Relação conflituosa

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Vivemos momentos de grandes inquietações. Vivemos momentos de grandes transformações estruturais. Vivemos momentos de desesperanças e preocupações constantes. Vivemos momentos de grandes oportunidades e grandes desafios. Vivemos momentos de conflitos globais, mudanças geopolíticas e guerras devastadoras. Vivemos um momento de lembranças, memórias e saudades crescentes. Vivemos numa sociedade, marcada por poucas certezas e grandes incertezas, onde a economia se transforma, destrói modelos de negócios e, ao mesmo tempo, criam esperanças e realizações.

Neste ambiente, percebemos que os conflitos econômicos se alteram em momentos de cooperação intensa, as nações vivem num cenário de forte integração econômica e produtiva. Os modelos econômicos geram uma interdependência entre governos e sociedade, exigindo uma forte dose de sabedoria nas relações internacionais. Neste cenário, percebemos os conflitos econômicos entre os Estados Unidos e a China gerando impactos sobre toda a economia internacional, criando alianças pontuais, medos e alinhamentos, tudo isso, contribuindo para acirrar as rivalidades.

Nesta sociedade, percebemos que, embora essas nações almejem a hegemonia no mercado internacional, sabemos que são duas nações que estão totalmente integradas e interdependentes uma com a outra, levando os conflitos econômicos e os confrontos políticos para problemas muito além de seus territórios, impactando fortemente para outras regiões e seus parceiros comerciais. Os confrontos econômicos se transformam em conflitos culturais, motivando violências crescentes, xenofobias abertas e agressividades que prescindem de uma diplomacia mais amena e mais construtiva, rechaçando ressentimentos, agressões e ódios generalizados.

A globalização econômica contribuiu ativamente para essa integração produtiva. São nações que se tornaram interdependentes, levando a um aumento do superávit comercial a favor da economia chinesa. Com esse incremento comercial, a China acumula muitos recursos monetários investindo-os maciçamente sobre os títulos norte-americanos, desta forma, as duas economias estão totalmente integradas e interdependentes, uma dependência mútua que prescinde de uma convivência mais harmoniosa. Os Estados Unidos dependem da importação dos produtos industriais chineses e, em contrapartida, a China precisa fortemente do dinamismo do mercado interno norte-americano.

A China possui a maior estrutura industrial do mundo, responsável por mais de 34% da indústria globo, em contrapartida, a economia norte-americana perdeu espaço na indústria global, perdendo empresas e transferindo plantas industriais para as nações asiáticas, notadamente a China, investindo bilhões de dólares na economia chinesa e, para satisfazer as necessidades da sua população, absorvendo bilhões de dólares para garantir o consumo da população norte-americana, gerando uma dependência conjunta entre as duas nações.

Neste cenário, percebemos que os conflitos estão centrados nas questões ligadas à Taiwan, uma região pertencente ao gigante asiático, que almeja sua autonomia, gerando um grande imbróglio que poderia culminar em conflito militar com a entrada dos Estados Unidos neste conflito, defendendo seus interesses gerando instabilidades crescentes na região, uma verdadeira corrida armamentista na Ásia que traria graves constrangimentos para a economia internacional.

Por trás deste conflito, encontramos uma nação, Taiwan, que conseguiu se desenvolver economicamente com fortes investimentos em tecnologia, melhorando as condições de vida de sua população e, neste caminho, angariou uma posição central na economia internacional, desenvolvendo tecnologias avançadas e ultrassofisticadas na produção de microprocessadores, os chamados Chips, instrumento central no mundo contemporâneo, na chamada sociedade do conhecimento. Neste conflito, o domínio da tecnologia de Taiwan pode ser um diferencial para o incremento tecnológico chinês no setor de microprocessadores, reduzindo a distância entre as nações que buscam a hegemonia internacional.

Embora percebendo que as nações sejam interdependentes e integradas, os conflitos entre nações hegemônicas tendem a criar constrangimentos internacionais, aumentando instabilidades e incertezas. Será que não aprendemos nada com a pandemia?

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 31/05/2023.

Agenda equivocada na indústria, por Samuel Pessoa.

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Programa para carros contraria agenda ambiental e ajuste das contas pública

Samuel Pessoa, Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP.

Folha de São Paulo, 28/05/2023

Nas últimas décadas, houve forte queda da participação da indústria no PIB brasileiro. Do pico de 34%, em 1985, para os atuais 10%. Parte significativa da queda deve-se a dois fatos não ligados diretamente ao desempenho do setor.

Primeiro, dado que o progresso tecnológico é maior na indústria, o preço dos bens industriais relativamente ao preço dos serviços reduz-se. O valor da participação cairá naturalmente.

O segundo motivo é que, nas séries antigas, não se mensurava bem o tamanho dos serviços, e, portanto, o produto total do país era subestimado.

Corrigindo esses dois fatores, meu saudoso colega do FGV Ibre Regis Bonelli mostrou que o pico nos anos 1980 foi de 24%, não de 34%. Mesmo assim, houve, de meados dos anos 1980 até hoje, forte queda de 14 pontos percentuais do PIB.

Assim, cabe uma reflexão sobre a queda da participação da indústria no PIB, para além dos fatores elencados nos parágrafos anteriores.

Um primeiro motivo é comum a todas as economias: o crescimento econômico reduz a demanda por bens relativamente à demanda por serviços. Em economês, diz-se que serviços apresentam elevada elasticidade-renda da demanda. Da mesma forma que, na primeira metade do século 20, houve a transição da agropecuária para a indústria, nas últimas décadas temos passado pela transição da indústria para os serviços.

Ou seja, em grande medida a queda da participação da indústria no PIB é um fenômeno normal e compartilhado por inúmeras economias.

No entanto, as economias asiáticas apresentam participação da indústria no PIB bem maior. Os economistas heterodoxos/desenvolvimentistas enfatizam a política industrial e a existência de subsídios concedidos por bancos de desenvolvimento. Há dois fatores que nossos colegas desenvolvimentistas esquecem.

O primeiro é a elevadíssima taxa de poupança das economias asiáticas. Há um efeito direto da elevada taxa de poupança sobre a indústria e um efeito indireto. O efeito indireto é mais simples: elevada poupança conduz a juros domésticos menores e, portanto, barateamento de um fator de produção, o capital, empregado intensamente pela indústria de transformação.

O efeito direto é sobre a composição da demanda. Se a poupança é elevada, o consumo é baixo. Se o consumo é baixo, o país irá apresentar superávit externo. Bens são mais transacionáveis internacionalmente do que serviços. Quem poupa muito exporta muito e, consequentemente, produzirá mais bens.

A elevada poupança dos países asiáticos deve-se ao baixíssimo Estado de bem-estar que vigora por lá. Para ter uma ideia, basta olhar para os gastos previdenciários. O Japão tem quatro vezes mais idosos, como proporção da população, do que o Brasil, e, no entanto, não gasta mais com aposentadorias do que nós.

O segundo fator que os economistas desenvolvimentistas esquecem é que os asiáticos construíram sistemas públicos de educação fundamental de elevadíssima qualidade. Há fartura de mão de obra qualificada.

Esses dois fatores —elevada poupança e elevada qualidade da qualificação da força de trabalho— explicam muito melhor a elevada participação da indústria no PIB do que o BNDES deles.

Por aqui, o governo anuncia programa para subsidiar carros a combustível fóssil para a classe média. Medida contra as agendas de meio ambiente nas cidades (qualidade do ar e congestionamento das vias públicas), de transição energética e de ajuste das contas públicas por meio de redução do gasto tributário (isenção tributária), que tem sido reiteradamente denunciado pelo ministro Haddad. Continuaremos na vanguarda do atraso.

G7 deve aceitar que não pode governar o mundo, por Martin Wolf

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Hegemonia americana e domínio econômico do grupo agora são história

Martin Wolf, Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

Folha de São Paulo, 24/05/2023

“Adeus G7, olá G20.” Esse foi o título de um artigo do The Economist sobre a primeira cúpula do Grupo dos 20 em Washington em 2008, argumentando que representava “uma mudança decisiva na velha ordem”. Hoje, as esperanças de uma ordem econômica global cooperativa, que atingiram seu ápice na cúpula do G20 em Londres em abril de 2009, evaporaram.

No entanto, dificilmente é um caso de “Adeus G20, olá G7”. O mundo anterior de dominação do G7 é ainda mais distante que o da cooperação do G20. Nem a cooperação global nem a dominação ocidental parecem viáveis. O que pode acontecer? Infelizmente, “divisão” pode ser uma resposta e “anarquia”, outra.

Não é o que sugere o comunicado do encontro dos chefes de governo do G7 em Hiroshima, no Japão, que é incrivelmente abrangente.

Inclui: Ucrânia; desarmamento e não proliferação; a região do Indo-Pacífico; a economia global; a mudança climática; o meio ambiente; energia, incluindo energia limpa; resiliência econômica e segurança econômica; comércio; segurança alimentar; saúde; trabalho; educação; digital; ciência e tecnologia; gênero; direitos humanos, refugiados, migração e democracia; terrorismo, extremismo violento e crime organizado transnacional; e relações com China, Afeganistão e Irã (entre outros países).

Com 19 mil palavras, parece um manifesto por um governo mundial. Em contraste, o comunicado da cúpula do G20 em Londres, em abril de 2009, tinha pouco mais de 3 mil palavras. Essa comparação é injusta, dado o foco na crise econômica naquele momento. Porém, uma lista de desejos sem foco não pode ser útil: quando tudo é prioridade, nada é.

Além disso, tanto o momento “unipolar” dos Estados Unidos quanto o domínio econômico do G7 são história.

É verdade que este último ainda é o bloco econômico mais poderoso e coeso do mundo. Continua, por exemplo, a produzir todas as principais moedas de reserva. No entanto, entre 2000 e 2023, sua participação na produção global (em poder de compra) terá caído de 44% para 30%, enquanto a de todos os países de alta renda terá caído de 57% para 41%. Enquanto isso, a participação da China terá subido de 7% para 19%.

A China é hoje uma superpotência econômica. Por meio de sua Belt and Road Initiative (BRI ou, Nova Rota da Seda), tornou-se um grande investidor em (e credor de) países em desenvolvimento, embora, previsivelmente, esteja tendo que lidar com as consequentes dívidas incobráveis tão familiares aos países do G7.

Para alguns países emergentes e em desenvolvimento, a China é um parceiro econômico mais importante do que o G7: o Brasil é um exemplo. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva pode ter participado do G7, mas não pode ignorar, sensatamente, o peso da China.

O G7 também está alcançando outros: sua reunião no Japão incluiu Índia, Brasil, Indonésia, Vietnã, Austrália e Coreia do Sul. Porém, 19 países, aparentemente, se inscreveram para ingressar no Brics, que já inclui Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.

Quando Jim O’Neill inventou os Brics, em 2001, pensou que seria uma categoria economicamente relevante. Eu pensei que os Brics seriam apenas China e Índia. Economicamente, estava certo. Porém, os Brics agora parecem estar a caminho de ser um agrupamento mundial relevante.

Claramente, o que une seus membros é o desejo de não depender dos caprichos dos EUA e de seus aliados próximos, que dominaram o mundo nos últimos dois séculos. Por quanto tempo, afinal, pode (ou, aliás, deveria) o G7, com 10% da população mundial, continuar assim?

Às vezes, a pessoa simplesmente tem que se ajustar à realidade. Deixe de lado por enquanto os objetivos políticos dos membros do G7, que incluem justamente a necessidade de preservar a democracia em casa e defender suas fronteiras –hoje, sobretudo, na Ucrânia.

Esta é de fato a luta do Ocidente, mas é improvável que um dia seja a do mundo, cuja maior parte tem outros problemas e preocupações, mais prementes. Foi bom que o presidente Volodimir Zelensky tenha participado da cúpula. No entanto, só o Ocidente determinará a sobrevivência da Ucrânia.

Se nos voltarmos para a economia, também é bom que a noção de dissociação, um absurdo prejudicial, tenha se transformado em uma ideia de “eliminação de riscos”. Se esta puder ser transformada em formulação de políticas focada e racional, será ainda melhor, mas será muito mais difícil fazer isso do que muitos agora parecem imaginar.

É coerente diversificar os suprimentos de energia, matérias-primas e componentes vitais. Contudo, para usar um exemplo notável, apenas diversificar o fornecimento de chips avançados de Taiwan será realmente difícil.

Uma questão ainda maior é como a economia global deve ser administrada.

O FMI e o Banco Mundial serão bastiões do poder do G7 em um mundo cada vez mais dividido? Em caso afirmativo, como e quando eles obterão os novos recursos de que precisam para lidar com os desafios atuais?

Como também se coordenarão com as organizações que a China e seus aliados estão criando? Não seria melhor admitir a realidade e ajustar as cotas e participações, reconhecer as grandes mudanças de poder econômico no mundo?

A China não vai desaparecer. Por que não devemos permitir que ela tenha mais voz em troca de uma participação plena nas negociações de dívidas? De modo semelhante, por que não deveríamos reanimar a OMC (Organização Mundial do Comércio), em troca do reconhecimento do gigante asiático de que não pode mais esperar ser tratada como um país em desenvolvimento?

Além de tudo isso, devemos reconhecer que qualquer conversa sobre “reduzir o risco” que não se concentre nas duas maiores ameaças que enfrentamos –as da guerra e do clima– é coar mosquitos enquanto se engolem camelos.

Sim, o G7 deve defender seus valores e seus interesses, mas não pode governar o mundo, mesmo que o destino do mundo também seja o de seus membros. É preciso encontrar um caminho para a cooperação, mais uma vez.

Tradução de Luiz Roberto Gonçalves

A ascensão da extrema direita, por Alejandro Pérez Polo.

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A crise orgânica do capital forneceu o terreno para a irrupção da ultradireita

A Terra é Redonda – 23/05/2023

Alejandro Pérez Polo

O crash de 2008: aqui começou tudo

O ano era 2012. A crise económica resultante da Grande Recessão estava a grassar na Europa. As mobilizações populares em Espanha (15M e a greve geral de março de 2012) e os protestos violentos na Grécia tinham infetado todo o mundo ocidental. Chegaram ao coração do império: em Nova Iorque, os cidadãos manifestavam-se em Wall Street através de Occupy. Não havia quase vestígios da extrema direita em lado nenhum. Nem mesmo em França a estreante Marine Le Pen lograva chegar à segunda volta das eleições presidenciais, que haveriam ser decididas entre Sarkozy e Hollande, com uma vitória socialista.

Estava em curso uma fase de decomposição ideológica e orgânica do neoliberalismo. Os consensos econômicos da globalização, após a queda da U.R.S.S., tinham sido estilhaçados para sempre. A lua-de-mel que durou de 1991 a 2008, na qual o capitalismo desenfreado conseguiu incorporar na sua lógica todos os países da ex-União Soviética, terminou. Uma subsunção formal e material de todo o globo chegara ao seu fim.

Isto resultou numa grande crise de hegemonia que se alastrou a todos os estratos de poder. Assim, ninguém foi poupado ao desafio: crise de representação, que levou a uma crise dos partidos tradicionais e à possibilidade do surgimento de novas forças políticas. Crise dos meios de comunicação, que tentaram defender o indefensável e perderam a credibilidade pública. Isto preparou o caminho para as notícias falsas (fake news) que a extrema direita tanto explorará, e para o surgimento de novos meios de comunicação social. Houve também uma crise da instituição científica por se ter associado ao público e ao oficial, que mais tarde abriria o campo para a psicose conspiracionista que atingiria o seu auge com a pandemia da COVID-19.

A crise orgânica do capital forneceu o terreno para a irrupção da ultradireita, que exploraria ao máximo todos os derivados do colapso ideológico do edifício neoliberal. No entanto, foi
primeiro a esquerda popular que agarrou a oportunidade.

Em 2012, após duas décadas de inanição, digerindo a derrota histórica da U.R.S.S., a esquerda assumiu a liderança. Viu o momento e soube ligar-se tanto com o pulsar da rua como com a proposta constituinte subsequente. Foram aprendidas lições, renovados manuais e empreendido um período de reflexão profunda, que permitiu que o novo cenário fosse confrontado com garantias.

Assim, em 2015, Alexis Tsipras ganhou a presidência do governo grego, numa vitória eleitoral inimaginável, após décadas de bipartidarismo. Em Espanha, Pablo Iglesias e o Podemos obtiveram mais de cinco milhões de votos (20,2% dos votos) o que, somado ao milhão de votos da Izquierda Unida, posicionou pela primeira vez a esquerda ao PSOE acima da social-democracia (6 milhões de votos contra 5,5). Bernie Sanders abalou as fundações do Partido Democrático dos EUA: Hillary Clinton teve de servir-se de todos os recursos do aparelho para o deter. Em Itália e França, tanto o Movimento Cinco Estrelas como Mélenchon estavam a começar a subir nas sondagens. Houve um impulso popular liderado pela esquerda em todo o mundo ocidental.

Dois anos mais tarde, no entanto, tudo tinha mudado. A fragilidade da dinâmica popular de esquerda abalou alguns apostadores corajosos, que voltaram às zonas de conforto clássicas, talvez impressionados ou intimidados pela sua própria força eleitoral. Dos discursos que bebiam da hipótese nacional-popular latinoamericana (soberania popular, democratização da economia e disputa sobre a universalidade da nação), deslocaram-se para os eixos clássicos da esquerda ilustrada da classe média (ambientalismo, direitos das minorias, europeísmo). A derrota de Tsipras pela União Europeia, após o referendo contra as medidas draconianas de austeridade, foi um golpe do qual foi difícil recuperar.

Em 2017, Donald Trump tornou-se presidente dos Estados Unidos da América, depois de ter vencido Hillary Clinton. Marine Le Pen conseguiu chegar ao segundo turno das eleições presidenciais francesas, num primeiro embate contra Emmanuel Macron que seria repetido em 2022. Em Itália, a Lega alcançou o seu melhor resultado de sempre (16%, a base do que mais tarde se tornaria Fratelli d’Italia) e, em Espanha, o fenómeno VOX começou a tomar forma, que despertaria com uma força poderosa em 2018 (nas eleições andaluzas). Restava a experiência italiana, com o Movimento Cinco Estrelas a liderar um executivo de coligação com o populismo da Lega, após uma importante vitória eleitoral, construída sobre o desafio às velhas elites económicas e políticas.

O mapa já tinha mudado. Agora, mal estreado o novo ano de 2023, a extrema direita governa em Itália, após uma vitória eleitoral esmagadora, revalidou a presidência húngara com Orban, bem como a da Polónia, com o partido Direito e Justiça, VOX detém cerca de 15% dos votos em Espanha, Le Pen conseguiu ultrapassar 41% em França e prepara-se para um assalto ao Eliseu em 2027, tal como Trump se prepara para a Casa Branca em 2024.

Mais uma vez, como na década de 2000-2010, apenas a América Latina se apresenta como o novo farol da esquerda no mundo. Como nessa altura, vários líderes populares ganharam a presidência dos seus respetivos países, sob uma clara aposta de esquerda, não alinhada com qualquer grande potência ocidental, mesmo que sejam agora um pouco mais defensivos e acompanhados de um poderoso rearmamento das suas respetivas direitas nacionais.

O que aconteceu para que a extrema direita assumisse a liderança da direita no Ocidente?

O medo é a emoção dominante na recessão

A crise de 2008 mudou tudo. O colapso do sistema financeiro norte-americano arrastou todas as potências alinhadas com os Estados Unidos da América, enquanto a periferia do mundo (China, Rússia, Brasil, Índia) avançou, tirando partido da fragilidade ocidental para continuar a crescer e a ocupar mercados. Um realinhamento global começou a tomar forma devido à fraqueza dos Estados Unidos da América e à força dos países emergentes. Uma nova arquitetura estava em construção, na qual novos poderes assumiriam um papel de liderança, capaz de conceber o seu modelo com uma grande capacidade de negociação.

Os declínios civilizacionais nunca acontecem da noite para o dia. Demoram décadas a materializar-se. O fim do consenso neoliberal significou, na realidade, o fim da própria crença na superioridade do sistema ocidental em relação a outros sistemas económicos do globo. A esquerda ocidental foi capaz de o ler corretamente na altura e, por essa razão, surgiu a aposta radical num sistema mais justo, que distribuísse riqueza e alterasse as regras do jogo, em conexão com aquele momento destituinte. Havia ainda esperança em poder tomar o poder para transformar as relações de dominação.

Contudo, os velhos fantasmas surgem frequentemente quando tudo parece estar no bom caminho. Foi o cientista político Dominique Moïsi que propôs uma nova forma de compreender a geopolítica para além das relações económicas entre países. Segundo esta forma de pensar, para além dos valores coletivos, há narrativas que moldam os grandes estados de espírito das nações. Assim, Dominique Moïsi propõe-se a falar de uma “geopolítica das emoções”, em que diversas potências atuam sob a influência de diferentes sentimentos: o medo seria a emoção dominante no Ocidente, a humilhação no mundo islâmico e a esperança na Ásia.

Esta forma de olhar para os principais estados anímicos que motivam diferentes governos é bastante explicativa da forma como lidamos com as questões globais. O medo no Ocidente empurra-o na direção de políticas mais centradas na segurança e leva-o a estar constantemente na defensiva no plano ideológico. Se compararmos isto com a atitude do governo chinês, por exemplo, eles são movidos pela confiança num futuro promissor. Eles estão na ofensiva, movidos pela esperança nos seus próprios valores, no seu próprio sistema e na sua própria liderança.

No Ocidente há medo: medo dos refugiados e de um mundo exterior que assoma tragicamente todos os dias nas águas do Mediterrâneo. Medo da Rússia e das novas potências emergentes. Medo das alterações climáticas, medo de protestos sociais que já não podem ser geridos eficientemente, medo de notícias falsas e do populismo. Medo, em suma, do futuro. Este medo é o principal ingrediente de que se alimenta a extrema-direita, que oferece discursos mais tranquilizadores, estruturados em torno do regresso de valores e estados fortes, prontos a lutar face às turbulências do nosso século.

A extrema direita já não é futurista como o velho fascismo italiano ou o nazismo alemão, que prometia a glória de um Terceiro Reich. A extrema direita é reativa e procura, acima de tudo, atenuar os medos decorrentes das ansiedades existenciais que atravessam o Ocidente como um todo. Sem uma esquerda capaz de assumir estas ansiedades existenciais, o terreno será fértil para os seus sucessivos triunfos eleitorais.

A extrema direita não emergiu contra a democracia “burguesa” ou liberal. Eles não estão a abandonar nenhum navio, mas a tomar os seus comandos. A compatibilidade de Giulia Meloni com a União Europeia e a OTAN mostra que a extrema-direita não se opõe às elites europeias, mas que são, isso sim, a sua expressão mais sobreaquecida. Aspiram a assumir os receios que a velha direita liberal já não consegue enfrentar. Aspiram a refundar a Europa numa chave cristã e civilizadora, para a proteger das ameaças que a assolariam.

É neste ponto que eles encontram grande apelo entre o eleitorado e uma grande força em suas hipóteses. Ao contrário de muitos esquerdistas populistas, as expressões de extrema direita dificilmente regrediram eleitoralmente desde que rebentaram na cena política, porque estão inscritas num zeitgeist: são a expressão mais clara do colapso civilizacional resultante da crise de 2008 e da perda de posições do Ocidente no mundo.

O primeiro grande nó para desvendar a força política e discursiva da extrema direita reside nestes elementos geopolíticos, emocionais e políticos. Mas não é o único nó. Há outro nó que precisa de ser tratado como prioritário: a expressão das classes trabalhadoras excluídas do discurso público.

A distância sentimental da esquerda em relação ao povo

Quando em França surgiram os coletes amarelos, um protesto social de uma enorme envergadura, muitas pessoas à esquerda tinham uma desconfiança intuitiva destes “homens” das “províncias”, que se mobilizavam contra o imposto sobre o gasóleo. A mesma desconfiança foi sentida quando, em março de 2022, os camionistas espanhóis encenaram uma marcha atrás contra o governo de coligação por causa do aumento dos preços da gasolina. Foram acusados de serem instrumentalizados pela extrema direita, em vez de receberem ligação emocional às suas exigências (uma justa reivindicação contra uma escalada impossível de aumentos de preços).

Durante a última década, um ódio crescente às classes trabalhadoras foi inoculado em Espanha e no resto do Ocidente. Esta estigmatização, perfeitamente descrita no fenomenal livro Chavs de Owen Jones, tem vindo a derivar para uma completa demonização. Os trabalhadores são retratados como um bando de sexistas e racistas. Longe de combater estes arquétipos, a maior parte da esquerda assumiu estes clichés como seus. Muitas expressões populares são suspeitas. De facto, os ataques ao que tem sido chamado vermelho-pardismo (“rojipardismo“) estão estruturados em torno destes preconceitos. O vermelho-pardismo seria qualquer “esquerda obsoleta”, que não assumisse como seus, entre outros, os avanços do feminismo ou da luta contra o racismo (multiculturalismo).

Na tentativa de alinhar a esquerda com as elites realmente existentes, o disciplinamento discursivo veio do lado da suposta sofisticação dos postulados verdes, liberais e da tolerância para com o diferente. Estas ideias políticas, apresentadas como o auge da cultura, são postuladas como representando um estádio mais avançada do ser humano. Não existe uma análise dos preconceitos de classe destas ideias urbanitas, mas eles operam fortemente nos discursos mainstream.

A globalização criou vencedores e perdedores. Hoje, estamos numa fase que Esteban Hernández descreve como de desglobalização, acentuada pela guerra na Ucrânia, mas há uma parte das elites e das classes médias que continuam a apostar na dissolução das soberanias nacionais, convencidas de que a União Europeia é o melhor horizonte possível. Assim, uma fação esclarecida da classe média (jornalistas, académicos, pessoas das profissões liberais e parte da função pública) acredita numa aliança com as elites globalistas. Olha para cima devido à vertigem que sente quando olha para baixo, para o abismo da precariedade e da pobreza, de que faz parte mais de 35% do nosso país. Essa fação da classe média em desaparição confia em ser incluída no mel do progresso das elites e tem muito medo de ser deixada de fora, na periferia do progresso.

Quem assume os desconfortos, os anseios e as vozes dos que estão na base, se a classe média iluminada se recusa a aliar-se a eles? Pois bem, é a ultradireita que tira partido do flanco. A ultradireita consegue unificar os excluídos de cima (essas elites nacionais que foram excluídas do globalismo) e os excluídos de baixo (os perdedores da globalização) sob um único eixo.

Como explica o geógrafo e ensaísta francês Christophe Guilluy, as classes dominantes são postuladas como sendo a força positiva do progresso, os únicos herdeiros da melhor tradição da cultura ocidental (pureza) e as classes populares deixam de ser uma referência cultural positiva, como eram antes dos anos 1980, tornando-se os perdedores e fracassados do sistema, culpados da sua própria miséria e atraso político-moral. O desaparecimento da classe média, para este autor francês, inaugura uma nova era em que os que se encontram no topo se desentenderão com os que se encontram na base, que serão condenados ao ostracismo cultural e moral. Desta forma, as classes populares são excluídas como sujeitos ativos com uma voz própria.

Esta ruptura entre o mundo de acima e o mundo de abaixo provoca, ao mesmo tempo, que os expulsos da sociedade (as classes populares) construam as suas próprias narrativas que são impermeáveis às narrativas das classes dominantes. Daqui surge o populismo, como um regresso ao povo, uma tentativa de reconstruir a sociedade quebrada pela cisão das elites. No entanto, este populismo pode oscilar entre a crispação autoritária (ultradireita) e uma abertura democrática (republicana).

Para que a expressão popular não seja monopolizada pela extrema direita e não seja redirecionada para lugares escuros, é necessário colocar o bem comum e a ideia de povo de novo no centro das políticas e do discurso. Recuperando a linguagem popular e colocando os valores da comunidade sob uma luz positiva. Uma tarefa importante é afastar-se dos jogos moralistas que as elites utilizam para estigmatizar as classes populares, para reposicionar de novo a referência cultural nas expressões que vêm de baixo. Afirmando o seu próprio projeto, que não está subordinado nem às velhas elites nacionais, nem às novas elites globais, mas que assume o comando das alianças interclassistas.

A ultradireita é uma expressão do colapso do Ocidente. Hoje em dia, é necessário tomar em conta este colapso, para que haja uma solução democrática e popular para as crises que lhe sucederão.

Da mesma forma, é necessário tomar conta das ansiedades existenciais que este colapso está a provocar entre as maiorias sociais (medos e desconfortos profundos), assumindo positivamente uma nova expressividade que aspira a refundar a ideia de povo, face à fragmentação e dissolução do social, propostas pelas elites. Caso contrário, a ultradireita continuará a conquistar espaços políticos, sociais e culturais, acumulando mais vitórias eleitorais. Está nas nossas mãos não permitir que isto aconteça.

*Alejandro Pérez Polo é jornalista e mestre em filosofia pela Universidade de Paris VIII.

Pressões do mercado

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Os movimentos econômicos da sociedade contemporânea são interessantes e nos auxiliam a compreender as movimentações da economia brasileira. Neste ambiente, percebemos os conflitos entre a política econômica do governo e os anseios dos agentes dos mercados, que prezam pelos grandes lucros imediatos, pela desestatização, a desregulamentação e a compra de ativos governamentais, levando o governo a diminuir seus anseios de alterações econômicas, gerando uma verdadeira quebra de braço entre atores fundamentais para a retomada do crescimento econômico, um anseio urgente de uma economia que cresce pouco desde os anos 1980, perde oportunidades estratégicas e se apequena nos grandes desafios contemporâneos, gerando instabilidades e incertezas crescentes.

Essas incertezas e instabilidades estão no cerne das dificuldades dos governos, alterando políticas públicas, mediando conflitos políticos e interesses econômicos, levando os governos a perderem legitimidade com a sociedade, postergando mudanças estruturais, buscando apoio em variados grupos políticos, fragilizando suas medidas e contribuindo para gerar fortes
constrangimentos na sociedade.

Neste cenário, percebemos duas agendas na sociedade brasileira que se enfrentam cotidianamente, uma mais centrada no Estado Nacional, mais intervencionistas, com incremento das políticas públicas, aumento dos investimentos governamentais e, de outro lado, uma agenda mais liberalizante, defendendo interesses privados, incentivando a privatização de empresas públicas e adotando políticas para que os agentes privados ganhem espaços em detrimento dos governos nacionais. Na verdade, estes conflitos existem a muitas décadas e fazem parte de discussões antigas da economia política, onde economistas e cientistas políticos importantes se digladiam para converter seus oponentes, defendendo seus interesses imediatos e usam suas retóricas para angariar novos públicos, novos seguidores e levando as influências para novas regiões.

Muitos dos contendores deste conflito defendem ideias e pensamentos ultrapassados, usando sua capacidade de convencimento para arregimentar multidões para aumentar seu público, defendendo modelos matemáticos ultrassofisticados que pouco auxiliam na compreensão das realidades da sociedade contemporânea. De outro lado, encontramos defensores de teorias antigas que são vistas como a resolução de nossos atrasos e dificuldades, defendendo modelos antigos e sem capacidade de compreenderem uma sociedade que se modificou por completo, exigindo uma atualização constante de seus pensamentos e de seus valores imediatos.

Neste ambiente, percebemos que muitos grupos econômicos e políticos estão defendendo teorias e comportamentos que não coadunam com a realidade contemporânea. Vivemos num mundo centrado por grandes transformações, nesta sociedade percebemos que todos os modelos e paradigmas que sustentaram a sociedade anterior estão em franca desintegração, os modelos econômicos foram alterados estruturalmente, os modelos de trabalho foram transformados pelo incremento da tecnologia, novos modelos de família estão surgindo e gerando transformações constantes, neste cenário, percebemos alterações nos comportamentos e relações sociais, destruindo paradigmas anteriores que embalaram as vivências sociais durante séculos, ou seja, vivemos num mundo em rápidas alterações, diferentemente dos modelos anteriores e marcadas pela rapidez, pelos grandes desafios e novas oportunidades.

A sociedade contemporânea prescinde de uma visão mais ampla dos agentes sociais e econômicos, deixando seus interesses mesquinhos e imediatistas, combatendo formas degradantes de acumulação, fortalecendo a governança das organizações, construindo valores de sustentabilidade, protegendo o meio ambiente, investindo em energias alternativas, canalizando recursos financeiros e monetários para os grupos que querem produzir, facilitando a geração de emprego e renda para que os indivíduos tenham acesso a crédito com taxas de juros condizentes com seus empreendimentos, limitando os grupos rentistas e financistas que limitam os recursos dos investimentos produtivos, além de construirmos um ambiente que garanta uma verdadeira justiça tributária. O caminho é tortuoso, nunca esqueçam, mas os maiores desafios estão no campo político.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Brasileira Contemporânea, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 24/05/2023.

Operação Impeachment, de Fernando Limongi

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Uma leitura instigante para compreender um momento de grande relevância para a sociedade brasileira, “Operação Impeachment”, do cientista Político Fernando Limongi, professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Fundação Getúlio Vargas (FGV), faz um mergulho sobre os movimentos que levaram a queda da presidente Dilma Rousseff. No livro o cientista político destaca o papel da Operação Lava Jato na queda da presidente. Uma leitura memorável e imprescindível para compreendermos o Brasil contemporâneo

A nova cara da pobreza brasileira, por Laura Machado.

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Entre os 10% mais pobres, saímos de uma taxa de ocupação de 54% em 2001 para uma de 29% em 2022

Laura Machado, Professora no Insper e ex-secretária de Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo.

Folha de São Paulo, 20/05/2023

No início deste século, a pobreza no Brasil tinha um perfil: éramos um país onde a maioria da população vulnerável estava inserida no mercado de trabalho. O retrato da pobreza era o de trabalhadores pobres.

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, em 2001, a taxa de ocupação dos brasileiros entre os 10% mais vulneráveis era de 54%. Dá-se o nome de taxa de ocupação à razão entre a população trabalhando e a população economicamente ativa.

Naquele momento, os mais vulneráveis trabalhavam mais de 40 horas por semana, na informalidade, em péssimas condições de trabalho, tinham baixa remuneração e pouca produtividade. Provavelmente as condições de saúde física desses trabalhadores, por conta da sobrecarga, não eram as melhores.

O desafio de política pública para diminuir a pobreza era tornar o trabalho digno: melhorar as condições de trabalho, combater a informalidade, aumentar a produtividade e a remuneração de um grupo de pessoas vulneráveis que majoritariamente estava inserido no mercado de trabalho.

Vinte anos depois, o retrato da pobreza no Brasil mudou. Entre os 10% mais pobres, saímos de uma taxa de ocupação de 54% em 2001 para uma de 29% em 20 22, metade do que tínhamos há 21 anos. Em outras palavras, os mais pobres brasileiros estão fora do mercado de trabalho.

O novo perfil da pobreza é diferente. O retrato é de um grupo de pessoas em busca de trabalho e que não conseguem se inserir há alguns anos. Depois de anos em busca de trabalho voltando para casa sem sucesso, provavelmente as condições de saúde mental dessa população devem ter se agravado.

De acordo com o IBGE, entre os 10% mais pobres que querem trabalhar, 64% não estão plenamente ocupados. Os mais vulneráveis querem voltar ao trabalho e não estão conseguindo.

O desafio para política pública, agora, envolve buscar ativamente essas pessoas excluídas há algum tempo e incorporá-las de volta ao mercado de trabalho.

Concomitante a essa inclusão, a política pública precisa retomar a agenda anterior, de melhoria da condição de trabalho e da produtividade. Precisamos incluir e tornar o trabalho dos mais pobres um trabalho digno.

Muitas são as hipóteses, não testadas, sobre as causas do novo retrato de exclusão do mercado de trabalho. Aumento do salário reserva, aumento do salário mínimo e mudanças tecnológicas são as principais em estudo. Todas as três tiverem avanços importantes em 2023, o que provavelmente acentua a tendência de exclusão em curso.

O problema urge de uma resposta do tamanho da sua gravidade, e quanto mais ele se prolongar, mais difícil se torna a inclusão ao trabalho. De acordo com o artigo 6º da nossa Constituição, o trabalho digno é um direito social assim como saúde, educação, entre outros. A inclusão ao trabalho é um direito e, portanto, um fim em si mesmo.

A transferência de renda aos pobres por si só importa, mas longe de ser suficiente: os brasileiros mais pobres não só têm o direito, mas estão dizendo que querem trabalhar. Precisamos mudar esse retrato.

A culpa foi do impeachment de Dilma? por Celso Rocha de Barros

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Há muito a reconstruir no sistema político após uma década em que raramente desperdiçamos a chance de virar na curva errada

Celso Rocha de Barros, Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra) e autor de “PT, uma História”.

Folha de São Paulo, 21/05/2023.

A editora Todavia acaba de publicar um livro muito bom: “Operação Impeachmet”, de Fernando Limongi. Trata-se de um dos maiores cientistas políticos brasileiros, autor, com Argelina Figueiredo, de um trabalho clássico que mostrou que o presidencialismo de coalizão funcionava bem melhor do que se acreditava.

Em “Operação Impeachment”, a proposta de Limongi é simples: com base exclusivamente em fatos noticiados pela imprensa (que eram, portanto, de conhecimento dos atores políticos quando tomaram suas decisões), Limongi conta a história que começa nos conflitos internos do primeiro mandato de Dilma e desemboca no impeachment.

Há, entretanto, um arcabouço teoricamente informado que conduz o texto.

Quando Limongi descreve as ações de Dilma ou de seus adversários, está sempre se perguntando: por que aqueles mecanismos que antes funcionavam no presidencialismo de coalizão não funcionaram em 2016? Limongi está conversando com sua própria obra e com 30 anos de ciência política brasileira.

Por outro lado, Limongi não está interessado nos grandes discursos sobre o impeachment. Não tem maior interesse em discutir se foi ou não foi golpe: o que lhe interessa é justamente o fato de que as instituições ainda estavam ali, mas deixaram de funcionar.

Tampouco tem paciência com a historinha “a gente pegou o PT roubando aí foi lá e derrubou a Dilma”. As delações da Lava Jato mostram um cartel de empreiteiras que funcionava havia décadas e financiava todo mundo, inclusive todo mundo que fez o impeachment.

A tese “o problema foi que a Dilma era inábil” é acolhida com bem mais ressalvas do que de hábito: mesmo que Dilma tenha falhado, jogou duro contra seus adversários, ganhou por muitos anos e esteve longe de ser a única que jogou errado.

Limongi também demonstra saudável ceticismo diante da ideia, comum entre alguns petistas, de que Lula no lugar de Dilma teria resolvido todas as crises políticas.

Mas se Dilma jogou, por que caiu? A explicação, segundo Limongi, é a Lava Jato.

Não porque as descobertas da operação tenham inspirado um movimento de massas que derrubou a presidente. Os políticos brasileiros fizeram o impeachment para se defender da Lava Jato, pois não acreditavam mais que Dilma seria capaz de pará-la.

Leitores antigos da coluna sabem que essa também é minha interpretação. No final, a Lava Jato foi mesmo desmontada pela rapaziada que estava do lado de Deltan Dallagnol no discurso da semana passada. Mas a centro-direita que fez o impeachment foi dizimada na eleição de 2018, com consequências terríveis para a democracia brasileira daí em diante.

O que o livro de Limongi nos obriga a perguntar é qual teria sido a reação produtiva do sistema político às revelações da Lava Jato. Do ponto de vista do interesse racional dos atores que fizeram o impeachment, que alternativa havia? Aceitar a prisão quando suas conexões com o cartel das empreiteiras fossem reveladas? Do ponto de vista do país, só havia as alternativas “acordão” e “cruzada fratricida”?

De qualquer forma, o livro de Limongi é importante para mostrar que há muito que vale a pena reconstruir no sistema político brasileiro depois de uma década em que raramente desperdiçamos a chance de virar na curva errada.

A história do impeachment de Dilma, por Samuel Pessoa.

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Segundo Limongi, com erros e acertos, Dilma fez política, mas não silenciou a Lava Jato

Samuel Pessoa, Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP.

Folha de São Paulo, 21/05/2023

Fernando Limongi, professor titular de ciência política da FFLCH da USP e professor da Escola de Economia de São Paulo da FGV, lançou na sexta-feira (19), pela editora Todavia, “Operação Impeachment: Dilma Rousseff e o Brasil da Lava Jato”, com a narrativa dos fatos históricos que geraram o impeachment de Dilma, votado na Câmara em 17 de abril de 2016 e no Senado em 31 de agosto.

Limongi, quase que obsessivamente, nos presta um serviço público: por meio de uma narrativa fluente e enxuta em 168 páginas, acompanhamos em ritmo de thriller a sequência detalhada dos fatos. Todas as referências às notícias da imprensa da época que documentam a reconstituição histórica meticulosa de Limongi estão em 649 notas nas 100 páginas a elas dedicadas em letras pequenas no final do livro.

A edição cuidadosa contém referências bibliográficas e um índice remissivo, que facilita em muito a vida do leitor para recuperar fatos e personagens.

A tese principal do livro, sugerida pela reconstituição dos fatos, é que o impeachment de Dilma foi totalmente diferente do de Collor. Se neste o quarteto crise econômica, povo na rua, falta de articulação política e ocorrência de todos esses fatos no início do mandato explica o impeachment, não é o mesmo caso para Dilma.

Dilma conseguiu por pelo menos duas vezes recentralizar seu governo. Em setembro de 2015, após o MBL dispensar os serviços de Ives Granda Martins e “bater à porta de Hélio Bicudo” —que, assessorado pela também jurista Janaina Paschoal, preparou um novo pedido—, Dilma promoveu uma reforma ministerial. O PMDB recebeu duas pastas adicionais —Saúde, para o deputado do Piauí Marcelo Castro, e Ciência e Tecnologia, para o deputado do Rio de Janeiro Celso Pansera.

Como escreveu Limongi, “a reforma ministerial, portanto, marcou a reaproximação de Dilma e Lula, responsável direto pela reaproximação bem-sucedida com o grupo de Jorge Picciani”.

No segundo momento, no início de 2016, em seguida ao Supremo ter, em dezembro de 2015, derrubado o rito estabelecido pelo então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, deixando o processo em suspenso até fevereiro de 2016, houve o afastamento das principais lideranças políticas do impeachment.

Como escreveu Limongi, “o clima político era outro. O impeachment havia saído da pauta. Tudo indicava que o calendário eleitoral seria seguido”.

Nesse momento, voltou-se a tratar da agenda econômica. O governo, por meio do ministro Nelson Barbosa, ensaiou uma reforma da Previdência e um teto de gastos.

Nesse momento de distensão, a Laca Jato contra-ataca. Primeiro com a Operação Acarajé, em 22 de fevereiro, com 51 mandados, entre eles o de prisão para o marqueteiro de Dilma, João Santana. E, em seguida, em 4 de março, com a Operação Aletheia, com o mandado de condução coercitiva de Lula.

Esses movimentos da Justiça deixaram claro para os políticos que a Operação Lava Jato não iria ficar somente nos executivos das empresas nem somente nos políticos petistas. Iria alcançar a todos eles. Em uma ação de salvamento desesperada, o impeachment foi a saída que os políticos encontraram para tentar “estancar a sangria” promovida por Curitiba e pela Procuradoria-Geral da República na pessoa do procurador Rodrigo Janot.

Se entendi corretamente, essa é a narrativa de Limongi. E é nesse sentido que o impeachment de Dilma seria intrinsicamente distinto do de Collor: com erros e acertos, Dilma fez política. O que ela não conseguiu entregar foi o silenciamento da Lava Jato, aliás, produto que Temer também não entregou.

Adicionalmente, o fato de que, após sete anos do impedimento de Dilma, os políticos não se movimentaram para alterar a lei de impeachment de 1950, uma simples lei ordinária, sinaliza que a classe política gosta de ter à mão esse “remédio amargo” de solução de crises políticas agudas.

Indústria, volver. Por Paulo Feldmann

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Seria irresponsável não investir em biotecnologia, genética e ciências da vida

Paulo Feldmann, Professor de economia da USP, é pesquisador na área de política industrial da Universidade Fudan (China)

Folha de São Paulo, 18/05/2023

A experiência internacional demonstra que é muito raro um país emergente conseguir dar um salto e livrar-se das armadilhas que o prendem ao atraso. Os casos de sucesso mais conhecidos são
Japão, Coréia do Sul e China. Todos têm em comum o foco na indústria: criaram condições para avançar na manufatura e deixaram a condição de países voltados para a produção de commodities.

Interessante observar que, com o Brasil, aconteceu o contrário. Nos anos 1980, estávamos entre os oito maiores produtores industriais do mundo. Éramos um país com uma incrível diversificação industrial. Sabíamos produzir quase tudo, incluindo aviões, computadores, vacinas, qualquer produto eletrônico e seus componentes, como semicondutores. Claro que alguns desses produtos eram mais caros que os análogos feitos em outros países e, por vezes, a qualidade era sofrível —o que gerava muitas críticas.

E nesse clima, em 1989, foi eleito um presidente da República, Fernando Collor, cuja campanha eleitoral criticava a qualidade de nossos produtos, inclusive classificando os automóveis aqui produzidos de “carroças”.

Collor alegava que o produto nacional não prestava, pois não era exposto à competição internacional. O que se dizia à época é que, na medida que o produto brasileiro fosse obrigado a competir com o estrangeiro, sua competitividade melhoraria, e a indústria brasileira iria evoluir em qualidade e sofisticação —e os preços cairiam.

Passados pouco mais de 30 anos, sabemos que retrocedemos. Hoje não estamos nem entre os 17 principais produtores industriais do mundo, e a manufatura, que era a quarta parte do nosso PIB naquela época, atualmente não representa nem 9%.

O fato é que estamos nos tornando, novamente, um país agrícola. Pior: baseado em dados do Banco Mundial, o professor José Oreiro, da Universidade de Brasília, aponta que a desindustrialização mais intensa do mundo ocorreu no Brasil.

O importante é entender qual foi o nosso erro. Evidentemente, não foi simplesmente a abertura das importações, mas sim a forma realizada. O empresário brasileiro não teve tempo para se preparar, pois a abertura foi abrupta, de uma hora para outra. A indústria têxtil, que era altamente exportadora e gerava milhões de empregos, sucumbiu em menos de cinco anos. O mesmo com a de calçados. Se tivessem sido estipulados prazos e condições especiais para que as empresas brasileiras se modernizassem, com oBNDES a oferecer financiamento e crédito, por exemplo, teria sido possível evitar a quebradeira da indústria nacional.

Mas o pior de tudo foi a falta de um plano para o país e de uma estratégia industrial, deficiências que perduram até hoje. Esse plano definiria, para cada segmento da economia, quais as chances de os mesmos avançarem. Concomitantemente, uma avaliação detectaria os setores em que o nosso país teria de fato vocações e habilidades para investimentos —sem despender, assim, tempo e recursos desnecessários.

Para os setores priorizados, há que se começar a formar os respectivos especialistas desde já. A isso se chama política industrial. Há um ano, o presidente dos EUA, Joe Biden, lançou sua proposta: analisou praticamente todos os setores industriais norte-americanos e estabeleceu quais são os mais e os menos prioritários para o desenvolvimento do país nos próximos anos.

Não costumamos planejar nada no Brasil e, por isso, perdemos muitas oportunidades nos mais
diversos setores. Continuar agindo dessa forma seria uma enorme irresponsabilidade, pois poucos países têm uma relação tão íntima com as próximas ondas tecnológicas, como biotecnologia, genética e ciências da vida.

Temos tudo para dar certo, principalmente por conta da nossa riqueza decorrente da biodiversidade da floresta amazônica e do alto nível dos profissionais de algumas áreas ligadas à saúde. Para nos tornarmos protagonistas, precisamos apenas de plano e estratégia. Caso contrário, as empresas privadas não vão se aventurar nessas áreas e não chegaremos a lugar algum —como aconteceu das outras vezes.

Carta Mensal – Abril 2023

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O mês de abril de 2023 foi marcado por grandes sobre discussões políticas, reflexões sobre diplomacia e questões econômicas, de um lado percebemos uma forte pressão do governo federal para que o Banco Central reduzisse as taxas de juros, cuja Selic está na casa do 13,75%, a maior taxa de juros da economia internacional. As taxas de juros elevadas estão fragilizando a estrutura econômica e produtiva, impactando fortemente os indicadores macroeconômicos, degradando a economia nacional, postergando a recuperação dos investimentos, mantendo elevado as taxas de desemprego e mantendo a renda em declínio.

As taxas de juros elevadas estão gerando endividamento crescente na população, das empresas e variados setores produtivos, com isso, variadas empresas e organizações estão pedindo recuperação judicial, muitas deles estão próximos da bancarrota e, conglomerados gigantescos geradores de milhares de empregos estão percebendo a diminuição de preço de suas ações, um movimento preocupante numa economia que não cresce, sem investimento e fortes instabilidades políticas e sociais.

Neste mês de abril, um dos assuntos mais relevantes foi a viagem do Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva para a China, onde foram assinados inúmeros acordos nas mais variadas áreas, desde colaboração econômica, pesquisas energéticas, desenvolvimento da infraestrutura, principalmente setores ligados a transporte público, construção civil, dentre outros acordos.

Essa visita a China gerou graves críticas sobre o presidente Lula, principalmente pela mídia corporativa, criticando a aproximação do Brasil com a potência asiática, que é vista como algo negativo e prejudicial para a economia brasileira, muitos grupos viram a proximidade com a China uma afronta aos Estados Unidos da América, cujos atritos são constantes e tendem a aumentar nos próximos anos, uma luta de hegemonias na comunidade internacional.

Vivemos numa sociedade marcada pelo forte crescimento da animosidade entre as nações, de um lado os Estados Unidos da América buscam manter seu poderio na sociedade internacional, detentora da mais importante moeda global, o dólar, responsável pela força financeira global.

Do outro lado, a China, uma economia em franco crescimento econômico que, nos anos 1980 estava entre as trinta maiores economias do mundo e, na atualidade, está disputando o primeiro lugar com os EUA, um conflito que tende a perdurar por inúmeros anos. Muitos especialistas acreditam que ao analisar a paridade de poder de compra das moedas, a China já é dona da maior economia global, superando os Estados Unidos.

Neste conflito entre potências que disputam espaços na economia internacional abrem novas oportunidades para as nações em desenvolvimento, como o Brasil. Não precisamos se aliar com uma das nações que buscam a hegemonia, precisamos sim é negociar os melhores caminhos, os países podem conseguir auxílios e transferência de tecnologias e aumentarem os investimentos nestas nações, desde que o governo e a sociedade consiga compreender os desafios contemporâneos, negociando, conversando e buscando parcerias estratégicas.

É importante destacar ainda, que o governo brasileiro está fazendo uma aposta de que as conversações internacionais com variados países podem trazer grandes investimentos estrangeiros, impulsionando a economia e diminuindo as dificuldades produtivas.

As viagens internacionais abrem novos horizontes para atrair novos recursos externos, como as promessas de variadas empresas de investir na economia brasileira, onde destacamos as negociações da empresa chinesa BYD com a Ford para produzir em sua planta industrial em Camaçari que foi encerrada em 2019. Estes investimentos abririam novos espaços de produção para a economia nacional, sabendo que a empresa chinesa é a maior produtora de baterias do mundo, além de variados produtos, como carros, SUVs, trens e ônibus…

Destacamos ainda, no mês de abril, os grandes constrangimentos políticos que o novo governo está passando nas discussões políticas no Congresso Nacional, a busca crescente de uma maioria parlamentar para implementar as propostas discutidas nas eleições estão difíceis, medidas que precisam de aprovação do Legislativo para a recuperação da economia, para angariar novos investimentos para recuperar os indicadores negativos legados pelo governo anterior, como Novo Arcabouço Fiscal que o governo está buscando aprovar como forma de diminuir as restrições do chamado Mercado.

Outro ponto muito discutido no mês de abril foi as questões relativas ao conflito entre Rússia e Ucrânia, que está gerando graves constrangimentos na sociedade internacional, elevando os custos produtivos e aumentando a inflação, principalmente nos alimentos, dos combustíveis, fertilizantes e energias, levando regiões inteiras ao empobrecimento, precarizando as condições sociais e limitando os potenciais econômicos e financeiros das nações.

Tudo isso, contribui para uma animosidade crescente entre os países, levando-os a escolherem lados neste conflito militar, com isso, poucos países refletem sobre a busca crescente pela paz e o fim do conflito militar, cujos custos são elevadíssimos, com milhares de mortos, degradação da infraestrutura e a destruição do futuro de milhões de pessoas.

Destacando ainda, os confrontos gerados pela chamada PL das Fake News, um projeto que gerou graves constrangimentos para a sociedade, uns defendendo uma intervenção mais efetiva sobre as chamadas fake News e outros defendendo uma postura mais superficial, levando várias empresas, grupos políticos e econômicos a se posicionarem, dentre elas o gigante da tecnologia Google e o Telegram, que contribuíram para acirrar os ânimos e seus interesses imediatos.

Outro assunto que devemos destacar, que nos últimos meses, a polarização política está ainda muito elevada na sociedade brasileira, os grupos se digladiam todos os momentos, estimulando notícias falsas, cancelamentos e grosserias crescentes. Nesta seara de discussões ou polarizações políticas, encontramos muitas descobertas que podem gerar graves constrangimentos, investigações e discussões que postergam uma convivência pacífica entre os grupos políticos que podem geram graves na nossa jovem democracia.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Comércio desigual

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O processo de globalização da economia aprofundou a interdependência entre as nações, aumentando a integração das estruturas produtivas, aumentando a concorrência entre todos os agentes econômicos, levando as nações a buscarem novos instrumentos de inserção no cenário internacional. Neste novo ambiente econômico, percebemos que os grandes ganhadores desta competição foram as nações asiáticas, principalmente a Coréia do Sul e a China, países que conseguiram dar um salto tecnológico, dominando cadeias produtivas em vários setores, angariando novos investimentos estratégicos, com o crescimento dos dispêndios em educação e um projeto nacional centrado no planejamento do Estado Nacional.

Neste ambiente, essas nações passaram por grandes transformações produtivas, países exportadores de produtos de baixo valor agregado e dependentes de produtos sofisticados foram, paulatinamente, alterando os modelos produtivos, investindo fortemente em capital humano e passaram, num período de quarenta anos, a serem produtores de produtos de alto valor agregado, exportadores de mercadorias sofisticadas e intensivos em tecnologias, com isso, seu capital humano apresentou um incremento salarial, contribuindo para os avanços sociais da sociedade, levando algumas nações a conseguirem acabar com a miséria extrema, melhorando as condições de vida da população e caminhando para a construção de uma nação de renda média, uma transformação pouco vista na história da humanidade num período curto de tempo.

O comércio internacional pode ser visto como um dos instrumentos responsáveis por grandes saltos de desenvolvimento econômico das nações, para isso, esses países investiram fortemente em uma transformação produtiva, canalizando recursos financeiros para a produção, incrementando a produtividade da economia, estimulando a conquista de novos mercados internacionais e fortalecendo as estratégicas diplomáticas para angariar novos parceiros comerciais. Todas estas políticas foram implementadas para angariar novos mercados internacionais, aumentando as exportações, fortalecendo seus setores produtivos e diminuindo a dependência externa de capitais financeiros, na maioria, recursos especulativos que pouco contribuem para o crescimento econômico e geram constrangimentos para as contas externas.

Os países pobres continuam na pobreza porque apresentam grandes limitações estruturais e produtivas, perpetuando sua dependência externa, se eternizando na importação de produtos sofisticados, se concentrando na exportação de produtos primários de baixo valor agregado, com isso, percebemos a perpetuação da dependência dos fluxos financeiros internacionais, que muitas vezes nos levam a manter taxas de juros elevadas para atrair moedas estrangeiras e fechar nossos compromissos financeiros, desta forma criamos uma armadilha que limita nossa soberania nacional.

Numa economia globalizada, como a que vivemos, as nações desenvolvidas estão fortalecendo seus setores produtivos, investindo na sofisticação tecnológica para enfrentar os desafios da sociedade contemporânea, criando riquezas num mundo imaterial como forma de aumentarmos o bem-estar social da população, sem isso, os desequilíbrios tendem a aumentar e intensificar os desajustes internos, levando a desintegração social e conflitos sociais que fragilizam a democracia.

O comércio internacional é um espaço de conflitos constantes, onde os preços das mercadorias são definidos pelos grandes atores econômicos globais. Os grandes conglomerados internacionais trazem em suas retaguardas seus Estados Nacionais, como estamos observando constantemente na sociedade contemporânea, que usam seus instrumentos geopolíticos, sua configuração política e seus instrumentos financeiros como forma de angariar novos espaços de acumulação, além de fragilizar seus competidores e garantir seus lucros crescentes.

Neste cenário, acreditarmos que conseguiremos o desenvolvimento econômico e conquistarmos melhoras sociais para a sociedade enquanto exportadores de produtos primários de baixo valor agregado é mais uma das falácias que continuam em curso da sociedade brasileira. Sem sofisticação tecnológica, sem investimentos maciços em educação e desenvolvimento das vantagens nacionais, continuaremos sobrevivendo numa linha tênue entre a barbárie e o desespero.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel de Economia e Administração, Especialista da Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 17/05/2023.

Destruição criativa acelerada dá nova perspectiva à renda básica universal, por Pedro Olinto

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Impacto social de inteligência artificial e robótica exige atualização de políticas públicas para mitigar problemas e, quem sabe, evitar populismo

Pedro Olinto, Economista sênior do Banco Mundial

Folha de São Paulo, 16/05/2023

O livro “Mortes por Desespero e o Futuro do Capitalismo”, de Anne Case e Angus Deaton, vencedor do Prêmio Nobel de Economia, aborda como a classe média americana foi prejudicada pelos avanços tecnológicos e pela globalização, levando à desilusão, frustração e até impulsos antidemocráticos que culminaram na invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021. Diante da aceleração da inovação em inteligência artificial e robótica, é fundamental atualizar as políticas públicas para enfrentar efetivamente os impactos sociais dessas mudanças e, quem sabe, mitigar tendências populistas e autoritárias.

O economista austríaco Joseph Schumpeter cunhou o termo “destruição criativa” para descrever o processo em que a inovação e o progresso tecnológico geram ciclos de crescimento e disrupção socioeconômica. No livro “A Segunda Era das Máquinas: Trabalho, Progresso e Prosperidade em uma Era de Tecnologias Brilhantes” (2014), Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee argumentam que o ritmo desses Ciclos Schumpeterianos vem acelerando globalmente em todos os setores.

Diante do avanço da automação e das transformações tecnológicas, é relevante repensar a ética do trabalho convencional e refletir sobre os potenciais benefícios de políticas como a renda básica universal (RBU). No livro “Renda Básica: Uma Proposta Radical para uma Sociedade Livre e uma Economia Sã” (2017), Philippe Van Parijs e Yannick Vanderborght exploram o papel da RBU no enfrentamento dos desafios apresentados pela automação e a aceleração dos Ciclos Schumpeterianos.

Segundo os autores, a RBU possibilitaria a realização de trabalhos mais gratificantes, eliminando a necessidade de se dedicar a atividades repetitivas e monótonas para garantir a subsistência.

Experiências de RBU ao redor do mundo demonstram sua eficácia. Na Finlândia, houve melhoria no bem-estar e saúde mental dos beneficiários. Em Stockton, Califórnia, ao contrário do que muitos temiam, observou-se maior empregabilidade, além da melhora na saúde mental. Em Ontário, os participantes tiveram maior estabilidade financeira e buscaram mais educação e treinamento profissional. No Quênia, o projeto GiveDirecly resultou em aumento do consumo, investimento em educação e saúde e melhor bem-estar psicológico.

Programas focalizados como o Bolsa Família são mais baratos, mas demandam um processo burocrático para a seleção de beneficiários, o que pode ser contraproducente em um mercado de trabalho cada vez mais volátil e em crises que exigem resposta rápida, como durante a recente pandemia. Em contrapartida, a RBU oferece uma rede de segurança constante que não requer ativação a cada disrupção ou crise econômica aguda. Além disso, a RBU pode se tornar mais focalizada se combinada com um imposto de renda mais progressivo.

A aceleração dos Ciclos Schumpeterianos também tem implicações para as políticas educacionais. É necessário preparar os jovens para um mercado de trabalho em constante evolução. Avanços tecnológicos aumentam o risco de obsolescência do capital humano e geram maior incerteza sobre as perspectivas de carreira. Um estudo da Deloitte projeta que, ao longo dos próximos 15 anos, a demanda por advogados nos Estados Unidos sofrerá uma redução de 10% em decorrência da inteligência artificial.

Para enfrentar esse desafio, é crucial promover a aprendizagem ao longo da vida e o desenvolvimento de habilidades transferíveis, incluindo adaptabilidade, pensamento crítico, criatividade e capacidade de resolução de problemas.

Os Ciclos Schumpeterianos tendem a se acelerar no futuro, tornando-se essencial repensar as políticas de educação e transferência de renda desde já. Fomentando a adaptabilidade, incentivando a aprendizagem contínua ao longo da vida e elaborando políticas de transferências, como a Renda Básica Universal (RBU), é possível construir uma sociedade mais resiliente em um mundo em constante transformação e, talvez, prevenir o fortalecimento de movimentos antidemocráticos.

Concentração de riqueza e evasão fiscal, por Thomas Piketty,

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A crescente concentração da riqueza caminha para se tornar o principal problema econômico do mundo

Alegrem-se: a American Economic Association (AEA), principal organização profissional para economistas nos Estados Unidos, acaba de conceder a Medalha Clark a Gabriel Zucman por seu trabalho sobre concentração de riqueza e evasão fiscal. Concedido anualmente a um laureado com menos de 40 anos, a distinção recompensa notavelmente o trabalho inovador que demonstra a considerável importância da evasão fiscal por parte dos ricos, inclusive nos países escandinavos, que são rapidamente considerados modelos de virtude.

Dotado de uma imensa capacidade de trabalho, uma rara atenção aos detalhes e um talento inigualável para desenterrar novos dados e fazê-los falar, Gabriel Zucman também revelou a dimensão insuspeita da evasão do imposto de renda de empresas por multinacionais de todos os países.

Hoje diretor do Observatório Fiscal da União Europeia, ele dedica a mesma energia para encontrar soluções para os males que documenta. Num dos seus primeiros relatórios,[1] o Observatório demonstrou que os Estados-membros da União Europeia podiam optar por ir mais longe do que a taxa mínima de 15% fixada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) (demasiado baixa e amplamente contornada), sem esperar pela unanimidade. Ao impor a cada multinacional que pretenda exportar bens e serviços uma taxa de 25% sobre os seus lucros – a mesma que pagam os produtores estabelecidos em território nacional – a França obteria uma receita adicional de 26 bilhões de euros e encorajaria outros países a fazer o mesmo.

O fato da American Economic Association optar por premiar esse trabalho é importante, porque mostra que o coração da profissão começa a se dar conta da insustentabilidade do atual modelo social e fiscal. Não exageremos: os economistas sempre foram menos monolíticos do que às vezes se imagina, inclusive nos Estados Unidos. Em 1919, o presidente da American Economic Association, Irving Fisher, optou por dedicar seu “discurso presidencial” à questão das desigualdades.

Ele explica sem rodeios aos colegas que a crescente concentração da riqueza caminha para se tornar o principal problema econômico da América, que corre o risco, se não tomarmos cuidado, de se tornar tão desigual quanto a velha Europa (então percebida como oligárquica e contrária ao espírito norte-americano). Irving Fisher mostra-se perplexo com as estimativas publicadas em 1915 por Willford King de que “2% da população possuem mais de 50% da riqueza” e que “dois terços da população possuem quase nada”, o que lhe sugere “uma distribuição não democrática da riqueza” ameaçando os próprios alicerces da sociedade norte-americana.

Victory tax

É nesse contexto que os Estados Unidos aplicaram de 1918-1920 (sob o mandato do presidente democrata Wilson) taxas superiores a 70% no topo da hierarquia de renda, antes de todos os outros países. Quando Franklin D. Roosevelt foi eleito em 1932, o terreno intelectual já estava preparado há muito para a implementação da progressividade tributária em larga escala, com o famoso Victory tax (Imposto da Vitória) de 88% em 1942 e 94% em 1944. Os Estados Unidos aplicarão taxas semelhantes na Alemanha e Japão: no espírito da época, essas instituições tributárias foram vistas como um complemento indispensável das instituições democráticas, caso contrário estas corriam o risco de cair em uma deriva plutocrática.

Essas lições infelizmente foram esquecidas, e os Estados Unidos e grande parte do mundo entraram, desde as décadas de 1980 e 1990, em uma nova espiral oligárquica. Certamente seria um exagero jogar toda a responsabilidade sobre os economistas. Se a contra-ofensiva lançada nos anos 1960 e 1970 por Milton Friedman ou Friedrich Hayek conseguiu dar frutos, é também pela falta de apropriação coletiva das instituições do New Deal por parte dos cidadãos e do movimento social e trabalhista.

A batalha intelectual também foi travada nos departamentos de filosofia: quando John Rawls publicou sua Teoria da Justiça em 1971, lançou as bases conceituais de um ambicioso programa igualitário, mas permaneceu relativamente abstrato em suas saídas práticas. Ao mesmo tempo, Milton Friedman e Friedrich Hayek são perfeitamente específicos sobre seu objetivo de demolição da progressividade tributária.

Desregulamentação e liberalização

O fato é que os economistas têm uma responsabilidade particular no movimento de desregulamentação e liberalização das últimas décadas. Há, claro, os efeitos ligados à busca por financiamento privado, que vira os comentários à direita. Em 2016, quando os democratas Bernie Sanders e Elizabeth Warren endossaram propostas ousadas de imposto sobre a riqueza (com taxas subindo de 6% a 8% ao ano acima de US$ 1 bilhão), o ex-secretário do Tesouro de Bill Clinton e presidente de Harvard, Larry Summers – grande defensor da liberalização absoluta dos fluxos de capital – quase se estrangula e não hesita em atacar violentamente pesquisadores como Gabriel Zucman que defendem essas propostas (que, no entanto, são simples senso comum, dadas as alíquotas quase zero do imposto de renda pago pelos bilionários) .

Existem também razões estritamente intelectuais ligadas à evolução da disciplina de economia. Para dar a si mesma um fascínio científico autônomo, a economia tendeu a se isolar da história e da sociologia e a naturalizar as instituições estudadas (mercado, propriedade, competição), esquecendo no processo seu enquadramento social e político em sociedades particulares.

Os modelos matemáticos podem ser úteis se forem usados com sabedoria e não como um fim em si mesmos. A técnica estatística pode ser utilizada desde que não se perca de vista o olhar crítico sobre as fontes e categorias. Ainda há um longo caminho a percorrer para que a economia política e histórica recupere seu lugar de direito no interior das ciências sociais.

*Thomas Piketty é diretor de pesquisas na École des Hautes Études en Sciences Sociales e professor na Paris School of Economics. Autor, entre outros livros, de O capital no século XXI (Intrinseca).

O colapso atual da ética, por Leonardo Boff

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Leonardo Boff – A Terra é Redonda – 12/05/2023

A globalização do capitalismo depredador e a mercantilização da sociedade atingem o coração da ética

Vivemos e sofremos no Brasil tempos sombrios sob o governo de Jair Bolsonaro, onde a ética foi enviada ao limbo e tudo praticamente valia (as fake news, as mentiras, a pregação da violência e a exaltação da tortura). Nos dias atuais assistimos, desolados, a guerra Rússia-Ucrânia. Esta guerra representa a negação de todos os valores civilizatórios, pois uma grande potência nuclear está literalmente destruindo uma pequena nação e seu povo.

Sem perder de vista os dois dados acima referidos, percebo dois fatores principais, entre outros, que atingem o coração da ética: a globalização do capitalismo depredador e a mercantilização da sociedade.

A mundialização do capitalismo, como modo de produção e sua expressão política, o neoliberalismo mostrou as consequências perversas da ética capitalista: seus eixos estruturantes são o lucro ilimitado, acumulado individualmente ou por grandes corporações, a concorrência desenfreada, o assalto aos bens e serviços da natureza, a flexibilização das leis e a redução ao mínimo do Estado em sua função de garantir uma sociedade equilibrada. Tal ética é altamente conflitiva porque não conhece a solidariedade, mas a concorrência que faz de todos adversários, senão inimigos a serem vencidos.

Bem diferente, por exemplo, é a ética da cultura maia. Esta coloca tudo centrado no coração, já que todas as coisas nasceram do amor de dois grandes corações, do Céu e da Terra. O ideal ético é criar em todas as pessoas corações sensíveis, justos, transparentes e verdadeiros. Ou a ética do “bien vivir y convivir” dos andinos, assentada no equilíbrio com todas as coisas, entre os humanos, com a natureza e com o universo.

A globalização, inter-relacionando todas as culturas, acabou também por revelar a pluralidade dos caminhos éticos. Uma de suas consequências está sendo a relativização generalidade dos valores éticos. Sabemos que a lei e a ordem, valores da prática ética fundamental, são os pré-requisitos para qualquer civilização em qualquer parte do mundo.

O que observamos é que a humanidade está cedendo diante da barbárie rumo a uma verdadeira idade das trevas mundial, tamanho é o descalabro ético que estamos vendo.

O segundo grande empecilho à ética é mercantilização da sociedade, aquilo que Karl Polaniy chamava já em 1944 de A grande transformação. É o fenômeno da passagem de uma economia de mercado para uma sociedade puramente de mercado.

Tudo se transforma em mercadoria, coisa já prevista por Karl Marx em seu livro A miséria da filosofia, de 1848, quando se referia ao tempo em que as coisas mais sagradas como a verdade e a consciência seriam levadas ao mercado; seria um “tempo da grande corrupção e da venalidade universal”. Pois vivemos este tempo.

A economia especialmente a especulativa dita os rumos da política e da sociedade como um todo que se caracteriza pela geração de um profundo fosso entre os poucos ricos e as grandes maiorias empobrecidas. Aqui se revelam traços de barbárie e de crueldade como poucas vezes na história.

Qual é a ética que nos poderá orientar como humanidade vivendo na mesma Casa Comum? É aquela ética que se enraiza naquilo que é específico nosso, enquanto humanos e que, por isso, seja universal e possa ser assumida por todos.

Estimo que que em primeiríssimo lugar é a “ética do cuidado”. Consoante a fabula 220 do escravo Higino, bem interpretada por Martin Heidegger em Ser e Tempo e detalhada por mim em Saber cuidar, constitui o substrato ontológico do ser humano, valer dizer, aquele conjunto de fatores objetivos sem os quais jamais surgiria o ser humano e outros seres vivos.

Pelo fato de o cuidado ser da essência do humano, todos podem vivê-lo e dar-lhe formas concretas, segundo as diferentes culturas. O cuidado pressupõe uma relação amigável e amorosa para com a realidade, da mão estendida para a solidariedade e não do punho cerrado para a competição. No centro do cuidado está a vida. A civilização deverá ser bio-sócio-centrada.

Outro dado de nossa essência humana é a “solidariedade” e a ética que daí se deriva. Sabemos hoje pelo bioantropologia que foi a solidariedade de nossos ancestrais antropóides que permitiu dar o salto da animalidade para a humanidade. Buscavam os alimentos e os consumiam solidariamente. Todos vivemos porque existiu e existe um mínimo de solidariedade, começando pela família. O que foi fundador ontem, continua sendo-o ainda hoje.

Outro caminho ético, ligado à nossa estrita humanidade, é a “ética da responsabilidade universal”. Ser responsável é dar-se conta das consequências benéficas ou maléficas de nossos atos pessoais e sociais. Ou assumimos juntos responsavelmente o destino de nossa Casa Comum ou então percorreremos um caminho sem retorno. Somos responsáveis pela sustentabilidade de Gaia e de seus ecossistemas para que possamos continuar a viver junto com toda a comunidade de vida.

O filosofo Hans Jonas que, por primeiro, elaborou O princípio responsabilidade, agregou a ele a importância do medo coletivo. Quando este surge e os humanos começarem a dar-se conta de que podem conhecer um fim trágico e até de desaparecer como espécie, irrompe um medo ancestral que os leva a uma ética de sobrevivência. O pressuposto inconsciente é que o valor da vida está acima de qualquer outro valor cultural, religioso ou econômico.

Importa também resgatar a “ética da justiça” para todos. A justiça é o direito mínimo que tributamos ao outro, de que possa continuar a existir e dando-lhe o que lhe cabe como pessoa: dignidade e respeito. Especialmente as instituições devem ser justas e equitativas para evitar os privilégios e as exclusões sociais que tantas vítimas produzem, particularmente no Brasil, um dos mais desiguais, vale dizer, mais injustos do mundo. Daí se explica o ódio e as discriminações que dilaceram a sociedade, vindos não do povo, mas daquelas elites endinheiradas que não aceitam o direito para todos mas querem preservar seus privilégios.

A justiça não vale apenas entre os humanos, mas também para com a natureza e a Terra que são portadores de direitos e, por isso, devem ser incluídas em nosso conceito de democracia sócio-ecológica.

Por fim, devemos incorporar uma “ética da sobriedade compartida” para lograr o que dizia Xi Jinping, chefe supremo da China “uma sociedade moderadamente abastecida”. Isto significa um ideal mínimo e alcançável.

Estes são alguns parâmetros fundamentais para uma ética, válida para cada povo e para a humanidade, reunida na Casa Comum. Caso contrário poderemos conhecer um Armagedon social e ecológico.

*Leonardo Boff, é teólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Como cuidar da Casa Comum (Vozes).

Desenvolvimento, fenômeno microeconômico, por Samuel Pessoa

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Se os incentivos não estiverem corretos, a política não funcionará

Samuel Pessoa, Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP.

Folha de São Paulo, 14/05/2023.

O evento econômico mais impactante no século 20 foi a Grande Depressão. Por anos a economia americana conviveu com taxas de desemprego maiores do que 20%.

Em 1936, Keynes revolucionou a economia. Criou um novo campo, a macroeconomia, e estabeleceu as políticas que tirariam as economias daquele equilíbrio ruim. Bastavam políticas fiscal e monetária expansionistas. Solução bem simples.

Como escreveu Krugman no prefácio da edição comemorativa aos 70 anos da publicação da Teoria Geral, a obra magna de Keynes, “Keynes estava certo sobre o problema de sua época: a economia mundial apesentava problema no seu alternador, e tudo o que era necessário fazer para a economia funcionar novamente era um conserto surpreendentemente simples”.

Keynes se deparou com talvez o único problema complexo em ciência social que tinha uma solução simples.

O sucesso do pensamento keynesiano foi tão avassalador que, ao longo de décadas, desde o pós-guerra até os anos 1980, a academia procurou soluções “keynesianas” –isto é, uma correção técnica e delimitada– para o problema do subdesenvolvimento. O diagnóstico era que o subdesenvolvimento, assim como o equilíbrio de uma economia com desemprego aberto, era fruto de uma falha de mercado muito aguda, associada a um grave problema de coordenação. Em geral, algo faltava e o planejamento econômico tinha que prover este algo.

O primeiro candidato foi o capital físico. Por décadas o Banco Mundial calibrava seu programa de ajuda para o desenvolvimento das economias mais pobres a partir da quantidade de capital requerida para atingir uma meta de crescimento econômico. O banco ofertava o capital. A longa experiência é que o crescimento nunca vinha. Em geral virava corrupção e guerra.

Tentou-se com educação e o problema neste caso é que colocar criança na escola não é garantia de aprendizado, como sabemos muito bem. E assim sucessivamente. Algo faltava. Vamos ofertar. Ofertava-se e o resultado não aparecia. Esta história é bem contada por William Easterly em “O espetáculo do crescimento”, de 2004.

A partir dos anos 1980, muito influenciada pelo novo institucionalismo, liderado pelo historiador Douglass North, a academia passou a enxergar o desenvolvimento essencialmente como um problema de governança, isto é, um problema de alinhamentos de incentivos.

Infelizmente, esse aprendizado não tem chegado por aqui. No ciclo petista passado, o diagnóstico foi de que subdesenvolvimento era falta de coisas. Não temos uma indústria naval? Tome BNDES e subsídio para construir uma indústria naval. Ninguém se pergunta os motivos de não termos uma indústria naval e o que fazer para termos uma indústria naval sustentável.

Aparentemente, o novo governo vai pelo mesmo caminho. As palavras mágicas passaram a ser os setores de transição energética e da indústria ligada à saúde, em função da experiência recente com a pandemia, entre outros itens.

Tudo sugere, portanto, que o diagnóstico é de que os erros do ciclo anterior foram essencialmente de foco. Priorizaram-se os setores errados. Não se pergunta se a governança das políticas adotadas estava correta.

Se os incentivos não estiverem corretos, independentemente de se priorizar este ou aquele setor, a política não funcionará. O sucesso da política depende de o foco estar correto e de o desenho microeconômico alinhar incentivos privados com os sociais.

Nada indica que houve esse aprendizado. Voltaremos a apertar os botões do ativismo desenvolvimentista e a desperdiçar escassos recursos públicos.

A lenta colisão EUA-China, por Nouriel Roubini

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Nouriel Roubini – A Terra é Redonda – 09/05/2023

Os dois países permanecem em rota de colisão e um perigoso aprofundamento da “depressão geopolítica” em curso é quase inevitável

Recentemente, participei do Fórum de Desenvolvimento da China (FDC) em Pequim, um encontro anual de líderes empresariais estrangeiros, acadêmicos, ex-legisladores e altos funcionários chineses. A conferência deste ano foi a primeira a ser realizada pessoalmente desde 2019 e ofereceu aos observadores ocidentais a oportunidade de conhecer a nova liderança sênior da China, incluindo o novo primeiro-ministro Li Qiang.

O evento também ofereceu a Li Qiang a sua primeira oportunidade de se envolver com representantes estrangeiros desde que assumiu o cargo. Embora muito tenha sido dito sobre ter o presidente chinês Xi Jinping nomeado partidários próximos para cargos cruciais dentro do Partido Comunista da China e do governo, nossas discussões com Li Qiang e outras autoridades chinesas de alto escalão ofereceram uma visão mais sutil de suas políticas e estilo de liderança.

Antes de se tornar primeiro-ministro em março, Li Qiang atuou como secretário do PCCh em Xangai.

Como reformador econômico e proponente do empreendedorismo privado, ele desempenhou um papel crucial em convencer a Tesla a construir uma megafábrica na cidade. Durante a pandemia de COVID-19, ele aplicou a estrita política zero-COVID de Xi Jinping e supervisionou um bloqueio de Xangai por dois meses.

Felizmente para Li Qiang, ele foi recompensado por sua lealdade e não transformado em bode expiatório pelo fracasso da política. Seu relacionamento próximo com Xi Jinping também lhe permitiu convencer o presidente chinês a reverter as restrições zero-COVID durante a noite, pois essa política provou ser insustentável. Durante nossa reunião, Li Qiang reiterou o compromisso da China com a “reforma e abertura”, uma mensagem que outros líderes chineses também transmitiram.

A sagacidade notável de Li Qiang contrastava fortemente com o comportamento mais reservado do ex-primeiro-ministro Li Keqiang, que conhecemos nos anos anteriores, quando ele era primeiro-ministro. Durante nossa reunião, ele fez o CEO da Apple, Tim Cook, rir alto ao atribuir seu humor alegre ao vídeo viral de Cook sendo aplaudido pela multidão durante sua visita a uma loja da Apple em Pequim.

Ele até brincou sobre um vídeo de legisladores dos EUA interrogando o CEO da TikTok, Shou Zi Chew, que também se tornou viral naquela semana. Ao contrário de Cook, ele observou, o sitiado chefe do TikTok não estava sorrindo durante sua audiência no Congresso. A piada de Li Qiang incluía uma advertência implícita de que, embora as empresas americanas ainda sejam bem-vindas na China, o governo chinês pode jogar duro se suas empresas e interesses forem tratados duramente nos Estados Unidos.

A ameaça velada de Li Qiang captura a atual atitude chinesa em relação aos EUA. Embora os principais formuladores de políticas econômicas na China frequentemente falem sobre a abertura, as políticas da China ainda priorizam a segurança e o controle sobre a reforma. Qin Gang, o novo ministro das Relações Exteriores da China, adotou uma postura dura durante seu discurso no FDC.

Dando um golpe implícito nos EUA, Qin Gang alertou os participantes ocidentais que, embora a China pretenda manter um regime de comércio global aberto, o país responderia com força a qualquer tentativa de arrastá-lo para uma nova guerra fria.

Em um discurso recente, a secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, procurou aliviar as preocupações da China de que os EUA estão tentando “conter” sua ascensão, separando também as duas economias. As recentes ações americanas que limitam o comércio com a China, ela esclareceu, foram baseadas em preocupações de segurança nacional – e não em um esforço para impedir o crescimento econômico do país.

Mas preservar a relação com a China será difícil para os Estados Unidos já que planeja introduzir restrições de longo alcance aos investimentos chineses nos EUA e aos investimentos dos EUA na China. Até o momento, as autoridades chinesas não foram receptivas aos esforços de Janet Yellen e do secretário de Estado, Antony Blinken, para estabelecer um diálogo sobre como maximizar a cooperação, minimizar as áreas de confronto e administrar a crescente competição estratégica e rivalidade entre as duas potências.

A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, fez recentemente um discurso igualmente pragmático no qual argumentou que a Europa deveria “focar na redução de riscos em vez de se separar” da China, mas também enfatizou as muitas maneiras pelas quais as políticas chinesas representam uma ameaça à Europa e ao Ocidente. O seu discurso não foi bem recebido em Pequim e ela foi efetivamente desprezada quando visitou a China com o presidente francês Emmanuel Macron em abril. O mais complacente Emmanuel Macron, entretanto, recebeu um tapete vermelho de boas-vindas.

A China está atualmente tentando criar uma barreira entre a União Europeia e os EUA. Dado que as empresas sediadas na União Europeia têm interesses significativos na China, muitos CEOs europeus compareceram ao Fórum (FDC), em contraste com a presença limitada de líderes empresariais americanos. E os comentários polêmicos de Emmanuel Macron durante sua visita em abril,
particularmente sua declaração de que a Europa não deve se tornar um “vassalo” dos EUA, sugeriram que o esforço pode ter dado certo. Mas um comunicado subsequente do G7 reafirmou a posição do Ocidente sobre Taiwan e condenou as políticas agressivas da China em relação à ilha, e o apoio tácito da China à invasão brutal da Rússia na Ucrânia provavelmente impedirá a Europa de sucumbir a uma ofensiva de charme.

A corrida para a eleição presidencial dos EUA, juntamente com a suspeita da China de qu
e os EUA estão tentando conter seu crescimento econômico, impedirá os esforços para construir confiança e diminuir as tensões entre os dois países. Com democratas e republicanos competindo para serem vistos como duros com a China, a guerra fria sino-americana provavelmente se intensificará, aumentando o risco de uma eventual guerra quente sobre Taiwan.

Apesar dos esforços das autoridades americanas para estabelecer barreiras para a competição estratégica com a China e da insistência das autoridades chinesas de que não têm interesse em dissociação econômica, as perspectivas de cooperação parecem cada vez mais remotas. A fragmentação e a dissociação estão se tornando o novo normal, os dois países permanecem em rota de colisão e um perigoso aprofundamento da “depressão geopolítica” em curso é quase inevitável.

*Nouriel Roubini é professor de economia na Stern School of Business da New York University. Autor, entre outros livros, de MegaThreats: ten dangerous trends that imperil our future (Little, Brown and Company).

Novos Desafios

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Vivemos numa sociedade integrada, interdependente e fortemente concorrencial, marcada por grandes transformações em todas as áreas e setores, com novos modelos de negócios, novas formas de acumulação econômica, alterações no mundo do trabalho, com fortes exigências de qualificação, com capacitação constante e medos crescentes das novas tecnologias, como a inteligência artificial, que abre novos horizontes para o mundo do trabalho, das comunicações e geram calafrios para os trabalhadores, principalmente aqueles que carecem de qualificação.

Neste cenário de fortes transformações constantes, percebemos que as nações estão se movimentando rapidamente para compreenderem os novos rumos e os novos desafios da economia contemporânea. Percebemos o nascimento de uma nova sociedade impulsionada pelo período pós-pandêmico, os novos negócios que estão crescendo rapidamente, as qualificações demandadas na sociedade global, os novos valores da comunidade, neste cenário, são imprescindíveis repensarmos a educação, o conhecimento, a ciência e a pesquisa científica, sua importância como um instrumento de conscientização social e fortalecimento político, na chamada Quarta Revolução Industrial.

No momento atual necessitamos de políticas públicas ousadas e inovadoras, lideranças capacitadas para compreenderem os desafios da sociedade contemporânea, que consigam compreender a importância da educação, com investimentos maciços em energias alternativas, fortalecendo a sustentabilidade, priorizando uma reindustrialização da economia, incentivando novas estruturas industriais, deixando de lado investimentos em energias poluidoras, revendo as isenções fiscais e financeiras que poucos benefícios trazem para a sociedade nacional e servem apenas para engordar os grandes conglomerados econômicos em detrimento da sociedade nacional.

Vivemos num momento que caminha a passos largos para uma sociedade multipolar, onde encontramos polos antagônicos que se digladiam para aumentar seus instrumentos de poder e de influência, neste momento, percebemos que a liderança prescinde de uma nova visão geopolítica, observando os contendores, seus interesses e sua capacidade de negociação, seus recursos disponíveis e a disponibilidade de negociação, vislumbrando interesses nacionais, deixando de lado uma visão subalterna, de subserviência e que contribuem para perpetuar nosso subdesenvolvimento.

Os desafios contemporâneos não são apenas econômicos, somos bombardeados por desafios sociais, políticos e culturais. Esses desafios estão presentes em todas as regiões do mundo, todas as nações sentem na pele que os momentos são desafiadores, exigindo uma união constante entre todos os grupos sociais, deixando de lado seus interesses imediatos em prol de uma sociedade mais consciente, mais equilibrada e centrada em valores mais democráticos e republicanos. Nos últimos anos estamos cultivando conflitos variados, estamos degradando nossa estrutura econômica e produtiva, mantendo e incentivando taxas de juros proibitivas que garantem altos lucros financeiros para setores rentistas e financistas que pouco trazem benefícios para a sociedade nacional. Estamos nos degradando politicamente com uma sociedade fortemente polarizada e destrutiva, cada um dos contendores esforça para gritar mais alto e reverberar sua insanidade, deixando de lado uma sociedade em franca decadência, vivendo de migalhas e esmolas de grupos que motivam estas polarizações e enchem seus bolsos com a degradação da sociedade nacional.

Neste momento de grandes incertezas e instabilidades da sociedade mundial, está na hora de refletirmos sobre a fala do grande físico Albert Einstein: “Fazer todos os dias, as mesmas coisas e esperar resultados diferentes é a maior prova de insanidade”. Nos últimos quarenta anos estamos fazendo o mesmo discurso econômico, arrocho salarial, austeridade fiscal, abertura econômica, privatização, desindustrialização, desestímulo a produção e o incentivo crescente do rentismo e da agiotagem, dessa forma a nossa economia perdeu o rumo, nossa dívida social aumentou e nossas perspectivas de sucessos ficaram para trás. Será que, como disse Albert Einstein, somos prova de insanidade?

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 10/05/2023.

Pochmann: Como a Selic deforma o trabalho

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Os juros muito altos do BC convidam os capitalistas a multiplicar sua riqueza sem produzir. A taxa de investimentos despenca. A indústria e os serviços não se modernizam. Resultado: desemprego e trabalho cada vez mais arcaico e precário

Marcio Pochmann – Outras Palavras – 03/05/2023

Nem sempre as discussões em torno da definição da taxa básica de juros (Selic) e da condução da política monetária consideram os seus efeitos de curto e longo prazo em todas as atividades econômicas, bem como as consequências para o mundo do trabalho. Assim como juros elevados asfixiam o consumo e o investimento produtivo, potencializando ganhos financeiros especulativos e alimentando o rentismo improdutivo, a quantidade e qualidade das ocupações da mão de obra são negativamente atingidas.

Isso porque o trabalho mantém uma relação direta e de intensa tensão com o processo de acumulação de capital, tal qual o binômio Casa-Grande & Senzala, formulado por Gilberto Freyre – algo inseparável, ainda que em oposição, e mesmo que diferente e assimétrico, mantém-se interligado implícita e profundamente um ao outro.

No caso do capital e o trabalho, a relação é inconteste. Se, de um lado, o uso quantitativo do trabalho se encontra associado ao dinamismo econômico, de outro, o grau de sua exploração pelo capital gera profundo e contínuo questionamento por quem trabalha.

Na formulação geral da transformação do dinheiro em capital apresentada por K. Marx (O capital: crítica da economia política), por exemplo, o trabalho encontra a sua forma ou deformação estabelecida. Pela concepção marxista, a conversão do dinheiro em mercadoria e a sua reconversão pelo comércio da mercadoria em mais dinheiro (D-M-D’) constitui o movimento no tempo pelo qual o dinheiro se torna capital.

É para isso que a metamorfose do dinheiro em mercadoria conduzida pelo emprego da forma trabalho assalariado gera valor que se converte em lucro tensionado pela necessidade do pagamento de salário e de outros custos de produção. Do contrário, prevaleceria a simples circulação de mercadorias, expresso pela mera troca de dinheiro por dinheiro (D-D), sem que a valorização do trabalho se traduzisse em capital.

Mas há outra via pela qual o dinheiro se converte em mais dinheiro (D-D’), definida pela condição do capital fictício que se valoriza abreviado pela ausência da intermediação própria da produção de mercadorias. Diferentemente da gênese do dinheiro a partir da mercadoria como um produto do labor humano (relação entre capital e trabalho), o capital portador de juros permite que o empréstimo de uma soma de dinheiro se reverta em valorização de si mesmo, sem a necessidade de passar pelo processo que inter-relaciona extremos da associação do trabalho com o capital.

Neste cenário econômico, as possibilidades do trabalho ter a forma do emprego assalariado protegido por direitos sociais e trabalhistas, por exemplo, são decrescentes. O que tende a ganhar maior dimensão é a deformação do trabalho, pois distante do assalariamento e das condições de acesso aos direitos sociais e trabalhistas prevalece a precarização de uma população crescentemente sobrante aos requisitos capitalistas.

O trabalho produtivo expressando emprego assalariado protegido se encontra integrado ao processo de acumulação de capital quando a dinâmica da produção de mercadoria cria as condições de sua conversão em lucro. Na situação inversa, quando o processo de acumulação de capital ocorre liderado pela dominância do capital fictício, tende a prevalecer o trabalho improdutivo deformado, posto que se impõe o seu alijamento da dinâmica expansionista da financeirização da riqueza.

Para a realidade brasileira de longo prazo, percebe-se como durante o ciclo da industrialização nacional ocorrido entre as décadas de 1930 e 1980, a dominância do capital produtivo foi acompanhada pela elevação do nível do emprego assalariado protegido. Se, na década de 1940, apenas um a cada dez ocupados tinha trabalho assalariado protegido, nos anos 1980 esta forma aproximou-se de dois terços do total da ocupação nacional.

Desde os anos 1990, contudo, o ingresso passivo e subordinado na globalização tornou o capital financeiro dominante no processo de acumulação capitalista no país. A estagnação da renda por habitante indicou os constrangimentos pelos quais a forma trabalho assentada no emprego assalariado protegido passou a conviver.

No seu lugar emergiu o trabalho sem forma, ou melhor, a deformação do trabalho expressa pela variedade de atividades improdutivas aos requisitos capitalistas de produção. Sob a liderança do capital financeiro, os obstáculos à produção se impuseram, com a estagnação do assalariamento protegido em meio à deformação do trabalho pelo desemprego e à difusão de ocupações indeterminadas e gerais rebaixadas por atividades de contida produtividade e rendimento.

Por que nos sentimos tão sozinhos? por Pedro Henrique M. Aniceto

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Pedro Henrique M. Aniceto

A Terra é Redonda – 07/05/2023

Os indivíduos imploram pela atenção alheia, esperando com que o Outro ateste por meio de likes, visualizações e comentários, que sua vida realmente vale a pena ser vivida

Com a revolução técnico-científico-informacional e, por consequência, o avanço expressivo dos meios de comunicação de massa, uma nova realidade se estabeleceu no mundo do século XXI. Nunca antes, na história da humanidade, foi possível se conectar e trocar experiências e informações com o número de pessoas a que temos acesso pelas redes sociais.

A nova forma do capitalismo em que nós, seres humanos, passamos a ser produtos a serem comercializados e consumidos estabeleceu um precedente perigoso em que, por um lado, permite a disseminação de milhões e milhões de informações e conteúdos importantes para a manutenção da vida humana e, por outro, torna-se um instrumento dantesco responsável por um processo de desumanização do ser, o qual deixa de ser sujeito na própria vida e passa a objeto a ser consumido, responsável pela própria servidão, senhor da própria futilidade.

A necessidade pujante e erotizada de estar conectado e criando “conteúdo” para a experiência alheia evidencia um diagnóstico duro e complexo da sociedade contemporânea, o vazio estrutural da consciência moderna. Com isso, evidencia-se o pensamento de Jacques Lacan, um psicanalista francês cuja obra se fundamenta, em parte, na questão “Por que nos sentimos tão sozinhos?”.

Para Jacques Lacan, durante uma fase do desenvolvimento da criança, denominada “fase do espelho”, o indivíduo percebe que é um ente separado do ambiente e é essa distância simbólica que gera o vazio interior que nos torna tão solitários, tornando “necessário” a nós preenchê-lo. É esse, para o autor, o nascimento do ego. Pode-se, nessa conjuntura, tomar por base tal concepção lacaniana para justificar, em parte, o porquê a vida digital, projetada e encenada, é tão valorizada na contemporaneidade.

Isso porque possibilita ao indivíduo tentar reduzir, pelo menos um pouco, a distância entre ele e o mundo, permitindo que se sinta diluído e pertencente a um todo, o que Sigmund Freud chama de “sentimento oceânico”. Assim, numa espécie de “servidão voluntária”, utilizando um conceito de Étienne de la Boétie, os indivíduos imploram pela atenção alheia, esperando com que o Outro ateste por meio de likes, visualizações e comentários, que sua vida realmente vale a pena ser vivida.

Nesse sentido, os indivíduos renunciam à liberdade e à privacidade em prol da sensação de pertencimento a um conjunto que, por essência, também tenta consolidar-se como alguém cuja vida exposta – não necessariamente verdadeira – deva ser desejada pela massa. E nesse cenário, marcado por um ciclo vicioso, que cintila a concepção doentia de felicidade contemporânea, em que é preciso, a todo tempo, exaltar uma vida feliz e inexistente a fim de que outros validem esse sentimento como verdadeiro. Para que assim, possa, no âmago do ser, sentir uma ilusão momentânea de integração com mundo que é, rapidamente, substituída por um sentimento de solidão, que move novamente a roda, fazendo com haja novas interações vazias e superficiais que não o preenchem fazendo com que o ciclo se repita.

É, portanto, nesse paradoxo da solidão em meio a muitos que a sociedade o século XXI se baseia, havendo um apagamento do ser enquanto sujeito dono de si e, em seu lugar, consolidando, cada vez mais, zombies gritando dia após dia que são pessoas felizes, enquanto esperam que o restante do mundo repita e ateste para que, assim, possam acreditar, pelo menos por um instante, nessa fantasia que a concepção atual de felicidade.

*Pedro Henrique M. Aniceto é graduando em ciências econômicas na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).