Imprensa desinforma ao fazer lobby pela desoneração da folha, por Marcos Mendes.

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Reportagens ocultam que jornais, rádios e TVs são beneficiários da política

Marcos Mendes, Pesquisador associado do Insper, é organizador do livro ‘Para não esquecer: políticas públicas que empobrecem o Brasil’

Folha de São Paulo, 02/12/2023

É correto o veto presidencial ao projeto de lei que prorroga a desoneração da folha de pagamento. Já tratei do tema na coluna de 27/11/2021. Joel Pinheiro da Fonseca e Bernardo Guimarães também o fizeram em suas colunas desta semana.

A política é cara e ineficaz, como mostraram diversos estudos com rigor estatístico. Eles apontam baixo poder da política para criar empregos e, quando constatam algum impacto positivo, mostram que o custo fiscal por emprego gerado é mais que o dobro do salário. O ganho fica mesmo é com a empresa beneficiada. Daí o forte lobby pelas seguidas renovações. A intenção inicial era compensar a redução da tributação da folha por elevação de outros tributos. Mas isso nunca ocorreu e o subsídio embutido e o custo fiscal sempre foram altos.

A desoneração começou como uma tentativa (canhestra) de compensar o chamado “custo Brasil”, que tirava competitividade da indústria exportadora. Hoje, contudo, boa parte das empresas beneficiadas está no setor de serviços não exportador. Ao terem incentivos para contratar mais, elas tornam a mão de obra mais escassa e cara para a indústria exportadora, piorando a situação desta e revertendo a intenção inicial da política.

A desoneração atua na direção contrária do que se está tentando fazer na Reforma Tributária, pois substitui uma tributação sobre um valor agregado na produção (a folha de pagamento) por uma sobre o faturamento, que é cumulativa. Com isso, gera distorções de preços e ineficiência econômica.

Também sabota a Reforma Tributária no quesito simplicidade e transparência. Há empresas que têm
produtos dentro e fora do regime de desoneração e têm que recolher conforme duas bases de incidência distintas, o que resulta em judicialização e maior custo para pagar e cobrar impostos.

Não obstante o insucesso, há forte apoio da imprensa à renovação da desoneração. As “empresas
jornalísticas e de radiodifusão sonora e dos sons e imagens” são beneficiárias diretas, como expresso no art. 8º da lei 12.546/2011. Por isso, em qualquer reportagem sobre o tema, deveria haver um disclaimer sobre o interesse financeiro que têm na renovação.

O que se vê, no entanto, são reportagens panfletárias, que preferem divulgar os números
organizados pelos lobbies, como “400 mil postos podem ser fechados no setor [de call centers] em dois anos” (O Globo, 25/11/23), e silenciar sobre estudos sérios. Centrais sindicais, outras obviamente interessadas na renovação, são citadas como opiniões técnicas e isentas.

Diversos veículos usam, com frequência, o bordão de que a política é voltada para “os 17 setores que mais empregam no país”. Parece até estratégia de marketing previamente combinada. Não há esforço jornalístico de chegar se isso é correto e, se o for, se faz sentido subsidiar setores por seu grau de empregabilidade sem analisar custo-benefício e custo de oportunidade na aplicação dos recursos públicos.

Vale citar, a título de exemplo, os dois pesos e duas medidas adotados pelo jornal O Estado de
S. Paulo em seus editoriais (que também se verificam em organizações como Globo, Record e Bandeirantes). Quando trata do privilégio dos outros, a linguagem é dura, como no caso das exceções à Reforma Tributária: “É de lamentar que, para aprovar um novo marco jurídico absolutamente benéfico para o país […], tenha sido necessário oferecer tantas benesses e privilégios […] Trata-se do mais habitual funcionamento do Estado brasileiro, que é continuamente capturado por interesses de grupos politicamente organizados” (18/11/23).

Ao analisar o veto à desoneração, a linguagem é outra: “A medida tem sido fundamental para
sustentar o nível de emprego dos setores de mão de obra intensiva. O interesse público da proposta é reconhecido até mesmo pelas centrais sindicais […] Atribuir à desoneração da folha a responsabilidade por mais um rombo nas contas públicas tampouco é minimamente crível” (25/11/23).

Registro que esta Folha tem feito cobertura menos enviesada, ainda que, ao tratar da matéria,
não faça o necessário esclarecimento quanto ao seu interesse financeiro direto.

Encontros de Jesus

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A sociedade contemporânea apresenta um grande desenvolvimento tecnológico em todas as áreas e setores, com impactos generalizados para todos os indivíduos e comunidades, gerando facilidades, novas oportunidades de negócios e novos espaços de reflexões sociais e religiosas. Nesta sociedade, percebemos o crescimento das religiões de origens protestantes, fragilizações de outras correntes religiosas, como novas formas de cultos possíveis em decorrência do desenvolvimento do mundo digital, com novos canais de comunicação e aproximação dos indivíduos e as comunidades, vivemos num momento de grandes transformações planetárias, reflexões e descobertas que só estão disponíveis para aqueles que se debruçam nos estudos, nas reflexões e nas discussões democráticas, saudáveis e progressistas.

Nesta sociedade, embora estejamos destacando o crescimento das tecnologias e as mudanças nos instrumentos de comunicação, as pessoas se apresentam com grandes dificuldades de conversação e dos diálogos, muitos indivíduos se afastam das conversas saudáveis e preferem comportamentos de cancelamento, atacando a reputação e criando climas degradantes e repulsivos. Neste cenário, gostaria de refletir sobre a passagem de Jesus Cristo, ocorrida a mais de dois mil anos, e cujas repercussões são gigantescas para a sociedade mundial, sendo responsável pela divisão do mundo em duas eras, antes e depois de Cristo.

Nesta passagem, gostaria de salientar os inúmeros momentos de conversações desenvolvidas por Jesus de Nazaré, uma passagem de instrução, de reflexão, de estudo e de transformação, um momento imprescindível para a vivência em comunidade e como forma de compreensão dos grandes desafios da sociedade, lembrando ainda, que mesmo ocorrido há mais de 2000 anos, as conversas de Jesus devem servir como um instrumento de reflexão individual e coletiva, uma forma de compreender as verdades que existem, que sabemos existir e que habita nos nossos corações mas, muitas vezes, nos esquecemos por completo e até mesmo, fugimos desta realidade e preferimos viver cultivando ilusões e ignorâncias nas vivências cotidianas.

Neste período de mais de dois mil anos Jesus de Nazaré pode ser visto como um exemplo de conversação, de respeito e de transformações pessoal e individual, nestas conversas o Mestre conversou com variadas pessoas, onde podemos destacar os encontros com Zaquel, José de Arimatéia, Maria de Magdala, o senador Publius Lêntulus, Nicodemos, dentre inúmeros outros, sendo que as conversações foram responsáveis por grandes mudanças sociais e comportamentais.

Todos estes encontros foram destacados na literatura religiosa como uma forma de compreensão das grandes inquietações que existem nos corações dos seres humanos, as desesperanças, os medos e as tristezas que residem nos corações dos indivíduos.

Nesta conversa, gostaria de destacar o encontro de Jesus com Nicodemos, mas quem foi Nicodemos e porque seu encontro do Jesus de Nazaré foi importante e relatado no Evangelho de João, sendo estudado por muitos cristãos como forma de compreender a importância das vivências do Mestre, seus ensinos e suas reflexões, uma verdadeira aula para alentar os medos que existem na alma de todos os seres humanos.

Antes de conversarmos sobre o encontro com Jesus de Nazaré, vamos destacar que Nicodemos era um grande intelectual, um membro do Sinédrio, visto como uma personalidade respeitada pela comunidade, dotado de grande capacidade intelectual, contatos poderosos e, possivelmente, dono de um patrimônio respeitado na sociedade da época. Poucas eram as informações pessoais existentes sobre Nicodemos, mas sabendo que era visto como um grande intelectual e respeitado na época, qual o interesse de Nicodemos de se encontrar com Jesus de Nazaré, um simples e humilde carpinteiro, distante socialmente da condição de vida e da posição do membro do Sinédrio?

O encontro de Jesus e Nicodemos ocorreu à noite e lá estavam presentes dois discípulos do mestre, André e Tiago, que ouviram a conversa, observaram as falas do membro do sinédrio e perceberam quais foram as respostas de Jesus, os exemplos didáticos e os estímulos crescentes de reflexão que sempre caracterizaram as conversas com o mestre. A pergunta mais evidente de Nicodemos era como saber encontrar os caminhos para chegar ao reino de Deus, quais as atitudes e comportamentos eram fundamentais para que os indivíduos entrassem no reino divino, será que existiria uma senha, se houvesse, qual seria?

Nicodemos questiona Jesus como se faz para nascer de novo, como seria possível um homem velho nascer de novo, seria possível retornar ao ventre de sua mãe e, posteriormente, retornar a vida material? O mestre sorriu e destacou que a importância de nascer de novo era uma expressão simbólica e que todos precisamos nascer de novo para compreendermos os caminhos para a chegada no reino de Deus, onde podemos destacar que a expressão nascer de novo era vista como a reencarnação, ninguém consegue encontrar o reino de Deus sem nascer de novo, de renascer, onde encontramos uma grande diferença entre os mundos material e os mundos espiritual. Neste momento Nicodemos se encontra perdido, não conseguindo compreender os pensamentos do mestre de Nazaré e, desta forma, Jesus nos mostra que muitos ensinamentos eram muito difíceis de compreender, mesmo dialogando com um homem versado e conhecido como um doutor das leis, mesmo assim, esse doutor não conseguiu compreender os nuances das reflexões do Mestre de Nazaré, para muitos um simples carpinteiro e, na verdade, era o homem mais elevado e desenvolvido que pisou no planeta Terra.

Neste encontro, percebemos que todos os indivíduos apresentam dúvidas sobre algo, alguma preocupação, alguns receios na vida em sociedade, os sentimentos e os valores que abraçamos, ou seja, somos todos indivíduos cheios de medos, dificuldades e preocupações cotidianas, deste episódio, percebemos que somos todos seres imperfeitos e cheios de dúvidas e questionamentos. O encontro nos traz elementos para que nos conheçamos intimamente, essa conversa nos mostra que, mesmo sendo detentores de conhecimentos, somos sempre pessoas humanas e estamos sempre em construção, vivemos muitos anos para compreendermos os anseios que trazemos intimamente.

Depois das conversas do mestre Jesus e o integrante do Sinédrio, Nicodemos, percebemos que os discípulos estavam curiosos para questionar o mestre de Nazaré, um deles indagou se todos nascem iguais como pessoas apresentam dificuldades e outros apresentam apenas facilidades, uns dotados de grande genialidade e outros dotados de pouca capacidade intelectual, desta forma como acreditar a justiça de Deus?

Essas perguntas nos levam à grandes reflexões e o mestre nos mostra que se imaginarmos que todos somos filhos de um único pai, Deus, e todo pai ama seus filhos, o todo poderoso criou todos iguais mas alguns aproveitam as oportunidades e crescem de forma acelerada, aprendendo com os erros e criando novas trajetórias para sua caminhada, enquanto outros rechaçam a evolução, enveredam para caminhos equivocados e, desta forma, colhem obstáculos crescentes. Neste cenário, uns nascem mais afeitos aos sentimentos divinos, trabalham no caminho do Amor enquanto outros se comprazem com sentimentos negativos e desta forma, colhem dificuldades elevadas que servem como instrumentos para sua reparação emocional e espiritual, o nascer de novo é um exercício fundamental para o crescimento e o desenvolvimento dos seres humanos.

Na conversa com os discípulos, Jesus nos mostra que a verdadeira lei da sociedade é a lei do amor, que supera a lei da justiça, neste momento Tiago mostra a lei de Moisés, que destaca lei de olho por olho e dente por dente, neste momento o Mestre nos mostra que essa lei é frágil pois todos cometemos erros e equívocos, e quando cometemos erros e equívocos devemos ser punido exemplarmente, se matamos devemos ser mostos como a lei de então? Se isso for verdade, todas as pessoas deveriam ser punidas fortemente, não deixando que as pessoas se retratem pelos seus erros e seus equívocos.

O Mestre Jesus nos propõem uma lei maior, uma Lei de Amor, pois todos nás seres humanos somos irmãos uns dos outros e, como somos irmãos e fazemos parte da mesma família, devemos nos auxiliar uns aos outros como forma de retratarmos as faltas cometidas anteriormente. Numa família, todos os indivíduos devem auxiliar uns aos outros, quem comete equívocos deve ser auxiliado por todos os membros desta família, criando os elementos necessários para que todos se retratem e desta forma consigamos progredir emocionalmente, espiritualmente e socialmente, lembrando que é da Lei que todos nós estamos aqui, encarnados no mundo material como forma de progresso constante.

Na concepção criada e estimulada pelo Mestre Jesus, as reflexões propostas impactavam os pensamentos da época, os dogmas da sociedade e os valores dos grupos sociais e econômicos daquele período histórico, trazendo novos instrumentos para analisar as questões sociais, reduzindo os conflitos e estimulando uma sociedade mais pacífica e participativa.

O encontro de Jesus com Nicodemos nos leva à grandes reflexões, todos os indivíduos gostariam de se encontrar com o Mestre de Nazaré, diante disso, vamos pensar um pouquinho neste encontro e nesta reflexão gostaria de perguntar: qual seria a pergunta que você gostaria de fazer a Jesus de Nazaré?

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre e Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

P.S: Este artigo foi escrito pelo autor como uma forma de complementação da palestra proferida na Associação Espírita Allan Kardec, no dia 19 de novembro de 2023, disponível neste site www.aryramos.pro.br ou diretamente no link https://www.youtube.com/watch?v=bLaQGMlluEs

Desenvolvimento e estagnação, por Luiz Carlos Bresser Pereira

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Luiz Carlos Bresser Pereira – A Terra é Redonda – 19/07/2023

Apresentação do livro recém-lançado de André Nassif

O livro que você está começando a ler é uma notável análise e discussão da teoria do desenvolvimento econômico e das causas da estagnação econômica. É um livro teórico que nos auxilia a compreender por que os países tendem a se desenvolver e por que países como o Brasil, que cresceram de maneira extraordinária após a Segunda Guerra Mundial e estavam alcançando o nível de padrão de vida dos países ricos, nos anos 1980 entraram em um interminável período de estagnação econômica. Passaram então a crescer lentamente e ficaram para trás dos países ricos.
Este não é um livro sobre a economia brasileira, nem um livro com uma única teoria do desenvolvimento, mas um livro no qual vemos como evoluíram as teorias heterodoxas, keynesiano-desenvolvimentistas, e como essas teorias se comparam com a teoria neoliberal neoclássica – a teoria dominante ensinada nas universidades dos países centrais, que desde os anos 1980 as adotam e praticamente as impõem aos países da periferia do capitalismo.

Ao invés de complicar a teoria econômica, este livro a simplifica. Mostra que, no fundo, há duas
estratégias, ou duas formas de organização econômica do capitalismo – a forma desenvolvimentista, que supõe uma intervenção moderada do Estado na economia e o nacionalismo econômico, e uma forma liberal, que limita a ação do Estado à garantia da propriedade e dos contratos e à responsabilidade pelo equilíbrio fiscal, enquanto rejeita o nacionalismo econômico quando este é praticado pelos países periféricos.

Tanto para os economistas desenvolvimentistas como para os liberais, o desenvolvimento econômico depende do investimento e este, da taxa de lucro esperada. A diferença está no fato de que os liberais acreditam que, havendo liberdade de mercado, a taxa de lucro será satisfatória, a taxa de investimento será elevada e a alocação dos fatores será eficiente, de forma que “viveremos no melhor dos mundos possíveis”. Os desenvolvimentistas pensam de forma diferente. Defendem a liberdade de mercado, mas não esperam dele mais do que ele pode dar.

A teoria econômica é a ciência que estuda a coordenação das economias pelo mercado e pelo Estado. Portanto, estuda o capitalismo de um ponto de vista econômico. Nessa forma de organização social é importante distinguir o centro da periferia do capitalismo. No capitalismo, não são apenas as empresas, mas também os estados-nação que competem entre si. Por isso, é necessário que cada país, sem negar a importância da cooperação internacional, defenda seus interesses, seja nacionalista econômico.

Em segundo lugar, é preciso compreender que, ao contrário do que pensam os liberais, os setores econômicos não são equivalentes. O desenvolvimento econômico está associado ao aumento da produtividade que, por sua vez, aumenta não apenas conforme aumenta a capacidade produtiva de cada trabalhador, mas também com a transformação de mão de obra de setores com baixo valor adicionado por pessoa, que são pouco sofisticados e pagam salários baixos, para setores com alto valor adicionado por pessoa, que são mais sofisticados e pagam salários mais altos. Por isso, os desenvolvimentistas dizem que desenvolvimento econômico é industrialização, ou, mais amplamente, é sofisticação produtiva.

Para os países centrais, não interessa que os países da periferia do capitalismo se industrializem. Não querem ter mais competição do que já têm. Por isso, procuram impedir sua industrialização, e usam como instrumento de dominação o liberalismo econômico – mais especificamente, a lei das vantagens comparativas do comércio internacional. Essa é uma lei absurda, que ignora que os países podem aprender e, assim, as vantagens se modificam.

No século XIX, os ingleses diziam aos alemães que seu país era “essencialmente agrícola”, mas a Alemanha se tornou uma potência industrial. Essa lei supõe ainda o pleno emprego – o que permite aos economistas liberais afirmarem que, para se industrializar, os países da periferia precisam diminuir sua produção agrícola ou mineral – não obstante, o pleno emprego seja a exceção, não a regra.

Para discutir as teorias desenvolvimentistas, André Nassif dividiu seu livro em duas partes. Na primeira, discute as teorias desenvolvimentistas estruturalistas; na segunda, trata da teoria liberal neoclássica. E dedicou sete capítulos às teorias desenvolvimentistas, com as quais se identifica, incluindo um capítulo sobre as raízes conceituais e outro sobre as implicações de políticas públicas.

No Capítulo I estão as ideias básicas sobre o desenvolvimento econômico – as ideias de Adam Smith, Karl Marx, Joseph Schumpeter e, em algumas passagens, John Maynard Keynes. Smith explicou a riqueza das nações pelo investimento e a divisão do trabalho; Marx deu ênfase à taxa de lucro esperada, à taxa de juros, e à acumulação de capital. Schumpeter mostrou que, na competição perfeita suposta pelos liberais, a taxa de lucro é muito baixa; só a inovação pode criar uma vantagem competitiva que cria demanda para a empresa, aumenta sua taxa de lucro esperada, e a leva a investir; Keynes, finalmente, criticou a liberal teoria neoclássica ao mostrar que a oferta não cria automaticamente a demanda, mostrou que nas economias capitalistas os capitalistas podem entesourar dinheiro, em vez de investir, e argumentou que só a administração da demanda agregada pode assegurar às empresas competentes taxas de juros baixas e taxas de lucro satisfatórias que as levem a investir.

No Capítulo II, André Nassif discute a corrente estruturalista-desenvolvimentista, ou teoria desenvolvimentista clássica, que surge conjuntamente com os primeiros economistas desenvolvimentistas. É uma teoria crítica do liberalismo neoclássico, uma teoria abstrata e a-histórica. Com os desenvolvimentistas clássicos, o desenvolvimento econômico passa a ser visto como um fenômeno histórico que se identifica com a industrialização.

E surgem os primeiros modelos críticos da teoria liberal neoclássica: o modelo do big-push de Rosenstein-Rodan, o modelo centro-periferia e o modelo da restrição externa de Raúl Prebisch, o modelo do deslocamento de mão de obra para a indústria de Arthur Lewis e o modelo dos rendimentos crescentes de Nicholas Kaldor. Todos foram economistas keynesianos, que salientaram o papel da demanda. André salienta que, nos anos 1960, Kaldor formulou as “leis do crescimento”, entre as quais a mais importante, ou original, foi a defesa da industrialização, devido ao fato de que na economia existem rendimentos crescentes de escala.

No Capítulo III, temos as ideias cepalinas, a versão latino-americana, estruturalista, do desenvolvimentismo clássico. Raúl Prebisch foi o principal economista dessa corrente, que ele construiu no âmbito da Cepal – a Comissão Econômica para a América Latina das Nações Unidas – com a ajuda de muitos economistas, particularmente, de Celso Furtado. Como dirigia uma agência internacional, Raúl Prebisch não falou em imperialismo, mas em centro e periferia. Mostrou que desenvolvimento econômico era mudança estrutural ou industrialização e criticou o centro por defender uma troca desigual – uma troca de bens sofisticados por bens simples.

Mostrou, por outro lado, como os países em desenvolvimento estão sujeitos a uma restrição externa – a permanente “falta” de dólares: enquanto nos países ricos a elasticidades-renda das importações é menor do que um, nos países periféricos a elasticidade-renda das importações de bens manufaturados é maior do que um. Um problema para o qual só há uma solução: a industrialização.

No Capítulo IV, o foco é a contribuição de Celso Furtado, que pensou o desenvolvimento e o subdesenvolvimento como expressões do centro e da periferia. O subdesenvolvimento não é um estágio anterior à industrialização e ao desenvolvimento, mas é uma configuração histórica criada pelo centro ao se impor à periferia, é uma forma que assume a divisão internacional do trabalho, na qual o centro se industrializa enquanto cabe à periferia produzir bens agrícolas e minerais. Furtado usou sempre o método histórico-estrutural ou histórico-dedutivo para construir sua teoria do desenvolvimento e a localizou sempre no quadro da interdependência entre as nações. No capítulo sobre Celso Furtado, André Nassif lembra que, ainda nos anos 1950, o grande economista brasileiro praticamente identificou a doença holandesa ao analisar a economia da Venezuela. Pena que depois não tenha levado adiante essa ideia.

André Nassif define o Capítulo V como “um prólogo ao novo desenvolvimentismo: notas sobre o regime de metas de inflação e austeridade fiscal”. Nesse capítulo, ele comenta que o desenvolvimentismo clássico deu relativamente pouca importância à teoria macroeconômica e afirma que Bresser-Pereira, com sua teoria novo-desenvolvimentista, procurou preencher essa lacuna.

Observa também que eu me dei conta de que as políticas industriais e tecnológicas, necessárias para o desenvolvimento, tornavam-se inefetivas se não fossem acompanhadas por políticas macroeconômicas, principalmente política cambial e política monetária que criem o ambiente para que aquelas políticas microeconômicas tenham efeito.

André Nassif discute então a política de metas de inflação, que os bancos centrais adotaram quando, ainda nos anos 1980, viram que as políticas monetaristas propostas por Milton Friedman, que foram por um breve momento dominantes, não os ajudavam a controlar a inflação. E nesse capítulo ele ressalta a importância da teoria da inflação inercial, que, em São Paulo, Yoshiaki Nakano e eu, e no Rio de Janeiro, os economistas da PUC (Pontifícia Universidade Católica) desenvolveram.

Acho interessante André Nassif ter visto a teoria da inflação como um prólogo para o novo desenvolvimentismo, porque, para mim, essa teoria, e particularmente o “paper” “Fatores aceleradores, mantenedores e sancionadores da inflação”, teve tal papel.

Depois desse prólogo, André Nassif dedica o Capítulo VI à teoria novo-desenvolvimentista – que um grupo de economistas brasileiros e eu vêm construindo desde os anos 2000. Naturalmente, me senti muito lisonjeado e feliz ao ser colocado ao lado dos pioneiros do desenvolvimento. Até o final dos anos 1990, eu era um macroeconomista pós-keynesiano e um desenvolvimentista clássico.

Entretanto, no final dessa década, depois de 20 anos de quase-estagnação dos países latino-americanos, me dei conta de que eram necessários modelos teóricos adicionais para compreender o problema do desenvolvimento e da estagnação.

Começamos pela crítica da taxa de juros alta e da taxa de câmbio apreciada no longo prazo. Embora os economistas liberais nos governos afirmassem que os preços eram determinados pelo mercado, vimos que a taxa de juros era muito mais alta do que a taxa de juros internacional mais o risco Brasil, e que a taxa de câmbio se mantinha tendencialmente apreciada no longo prazo. Em consequência, as empresas capazes deixavam de ser competitivas e não investiam, enquanto o poder aquisitivo e o consumo de trabalhadores e de rentistas eram artificialmente elevados. Vimos também que, ao contrário do que afirma a teoria convencional, a taxa de câmbio é uma variável determinante do investimento.

Podíamos afirmar isto porque também afirmávamos que a taxa de câmbio não é meramente volátil em torno do equilíbrio corrente, mas tende a permanecer apreciada no longo prazo. Por duas razões: porque a política de crescimento com endividamento externo aprecia a moeda nacional no longo prazo e porque uma doença holandesa não neutralizada mantém a taxa de câmbio apreciada para a indústria, não para as “commodities”.

Finalmente, afirmamos que a macroeconomia que interessa é uma macroeconomia e uma política macroeconômica do desenvolvimento na qual o Estado deve ser responsável por cerca de 20 por cento do investimento total e o governo deve garantir as condições gerais da acumulação de capital, ou seja, investir em educação, ciência e tecnologia, investir na infraestrutura, manter instituições que garantam o bom funcionamento do mercado, garantir a existência de um sistema financeiro local capaz de financiar os investimentos e manter os cinco preços macroeconômicos no lugar certo: a taxa de juros real deve ser relativamente baixa; a taxa de câmbio real, competitiva; a taxa de lucro, satisfatória para as empresas industriais investirem; a taxa de salários crescendo com o aumento da produtividade, e a taxa de inflação em um nível baixo.

André Nassif discute o novo desenvolvimentismo com grande competência, porque ele é um dos mais notáveis economistas desenvolvimentistas brasileiros. Quando, porém, eu o conheci, em 2008, ele acabara de publicar na revista que edito, Brazilian Journal of Political Economy, um artigo em que negava a tese que eu então estava começando a defender, a partir da teoria que estava desenvolvendo, de que o Brasil estava sofrendo um grave processo de desindustrialização.

André Nassif, porém, é um economista que pensa com autonomia e clareza. Com o passar do tempo, ele mudou sua opinião sobre a desindustrialização e se tornou um dos economistas que mais têm feito contribuições para o novo-desenvolvimentismo.

O Capítulo VII é uma conclusão da análise realizada. Nela, André Nassif enfatiza que o desenvolvimento econômico só é bem-sucedido quando resulta de um projeto nacional. E aproveita para falar de contribuições recentes para a teoria do desenvolvimento. Cita, então, autores como Ha-Joon Chang, Erik Reinert e Mariana Mazzucato, que mostraram que todos os países exitosos no processo de catching up se guiaram pelos princípios desenvolvimentistas, e não pelos preceitos neoclássicos (herdados de David Ricardo) de adesão incondicional a práticas de laissez–faire e livre comércio; Alice Amsden e Robert Wade, desenvolvimentistas voltados para os países do Leste da Ásia; autores neoschumpeterianos, como Mario Cimoli, Giovanni Dosi e Gabriel Porcile; e autores neoclássicos, mas desenvolvimentistas, como Dani Rodrik.

A segunda parte do livro é dedicada à teoria liberal neoclássica do desenvolvimento. No Capítulo VIII, André discute as teorias liberais de comércio internacional; no Capítulo IX, a teoria neoclássica do crescimento; e no Capítulo X, o Consenso de Washington e a ideologia neoliberal.

São capítulos muito interessantes, mas confesso não ter paciência com o que os liberais neoclássicos chamam de teoria do desenvolvimento. Como dizia Celso Furtado, não passa de ideologia. Ideologia que aparece não disfarçada de teoria no Capítulo X. O Capítulo XI é a crítica de André Nassif a essas teorias.

Temos, assim, um belo livro. Uma brilhante análise das teorias do desenvolvimento de um economista desenvolvimentista engajado na luta pelo desenvolvimento – uma luta difícil, que só será vencida quando o desenvolvimentismo voltar a ser a forma de organização econômica do capitalismo dominante no Brasil e na América Latina e soubermos rejeitar a política de crescimento com endividamento externo, decidirmos neutralizar a doença holandesa e devolvermos ao Estado o papel de investir em setores estratégicos da economia.

*Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor Emérito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP). Autor, entre outros livros, de Em busca do desenvolvimento perdido: um projeto novo-desenvolvimentista para o Brasil (Ed. FGV).
Referência
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André Nassif. Desenvolvimento e estagnação: O debate entre desenvolvimentistas e liberais neoclássicos. São Paulo, Contracorrente, 2023, 560 págs.

Carta Mensal – Outubro 2023

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O mês de outubro foi marcado pela recuperação do presidente do Luís Inácio Lula da Silva, depois de uma operação no final de setembro, neste período o Executivo ficou acéfalo, um momento, onde as grandes decisões foram postergadas para o retorno do presidente da República.

No campo econômico, percebemos que o Ministério da Fazendo teve que usar todo seu repertório para defender suas bandeiras, onde podemos destacar o programa Desenrola, medida pensada desde o período eleitoral como uma forma de aliviar uma parcela da população brasileira, já que mais de 70 milhões de consumidores estavam negativados e, desta forma, perderam a condição de consumir normalmente, impossibilitando de acessar crediário e menor cidadania.

Destacamos ainda, neste setembro de 2023, o Ministro da Fazenda Fernando Haddad mandou para o Congresso Nacional as propostas de tributação dos Fundos Exclusivos, que pagavam pouco tributo, gerando fortes deformações no sistema tributário brasileiro, garantindo grandes atrativos para poucos cidadãos em detrimento de toda a comunidade nacional, perpetuando um sistema altamente degradado e gerador de fortes privilégios.
No front econômico, o governo federal vem fazendo uma verdadeira cruzada para encontrar mais recursos para cumprir as promessas de déficit zero para o próximo ano, sabendo que o mercado não acredita e já precificou um déficit na casa dos 0,75% do produto interno bruto, mesmo assim, o Ministério da Fazendo acredita que consegue alcançar seu intuito, desde que consiga aumentar os recursos oriundos das alterações no sistema tributário, com taxação dos fundos e medidas em estudo.

No campo político devemos destacar o fortalecimento do poder do Congresso Nacional em detrimento do poder Executivo. Na última eleição seus resultados foram interessantes, a população elegeu um governo federal progressista e elegeu um Legislativo conservador, na verdade, um Congresso Nacional fortemente conservador, levando o presidente da República a ser obrigado a negociar todos os projetos de interesse do Executivo, tolhendo muitas propostas presidenciais e levando-o a ceder nacos de poder, com grandes recursos e partes substanciais do orçamento como forma de manter a governabilidade.

O crescimento do legislativo está diretamente ligado a ascensão dos governos de direita e de extrema direita, os governos Temer e Bolsonaro, que foram responsáveis pelo fortalecimento deste poder como forma de manter sua governabilidade, muitas vezes terceirizando seu poder para conseguir governar, garantindo bilhões de recursos para manter uma estrutura fortemente degradada, como podemos destacar os recursos do fundo partidário que foram responsável pela perpetuação de grupos políticos e a manutenção de seus privilégios espúrios, garantindo várias reeleições de seus grupos políticos.

O mês de outubro nos trouxe grandes constrangimentos para a sociedade internacional, o ataque do Hamas aos civis israelenses deflagrou um guerra que culminou na morte mais de milhares de pessoas, um conflito que teve repercussões globais, motivando grupos e personalidades a apoiarem um dos lados, gerando constrangimentos diplomáticos, acusações generalizadas em todos os lados, invasões e interesses imediatos, muitos deles são motivados por questões econômicas, além de conflitos religiosos e políticos. A guerra é sempre uma forma degradante de resolver divergências em todas as épocas da humanidade, os resultados são sempre os mesmos, uma forte destruição de variadas regiões, mortes, perseguição de grupos sociais, incremento de xenofobias e graves distorções nos direitos humanos, no limite aumentam os constrangimentos na sociedade internacional.

Esse conflito levou as nações a adotarem posições, ao lado dos judeus encontramos os europeus e os Estados Unidos, com o envio de bilhões de dólares para Israel, além de equipamentos militares, porta aviões, tropas especiais e variados instrumentos militares. De outro lado, percebemos uma defesa com menor ímpeto, embora os discursos dos governos defendam um cessar de fogos e a construção de corredores humanitários para socorrer feridos e enterrar mortos, percebemos que as populações das nações árabes apresentam uma visão mais assertiva em defesa dos palestinos, desta forma, percebemos o crescimento das rivalidades, das agressões e dos discursos acalorados, que podem culminar em movimentos estratégicos e militares que podem escalar o conflito.

Neste cenário, percebemos os constrangimentos de instituições multilaterais como a Organização das Nações Unidas (ONU), que perderam a capacidade de mediar o conflito, perdendo relevância na sociedade global, deixando de auxiliar os momentos de incertezas mundiais e, desta forma, essa instituição precisa de uma reforma para que a chama do pós-guerra mundial possa reacender, dando-a novamente, centralidade no cenário internacional.

Depois de um período de conflito entre Israel e Hamas os resultados do combate são assustadores, milhares de mortos, principalmente crianças e mulheres, milhares de pessoas sem residências e sem condições dignas de sobrevivência, devastação da infraestrutura da Faixa de Gaza, destruição de hospitais e postos de saúde, dentre outras destruições, criando um rastro de devastação na região.

Vivemos momentos de instabilidades e incertezas todos os dias, muitos acreditavam que o controle da pandemia que vitimou mais de 6 milhões de pessoas, apenas no Brasil foram responsáveis por mais de 700 mil mortes, traria uma sociedade mais prudente e mais solidária, mais empática e mais responsável, nada disso aconteceu, estamos numa selva marcado pelo individualismo e o imediatismo, os resultados não serão positivos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Alta temperatura

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Estamos vivendo momentos de altas temperaturas em todas as regiões do mundo, com impactos generalizados para toda a sociedade global, com repercussões em todas as áreas e gerando fortes constrangimentos para a economia, com aumento de custos, incertezas crescentes e a necessidade de discutirmos sobre os rumos da estrutura produtivo e a forte dependência de combustíveis fósseis.

Desde a primeira revolução industrial, iniciada na Inglaterra no século XVIII, que trouxeram ganhos substanciais para a estrutura produtiva mundial, incremento da produtividade, com novos modelos de negócio, com a geração de novas formas de organização social e política, com fortes mudanças comportamentais dos indivíduos, com o surgimento de novas ocupações e uma forte dependência dos combustíveis fósseis, que estimularam conflitos militares, guerras e revoluções sangrentas ao longo da história nas mais variadas regiões e como forma de controlar e dominar o chamado “ouro negro”.

Neste cenário, percebemos que a ciência internacional vem buscando novas formas de energia para satisfazer os anseios da estrutura produtiva, sabendo que os combustíveis fósseis são finitos e a sociedade precisa construir urgentemente outras alternativas energéticas como forma diminuirmos a dependência do petróleo e gás natural.

Depois de mais de duzentos anos de crescimento econômico produtivo global, os impactos sobre o meio ambiente estão, cada vez maiores, com incremento da temperatura, degradação de regiões inteiras, prejuízos elevados e crescentes na agricultura, alterações no solo, degradação de rios, mares e lagos, com isso, percebemos o aumento da imigração de povos inteiros, com variados conflitos culturais, o aumento de movimentos xenofóbicos, a violência e a exclusão social.

Diante disso, percebemos a grande dificuldade dos agentes econômicos e dos gestores públicos de criarem novas formas de energias alternativas para movimentar o sistema econômico e produtivo fortemente dependente dos combustíveis fósseis. Toda a estrutura produtiva internacional sempre foi dependente destes combustíveis e, neste instante, faz-se urgente o desenvolvimento de novas alternativas energéticas. Os recursos necessários para essa transformação são gigantescos para a comunidade internacional, estamos falando em algo de trilhões de dólares, num cenário marcado por economias endividadas e questões fiscais preocupantes para a maioria das nações. Ou seja, estamos vivenciando um dos maiores desafios da sociedade mundial, que exige lideranças capazes de compreenderem o desafio e propor soluções imediatas e disruptivas

Depois de mais de 200 anos de forte exploração e dependência dos combustíveis fósseis, os custos deste modelo econômico dominante estão aparecendo com mais evidente, todos os indivíduos estão comentando as alterações climáticas, o aumento da temperatura e os custos financeiros e monetários para toda a comunidade. Neste momento, o Brasil apresenta grandes oportunidades, somos uma nação detentora das mais variadas formas energéticas, uma grande vantagem comparativa quando observamos as outras nações, que precisam fortemente de formas energéticas externas que reduzem sua soberania e sua autonomia.

Os grandes conglomerados produtivos internacionais perceberam o forte potencial brasileiro, as empresas automobilísticas globais estão se posicionando no cenário nacional e outros setores estão estudando projetos de investimentos para os próximos anos, com forte geração de emprego, com melhorias nos indicadores econômicos e sociais, além da melhora no incremento da produtividade da economia brasileira.

Para que consigamos atrair esses investimentos internacionais precisamos de maturidade institucional, fortes investimentos em capital humano, com grandes dispêndios em educação e saúde, criando fortes estímulos financeiros para as pesquisas científica, atraindo pesquisadores brasileiros e internacionais motivados por um projeto maior e consistente. O sucesso econômico, nos mostram as nações desenvolvidas, está centrado nos fortes investimentos na população, nas políticas públicas e enfocando o ser humano, antes de tudo.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Muitos pais desconhecem o sentido de uma educação de qualidade, Vera Iaconelli

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Para muitas famílias, a questão central é colocar a criança para fazer networking

Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e “Criar Filhos no Século XXI”. É doutora em psicologia pela USP.

Folha de São Paulo, 28/11/2023

Professores de escolas ditas de elite têm enfrentado um dilema exemplar da situação brasileira. São eles que, diante da tarefa hercúlea de ensinar, recebem uma molecada cujos pais não os deixam esquecer que estão pagando pelo serviço e querem ver resultados. Na escola tida como empresa, é o produto final que está em disputa.
Não que nas demais escolas corpo docente e pais não enfrentem desencontros, longe disso. Temos o belíssimo trabalho do psicanalista Rinaldo Voltolini para nos mostrar o que o autor chama de “divórcio entre a família e a escola” (em “Laço”, Autêntica, 2020).

Mas na escola dita de elite, para muitas famílias a questão central é colocar a criança para fazer networking, introduzindo-a no mundo dos bem-nascidos. Nesses casos, é mais importante que a instituição funcione como passaporte para o contato com outros integrantes da elite do que como educação propriamente dita. Para essa última, resta a expectativa de que a criança fale outras línguas como se fosse nativo e conheça os macetes para se dar bem no vestibular —ou o que for preciso para ser aceito em universidades estrangeiras. O ensino mesmo, aquele que se pauta no exercício da reflexão e da crítica, pode se tornar um estorvo diante desse projeto.

Num mundo no qual a ingerência dos pais no espaço escolar se torna uma constante e no qual o cliente tem sempre razão, a criança acaba servindo de cabo de guerra entre aquilo que merece ser chamado de educação e aspirações cínicas que veem nela um mero trampolim social.

O professor, por sua vez, longe de sofrer as agruras do docente de escola pública, como salários irrisórios, carga horária insana, condições insalubres e descredibilidade social, tem que se haver com a paixão pela ignorância, como dizia Lacan. Quanto mais ele se qualifica para preparar a criança para um mundo que perde sua capacidade reflexiva e crítica, mais ele se vê boicotado pela família dessa mesma criança. Como trazer o mundo para o aluno, sua realidade e contradições quando os pais que sustentam a escola exigem que não se saiba nada sobre isso?

Sexualidade, política, racismo, misoginia, pobreza têm sido temas tabu em todas as escolas de todas as classes sociais, que pais supostamente zelosos juram que pretendem discutir em casa, dispensando a opinião dos de fora.

Dessa forma, solapam o caráter público da escola, que é sua razão de existir. É porque os diferentes se encontram para assimilar os conteúdos no mesmo espaço, de forma democrática, reflexiva e respeitosa que a escola sempre será pública por excelência, seja paga ou não.

Mas o pavor dos pais de escolas daqueles que têm acesso a tudo é que as crianças tenham contato com aqueles que nada têm. São pais que aspiram a que a escola funcione como o carro que circula pela cidade e só vê a pobreza e a injustiça social pelo vidro blindado. Para que diante da pergunta sobre o porquê de uma criança estar no farol pedindo eles possam vomitar seus delírios meritocráticos, sem que o filho tenha acesso ao contraditório. Alguns chegam a fazer motins via grupo de WhatsApp fingindo ignorar que se comprometeram com o conteúdo programático no ato da matrícula.

Exigir que o professor seja calado diante do debate das questões que nos humanizam é fazer da escola esse mesmo carro blindado dirigido pela paranoia. Mas é no lugar de onde saem “os donos do mundo” que essas questões precisam ser incessantemente recolocadas. Os professores mais atualizados, qualificados e ciosos de seu trabalho são um inferno na vida das famílias que só querem que a próxima geração reproduza o pior.

Eles são também nossa esperança e consolo.

A globalização chinesa, por Elias Jabbour

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Elias Jabbour – A Terra é Redonda – 25/11/2023

Aos chineses não interessa o ônus de ser um hegemon. Mas interessa polarizar o debate sobre a governança global

“Nosso círculo de amigos estará sempre no Terceiro mundo. Lembre-se: os países desenvolvidos do Ocidente não nos chamarão para jogar e, aos olhos deles, sempre terão um ‘complexo de superioridade’. O Ocidente sempre desprezará nossos valores e considerará a China como ‘atrasada’. Aos olhos dos ocidentais, sempre haverá ‘diferenças entre o Oriente e o Ocidente’. Não pense que você pode se integrar ao mundo ocidental, nem pense ingenuamente que pode (Wang Yi, Chanceler da República Popular da China).

No dia 18 de outubro último foi iniciado um grande encontro cujo pano de fundo fora a comemoração dos dez anos da Iniciativa Cinturão e Rota. A grande maioria dos chefes de Estado e governo do Sul Global esteve presentes no evento, com destaque à presença permanente de Vladimir Putin ao lado de Xi Jinping nos mais variados momentos do encontro. Existe uma série de questões que os intelectuais interessados na mudança de dinâmica que marca o nosso momento histórico devem responder. Uma delas envolve a chamada “globalização”, o seu ocaso ou o surgimento de outra espécie de globalização, esta já sob os auspícios da Eurásia e da China, em particular.
Vejamos.

Outra espécie de globalização

Em setembro de 2013 o presidente chinês Xi Jinping lançou as linhas gerais do que fora chamado à época de “Cinturão Econômico da Rota da Seda”, atualmente “Iniciativa Cinturão e Rota” (BRI). Desde então, 154 países aderiram formalmente ao projeto com cerca de US$ 1 trilhão já foram investidos em quase todos os continentes do mundo. Dez anos após o lançamento da Iniciativa Cinturão e Rota, o mundo encontra-se diante de uma série de discussões, dentre elas a de uma chamada “desglobalização” – acelerada pelo escancaramento do histórico protecionismo estadunidense e de uma tentativa de cancelamento da China do mercado global de suprimentos para as infraestruturas de semicondutores. Esse processo trouxe, realmente, fissuras ao padrão de globalização preexistente, mas será que significa o início de uma “desglobalização”?

O padrão de globalização inaugurado pelos Estados Unidos desde o final da Segunda Guerra Mundial e que ganha outros contornos, chamados “financeirizados”, desde o final da década de 1970, arrastando o mundo – e a China em particular – para novos marcos institucionais de todo tipo e por novos arranjos territoriais baseados tanto na velocidade com que os capitais saem e entram nos países quanto na reorganização da geografia industrial mundial. Inflação baixa nos EUA passou a ser sinônimo de Made in China. O que os policymakers estadunidenses nunca imaginaram é que o homem que incluiu a China na economia capitalista mundial antes fora um herói da Longa Marcha (1934-1935) e não um indicado seu na Coreia do Sul ou no Japão. Referimo-nos a Deng Xiaoping.
Multipolaridade

Em cerca de 40 anos a financeirização foi erodindo a capacidade dos EUA de se reinventarem periodicamente. Sua quase imbatível máquina militar sendo testada mais vezes em uma década do que em toda Guerra Fria contrastava com uma sociedade cada vez mais fraturada pela desigualdade social. Por outro lado, a cada nova crise financeira, menor a distância entre a China e os Estados Unidos.

Nas últimas quatro décadas o país construiu “três imensas máquinas”: a máquina de construção de valores de troca (a transformando em máquina do mundo), uma máquina financeira (a transformando no maior credor líquido do mundo) e em máquina de construção de valores de uso (em 20 anos o país construiu 42 mil km de trens de alta velocidade e se constituindo no maior exportador de bens públicos em infraestruturas da história humana).

É nesse ponto que devemos questionar a chamada “desglobalização”. Não estaria ocorrendo uma globalização tendo a China como promotora baseada tanto no movimento de incorporação da Rússia como parte soberana de seu território econômico quanto na integração física do mundo com infraestruturas baseadas em grande capacidade produtiva e estatal instalada e em bancos públicos (criadoras de moeda fiduciária), colocando em terceiro e quarto planos o endividamento dos receptores desses investimentos em detrimento de maior protagonismo chinês e mesmo de potências regionais como a África do Sul, o Egito, a Etiópia e quem sabe o Brasil?

Por outro lado, se existe uma globalização com características chinesas e se qualquer processo de globalização pode ser definido, também, pelos valores compartilhados pelo polo gravitacional, o que podemos esperar de uma globalização à chinesa? As ciências sociais e humanas não contam com laboratórios de teste como as hard sciences. Portanto, muitas respostas estão colocadas no campo da história. Nesse sentido, dado o peso exercido pela economia produtiva (não financeirizada) chinesa no mundo, que essa “globalização” venha a redesenhar uma nova divisão internacional do trabalho, na medida em que a China comece a exportar sua prosperidade. Essa exportação já ocorre em certa medida na mesma proporção em que determinado país consiga planejar sua economia partindo das tendências criadas pela China. Esse é um ponto.

Outro ponto é a multipolaridade. Aos chineses não interessa o ônus de ser um hegemon. Mas interessa polarizar o debate sobre a governança global. Por exemplo, para a China a tendência da unipolaridade viria a substituir à relacionada aos vários polos de poder. Os valores deste processo estão em disputa. Os EUA falam em “nova ordem mundial” (sic). A China lança três grandes “Iniciativas Globais”, sendo elas: (i) desenvolvimento global; (ii) segurança global; e (iii) civilização global.

Podemos afirmar que a governança chinesa repagina os princípios da famosa Conferência de Bandung (1955), com o acréscimo da “internacionalização de fatores” ao colocar no campo do Sul Global quase que a responsabilidade pela salvaguarda de um mundo marcado por tensões de múltiplas ordens.

É uma relação dialética entre futuro e Sul Global, pois conforme anuncia a própria epígrafe escrita pelo chefe da chancelaria chinesa, os amigos da China encontram-se no Terceiro Mundo.

*Elias Jabbour é professor licenciado da Faculdade de Ciências Econômicas daUERJ e diretor de pesquisas do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) dos BRICS+. É autor, entre outros livros, junto com Alberto Gabriele, de China: o socialismo do século XXI (Boitempo).

O que é um genocídio? Vladimir Safatle

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Vladimir Safatle – A Terra é Redonda – 24/11/2023

Genocídio não é algo ligado a algum número absoluto de mortes, mas sim a uma forma específica de política de apagamento dos corpos

No dia 13 de novembro, nomes fundamentais da teoria crítica contemporânea, como Jürgen Habermas, Rainer Forst, Nicole Deitelhof e Klaus Günther, entenderam por bem publicar um texto, a respeito do conflito palestino e suas consequências, intitulado “Princípios de solidariedade. Uma afirmação”.

Começando por atribuir toda a responsabilidade da situação atual aos ataques do Hamas, defendendo o “direito de retaliação” do governo israelense e fazendo considerações protocolares sobre o caráter controverso e polêmico da “proporcionalidade” de sua ação militar, o texto termina por afirmar o absurdo de pressupor “intenções genocidárias” ao governo de extrema direita de Israel, conclamando todos ao mais profundo cuidado contra “sentimentos e convicções antissemitas por trás de toda forma de pretextos”.

O que inicialmente impressiona em um texto escrito por quem seria legatário da força crítica da Escola de Frankfurt e seu comprometimento antiautoritário é aquilo que não tem direito de aparecer quando certos europeus estão a clamar por “princípios de solidariedade”. Pois seria o caso de lembrar que, quando o texto de Jürgen Habermas e companhia foi publicado, o mundo contava mais de 10 mil palestinos massacrados e o governo israelense continuava a afirmar que nem sequer permitiria um cessar-fogo para a abertura de corredores humanitários.

Poderíamos esperar que isso tivesse a dignidade de nos indignar, que um texto sobre solidariedade, neste momento, começaria dizendo que colocar uma população de 2,5 milhões de pessoas em um estado cotidiano de terror no interior de uma lógica inaceitável de punição coletiva não é maneira alguma de combater o Hamas, mas sim de fortalecê-lo.

No entanto, chama a atenção como defensores de princípios universalistas de justiça parecem, na verdade, prontos a usá-los estrategicamente quando é o caso de expiar seus fantasmas locais de responsabilidade perante catástrofes passadas. A não ser que a racionalidade comunicativa tenha, afinal, fronteiras geográficas e esqueceram de nos avisar. Mas uma teoria que nunca pensou estruturas coloniais e seus modos de permanência e desdobramento não está preparada para os desafios do presente.

Pois militantes de direitos humanos, funcionários da ONU, diplomatas dos mais variados países, que insistem nas intenções genocidárias do governo israelense, têm todo o direito de serem ouvidos e levados a sério. Elas e eles estão a defender que “genocídio” ocorre todas as vezes em que o vínculo orgânico de populações ao “genos“, ao que nos é comum, é negado.

Quando o comandante das Forças Armadas israelense diz que do outro lado há “animais humanos”, ele expressa, de forma pedagógica, intenções genocidárias. Quando ministros do governo de Israel afirmam ser plausível o uso de bombas nucleares contra Gaza e não tem outra punição que o simples afastamento de reuniões ministeriais futuras, quando descobrimos planos de deslocamento em massa dos palestinos para o Egito, estamos sim diante de expressões de intenção genocidária. Tais intenções devem ser nomeadas.

Genocídio não é algo ligado a algum número absoluto de mortes, mas sim a uma forma específica de política de apagamento dos corpos, de desumanização da dor de populações, de silenciamento do luto público que retiram populações de sua humanidade e expressam processos historicamente reiterados de sujeição. Quando falamos dos palestinos, estamos a falar de um povo apátrida, sem terra – e, por isso, como bem lembrou Itamar Vieira Júnior na Folha de S. Paulo, sem liberdade alguma.

Povo que não pode contar com a solidariedade internacional porque espera há 50 anos que a lei internacional que define a posse de seu próprio território seja respeitada e que, quando se vê vítima de uma punição coletiva em pleno século XXI, encontra textos que nem sequer têm a capacidade de lembrar que nada disso começou com os ataques do Hamas.

O Hamas é efeito terrível de uma causa que merece ser pensada em seu horizonte histórico correto. Tomar o efeito pela causa é a melhor maneira de não resolver problema algum. Alguém deveria lembrar aos signatários do texto em questão que a teoria crítica exige escutar a história dos desterrados e dos vencidos.

*Vladimir Safatle é professor titular de filosofia na USP. Autor, entre outros livros, de Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação (Autêntica).

O avanço do ensino a distância nas universidades exige maior regulação por parte do MEC? Sérgio Haddad

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EAD virou forma barata e de baixa qualidade para expandir o ensino superior

Sérgio Haddad, Doutor em filosofia da educação, é coordenador de projetos especiais da Ação Educativa, professor aposentado da PUC-SP e pesquisador sênior do CNPq

Folha de São Paulo, 25/11/2023

Doutor em filosofia da educação, é coordenador de projetos especiais da Ação Educativa, professor aposentado da PUC-SP e pesquisador sênior do CNPq

Iván Izquierdo, neurocientista argentino naturalizado brasileiro (1937-2021), publicou artigo nesta Folha, em fevereiro de 1996, no qual recordava do tempo largo em encontros nos bares com amigos e garçons enquanto estudava medicina em Buenos Aires: “Naquelas longas horas de café, entre metafísica, futebol e outros papos, estudávamos muito, bem e depressa”, afirmou.

A leitura do texto à época da sua publicação me fez recordar das mobilizações como estudante na USP, em 1968, que acabaram por marcar profundamente a minha existência. Também dos seminários, debates, acesso às disciplinas de outros cursos, atividades de extensão, de pesquisa, uso de laboratórios; enfim, de tudo aquilo que a vida universitária oferecia e ainda oferece.

Aprendi na prática, antes de me tornar educador, que a educação tem essa dimensão ampla e que apenas o ensino de disciplinas, de maneira presencial ou a distância, é uma pequena e limitada parte do processo educativo. Ensinar não é transmitir conhecimentos, nos ensinou Paulo Freire: “Não há docência sem discência”, pois não há educação sem a participação ativa do educando.

Tendo como foco na transmissão de conhecimentos, o crescimento da oferta de cursos superiores privados pela modalidade de ensino a distância (EAD) nos últimos anos veio acompanhado pelos baixos resultados dos seus alunos no último Enade (Exame Nacional de Desempenho de Estudantes). Mais oferta, com baixa qualidade.

O avanço da EAD foi impulsionado por uma legislação favorável, pelo afunilamento das vagas nos cursos superiores públicos e pela diminuição do apoio por Fies (Fundo de Financiamento Estudantil) e Prouni (Programa Universidade para Todos), além do fator pandemia.

No entanto, o maior responsável pela expansão da oferta foi o modelo de negócio da iniciativa privada para expandir os seus serviços e aumentar os lucros: o valor das mensalidades caiu —algumas custam o preço de uma refeição— e o número de alunos por professor subiu para 171, em média, conforme dados do último Censo do Ensino Superior. Com investimentos muito mais baixos do que a oferta presencial, multiplicaram-se de forma padronizada, independentemente de quem seja o aluno, da sua diversidade e do local onde vive.

Conglomerados do ensino privado anunciam que o sonho de um diploma do curso superior pode estar nas mãos de qualquer pessoa, em qualquer localidade. Basta pagar e se matricular para ter acesso aos conteúdos, quantas vezes desejar, dentro do próprio ritmo e horário, além de ser alternativa conveniente para adaptar os estudos aos compromissos familiares e de trabalho.

Mas este sonho se distancia da realidade quando consideramos que a EAD exige autonomia, disciplina, local adequado e motivação para aprender a aprender. Ora, uma parcela grande da população, a mais pobre, termina o ensino médio com muitas limitações de aprendizagem e com pouca autonomia para buscar o conhecimento. É aquela com mais dificuldade para criar um ambiente favorável para os estudos, com baixa qualidade das conexões pela internet e ausência de espaços coletivos de aprendizagem e de interação presencial.

A EAD vem se tornando uma forma barata e de baixa qualidade de expansão do ensino superado, diferentemente do que ocorre em outros países com tradição nessa modalidade de ensino, onde é utilizada de forma complementar à formação presencial, como educação continuada para quem quiser se atualizar ou aprender novos conteúdos.

O Ministério da Educação não só tem a responsabilidade de controlar o crescimento e a qualidade do EaD como também o dever de aumentar a oferta pública de vagas no ensino superior, garantindo o acesso e a permanência dos alunos mais pobres com políticas afirmativas.

Reforma do Ensino Médio: um crime a ser barrado, por Rogério de Souza

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Acelerada em São Paulo, ela fez da vida de 330 mil jovens um experimento cruel. Deixou de prepará-los para a universidade, sem oferecer formação técnica real. Um engodo – com cor e classe social. Só a revogação pode ser um começo de saída

Rogério de Souza – Outras Palavras – 22/11/2023

O antropólogo, educador e político Darcy Ribeiro costumava dizer que, no Brasil, a educação básica pública de qualidade duvidosa não é propriamente um desvio de rota, uma disfunção, mas um projeto da elite nacional. Em diferentes momentos da nossa história, esse intento das camadas abastadas desvela-se sem filtro, revelando uma verdadeira arquitetura da destruição, boicote à nação.

A Reforma do Ensino Médio, apresentada como Medida Provisória 746/16 e aprovada como projeto de lei n.º 13.415/17, foi, já em seu nascedouro, apontada como um instrumento oficial de Estado que resultaria, necessariamente, no aumento das desigualdades educacionais, pois priva, em sua concepção, milhões de estudantes de acessarem os conhecimentos historicamente sistematizados pela humanidade e exigidos nos vestibulares das universidades brasileiras, públicas e privadas.

Escondidos atrás de estandartes que estampavam: flexibilização curricular, protagonismo estudantil com a possibilidade de escolher o que gostaria de cursar, aproximação entre o conhecimento e a realidade dos estudantes, modernização curricular, expansão do ensino técnico-profissional, etc., os adeptos da reforma saíram vencedores. Decidiu-se que o Novo Ensino Médio, denominado de NEM, entraria em vigor a partir de 2022; com a adequação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) – principal porta de entrada para as universidades públicas – às novas determinações trazidas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) – parte da engrenagem que movimentou a Reforma do Ensino Médio – a partir de 2024.

Alheios às manifestações de rua de profissionais da educação e estudantes, além de centenas de pesquisas frisando que o NEM resultaria, inevitavelmente, num aumento das desigualdades educacionais, colocando em risco o direito à aprendizagem de mais de 7 milhões de estudantes da rede pública, secretários estaduais de educação, capsulados no Conselho Nacional de Secretários de Educação, o CONSED, “indumentaram-se” da vestidura de que “lei não se discute, lei se cumpre”, e programaram-se para a implantação do NEM a partir de 2022.

Para deleite da elite bandeirante, o então governador de São Paulo, João Dória Jr., anunciou, em 2020, que o Estado, protagonista em diferentes momentos da história do país, assumiria a vanguarda do atraso e se adiantaria na implementação do NEM, com a aprovação do Currículo Paulista e a indicação de 11 itinerários formativos de aprofundamento.

Experimentações curriculares questionáveis adotadas em 2019 e 2020, como o Programa Novotec, anunciavam o desastre da arquitetura do NEM. O Novotec ventilou a tese de que o estudante do Ensino Médio sairia com dupla formação, curso regular e técnico-profissional, o último com a grife das Escolas Técnicas Estaduais, as Etecs. Na prática, verificou-se que as diminutas horas destinadas à formação técnica eram insuficientes para habilitar um estudante a desenvolver atividade profissional em qualquer área. Cilada pedagógica anunciada por diferentes críticos. Consequência: frustração de milhares de estudantes.

Desarrumado desde a concepção, o NEM iniciou nas escolas paulistas em fevereiro de 2021. Com incertezas múltiplas, justificava-se “que todo período de transição é complicado”, “que a comunidade escolar deveria estar aberta ao novo, e não ser resistente à mudança”. Rapidamente, as críticas difundidas no contexto da aprovação da Reforma voltaram a fazer eco: as escolas não conseguiram ofertar os itinerários indicados pelos estudantes; houve quantidade interminável de disciplinas; impossibilidade de docentes prepararem material para tantas disciplinas; falta de material didático para os componentes curriculares da formação geral e dos itinerários formativos; disciplinas eletivas sem sustentação acadêmica; falta de professores para as diferentes disciplinas; docentes sem formação específica sendo obrigados a assumir determinados componentes curriculares; etc.

No final do primeiro semestre de 2022, o movimento estudantil organizado evidenciou as inúmeras incongruências do NEM na prática e passou a reivindicar a revogação da Reforma do Ensino Médio. Pipocaram pela imprensa convencional denúncias sobre disciplinas sem lastro acadêmico e a quantidade inadministrável de componentes curriculares, atingindo o surpreende número de 1.526 disciplinas diferentes país afora, colocando em risco o direito da educação básica para todos os estudantes, institucionalizando a fragmentação curricular na última etapa de ensino obrigatório.

Pesquisas na Rede Estadual de Ensino de São Paulo demonstram, já no final de 2022, grande desânimo por parte dos estudantes no que diz respeito à continuação dos estudos. Segundo o artigo 35º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB/EN n.º 9.394/96), uma das finalidades do Ensino Médio é “a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos” (grifos nossos). O NEM, com a determinação de que a Formação Geral Básica compreende, no máximo, 1.800 horas das 3.000 dessa etapa de ensino, arquitetou que os secundaristas teriam contato com os conhecimentos historicamente consolidados pela humanidade e exigidos nos principais vestibulares, com destaque para o Enem, somente na 1ª série e primeiro semestre da 2ª série. Ou seja, durante o restante do curso, compreendendo 18 meses, discentes acessarão os conteúdos diversos por meio dos Itinerários Formativos, esses sem, até o momento, referências nítidas e material didático de apoio, resultando, quase sempre, num esforço homérico de docentes para que os seus estudantes não fiquem sem os conteúdos essenciais para a vida em sociedade e continuação dos estudos.

A lei que versa sobre improbidade administrativa indica, no seu artigo 11º, que “constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade…” (grifo nosso). Entende-se que o governador e a Secretaria Estadual da Educação (SEDUC) estavam cientes que os estudantes concluintes do Ensino Médio neste final de 2023 no Estado de São Paulo não estudariam, neste novo modelo adotado, os conhecimentos básicos aplicados no Enem. Sabiam, certamente, que é praticamente impossível cumprir conhecimentos desenvolvidos em 2.400 horas durante 3 anos em 1.800 horas dentro de 1 ano e meio. Por conseguinte, verifica-se em diferentes escolas que muitos estudantes do 3º ano do Ensino Médio paulista, um universo de mais ou menos 330 mil, abdicaram de fazer a principal prova que permite acesso ao ensino superior brasileiro por intuir que não adiantava fazer o exame, pois estavam há mais de um ano sem ver Biologia, Física ou Química; ou Filosofia, Geografia, História e Sociologia. E que o estudante do terceiro ano do ensino particular continuava a estudar todas essas disciplinas. Que a universidade não era para ele. Que estava se organizando para trabalhar.

No rigor técnico-jurídico, apesar de ter punição, a improbidade não é um crime, é um ilícito administrativo com sanção. Portanto, ímprobo e não criminoso. Recorre-se aqui, entretanto, ao conceito social de crime, que não é o mesmo do conceito jurídico, transcende a simples violação de norma legal. Associa-se muito mais ao reflexo de expectativas, valores e ética de determinada sociedade em um período histórico específico. Diferentes estudos revelaram um aumento significativo dos estudantes egressos da rede pública da Educação Básica nas principais universidades brasileiras, todas públicas. Quase 70% da totalidade e mais de 50% de negros. O estudante pobre brasileiro, que tem cor, é preto, é preta, é pardo, é parda, estava entrando na universidade pública. Os sistemas de políticas de ações afirmativas contribuíram para esta mudança. Estabeleceu-se, mesmo eivados de contradições, horizontes diferentes para esses estudantes secundários: cursar o ensino superior. Agora estão frustrados, enganados e humilhados no Estado de São Paulo. Assim, pode-se afirmar que a ação dos responsáveis pela educação paulista da época é possivelmente criminosa, na medida em que frustrou centenas de milhares de estudantes à viabilidade de acesso ao ensino superior. No mínimo, caracteriza-se como desonestidade com um contingente de 330 mil concluintes do Ensino Médio.

O atual governo, na contramão daquilo que já se concluiu no restante do mundo, que a tecnologia é um importante instrumento de apoio pedagógico, mas não substitui a interação presencial e o livro impresso, disponibilizou, agora no segundo semestre, uma plataforma denominada “Prepara São Paulo”, espécie de cursinho pré-vestibular on-line, com assiduidade semelhante à aula em emenda de feriado. Servindo mais para atacar um problema do ensino superior brasileiro do que atender a demanda e o dolo cometido contra os sonhos de 330 mil jovens, o governo do Estado tirou da cartola, feito mágico da Caravana Rolidei do filme “Bye bye Brasil”, 15 mil vagas para o chamado “Enem Paulista” ou Provão Paulista – antigo SARESP (Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo), que ganha agora status de selecionar para as grandes universidades paulistas. Serão ofertadas 1.500 vagas para a USP, 934 para a Unesp, 325 para a Unicamp, 2.620 para a Univesp (on-line) e 10 mil para as Fatecs. Não é objeto do presente texto, mas as instituições de ensino superior brasileiras vivem crise estrutural de falta de estudantes, especialmente nos cursos presenciais. Há tempos registramos o mesmo número de alunos nesse nível de ensino: cerca de 8 milhões. Não conseguimos aumentar, apesar do quase imensurável universo de brasileiros sem um diploma de graduação. Ao mesmo tempo, nota-se que aqueles que decidem cursar uma faculdade escolhem o EaD, hoje com mais de 50% dos matriculados nesse nível de ensino. Cursos superiores presenciais correm, velozmente, o risco de desaparecerem. O “Enem Paulista”, além de ser uma afronta à política pública bem-sucedida do Enem, é um suspiro às universidades e às faculdades paulistas.

Pretendesse de fato corrigir o dolo cometido pelos gestores anteriores, o atual governo paulista deveria garantir vagas nas melhores universidades do Brasil (“com casa, comida e roupa lavada”) a todos os 330 mil estudantes da Rede Estadual de Ensino que se viram confundidos, frustrados, enganados, humilhados e excluídos pela decisão dos antigos administradores do Ensino Médio do Estado de São Paulo. Não se pode caracterizar essa arquitetura de destruição como desvio de rota ou mera disfunção. Soa como intencional. Darcy Ribeiro já nos ensinou isso. Projeto da elite para precarizar a Educação Básica, frustrando a perspectiva de vida, de futuro, de país. Um crime!

Rogério de Souza: Doutor em Sociologia pela Unicamp, escritor e professor no IFSP. Coordena o Grupo de Pesquisa em Educação Profissional (GPEP) do IFSP, Campus São Roque.

Combate à desigualdade social, por Fernando Nogueira da Costa

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Fernando Nogueira da Costa – A Terra é Redonda – 21/11/2023

A direita considera as desigualdades naturais, enquanto a esquerda se define pela busca da igualdade social por não a considerar natural

As ideias de esquerda e direita são termos referentes a posições no espectro político. Ideias de esquerda se definem pela busca da igualdade social por não a considerar natural. A “sorte do berço”, para alguns, com qualidade de vida e herança parruda, impõe política compensatória para os demais.

Sua preocupação principal, então, é a promoção da igualdade social e econômica. A esquerda busca reduzir as disparidades de renda e proporcionar igualdade de oportunidades. Para tanto, acredita em uma intervenção mais ativa do Estado na economia para corrigir desigualdades e garantir serviços sociais, como saúde e educação, para todos.

Seu foco está na proteção dos direitos sociais: defende os direitos civis, igualdade de gênero, direitos LGBTQ+, e outros direitos sociais como parte fundamental da justiça social. Para a mudança social, apoia políticas progressistas, como o casamento igualitário, políticas ambientais, e medidas de inclusão social. Busca criar uma sociedade mais justa, onde os benefícios e ônus sejam compartilhados de maneira mais equitativa.

Em oposição, as ideias de direita se pautam por considerar as desigualdades individuais serem naturais. O individualismo enfatiza a responsabilidade individual e a autonomia, argumentando os indivíduos necessitarem de liberdade para buscar seus interesses sem interferência excessiva do Estado.

Daí sua preocupação principal é defender o livre-mercado ao impor um papel limitado do Estado na economia. Pressupõe as livres iniciativas serem os meios eficientes de alocação social de recursos escassos, ou seja, “os competentes se estabelecem”. Isso preservaria a liberdade individual dos empreendedores. O liberalismo econômico acredita na eficácia do mercado livre para o crescimento econômico e a inovação.

Para controlar revoltas e proteger a propriedade privada de poucos, a direita se pauta na manutenção da ordem social e a segurança. Enfatiza a importância da lei dura e do autoritarismo político para manter a estabilidade social. Seu conservadorismo social leva à manutenção de valores tradicionais. Está associada à preservação de valores morais antigos, incluindo questões como família e religião.

Quando a esquerda no governo analisa as principais políticas para diminuir a desigualdade social, percebe ser um desafio muito complexo, requerendo uma abordagem multifacetada dos seus múltiplos componentes interativos. Para promover maior equidade e justiça social costuma pregar a redistribuição dos fluxos de renda, quando desconhece a desigualdade dos estoques de riqueza (financeira e imobiliária) ser muito maior – e mais difícil e arriscado de serem ameaçados.

Para se ter uma ideia da distribuição de renda no Brasil: metade dos trabalhadores tem rendimentos abaixo da mediana em torno de um salário-mínimo, a renda média de todos está em R$ 2.921, um graduado em Ensino Superior em boa Universidade pública recebe inicialmente cerca de 5 salários-mínimos (R$ 6.600) e entra no decil dos 10% mais ricos. Com mestrado ganha em torno de R$ 9 mil e com doutorado R$ 13.200 (10 salários-mínimos), entrando no grupo dos 5% mais ricos. No fim da carreira (já idoso), atinge 30 salários-mínimos (R$ 39.600) e se situa no centésimo do 1% mais rico.

Vale observar, 70% dos servidores públicos recebem menos de R$ 5 mil, 20% daí até R$ 10 mil, 5% daí até R$ 15 mil, 4% daí até R$ 27 mil e o 1% restante chega até R$ 41.650. Os CEOs de empresas, por sua vez, recebem uma remuneração média anual de R$ 15,3 milhões, incluindo, além dos “salários”, os bônus. Esse valor é 2,9 vezes o montante recebido pelos demais membros da Diretoria, os quais alcançam em média R$ 334 mil mensais, ou seja, um salário anual de R$ 4 milhões, sem considerar os bônus.

Os dados do Global Wealth Report 2022 apontam, no ano anterior, o Brasil tinha 266 mil milionários. O estoque de riqueza médio dos brasileiros mais ricos era o seguinte: 1% tinha R$ 4,6 milhões, 0,1% em torno de R$ 26,3 milhões – e 0,01% só R$ 151,5 milhões!

A ANBIMA, em meados de 2023, registrou 157 mil contas do Private Banking com média R$ 12,8 milhões; no segmento do Varejo Tradicional, eram 133 milhões contas com estoque médio de R$ 13.272 (um salário-mínimo). O Varejo de Alta Renda eram 15 milhões de contas com média R$ 100 mil.

Evidentemente, essa média per capita é enganadora, pois muitos idosos da Classe Média Alta se tornam milionários em reais sem atingir a faixa do Private Banking de milionários em dólares.

Embora a influência dos movimentos sociais possam se expandir com a democracia, isso raramente acontece em detrimento de grupos de interesses poderosos. Na verdade, esses grupos organizados em lobbies se beneficiam mais com a democracia em comparação a grupos maiores sem organização política para ações coletivas.

Governos democratas gastam em programas sociais destinados aos necessitados da população. Ao mesmo tempo, mantém os interesses de grupos numericamente pequenos, mas com grande poder político. Essa contradição se aguça em Frente Ampla.

A esquerda luta pela implantação de políticas fiscais progressivas para tributar mais os indivíduos de maior renda e fornecer benefícios fiscais para os de renda mais baixa. Mas o Congresso Nacional barra ou não a implementa com celeridade, por exemplo, a tributação de lucros e dividendos e a mudança da estrutura tributária regressiva.

Programas de transferência de renda direcionados a grupos mais vulneráveis também desempenham um papel importante para diminuição da pobreza, bem como de acesso à educação de qualidade com investimento em sistemas educacionais abrangentes e acessíveis. Isso inclui garantir educação pré-escolar de qualidade, acesso a escolas bem equipadas em todas as comunidades e programas de bolsas de estudo para estudantes de baixa renda. A política de cotas em Universidades públicas é um excelente exemplo.

A implantação de sistemas de saúde universalmente acessíveis (como o SUS) deve ser acompanhada de qualidade igual para todos. O acesso universal a cuidados de saúde, medicamentos e serviços preventivos contribui para reduzir as disparidades de saúde e, por extensão, obter as condições físicas para ter oportunidades de trabalho.

O mercado de trabalho deve ser inclusivo, com promoção de políticas em combate à discriminação no local de trabalho e garantidoras da igualdade de oportunidades. Iniciativas para reduzir as disparidades salariais de gênero e minorias são exemplos.

Quanto ao trabalhismo, o fortalecimento dos sindicatos para a negociação coletiva busca garantir condições de trabalho justas, benéficas e benefícios adequados. Isso contribui para equilibrar o poder entre executivos da cúpula e trabalhadores da base.

O desenvolvimento de políticas habitacionais, para garantir moradia acessível para todos, talvez seja o meio mais eficaz para aumento da riqueza (“casa própria”) das famílias de baixa renda. Isso inclui programas de habitação social, regulamentações para evitar a especulação imobiliária e de incentivos para a construção de moradias a preços acessíveis.

Deve ser acompanhado da facilitação do acesso a crédito e capital para empreendedores de comunidades de baixa renda. Iniciativas para promover o empreendedorismo e o desenvolvimento de pequenos negócios podem contribuir para a criação de riqueza em comunidades desfavorecidas. Não soluciona, socialmente, mas ajuda a muitos. A implementação de programas de inclusão social, abordando questões específicas enfrentadas por grupos marginalizados, como pessoas com deficiência, minorias étnicas e LGBTQ+, a direita não aprecia. Mas é uma questão civilizatória!

Os programas de combate à pobreza fornecem assistência direta a indivíduos e famílias em situação de vulnerabilidade. Isso pode incluir programas de assistência alimentar, habitação subsidiada e serviços de cuidados infantis.

Por fim, a garantia de equidade ambiental, para comunidades de baixa renda, evita a poluição ambiental e promove o acesso a ambientes saudáveis com saneamento. Geralmente, a combinação de todas essas abordagens é necessária para alcançar resultados significativos na redução da pobreza e/ou da desigualdade social.

Posso ainda citar a empregabilidade e o treinamento profissional para atender às demandas do mercado de trabalho; o salário mínimo adequado; segurança social e redes de proteção para famílias de baixa renda; seguro-desemprego e pensões para um suporte financeiro essencial; promoção da inclusão financeira por meio do acesso a serviços bancários e microcrédito; apoio ao desenvolvimento de pequenos negócios e empreendedorismo por meio de programas de treinamento, acesso a crédito e incentivos fiscais; implantação de políticas para o desenvolvimento rural sustentável, incluindo investimentos em infraestrutura e diversificação da economia local; garantia de acesso à tecnologia e conectividade com a promoção da inclusão digital.

Embora tenha inviabilidade política de ser aprovada no Congresso Nacional uma explícita política da desconcentração de renda e riqueza, essas políticas públicas do Poder Executivo eleito estão adaptadas às especificidades do atual contexto. Implicitamente, afetando diversos componentes, levam a alcançar a meta estratégica.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP).

Carta Mensal – Setembro 2023

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O mês de setembro se caracterizou por grandes incertezas e instabilidades, de um lado, percebemos que o comportamento da economia brasileira apresentou alguma melhora, criando grandes esperanças e expectativas positivas, levando o governo federal a espasmos de euforia. Neste período foram enviados ao Congresso Nacional, medidas econômicas importantes e imprescindíveis para o comportamento da economia nacional, partindo do pressuposto de que o novo governo está tentando alterar ou reverter o modelo econômico criado pelo governo anterior, deixando de lado as privatizações, desestimulando medidas liberais ou ultraliberais centradas da diminuição do governo nacional, que foram adotadas em períodos recentes.

Vivemos um momento importante para a economia nacional, com modelos econômicos se digladiando, um mais entreguista, mais internacionalista, mais privatizante, centrado em redução do Estado na economia, com menos políticas públicas e baseado em um discurso fortemente moral e religioso. De outro lado, encontramos uma discussão mais intervencionista, mais centrado em políticas públicas, com mais Estado Nacional e mais atuação no contexto internacional.

Na verdade, os dois modelos econômicos e políticos são diferentes, com trajetórias opostas e podem ser definidos, um mais de centro esquerda e o outro mais de direita, embora sabemos que essas definições são pouco precisas, pois ambas adotam políticas que perpassam vários campos políticos e ideológicos, essa discussão gera grandes constrangimentos para a economia nacional.

Destacamos as mais repercussões políticas das descobertas da CPMI do 08 de janeiro, que levaram várias personagens ao crivo de depoimentos e constrangimentos variadas, com ex-Ministros de Estado, representantes militares, policiais, políticos e variados pessoas importantes pelos governos anteriores, acionando conflitos constantes nos mais variados campos políticos, aumentando os confrontos entre grupos sociais e políticos e contribuíram para a piora do ambiente institucional.

Destacamos as discussões no campo político, de um lado encontramos um governo com frágil força política no Congresso Nacional, sabendo que o Executivo possui apenas algo em torno de 140 deputados, que exigem uma constante negociação política, que na verdade não seria um grande problema se as discussões fossem mais qualificadas, infelizmente, percebemos uma discussão pobre e centrado em ganhos imediatos, sem uma visão mais consistente para a sociedade nacional, apenas interesses mesquinhos e individualistas.

Percebemos no front externo que o Brasil vem fazendo bonito nas foros internacionais, discursos exaltados, abordando temas de grande relevância para a comunidade internacional, levando assuntos importantes que a própria sociedade global não tem interesse de abordar com profundidade, destacamos as questões energéticas, a economia verde, os recursos globais que deveriam ser canalizados para as economias em desenvolvimento em prol da sustentabilidade, além da miséria global, o crescimento da exclusão mundial, as questões relacionadas aos conflitos militares que crescem no mundo contemporâneo, gerando incertezas adicionais, não esquecendo que vivemos numa sociedade centrada em grandes destruições e incertezas elevadas.

Na economia nacional, percebemos que o governo federal vem fazendo variados esforços para recuperar a economia nacional, mas muitos indicadores apresentam dificuldades de melhorarem no curto prazo, mesmo percebendo a queda nas taxas de juros, que caíram para 12,75% no mês de setembro, percebemos que a queda é insuficiente para incrementar o crescimento da economia brasileira. Muitos analistas liberais e profissionais de mercado acreditam que a questão fiscal é o grande nó da economia nacional, embora nosso endividamento não esteja nas estrelas como acontecem em economias mais desenvolvidas, essa discussão é rechaçada por esses economistas.

Outro assunto que movimentou as discussões nacionais no mês de setembro foi as questões relacionadas ao Novo Ensino Médio, que mobilizou os especialistas na área da educação, com pareceres variados e relatórios de instituições ligadas ao tema, como forma de influenciar a discussão. Desta discussão, o governo federal encaminhou ao Congresso Nacional uma proposta que podem gerar grandes debates, movimentando interesses variados e conversas acaloradas. Neste cenário, surgiram novas informações referentes a educação superior, onde foram divulgados dados preocupantes, onde mais de 66% dos graduandos nas faculdades estão nos cursos a distância, além de percebermos que cinco instituições privadas abrigam mais de 27% das matrículas, um dado assustador com grandes repercussões para a educação nacional, onde essas cinco instituições possuem mais matriculados do que todos os graduandos nas universidades federais.

Depois de nove meses do terceiro governo Lula, percebemos que o governo federal apresenta grandes dificuldades de impor sua agenda para a nação, os grupos oposicionistas se juntam para atrapalhar o governo, com acusações maldosas e inconsistentes, convocando Ministros para gerar constrangimentos, são pessoas pouco qualificadas pelo cargo que assumiram, sem propostas e, na imensa maioria, conseguiram ser eleitos com uma agenda de ultradireita, defendendo confrontos constantes, posse de armas para a população e discussões infrutíferas como as da escola de partido, um verdadeiro atraso institucional que tende a gerar grandes retrocesso para a sociedade brasileira.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Argentina: O voto dos desesperados, por Gilberto Maringoni.

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Impulsionado pela crise econômica, Javier Milei ainda é um fenômeno individual. Sua eleição não mudou a composição do Congresso, nem governos das províncias. Mas ameaça Mercosul e Unasul, cria base forte do fascismo e acende luz amarela para Lula

Gilberto Maringoni – OUTRAS PALAVRAS – 21/11/2023

A onda chegou à Argentina. Um bufão, cujo programa máximo implica demolir, serrar, vender ou jogar fora pedaços do Estado nacional, é o novo fenômeno eleitoral do Sul global. Javier Milei tornou-se a válvula de escape para uma população exaurida por anos de sobressaltos econômicos sem fim.

Sua eleição representa uma derrota histórica para a democracia do país, exatos quarenta anos após o fim da ditadura militar (1976-1983). Para as camadas populares é a combinação de ilusão e tragédia. E trata-se de revés estratégico para os setores progressistas da América Latina.

O personagem eternamente descabelado e dado a rompantes de escândalo representa o desencanto transformado em poderosa força política. Uma espécie de fascismo pop, ora fantasiado de Batman, ora revelando manter conversas mediúnicas com Conan, cão de estimação morto em 2017. O duce da motosserra é apelidado de “libertário” por uma mídia complacente, numa vaga alusão aos rebeldes franceses de 1968, que à época mereciam o mesmo qualificativo. A coreografia catártica da nova extrema-direita é a da rebelião contra “as castas”, “a mentira” e “os políticos”, prometendo terra arrasada como solução de todas as crises e passaporte para a prosperidade.

Pregação ultraliberal

Quando se elegeu deputado federal pela província de Buenos Aires em 2021, Javier Milei era pouco mais que um ilustre desconhecido do grande público. A partir de uma incendiária pregação ultraliberal, irrompeu na cena nacional a partir das Paso (eleições Primárias, Abertas,

Simultâneas e Obrigatórias), realizadas em 13 de agosto último. A partir daí tomou gosto por declarações feitas sob medida para chocar o eleitorado, colocar adversários na defensiva e lacrar nas redes sociais e na mídia. À dolarização da economia, a demolição do Banco Central, a extinção da maioria dos ministérios, entre outras bizarrices, somaram-se petardos ao Papa Francisco: “imbecil que defende a justiça social”, “representante maligno” e “apoiador de ditaduras sanguinárias”.

Desde então, não faltaram comparações com o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro. Há pontos de contato e há diferenças notáveis entre ambos. A mais significativa, talvez, esteja no fato de Milei até aqui não comandar uma onda reacionária tão enraizada socialmente, a exemplo do ex-capitão.

Vamos lembrar. Bolsonaro conquistou uma base congressual significativa em 2018, expressão de uma virada moralista-conservadora inédita na história da República. Sólidos apoios em setores empresariais – em especial no varejo – e evangélicos (que alcançam 31% da população brasileira) garantiram legitimidade social ao governo mesmo nos piores momentos da pandemia.

Na Argentina, por sua vez, os correligionários do recém-eleito no Congresso representam menos de 15% do total. Entre os 257 assentos na Câmara, sua coligação Liberdade Avança obteve apenas 35 cadeiras. Entre os 72 senadores, a proporção se repete: são 8 os representantes da aliança, que não elegeu nenhum governador nas 23 províncias.

É claro que o jogo político cotidiano e a capacidade de atração do poder Executivo tende a alterar tais proporções. Mas é importante observar que Milei não transferiu votos ou abalou as lideranças dos partidos tradicionais em suas bases. Até aqui, ele aparenta representar mais um fenômeno individual – no segundo turno perdeu apenas em três províncias – do que uma tendência consolidada. Vale ressaltar: enquanto ainda não adentrou a Casa Rosada e não se valeu dos poderes de Estado.

Para compreender o fenômeno Milei é necessário examinar o terreno no qual cresceu e quais foram os fertilizantes de sua arrancada.

Impulsionado pela crise

Milei é produto do caos produzido pela crise inflacionária e descontrole cambial, aliado à impotência oficial para realizar intervenções em uma economia endividada em dólar e com sérias dificuldades de acesso ao mercado internacional de crédito, desde a moratória de parte de sua dívida externa, em 2005. No último 12 de outubro, o Banco Central elevou a taxa de juros de 118% para 133% ao ano. Com uma inflação anual de 138,3%, a taxa real alcança pouco mais de 5%. Na raiz das turbulências, entre outras causas, estão as condições draconianas impostas pelo FMI para conceder um empréstimo de US$ 57 bilhões, o maior da história da instituição, em 2018, penúltimo ano da gestão Macri.

A Argentina jamais obteve uma recuperação consistente após a crise de 2008. A essa situação somam-se a queda dos preços das commodities entre 2013-2016 e a forte oscilação do PIB durante a pandemia. No ano passado, o PIB cresceu 5,2% e os indicadores de emprego ficaram abaixo dos 10%. Trata-se, contudo, de um crescimento com concentração de renda. Cerca de 40% da população vive abaixo da linha de pobreza, enfrentando alta precarização laboral e perda de direitos sociais. A falta de perspectivas espalha-se entre a juventude. Em outubro de 2021, uma pesquisa realizada pela Universidade Argentina da Empresa (UADE) constatou que 75% dos argentinos entre 16 e 24 anos desejava sair do país.

O país depende quase exclusivamente das exportações para internalizar dólares necessários ao equilíbrio de suas contas. É um problema que dificilmente Milei poderá resolver no médio prazo.

Sem moeda forte disponível, a proposta de dolarização só será factível com uma megadesvalorização do peso, retirada de todos os subsídios da economia – o que pode quintuplicar os preços de energia elétrica, por exemplo –, forte arrocho salarial e aumento do desemprego.
São medidas factíveis com uso de forte repressão.

Decorrências para o Brasil

De imediato, vale a pena examinar as principais decorrências para o Brasil. O Mercosul, que enfrenta profundas divergências internas – como a perspectiva do acordo com a União Europeia capitaneado pelo Brasil e as tratativas isoladas entre o Uruguai e a China – corre o risco de ser interrompido. Outros organismos de integração regional, a exemplo da Unasul (União das Nações Sul-Americanas) e da Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) devem se enfraquecer. Ainda é cedo para falar das relações comerciais. Além disso, a extrema-direita global volta a ter uma base institucional forte no continente.

O resultado das urnas do outro lado do rio da Prata deve acender uma luz amarela no governo Lula. Eleito numa jornada memorável contra a extrema-direita, a administração empossada em 1º de janeiro decidiu tocar burocraticamente a vida, como se não vivêssemos em tempos excepcionais interna e externamente. Políticas de contemporização em todas as áreas – militar, diplomática e parlamentar, em especial – e a adoção de um duro arcabouço fiscal que provocará contração do investimento público, com planos de cortes nos pisos constitucionais de saúde e educação, privatizações a granel via parcerias público-privadas e contração fiscal que possivelmente provocará uma recessão em 2024 arrisca corroer os índices de aprovação popular do governo. O país vive um interminável ajuste fiscal desde o início do primeiro mandato de Dilma Rousseff, em 2011, cuja consequência tem sido medíocres taxas de crescimento econômico.

A rota do ajuste interminável é semelhante à seguida por Alberto Fernández. Embora Brasil e Argentina vivam realidades distintas e a economia brasileira seja muito maior, uma contração nos próximos anos pode trazer resultados políticos preocupantes. Em especial se lembrarmos que a extrema-direita brasileira segue ativa nas Forças Armadas, no Congresso e nos governos dos quatro estados do Sudeste, que somam 68% do PIB nacional. Embora derrotado eleitoralmente, o neofascismo pátrio segue ativo politicamente. Um perigo para 2026.

Escolhas estratégicas

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Vivemos momentos de grandes transformações em todas as regiões do mundo, com o incremento da globalização, centrado na forte concorrência e pela competição entre os atores econômicos e produtivos, cujos impactos ainda se fazem sentir em toda a comunidade global, exigindo escolhas estratégicas sólidas e consistentes pela sociedade, pelos governos e pelo setor privado, como forma de manter o dinamismo econômico das nações, compreendendo os desafios do mundo contemporâneo e capacitando seus trabalhadores para reduzirem as desigualdades de renda, cujo crescimento pode gerar graves constrangimentos para os países, desequilíbrios sociais e polarizações políticas, como a que estamos visualizando em todas as regiões do mundo, enfraquecendo a democracia e constrangendo as nações.

Neste cenário, faz-se fundamental que todos os agentes econômicos nacionais se unam para redesenhar um futuro mais consistente para toda a comunidade, rompendo amarras que limitam o desenvolvimento econômico nacional, aproveitando as oportunidades que a economia verde pode possibilitar e deixando de lado políticas concentradoras de renda e a manutenção de privilégios de grupos sociais e econômicos que limitam a efetiva e verdadeira democracia nacional.

Estamos vivendo num momento marcado por grandes transformações na estrutura global, onde os setores econômicos buscam novas formas de organização produtiva e novos modelos econômicos, onde o Brasil se destaca como um grande ator internacional. Nossa sociedade apresenta vantagens que poucas nações do mundo apresentam, somos dotados de grande potencial energético, variadas formas de geração de energia, desta forma, muitas empresas e governos internacionais tem grande interesse no potencial brasileiro, mas para que nós consigamos sair de promessas e nos transformarmos em uma grande realidade, precisamos retomar comportamentos estratégicos, criando espaços de união, consolidando a soberania nacional, usando nosso forte potencial para compreendermos as grandes mudanças geopolíticas em curso na sociedade internacional, fortalecendo nossos espaços de desenvolvimento econômico, com melhorias sociais palpáveis, privilegiando os investimentos em educação, saúde pública e a pesquisa científica, consolidando as instituições nacionais e inserindo todos os grupos sociais na construção de uma verdadeira democracia.

Neste momento, percebemos que muitas nações desenvolvidas apresentam interesses em investimentos na economia brasileira, vislumbrando seu imenso potencial energético, seus gigantescos recursos minérios e sua vastidão espacial. Neste cenário, percebemos que está sendo aberta uma grande oportunidade para uma transformação nacional, exigindo um atuação conjunta entre todos os setores públicos e privados, deixando de lado rixas e questões ideológicas ultrapassadas, utilizando deste potencial para exigir e negociar com nossos parceiros internacionais contrapartidas que tragam melhoras substanciais para a sociedade brasileira, exigindo transferência de tecnologias, parceiros nacionais, compras internas e fortes investimentos na economia local, deixando para trás momentos anteriores que governos aceitaram os recursos externos sem cobranças, sem projetos nacionais e sem perspectivas de ganhos posteriores, melhorando as condições de uns em detrimento de outros.

Em todas as nações do mundo que conseguiram alçar o tão sonhado desenvolvimento econômico, o Estado nacional teve um papel central e importantíssimo, negociando com investidores externos e contrapartidas econômicas e produtivas, com geração de empregos e a melhoria na infraestrutura interna, capacitando a sociedade para dar um salto no desenvolvimento econômico, com forte investimento em capital humano, aumento de recursos para pesquisa, ciência e tecnologia, sem isso, o crescimento econômico seria sempre localizado e concentrado em poucos setores da sociedade.

Neste momento, estamos diante de escolhas estratégicas, somos uma nação centrada na desigualdade de renda e de oportunidades, com essa janela de oportunidade que está se abrindo para a sociedade brasileira, precisamos planejar os nossos passos, estudar nossas escolhas, negociar caminhos e compreender o que queremos ser quando crescer.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

A ideologia meritocrática, por Jean Pierre Chauvin

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Jean Pierre Chauvin – A Terra é Redonda – 26/09/2021

Considerações sobre um texto de Marilena Chaui

No dia 24 de setembro assisti à mesa de abertura do VI Salão do Livro Político – evento que nesta edição reúne 68 editoras afinadas com o mote da democracia e da bibliodiversidade. A sessão contou com a presença de Sabrina Fernandes, Manuela d’Ávila e Marilena Chaui, sob a mediação de Ivana Jinkings. Afora as belas homenagens a Jacó Guinsburg, Sérgio Mamberti, Aldir Blanc, Flávio Migliaccio e a tantos outros companheiros que nos deixaram nos últimos tempos, as falas foram muito relevantes e oportunas.

Estimulado pela discussão, e em especial pelas falas de Marilena Chaui, pretendi estender o diálogo para além da Internet. Fui até a estante onde estão os seus livros, em busca de textos que descrevem e problematizam certos comportamentos da classe média brasileira.

É de lá que extraio o que segue: “[O advogado] está convencido de que o objetivo supremo é “subir na vida” e que a “subida” depende da vontade individual; porque aceitou a impotência política em troca das migalhas do “milagre econômico” que lhe deram a ilusão do poder pela posse e o consumo de objetos ostentáveis, sinais de sua diferença em face das classes populares; porque, paradoxalmente, atribui ao Estado a responsabilidade por aquilo que considera depender exclusivamente dos indivíduos, tendo dificuldade para conciliar seu moralismo diante da corrupção dos mandantes e sua ideologia do “vencer na vida”, está hoje em pânico perante a ameaça de perda de suas posses pela incompetência do Estado e pela violência do assalto”.[i]

O diagnóstico soa atualíssimo, não? Por isso mesmo, talvez o leitor se espante ao saber que o artigo em questão foi publicado num jornal paulistano de grande circulação em 16 de janeiro de 1984, em resposta contundente a uma série de lugares comuns reiterados e manejados com cinismo por pessoas de várias camadas sociais e profissões: da “funcionária do correio” ao “dono do bar”; do “engenheiro da obra na esquina” à “psicóloga”.

Pergunto-me há algum tempo. A ideologia meritocrática pressupõe que “O sol nasce para todos” e que, para “subir na vida” basta agarrar toda e qualquer oportunidade. A questão persiste. Segundo essa lógica, as desigualdades sociais, a falta de oportunidades de estudo, emprego, saneamento, transporte, moradia e saúde seriam compensadas graças ao esforço individual e, eventualmente, ao gesto paternalista dos micro, pequenos, médios e grandes empresários.

Ora, ainda que aceitássemos essa falácia como índice da verdade, o que fazer com aqueles que não “abraçaram” as raras “oportunidades” que a vida generosamente ofereceu? Deixá-los debaixo dos viadutos, a implorar por cobertor e comida? Massacrá-los sob o pretexto da “desordem” que produzem? Atingi-los com jatos de água, durante verdadeiras operações de guerra, em que a farda armada enxerga o trapo despossuído como inimigo do estado e estorvo da sociedade “de bem” paulistana?

O artigo em questão também remete a três coisas que Marilena Chaui enfatizou durante suas intervenções na mesa de abertura do VI Salão do Livro Político: (1) O Estado brasileiro é tão autoritário quanto a sociedade que o sustenta ideologicamente; (2) Essa sociedade supõe que é um ato legítimo da classe média manter privilégios (ou seja, particularizar, privatizar os direitos), enquanto as classes populares devem se virar, por conta própria, em torno das múltiplas carências socioeconômicas, culturais, de trabalho, moradia, saúde etc.; (3) A ascensão do atual governo se explica, em grande parte, pela existência de uma sociedade estruturada de modo que uns mandem e outros obedeçam, em que sobressaem crueldade e cinismo na relação com os outros.

Eu suma, o combustível dos bolsonaristas e demais cúmplices da barbárie (anunciada desde o desgoverno de Michel Temer) não é a alegria, o amor, a esperança e a solidariedade; mas a tristeza, o ódio (pelo outro), o medo e o egoísmo. A relação ambivalente com o Estado é um dos traços que orientam essa gente de estirpe, que só vê radicalismo político onde há proposta de soluções para os problemas estruturais da falta de moradia, alimentação, estudo e trabalho.

É impressionante que uma parcela considerável dessas “pessoas de bem” tenha dado tamanho crédito ao mitô-mano e aos ministros, todos muito eficientes em negar evidências e destruir as poucas garantias sociais e sanitárias que havia. Mais estarrecedor ainda é constatar que a mentira foi (e continua sendo) adotada como princípio e método de um grupo tacanho que apostou na assunção de monstros como “alternativa” à “velha política”. Elegê-los foi um ato de cinismo. Persistir em sua defesa cega é sintoma manifesto da maior hipocrisia.

*Jean Pierre Chauvin é professor na Escola de Comunicações e Artes da USP.
Nota
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[i] Marilena Chaui. “E se a Classe Média Mudasse?”. In: SANTIAGO, Homero (org.). Conformismo e Resistência. Belo Horizonte, Autêntica, 2014, p. 283.

Neoliberalismo: a nova forma do totalitarismo, por Marilena Chauí

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Marilena Chauí – A Terra é Redonda – 06/10/2019

Tornou-se corrente nas esquerdas o uso de termos fascismo e neofascismo para descrever criticamente nosso presente.

Estamos acostumados a identificar o fascismo com a presença do líder de massas como autocrata. É verdade que, hoje, embora os governantes, não se alcem à figura do autocrata, operam com um dos instrumentos característico do líder fascista, qual seja, a relação direta com “o povo”, sem mediações institucionais e mesmo contra elas. Também, hoje, se encontram presentes outros elementos próprios do fascismo: o discurso de ódio ao outro – racismo, homofobia, misoginia; o uso das tecnologias de informação que levam a níveis impensáveis as práticas de vigilância, controle e censura; e o cinismo ou a recusa da distinção entre verdade e mentira como forma canônica da arte de governar.

No entanto, não emprego esse termo por três motivos: (a) porque o fascismo tem um cunho militarista que, apesar das ameaças de Trump à Venezuela ou ao Irã, as ações de Nathanayu sobre a faixa de Gaza, ou a exibição da valentia do homem armado pelo governo Bolsonaro e suas ligações com as milícias de extermínio, não podem ser identificados com a ideia fascista do povo armado; (b) porque o fascismo propõe um nacionalismo extremado, porém a globalização, ao enfraquecer a ideia do Estado-nação como enclave territorial do capital, retira do nacionalismo o lugar de centro mobilizador da política e da sociedade; (c) porque o fascismo pratica o imperialismo sob a forma do colonialismo, mas a economia neoliberal dispensa esse procedimento usando a estratégia de ocupação militar de um espaço delimitado por um tempo delimitado para devastação econômica desse território, que é abandonado depois de completada a espoliação.
Em vez de fascismo, denomino o neoliberalismo com o termo totalitarismo, tomando como referência as análises da Escola de Frankfurt sobre os efeitos do surgimento da ideia de sociedade administrada.

O movimento do capital transforma toda e qualquer realidade em objeto do e para o capital, convertendo tudo em mercadoria, instituindo um sistema universal de equivalências próprio de uma formação social baseada na troca pela mediação de uma mercadoria universal abstrata, o dinheiro.

A isso corresponde o surgimento de uma prática, a da administração, que se sustenta sobre dois pilares: o de que toda dimensão da realidade social é equivalente a qualquer outra e por esse motivo é administrável de fato e de direito, e o de que os princípios administrativos são os mesmos em toda parte porque todas as manifestações sociais, sendo equivalentes, são regidas pelas mesmas regras. A administração é concebida e praticada segundo um conjunto de normas gerais desprovidas de conteúdo particular e que, por seu formalismo, são aplicáveis a todas as manifestações sociais. A prática administrada transforma uma instituição social numa organização.

Uma instituição social é uma prática social fundada no reconhecimento público de sua legitimidade e de suas atribuições, num princípio de diferenciação que lhe confere autonomia perante outras instituições sociais, sendo estruturada por ordenamentos, regras, normas e valores de reconhecimento e legitimidade internos. Sua ação se realiza numa temporalidade aberta ou histórica porque sua prática a transforma segundo as circunstâncias e suas relações com outras instituições.

Em contrapartida, uma organização se define por sua instrumentalidade, fundada nos pressupostos administrativos da equivalência. Está referida ao conjunto de meios particulares para obtenção de um objetivo particular, ou seja, não está referida a ações articuladas às ideias de reconhecimento externo e interno, de legitimidade interna e externa, mas a operações, isto é, estratégias balizadas pelas ideias de eficácia e de sucesso no emprego de determinados meios para alcançar o objetivo particular que a define. É regida pelas ideias de gestão, planejamento, previsão, controle e êxito, por isso sua temporalidade é efêmera e não constitui uma história.
Por que designar o neoliberalismo como o novo totalitarismo?

Totalitarismo: por que em seu núcleo encontra-se o princípio fundamental da formação social totalitária, qual seja, a recusa da especificidade das diferentes instituições sociais e políticas que são consideradas homogêneas e indiferenciadas porque são concebidas como organizações. O totalitarismo é a afirmação da imagem de uma sociedade homogênea e, portanto, a recusa da heterogeneidade social, da existência de classes sociais, da pluralidade de modos de vida, de comportamentos, de crenças e opiniões, costumes, gostos e valores.

Novo: por que, em lugar da forma do Estado absorver a sociedade, como acontecia nas formas totalitárias anteriores, vemos ocorrer o contrário, isto é, a forma da sociedade absorve o Estado. Nos totalitarismos anteriores, o Estado era o espelho e o modelo da sociedade, isto é, instituíam a estatização da sociedade; o totalitarismo neoliberal faz o inverso: a sociedade se torna o espelho para o Estado, definindo todas as esferas sociais e políticas não apenas como organizações, mas, tendo como referência central o mercado, como um tipo determinado de organização: aempresa – a escola é uma empresa, o hospital é uma empresa, o centro cultural é uma empresa, uma igreja é uma empresa e, evidentemente, o Estado é uma empresa.

Deixando de ser considerada uma instituição pública regida pelos princípios e valores republicano-democráticos, passa a ser considerado homogêneo ao mercado. Isto explica porque a política neoliberal se define pela eliminação de direitos econômicos, sociais e políticos garantidos pelo poder público, em proveito dos interesses privados, transformando-os em serviços definidos pela lógica do mercado, isto é, a privatização dos direitos, que aumenta todas as formas de desigualdade e exclusão.

O neoliberalismo vai além: encobre o desemprego estrutural por meio da chamada uberização do trabalho e por isso define o indivíduo não como membro de uma classe social, mas como um empreendimento, uma empresa individual ou “capital humano”, ou como empresário de si mesmo, destinado à competição mortal em todas as organizações, dominado pelo princípio universal da concorrência disfarçada sob o nome de meritocracia.

O salário não é visto como tal e sim como renda individual e a educação é considerada um investimento para que a criança e o jovem aprendam a desempenhar comportamentos competitivos. O indivíduo é treinado para ser um investimento bem sucedido e para interiorizar a culpa quando não vencer a competição, desencadeando ódios, ressentimentos e violências de todo tipo, destroçando a percepção de si como membro ou parte de uma classe social e de uma comunidade, destruindo formas de solidariedade e desencadeando práticas de extermínio.

Quais são as consequências do novo totalitarismo?

– social e economicamente, ao introduzir o desemprego estrutural e a terceirização toyotista do trabalho, dá origem a uma nova classe trabalhadora denominada por alguns estudiosos com o nome de precariado para indicar um novo trabalhador sem emprego estável, sem contrato de trabalho, sem sindicalização, sem seguridade social, e que não é simplesmente o trabalhador pobre, pois sua identidade social não é dada pelo trabalho nem pela ocupação, e que, por não ser cidadão pleno, tem a mente alimentada e motivada pelo medo, pela perda da autoestima e da dignidade, pela insegurança;

– politicamente põe fim às duas formas democráticas existentes no modo de produção capitalista: (a) põe fim à socialdemocracia, com a privatização dos direitos sociais, o aumento da desigualdade e da exclusão; (b) põe fim à democracia liberal representativa, definindo a política como gestão e não mais como discussão e decisão públicas da vontade dos representados por seus representantes eleitos; os gestores criam a imagem de que são os representantes do verdadeiro povo, da maioria silenciosa com a qual se relacionam ininterruptamente e diretamente por meio do twitter, de blogs e redes sociais – isto é, por meio do digital party –, operando sem mediação institucional, pondo em dúvida a validade dos parlamentos políticos e das instituições jurídicas, promovendo manifestações contra eles; (c) introduz a judicialização da política, pois, numa empresa e entre empresas, os conflitos são resolvidos pela via jurídica e não pela via política propriamente dita. Em outras palavras, sendo o Estado uma empresa, os conflitos não são tratados como questão pública e sim como questão jurídica, no melhor dos casos, e como questão de polícia, no pior dos casos; (d) os gestores operam como gangsters mafiosos que institucionalizam a corrupção, alimentam o clientelismo e forçam lealdades. Como o fazem? Por meio do medo. A gestão mafiosa opera por ameaça e oferece “proteção” aos ameaçados em troca de lealdades para manter todos em dependência mútua. Como os chefes mafiosos, os governantes também têm os consiglieri, conselheiros, isto é, supostos intelectuais que orientam ideologicamente as decisões e os discursos dos governantes, estimulando o ódio ao outro, ao diferente, aos socialmente vulneráveis (imigrantes, migrantes, refugiados, lgbtq+, sofredores mentais, negros, pobres, mulheres, idosos) e esse estímulo ideológico torna-se justificativa para práticas de extermínio; (e)transformam todos os adversários políticos em corruptos, embora a corrupção mafiosa seja, praticamente, a única regra de governo; (f) têm controle total sobre o judiciário por meio de dossiês sobre problemas pessoais, familiares e profissionais de magistrados aos quais oferecem “proteção” em troca de lealdade completa (e quando o magistrado não aceita o trato, sabe-se o que lhe acontece);

– ideologicamente, com a expressão “marxismo cultural”, os gestores perseguem todas as formas e expressões do pensamento crítico e inventam a divisão da sociedade entre o bom povo, que os apoia, e os diabólicos, que os contestam. Por orientação dos consiglieri, pretendem fazer uma limpeza ideológica, social e política e para isso desenvolvem uma teoria da conspiração comunista, que seria liderada por intelectuais e artistas de esquerda. Os conselheiros são autodidatas que se formaram lendo manuais e odeiam cientistas, intelectuais e artistas, aproveitando-se do ressentimento que a extrema direita tem por essas figuras. Como tais conselheiros estão desprovidos de conhecimentos científicos, filosóficos e artísticos, empregam a palavra “comunista” sem qualquer sentido preciso: comunista significa todo pensamento e toda ação que questionem o status quo e o senso-comum (por exemplo: que a terra é plana; que não há evolução das espécies; que a defesa do meio ambiente é mentirosa; que a teoria da relatividade não tem fundamento, etc.). São esses conselheiros que oferecem aos governantes os argumentos racistas, homofóbicos, machistas, religiosos, etc., isto é, transformam medos, ressentimentos e ódios sociais silenciosos em discurso do poder e justificativa para práticas de censura e de extermínio;

– a dimensão planetária da forma econômica neoliberal faz com que não exista um “fora” do capitalismo, uma alteridade possível, levando à ideia de “fim da história”, portanto à perda da ideia de transformação histórica e de um horizonte utópico. A crença na inexistência da alteridade é fortalecida pelas tecnologias de informação, que reduzem o espaço ao aqui, sem geografia e sem topologia (tudo se passa na tela plana como se fosse o mundo) e ao agora, sem passado e sem futuro, portanto sem história (tudo se reduz a um presente sem profundidade). Volátil e efêmera, nossa experiência desconhece qualquer sentido de continuidade e se esgota num presente vivido como instante fugaz;

– a fugacidade do presente, a ausência de laços com o passado objetivo e de esperança em um futuro emancipado, suscitam o reaparecimento de um imaginário da transcendência. Assim, a figura do empresário de si mesmo é sustentada e reforçada pela chamada teologia da prosperidade, desenvolvida pelo neopentecostalismo. Mais do que isso. Os fundamentalismos religiosos e a busca da autoridade decisionista na política são os casos que melhor ilustram o mergulho na contingência bruta e a construção de um imaginário que não a enfrenta nem a compreende, mas simplesmente se esforça por contorná-la apelando para duas formas inseparáveis de transcendência: a divina (à qual apela o fundamentalismo religioso) e a do governante (à qual apela o elogio da autoridade forte).

Diante dessa realidade, muitos afirmam que vivemos num mundo distópico, no qual as distopias são concebidas sob a forma da catástrofe planetária e do medo. Vale a pena, entretanto, mencionar brevemente a diferença entre utopia e distopia.

A utopia é a busca de uma sociedade totalmente outra que negue todos os aspectos da sociedade existente. É a visão do presente sob o modo da angústia, da crise, da injustiça, do mal, da corrupção e da rapina, do pauperismo e da fome, da força dos privilégios e das carências, ou seja, o presente como violência nua. Por isso mesmo é radical, buscando a liberdade, a fraternidade, a igualdade, a justiça e a felicidade individual e coletiva graças à reconciliação entre homem e natureza, indivíduo e sociedade, sociedade e poder, cultura e humanidade. Uma utopia não é um programa de ação, mas um projeto de futuro que pode inspirar ações que assumem o risco da história, fundando-se na ação humana como potência para transformar a realidade, tornando-se imanentes à história, graças à ideia de revolução social.

A distopia tem um significado crítico inegável ao descrever o presente como um mundo intolerável, porém corre o risco de transformá-lo em fantasma e rumar para o fatalismo, a imobilidade e o desalento do fim da história. A utopia também parte da constatação de um mundo intolerável, mas em lugar de curvar-se a ele, trabalha para colocá-lo em tensão consigo mesmo para que dessa tensão surjam contradições que possam ser trabalhadas pela práxis humana. A imobilidade distópica decorre de sua estrutura fantasmática: nela, o intolerável não é o ponto de partida e sim o ponto de chegada. Ao contrário, a mobilidade utópica provém de sua energia como projeto e práxis, como trabalho do pensamento, da imaginação e da vontade para destruir o intolerável: o intolerável é seu ponto de partida e não o de chegada.

Se a utopia nasce da percepção do intolerável, da visão do presente sob o modo da angústia, da crise, da injustiça, do mal, da corrupção e da rapina, do pauperismo e da fome, da força dos privilégios e das carências, do presente como violência inaceitável, então não podemos abrir mão da perspectiva utópica nas condições de nosso presente.

*Marilena Chaui é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

Mercantilização do mundo

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Vivemos momentos de grandes inquietações econômicas e sociais, com impactos generalizados sobre todos os indivíduos, em todas as regiões do mundo, gerando ansiedades e expectativas de melhorias sociais, com grandes transformações no mundo do trabalho, com o surgimento de novas tecnologias que estão moldando os indivíduos, modificando comportamentos humanos e impactando sobre as famílias, os indivíduos e os relacionamentos, criando incertezas, instabilidades crescentes e medos cotidianos.

Nesta sociedade, o mundo contemporâneo estimula um ambiente constante de competição e performance constantes, a concorrência cresce de forma acelerada, o individualismo cresce na comunidade e estamos sempre valorizando os ganhos materiais e os lucros estratosféricos como forma de definirmos o sucesso e a posição social, depois nos assustamos ao percebermos que vivemos numa sociedade apodrecida e fortemente degradada, onde a solidariedade e os valores humanos e civilizacionais estão sendo deixados de lado. Estimulamos uma guerra cotidiana de todos contra todos, vivemos nos matando cotidianamente e acreditando que estamos sobrevivendo num mundo marcado pelo caos e pela ignorância, ledo engano, estamos desaparecendo todos os dias e todos os momentos, perdendo o poder de imaginar, de sonhar e de construir uma sociedade mais igualitária.

Vivemos numa sociedade em que os valores foram alterados rapidamente, os relacionamentos humanos foram transformados, a escolha da profissão nos traz grandes possibilidades, as escolas e as universidades perderam o monopólio do conhecimento, os professores perderam a centralidade, as formas de riqueza foram modificadas e o conceito de uma vida bem sucedida passou por mudanças estruturais. A classe média, sempre vista como um grupo social dotado de conhecimento, de uma civilidade e de cultura geral passou por mudanças perigosas e começou a flertar com um mundo paralelo, rechaçando a ciência e acreditando na meritocracia e se esquecendo da justiça social como cimento de organização social e de bem-estar dos indivíduos. Na sociedade contemporânea, os novos valores cultivados pela comunidade estão centrados no poder do capital, do dinheiro, da acumulação, do imediatismo e do individualismo, estamos valorizando informações desnecessárias e sem consistência, além de estarmos esperando um salvador da pátria, um mártir iluminado para nos retirar de um local que historicamente que nós nos colocamos pelas escolhas equivocadas, esdrúxulas e imediatistas.

Nesta sociedade, percebemos que a ciência está sendo deixada de lado quando as verdades constrangem os donos do poder, neste cenário, as alterações climáticas estão sendo colocadas em xeque por interesses mesquinhos e fundamentalistas daqueles que ganham com esta estrutura econômica e financeira, que patrocinam pesquisas enviesadas para comprovar questões relacionadas ao aquecimento global e as alterações climáticas, mesmo sabendo que, todos os dias, a natureza está mostrando que este modelo econômico e produtivo vai levar o planeta a uma destruição sem precedente.

O poder do imediatismo em detrimento do planejamento de longo prazo está levando os gestores, os agentes políticos e privados, os financistas e os empresários a apoiarem medidas de austeridade, acreditando que estas trarão o ambiente propício para os investimentos produtivos, se esquecendo de que as nações mais desenvolvidas estão mudando suas agendas econômicas e percebendo que esse modelo produtivo é insustentável, gerando degradação do meio ambiente, mais desigualdade social, concentração de renda, polarização política e conflitos sociais, internos e externos, além de guerras fratricidas, conflitos militares e embates comerciais degradantes.

A mercantilização do mundo está gerando conflitos constantes, deixando de lado a construção de uma sociedade mais igualitária, os embates crescem, os preconceitos se escancaram, as violências aumentam, os medos se incrementam e os rancores crescem. Estamos precisando refazer escolhas para aprendermos a convivência saudável .

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

A ideologia da privatização, por José Ricardo Figueiredo.

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José Ricardo Figueiredo – A Terra é Redonda – 13/11/2023

Quando a empresa é privatizada, um novo tipo de custo é introduzido, que é o lucro, a remuneração aos acionistas. Como reequilibrar o orçamento com a nova despesa?

O orçamento de uma empresa estatal, como a SABESP, precisa equilibrar as receitas com o conjunto das despesas: custos de remuneração do trabalho e de pagamento a fornecedores e de impostos. Se possível, convém ainda a formação de poupança para novos investimentos, para diminuir a dependência de empréstimos.

Quando a empresa é privatizada, um novo tipo de custo é introduzido, que é o lucro, a remuneração aos acionistas. Como reequilibrar o orçamento com a nova despesa? As alternativas, não excludentes entre si, são aumentar as receitas, aumentando o preço de seus serviços ou produtos, ou diminuir os custos trabalhistas, operacionais, fiscais e de investimento.

No caso de um setor monopolístico, como é o serviço de água e esgoto da grande São Paulo, o aumento de preços é solução simples, se houver apoio político. Não é o caso de uma empresa como a antiga Vale do Rio Doce, hoje Vale, que vende ao mercado mundial e, portanto, não pode controlar os preços de seus produtos. Em todas as situações, é relevante considerar as alternativas de corte de despesas.

Em qualquer área da economia, a primeira providência dos novos acionistas costuma ser o lançamento de um plano de demissão voluntária. No longo prazo virão as demissões involuntárias e a redução dos salários reais.

Em geral, reduzir a mão de obra, mantendo a produção, exige acumulação de funções pelo trabalhador e intensificação do processo de trabalho, de efeitos limitados. Mas a mão de obra e outros gastos podem ser drasticamente reduzidos, sem conseqüências imediatas, nos setores de manutenção e de prevenção de acidentes.

Existem, é claro, as conseqüências de longo prazo. O exemplo mais recente é o apagão da ENEL na grande São Paulo, que afetou quatro milhões de residências, durando até quatro ou cinco dias em algumas localidades. Antes, o apagão do Amapá durara todo um mês. Mais recentemente, os cariocas tiveram a surpresa e o desgosto de ver as torneiras de suas casas verterem um líquido marrom e mal cheiroso.

Com o rompimento da barragem de Mariana, a Vale, que retirara o Rio Doce do nome, retirou toda vida do Rio Doce até a foz, adentrando o oceano, depois de enterrar moradores no caminho da lama. Mas o rompimento da barragem de Brumadinho matou muito mais operários, mais que duas centenas.

Não são muito divulgados os números de acidentes de trabalho no Brasil; sabe-se que o número total de mortos é cerca de 3000 por ano. Ainda menos divulgada é a tendência de aumento de acidentes de trabalho após as privatizações, desde as primeiras, como a COSIPA em São Paulo.

A redução de pagamentos a fornecedores, mantendo a produção, demanda aquisição de insumos e serviços mais baratos, podendo comprometer a qualidade do produto ou serviço que oferece e, eventualmente, sua aceitação no mercado. Mas, no caso de empresa detentora de monopólio, é uma alternativa sedutora para os acionistas.

Redução de impostos é sempre buscada por empresários capitalistas, indo desde sonegação até sofisticada advocacia tributária e eficiente lobby político. Uma prática corrente é atrasar o pagamento de impostos e barganhar descontos no pagamento dos atrasados, que o Executivo acata pela urgência em obter recursos.

Novos investimentos seriam a única forma de aumentar a produtividade física do trabalho, pela incorporação de tecnologia. Afinal, o discurso privatista exalta a eficiência como virtude da economia privada. Mas novos investimentos são as despesas mais fáceis de serem cortadas, pois sua eliminação não encontra resistências. E são as despesas cujo retorno financeiro é o mais distante.

Portanto, uma análise lógica do orçamento, corroborada por fatos bem conhecidos, torna evidente que as privatizações costumam ser desfavoráveis para os consumidores, os trabalhadores, o meio ambiente e a arrecadação fiscal. A rigor, só são favoráveis para os novos acionistas.

Mas a ideologia da privatização abranja muito mais pessoas do que o número dos diretamente interessados, por causas conhecidas. Bancos e outras empresas do mercado financeiro, que têm profundo interesse nas privatizações, no desmonte do poder estatal, no esvaziamento do poder trabalhista, etc., são anunciantes importantes em toda imprensa comercial, além de serem acionistas, isto é, donos de alguns importantes órgãos. Esta imprensa transforma os interesses do mercado financeiro nos dogmas que tenta inculcar a seu público, e com eles pressionar os políticos.

Entretanto, alguns políticos se comportam com demasiada volúpia privatista. Um governante chega a comprometer seu próprio futuro político, insistindo na privatização mesmo quando o povo já se apercebeu do dano. Esforçam-se pela venda como dedicados corretores das riquezas da Pátria, mas não se comportam como tal.

Os corretores comerciais cobram percentagem do preço de venda, e se esforçam por valorizar seu produto. Os corretores da pátria comportam-se ao contrário. Acatam o discurso difamatório do que pretendem vender, de que as estatais seriam ineficientes por definição. E vendem por baixo.

Aceitam em pagamento moedas podres, títulos desvalorizados, pelo valor nominal. Aceitam preços de venda tão baixo quanto foi a Vale do Rio Doce, vendida pelo preço correspondente ao faturamento da empresa em três meses, ou a Telebrás, pelo preço correspondente ao investimento do governo na empresa nos três anos anteriores, ou, mais recentemente, a Refinaria Landulpho Alves, vendida por metade do valor de mercado.

Que explicação haveria para tamanha volúpia privatista? Uma hipótese é que tais corretores de Pátria esperariam receber alguma taxa de corretagem, informal, um percentual do quanto a empresa foi desvalorizada. Neste sentido, o livro A Privataria Tucana, do jornalista Amaury Ribeiro Jr, pesquisa a circulação financeira entre empresas off-shore de montantes com indícios de terem relação com as privatizações da Vale do Rio Doce e da Telebras. Já no caso da Landulpho Alves, a taxa de corretagem, tudo indica, foram as jóias das Arábias.

*José Ricardo Figueiredo é professor aposentado da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Modos de ver a produção do Brasil

Privatizar a Sabesp? por Rodrigo Zeidan

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Os consumidores estarão mais bem servidos por uma empresa pública ou privada?

Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Privatização é meio, não fim. No Brasil, a discussão sobre privatização é quase toda focada na “venda do patrimônio do Estado”. Ainda temos viúvas da Vale reclamando que vendemos a empresa por um valor muito baixo (mesmo que tenha sido um leilão aberto a qualquer grupo de investidores do mundo). Estado não tem como função ter patrimônio. A única coisa que deveria importar é: os consumidores estarão mais bem servidos por uma empresa pública ou privada? Nada mais.

Serviços públicos como água e esgoto, luz e telefonia são normalmente monopólios naturais. Em tais mercados, o ideal para a sociedade é que a entrada de novas empresas seja limitada ou impedida.

Por exemplo, não faz muito sentido que várias empresas possam oferecer redes de eletricidade em uma mesma área: teríamos sobreposição de redes de distribuição nas áreas mais ricas e falta de cabos nas regiões mais carentes. É por isso que tais serviços são regulados: o Estado leiloa o direito de explorar uma região com exclusividade desde que a empresa cumpra com algumas condições, como universalidade ou tetos de preços (ou metas de enterramento de fios).

Nada exemplifica melhor isso que a discussão sobre a privatização da Sabesp. Parte da oposição é sobre se os serviços de saneamento básico devem ser prestados por empresa concessionária sob controle acionário do Estado ou de terceiros. Mas isso é irrelevante. O que importa mesmo são os desenhos dos contratos e as formas de fiscalização das contrapartidas das empresas concessionárias.

Monopólios naturais são tão melhores para a sociedade quanto maior a qualidade da regulação. E esse foi nosso erro, como sociedade, nas últimas décadas. Criamos um arcabouço institucional decente com agências reguladores independentes, mas, ao longo do tempo, a qualidade destas foi caindo. Umas foram aparelhadas, outras capturadas pelas empresas reguladas, e só poucas continuam firme e forte trabalhando para que as empresas concessionárias cumpram seus deveres com a sociedade.

É possível que uma empresa puramente estatal entregue serviços de qualidade com preços baixos?

Sim. É também possível que o mesmo aconteça com empresas privadas, bem reguladas? Também. Mas, grosso modo, há também outras situações possíveis: empresas estatais ineficientes, que também investem menos que deveriam; e empresas privadas mal reguladas, resultando em serviços ineficientes, e, também, subinvestimento. No Brasil, muitas vezes escolhemos os dois piores modelos. Todavia, outra realidade é possível. Nós já privatizamos bem: as empresas de telefonia, em um primeiro momento, investiram sem parar na universalização de serviços, acabando com as filas por linhas de telefone, que eram patrimônio a ser lançado no Imposto de Renda.

No caso da Sabesp, a discussão não pode ser se seus controladores devem ser públicos ou privados.

Se a empresa investe pouco e entrega serviços ruins, o modelo deve ser modificado. Privatizar não é a única saída, mas pode funcionar (ganha um doce quem apresentar um plano de investimentos para a empresa com dinheiro público que tenha chance de ser eficiente dada a realidade da empresa hoje). A discussão deve ser: no processo de privatização, a regulação está sendo planejada de forma eficiente? É mais fácil fazer isso que colocar dinheiro público na empresa. Mas não é garantia de dar certo.

Mais uma vez, detalhes importam. Sempre.

GLO, péssima ideia, por Manuel Domingos Neto e Luiz Eduardo Soares

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Marinha e Aeronáutica já agem em portos e aeroportos. É teatro caro, para fingir segurança pública sem nada mudar. Os governantes estão perdidos. Até quando negarão a necessidade de uma reforma militar e uma profunda transformação das polícias?

Manuel Domingos Neto e Luiz Eduardo Soares

OUTRAS PALAVRAS – 08/11/2023

Mais uma vez, o Estado brasileiro faz o militar agir como policial. Alimenta a permanente crise de identidade das Forças Armadas e das corporações policiais.

Agora, o Exército não está nos espaços reservados aos sobreviventes da escravidão, da matança dos povos originários e da “vadiagem”. Mas a Marinha e a Aeronáutica atuam em portos e aeroportos, desperdiçando recursos públicos em atividades distantes de sua destinação precípua.

Em um mundo assombrado pela possibilidade de guerra generalizada, os governantes parecem despreocupados com a proteção do Brasil ante eventuais ameaças de forças estrangeiras hostis.

Essas duas obrigações do Estado, Defesa e Segurança Pública, são rigorosamente distintas: exigem equipamentos, organização, preparo e culturas diferentes. Enfrentar agressor estrangeiro nada tem a ver com tarefas envolvidas no controle das violações às leis.

Confundindo funções diferentes, o governo fragiliza a Defesa do Brasil e desprotege a cidadania. Alimenta a dependência externa e faz do cidadão que transgrida a lei um inimigo a ser abatido. Reafirma o conceito de “inimigo interno” propalado pelo Pentágono e assimilado pelas elites dirigentes brasileiras. Com “inimigo” não se conversa, se anula de qualquer forma.

Já o cidadão transgressor continua a ser cidadão e precisa ser levado ao tribunal. A ideia de que deva ser abatido é traduzida pela consigna “bandido bom é bandido morto”. A permanência dessa concepção (presente no recurso às Forças Armadas para lidar com segurança pública) mostra que a direita raivosa foi derrotada eleitoralmente, não politicamente. Sobrevive entranhada na sociedade, na representação política e, sobretudo, nas engrenagens do Estado.

Operações de GLO são de grande utilidade simbólica e política. São peças teatrais dispendiosas que servem para fingir que os problemas de ordem e segurança pública estão sendo encarados. Passam a falsa noção de que o governo reprime a criminalidade. Permitem ao militar “exibir serviço”, quando, na realidade, diante do anúncio de conflagração mundial, descuidam da proteção do Brasil. Camuflam o fato de as Forças Armadas estarem despreparadas para negar a terra, o mar, o ar e os espaços cibernético e sideral ao estrangeiro ganancioso. Iludem a sociedade, disseminando a ideia de que o militar é o derradeiro recurso diante de problema doméstico crônico. Dissimulam o fato de as corporações não encerrarem as atividades de seus dispendiosos escritórios em Washington. Reafirmam a crença de que o militar é salvador da pátria e credenciado condutor da sociedade.

O Constituinte escreveu os artigos 142 e 144 da Carta com o sabre na garganta. Obedeceu a corporações estruturadas para combater “inimigos internos”. Governos eleitos democraticamente, mostrando subserviência aos comandantes, endossam essas aberrações constitucionais.

Ao autorizar operações de garantia da lei e da ordem, executivos públicos, em um só lance, mostram descaso diante da necessidade de garantir voz altiva no cenário internacional e, internamente, desleixo com a cidadania. Dobram-se às corporações armadas para perpetuar a subordinação ao estrangeiro poderoso e às estruturas sociais que contrariam aspirações democráticas e de soberania.

A bandidagem ganha com a GLO, na medida em que, mais uma vez, as dinâmicas perversas que a fortalecem são mantidas. As facções criminosas se alimentam do encarceramento em massa de jovens varejistas do comércio de drogas, absurdo endossado pelo MP e abençoado pela Justiça.

Dos 832 mil presos brasileiros, os acusados ou condenados por tráfico já são mais de 30% (62% entre as mulheres). A maioria tem sido presa em flagrante, porque a corporação que mais prende (a PM) está constitucionalmente proibida de investigar. Resta-lhe responder à pressão da sociedade encarcerando a arraia-miúda, que atua ostensivamente, não interage com os grandes protagonistas das redes criminosas nem se beneficia dos negócios bilionários.

Uma vez no cárcere, ao jovem pobre, em geral negro, morador de territórios vulneráveis, resta comprar sua sobrevivência de quem a pode garantir: a facção que manda no presídio, posto que o Estado não cumpre a Lei de Execuções Penais, não exerce autoridade nem afirma a legalidade no interior das prisões.

O preço da sobrevivência do preso será o envolvimento futuro com a facção. Em outras palavras: encarcerando em massa e abandonando o sistema penitenciário às facções, o Estado contrata violência futura, reproduzindo geometricamente a criminalidade organizada e destruindo a vida de gerações e suas famílias. Além disso, aprofunda o racismo estrutural e as iniquidades sociais. Não há exagero retórico quando se diz que a guerra às drogas é a guerra aos pobres, uma guerra racista e destinada ao fracasso.

Há um ponto decisivo, que nos remete aos artigos 142 e 144 da Constituição e ao fato de que, na prática, por imposição dos militares, não houve transição democrática na Defesa e na Segurança Pública: qualquer avanço consistente e sustentável exigirá o enfrentamento do crime no interior das polícias, o qual será impossível enquanto essas instituições permanecerem refratárias ao comando da autoridade política civil. Sem a afirmação dessa autoridade sobre as instituições que mobilizam a força do Estado, a democracia, a vontade popular e a soberania nacional permanecerão chantageadas.

Ao postergar reformas na Defesa Nacional e na Segurança Pública, os governos federal e estaduais prosseguem em marcha batida para o desastre, alimentando as fogueiras do medo, do ódio e do ressentimento, que preparam os espíritos para o fascismo.

Os governantes estão perdidos, temerosos de uma opinião pública envenenada pela confusão entre justiça e vingança, ludibriada pela ideia de que a única solução é fazer mais do mesmo, com mais intensidade (mais prisões, mais proibicionismo, mais violência policial, penas mais longas, cárceres mais cruéis).

É preciso coragem para trocar os jogos de cena pelo diálogo franco com a sociedade. Até quando será negada a necessidade de uma reforma militar e de uma profunda revisão do sistema de segurança pública?

Quando Lula começará a “cuidar do povo”, como prometeu? O povo não precisa apenas de comida, diversão e arte. Sem segurança pública, persistirá no inferno, que é como vive quem mora nas periferias das cidades brasileiras. Sem Defesa Nacional, persistirá submetido à vontade emanada do estrangeiro poderoso.