito armado (cerca de 6.000) do que foram jogadas anualmente pelos EUA no Afeganistão, de 2013 a 2018 (nesse período, nenhum ano registrou mais de 4.400 bombas), segundo dados da Força Aérea israelense e da Central das Forças Aéreas dos EUA.

Ninguém, nem mesmo Lula, está sugerindo que a escala das mortes em Gaza seja comparável ao Holocausto. O que muitas pessoas estão dizendo – inclusive alguns dos intelectuais judeus mais proeminentes do mundo, como Masha Gessen – é que os mesmos princípios de desprezo pela vida e desumanização coletiva que culminaram no Holocausto estão também por trás da destruição de Gaza.

*Glenn Greenwald é jornalista, escritor, advogado especialista em direito constitucional dos Estados Unidos, Autor, entre outros livros, de Sem lugar para se esconder (Primeira Pessoa).

Publicado originalmente no suplemento Ilustríssima do jornal Folha de S. Paulo.

Para onde estamos indo? Leonardo Boff

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Leonardo Boff, A Terra é Redonda – 24/02/2024

Não precisamos mais que Deus intervenha para pôr fim à sua criação; coube a nossa geração assistir à possibilidade de sua própria destruição

Há a convergência de inúmeras crises que estão afligindo a humanidade inteira. Sem precisar citá-las me limito a duas, extremamente perigosas e até letais: uma guerra nuclear entre as potências militaristas, disputando a hegemonia na condução do mundo.

Como a segurança nunca é total, aí funcionaria a fórmula 1+1=0. Quer dizer, uma destruiria a outra e levaria junto todo o sistema-vida humana. A Terra continuaria empobrecida, cheia de chagas, mas giraria ainda ao redor do sol por não sabermos quantos milhões de anos, mas ser esse Satã da vida que é o ser humano demente que perdeu sua dimensão de sapiente.

A outra é a mudança climática crescente que não sabemos em que grau Celsius vai se estabilizar. Um fato é inegável, afirmado pelos próprios cientistas céticos: a ciência e a técnica chegaram atrasadas. Passamos o ponto crítico em que elas poderiam ainda nos ajudar. Agora apenas podem nos advertir dos eventos extremos que virão e minorar os efeitos danosos. Climatólogos sugerem que, nos muito próximos anos, possivelmente o clima se estabeleceria, em termos globais, em torno de 38-40 graus Celsius. Em outras regiões pode chegar por volta de 50oC. Haverá milhões de vítimas, especialmente entre crianças e idosos que não conseguirão se adaptar à situação mudada da Terra.

Estes mesmos cientistas têm advertido os Estados para o fato de milhões de migrantes que deixarão suas terras queridas pelo excesso de calor e pela frustração das safras de alimentos. Possivelmente, e é o desejável, que haja, obrigatoriamente, uma governança planetária global e plural, constituída por representantes dos povos e das classes sociais para pensar a situação da Terra mudada, não respeitando os obsoletos limites entre as nações. Trata-se de salvar não este ou aquele país, mas a humanidade inteira. Realisticamente disse várias vezes o Papa Francisco: desta vez não há uma arca de Noé que salva alguns e deixa perecer os demais: “ou nos salvamos todos ou ninguém se salva”.

Como se depreende, estamos diante de uma situação limite. A consciência desta urgência é muito fraca na maioria da população, entorpecida pela progapaganda capitalista de um consumo sem freios e dos próprios Estados, em grande parte controlados pelas classes dominantes. Estas só olham para um horizonte à frente, crédulas de um progresso ilimitado em direção ao futuro, sem tomar a sério que o planeta é limitado e não aguenta e que precisamos de 1,7 planetas Terra para satisfazer seu consumo suntuoso.

Há uma saída para este acúmulo de crises, das quais nos restringimos a duas? Creio que nem o Papa nem o Dalai Lama, nenhum sábio privilegiado pode predizer qual seja o nosso futuro. Se olharmos as maldades do mundo temos que dar razão a José Saramago que dizia: “Não sou pessimista; a situação é que é péssima”. Lembro o encantador São Francisco de Assis que, encantado, via o lado luminoso da criação. Pedia, no entanto, a seus confrades: não considerem demasiadamente os males do mundo para não terem razões de reclamar de Deus.

De certa maneira todos somos um pouco Jó que reclamava, pacientemente, de todos os males que o afligiam. Nós também reclamamos porque não entendemos o porquê de tanta maldade e especialmente porque Deus se cala e permite que, muitas vezes, o mal triunfe como agora face ao genocídio de crianças inocentes na Faixa de Gaza. Por que não intervém para salvar seus filhos e filhas? Não é Ele “o apaixonante amante da vida” (Sabedoria 11,26)? Atribui-se a Freud, que não se considerava um homem de fé, a seguinte frase: se aparecer diante de Deus, tenho mais perguntas a fazer a ele do que ele a mim, pois há tantas coisas que nunca entendi quando estava na Terra.

Nem a filosofia nem a teologia conseguiram até hoje oferecer uma resposta convincente ao problema do mal. No máximo é afirmar que Deus ao aproximar-se de nós pela encarnação – não para divinizar o ser humano – mas para humanizar Deus – foi dizer que esse Deus vai conosco para o exílio, assume a nossa dor e até o desespero na cruz. Isso é grandioso, mas não responde o porquê do mal. Por que o Deus humanado teve que sofrer também ele,”embora fosse Filho de Deus, aprendeu a obediência por meio dos sofrimentos que teve” (Hebreus,5,8). Essa proposta não faz desaparecer o mal. Ele continua como um espinho na carne.

Talvez tenhamos que nos contentar com a afirmação de São Tomás de Aquino que escreveu, reconhecidamente, um dos mais brilhantes tratados “Sobre o Mal” (De Malo).No fim ele se rende à impossibilidade da razão de dar conta do mal e conclui:”Deus é tão poderoso que pode tirar um bem do mal”. Isso é fé confiante, não razão raciocinante.

O que podemos dizer com certa certeza: se a humanidade, especialmente, o sistema do capital com suas grandes corporações globalizadas continuar com sua lógica de explorar até a exaustão os bens e serviços naturais em função de sua acumulação ilimitada, aí sim podemos dizer, na expressão de Zigmunt Bauman: “vamos engrossar o cortejo daqueles que estão rumando na direção de sua própria sepultura”.

Depois termos cometido o pior crime já perpetrado na história: o assassinato judicial do Filho de Deus, pregando-o na cruz, nada mais é impossível. Como disse Jean-Paul Sartre após as bombas sobre Hiroshima e Nagasaki: o ser humano se apropriou da própria morte. E Arnold Toynbee, o grande historiador, comentou: não precisamos mais que Deus intervenha para pôr fim à sua criação; coube a nossa geração assistir à possibilidade de sua própria destruição.

Pessimismo? Não. Realismo. Mas, pertence também à nossa possibilidade de dar o salto da fé que se inscreve como uma possível emergência do processo cosmogênico: cremos que o verdadeiro senhor da história e de seu destino não é o ser humano, mas o Criador que das ruínas e das cinzas pode criar um homem novo e uma mulher nova, um novo céu e uma nova Terra. Lá a vida é eterna e reinará o amor, a festa, a alegria e a comunhão de todos com todos e com a Suprema Realidade. Et tunc erit finis.

*Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Habitar a Terra: qual o caminho para a fraternidade universal (Vozes)

“Ideia sobre ensinar a pescar não faz sentido”. Entrevista com Marcelo Medeiros.

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Entrevista com Marcelo Medeiros, Instituto Humanitas Unisinos – 20/10/2023

Para Marcelo Medeiros, há muito preconceito contra a assistência social no Brasil. Em entrevista, economista e sociólogo fala sobre seu novo livro que aborda a desigualdade do país.

Logo na introdução de seu novo livro Os ricos e os pobres: o Brasil e a desigualdade, o sociólogo e economista Marcelo Medeiros enfatiza que “há limites claros para algumas medidas de combate à desigualdade que, com grande frequência, são alçadas quase à condição de panaceia, como é a educação”.

Lançada pela Companhia das Letras, a obra, que chegou às livrarias nesta quarta-feira (18/10), não só escancara a, conforme o próprio autor, “absurda” desigualdade social brasileira, como explica que não existe uma solução mágica para o problema. “Resolver isso vai exigir um esforço gigantesco, custar muito caro e consumir um capital político imenso, porque isso, no fundo, implica em enfrentar diretamente os conflitos distributivos e grupos inteiros vão resistir pesadamente a isso, no campo da política e da economia, em tudo aquilo que puderem, porque os grupos sempre defendem seus interesses”, diz Medeiros, professor visitante na Universidade de Columbia, em Nova York, em entrevista a Edison Veiga, publicada por Deutsche Welle, 19-10-2023.

Eis a entrevista.

E ser rico, o que significa?

Existe muita discussão sobre se ser rico é estar nos 10% mais ricos da população, ou 1%, ou 0,5%. Argumento que definir isso é um pouco perda de tempo. O Brasil é um país extremamente desigual, mas há uma característica: a desigualdade brasileira está altamente concentrada no topo. Se o Brasil fosse composto só pelos 90% mais pobres, seria um país extremamente igualitário.

Existe uma desigualdade gigantesca entre o 1% mais rico e os 10% mais ricos. Para desenhar políticas, não é necessário ter uma divisão exata dos ricos, mas sim entender que essa desigualdade está concentrada no topo. Portanto, nossas políticas, em particular a tributária, têm de ser muito progressivas. É preciso tributar mais quem tem mais capacidade de pagar.

Nos últimos anos, o Brasil voltou ao famigerado mapa da fome. De que forma combater a desigualdade pode ajudar a resolver o problema?

Combater a pobreza vai reduzir a desigualdade? Não. Pobreza tem a ver com pobres, desigualdade tem a ver com ricos. É extremamente importante acabar com a pobreza no Brasil, mas isso não teria efeitos sobre a desigualdade. Se você dobrasse a renda da metade mais pobre do Brasil, a desigualdade não iria cair mais do que 10%.

Não é que reduzir a desigualdade vai acabar com a pobreza, é que as medidas que vão acabar com a pobreza vão se beneficiar do fato de a renda ser menos concentrada. Uma pequena redução da desigualdade seria suficiente para provocar uma grande redução da fome no país. Se a gente conseguisse tributar mais as pessoas mais ricas, a gente conseguiria levantar mais recursos para gastar com mais assistência social, por exemplo, o que é algo importante para a fome.

Seu livro defende que tudo o que se faz em termos de políticas públicas, das taxas de juros aos subsídios para as empresas, passando por programas sociais, deve ser pensando no sentido do combate à desigualdade. Como isso pode ser feito?

Respondo com uma outra pergunta, uma brincadeira: você está me perguntando como eu faço para transformar o Brasil em uma Dinamarca em termos de desigualdade.

Eu pergunto como é que eu faço para transformar o Brasil em uma Dinamarca em termos de PIB per capita. E a resposta para as duas questões eu não sei, não conheço ninguém que tenha qualquer noção de fato sobre como isso pode ser feito na prática.

Não é um problema simples combater a desigualdade ou fazer o Brasil crescer. Vai exigir um esforço gigantesco, custar muito caro e consumir um capital político imenso, porque isso, no fundo, implica em enfrentar diretamente os conflitos distributivos e grupos inteiros vão resistir pesadamente a isso, no campo da política e da economia, em tudo aquilo que puderem, porque os grupos sempre defendem seus interesses.

Uma sociedade mais igualitária é necessariamente melhor?

O que justifica a desigualdade? Vem de uma situação justa, porque há pessoas se esforçando mais do que as outras? Essa seria a resposta para a desigualdade racial no Brasil? Ou isso vem de uma série de estruturas muito maiores que são injustas? Toda sociedade tem alguma desigualdade e alguma desigualdade é tolerável e pode ser até funcional.

Para você ter uma enfermeira trabalhando de madrugada no hospital, você tem de pagar a ela mais do que a que trabalha durante o dia. É uma desigualdade funcional, totalmente aceitável. O que não é aceitável é o nível de desigualdade do Brasil, que é difícil demais de justificar.

Uma sociedade mais igualitária é, muito provavelmente, mais justa.

Alguma microdesigualdade sempre vai existir e vai ser tolerável e aceitável. O que estamos discutindo não é isso: é o nível extremamente elevado da desigualdade na sociedade brasileira.

Uma das ideias centrais do livro é que não existe solução mágica para combater a desigualdade. Há esperança, então?

Há esperança, sim. Eu poderia argumentar que vai ser muito difícil o mundo manter o crescimento sob as restrições imensas que vão ser impostas pelas crises ambientais. A gente deve ter esperança? Sim. A gente vai enfrentar crises e dificuldades. Vai dar muito trabalho, vai levar muito tempo e haverá um preço político gigantesco. Digo isso para acabar com a ilusão das soluções fáceis, de que basta fazer uma reforma educacional ou tributar os ricos e a desigualdade vai diminuir. Não é só isso. A desigualdade está em tudo. E, portanto, dá muito trabalho mexer, tem de mexer muito.

Os desafios da esquerda, por Paulo Nogueira Batista Júnior

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Paulo Nogueira Batista Júnior – A Terra é Redonda, 23/02/2024

Os desafios se avolumam e esquerda se debate sem sucesso contra eles. O Brasil, com Lula, até constitui uma exceção, mas apenas parcial
“Decifra-me ou te devoro” (Esfinge de Tebas)

Em vários países do Ocidente e do Sul Global, inclusive no Brasil, a esquerda se defronta nas décadas recentes com desafios talvez sem precedentes – e não está se saindo bem, de uma forma geral. Com o passar do tempo, os desafios se avolumam e esquerda se debate sem sucesso contra eles. O Brasil, com Lula, até constitui uma exceção, mas apenas parcial.

Estou me referindo, na verdade, à centro-esquerda, à esquerda moderada. A extrema esquerda não desempenha papel relevante. Em contraste, no campo da direita, os extremistas, apesar de alguns reveses importantes (notadamente as derrotas eleitorais de Donald Trump e Jair Bolsonaro), continuam fortes, ameaçando os partidos tradicionais de centro-direita e centro-esquerda.

O pano de fundo desses movimentos políticos é a crise da globalização neoliberal, iniciada ou agravada com o quase-colapso dos sistemas financeiros dos EUA e da Europa em 2008-2009. Essa crise financeira trouxe à tona um mal-estar generalizado da população dos países desenvolvidos com a economia e o sistema político. Os bancos privados foram socorridos com grande mobilização de recursos públicos enquanto a população endividada foi basicamente deixada à própria sorte. Cresceu o ressentimento, alimentando a eleição de Donald Trump em 2016 e de outros políticos do mesmo naipe na Europa.

Esse mal-estar com a globalização é mais antigo e mais amplo do que a crise financeira de 2008.

O que aconteceu nos últimos 30 ou 40 anos nos EUA e na Europa foi uma dissociação crescente entre as elites e o resto da população. A renda e a riqueza se concentraram nas mãos de poucos, os ricos ficaram mais ricos, ao passo que o grosso da população viu a sua renda estagnar ou retroceder.

A confiança no sistema político desabou. Espalhou-se a percepção de que não há democracia, mas plutocracia – o governo dos endinheirados. Pior: ficou patente que o que prevalece é uma caquistocracia – o governo dos piores. A baixa qualidade da maioria dos líderes políticos ocidentais está aí, à vista de todos.

Esse declínio das lideranças do Ocidente reflete algo maior: o declínio do establishment dessas nações, crescentemente dominado pelo rentismo e pelo capitalismo predatório. Especulação financeira, privatizações destrutivas, fusões e aquisições, manobras de mercado de todo tipo substituem a produção e a geração de empregos de qualidade. A decadência parece bem evidente.

Versões anteriores do establishment dos EUA teriam permitido que o eleitorado ficasse reduzido a escolher em 2024, como tudo indica, entre um presidente senil e um bufão irresponsável?

Não por acaso, a China, que nunca seguiu o modelo neoliberal, tornou-se “a fábrica do mundo” às expensas das indústrias do Ocidente. O Brasil, infelizmente, também caiu na armadilha da globalização e ainda não conseguimos dela escapar. Era inteiramente previsível. As elites locais, em geral servis e medíocres, mimetizam as elites estado-unidenses, trazendo para cá o que há de pior.

No plano político-partidário, quem foi prejudicado e quem foi beneficiado pela crise da globalização neoliberal? Entre os prejudicados se destacam, merecidamente, os partidos tradicionais de direita, identificados com a defesa do modelo concentrador. Note-se, entretanto, que o prejuízo recai não só sobre eles, como também sobre os da esquerda moderada – a social-democracia, os socialistas e outros semelhantes.

Previsível: afinal, a centro-esquerda foi sócia das políticas econômicas excludentes. Em muitos países, governou em coalizões com a direita tradicional. Quando chegou ao poder como força hegemônica, pouco ou nada fez para mudar o rumo da economia e da sociedade. Assim, passaram a ser vistos, junto com a centro-direita, como parte de um mesmo “sistema”.

Contra esse “sistema”, a extrema direita se insurge, mesmo que muitas vezes apenas da boca para fora. Comandada por líderes carismáticos e espalhafatosos, como Donald Trump, Jair Bolsonaro e Javier Milei, conseguiu vencer diversas eleições importantes. Despreparada e primitiva, contudo, a extrema direita não governa de modo eficaz e promove mais confusão do que reformas.
Mantém ou aprofunda a orientação conservadora em economia, disfarçando essa concessão com atitudes extremadas na pauta de costumes. Não passou no teste de fogo da pandemia da Covid-19, o que contribuiu de modo importante, como se sabe, para a não-reeleição de Donald Trump e Jair Bolsonaro. Recuperou-se, contudo, dessas derrotas, como se nota pela vitória de Javier Milei, o prestígio de Donald Trump e Jair Bolsonaro, sobretudo do primeiro, e a ascensão de radicais de direita em alguns países da Europa.

O que aconteceu com a centro-esquerda em outros países, talvez seja relevante para o governo Lula e os partidos que o apoiam. Parece intrigante, à primeira vista, que a centro-esquerda dos países desenvolvidos não tenha conseguido capitalizar para si a crise da globalização. Parte da explicação já foi mencionada acima: o condomínio de poder formado com a direita tradicional. Mas vamos tentar aprofundar a questão um pouco mais. O fato é que a centro-esquerda também se tornou tradicional e elitista, acomodou-se, perdeu contato com a população e mostra não compreender os seus problemas reais. Corre o risco de definhar por não entender as mudanças em curso. Como na mitologia, a esfinge de Tebas adverte: “Decifra-me ou te devoro”.

Um exemplo de uma estratégia problemática: abraçar a agenda identitária, que é uma agenda liberal, contribui para o isolamento da esquerda. Vamos nos entender: defender as mulheres, os negros, os indígenas, os homossexuais e outros grupos discriminados é indispensável. Porém, essa defesa não pode ser a plataforma central da esquerda. De um modo geral, o identitarismo não conta com a atenção ou a simpatia da grande maioria dos trabalhadores e dos setores de menor renda, geralmente às voltas com a luta pela sobrevivência.

Os temas econômicos e sociais – emprego, renda, injustiça social – continuam prioritários para eles. A extrema direita tenta desviar a atenção desses temas com discursos religiosos e conservadores. A centro-esquerda acaba esquecendo-os ao focar nos temas identitários.

Uma questão crucial na Europa e nos EUA, ainda não presente no Brasil, é a imigração. A extrema direita vem se beneficiando amplamente da sua oposição virulenta à entrada de imigrantes – oriundos da África e do Oriente Médio na Europa; da América Latina nos EUA. A centro-esquerda não sabe o que fazer com o tema. As suas tradições iluministas e internacionalistas levam-na a rejeitar a resistência à imigração. Não percebe que ela tem fundamentos reais. A rejeição do imigrante não é apena diversionismo, como muitos imaginam.

Os imigrantes trazem problemas significativos, não para as elites por suposto, que vivem à parte no seu mundo privilegiado, mas para os cidadãos comuns. A imigração em larga escala afeta o mercado de trabalho, pressionando para baixo os salários e levando à substituição de empregados locais por imigrantes. As firmas veem com bons olhos, claro, o barateamento da “mão-de-obra”, mas os trabalhadores sentem na pele e sofrem. Note-se que a imigração vem sobrecarregar um mercado de trabalho já adverso, em razão dos deslocamentos produzidos pelo rápido progresso tecnológico.

Mas a questão não é só econômica. A imigração massiva do século XXI é muito diferente, por exemplo, da imigração europeia para as Américas em épocas anteriores. O imigrante hoje é essencialmente diverso das populações do país hospedeiro, em termos raciais ou étnicos, assim como em termos culturais ou religiosos. A sua presença numerosa ameaça descaracterizar as sociedades dos países desenvolvidos, trazendo insegurança e reações xenófobas. Em outras palavras, a questão é também nacional – tema com o qual grande parte da esquerda sempre lidou mal.

Como reagirá a centro-esquerda a esses problemas? Continuará no rumo atual ou tentará se conectar com as novas realidades e as preocupações da maioria? Se ela optar por apegar-se às suas tradições, só nos resta desejar-lhe boa sorte.

Paulo Nogueira Batista Jr. é economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS. Autor, entre outros livros, de O Brasil não cabe no quintal de ninguém(Leya).

Versão ampliada de artigo publicado na revista Carta Capital, em 22 de fevereiro de 2024.

Cessar-fogo na Baixada Santista, por Djamila Ribeiro

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Temos que seguir alertas para a realidade sangrenta do nosso país

Djamila Ribeiro, Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

Folha de São Paulo, 23/02/2024

A diplomacia brasileira trabalha pelo cessar-fogo na Palestina desde o início da guerra. A morte em massa de crianças, mulheres e homens civis e a destruição de comunidades inteiras vêm intensificando os apelos.

Contudo, o confronto desigual e massacrante prossegue, fundado em um suposto direito de defesa ilimitado que vem sendo exercido pelo extermínio de civis, em nome da famigerada “Guerra ao Terror”.

É verdade que muito se tem dito sobre essa guerra. Como brasileira e paulista, gostaria de chamar a atenção para outra guerra mais próxima —para a qual também devemos pensar em um cessar-fogo. Descendo a serra do Mar há um banho de sangue em curso que tem resultado em consequências drásticas para toda a população, em especial a negra.

Refiro-me aos índices recordes de letalidade policial na Baixada Paulista desde a morte de um policial da Rota, no início do mês. Dezenas de pessoas foram mortas por forças policiais, em uma retaliação infinita que ultrapassa os envolvidos no confronto e vitimam comunidades inteiras.
Segundo dados oficiais —os quais, em tempos de cólera, são passíveis de uma ainda maior subnotificação—, em menos de dois meses deste ano já são mais de 50 pessoas mortas pela PM na região. O número representa o triplo do registrado na cidade de São Paulo, que tem quase seis vezes mais habitantes que a Baixada.

Some-se a isso mais de 700 presos, bem como mais de 250 mandados de prisão em aberto, incontáveis feridos e três policiais mortos. E, repito, apenas em janeiro e fevereiro de 2024. Uma verdadeira guerra em curso, que engana parte da população, pois promete segurança e entrega terror para todos os envolvidos.

Fosse uma atuação estatal eficiente, a Polícia Militar não estaria preocupada em vingar-se matando pessoas, independentemente de quem sejam. Não é essa a função da polícia e, além de desumanizante, gera violência que se volta contra os agentes. O Brasil é um dos países em que mais policiais morrem no mundo e a política da bala —histórica em comunidades periféricas— tem sido um enorme fracasso, que produz mortes de agentes do Estado.

Quanto à população, é importante dizer que, embora não haja um alvo oficial definido para pessoas negras por parte do Estado, é esse grupo social que vem sofrendo consequências radicalmente desproporcionais como resultado do confronto. Tanto vêm sendo essas as pessoas sumariamente julgadas e executadas quanto são a maioria absoluta de moradoras das comunidades afetadas pelo ambiente de profunda insegurança e medo.

Sou uma mulher negra santista, tenho irmãos e sobrinhos negros que vivem em bairros periféricos na Baixada. Meu sobrinho é um bom menino, quer ser fotógrafo e modelo; jamais se envolveu com droga, trabalha e estuda. Mas nada disso importa para as balas perdidas e execuções sumárias. As mulheres da família não podem imaginar vê-lo sair de casa sem ficarem com o coração apertado, com medo que lhe aconteça alguma violência em qualquer esquina.

Em conversa com Claudio Silva, o Claudinho, que é ouvidor da Polícia Militar, tomei ciência de casos muito preocupantes. Crescem as mortes de civis denunciadas pela população como execução sumária. Um exemplo foi a morte de José Marcos Nunes da Silva, catador de materiais recicláveis que, segundo sua família, não tinha envolvimento com crime e implorou desarmado para não morrer, sem sucesso.

Uma investigação independente e rigorosa do Ministério Público há de revelar muitos outros casos. Há que se debater ainda o papel de membros do poder público para determinar a interrupção desse morticínio, já que não só se omitem como comandam essas operações. Serão essas pessoas responsabilizadas?

O desenvolvimento social na região começa com um cessar-fogo, acompanhado de políticas públicas de moradia, emprego, educação, saúde, assistência social e saneamento básico, entre outras, que visem a construção da humanidade e do bem-estar da população local. Esta, embora nada tenha a ver com os agentes envolvidos nessa guerra, paga o preço salgado por ser constituída de pessoas negras, pobres e desconsideradas pelas políticas de Estado.

Dito isso, que sigamos com a pressão pela paz na Palestina e alertas para a realidade sangrenta do nosso país, que também precisa de um cessar-fogo.

Presente nebuloso

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Num mundo marcado por grandes transformações estruturais, centrado em uma imensa competição e pelo desenvolvimento tecnológico, as nações que não acordarem para este cenário contemporânea, os indicadores econômicos e sociais tendem a piorar rapidamente, aumentando os desajustes em todas as áreas e setores, aumentando a violência, os conflitos políticos e reduzindo as esperanças de dias melhores.

Vivemos em momentos de grandes modificações estruturais. Os comportamentos humanos estão se alterando, os relacionamentos estão em constantes transformações, os modelos de negócio estão passando por grandes modificações, as organizações familiares estão se reconfigurando rapidamente, as nações hegemônicas estão perdendo poder e influência no cenário internacional, o mundo do trabalho está em franca reestruturação, gerando desempregos, subempregos e informalidades.

As nações estão em guerras variadas, no campo econômico e produtivo, as empresas buscam apoio dos setores políticos e governamentais, rogando por proteção crescente e subsídios variados como forma de sobrevivência, barganhando para evitar a bancarrota e pressionando os orçamentos dos Estados Nacionais. No campo militar, as guerras crescem em todas as regiões, na atualidade encontramos mais de 180 conflitos militares em curso na sociedade mundial, gerando destruição na infraestrutura das nações, mortes generalizadas e um rastro de ódio, rancor e ressentimento, perpetuando novos confrontos e novas devastações.

No campo econômico, as nações estão em situação fiscal e financeira degradantes, seus recursos monetários são limitados para satisfazer as necessidades da população, desta forma, percebemos impactos sobre as estruturas políticas, fragilizando a democracia e estimulando a ascensão de grupos radicais, impulsionando polarizações em todas as regiões do mundo, incrementando fascismos e racismos crescentes.

Vivemos num momento de grandes desafios, as lideranças estão cada vez mais escassas, as discussões econômicas são limitadas, os donos do poder se perpetuam no controle da sociedade e usam seus poderes materiais e imateriais para influenciar os debates da sociedade, fomentando discussões ultrapassadas e de pouca relevância para compreendermos os desafios do mundo contemporâneo.

Em todas as regiões do mundo encontramos um grande contingente de trabalhadores desempregados, na informalidade e subempregados, cujos rendimentos não garantem condições dignas de sobrevivência, estamos criando uma explosão social que não demorará para explodir e seus impactos são desconhecidos. Décadas atrás, esse quadro de desalento era mais evidente em países pobres e subdesenvolvidos, onde a pobreza e a indignidade eram constantes. Na contemporaneidade, essa situação de desalento se espalha para todas as regiões do mundo, afetando países ricos e nações vistas como em desenvolvimento, desta forma, o futuro tende a ser nebuloso para todas as comunidades.

A tecnologia que era vista como instrumento de melhorias sociais, pode ser um complicador deste cenário de devastação social. No século XIX, a tecnologia era vista como uma forma de fazer os indivíduos a trabalharem menos e usar seu tempo ocioso para o lazer e para a convivência familiar. No mundo contemporâneo, dominado por tecnologias variadas, os trabalhadores se sentem pressionados pelas máquinas e pelos instrumentos tecnológicos, obrigando-os a trabalhos intermináveis e degradantes, incrementando os medos, as ansiedades, as depressões e até os suicídios.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Carta Mensal – Janeiro 2024

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O ano de 2024 começou com avanços substanciais na economia nacional e boas perspectivas para o ano novo, mas percebemos que essas modificações positivas estão assentadas em estruturas frágeis, temos um governo fraco, com uma sustentação no Congresso Nacional limitada e com uma oposição muito empoderada que impõe ao governo federal perdas homéricas, levando o presidente a negociar todos os momentos, alterando projetos e cedendo espaços ao centrão como forma de conseguir aprovar projetos estratégicos para que o governo nacional tenha governabilidade.

As negociações entre o governo federal e o Legislativo é sempre complexa e marcada por inúmeros conflitos, afinal, nestes últimos seis anos, os presidentes eram fracos nas negociações políticas. O presidente Temer era visto como um presidente bastando, sua ascensão estava ligada a um golpe parlamentar para retirar do governo uma presidenta legítima, neste período, o Presidente Temer sempre foi refém do legislativo, sua bancada sempre foi reduzida e marcada pela ascensão do Centrão, que passou a controlar grande parte do orçamento, desta forma seu governo e sua legitimidade sempre foram limitados, levando o governo a entregar partes substanciais do governo como forma de governabilidade, perdendo sua capacidade de gestão e sua reduzida capacidade de liderança.

O governo Bolsonaro tentou inicialmente alguma autonomia política, rechaçando o Centrão inicialmente como forma de gestão diferenciada, mas os resultados foram sofríveis, levando seu governo a entregar, por completo, toda e qualquer negociação política nas mãos do Centrão, empoderando o Congresso Nacional, que passou a controlar e manipular grande parte do orçamento, criando a emenda do relator ou orçamento secreto e dando mais poderes aos congressistas, desta forma, o Congresso Nacional que saiu nas eleições de 2022 é visto como o mais conservador e reacionário da história nacional. Tudo contribuiu para o empoderamento do Legislativo e fragilizou o Executivo, reduzindo a capacidade do Presidente Luís Inacio Lula da Silva de gerir com maior autonomia e soberania seu governo.

O ano começou com grandes medos e preocupações no nosso vizinho na América do Sul, com a eleição de Xavier Milei na presidência da Argentina, um ultradireitista radical que, desde a campanha trazia propostas desestabilizantes, tais como o fim do Banco Central Argentino, privatização de todas as empresas estatais, acabar com o Mercosul, alinhamento automático com os Estados Unidos e Israel, além de dolarizar a economia argentina, medidas pouco viáveis economicamente, mas que podem gerar graves constrangimentos nas relações bilaterais com os grandes parceiros da Argentina, Brasil e China.

Nestes primeiros dias de governo, o Presidente Milei enviou ao Congresso Nacional mais de 600 alterações de lei, com a criação de um decreto presidencial respaldando inúmeras medidas liberais ou neoliberais, com alterações de venda de empresas nacionais, abertura econômica, redução da burocracia, diminuindo os poderes dos sindicatos, retirando benefícios sociais e previdenciárias, além de extinguir subsídios, encarecendo o preços dos produtos e as mercadorias, tudo isso, mesmo que esses medidas estejam em conversação no Congresso, os resultados imediatos para a economia da Argentina são preocupantes, com incremento da inflação e graves constrangimentos com os maiores parceiros comerciais da Argentina, Brasil e China. É importante destacar, que o presidente argentino carece de poder no Congresso, sua coalizão abarca menos de 15% de um total de 257 deputados, para conseguir aprovação de suas medidas, são necessárias muita capacidade de negociação.

Internamente, destacamos a adoção de uma política industrial, a Nova Indústria Brasil (NIB), que se baseou no conceito criado pela economista italiana Mariana Mazzucato, que se baseia nas chamadas Missões, centrada na busca crescente de produtividade e competitividade, se afastando das chamadas teorias de substituição de Importação.

No novo modelo de Política Industrial, as Missões estavam diretamente ligado a integração em variadas áreas e setores, onde destacamos setores de sustentabilidade, saúde, cadeias agroindustriais, bioeconomia, energias renováveis, dentre outros, que indicam que o Brasil do século XXI vai buscar, efetivamente, se inserir em um mercado de grande potencial, mostrando ao mundo uma forte capacidade de organizar suas estruturas econômicas e produtivas, se destacando em toda a economia internacional.

A política industrial trazida pelo governo federal deve ser visto como um avanço, pois anteriormente falar essa política era vista como um afronta aos economistas liberais, que detonavam os governos e suas políticas intervencionistas. Mas com o Novo Consenso de Washington que está surgindo na comunidade internacional, as políticas industriais passaram a ser aceitas e são recomendadas, uma mudança estrutural.

Embora percebamos que o mês de janeiro é marcado por férias da classe política, percebemos inúmeras descobertas referentes as questões policiais da Polícia Federal com variadas operações que visam investigar vários malfeitos do governo anterior, malfeitos que estavam ligados a financiadores, religiosos, militares e divulgadores de fake News, levando a prisões, perseguições, delações e conflitos variados. Depois de 13 m3ses do novo governo, as investigações policiais estão gerando graves descobertas, confrontos políticos, narrativas, discursos e confrontos, tudo isso, contribuíram para que o Brasil esteja sendo visto como um exemplo positivo de investigações judiciais contra tentativas de golpes de Estados e da ascensão da extrema direita mas acaba gerando mais incertezas e instabilidades no cenário econômico e produtivo, reduzindo investimentos produtivos.

Outro assunto que precisamos destacar é o incremento do conflito entre Israel e o grupo Hamas, um confronto que passou dos 90 dias, com mortes de quase 30 mil pessoas, sendo que a maior parte são mulheres e crianças, destruições generalizadas na infraestrutura, cortes de energias e alimentos, gerando uma crise humanitária na região, gerando protestos internacionais de todas as regiões que pedem um cessar fogo, retomada das conversações diplomáticas e uma reconfiguração geográfica da região.

O mês de janeiro começou com esperanças reduzidas, a mídia comercial está cada vez mais atrelada aos interesses israelenses e dos norte-americanos, desta fora, as esperanças de acabar com o conflito nos parece cada vez mais distante e a destruição nos parece cada vez mais assustadora e imediata.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Para compreender o paradoxo chinês, por Ladislau Dowbor

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Uma política centralizada para definir grandes rumos e uma filosofia de gestão radicalmente descentralizada. A interação entre o público e o privado. Entender o modelo econômico adotado pela China exige compreender seu povo, sua cultura e sua história

Ladislau Dowbor – OUTRAS PALAVRAS – 16/02/2024

“Nessa nova era conectada em rede, o paradigma tradicional da competição precisa deixar o lugar para a complementariedade, a conectividade e a cooperação.”
Keyu Jin (282)

Era tempo que tivéssemos um livro de primeira linha sobre a China, país sobre o qual todos têm opiniões, ou melhor dizendo, julgamentos, mas poucos compreendem. Keyu Jin é economista, é chinesa, estudou nos Estados Unidos. É professora de economia em Londres e em Beijing. Isso é tão importante não apenas porque a qualifica cientificamente, mas porque a levou a enfrentar os diversos tipos de simplificações que existem sobre o país, bem como as polarizações que resultam. A China não se simplifica, precisa ser compreendida. E Keyu é suficientemente segura nas suas análises para poder apontar tanto os sucessos, como as dificuldades e ameaças no que é hoje a economia mais dinâmica do planeta. Não é cosmética nem ataque, é explicitação dos mecanismos.

A autora tem hoje 42 anos, o que significa que pertence à nova geração chinesa, que viveu os tempos da dificuldade da tigela do arroz dos seus pais, até a prosperidade atual. Ou seja, viveu as transformações que descreve, além de estudá-las dentro e fora da China. Na escrita, sente-se o orgulho de uma nova geração que não precisa pedir desculpa, e Keyu traz com força o fato que uma nova geração está mudando o próprio clima social, político e econômico do país. Não se trata apenas de descrever a China, e sim de captar a complexa dinâmica de transformações que hoje continua. Mais do que presa a simplificações ideológicas, a China busca permanentemente novas formas de organização e gestão. A imagem que utilizam é que, ao atravessar um rio, é preciso ir sentindo com os pés onde estão as pedras.

Isso não significa pragmatismo de “crescimento” a qualquer custo. A China não é apenas uma economia, é um universo cultural. “A tradição de colocar os interesses da comunidade acima dos interesses pessoais representa um contraste forte com a ênfase ocidental no indivíduo.” (291)

Isso tem muito peso. Nas várias vezes que estive na China, me impactou muito esta atitude espontânea das pessoas de naturalmente pensar o interesse individual no contexto do bem-estar da sociedade. Não se sentem “oprimidos” por haver rumos gerais definidos pelo governo e pelo partido: se sentem co-construtores do seu país, e compreendem com naturalidade que o sucesso individual deve se dar dentro de uma visão mais ampla. E vendo o ritmo das transformações, se sentem orgulhosos de participar do processo.

Um segundo eixo importante, em termos de herança cultural, é que a China sempre teve, e o ‘sempre’ envolve muitos séculos, uma tradição de formação e promoção ligada ao mérito, nos diversos sistemas de gestão pública. “Devemos também ter em mente que a China já foi a nação mais rica do mundo, com a tecnologia e infraestruturas mais avançadas, apoiada por uma burocracia que encorajava a seleção dos mais competentes. A herança meritocrática da China tornou a transição para um governo moderno mais fácil, e liberou essa capacidade latente para dinamizar a ciência e a tecnologia modernas na nova era.”(291) A exigência de muita formação e experiência para avançar na hierarquia administrativa não é de hoje.

Os avanços da China espantam: Como ordem de grandeza, em poucas décadas a riqueza da nação foi multiplicada dezenas de vezes. A China emerge como país efetivamente soberano em 1949, destruído por tantas guerras e a exploração colonial. Ou seja, o ponto de partida é trágico. Mas depois de algumas décadas de busca de formas de organização interna, inclusive com políticas desastradas, a partir de 1978, com Deng Xiaoping, a China opta por um sistema que combina de maneira criativa os mecanismos de mercado, o planejamento como eixo organizador, uma política centralizada de fixação de grandes rumos, e uma filosofia de gestão radicalmente descentralizada na aplicação prática dos rumos fixados. O resultado é que permite assegurar a coerência do conjunto ao mesmo tempo que libera a iniciativa local e a criatividade. “Esse modelo de concentração de poder político com descentralização econômica é característica única do Estado chinês.” (121)

A autora chama este sistema de mayor economy, economia de prefeitos, porque a ampla autonomia local permite que as iniciativas sejam radicalmente desburocratizadas. “São funcionários locais nas províncias, nos municípios, nos ‘counties’ e cidades que batalham o desenvolvimento local, atingem objetivos de crescimento, implementam as reformas, e atraem investimentos internacionais. Esses são os quadros locais que transformaram aldeias de pescadores e zonas rurais atrasadas em núcleos modernos de exportação, de manufatura, e em zonas econômicas hightech. Por trás de história de sucesso está um governo local que o apoiou em cada passo na caminhada.”(120) O organograma da hierarquia administrativa, nesta mesma página, ajuda muito na compreensão do funcionamento do conjunto.

Lembrando que se trata de administrar um país de 1,4 bilhão de habitantes, com toda a complexidade da transição, em poucas décadas, de uma era de miséria rural para uma era de urbanização e alta tecnologia. Não há como promover este ritmo e coerência de desenvolvimento de um imenso país, nos mais diversos setores, com uma ditadura centralizada, como até hoje tantos desinformados “opinam”. Lembro que Arthur Kroeber, no seu China’s Economy, (2016) insiste muito nesta dimensão da descentralização, afirmando inclusive que a China é mais descentralizada do que a Suécia, onde cerca de 70% dos recursos públicos são repassados diretamente para as administrações regionais e locais. (1) Nos diversos trabalhos que tenho publicado, insisto muito que no caso brasileiro, com 5.570 municípios, esperar que tantas coisas se resolvam a partir de Brasília é simplesmente um contrassenso de gestão, de elementar lógica de processo decisório. (2)

É uma questão de bom senso, não de ‘ideologias’: “Conforme resultou, dividir o poder no nível local fez sentido de várias maneiras. São os funcionários locais, afinal, que conheciam melhor as condições locais, tinham as mais amplas redes locais, e sabiam como juntar a informação local, e tomavam decisões informadas sobre a alocação de recursos. Isso os colocou numa posição muito melhor do que um governo central distante, para desenvolver a sua economia local. Na realidade, o eterno dilema sobre a centralização política é que enquanto este é bom para estabelecer os objetivos de longo prazo para melhores resultados, isso é frequentemente associado com burocracias distantes pouco sensíveis às necessidades locais. Os funcionários locais na China gozam de autonomia substantiva para desviar das normas, e a aproveitaram bem.”(128)

Grandes rumos do governo central, autonomia de decisão local, mas também os meios financeiros correspondentes, com o LGFV (Local Government Financial Vehicle), sistema descentralizado de financiamento.(p. 179 e ss) As taxas de juros estão na faixa de 4,6% ao ano, para uma inflação da ordem de 2%, o que significa um juro anual real de 2,6%. Um organismo central do governo controla as tentativas de agiotagem. Os poderes locais se endividaram, mas Keyu traz o óbvio: “Quando as taxas de juros são mais baixas do que as taxas de crescimento, o juro sobre a dívida é baixo, e a relação entre a dívida e o PIB irá cair com o tempo.”(187) O problema não está no endividamento, e sim em como se usa os recursos: se promovem o desenvolvimento, o processo se equilibra, gerando mais recursos que o custo da dívida. No Brasil ainda nos debatemos com a “austeridade”, e os prefeitos viajam para Brasília para tentar uma fatia de emenda parlamentar junto a um deputado aliado. É disfuncional tanto para as prefeituras como para os legisladores, atolados em micro negociações.

A China não teria como se reinventar em tão pouco tempo sem aproveitar um conjunto de tecnologias desenvolvidas no resto do mundo. A partir de 1978, com a abertura, soube atrair corporações internacionais, interessadas na mão de obra barata, e também no amplo mercado, mas exigindo que as corporações assegurem participação chinesa na gestão das empresas, e compartilhamento de tecnologia. São negociações caso a caso, cujo mecanismo acompanhei em Shanghai, que permitem equilibrar os interesses, em vez do país simplesmente se submeter às condições das transnacionais. “Quando empresas estrangeiras queriam operar na China e aproveitar os seus custos mais baixos e amplo mercado, era lhes exigido que formassem joint ventures com empresas chinesas, o que frequentemente envolvia compartilhar a própria tecnologia.”198)

Em outros termos, para assegurar o ganha-ganha do processo, foi preciso ter soberania, e uma sólida visão dos interesses nacionais. Lembro que a Coreia do Sul também recorreu a uma forte participação estatal na gestão da economia, e negociando de forma dura os interesses do país frente às multinacionais: aqui também os avanços externos foram utilizados como trampolim para dinâmicas internas. Hoje a China é um gigante tecnológico, “o pêndulo começou a se deslocar para o outro lado”, como comenta Keyu, relativamente ao tempo em que a China tinha mão de obra barata e as corporações tinham a tecnologia. E o próprio peso da economia muda as relações. Em 2023, em dólares PPP (Purchasing Power Parity, tirando deformações por taxas de câmbio, ou seja, em volume efetivo de produção) a China tem um PIB de 33 trilhões, os Estados Unidos de 27 trilhões. (3)

Uma melhor compreensão da economia da China está ligada ao conceito de juguo, ou seja, de missão, visão que lembra o Mission Economics de Mariana Mazzucato. No mais recente plano de desenvolvimento (2021-2025), dado o deslocamento das prioridades da base industrial para a esfera tecnológica, a visão é de dinamizar a nação através da ciência, da tecnologia e da educação: “Quando um objetivo estratégico recebe a designação de juguo, as considerações de custos são deixadas de lado. Desperdícios serão tolerados. A essência do sistema juguo é que toda a nação se mobiliza para atingir um objetivo estratégico.”(218) “A China está construindo uma cadeia completa de incubação ligando os laboratórios nacionais chave, universidades e parques industriais hightech ao redor do país. Já atraiu milhares de pesquisadores e cientistas do exterior, para residirem na China.”(219) Enquanto interessa sim aos cientistas chineses trabalhar em outros países, hoje a tendência se inverteu.

Ao chamar este livro de New China Playbook, Keyu Jin traz com força essa visão de um país que não apenas se transforma, mas transforma as regras de jogo à medida em que o mundo e a China mudam os paradigmas tecnológicos, sociais e políticos. O subtítulo, “além do socialismo e do capitalismo”, ajuda na compreensão dessa dinâmica. A China não está presa às simplificações ideológicas, que por exemplo, no chamado Ocidente global, proíbem de regular os bancos, as plataformas de comunicação, os desmandos da indústria farmacêutica, ou seja, qualquer interferência sobre “os mercados”. Busca o que funciona. Nessas poucas linhas, trouxe um pouco das ideias do livro, mas vale a pena adquirir o texto, alguma editora traduzi-lo, pois não se trata, no caso da China, de um “modelo”, mas de um sistema que aprende. Uma “learning economy” poderia ser uma qualificação adequada.

E recomendo ver no meu site http://dowbor.org alguns documentários de primeira linha sobre a China, em particular em como organizaram o enfrentamento da pobreza, através de políticas radicalmente descentralizadas. Basta colocar “China” na busca no site, há bastante material de apoio.

Ladislau Dowbor, Economista e professor titular de pós-graduação da PUC-SP. Foi consultor de diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios, além de várias organizações do sistema“S”. Autor e co-autor de cerca de 45 livros, toda sua produção intelectual está disponível online no website www.dowbor.org.

Aumento da concentração de renda agrava quadro sociopolítico, por André Roncaglia

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Após duas décadas de crescimento real, salários se estagnaram sob Temer e Bolsonaro

André Roncaglia, Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo, 16/02/2024

Os dados recentes das Contas Nacionais, divulgados pelo IBGE, mostram um acirramento do conflito distributivo no Brasil. Entre 2017 e 2021, os lucros (fonte principal de renda dos mais ricos) cresceram mais do que os salários e benefícios sociais (fonte de renda principal dos mais pobres e da classe média). Esta tendência reflete movimentos estruturais da economia brasileira.

A perda do poder de barganha dos trabalhadores explica a estagnação da renda do trabalho. Depois de duas décadas de crescimento real dos salários (1994-2016), os salários estagnaram sob Temer e Bolsonaro: 0,2% de ganho real entre 2017 e 2022. A reforma trabalhista de 2017 reduziu os custos para o empregador, mas não gerou os milhões de empregos formais prometidos. A reforma piorou o mercado de trabalho, com aumento na proporção de empregos precários no setor de serviços de baixa qualificação.

Além disso, a queda da fatia dos salários na renda também se deve à lógica antiestatal de Temer e Bolsonaro, que implicou arrocho dos salários do funcionalismo público civil e a não reposição de 7,3 mil servidores aposentados, segundo dados do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI).

A crítica genérica aos “privilégios” do funcionalismo ignora desigualdades internas ao setor público. Por exemplo, segundo dados do Tesouro Nacional, entre 2017 e 2022, os ganhos reais da renda de militares ativos (2%) e inativos (7%) contrastam com as perdas reais de servidores civis ativos (11%) e inativos (8%).

Ademais, um setor público com menos empregos e menor remuneração enfraquece as demandas salariais da economia (FMI, 1991) e normaliza a anemia sistêmica do mercado de trabalho, onde o prêmio salarial pela escolaridade vem caindo pela escassez de oferta de bons empregos, fruto da perda de sofisticação tecnológica da economia e das nossas exportações.

No lado dos lucros, concentração de poder de mercado, isenções tributárias, digitalização e automação se unem ao avanço da “pejotização”, pela qual trabalhadores são contratados como pessoa jurídica, transformando o rendimento do trabalho em lucro de empresa.

Essa metamorfose quantitativa implica mudanças qualitativas. Excluído da desidratada rede de proteção do emprego formal, o trabalhador convertido em “empresário de si mesmo” muda de lado na luta distributiva e amplia o racha na unidade já precária dos interesses do trabalho.

Seja por meio de salários, seja por meio de lucros, as melhores remunerações correm para os mais ricos, impulsionadas pela desigualdade de acesso às oportunidades, ligada à estrutura e ao patrimônio familiares, às conexões sociais e à propriedade concentrada do capital empresarial e o acesso a crédito e benefícios tributários. Vejamos o caso do agronegócio.

No período 2017-2022, o rendimento da atividade rural —isento de tributação na sua maior parte— teve ganho real de 140% e beneficiou principalmente os estratos mais ricos. Nota técnica de Sérgio Gobetti (Ibre-FGV) mostrou que, em estados dominados pelo agronegócio, o crescimento real da renda do 0,1% mais rico chegou a 117% em Mato Grosso, a 99% em Mato Grosso do Sul e a 78% no Tocantins —ante 42% na média nacional para o mesmo estrato de renda.

No mesmo período, o agronegócio adicionou apenas 4% do total de vagas criadas no Brasil e o ganho salarial real de empregados no agronegócio foi de 0,5%, na média (Cepea,Esalq/USP). Ou seja, a recente bonança das commodities não beneficiou a base da distribuição de renda.

A tática de dividir para conquistar os trabalhadores protege os privilégios das elites, pouco interessadas em gerar empregos de alta qualidade. Reindustrialização e maior justiça tributária ajudam a reequilibrar esse jogo.