Por que nos sentimos tão sozinhos? por Pedro Henrique M. Aniceto

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Pedro Henrique M. Aniceto

A Terra é Redonda – 07/05/2023

Os indivíduos imploram pela atenção alheia, esperando com que o Outro ateste por meio de likes, visualizações e comentários, que sua vida realmente vale a pena ser vivida

Com a revolução técnico-científico-informacional e, por consequência, o avanço expressivo dos meios de comunicação de massa, uma nova realidade se estabeleceu no mundo do século XXI. Nunca antes, na história da humanidade, foi possível se conectar e trocar experiências e informações com o número de pessoas a que temos acesso pelas redes sociais.

A nova forma do capitalismo em que nós, seres humanos, passamos a ser produtos a serem comercializados e consumidos estabeleceu um precedente perigoso em que, por um lado, permite a disseminação de milhões e milhões de informações e conteúdos importantes para a manutenção da vida humana e, por outro, torna-se um instrumento dantesco responsável por um processo de desumanização do ser, o qual deixa de ser sujeito na própria vida e passa a objeto a ser consumido, responsável pela própria servidão, senhor da própria futilidade.

A necessidade pujante e erotizada de estar conectado e criando “conteúdo” para a experiência alheia evidencia um diagnóstico duro e complexo da sociedade contemporânea, o vazio estrutural da consciência moderna. Com isso, evidencia-se o pensamento de Jacques Lacan, um psicanalista francês cuja obra se fundamenta, em parte, na questão “Por que nos sentimos tão sozinhos?”.

Para Jacques Lacan, durante uma fase do desenvolvimento da criança, denominada “fase do espelho”, o indivíduo percebe que é um ente separado do ambiente e é essa distância simbólica que gera o vazio interior que nos torna tão solitários, tornando “necessário” a nós preenchê-lo. É esse, para o autor, o nascimento do ego. Pode-se, nessa conjuntura, tomar por base tal concepção lacaniana para justificar, em parte, o porquê a vida digital, projetada e encenada, é tão valorizada na contemporaneidade.

Isso porque possibilita ao indivíduo tentar reduzir, pelo menos um pouco, a distância entre ele e o mundo, permitindo que se sinta diluído e pertencente a um todo, o que Sigmund Freud chama de “sentimento oceânico”. Assim, numa espécie de “servidão voluntária”, utilizando um conceito de Étienne de la Boétie, os indivíduos imploram pela atenção alheia, esperando com que o Outro ateste por meio de likes, visualizações e comentários, que sua vida realmente vale a pena ser vivida.

Nesse sentido, os indivíduos renunciam à liberdade e à privacidade em prol da sensação de pertencimento a um conjunto que, por essência, também tenta consolidar-se como alguém cuja vida exposta – não necessariamente verdadeira – deva ser desejada pela massa. E nesse cenário, marcado por um ciclo vicioso, que cintila a concepção doentia de felicidade contemporânea, em que é preciso, a todo tempo, exaltar uma vida feliz e inexistente a fim de que outros validem esse sentimento como verdadeiro. Para que assim, possa, no âmago do ser, sentir uma ilusão momentânea de integração com mundo que é, rapidamente, substituída por um sentimento de solidão, que move novamente a roda, fazendo com haja novas interações vazias e superficiais que não o preenchem fazendo com que o ciclo se repita.

É, portanto, nesse paradoxo da solidão em meio a muitos que a sociedade o século XXI se baseia, havendo um apagamento do ser enquanto sujeito dono de si e, em seu lugar, consolidando, cada vez mais, zombies gritando dia após dia que são pessoas felizes, enquanto esperam que o restante do mundo repita e ateste para que, assim, possam acreditar, pelo menos por um instante, nessa fantasia que a concepção atual de felicidade.

*Pedro Henrique M. Aniceto é graduando em ciências econômicas na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

Há conciliação com a Faria Lima? por Paulo Nogueira Batista Júnior

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Paulo Nogueira Batista Júnior –

A Terra é Redonda – 05/05/2023

O Banco Central atua como um quarto poder, enquanto os juros elevados significam transferência de renda para os setores mais aquinhoados da sociedade. Estou entre os críticos mais insistentes, mais renitentes da política de juros do Banco Central. Fora o presidente Lula, claro, que é hors concours. Ele tem feito críticas sempre pertinentes, quase sempre certeiras. Volto à carga hoje, acompanhando modestamente os esforços críticos do nosso Presidente.

O tema é vasto, mereceria um ensaio de 50 páginas, no mínimo. Vou tentar ser sintético. Começo com os apelos do ministro Fernando Haddad, que há algum tempo vem pedindo harmonia entre as políticas monetária e fiscal. Faz todo sentido. O termo mais usado na literatura é coordenação fiscal-monetária. Em todos os países razoavelmente organizados, mesmo um Banco Central autônomo se vê obrigado a coordenar as suas ações com as do Tesouro. Isso significa não só a troca regular de informações entre as duas instâncias, mas o cuidado de levar em conta as ações da outra parte na definição e implementação das suas. Se há alguma prevalência, esta é das autoridades fiscais, que representam o governo eleito. Em alguns países, o Tesouro tem até mesmo representação formal nos comitês que definem a política monetária.

Esforços em prol da harmonia fiscal/monetária
O ministro Fernando Haddad, a bem da verdade, não se limita a lançar apelos públicos em prol da harmonia. Vem fazendo o possível para aplacar o Banco Central e, mais importante, a base social da autoridade monetária – a Faria Lima, também conhecida como turma da bufunfa. Não é fácil, leitor, mas o Ministro da Fazenda se esforça. Em janeiro, anunciou um pacote de ajuste fiscal. Em seguida, abandou ou postergou o aumento das metas de inflação, aceitando os argumentos do Banco Central de que isso seria contraproducente. Em abril, anunciou um “arcabouço fiscal” com travas ao gasto público, na esperança de convencer o Banco Central de que o risco fiscal será pequeno daqui para a frente.

Fernando Haddad deu sinais, além disso, de que pretende negociar com o presidente do Banco Central os nomes dos dois novos integrantes da diretoria da instituição. Pela lei de autonomia, é prerrogativa do presidente da República nomear agora dois dos nove integrantes da diretoria do Banco Central e do Copom. Os mandatos de dois diretores venceram em final de fevereiro e o governo, não se sabe bem por que, ainda não indicou os substitutos. No momento em que escrevo, início de maio, as indicações continuam pendentes. Se dependesse apenas da Fazenda, os nomes seriam submetidos à aprovação de Roberto Campos Neto. Não quero ser injusto, mas é a impressão que a Fazenda está passando. Na verdade, o próprio ministro deu declarações nesse sentido há algum tempo. É mais do que apenas impressão, portanto.

Banco Central, um quarto poder
Os apelos de Fernando Haddad em favor da harmonização têm caído no vazio até agora. É que o comando do Banco Central vê a proposta como tentativa velada de suprimir ou condicionar a sua sacrossanta autonomia. O Banco Central brasileiro tem a pretensão extravagante, tudo indica, de definir os seus passos sem considerar a política do Tesouro.

Vamos ser mais claros. A verdade é que o Banco Central se comporta como quarto poder. Não é apenas autônomo, mas independente. Isso ao arrepio do que a lei pretendia. A distinção convencional, incorporada à legislação brasileira, estabelece que o Banco Central autônomo tem a liberdade de buscar o cumprimento de metas que lhe foram fixadas pelo poder político eleito, por meio do Conselho Monetário Nacional (CMN).

Já um Banco Central independente teria a prerrogativa de fixar as próprias metas de inflação. Essa distinção, no caso brasileiro, é mais teórica do que prática. Ocorre que o Banco Central tem um dos três votos do CMN; os dois outros são da Fazenda e do Planejamento. Além disso, o Banco Central exerce a secretaria do Conselho, o que lhe confere poder adicional. Para completar o quadro, a Fazenda e o Planejamento não conseguem ou não desejam, ao que parece, fazer face à ortodoxia do Banco Central.

Sentindo cheiro de sangue, a Faria Lima avançou. O comando do Banco Central já dá repetidos sinais de que pretende enquadrar a política econômica do governo eleito. Veja bem, leitor, não apenas a política fiscal, que deve fazer “o dever de casa” a que se refere insistentemente a ministra Simone Tebet, mas também os bancos públicos federais, que têm sido admoestados pelo Banco Central, em seus comunicados e atas de reuniões, a não adotar políticas que visem estimular a atividade econômica, pois isto reduziria, supostamente, a eficácia da política monetária.

Governo de mãos amarradas
A prevalecer a “harmonia”, tal como entendida pelo Banco Central, o governo ficará de mãos atadas, inerte, provavelmente incapaz de agir para relançar uma economia que está estagnada há dez anos! A política fiscal, limitada pelo arcabouço, conseguirá orientar-se para um papel ativo? O governo poderá determinar ao BNDES, ao Banco do Brasil e à Caixa Econômica que forneçam um volume de crédito suficiente, a taxas e prazos atrativos, para destravar os investimentos na economia brasileira? Se depender do BC, não, nunca e jamais. Ficarão todas essas instâncias submetidas, harmonicamente, ao objetivo de assegurar a estabilidade monetária e o cumprimento das metas de inflação. O presidente da República, por sua vez, poderá continuar, sossegado, as suas críticas aos juros altos. A harmonia continuará sem sobressaltos.

Repare, leitor, que essa “harmonia” inclui também o direito que se reserva o Banco Central de lançar petardos contra a política fiscal! A política de juros altos, por exemplo, eleva o custo da dívida e o déficit público. Mas essa é uma fonte de “risco fiscal” que, Deus sabe por que, não precisa ser considerada. Os juros altos derrubam, também, os níveis de atividade e de emprego, reduzindo as bases de incidência da tributação e, tudo o mais constante, as receitas do governo.

Em ambiente de desaquecimento da economia, qualquer tentativa de aumentar a arrecadação, ou de tentar mantê-la estável, mesmo sem necessariamente recorrer a novos impostos ou aumentos de alíquotas, como pretende o ministro da Fazenda, encontrará tenaz resistência dos contribuintes, que redobrarão seus esforços para escapar da tributação.

Vamos elaborar um pouco esse ponto. O arcabouço fiscal estabeleceu, como metas centrais, déficit primário zero em 2024 e superávits nos anos seguintes. Se a economia continuar estagnada ou, pior, entrar em recessão, o esforço para alcançar a meta será maior e tenderá a acentuar a tendência à estagnação da economia. A política fiscal será pró-cíclica, em outras palavras. Uma solução para evitar a estagnação/recessão seria adotar medidas fiscais expansionistas.

Mas o arcabouço fiscal dará espaço para uma política antirrecessão? Duvidoso, dadas as travas à despesa pública inseridas no marco fiscal. Outra solução seria acionar os bancos públicos federais para prover o crédito que os banco privados não proveem, especialmente em períodos de juros altos e estagnação. Possível? Em tese, sim, mas o Banco Central já avisou que isso atrapalha a política monetária…

Finalmente, não vamos esquecer do seguinte. Os déficits públicos, desde Keynes, são vistos como admissíveis em períodos de estagnação ou recessão. Nessas situações, recomenda-se deixar os estabilizadores automáticos atuarem (isto é, a retração cíclica da carga tributária e o aumento de certas despesas ligadas à atividade econômica) e inserir componentes anticíclicos na política fiscal, expandindo por exemplo investimentos públicos e transferências sociais, com efeitos em termos de desconcentração da renda e multiplicadores da demanda e da atividade.

Veja o absurdo, leitor. O aumento do déficit público resultante dos juros altos não tem qualquer efeito positivo. Eleva o risco fiscal, sem benefícios em termos de reativação da economia e com efeito concentrador da renda. Só mesmo na Faria Lima essa política merecerá aplausos – e frenéticos. Simples entender por quê.

Os juros elevados significam transferência de renda para os setores mais aquinhoados da sociedade. Beneficiam todos aqueles que têm poupança financeira ou reservas de caixa aplicadas em títulos públicos e outros ativos. Ora, os pobres e remediados, e mesmo a classe média baixa, pouco ou nada possuem em termos de poupança financeira. Quem recebe a renda adicional são os super-ricos – sobretudo os bilionários, as grandes empresas e os bancos que têm aplicações vultosas em títulos públicos e outros ativos líquidos. Vida mansa. Alta rentabilidade, com liquidez e sem risco. O paraíso do rentista.

Esses mesmos aquinhoados não gastam nada ou quase nada da renda adicional que recebem em função da generosa política do Banco Central. O dinheiro recebido fica entesourado e aplicado em títulos públicos e outros ativos. Não circula na economia, nem ajuda a reativá-la.

Concluo aqui essa diatribe que já me saiu longa demais. Já não tenho, confesso, muita esperança de ajudar a modificar o quadro macroeconômico. O que escrevi aqui é apenas o desabafo de um brasileiro que assiste há décadas, revoltado, a repetição dos mesmos absurdos.

*Paulo Nogueira Batista Jr. é titular da cátedra Celso Furtado do Colégio de Altos Estudos da UFRJ. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS. Autor, entre outros livros, de O Brasil não cabe no quintal de ninguém (LeYa).

A proposta do Emprego Digno Garantido, por Ladislau Dowbor

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Nova bandeira de luta, em tempos de crise: livro de Pavlina Tcherneva demonstra que Estados podem assegurar trabalho com direitos a todos os que o desejem. Garante renda e pertencimento social. Economiza recursos e esforço administrativo

Ladislau Dowbor – OUTRAS PALAVRAS – 03/05/2023

Resenha do livro The case for a job guarantee, de Pavlina Tcherneva, publicado em 2020 pela Polity Press

É perfeitamente possível assegurar uma sociedade com garantia de emprego. O setor privado empresarial constitui uma ótima fonte, e dominante, e o emprego público complementa. Mas lembremos que no caso do Brasil temos apenas 33 milhões de empregos formais privados, e 11 milhões de emprego público, o que nos deixa longe dos 106 milhões da nossa força de trabalho. Somando os 40 milhões do setor informal, que ganham em média a metade do que ganham os empregados do setor formal, os 15 milhões de desemprego aberto e os 6 milhões de desalentados, temos algo como 60 milhões de pessoas mal inseridas em atividades produtivas, o que significa um gigantesco desperdício de potencial produtivo. Segundo a ideologia primitiva que domina, devemos restringir o emprego público, e aguardar que os mercados resolvam. É a ideologia da austeridade, apoiada na narrativa da responsabilidade fiscal e de concentração de renda e riqueza. O problema não é as pessoas não terem vontade de trabalhar, e sim de não terem oportunidades.

O estudo de Pavlina Tcherneva, centrado nos Estados Unidos, mas sem dúvida cheio de lições para qualquer economia, foca precisamente como o governo pode assegurar uma garantia de emprego para todos os adultos, absorvendo, de maneira contracíclica, as flutuações de desemprego no setor privado, com pagamento do piso salarial. O financiamento viria do orçamento federal, mas a gestão se daria no nível local, nos Estados e municípios, apoiando-se inclusive nas organizações da sociedade civil, comunidades organizadas. A ideia geral é que como o desemprego e a subutilização do trabalho representam custos humanos e econômicos muito elevados, assegurar trabalho remunerado constitui uma opção de win-win: no balanço de custos e benefícios, a sociedade ganha em produtividade, em estabilidade social, e em equilíbrios financeiros, inclusive das contas públicas.

Não se trata de tiros no escuro. A Índia, com o National Rural Employment Guarantee Act (NREGA), garante um mínimo de 100 dias de trabalho pago por família por ano, um programa que atinge uma grande massa de subempregados rurais, mas hoje se expandiu para áreas urbanas. Uma das primeiras experiências foi o New Deal americano dos anos 1930, que envolveu 13 milhões de trabalhadores no quadro do Works Progress Administration, com efeito anticíclico: programas de infraestruturas urbanas nas cidades, saneamento básico, expansão de serviços básicos e outras iniciativas permitiram não só melhorar as condições de vida dos habitantes, como geraram demanda com a renda criada, o que por sua vez redinamizou o setor empresarial e o emprego privado. Celso Furtado há tempos mencionava que frente a trabalhadores parados, qualquer atividade é lucro.

A resistência a essa ideia por parte das elites é compreensível. A garantia de um emprego decente oferece aos trabalhadores uma alternativa a remunerações e condições de trabalho indignas que tanto se expandem no quadro de uma grande massa de desempregados e subutilizados, argumento particularmente forte nessa era de precariado. Como o programa é financiado com recursos públicos,
o argumento utilizado é que geraria a inflação. No Brasil hoje, em nome de proteger o país da inflação, eleva-se a remuneração dos títulos públicos, essencialmente nas mãos dos 10% mais ricos (85%), e se aprofunda ainda mais a desigualdade. Na realidade, no quadro de uma ampla subutilização da capacidade e do potencial econômico do país como temos hoje (as empresas produtivas trabalham com 30% de capacidade ociosa), expandir atividades de utilidade pública que aumentam a demanda termina ampliando o nível de produção do próprio setor privado, além de contribuir com bens e serviços públicos necessários. Gera-se assim um ciclo virtuoso de ampliação de demanda, redução de desemprego e crescimento econômico.

Em termos administrativos Tcherneva traz numerosos exemplos de como as próprias estruturas de provimento de serviços sociais, inclusive todo o sistema de apoio financeiro aos desempregados, podem perfeitamente ser utilizadas para administrar o programa. De certa forma, em vez de financiar o desemprego, passa-se a financiar a garantia de emprego. As experiências já antigas no Brasil, com “frentes de trabalho”, acabaram com coronéis do Nordeste financiando açudes nas próprias fazendas, em vez de aumentar o capital do território com obras e serviços públicos. Mas numerosas iniciativas como a recuperação de praias em Santos, na “Operação Praia-limpa”, com obras de saneamento na cidade, não só tiveram custos limitados, como tornaram a cidade novamente atrativa para o turismo, dinamizando hotelaria, restaurantes e outros serviços, transformando o que foi uma operação temporária de uso dos desempregados da cidade numa fonte de empregos permanentes.

A visão de Tcherneva é que se trata de considerar o acesso ao emprego básico como um direito humano. (“to reaffirm the access to a basic job as a human right”, p.104). Mais governo? “A preocupação com o tamanho do governo tem o seu contrário. Já temos um ‘big government’, envolvendo centenas de bilhões de dólares, tempo, recursos, e esforço administrativo para lidar com os custos econômicos e sociais do desemprego, subemprego e pobreza. Como notado, o desemprego já foi custeado, possivelmente com custos multiplicados muitas vezes. A Garantia do Emprego reduziria esses custos do governo federal, enquanto também cortaria os custos de famílias, empresas e estados.” (p.101) Keynes já mencionava o absurdo de tanta gente parada com tantas coisas para fazer.

A existência de uma massa de desempregados e subempregados melhora sem dúvida a capacidade, por parte das empresas, de negociar contratações em situação desfavorável para o trabalhador, forçado a aceitar o que lhe propuserem, expandindo inclusive o trabalho informal. Uma garantia de emprego não substitui o setor empresarial privado, mas gera um contexto mais equilibrado, inclusive enriquecendo a sociedade com atividades que não interessam necessariamente ao setor privado. A autora lembra que “nos anos 1930, o programa Tree Army do Roosevelt plantou 3 bilhões de árvores, criou e reabilitou 711 parques estaduais, construiu 125 mil milhas de trilhas para caminhões, desenvolveu 800 parques estaduais novos, controlou a erosão de solo em 40 milhões de acres de solo agrícola, melhorou pastagens em terras públicas, e aumentou a população de animais. Esses projetos inspiraram uma vida nova no movimento de conservação ambiental dos Estados Unidos, antecessor do movimento de proteção climática dos nossos dias.” (p.94) Nesta era de prioridade de políticas ambientais, são ganhos em todos os níveis.

Na Índia o programa exige que as administrações municipais organizem um cadastro de projetos de utilidade social e que sejam intensivos em trabalho. No projeto mencionado de Santos, no levantamento dos desempregados da cidade, foram encontradas numerosas pessoas com curso superior, o que permitiu enquadrar grupos mais amplos, e diferenciar as atividades. Nas propostas de Tcherneva, “Os municípios em cooperação com grupos comunitários poderiam conduzir levantamentos semelhantes, catalogando as necessidades da comunidade e os recursos disponíveis ao desenhar os bancos de empregos comunitários. As organizações comunitárias, ONGs, empreendedores sociais e cooperativas podem também solicitar fundos diretamente no Ministério do Trabalho. Os financiamentos são concedidos com condições de 1) criação de oportunidades de emprego para desempregados; 2) sem efeito de substituição de trabalhadores existentes; 3) atividades realizadas úteis, medidas pelo seu impacto social e ambiental.” (p.86)

A autora faz um levantamento detalhado do custo-benefício do programa. “Assumindo uma visão conservadora sobre as economias realizadas, o impacto do programa sobre o orçamento, no cenário mais elevado, é de menos de 1,5% do PIB por ano. É plausível que ao se contar todas as reduções de gastos no setor governamental para desemprego, junto com todos os efeitos multiplicadores econômicos e sociais, o impacto orçamentário do programa seria neutro, ainda que isso não seria um critério de sucesso já que em momentos recessivos o governo normalmente precisa aumentar os gastos deficitários.” (P.79) Lembremos que no Brasil a evasão fiscal custa cerca de 7% do PIB, e que 80% do aumento da dívida pública, que atinge 90% do PIB, resulta não do uso produtivo dos recursos públicos, por exemplo com políticas sociais e financiamento de infraestruturas, mas com pagamento de juros às grandes instituições financeiras que aplicam na dívida pública. Pagamos o Estado para que transfira dinheiro para grupos financeiros, em vez de assegurar o financiamento do que a sociedade precisa.

“Um trabalhador não tem poder para dizer ‘não’ a um emprego ruim, a não ser que tenha a garantia de uma opção de um bom trabalho com pagamento decente.”(p.62) Neste sentido, um programa de garantia de emprego constituiria uma alavanca para relações de trabalho mais civilizadas. E ao dinamizar a economia no seu conjunto, gera efeitos positivos para o próprio setor empresarial privado. Tcherneva refuta radicalmente a visão ensinada nos cursos de economia, de que um desemprego básico é importante, ou “natural”, para que não haja pressões salariais ou inflação. E traz o impacto dramático do desemprego para as famílias: “O desemprego está entre as causas da desnutrição, de crianças prejudicadas no crescimento, de problemas de saúde mental, resultados fracos na educação e no mercado de trabalho, redução de mobilidade social de esposas e de crianças. Nos Estados Unidos, as crianças sofrem a maior taxa de pobreza e 80% das crianças pobres moram numa família sem um trabalhador empregado.”(p.37)

De certa forma, ao invés de mitigar os impactos, miséria, fome, aumento de criminalidade, de prostituição e outros efeitos de adultos sem saída na vida, trata-se de enfrentar a principal causa, a ausência de um enquadramento laboral que permita tanto o acesso à renda como um sentimento de pertencimento social. Os Estados Unidos têm 4% da população mundial, mas 25% da população carcerária. Um suicídio de cada cinco é ligado ao desemprego. E mesmo nas famílias com emprego, o sentimento da permanente ameaça da destituição, de uma situação em que não poderão proteger os filhos, gera sofrimento e angústia simplesmente desnecessários.

O livro de Pavlina Tcherneva é curto, muito bem documentado, e centrado nas questões práticas: como funciona ou pode funcionar, quanto custa, como se administra, como se financia, quais os resultados já constatados em diversas experiências. Sai muito mais barato tirar os pobres da miséria do que arcar com as consequências. Se ainda por cima nos permite realizar um conjunto de atividades que clamam por braços e cabeças, temos tudo a ganhar. O livro convence.

Nada é integralmente sustentável, por Rodrigo Tavares.

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Será possível ou desejável adotarmos uma visão mais realista da sustentabilidade?

Rodrigo Tavares, Professor catedrático convidado na NOVA School of Business and Economics, em Portugal. Nomeado Young Global Leader pelo Fórum Econômico Mundial, em 2017.

Folha de São Paulo, 03/05/2023

Nesta semana, o Fórum Econômico Mundial convocou uma entrevista coletiva para dizer várias coisas importantes sobre o futuro do trabalho. Baseado no estudo “O Futuro do Trabalho”, declarou que especialistas em sustentabilidade serão os profissionais mais procurados no mercado global, depois de especialistas em inteligência artificial. Mas e se o mercado estiver objetivamente à procura de especialistas em “insustentabilidade”, não em “sustentabilidade”?

Não é tecnicamente possível para um produto, uma empresa ou uma ação ser integralmente sustentável. A sustentabilidade é um conceito espaçoso, desde que foi cunhado nos anos 1980. Para uma empresa ser sustentável, devemos considerar não só a sua sustentabilidade corporativa interna (por exemplo: segurança laboral, igualdade de gênero, transparência fiscal) como os impactos positivos e negativos dos seus produtos e serviços (pegada carbônica, impactos nas comunidades locais, entre outros). Ou seja, deve contabilizar-se tanto o que uma empresa faz quanto como o faz.

Deve também ser levada em consideração toda a sua cadeia de valores e o conjunto das partes interessadas (stakeholders). Uma empresa é, por definição, um organismo que só sobrevive se estiver em permanente conexão com outras entidades. Uma célula-mãe origina células-filhas, sejam elas clientes, fornecedores ou empregados. Uma empresa isolada e esvaziada não é uma empresa, é um CNPJ.

Aplicando essa visão holística da sustentabilidade, abriremos a porta a contradições e limitações. A busca da totalidade do conceito leva à sua abolição.
Vejamos a descarbonização do planeta.

Praticamente todos os países têm metas de transição energética e de desenvolvimento sustentável. O Brasil, por exemplo, tem como objetivo a neutralidade carbônica até 2050. Essas metas só serão atingidas com fortes investimentos em energias renováveis e eletrificação de automóveis. Mas a tecnologia subjacente a essa transformação depende da extração de minérios.

Segundo o Banco Mundial, será necessário extrair até 3 bilhões de toneladas de minerais e metais raros até 2050 —um crescimento de 500% sobre a capacidade extrativa atual— para atingirmos as metas do Acordo de Paris. Precisaremos da “perversa” indústria de mineração, conhecida assim por muitos ambientalistas, para construirmos uma sociedade ambientalmente sustentável.

De acordo com a Agência Internacional de Energia, um carro elétrico requer seis vezes mais insumos minerais do que um carro movido a combustíveis fósseis, enquanto um parque eólico offshore requer nove vezes mais minerais do que uma usina a gás de tamanho similar. Segundo a União Europeia, só para as baterias dos automóveis elétricos e para o armazenamento energético, a Europa necessitará de 18 vezes mais lítio até 2030 e de até 60 vezes mais até 2050.

Sem lítio, níquel, cobalto, manganês e grafite não haveria fontes de energia limpa, incluindo energia geotérmica, solar, hidrelétrica e eólica. Ou veículos elétricos. A nossa capacidade coletiva de enfrentar as alterações climáticas depende de suprimentos confiáveis de minerais.

A China, com 70% da produção global e 85% da capacidade de processamento, lidera esse mercado. Outros países produtores, como Maláui, Angola, África do Sul ou República Democrática do Congo, também têm baixos índices de proteção dos direitos humanos.

Há alguns meses, a Tesla assinou contratos de US$ 5 bilhões com empresas indonésias para a compra de níquel. O primeiro-ministro de Portugal esteve no mês passado na Coreia do Sul, onde promoveu seu país como a oitava maior reserva de lítio do mundo (e a maior da Europa), com mais de 60 mil toneladas, apagando do cartão de visitas os protestos populares que tem enfrentado contra a exploração do mineral na região norte do país. A mineração pode ter um impacto destrutivo não apenas no meio ambiente como nas comunidades locais.

Mas, mesmo que consigamos aplicar mecanismos de rastreabilidade dos materiais raros e, hipótese igualmente rara, impor práticas responsáveis a mineradores em mercados emergentes, iremos sempre encontrar algum tipo de incongruência no domínio da sustentabilidade –na produção, no processamento, no transporte, na utilização fabril, na utilização pelo consumidor final, no pós-uso desses produtos.

Na cadeia de valores, haverá sempre violações de indicadores ESG, por menores que sejam. A insustentabilidade é uma inevitabilidade, não uma exceção.

E será cada vez mais fácil encontrar quem nos aponte os pecados. Nos últimos dois anos, têm despontado centenas de startups que monitoram as ações das empresas e das suas cadeias de valores, usando internet das coisas, imagens de satélite e inteligência artificial. Medir a insustentabilidade será tão recorrente quanto medir a sustentabilidade de uma empresa.

Para uma empresa, há certamente benefícios em perfilhar a sustentabilidade como objetivo final. Há uma lógica de positividade e de evolução inerente à comunicação, mobilizando funcionários e apaixonando clientes. O mercado está formatado dessa forma. Por isso temos normas técnicas, prêmios, rankings e certificações que premiam o aparente sucesso. Damos destaque a um conselho de administração que atingiu a igualdade de gênero, mas negligenciamos se a cadeia de suprimentos é composta por empresas sem preocupação pelo empoderamento feminino.

A impossibilidade de atingirmos essa meta final leva necessariamente a frustrações e a greenwashing. Um passo para a frente e dois passos para trás. No Brasil, a euforia em torno da sustentabilidade, visível no mercado há poucos anos, não produziu resultados consistentes em todo o ecossistema.

Medir sustentabilidade reflete não apenas uma visão fragmentada da realidade; é também tecnicamente difícil. Cada setor industrial tem as suas próprias práticas em sustentabilidade, cada empresa tem a sua própria cultura e interpretação de sustentabilidade e cada país tem o seu próprio quadro normativo e legal. Para uma empresa brasileira, diversidade de orientação sexual é um fator positivo. Em Uganda ou na Arábia Saudita dá prisão.

Em breve deixaremos de tentar medir a capacidade das empresas de atingir o apogeu da sustentabilidade. Adotaremos, como alternativa, uma lógica semelhante à das análises clínicas.

Para cada indicador ESG, como se fossem eritrócitos ou leucócitos, conheceremos os valores de referências e o nosso histórico.

Hoje nenhum médico parabeniza um paciente por ter o mais alto valor de hemoglobina, tal como nós ainda valorizamos as empresas que têm os mais altos valores ESG. Nem há médicos que analisem apenas o valor da hemoglobina, negligenciando todos os outros elementos que contribuem para a saúde de uma pessoa.

Uma visão holística da sustentabilidade de uma empresa deverá incluir, por isso, as discrepâncias e as imperfeições concretas que acontecem enquanto implementamos os nossos planos de descarbonização. O objetivo de uma organização não será atingir o máximo da sustentabilidade, mas reduzir ao máximo os elementos de insustentabilidade.

Na Europa já se deu o primeiro passo. A partir do próximo mês, todas as instituições financeiras terão que declarar os seus Principais Impactos Adversos (PAIs, na sigla em inglês).

A sustentabilidade total é uma fantasia. A sustentabilidade realista, por outro lado, deverá ser o eixo central da nossa economia e sociedade.

Desigualdade que beira o ridículo, por Ana Cristina Rosa

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É aviltante o looping de carências dos pobres no Brasil ante a qualidade de vida dos ricos

Ana Cristina Rosa, Jornalista especializada em comunicação pública e vice-presidente de gestão e parcerias da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPública).

Folha de São Paulo, 08/05/2023

Uma das características mais cruéis de uma sociedade tão desigual como a brasileira é o menosprezo da elite —que usufrui de todos os direitos, além de muitos privilégios— em relação aos problemas cotidianos da massa de desvalidos que compõem o povo.

Não é de hoje que as classes C, D e E vêm se encalacrando para sobreviver. Diversas pesquisas apontam o endividamento crescente entre os mais pobres, que contraem dívidas até para comprar comida a crédito! Sem falar nos milhares que estão à margem, literalmente passando fome.

Com inflação e juros em alta, a “ralé” vive uma espécie de looping de carências que beira o ridículo de tão aviltante em comparação com a qualidade de vida dos mais ricos.

Hoje, em São Paulo, para comprar uma cesta básica são necessários R$ 794,68, segundo o Dieese. Isso é mais de 60% do valor do novo salário mínimo. Parece até piada, e de muito mau gosto, considerando que o mínimo deveria suprir todas as necessidades básicas de uma família. Mas é a realidade do pobre no Brasil, que inclui o drible das contas do mês. A saída óbvia é escolher o que deixar de pagar.

Na classe C, que representa o universo de brasileiros que recebem entre R$ 5,2 mil e R$ 13 mil mensais, 80% das pessoas estão endividadas! Não é preciso muito esforço para imaginar a situação das famílias das classes D e E, onde os rendimentos não ultrapassam os R$ 5,2 mil.

Também não é demais lembrar que a maioria desses cidadãos é negra, segundo pesquisa recente do Instituto Locomotiva. Por que será?

Nesse cenário bizarro, está cada vez mais difícil encontrar alguém que frequente o comércio e ainda não tenha sido abordado por um desamparado pedindo alguma coisa —não só na entrada, mas também no interior dos estabelecimentos.

Não sei o que é mais triste e constrangedor: a vulnerabilidade dos pedintes; a grosseria dos fiscais das lojas com quem está a esmolar; ou a indiferença dos que são incapazes de acolher um pedido genuíno.

Debates econômicos

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A sociedade internacional vem passando por grandes transformações estruturais com repercussões em todas as regiões, com alterações nos modelos de negócio, alterações no mundo do trabalho, crescimento da concorrência e a necessidade de uma nova agenda ambiental e de sustentabilidade, exigindo variadas mudanças nas políticas públicas e novas formas de configurações nas estruturas de poder global.

Nesta sociedade, percebemos que o debate econômico se concentra no imediatismo e nas questões de indicadores dispersos, os discursos se limitam a questões cotidianas, deixando de lado as reflexões sobre os ecossistemas econômico e produtivo, com isso, todos os agentes políticos e sociais se sentem capacitados a participarem deste debate e dos rumos da economia contemporâneo.

O debate econômico e as grandes questões relevantes para a sociedade contemporânea estão sendo deixados de lado, os especialistas se escasseiam e as conversas se restringem a questões limitadas e enviesadas, se tornando opiniões centradas na defesa dos interesses de grupos detentores dos grandes conglomerados econômicos e produtivos, limitando os debates econômicos, privilegiando os mesmos profissionais e que defendem seus interesses imediatos. Neste cenário, percebemos que os grupos de mídia corporativa abrem espaço para as mesmas opiniões, fugindo dos contrapontos, dos debates e das reflexões críticas.

Os debates econômicos do século XX eram marcados por grandes embates de pensamentos e variadas visões de mundo, onde dois grupos digladiavam com visões diferentes e defendendo teses variadas. Na história do pensamento econômico brasileiro, encontramos o embate entre Roberto Simonsen versus Eugênio Gudin, um defendendo ideias e teses de industrialização da economia brasileira e, de outro lado, as visões de Gudin que defendia a vocação agrícola nacional, embora todos os contendores vislumbravam um Brasil mais sólido e consistente, embora tinham ideias contrárias, todos defendiam um país mais inclusivo, fortalecido, equilibrado e desenvolvido.

No curso dos debates econômicos internacionais destacamos os confrontos intelectuais entre os economistas J. M. Keynes e o austríaco Friedrick Hayek, teóricos conservadores, um mais intervencionista e outro de raiz liberal, responsáveis por grandes confrontos de ideias e de pensamentos. Destes embates, percebemos o nascimento de uma nova sociedade, novas formas de reflexão política, novos horizontes do pensamento econômico, com o surgimento de novas áreas, impulsionando a teoria econômica e contribuindo para criar novas formas de pensamento, de questionamento e desenvolvimento.

Nesta sociedade percebemos que os grandes embates intelectuais foram se escasseando, as batalhas teóricas se reduziram e todos os grandes grupos se perderam e se entregaram pelo poder do chamado mercado, que passam a controlar os indicadores econômicos, controlando as taxas de juros, escolhendo os responsáveis pelas autoridades monetárias e garantindo que seus serviçais voltem para o mercado depois de exercerem cargos de alta remuneração do setor público. Os especialistas chamam isso de, no jargão econômico, de porta giratória, onde funcionários saem dos governos e ganham empregos em grandes instituições financeiras nacionais e internacionais, como prêmio dos préstimos prestados para seus empregadores, com alta remuneração e inúmeros benefícios.

Os debates econômicos contemporâneos se restringem a uma visão limitada e superficial, os grandes confrontos e embates entre teorias econômicas estão cada vez mais distantes, as conversas se restringem ao crescimento do PIB e da inflação, deixando de lado as questões tributárias, evitando reflexões sobre isenções fiscais que garantem ganhos substanciais para os donos do capital, além de refletir sobre as crescentes desigualdades de renda, além de evitar os abismos financeiros entre os ricos e os pobres. Desta forma, percebemos que os debates econômicos estão distantes da realidade da população, mostrando a irrelevância da ciência econômica para compreendermos as necessidades dos seres humanos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista e Administrador, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 03/05/2023.

A urgente reindustrialização na Era Digital, por Marcio Pochmann

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O Brasil é o quarto maior mercado mundial de consumo de bens e serviços digitais, mas continua sendo grande importador. Superar dependência requer políticas de desenvolvimento autocentrado, capaz de reconstruir o sistema produtivo nacional

Marcio Pochman, Economista e Professor da Universidade de Campinas
Outras Palavras – 24/04/2023

O Brasil demorou três décadas para ingressar de fato no século 20, o que somente começou a ocorrer a partir da Revolução de 1930, quando o país se libertou do domínio liberal. Até então, predominou a sociedade agrária que, longeva e primitiva, estava aprisionada aos atrasos do século 19.

Ainda que tardiamente, a modernização capitalista permitiu que em menos de meio século o Brasil
integrasse as 10 principais economias industriais do mundo. Para tanto, a aliança tripartite entre os capitais estatais e privados nacional e estrangeiro foi substancial, especialmente em momentos graves vividos pelo mundo (S. AMIN La desconexion. Hacia un sistema mundial policéntrico, 1988).

Inicialmente, na fase crítica da Segunda Guerra Mundial, o acordo entre Getúlio Vargas (1930-1945) e Franklin Roosevelt (1933-1945) marcou a transferência tecnológica e a participação do capital estadunidense na constituição da indústria de base nacional. Posteriormente, a tensão em torno da Guerra Fria foi utilizada por Juscelino Kubitschek (1956-1961) para atrair um verdadeiro bloco de investimento externo que edificou a industrialização pesada no país (P. Evans A tríplice aliança: as multinacionais, as estatais e o capital nacional no desenvolvimento dependente brasileiro, 1980).

Mas, quando o país se preparava para o ingresso na Era Digital em constituição no final do século 20, com a montagem interna da microeletrônica e o salto tecnológico e informacional em curso com a lei de informática e parcerias dos capitais japoneses e alemães, houve a grande desistência histórica nacional (M. Pochmann A grande desistência histórica e o fim da sociedade industrial, 2022). O caminho do declínio brasileiro pôde ser quantificado pela perda de sua participação relativa no PIB mundial de 3,2%, em 1980, para 1,6% em 2021.

Assim, as últimas quatro décadas configuraram o aprofundamento do grau de dependência externa do Brasil, com o retorno à especialização produtiva e à reprimarização exportadora. A colagem do endividamento externo com a expansão da dívida pública interna herdada dos últimos governos da ditadura civil-militar (1964-1985) demarcou a base pela qual a financeirização da economia ganhou autonomia concomitantemente com o regime de superinflação.

Na sequência do ingresso passivo e subordinado na globalização neoliberal desde 1990, a queda do processo hiperinflacionário transcorreu mediante a renegociação da dívida externa e a implantação do Plano Real. Uma receita mortífera à industrialização, uma vez que a combinação de elevadas taxas de juros reais atraentes ao ingresso do capital externo que ao valorizar a moeda nacional estimulou a substituição da produção nacional por importados, sobretudo os de maior valor agregado e empregos de qualidade.

Por fim, a prevalência do tripé macroeconômico desde 1999, com taxa de câmbio flutuante e metas de superávit fiscal e de inflação, terminou por consolidar a inserção do capital externo no reino da financeirização sustentado por elevadíssimas taxas de juros e crescente desconexão com a antiga relação periférica com os países do nortecentrista. Em realidade, foi implantado o modelo econômico extrovertido, cuja dependência com o exterior determina o dinamismo nacional alimentado por mercado interno contido e asfixiante da produção e consumo de bens industriais, cada vez mais provenientes do exterior.

A reversão desta situação nacional requer pôr em curso um conjunto de políticas voltadas ao desenvolvimento autocentrado, capaz de reconstituir o sistema produtivo nacional competitivo. Ou seja, é necessário o reposicionamento brasileiro na Divisão Internacional do Trabalho da Era Digital, uma vez que o país, enquanto quarto maior mercado mundial de consumo de bens e serviços digitais, continua sendo importador.

Neste sentido, a recomposição do investimento requer o estabelecimento do antigo tripé dos capitais em novas bases. De um lado, existe a circunstância interna de o Estado brasileiro ter a disponibilidade de recursos financeiros em reservas externas e depósitos internos, ao mesmo tempo em que o capital privado nacional se encontra entesourado em fundos de aplicações financeiros especulativos e de curto prazo.

De outro lado, o imbróglio do capital externo. Aquele derivado dos países ocidentais tem sido declinante na última década, inclusive com a saída de grandes corporações transnacionais. Já o capital derivado dos países orientais, especialmente da China tem sido crescente.

Por conta disso, a preparação para o ingresso no século 21 pressupõe a redefinição política da convergência dos capitais em torno de novo padrão de acumulação para o desenvolvimento autocentrado na reindustrialização em plena Era Digital. Isso dificilmente ocorrerá sem o rompimento com a dependência periférica neoliberal gerida pela financeirização e superexploração do trabalho resultante da atual presença na divisão internacional do trabalho como país primário exportador.

Comércio Internacional

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O comércio internacional sempre foi visto, na história da humanidade, como um dos mais ativos instrumentos de enriquecimento das nações, auxiliando na inserção dos países, levando os governos das mais variadas matizes ideológicas a criarem estratégias mais consistentes, políticas efetivas para alavancar suas estruturas econômicas, visando angariar novos mercados, com acumulação de recursos monetários e auxiliando na construção do desenvolvimento dos países, um sonho acalentado para todas as comunidades desde os primórdios da civilização.

Com o incremento da globalização econômica, com impactos variados para todas as regiões da sociedade internacional, uns países ganharam mais e outros, os ganhos foram menores. Nesta competição, percebemos um grande consenso internacional entre os especialistas, que as economias asiáticas foram as grandes ganhadoras, países como o Japão, a Coréia do Sul e a China, se transformaram num polo de forte crescimento econômico, aumentando seus espaços no comércio internacional, angariando recursos monetários, consolidando empresas e conglomerados econômicos, transformando a região que movimenta a economia internacional, despertando protecionismos, estimulando conflitos econômicos, políticos e geopolíticos, que podem culminar em confrontos militares que podem gerar fortes constrangimentos para a comunidade internacional.

A ascensão de um modelo econômico diferente daquele preconizado pelos países ocidentais vem despertando novas narrativas, novos embates e o crescimento de estudos comparativos que buscam compreender e analisar as trajetórias do desenvolvimento econômico das nações. Neste cenário, percebemos o nascimento de um mundo multipolar, com novas oportunidades, novas perspectivas de negócios e novas estratégias de inserção na economia global.

Neste momento, percebemos os grandes projetos de investimentos preconizados pela economia chinesa, a chamada Rota da Seda, que abarca mais de 140 países, um ambicioso projeto de fortes investimentos em infraestrutura global, criando espaços de comércio internacional, fortalecendo laços de integração econômica e produtiva, além de estimular novos horizontes econômicos para as nações, alavancando as regiões e contribuindo para a melhora da economia global.

Destacamos ainda, as novas negociações internacionais que nascem com a ascensão das economias asiáticas, com novos modelos econômicos, que trazem novos horizontes e novos consensos, além de novos acordos comerciais, revitalizando os canais de financiamento, contribuindo com a abertura de novos espaços para outras moedas e novos instrumentos monetários e financeiros. Mesmo percebendo que essas negociações internacionais demandam algum tempo e novas estratégias e planejamentos globais, percebemos que o fortalecimento do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), conhecido como o “banco dos Brics” que tendem a construir novas oportunidades de negócios com outras moedas, dinamizando essas nações e diminuindo as negociações com a moeda norte-americana. Destacamos ainda, o papel dos EUA impondo sanções econômicas e financeiras para a Rússia, sua exclusão do Sistema Swift gerou incertezas e instabilidades, levando muitas nações a se preocuparem que poderiam ser as próximas nações sancionadas, levando-as a buscarem alternativas ao dólar.

Neste cenário, as nações estão reconfigurando seu papel na economia internacional, buscando a inserção em novos espaços de comércio mundial, mas para isso, faz-se necessário compreender o que queremos nos próximos anos, se queremos ser produtores de produtos de baixo valor agregado ou se almejamos construirmos novos horizontes para sua sociedade, sonhando com uma posição de destaque mundial ou continuaremos com uma soberania limitada, dependente de outras nações e se continuaremos como colônia de novas metrópoles. Mas, para trilharmos novos caminhos será fundamental escolhermos novos cenários, reduzindo os conflitos internos que crescem a algumas décadas e as polarizações políticas que destroem as bases da comunidade, com incremento das violências, dos medos e das desesperanças. Neste momento, precisamos profissionalizar nosso comércio internacional ou perpetuamos nossa dependência e subserviência externa.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 26/04/2023.

Conhecimento prático-operatório, por Henrique Pereira Braga

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A Terra é Redonda – 23/04/2023

Comentários sobra as recentes mudanças nos currículos de ciências econômicas

Em matéria publicada no jornal Valor econômico são relatadas as reformas curriculares em cursos de graduação em ciências econômicas, conduzidas por algumas das instituições mais tradicionais no ensino de economia no país.[i] Com o propósito de atrair os jovens, essas instituições de ensino flexibilizaram a grade curricular, ampliando o número de disciplinas optativas; concentraram o ensino da “teoria econômica” nos primeiros dois anos do curso; e inseriram, cada
qual a seu modo, disciplinas relacionadas à análise de dados por meio da tecnologia conhecida como “Big Data”. Celebrada com jubilo pelo jornal, por sua suposta adequação às necessidades do mercado, essas medidas parecem revelar, em nosso juízo, a tecnificação do curso de “ciências econômicas”.

Ao concentrarem as disciplinas “teóricas”, que compreendiam três (ou quatro) anos de estudos, nos primeiros dois anos do curso de graduação, o seu ensino ficou comprometido, para dizer o mínimo, haja vista que não é possível operar essa redução sem alterar os escopos e os conteúdos das disciplinas. Neste sentido, o espaço para crítica (quando existente) fica limitado a algumas pinceladas – por certo reducionistas – que impedem o debate sério e franco das diversas formulações sobre o fenômeno econômico. Não que esse debate ocorra hoje, mas a questão principal é a sua completa interdição.

Um ponto que merece atenção, a meu ver, é que a ênfase dada pelas reformas à análise de dados sugere a subordinação do estudo da teoria à manipulação dos “dados”. Dito de outro modo, as teorias serão ensinadas como um conjunto de princípios heurísticos para manejarem as informações que emergem dos sistemas computacionais complexos. Com isso, o ensino da “ciência econômica” se torna a transmissão de um conhecimento somente prático-operatório, consolidando a ausência do ensino das explicações sobre a natureza e o sentido dos fenômenos econômicos. O que implica tomar como dado, por exemplo, o indivíduo aquisitivo, insaciável e racional – ou mesmo abordar a economia brasileira como desprovida de particularidade oriundas da sua “formação nacional”.

Cabe notar que um conhecimento desta natureza não pode ser denominado de “ciência”, pois se furta ao debate das explicações sobre o fenômeno que se debruça. E, por conseguinte, presta-se a reforçar a forma social em que vivemos – e, não menos importante, somente mitigando suas mais variadas mazelas, que são tomadas como “dadas”. Em suma, a direção das reformas reforça, ao que parece, o pensamento parcial, acrítico e tecnocrático, consolidando uma forma de ensino de economia hegemônica nos departamentos de economia estadunidenses desde meados do século XX, animados pela ideologia do livre mercado e pela perseguição do Macarthismo (MIROWSKI; PLEHWE, 2009).

Outra face dessas reformas está no conjunto de palavras-chave: flexibilidade, itinerário e escolha. São as mesmas palavras utilizadas para caracterizar a reforma do ensino médio iniciada durante o governo Michel Temer (2016-2018). Nessa forma de enquadrar a relação entre a formação do estudante e o mercado de trabalho, coloca-se a causa da queda do interesse pelo curso (de ensino médio ou de ciências econômicas) no currículo engessado e defasado. Contudo, o desinteresse pelos cursos de graduação (em particular nas ciências humanas) resultam de inúmeras razões, sendo uma delas o fato de vivermos numa época de expectativas decrescentes (ARANTES, 2014).

Para os jovens do capitalismo periférico, isso significa, dentre outras coisas, que o futuro que os aguarda será uma luta fratricida pela sua sobrevivência. No caso do curso de ciências econômicas, podemos acrescentar o declínio do emprego nos setores que os economistas tradicionalmente atuavam – como o planejamento e a gerência das indústrias e do governo – fruto dos rumos desse mesmo capitalismo. Com isso, restaram áreas restritas de atuação, disputadas com outros profissionais, que vão da “gestão de portfólio” à aplicação da austeridade na política pública.

Não parece que a inserção da “análise de dados” e “inteligência artificial” dará conta de endereçar esses problemas, uma vez que, de saída, interdita o ensino da crítica ao próprio discurso econômico (e sua prática) que tem contribuído, desde os anos 1990, para o aprofundamento de nossa condição periférica e subalterna. E, por isso, sublinhamos que não se trata de ser contra ou a favor do ensino destas disciplinas; mas, outrossim, de como o seu ensino é desarticulado da reflexão crítica sobre os fenômenos econômicos.

Isso posto, as medidas adotadas certamente atrairão, num primeiro momento, os jovens interessados nas novas tecnologia para esse novo curso de economia. Mas, pelo próprio convívio no campus, os estudantes poderão se questionar: ao invés de fazer um curso no qual a manipulação de dados aparece ao final, não seria melhor ser iniciado nesta investigação desde o começo (como fazem a estatística, a engenharia e outras ciências)?

Os mais críticos poderiam inclusive pensar: em vez de analisar os dados já viesado por certo pensamento econômico, não seria melhor aprender a produção de dados por esses sistemas complexos para não incorrer em erros grosseiros de sua análise? Em suma, para que fazer um curso genérico de manipulação de dados, se eles poderiam fazer os originais, conhecendo, por dentro, a operação destes sistemas?

Quando enfrentarem a concorrência, num mercado trabalho estreitado que caracteriza esse mercado no capitalismo periférico, os questionamentos serão ainda mais viscerais – em particular da parte dos inúmeros derrotados. Sem o aparato crítico para enfrentarem a situação em que se encontrarão, é provável que engrossem as fileiras dos diplomados ressentidos, que são objeto de fácil manipulação pelos discursos de ódio proferidos pela extrema direita.[ii] Por isso, as intenções da reforma podem ser até boas à primeira vista, mas suas consequências podem ser deletérias para a formação profissional dos economistas e, dada a centralidade da economia em nossa vida social, para o país.

Henrique Pereira Braga é professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

Referências
ARANTES, P. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014.
MIROWSKI, P.; PLEHWE, D. The Road from Mont Pèlerin: the making of the neoliberal thought collective. Massachusetts: Harvard University Press, 2009.

Notas:

[i] “Veja o que as faculdades de economia estão fazendo para atrair os jovens”. Jornal Valor Econômico, 11 de abril de 2023. Disponível em: http://glo.bo/3UTiEe8.

[ii] Não por acaso, as pesquisas de intenção de votos da última eleição presidencial mostraram a inclinação dos votos dos mais escolarizados no candidato da extrema direita.

Os escravos de luxo da Faria Lima, por Giovana Madalosso

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Por trás das camisas Ermenegildo Zegna que desfilam pelos restaurantes da Faria Lima, existem pessoas submetidas a condições de trabalho degradantes

Giovana Madalosso, Escritora, roteirista e uma das idealizadoras do movimento Um Grande Dia para as Escritoras.

Folha de São Paulo, 24/04/2023

Quem imagina que por trás das camisas Ermenegildo Zegna que desfilam pelos restaurantes da Faria Lima existem pessoas submetidas a condições de trabalho degradantes?

Durante 15 anos, fui redatora publicitária em quatro das maiores agências de propaganda do Brasil, freelancer em outras e, até hoje, convivo com amigos empregados em algumas delas.

Ninguém fala publicamente sobre o que acontece nessas agências porque, se fizer isso, nunca mais arruma emprego. Como agora estou fora desse meio, posso contar.

Em uma das agências em que trabalhei, um diretor de criação que acabara de chegar recomendou que, durante o expediente, eu fizesse o meu trabalho e, depois, fizesse as campanhas destinadas a outros redatores, a fim de provar que era tão boa quanto eles.

Por meses, trabalhei todos os dias das 9h à meia-noite, inclusive aos sábados e domingos. Um colega que vinha trabalhando cerca de 18 horas por dia nessa época chegou a dormir algumas vezes embaixo da nossa mesa porque, segundo ele, não valia a pena ir para casa para dormir só algumas horinhas –e nosso chefe sabia disso.

Parece um caso isolado, mas não é. Todo mundo que trabalha em agência sabe que não há horário fixo. Os turnos se prolongam ao sabor da demanda, podendo ir madrugada adentro (prática normal nas vésperas de apresentações) sem um centavo de hora extra.
Um dos momentos mais deprimentes da minha trajetória foi num dia em que resolvi sair, na hora do almoço, para doar sangue para o pai de um amigo. Quando estava com o elástico pressionando o meu bíceps, o celular tocou.

— Tá onde?
— Tirando sangue.
— A agulha já entrou?
— Não.
— Então levanta porque, se tirar, talvez precise esperar um pouco. E você tem que voltar agora.

O trabalho que urgia por esta profissional não era o parto de um bebê ou um incêndio com vítimas. Era a adaptação de um comercial de 30 para 15 segundos. O que tornava esse comercial tão urgente? A marca que assinava: uma das maiores empresas de telefonia do Brasil. E isso explica tudo: nesse sistema, cuja face mais caricata é a Faria Lima, quem estala o chicote e dá o ritmo é a grana.

Se, na base do organograma está o criativo e, no topo, um CEO chamado Money, quem está no meio?

A direção da agência (e muitas vezes a multinacional e os investidores que a controlam) e os clientes, que sabem muito bem o que se passa dentro daquelas paredes mas seguem cobrando prazos que, eles também sabem, só podem ser cumpridos por uma equipe movida a prestações de Jeep e doses de Rivotril e Red Bull.

As grandes marcas que estão nas telas bancando as boazinhas com o consumidor —subitamente verdes, feministas e antirracistas por pressão do mercado— fecham os olhos para um esquema de exploração e abuso que, muitas vezes, envolve ainda outros tipos de mão de obra, como a produção de campanhas fantasma.

Em busca de ganhar prêmios, as agências correm atrás de produzir peças inovadoras que, por diversas razões, não são produzidas no dia a dia. Para isso, os escravos de Lacoste são convocados a trabalhar de graça nas poucas horas livres que ainda lhes restam –em uma das agências que trabalhei, éramos obrigados a fazer isso nos feriados.

Uma vez criada a campanha fantasma, uma produtora de cinema e uma de áudio são acionadas para fazer a peça, com a promessa de outros trabalhos remunerados no futuro –ou a ameaça velada de nunca fazê-los. O esquema exploratório ganha novas dimensões: diretor de cinema, fotógrafo, editor, produtor de áudio, músico e locutor trabalham totalmente de graça, sem garantia alguma de receber qualquer coisa depois.

Tudo isso com um único objetivo: o dono da agência aparecer com o prêmio na mídia, angariar novos clientes e seguir propulsionando a roda dentada. Uma roda muito maior do que parece. Para trabalhar dia e noite, esses profissionais precisam de empregadas e babás que assumam a sua porção de existência doméstica. Na casa de cada escravo de luxo, há outro sem luxo e, na casa desse, muitas vezes uma menina deixando de estudar para cuidar dos irmãos mais novos. Se nem quem dirige um Renegade tem coragem de abrir a boca, como esperar isso da ponta mais frágil?

Não surpreende que muitos acionistas e executivos das grandes marcas tenham tentado reeleger um ex-presidente que sempre trabalhou com afinco pelo desmonte dos direitos trabalhistas. É preciso reforçar as estruturas desses porões onde a bola de ferro é a promessa de felicidade proporcionada pelo último modelo de Iphone.

Segundo o sociólogo Orlando Patterson, o que diferencia um escravizado de um servo é a ausência de laços sociais. É possível manter laços saudáveis com semelhantes esquemas de trabalho? É possível se manter saudável?

Nos meus anos de agência, vi serem criadas no meu corpo e no corpo dos meus colegas as seguintes campanhas: herpes, cândida, transtorno alimentar, ansiedade, bipolaridade, síndrome do pânico, psoríase, alcoolismo e tricotilomania. Sem falar na morte de um diretor de arte ainda jovem, que ninguém pode provar estar ligada ao estresse da agência, mas, coincidentemente, aconteceu em um período de sobrecarga de trabalho.

Em 2009, ainda numa multinacional, precisei retirar as amígdalas. Um novo diretor de criação tinha acabado de ser contratado e, ao ver o meu pedido de licença médica, avisou: se você sair agora que entrei, pode pegar mal pra você. Como eu estava tendo amigdalite de repetição, achei por bem fazer o procedimento. Quando voltei, poucos dias depois, fui demitida. Desde então, virei freelancer e, aos poucos, fui deixando de trabalhar para as agências. Hoje falo pelos que não tiveram a mesma sorte que eu.

As entranhas do capitalismo, por Ladislau Dowbor

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No controle da revolução digital, o capital avança à sua fase financista, em que concentra a riqueza em escala jamais vista – sem produzir nada. Para os 99%, trabalho precário e desalento. Governança segue analógica, de mãos atadas e local

Ladislau Dowbor – OUTRAS PALAVRAS – 18/04/2023

O Dicionário de Cambridge define a mais-valia como “a diferença entre o valor que um trabalhador recebe e o valor que o trabalhador acrescenta aos bens ou serviços produzidos”. Não é preciso ser marxista para entender que os altos lucros obtidos com baixos salários levam à exploração e ao crescimento desequilibrado. Essa ainda é uma questão crucial, pois o ciclo econômico exige não apenas produção, mas também poder de compra para que os bens e serviços possam ser vendidos. Na tradicional economia industrial do século 20, um equilíbrio razoável foi alcançado através do New Deal nos EUA e do Welfare State em alguns países, basicamente do Norte Global, com políticas públicas equilibrando interesses por meio de tributação progressiva e provisão de bens e serviços públicos. Esse equilíbrio foi derrubado pela extração de riqueza atualmente dominante por meio do rentismo, ou geração improdutiva de riqueza, acima e muito além da mais-valia tradicional. Chamamos isso de neoliberalismo, mas não há nada de liberal nessa história.

Um desafio importante é considerar até que ponto os novos mecanismos de apropriação de riqueza representam uma mudança sistêmica. A escravidão como sistema era caracterizada pela extração de riqueza por meio do controle brutal e da propriedade dos humanos, fazendo com que os escravos trabalhassem para seus donos. Lembremos que não é algo distante, no Brasil foi formalmente abolida no final do século XIX, e subsistiu como prática ilegal até o século XX, também nos EUA, já na era capitalista moderna. O capitalismo não se importa em usar o controle pré-capitalista da força de trabalho. O feudalismo também representou um sistema, consistindo basicamente em uma era de riqueza baseada na agricultura, controle da terra através de feudos e controle dos trabalhadores através da servidão. O apartheid na África do Sul também foi um sistema, com africanos confinados em territórios delimitados, autorizados a ganhar um salário se tivessem um “passe”, levando a uma curiosa mistura de mineração, indústria e serviços modernos e exclusão territorial. O mundo capitalista não se importou com esse sistema, que aliás ainda funciona na Palestina.

O atual capitalismo financeirizado representa um novo sistema, um “modo de produção” no sentido sistêmico? Marx estudou o mecanismo financeiro e o chamou de “capital fictício”, na medida em que seus ganhos dependiam de um segundo nível de extração, tirando parte dos lucros por meio de juros. Mas era um mero complemento da lógica industrial dominante. Na era atual do que se convencionou chamar de neoliberalismo, François Chesnais atualizou a discussão ao mostrar quão dominante o sistema de intermediação financeira havia se tornado, a ponto de mudar a lógica geral do capitalismo, o que ele chamou de “totalidade sistêmica”, baseada no rentismo e globalização financeira. O que vemos nos últimos anos é uma explosão de estudos sobre o funcionamento desse novo sistema, que, na verdade, pouco tem a ver com a tradicional acumulação de capital e apropriação de mais-valia que ainda ensinamos em nossas universidades. O que estamos enfrentando representa sim uma mudança sistêmica, um outro “modo de produção”, envolvendo a base tecnológica, as relações sociais de produção, a forma de apropriação da riqueza e o quadro institucional.

Robert Reich nos traz à realidade, sobre a origem dos grandes lucros: “Nas décadas de 1950 e 1960, quando a atividade bancária era uma coisa chata, o setor financeiro respondia por apenas 10 a 15% dos lucros corporativos dos Estados Unidos. Mas a desregulamentação tornou as finanças não só empolgantes como extremamente lucrativas. Em meados da década de 1980, o setor financeiro reivindicava 30% dos lucros corporativos e, em 2001 – época em que Wall Street havia se tornado uma gigantesca casa de apostas na qual a casa recebia uma grande parcela das apostas –, reivindicava impressionantes 40%. Isso foi mais de quatro vezes os lucros obtidos em toda a indústria dos EUA.”1. Não são lucros baseados na produção, mas na intermediação financeira e na especulação.

Enquanto Davos afirma que estamos na era da Indústria 4.0, na verdade, estamos na era do rentismo financeiro improdutivo, mas também de outras formas de apropriação improdutiva da riqueza social, inclusive dos bens comuns. Brett Christophers vai direto ao ponto essencial: “Os lucros têm assumido cada vez mais a forma de rentas econômicas – incluindo, entre outras, rentas financeiras – em vez de renda do comércio ou da produção de commodities.” Rentismo e lucro são radicalmente diferentes: “A definição de renta (rent) que uso aqui, então, é efetivamente um híbrido de heterodoxo e ortodoxo: renta derivada da propriedade, posse ou controle de ativos escassos em condições de concorrência limitada ou inexistente”.2 Se a forma dominante de apropriação da riqueza não é mais “comércio e produção de mercadorias”, isso é capitalismo? Com a revolução industrial, o setor agrícola continuou sendo importante para a economia, mas a reestruturação da sociedade como um todo atendeu aos interesses do desenvolvimento industrial e gerou um novo modo de produção. Como está a transformação atual?

A revolução digital é tão profunda em termos de transformação da nossa sociedade quanto foi a revolução industrial há dois séculos. Está transformando a principal forma de apropriação da riqueza por meio da renta de ativos improdutivos, em vez do lucro de atividades produtivas. E as relações trabalhistas estão migrando de sistemas regulares de salários e benefícios sociais seguros para numerosos contratos flexíveis, precariados e empregos informais. Quanto ao quadro institucional, estamos migrando de uma regulamentação de base nacional para uma tomada de poder corporativa global. O controle social, por sua vez, passa do trabalho organizado, com sindicatos e negociações, para um processo global de vigilância e manipulação por meio de algoritmos e de informações e marketing orientados pelo comportamento.

O mais alto poder emergente já não está nas mãos de empresas como a Ford ou a Toyota, mas de plataformas de comunicação e intermediação como Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft (GAFAM), ou plataformas de gestão de ativos financeiros como BlackRock, State Street, Vanguard ou Crédit Suisse/UBS, para citar apenas algumas. O papel do Estado não é mais garantir o equilíbrio geral, mas sim cavar um lugar melhor para o país, no jogo de interesses globais que ele não controla. Chamamos isso de “amigável ao mercado” (market-friendly), embora tenha pouco a ver com a tradicional competição de livre mercado. E temos plataformas globais, incluindo o mundo financeiro, mas nenhuma governança global.

Colocamos essa questão há dois anos, em um artigo chamado It is not a tiger anymore: capitalism woes [Não é mais um tigre: os problemas do capitalismo]. Em vez de apontar para as listras que mudam no tigre, devemos dar um passo atrás e considerar se ainda se trata de um tigre. Como na lógica tradicional, uma certa quantidade de mudanças quantitativas acaba levando a uma transformação qualitativa. Podemos usar o paralelo da Revolução Francesa: em 1789, a indústria, o comércio e os bancos já pressionavam por espaço político, enquanto os aristocratas dançavam em Versalhes. Em expressões atuais, a economia está na era digital, enquanto os fragmentados 193 governos nacionais ainda estão na era analógica. A nova economia não se encaixa no quadro institucional e o resultado é um caos global de alta tecnologia.3

Tantas instituições e pesquisadores preocupados têm gritado o mais alto que podem, apontando para os dramas resultantes. Um exemplo é o número trágico de meninas e mulheres adolescentes em idade reprodutiva: “Mais de 1 bilhão de meninas adolescentes e mulheres sofrem de desnutrição (incluindo baixo peso e baixa estatura), deficiências em micronutrientes essenciais e anemia, com consequências devastadoras para suas vidas e bem-estar.”4 Isso tem consequências catastróficas tanto para as mães quanto para as crianças. Como toleramos isso? Tomando apenas o exemplo da produção mundial de cereais, os 2.774 milhões de toneladas em 2022 significam que produzimos 1 kg por habitante por dia. Uma ração completa de consumo diário adulto de arroz, para dar uma referência, é de 180 gramas. Este é apenas um exemplo. Temos todos os números sobre as mudanças climáticas e podemos até assistir às catástrofes na TV. Os dramas da biodiversidade são apresentados em muitos relatórios. O plástico está em toda parte, e essa é apenas uma dimensão mais visível da poluição global: as corporações o produzem, embolsam os lucros, mas descartam qualquer responsabilidade pelo que acontece depois. Contaminação do solo, destruição de florestas originais no Brasil, Indonésia e Congo, a lista não termina. Olhamos para os dramas que se aprofundam e, caramba, já está na hora de levar as crianças para a escola… Dramas globais e desamparos individuais, o curto prazo se sobrepõe aos desafios estruturais, e vamos cuidar da vida.

A questão, obviamente, é que para além dos dramas temos que olhar para a governança, ou para a ausência de governança, que os gera e nos impede de revertê-los. Quer se chame de “novo contrato ecossocial” como nos relatórios da ONU, ou “green new deal” em tantas organizações sociais, ou “novas regras para o século XXI” nos escritos de Stiglitz, o fato é que o principal desafio está na criação das instituições que nos permitam enfrentar as tendências mais desastrosas.

A ideia é que devemos parar de nos agarrar a discussões ideológicas obsoletas sobre capitalismo/socialismo, ou estado/mercados, e levar a nossa construção de consensos aos meios práticos de enfrentar as questões-chave. Muitos deles são globais e não temos um processo de tomada de decisão global. Dani Rodrik, ao discutir a fratura tecnológica global, dimensão importante de nossos desafios, sugere que devemos usar os mecanismos de governança que temos, que são os governos nacionais e locais, para gerar os pactos regionais e globais necessários. “A cooperação regulatória transnacional e as políticas antitruste podem produzir novos padrões e mecanismos de aplicação. Mesmo onde uma abordagem verdadeiramente global não é possível – porque países autoritários e democráticos têm divergências profundas sobre privacidade, por exemplo – ainda é possível que as democracias cooperem entre si e desenvolvam regras conjuntas.”5 No Brasil, temos trabalhado em uma abordagem local de baixo para cima, propondo a descentralização, e ela é promissora. Mas nada disso atinge a escala da deformação sistêmica que estamos enfrentando.

Temos problemas globais, mas governos em nível nacional, finanças especulativas em vez de investimento produtivo, busca de renta em vez de lucros em insumos socialmente úteis, comunicação baseada em comportamento em vez de informações honestas, e narrativas em vez de transparência.

Mas, acima de tudo, temos sistemas de governança empacados no passado analógico, perdidos no turbilhão da nova revolução digital e no novo conjunto de desafios. Os conflitos estão aumentando em todos os lugares, mas as soluções não estão apenas no nível nacional. Este é um novo sistema, gerado pela revolução digital, e devemos nos concentrar nas questões de governança que a ele correspondem. A Economia guiada por missões, tal como Mazzucato apresenta a questão, parece uma abordagem razoável. Para o Brasil, sistematizei propostas no texto Resgate da função social da economia: uma questão de dignidade humana. Quão fundo devemos afundar no caos global antes que surja energia política suficiente para a mudança?

A saúde dos planos de saúde, por Drauzio Varella

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Se eles quebraram, prejuízo será nosso, de nossas famílias e do SUS

Drauzio Varella, Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

Folha de São Paulo, 20/04/2023

Há anos escrevo que o modelo seguido pela saúde suplementar é insustentável.

Você, prezado leitor, escolhe um plano que caiba em seu orçamento. A partir da assinatura, acha que sua família nunca mais colocará os pés no SUS. A pandemia demonstrou que esse sonho estava fora da realidade para um número grande de usuários, que tiveram seus acessos dificultados ou negados pelo plano.

A jornalista Beth Koike acaba de publicar no Valor Econômico uma análise muito objetiva da crise que a saúde suplementar atravessa. Ela escreve: “A dificuldade no setor é generalizada e passa por operadoras, hospitais e laboratórios. De janeiro a setembro de 2022, as operadoras tiveram um prejuízo líquido de quase R$ 3 bilhões”.

A ideia que a sociedade faz das operadoras dos planos vem dos tempos da inflação: um ramo altamente lucrativo, em que alguns empresários apareciam nas listas dos homens mais ricos do Brasil.

Naquele tempo os índices inflacionários chegaram a 80% ao mês. Aos gestores da saúde suplementar bastava retardar o pagamento dos serviços cobrados pelos hospitais, laboratórios e consultórios para que a dívida se tornasse irrisória. Uma conta de R$ 100, em um mês passava a valer R$ 56.

Com mais 80% de inflação, no mês seguinte o valor caía para R$ 31. As mensalidades, entretanto, eram reajustadas com correções monetárias mais realistas. Lembro de colegas que não se davam ao trabalho de ir ao escritório do plano para receber o pagamento de consultas realizadas 60 dias antes.

Era um negócio da China Antiga. Os custos da assistência médica não lhes traziam preocupação, os ganhos vinham da generosidade do mercado financeiro.

Com o fim da inflação galopante, houve necessidade de adaptações para reduzir gastos: recusa de planos individuais, fusão de operadoras, desaparecimento daquelas de pequeno porte, corte de serviços oferecidos, retardo nas autorizações para exames e cirurgias eletivas, descredenciamento de hospitais e laboratórios de melhor qualidade, entre outras. De 2019 a 2023, os índices de reclamações (que já eram altos) duplicaram.

Anos atrás, no livro “A Saúde dos Planos de Saúde”, o doutor Maurício Ceschin (ex-diretor da ANS) e eu antevíamos os problemas que agora se manifestam com tamanha gravidade.

Não era preciso ser vidente para prever as demandas de uma população que envelhece na velocidade da nossa. A faixa etária dos que têm mais de 60 anos é a que mais cresce; o que levou um século para ocorrer na Europa industrializada aconteceu aqui em menos de 50 anos.

Para agravar, envelhecemos mal: metade das mulheres e dos homens chega aos 60 anos com hipertensão arterial; o número dos que convivem com diabetes do tipo 2 anda perto dos 20 milhões e cresce ano a ano; a obesidade é uma epidemia; o alcoolismo e o fumo minam o organismo de milhões. Essas condições estão associadas a complicações que exigem tratamentos complexos e dispendiosos: infarto do miocárdio, derrame cerebral, câncer, obstruções arteriais, enfisema, problemas ortopédicos e neurológicos.

Pior, a maior parte desses agravos são crônicos, isto é, incuráveis. Nesses casos, o objetivo da assistência médica é o controle pelo resto da vida, seja hipertensão, diabetes, osteoartrite ou demência.

Em linhas gerais, 30% dessas doenças dependem de causas sociais: moradias precárias, salários baixos, ausência de saneamento etc. O estilo de vida é responsável por 50%: fumo, sedentarismo, obesidade etc. Portanto, se a assistência médica resolvesse todos os casos a seu alcance, o impacto seria de apenas 20%.

Os planos enfrentam esses desafios com um modelo antiquado: o “free for service”, que estimula a realização de exames laboratoriais, radiografias e tomografias sem utilidade prática. Nós, médicos, temos grande responsabilidade nesse desperdício nababesco, pois saímos da faculdade sem noções elementares dos custos dos procedimentos que vamos indicar.

Esse modelo é insustentável. A única saída é investirmos na prevenção. Veja os americanos: gastam com saúde mais de US$ 3 trilhões anuais, para uma expectativa média de vida de 78 anos, igual à de Cuba. A saúde dos planos interessa a todo usuário. Se eles quebrarem, talvez os acionistas percam algum dinheiro, mas quem vai ficar no prejuízo seremos nós, as nossas famílias e o SUS.

Smartphones e redes sociais estão destruindo a saúde mental das crianças, por John Murdoch

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Evidência dos efeitos catastróficos do aumento do tempo de tela é esmagadora

John Burn-Murdoch, Repórter de dados do Financial Times

Folha de São Paulo, 20/04/2023

Há algo muito errado com os adolescentes. Entre 1994 e 2010, a proporção de adolescentes britânicos que não se consideravam simpáticos caiu ligeiramente, de 6% para 4%; desde 2010, ela mais do que dobrou. A parcela que se considera um fracasso, que se preocupa muito e que está insatisfeita com a vida também aumentou acentuadamente.

As mesmas tendências são visíveis nos Estados Unidos. O número de estudantes do ensino médio que dizem que sua vida muitas vezes parece sem sentido disparou nos últimos 12 anos. E não é apenas na esfera da língua inglesa. Na França, as taxas de depressão entre jovens de 15 a 24 anos quadruplicaram na última década.

Para onde quer que você olhe, a saúde mental dos jovens está entrando em colapso, e o ponto de inflexão é ameaçadoramente consistente: 2010, mais ou menos um ou dois anos –quando os smartphones passaram do luxo à onipresença.

A teoria de que ter as redes sociais e outras delícias digitais ao alcance da mão 24 horas por dia, sete dias por semana, podem ter um efeito prejudicial na saúde mental não é nova. Sua principal defensora é Jean Twenge, professora de psicologia na Universidade Estadual de San Diego e autora de dezenas de estudos pioneiros sobre o assunto.

Mas ainda está longe de ser universalmente aceita. O trabalho de Twenge e seu coautor habitual, Jonathan Haidt, foi às vezes criticado por simplesmente surfar na onda de oposição popular à grande tecnologia. No entanto, à medida que aumentam as evidências de seus argumentos, muitos se perguntam por que demoramos tanto para aceitar o que estava bem na nossa frente.

Os sinais estão por toda parte. Primeiro, a socialização digital deslocou as reuniões pessoais. A porcentagem de adolescentes americanos que se encontram pessoalmente com amigos menos de uma vez por mês era de 3% entre 1990 e 2010, mas chegou a 10% em 2019, enquanto a parcela que diz estar “constantemente online” agora atingiu 46%.

Alguns respondem que não pode ser apenas que os aplicativos estejam atrapalhando a vida real –afinal, as pessoas que estão mais ocupadas no Instagram também costumam ser as mais ocupadas no mundo real. Mas isso deixa de lado uma dinâmica fundamental: essas tendências operam no nível geracional, não no individual. Como o tempo de tela aumentou, todo mundo sai menos para encontrar amigos.

Mas a dinâmica no nível individual também é impressionante. Estudos mostram que quanto mais tempo os adolescentes passam nas redes sociais pior é sua saúde mental. O gradiente é mais acentuado para as meninas, que também passam muito mais tempo nas redes sociais do que os meninos, explicando a deterioração mais acentuada da saúde mental entre garotas.

É uma história semelhante com as taxas mais altas de depressão entre os adolescentes liberais do que entre os conservadores. Se você suspeita que crianças liberais estão mais deprimidas por terem crescido em uma cultura que valoriza a preocupação com a injustiça, aconselho cautela.

Primeiro, a pesquisa de Twenge aponta uma explicação mais provável: os jovens liberais simplesmente passam mais tempo online do que os conservadores. Em segundo lugar, vemos a mesma tendência crescer entre os conservadores –só está atrasada.

Alguns sugerem que a sociedade moderna é mais aberta à discussão sobre saúde mental, então o que estamos vendo é apenas um aumento dos relatos, não da prevalência. Mas os adolescentes britânicos que passam cinco ou mais horas por dia nas redes sociais correm um risco duas a três vezes maior de autoagressão do que seus colegas menos conectados. É uma história semelhante nos Estados Unidos com ideação suicida. O mais sombrio de tudo é que agora a tendência de rápida ascensão também é clara nas taxas de mortes por suicídio entre adolescentes britânicos e americanos.

Outros apontam que correlação não é causalidade. De fato. Mas hoje temos um corpo crescente de pesquisas mostrando que reduzir o tempo nas redes sociais melhora a saúde mental.

Então o que podemos fazer? A resposta mais comum é “educar as crianças e os pais”. Mas, como mostram os casos de obesidade e tabagismo, as campanhas de informação pública são notoriamente ineficazes diante do vício.

Outra opção seria basear-se na evidência de que, quando as pessoas são incentivadas a fazer uma pausa prolongada nas redes sociais, algumas se desconectam para sempre. E depois há a regulamentação –por que não aumentar o limite de idade para aplicativos sociais e punir as empresas que não o aplicarem?

Em última análise, porém, não sou otimista. Combater a obesidade tem sido tão difícil porque você não pode impedir as pessoas de comer. E lutar contra o vício em rede social é difícil porque você não pode impedir as pessoas de usar smartphones e aplicativos. Até que alguém invente o equivalente a uma droga para emagrecer aplicada ao Instagram, o futuro parece sombrio.

Oportunidades asiáticas

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Constantemente estamos refletindo sobre as grandes dificuldades da sociedade global, conflitos crescentes, aumento da desigualdade, degradação do meio ambiente, desemprego em ascensão, crescimento da tecnologia, dentre outros, que exigem uma participação mais efetivas dos governos nacionais, com políticas públicas mais estruturadas e consistentes, investimentos em infraestrutura, financiamento de pesquisa científica e geração de empregos, além de uma estratégia de reindustrialização da economia, diminuindo a dependência de produtos industrializados importados e uma autonomia política para defender seus interesses nacionais.

Percebemos que os ventos internacionais estão soprando a favor da sociedade nacional, levando-
nos a reconfigurar seu papel global e construindo novos espaços geopolíticos, neste cenário estamos observando uma nova consciência sobre as relações internacionais e a importância de reconstruirmos nossa estrutura econômica, buscando novos espaços de atuação, como a economia da saúde, a economia verde, a bioeconomia e as energias limpas, dentre outros setores econômicos e estratégicos que podem impulsionar a sociedade e fortalecer a economia local.

O mundo contemporâneo é marcado por grandes desafios e oportunidades, a concorrência cresce e colocam as nações em constantes confrontos econômicos e geopolíticos, exigindo uma unicidade interna dos agentes políticos e produtivos. Nestes cenários de incertezas e instabilidades, as empresas buscam apoios internos, recursos financeiros subsidiados e proteção externa como forma de sobrevivência e angariar espaços em mercados internacionais. As nações que não compreenderem as novas regras do cenário global e continuarem defendendo ideias ultrapassadas serão destruídas no cenário de competição exacerbada.

A ascensão asiática nos traz grandes ensinamentos para economias como a brasileira. Como compreender as grandes transformações de nações que eram marcadas por uma economia de sobrevivência, centradas em produtos de baixo valor agregado e população pouco qualificada e que, num período de menos de quarenta anos, conseguiram revolucionar sua estrutura produtiva, investindo fortemente em educação de qualidade, incentivos monetários para seus atores internos, com crédito farto e taxas de juros reduzidas e cobranças crescentes para angariar espaços econômicos internacionais e ainda, devemos destacar as pressões feitas pelos governos nacionais para que empresas estrangeiras, ao se instalassem, transferissem tecnologias avançadas.

Sem essas políticas públicas, dificilmente essas nações conseguiriam ostentar dados econômicos surpreendentes, com taxas elevadas de industrialização, com forte capacidade de produção de produtos de alto valor agregado, com forte valorização da ciência e da tecnologia, com desemprego baixo e renda per capita em ascensão.

Na contemporaneidade, as políticas adotadas anteriormente pelos países asiáticos se tornariam mais difíceis, as instituições globais restringem essas políticas e impõem limitações, com isso, as nações devem utilizar políticas ousadas para auxiliar na reconstrução das economias. No caso brasileiro, precisamos utilizar um ativo fundamental para o desenvolvimento econômico, precisamos fomentar o mercado interno, fortalecendo um universo de mais de duzentos milhões de pessoas sedentos de consumo e fonte de grandes lucros para atores externos e internos.

Neste momento, é fundamental uma política externa soberana, sólida e centrada em valores democráticos, assertivos e de inclusão social, negociando com outras nações a transferência de tecnologias, aprendendo com países que estão mais avançados, barganhando conhecimentos, recrutando profissionais altamente qualificados que fugiram do Brasil, valorizando a ciência e reestruturando as políticas de estímulo ao desenvolvimento tecnológico, transformando-as em políticas de Estado, garantindo recursos sólidos e consistentes, utilizando a Amazônia como um espaço de fortalecimento da ciência nacional e deixando de lado uma visão ultrapassada de pilhagem, de exploração e de destruição.

Neste momento, percebemos que as mudanças geopolíticas são imensas, novas lideranças, novos projetos e novos horizontes, precisamos de novas experiências, novos valores e precisamos renovar nossas esperanças.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 19/04/2023;

Crise de dívida anunciada, por Marcos de Vasconcellos

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Com juros em alta, 15% dos países de baixa renda já entraram em crise de dívida, segundo FMI

Marcos de Vasconcellos, Jornalista, assessor de investimentos e fundador do Monitor do Mercado.

Folha de São Paulo, 17/04/2023

A diretora-geral do FMI (Fundo Monetário Internacional), Kristalina Georgieva, fez um alerta, nesta semana, para um dos problemas dos juros altos generalizados (que não são exclusividade nossa): os países pobres estão entrando em crise de dívida.

Não é dívida qualquer, é com o FMI. Coisa de 20 anos atrás, a negociação das dívidas do Brasil e tantos outros países com o órgão internacional eram notícia de destaque.

Kristalina falou que, com os aumentos locais de juros, 15% dos países de baixa renda já entraram em crise de dívida — ou seja, não vão conseguir pagar como planejado. E o número pode aumentar para 45% dessas nações, afirmou. Estaremos entre elas? Não se sabe ainda, mas o aviso está dado.

Apesar da dificuldade em equalizar os juros, a diretora do FMI acredita que eles ainda são necessários, em uma visão global, para o controle da inflação. Sua principal sugestão é renegociar.

As tentativas de calibrar “o preço do dinheiro” tem trazido algumas boas oportunidades para investidores. Explico a seguir.

O aviso do FMI é mais lenha para o embate sobre a possível redução da nossa taxa básica de juros (Selic). A desaceleração da inflação oficial (IPCA) de março deu mais um empurrãozinho. Como já disse aqui, os números e projeções precisam chegar na burocracia do Banco Central. Não adianta só vontade.

A pressão para baixar está aumentando no setor privado. Na visão de um megaempresário, controlador de algumas companhias mais do que conhecidas dos investidores, com quem conversei recentemente, as taxas de juros estão erradas, sufocando o crescimento em nome de uma meta de inflação irreal para nossos padrões.

O bilionário, que conhece por dentro diferentes setores e operações de multinacionais, faz uma provocação interessante: “Alguém fala da meta da inflação da China?”

É verdade que, quando se fala de China, o número que vem à roda é o crescimento do PIB (Produto Interno Bruto). Oficialmente, aliás, a inflação de lá em 2022 foi de 2%. A meta é cerca de 3%.

Estar abaixo dela acende uma luz amarela, porque significa que a demanda está em baixa. A taxa básica de juros lá está em 3,65% para empréstimos de um ano e em 4,3% para os de cinco anos.

Ainda assim, o governo chinês definiu uma meta de crescimento para o PIB de 5% neste ano.

Economistas esperam até um pouco mais que isso. Já o nosso, deve subir 0,91% até o fim de 2023, de acordo com as previsões mais recentes reunidas pelo Banco Central, no Boletim Focus.

Com os juros nas alturas e pouca perspectiva de crescimento, emprestar dinheiro continua um bom negócio. Não só para bancos, mas para gente como a gente. Falo dos chamados títulos de renda fixa.

O JP Morgan anunciou que espera retornos de dois dígitos ainda neste ano, com títulos de dívidas nos países emergentes.

Mais especificamente, títulos do Brasil, da Indonésia e do México estão na mira do banco, de acordo com a Bloomberg. São lugares onde os bancos centrais “têm atuado de forma decisiva e oferecem taxas de juros reais positivas”.

Além dos títulos públicos, há boas oportunidades naqueles emitidos por empresas. A alta dos juros já havia tornado mais difícil para as empresas conseguir crédito. O caso
das Americanas trouxe ainda mais dificuldades na negociação com os bancos. Com isso, os prêmios para quem topa emprestar ficaram mais altos.

Três gigantes da Bolsa estão com ofertas chamativas de títulos de renda fixa, oferecendo como retorno a variação do IPCA no período mais taxas que vão de 6,2% a 6,7%: o mega frigorífico Minerva, a petroleira Prio (ex-PetroRio), e a segunda maior distribuidora de combustíveis do país, Raízen.

As três estão no topo dos rankings de agências de avaliação de riscos, como S&P e Fitch, com notas AAA ou AA.

São apostas interessantes, pensando inclusive na possibilidade de redução de taxa de juros. Se eles realmente caírem, esse tipo de papel passa a valer mais no chamado mercado secundário e dá para fazer um bom dinheiro sem esperar o vencimento previsto, que vai de 2029 a 2037, nos exemplos que citei.

Redes sociais são feitas para favorecer radicalismo de Bolsonaro, diz pesquisador

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Autor de ‘A Máquina do Caos’ aponta que regulação de big techs deve focar mais promoção de discurso de ódio que a moderação

Walter Porto, Editor de Livros da Folha.

Folha de São Paulo, 16/04/2023.

Resumo – O americano Max Fisher transforma anos de investigação jornalística sobre empresas do Vale do Silício em um robusto livro-reportagem que conta como as big techs passaram de grande descoberta a grande problema. Nesta entrevista, ele diz que a extrema direita se beneficia da lógica dos algoritmos e discute os limites dos controles nacionais e da moderação interna à promoção de conteúdos condenáveis. Fisher também vê exagero na reação à nova inteligência artificial, que não deverá levar à extinção humana

Enquanto trabalhava como jornalista para publicações como The New York Times e The Atlantic, Max Fisher pôde escarafunchar documentos, ouvir fontes anônimas e entrevistar bambambãs da tecnologia para delinear aos poucos uma história de medo e delírio no Vale de Silício.

Num investimento de anos agora sedimentado no robusto livro “A Máquina do Caos”, ele explica com didática exemplar como empresas de mídia social, antes voltadas a conectar amigos de faculdade e distribuir vídeos engraçados de animais, se impregnaram de ingredientes viciantes e potencialmente corrosivos surgidos em fóruns como 4chan e se tornaram assunto incontornável no debate sobre o futuro da democracia no mundo.

Nesta entrevista, ele discute por que a extrema direita é beneficiária natural dos algoritmos dessas plataformas, como os legisladores devem encarar sua regulação e porque as reações escandalizadas à inteligência artificial têm cheiro de jogada de marketing.

Parece que estamos num momento em que se cimentou uma percepção de que as redes sociais podem ter efeito deletério sobre seus usuários. Houve um ponto de virada nesse sentido? 

Quando eu comecei a trabalhar nas histórias que compõem o livro, era controverso sugerir que as redes sociais não só continham desinformação e discurso de ódio, mas de fato podiam mudar a maneira como as pessoas pensavam, em uma escala suficiente até para distorcer a política.

Mas histórias que encontrei no Brasil, por exemplo, eram especialmente fortes —você via conspirações que haviam começado nas redes sociais chegarem até o topo da política. Isso tornou as coisas inegáveis e gerou uma forte reação pública contra empresas que antes eram respeitadas.

Por que a extrema direita é tão eficaz em usar redes sociais a seu favor e a esquerda é tão ineficaz?  

A resposta curta é que não temos certeza, mas isso realmente é detectado em diversos estudos em diversos países. Em todos eles, o sistema de todas as grandes plataformas promove a extrema direita muito mais do que qualquer outra coisa. É algo inerente a como essas plataformas operam.

Não acho que seja um esforço deliberado no Vale do Silício, mas ao desenhar sistemas que buscam o que mais engaja a atenção das pessoas, o mais efetivo é o ódio, o nós versus eles, as conspirações paranoicas. É o pensamento que diz que o meu grupo está sendo ameaçado por outro grupo assustador que precisamos enfrentar. E isso se alinha a políticas de extrema direita.

Durante a última eleição no Brasil, a esquerda discutiu muito como melhorar a comunicação nas redes de maneira a ser tão boa nesse campo quanto a direita. Pelo que você está dizendo, é uma causa perdida. 

É verdade. No começo, parecia que a extrema direita era muito boa em usar as redes sociais. Mas quanto mais aprendemos, mais vemos que não é o caso.

Bolsonaro e seu grupo usam a mesma tática nas redes há muito tempo, desde 2013. No começo, não tinham muito sucesso. Lá para 2016, o Facebook, o Youtube e o Twitter mudaram seu funcionamento e tornaram seu algoritmo mais sofisticado, cumprindo um papel bem mais direto na maneira como você experimentava essas redes. Imediatamente, o público dos bolsonaristas ficou muito maior.

E isso foi antes de pesquisas mostrarem o aumento de popularidade de Bolsonaro entre os brasileiros. Essa mudança nas plataformas os empurrou para cima.

Claro, havia outros aspectos da política brasileira em curso, mas Bolsonaro e políticos similares foram, em grande parte, beneficiários passivos.

É curioso que você argumente que os donos das plataformas não promovem essa vertente política deliberadamente. 

É interessante entrar nessas empresas e conversar com as pessoas que desenham esses sistemas. São sempre pessoas de esquerda —não muito, mas tendendo à esquerda.

Eles realmente não gostam de Donald Trump, de Bolsonaro, mas a maioria deles são incapazes de admitir para si mesmos que a maneira como arquitetaram seus sistemas favorece a direita. E não é porque são burros, mas porque todo seu incentivo financeiro e cultural diz que, quanto mais gente usa redes sociais, melhor é para o mundo.

Eles realmente acreditam que devem construir o sistema de um jeito que incentive as pessoas a ficar ali pelo máximo de tempo. E, claro, há muita gente cínica que só quer ganhar dinheiro. Dá para entender. É muito dinheiro.

Parece que essas empresas ganharam tamanha proporção que se tornaram grandes demais para serem confrontadas por governos. Joe Biden já disse não ser muito fã de Mark Zuckerberg, mas fico pensando o que ele pode fazer a essa altura. 

É difícil para governos como o brasileiro, porque a vantagem de governos fora dos Estados Unidos sobre essas empresas é limitada. Veja a União Europeia, que é um mercado enorme e poderoso. Eles estão fartos das empresas de tecnologia, impuseram multas gigantescas e ameaçaram com regulação severa. E isso não mudou muito as plataformas.

Para o bem ou para o mal, a pressão significativa só pode vir do governo americano. No passado, eu era mais pessimista quanto à possibilidade de regular companhias de tecnologia. Hoje sou menos.

Antes os congressistas não entendiam como as plataformas operavam, agora boa parte deles têm uma visão sofisticada sobre o que exatamente torna esses sistemas perigosos.

O nosso sistema político está hoje num momento complicado, mas agora em Washington há ímpeto real para uma regulamentação poderosa e direcionada de forma precisa às empresas de mídia social.

Há um caso na Suprema Corte que, se os juízes decidirem favoravelmente, considerará essas empresas responsáveis pelo dano no mundo real de qualquer coisa que seus sistemas tenham promovido. É uma maneira nova de encarar a questão, potencialmente efetiva para mudar de fato os incentivos das empresas.

No debate sobre esse tipo de regulamentação, um grande tema é como conter a desinformação ao mesmo tempo que se permite a liberdade de expressão. Qual seu ponto de vista? 

Houve uma mudança na maneira de pensar esse assunto. Nós costumávamos enxergar como um problema de moderação, ou seja, as plataformas têm que ser responsáveis por encontrar a desinformação e removê-la. Não é mais assim que estudiosos pensam, porque é impossível moderar tudo e a melhora na moderação não fez muito efeito.

Agora vemos isso como um problema de promoção. O perigo das redes é promover artificialmente o alcance de desinformação e conteúdo danoso. A mudança precisa se voltar a impedir essa promoção.

As empresas odeiam essa abordagem. Preferem falar de moderação, porque podem dizer que o governo só precisa oferecer a eles novas regras, contratam mais moderadores e continuam a construir plataformas que produzem quantidades enormes de desinformação. Essa mudança os assusta porque vai ao coração de seu modelo de negócios.

Tivemos recentemente a carta de intelectuais e empresários pedindo a suspensão do desenvolvimento de inteligência artificial. Como isso se relaciona aos temas que discute no livro? 

Às vezes o hype em torno da inteligência artificial fica grande demais. No livro eu falo da invenção do “machine learning” [aprendizado por máquinas], algo que antes chamávamos de inteligência artificial. Hoje chamamos de inteligência artificial os programas de linguagem.

Quando o “deep learning” foi inventado, há 15 anos, também houve reação similar. As coisas que se faziam ali pareciam muito impressionantes, e as pessoas surtaram. “Vão conquistar a humanidade, a Skynet veio nos buscar.”

Mas o que surgiu da era do “deep learning” foram coisas como a reprodução automática do Spotify, o tradutor do Google e as plataformas de mídia social. A próxima era de inteligência artificial também vai ser assim. A aplicação dessa tecnologia vai beneficiar o interesse comercial das corporações do Vale do Silício, que vão tornar seus produtos mais eficientes. Pode ser uma coisa ruim ou boa, mas não vai levar à extinção humana.

Você diria então que a carta aberta é uma reação exagerada? 

Ou isso ou uma jogada publicitária. Um jeito de ler essa carta é que a inteligência artificial é uma tecnologia tão poderosa, tão assombrosa que você não vai acreditar. Todo esse pânico vindo do Vale do Silício me cheira a uma tentativa de aumentar o hype.

Por que atacar escolas, por Muniz Sodré.

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Jogos e anarquia informativa confirmam a crise disciplinar e exacerbam a hostilidade à educação moral

Muniz Sodré, Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo

Folha de São Paulo, 16/04/2023

Na crônica sombria dos serial killers americanos existe a figura do “copycat”, aquele que imita criminosos precedentes. Noutro plano, mas na mesma esfera do crime, também se reproduzem em diferentes regiões os massacres aleatórios, com escolas como alvos preferenciais. Nos EUA são quase semanais, já alarmantes entre nós. Foi traumatizante o assassinato de crianças numa creche.

Ainda não se deu resposta satisfatória à escolha desse alvo. Escola, uma das matrizes da modernidade, é a forma, ao lado de outras (como nação, mercado), pela qual se incorporam saberes e se orientam cívica e profissionalmente os indivíduos. Com esta capa institucional, serve também de adaptação cognitiva ao modo de produção dominante. É dispositivo que metaboliza os parâmetros sociais de reprodução do sistema.

Mas escolarização é o processo interativo acionado pela forma cultural. Isso não se faz sem disciplina, o verdadeiro lastro ideológico da escola. O sociólogo e educador Émile Durkheim sustentava a ideia liberal de uma “autoridade regular” a quem caberia exercer a disciplina indispensável à moral, entendida como um sistema de hábitos e preceitos. Este princípio é indissociável da educação formal.

A isso se contrapõe a mídia contemporânea, cuja forma ideológica, essencialmente neoliberal, pauta-se por persuasão. Por mais que seus conteúdos editem apoios à educação e à ciência, ela é estruturalmente avessa à autoridade escolar. Evidencia-se na lógica do espetáculo e nas redes, onde jogos e anarquia informativa confirmam a crise disciplinar e exacerbam a hostilidade à educação moral.

Árdua é a competição junto aos jovens entre as formas disciplinares e as persuasivas. Estas últimas, com vantagem, guiam-se pelo individualismo neoliberal, cujos parâmetros concorrenciais do salve-se-quem-puder geram ansiedade, depressão e automutilação. Por outro lado, a escola, modelada no século 19 ao modo do controle disciplinar e do púlpito, é tanto objeto de afetos positivos como potencialmente virulentos, movidos pelo rancor.

Nos EUA e no Brasil, a organização carcerária cresce na gestão de corpos educacionalmente desamparados, mas fracassa em termos de reeducação e reintegração social. Nos dois países, cresce também a construção de realidades paralelas pelos sistemas de mídia. A ponte entre elas é o ódio, normalizado nos últimos quatro anos pelo discurso do bestialismo antiescola e anticultura: rastilho de contágio para massacres, já aceso por parte da sociedade eleitoral com o voto extremista. As redes sociais, onde ignorância empodera, são o novo espaço de desinvestimento das forças educativas. A mão que empunha a machadinha tem partido e plataforma digital.

As causas reais do declínio do Ocidente, por Owen Jones

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Discurso conservador aponta “falência moral”. Mas em nome da liberdade, Estado Social foi destroçado e as condições de vida caem em 90% dos países. Novos modelos de celular não mascaram o desespero, nem o colapso da democracia

Owen Jones, Colunista, escritor, comentarista e ativista político britânico, ligado à ala esquerda do Partido Trabalhista. Colunista do “Guardian” e do “New Statasman” –

OUTRAS PALAVRAS – 12/04/2023

Se existe algo como uma marcha avante do progresso humano, ela não apenas parou, como está dando marcha à ré. No outono passado, um relatório da ONU, que foi pouco discutido, observou que o índice de desenvolvimento humano havia diminuído em 90% dos países por dois anos consecutivos, uma queda sem precedentes por mais de três décadas. A pandemia e a invasão da Ucrânia pela Rússia tiveram um papel, mas a queda também foi consequência de “grandes mudanças sociais e econômicas, mudanças planetárias perigosas e avultamentos maciços na polarização política e social”.

Talvez você esteja familiarizado com essa conversa de “declínio do Ocidente”: tende a ser uma pauta da direita reacionária, que culpa, de várias maneiras, a decadência moral, o multiculturalismo e uma reavaliação da história da Europa por nossa queda. Mas certamente a culpa nessa história não é dos direitos das minorias, da diversidade ou do reconhecimento dos crimes do Ocidente. Nossa sorte coletiva virou dramaticamente. E esta virada foi produzida por um sistema econômico que prometeu liberdade pessoal, mas em vez disso trouxe insegurança em larga escala, e que nos prejudicou de todas as formas concebíveis, desde nosso bem-estar emocional e físico até as circunstâncias materiais em que vivemos.

Tome uma medida básica: vida e morte. O governo do Reino Unido foi forçado a atrasar o aumento da idade da aposentadoria pelo Estado após uma queda na expectativa de vida sem precedentes desde a Segunda Guerra Mundial. Embora certamente o índice tenha piorado com a pandemia, a expectativa de vida já vinha decaindo em muitas comunidades inglesas anos antes da covid chegar às nossas costas. Nos EUA, a expectativa de vida diminuiu de quase 79 anos, em 2019, para 76 dois anos depois, a maior queda em um século.

E os sintomas mórbidos de uma crise de bem-estar estão por toda parte. Do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos, a taxa de suicídio aumentou 30% nos primeiros 20 anos do século XXI. No mesmo passo em que a “guerra às drogas” recrudesceu, também aumentaram as mortes por abuso de substâncias: nos EUA, elas cresceram exponencialmente desde a década de 1970, ajudando a impulsionar a queda na expectativa de vida, enquanto no Reino Unido atingiram seu nível mais alto desde que os registros começaram. Karl Marx certa vez descreveu a religião como o “suspiro da criatura oprimida”: hoje essa é uma descrição mais adequada para a dependência em drogas, impulsionada pela automedicação dos aflitos por traumas e miséria. De fato, é difícil atravessar ileso o salto global na incidência de depressão, cujos números aumentaram em quase um quinto entre 2005 e 2015, e também aumentaram entre os adolescentes dos EUA.

Observando os escombros deixados pela guerra mais sangrenta da humanidade há quase um século, um cidadão da Europa Ocidental em 1945 teria ficado agradavelmente surpreso ao descobrir que os anos mais prósperos da história os aguardavam. Tal foi o aumento sem precedentes nos padrões de vida no Ocidente nas três décadas após a guerra, que foram batizadas de “Anos dourados”; para os franceses foram os “30 anos gloriosos”. No Reino Unido, houve uma queda particularmente acentuada nos salários na década de 2010, e em todo o mundo ocidental houve estagnação. Antes da pandemia, o poder de compra dos trabalhadores estadunidenses havia quase não tinha mudado por quatro décadas.

É fácil se deixar levar pela ilusão de que o dramático progresso ainda está acontecendo. Os chips de computador ficam cada vez menores; processadores de computador cada vez mais rápidos; os celulares cada vez mais dinâmicos. Mas o avanço tecnológico não se traduz automaticamente em melhorias na condição humana. Em grande parte do Ocidente, a estagnação e o declínio se tornaram a característica definidora de nossa era. Se você quer entender por que a política ficou mais raivosa e polarizada, não procure explicações fáceis, como o comportamento argumentativo fomentado pelas mídias sociais. Um grande experimento está em andamento há mais de uma geração: e se você cortar o otimismo das sociedades ricas que antes consideravam que a chegada de padrões de vida cada vez maiores era algo garantido?

A ascensão do “livre mercado”, tal como nos foi prometido, deveria desencadear prosperidade sem fim. Mas enquanto a tão demonizada era de sindicatos fortes, nacionalização e Estados de bem-estar social em expansão trouxe a maior melhora nos padrões de vida da história, nosso modelo econômico atual está se decompondo ao nosso redor: o fedor está se tornando mais difícil de ignorar. Em ambos os lados do Atlântico, o crescimento econômico caiu desde que se recuaram as fronteiras do Estado, e esse crescimento mais limitado tem maior probabilidade de ser tragado para as contas bancárias dos ricos dourados.

Como isso explica, digamos, a queda na expectativa de vida causada pelo aumento do uso de opiáceos nos Estados Unidos? Sabemos que o desaparecimento de empregos seguros e bem pagos criou as condições de miséria em que a dependência química prospera. A crescente desigualdade ajudou a estimular a deterioração da saúde mental: taxas de depressão estão correlacionadas com baixa renda, por exemplo. Desde o colapso geracional na construção moradias públicas até a dizimação da assistência social, a segurança que sustenta uma existência humana confortável foi eliminada.

E, no entanto, essa interrupção no progresso humano quase não é mencionada, muito menos debatida. No momento em que nossa civilização enfrenta múltiplos desafios existenciais, com que rapidez a estagnação e o declínio podem se tornar uma queda livre. Você não precisa de uma imaginação hiperativa para ponderar as possíveis consequências brutais, especialmente se os políticos progressistas não oferecerem respostas convincentes. Nossas vidas estão encurtando, nosso bem-estar está diminuindo, nossa segurança sendo desmantelada. Estas são as condições de desespero… e uma amarga colheita desponta no horizonte.

Carta Mensal – Março 2023

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O noticiário brasileiro se caracteriza por discussões constantes sobre as políticas adotadas pelo novo governo. No mês de março percebemos uma verdadeira obsessão pela mídia corporativa para criar fortes constrangimentos para o governo eleito, distribuindo fofocas, divulgando fake News e o estímulo de discussões desnecessárias, questões irrelevantes e preocupantes que incrementam a nossa incivilidade, depois reclamamos dos resultados destrutivos.

Infelizmente, percebemos que muitos grupos de mídia estão se comportando como um verdadeiro partido político, defendendo bandeiras, criando e estimulando picuinhas e estimulando a divisão do pais, gerando fortes constrangimentos políticos, conflitos econômicos e divulgando sentimentos de ódios e ressentimentos, contribuindo, indiretamente, para aumentar os lucros e elevando suas cifras monetárias.

O mês de março foi marcado pelas discussões fiscais do governo brasileiro, onde os economistas liberais, sempre eles, aparecem para propagar suas ideias e seus interesses, defendendo a autonomia da Autoridade Monetária, que passaram a ser visto como um verdadeiro mantra, algo que não e possível se rever e sem alterar, como muitos defendem que, se alterar, geraria fortes constrangimentos econômicos e geraria abalos da credibilidade e da confiabilidade do Mercado.

As críticas feitas pelo Presidente da República são vistas como um comportamento populista e defenestrados pelos profissionais da mídia corporativa e pelos detentores do dinheiro grosso da economia nacional. As críticas fazem parte da democracia, um Presidente recentemente eleito possui toda a legitimidade para fazer essas críticas, além de que, com essa política monetária restritiva tende a inviabilizar seu governo e os efeitos negativos para a economia são elevadas, gerando mais constrangimentos econômicos, mas falência de organizações e mais desemprego, vide o caso das Lojas Americanas, além de aumentar o endividamento do Estado e piorar as condições fiscais e financeiras do Estado Nacional, aumentando a dívida interna.

Embora saibamos que todos os governos são passíveis de críticas, acredito que todas as pessoas precisam dar mais tempo para que este novo governo está se instalando e, nestas críticas é fundamentais que as críticas sejam embasadas e feitas em todos os governos com as mesmas metodologias, nada vale se criticar com comparações irreais e tolerância com um em detrimento de outros grupos políticos.

A economia brasileira vem passando por momentos de grandes incertezas, desde os meados da década de 1980, com baixo crescimento econômico, diminuição da renda dos trabalhadores e aumento do desemprego, cujos impactos são generalizados para toda a comunidade, com aumento do endividamento das famílias, incremento da inadimplência de empresas e seus impactos negativos devem aumentar, dificultando a recuperação da estrutura econômica e produtiva e postergando medidas fundamentais para que a sociedade faça as pazes com o crescimento econômico

No mês de março o ambiente econômico brasileiro dominou as discussões sobre a sociedade brasileira, muitos grupos acreditavam que, a eleição presidencial, traria novos espaços de crescimento da economia e recuperação imediata dos indicadores econômicos e produtivos. Essas perspectivas não se mostraram verdadeiras, na verdade as expectativas foram e são inalcançáveis no curto prazo, levando a sociedade a se cansar e aumentar as críticas sobre o governo, aumentando os ressentimentos que se repercute com as avaliações do governo. Outro ponto muito batido neste mês, foi a autonomia do Banco Central e a manutenção das taxas de juros elevadas, que impedem a melhoria da economia e o ambiente de negócios.

Depois de grandes discussões, no final do mês o governo apresentou um esboço de um novo arcabouço fiscal para substituir o desastrado Teto de Gastos, neste modelo percebemos avaliações positivas e negativas. Os que defenderam o arcabouço fiscal destacamos os economistas liberais, na maioria e, como críticos, destacamos grupos atrelados pelos setores mais a esquerda, pessoas e grupos que defenderam a eleição do Presidente Lula, mas esperavam uma ação mais consistente para construir uma recuperação econômica mais sólida e imediata, gerando falas agressivas e críticas estridentes.

O novo arcabouço fiscal deve ser visto como um instrumento mais suave, menos agressivos e marcado por eixos sólidos de flexibilidade, uma forma de angariar defensores dos setores adversários, uma medida mais negociada e pacificadora. Alguns criticam a suavidade em excesso da medida e, para muitos, algo que se pode fazer neste momento, num país polarizado, com Câmara dominada por uma direita radical, ou seja, vivemos momentos de grandes embates políticos e conflitos elevados. Vivemos um momento de grandes desafios, o próprio governo não consegue mensurar seu poder no Legislativo, desde a posse, nada foi enviado para apreciação do Congresso Nacional;

Outro assunto que chamou a atenção na sociedade foi o Novo Ensino Médio, que levou alunos, diretores e professores a se movimentaram para revogar essa medida costurada no governo Temer, gerando críticas e discussões generalizadas. Neste embate, percebemos que o governo esteve sempre na dúvida, o Ministro da Educação, Camilo Santana postergou medidas e evitou posicionamentos, mas foi levado a rever seu comportamento e abriu espaço espaço para a discussão com a comunidade, iniciando uma conversação construtiva para a comunidade e o debate, postergando em alguns meses o Novo Ensino Médio, gerando aplausos e preocupações.

Outro ponto que gerou graves constrangimentos para a comunidade foi o aumento dos ataques as escolas e creches, esses episódios cresceram fortemente nos últimos anos, alguns defendendo que as raízes destes ataques foram os discursos de ódios e ressentimentos, estimulados pelas redes sociais que divulgam essas barbaridades, além de especialistas que culpam ainda o crescimento de vendas de armas e artefatos de defesa que tiveram crescimento assustador nos anos recentes.

Outros acreditam que as raízes são mais estruturais, destacando a degradação das famílias, as dificuldades econômicas, o baixo crescimento econômico, o incremento do desemprego e a diminuição das oportunidades das pessoas, dos jovens e das crianças, com isso, estamos criando uma sociedade cada vez mais violenta, mais agressiva e fortemente destrutiva.

O Brasil vive momentos de grandes transformações, precisamos pensar nas questões fiscais e financeiras, a educação é fundamental e, principalmente, precisamos reconstruir os nossos espaços de sociabilidade, sem isso, não conseguiremos construir uma nação.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Circular (Unyleya), Mestre, Doutor em Sociologia (Unesp) e professor universitário.

Mundo Multipolar

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Vivemos momentos de grandes alterações nas estruturas econômicas e produtivas, com impactos generalizados por todas as regiões, um ambiente centrado numa crescente concorrência, novos modelos de negócios, predominância da internet e da economia digital, além de fortes transformações no mundo do trabalho. Anteriormente, as discussões sobre a tecnologia e o emprego preocupavam os trabalhadores pouco qualificados, na contemporaneidade os trabalhadores mais qualificados sentem na pele a substituição pela inteligência artificial, pelos universos criados pelo ChapGPT, uma verdadeira revolução nos costumes, comportamentos, hábitos, gerando medos, receios, reações agressivas e preocupantes.

Neste cenário de fortes transformações geopolíticas, percebemos o surgimento e a consolidação de um mundo multipolar, novos atores globais estão ganhando poder econômico e força política, levando as nações hegemônicas a terem que repensar seus comportamentos, seus valores e suas formas de atuação nos cenários internacionais. Desde o desaparecimento da União Soviética, os Estados Unidos passaram a dominar todos os eixos da economia internacional, domínio tecnológico, controle militar, avançado poder científico, além do controle da moeda internacional, sólida estrutura econômica e forte influência cultural sobre todas as regiões do mundo.

Na contemporaneidade, percebemos movimentos internacionais interessantes, surgem novas lideranças globais, novos polos tecnológicos, novos modelos de negócios e, com isso, percebemos os conflitos geopolíticos em franco crescimento. Os Estados Unidos não conseguem controlar as outras nações, tendo dificuldade de impor seus ganhos econômicos, seus valores e interesses políticos, desta forma, percebemos os conflitos com outros países, estimulando confrontos bélicos e militares, espaço que domina com maestria, lembrando-os que seus gastos militares são os mais elevados do mundo, sendo que seu orçamento ultrapassa mais 900 bilhões de dólares, quase metade do PIB brasileiro.

Neste novo momento, estamos vivenciando o surgimento da ascensão chinesa, uma economia que ganhou relevância no cenário internacional desde 1980, saindo de uma economia intermediária para se colocar como a segunda maior economia global, responsável por quase 34% da estrutura industrial mundial, dono de grande desenvolvimento tecnológico, fortes incentivos em ciência e pesquisa científica, onde encontramos muitos setores mais avançados que os norte-americanos, além de fortes superávits comerciais e acúmulos de trilhões de dólares de reservas monetárias internacionais, com isso, percebemos um forte constrangimento para as nações ocidentais, países que controlaram a economia internacional desde o século XVIII, e que passam a retomar o controle dos rumos da quarta revolução industrial.

Desde os anos 1990, os Estados Unidos dominam a sociedade internacional, impondo seus interesses, provocando conflitos militares e estimulando movimentos de outras nações, buscando impor seus valores, seus comportamentos e interesses monetários, usando seu poder monetário, sua moeda e seu sistema financeiro como forma de manter sua hegemonia, impondo suas teses econômicas, incentivando seu liberalismo, estimulando as privatizações e a redução do Estado na economia, teses que, na maioria da vezes, não eram seguidas como eram preconizadas, escondendo medidas protecionistas, intervencionistas para enganar os incautos.

O surgimento de um mundo multipolar, como o que estamos percebendo, exige forte atuação dos governos nos cenários internacionais, novas negociações globais, estimulando discussões geopolíticas, a construção de estratégias mais elaboradas e que vislumbrem o médio e o longo prazo das sociedades, além de reflexões nacionais, estimulando as universidades e os centros de pesquisas para construírem um novo cenário, mais sólido e consistente, deixando de lado uma visão imediatista, individualista e centrada nos interesses coletivos, retomando valores de civilidade, valorizando o meio ambiente, a sustentabilidade e buscando a construção de novas esperanças, sem isso, novamente continuaremos nos vendendo para os poderes dominantes que vibram e estimulam uma visão subdesenvolvida, atrasada, dependente e subalterna.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 12/04/2023.