Novos horizontes econômicos

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Vivemos numa sociedade que se altera rapidamente, exigindo dos setores econômicos e produtivos uma constante reinvenção, obrigando-os a compreenderem as transformações em curso, adotando políticas efetivas para se posicionar rapidamente, buscando se antecipar às movimentações das organizações, interpretando todos os passos dos concorrentes e compreendendo os anseios dos consumidores, construindo estratégias dos governos e, ao mesmo tempo, buscando compreender que vivemos numa sociedade centrada na competição, na busca frenética do lucro e da acumulação.

Neste cenário, percebemos novas atuações dos governos nacionais, motivados pela perda de espaço do pensamento neoliberal, embora dominante, que vem perdendo força e dinamismo, exigindo que as sociedades construam novas estratégias e novas formas de planejamento. A perda de poder do pensamento neoliberal está diretamente ligada a crise Imobiliária dos Estados Unidos de 2007/2008 e seus impactos na Europa, além do crescimento econômico chinês e de algumas nações asiáticas e, mais recentemente, da pandemia do coronavírus que vitimou mais de 6 milhões de pessoas na sociedade internacional, tudo isso, está motivando novos horizontes para o pensamento econômico internacional.

Neste cenário, percebemos que os discursos econômicos estão sendo reinterpretados nas economias desenvolvidas, a defesa enfática da abertura econômica, das privatizações, das desregulamentações e a diminuição das intervenções dos governos nacionais estão passando por grandes mudanças, com impactos sobre todas as economias, gerando incertezas e instabilidades crescentes.

Depois de uma defesa pseudoliberal, que pregava a abertura econômica e a diminuição do papel dos Estados Nacionais nas questões econômicas e produtivas, as nações desenvolvidas ocidentais passaram a rever seus conceitos. Atualmente, estas nações estão ensaiando um novo modelo baseado nas políticas públicas centradas em seus governos nacionais, com incremento dos subsídios para os setores produtivos, além de políticas fortemente intervencionistas para defender suas organizações, punindo concorrentes e adotando políticas diferentes das defendidas anteriormente, mostrando o crescimento da flexibilidade ou do pragmatismo quando os assuntos eram os interesses nacionais de seus grandes conglomerados.

Nos anos 1990, estas nações desenvolvidas defendiam políticas neoliberais, rechaçando as intervenções governamentais, vistas como atrasadas e marcadas por fortes traços de corrupção e de ineficiência, esquecendo que em momentos anteriores, seu desenvolvimento foi muito estimulado por políticas industriais lideradas por seus Estados Nacionais. Neste período, os defensores destas políticas adotavam aquilo que o economista coreano, radicado na Inglaterra, Ha-joon Chang chamou de chutando a escada.

Neste momento, está surgindo novos horizontes econômicos na sociedade internacional, os governos nacionais estão ganhando, novamente, novos espaços nas discussões econômicas teóricas internacionais, os subsídios estão sendo retomados em todas as regiões, as políticas intervencionistas estão sendo recriadas e repensadas, levando a retomada de políticas industriais reconstruídas objetivando a reconstrução dos setores industriais, reduzindo as dependências de outras nações, alavancando as exportações, diminuindo as importações e aumentando a soberania nacional.

Nesta nova etapa, as nações estão envoltas em grandes conflitos econômicos e produtivos, a concorrência crescente com as nações asiáticas está levando os países ocidentais a injetarem trilhões de dólares para impulsionar setores estratégicos para a economia do século XXI, protegendo seus conglomerados, prometendo subsídios para a atração de novas empresas e setores industriais, exigindo uma forte capacidade de compreensão dos rumos que a sociedade internacional está caminhando para as próximas décadas, evitando investimentos em setores cujos retornos são limitados e, em contrapartida, investindo em setores cujos potenciais são elevados e seus retornos são gigantescos para a sociedade.

Neste cenário, precisamos buscar uma estratégia para desenvolver nossas potencialidades, evitando conselhos daqueles que almejam nossas riquezas e contribuírem para nossas desditas, lucrando com nossas injustiças, nossos atrasos institucionais e nosso subdesenvolvimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 28/06/2023.

Busca pelo crescimento coloca a humanidade em uma rota suicida, diz economista-ecologista

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Francês é o novo expoente do movimento que prega decrescimento econômico para frear mudanças climáticas

FOLHA DE SÃO PAULO, 27/06/2023

FERNANDA MENA

TOULOUSE (FRANÇA) A economia virou uma arma de destruição em massa cuja violência, lenta e difusa, deve-se, não à sua existência, mas ao objetivo central que há tempos a impulsiona: um crescimento sem fim.

É o que afirma o economista e ecologista francês Timothée Parrique, 33, novo expoente de um movimento que surgiu na França nos anos 1970, que ataca a primazia do PIB e aponta para a ideia de decrescimento econômico. Para Parrique, a busca pelo crescimento econômico em regiões ricas do mundo está colocando a humanidade numa rota suicida, “um desastre que já é sentido por populações vulneráveis”, afirma à Folha.

Encampado pela geração clima, sua versão atual critica a ideia de crescimento sustentável e prega a redução do crescimento de países ricos – aqueles que mais produzem, consomem e poluem – diante de um planeja em plena turbulência climática.

Em seu livro, “Ralentir ou périr: L’économie de la décroissance” (Desacelerar ou perecer: A economia do decrescimento, em tradução livre), lançado no final do ano passado, Parrique decreta que a economia verde, na qual as potências econômicas globais investem bilhões, é uma falácia.

Segundo o economista, o chamado “crescimento verde” tem demonstrado ser incapaz de dissociar a produção e o consumo de bens e serviços de impactos ambientais importantes em um planeta já muito desgastado.

“O decrescimento descreve uma redução temporária da produção e do consumo em regiões ricas do mundo, planejada democraticamente para diminuir as pressões ambientais de forma equitativa e com o objetivo de melhorar o bem-estar”, afirma em entrevista por email.

“É como uma dieta macroeconômica para estabilizar o metabolismo das economias de alta renda em uma escala que possa ser sustentável. Isso porque, da mesma forma que o motor de um carro não pode ser maior do que o próprio carro, uma economia não pode ter um tamanho maior do que seus ecossistemas de apoio”, diz.

O destino dessa dieta, afirma, é o chamado pós-crescimento, uma espécie de economia do bem-estar global.

O livro é baseado na tese de doutorado de Parrique, “A economia política do decrescimento”, que teve dezenas de milhares de downloads desde que foi publicada, em 2019, em uma plataforma acadêmica da França, e atraiu a atenção de editores.

O livro rendeu a este economista, ecologista e surfista a classificação de ingênuo, mas também de visionário, convites para palestras em gigantes da economia francesa, como a Airbus e a Saint-Gobain, e o apelido de “Fred Mercury do decrescimento” por causa do bigode que lembra o do líder da banda Queen.

Em poucos meses, o livro se esgotou e já está em segunda edição, o que reflete uma França cada vez mais impactada pelas ondas de calor, enchentes e secas que se intensificaram a partir do verão de 2022 e que ressurgem, ainda com mais força, em 2023.

Esse sentimento Parrique sintetiza em uma frase: “O colapso ecológico não é uma crise, é uma surra.”

Seu livro sugere que a humanidade tem duas opções: desacelerar o crescimento econômico ou sucumbir. Estamos nessa encruzilhada? A busca pelo crescimento econômico em regiões ricas do mundo está colocando a humanidade numa rota suicida, um desastre que já é sentido por populações vulneráveis, cujo sustento é afetado pelo colapso ecológico. A tese principal do meu livro é de que não conseguiremos tornar o crescimento verde. A escolha, portanto, é: ou o decrescimento hoje ou o colapso amanhã. Ou reservamos um tempo para planejar uma transição suave a partir de agora ou esperamos ser confrontados com ondas de calor, escassez de água, colapso da biodiversidade etc., e a série de distúrbios sociais que isso provocará.

Por que não será possível tornar o crescimento verde? É impossível produzir qualquer coisa sem energia e materiais. Essa é uma verdade física simples e contrária a muitas teorias econômicas que supõem que o progresso tecnológico pode dissociar completamente a produção das pressões ambientais. O trabalho que realizei sobre esse tópico, desde a publicação de “Decoupling debunked” [Dissociação desmascarada, em tradução livre do inglês], em 2019, é claro: os países de alta renda não conseguiram tornar seu crescimento “verde” em nenhuma definição significativa do termo.

Como assim? Para tornar o crescimento econômico realmente sustentável, seria preciso dissociar totalmente a produção e o consumo de todas as pressões ambientais –não apenas do carbono–, onde quer que elas ocorram e num ritmo suficientemente rápido para evitar o colapso ecológico, levando em conta metas baseadas em ciência. E seria preciso manter essa dissociação ao longo do tempo para evitar uma reacoplagem. Esse crescimento genuinamente verde nunca foi alcançado em nenhum lugar da Terra. E não vi nenhuma evidência convincente mostrando que poderia ser alcançado.

Como explicar então que se fale tanto em economia verde? O discurso do crescimento verde se tornou uma forma macroeconômica de greenwashing [expressão em inglês que consiste em maquiar ações e resultados para que pareçam ser mais sustentáveis]. Assim como no típico greenwashing empresarial, apontar para uma redução insignificante de um único indicador ambiental e chamá-lo de “crescimento verde” é enganoso. À medida que os ecossistemas racham em uma velocidade sem precedentes na história, estamos perdendo tempo precioso argumentando que talvez, um dia, a dissociação possa acontecer quando o sistema deveria ser radicalmente transformado.

Parte dos cortes nas emissões que estamos testemunhando atualmente pode ser explicada por uma desaceleração econômica. E isso é paradoxal: esperamos que um crescimento econômico mais rápido acelere a dissociação, embora grande parte da dissociação historicamente alcançada tenha ocorrido por causa de um crescimento mais lento. Uma coisa é certa: o crescimento do PIB dificulta a redução das emissões em comparação com um cenário de crescimento negativo ou de ausência de crescimento.

Qual é a diferença entre decrescimento e recessão? Uma recessão é uma redução no PIB, que acontece acidentalmente, muitas vezes com resultados sociais indesejáveis, como desemprego, austeridade e pobreza. O decrescimento, por outro lado, é uma redução planejada, seletiva e equitativa das atividades econômicas. Associar o decrescimento a uma recessão só porque os dois envolvem uma redução do PIB é absurdo. Seria como argumentar que uma amputação e uma dieta são a mesma coisa só porque ambas levam à perda de peso.

Além disso, o próprio conceito de decrescimento surgiu para criticar uma visão economicista do mundo que vê tudo em termos de indicadores monetários. O decrescimento não é a antítese do crescimento, mas sua nêmesis –um conceito cuja razão de ser é destronar um modo de pensar que vê tudo como aumento ou queda no PIB.

Qual é o problema de medir desenvolvimento a partir do PIB? A maior ameaça de uma economia obcecada pelo crescimento é que ela acaba sacrificando a sustentabilidade ecológica e a saúde social no altar do Produto Interno Bruto, um indicador abstrato fundamentalmente mal adaptado para medir a prosperidade. Precisamos reformular completamente o funcionamento das economias já ricas para que elas produzam e consumam menos, que é o decrescimento. Ao mesmo tempo, precisamos fazer a transição para um sistema em que essas economias possam prosperar com níveis muito mais baixos de uso de recursos, que é o pós-crescimento.

O objetivo da economia verde é um bom exemplo dessa obsessão pelo PIB. Por que estamos nos concentrando tanto em tornar o crescimento econômico mais verde? Estamos prospectando na direção errada. Em vez de tentarmos obstinadamente dissociar o PIB dos gases de efeito estufa, deveríamos tentar dissociar o bem-estar das pressões ambientais. Em países de alta renda, onde o PIB per capita perdeu toda a correlação com a qualidade de vida, parece tolice desperdiçar recursos naturais preciosos para produzir mais, enquanto estratégias alternativas baseadas no compartilhamento seriam não apenas mais sustentáveis mas também mais eficazes para elevar os padrões de vida.

Quais são as métricas que deveriam substituir o PIB? Existem muitos indicadores alternativos e qualquer um deles seria melhor do que o PIB. Um exemplo entre muitos: o Wellbeing Budgets, da Nova Zelândia. Trata-se de um painel de 65 indicadores de atividade econômica, bem-estar social e sustentabilidade ecológica, divididos em duas categorias amplas de bem-estar presente e futuro. O desenvolvimento é um processo complexo que não deve ser simplificado em um único número monetário. A expectativa de vida deve ser medida em anos, a disponibilidade de alimentos em calorias, a eletricidade em quilowatts, o número de ciclovias em quilômetros, o aquecimento global em graus, a água doce em litros, a biodiversidade em número de espécies etc.

Você escreveu que “a economia se tornou uma arma de destruição em massa”. Não é exagero? Hoje, para “salvar a economia”, estamos sacrificando o planeta. Estamos preocupados com o impacto que o aquecimento global terá sobre o PIB, mas o que deveria nos preocupar é a degradação da própria habitabilidade do mundo vivo.

Vou ser ainda mais provocativo: o crescimento econômico é um fenômeno imperial. Parte do que está sendo registrado nos países de alta renda como um aumento aparentemente benigno do PIB é, na verdade, uma apropriação injusta e insustentável do tempo de trabalho e dos recursos naturais de todo o planeta.

[O geógrafo britânico] David Harvey chama isso de “acumulação por desapropriação” para nos lembrar que o que rotulamos como “crescimento” é mais parecido com uma reorganização de ativos já existentes. Não sejamos tímidos e falemos até mesmo de “acumulação por contaminação” para reconhecer o rastro tóxico que o crescimento econômico deixa para trás. A situação é a seguinte: a expansão macroeconômica das regiões ricas do mundo age como um vácuo gigante que trata o Sul global e a natureza como um bufê do tipo “coma o quanto puder”.

É justo exigir decrescimento também de países em desenvolvimento? O conceito de “décroissance conviviale” (decrescimento convivial) surgiu na França em 2002 como uma estratégia para a justiça global. A promoção do decrescimento em um país como a França não foi uma luta interesseira pela sobrevivência, mas sim uma tentativa de libertar o Sul global do “modo de vida imperial” das nações ricas e de consumo excessivo.

Sabemos há muito tempo que a maior parte das pressões ambientais é exercida pelos mais ricos. Por exemplo, os 10% mais ricos do mundo geram cerca de metade de todas as emissões do planeta. E sabemos que o impacto do estilo de vida nas regiões ricas do mundo priva os países pobres de seus recursos naturais. É por isso que o decrescimento tem como alvo as nações de alta renda; não se trata de uma receita universal, mas sim de uma dieta macroeconômica para essas poucas nações e classes que vivem acima de seus meios sustentáveis.

A América do Norte e a Europa são responsáveis por metade de todas as emissões desde 1850, o que torna o orçamento de carbono restante bastante pequeno. Preferimos queimar nossos últimos barris de petróleo para atualizar os carros ocidentais para SUVs ou para construir painéis solares, tubulações de água e hospitais no Sul global? Essa lógica se aplica a todos os recursos naturais.

Os consumidores ricos comem mais bifes, pegam mais aviões, constroem mais casas etc., mas à custa de menos biodiversidade, água e soberania alimentar em países que precisam desmatar para fornecer matéria-prima barata ao Norte global, além de menos estabilidade climática e menos minerais disponíveis para construir infraestrutura de energia renovável. Em um mundo que ultrapassou seus limites ecológicos, muito em algum lugar significa sistematicamente insuficiência em outro.

Raio-X
Economista e ecologista, Timothée Parrique, 33, é pesquisador na Pesquisador na Universidade de Lund, na Suécia, e autor de “Ralentir ou périr: L’économie de la décroissance” (ed. Seuil), que trata do decrescimento econômico dos países ricos como forma de frear o colapso ecológico do planeta. Ele é autor também do estudo “Decoupling debunked” (Dissociação desmascarada, em tradução livre), que desconstrói a ideia de crescimento sustentável.

Junho de 2013: rio revolto e incompreendido, por Roberto Andres.

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Novo livro analisa os gigantescos protestos que abalaram o país. Ao catalisarem insatisfações para além do preço da tarefa, tornaram-se expressão da luta por democracia real. E produziram fissuras que ainda hoje marcam a política nacional

Roberto Andres – Outras Palavras – 19/06/2023

“Fechem os olhos e imaginem. Imaginem uma cidade como São Paulo, sem tarifa, sem catraca, cada um acessando o transporte livremente. Imaginem a mudança na vida das pessoas. Quantas coisas seriam feitas, o impacto na economia. Muda tudo. A tarifa zero muda tudo.” Umas vinte pessoas em uma sala improvisada no Centro Cultural São Paulo fecharam os olhos e imaginaram. Quem falava era Lúcio Gregori, um senhor de cabelos grisalhos penteados para trás, óculos grandes e camisa social abotoada até o colarinho. Era outubro de 2010.1 Em poucos dias, Dilma Rousseff seria eleita presidenta. A sinfonia que tocava no país era a do espetáculo do crescimento.

O público era pequeno, mas o palestrante não pregava para convertidos. Boa parte ali desconhecia a história que ele protagonizara duas décadas antes. Era surpreendente que uma proposição tão radical fosse tão esquecida. Em 1990, Gregori foi nomeado secretário de Transportes da cidade de São Paulo, no governo de Luiza Erundina, do PT. Tendo caído meio que por acaso na pasta e, sem muito a perder, fez uma proposta ousada à prefeita: financiar indiretamente o sistema de transporte e zerar a tarifa, assim como ocorria com os serviços de educação, saúde, iluminação pública e coleta e tratamento de lixo.

A proposta causou polêmica dentro do governo e do PT, mas acabou sendo abraçada pela prefeita. Assim, durante o ano de 1990, a sociedade paulistana debateu a sério uma proposição de acesso gratuito ao transporte público, que seria financiado pelo aumento da arrecadação do IPTU, de forma progressiva. Naquele momento, nenhuma cidade no Brasil adotava a medida. Os registros indicam que a política era oferecida em apenas seis cidades no mundo – três na França e três nos Estados Unidos, todas com menos de 100 mil habitantes, e uma delas oferecia a política somente durante o verão.

O contexto que permitiu tamanha ousadia será analisado adiante, assim como as condições que faltaram para que a proposta fosse aprovada na Câmara de Vereadores. Após o fim do governo Erundina, Lúcio Gregori saiu de cena. Foi prestar serviços técnicos para empresas e órgãos públicos, e depois se aposentou.3 Como a proposta de gratuidade dos ônibus não foi bem sucedida, ela ficaria na geladeira por um bom tempo.

Em 2010, quando o engenheiro incitava a imaginação de alguns poucos no Centro Cultural São Paulo, havia dez cidades com Tarifa Zero no Brasil. Todas pequenas, com menos de 50 mil habitantes. Em 2022, a Tarifa Zero no transporte público era realidade em 52 cidades brasileiras, atendia 2,5 milhões de pessoas e foi pauta central na eleição em que o país derrotou o autoritarismo e elegeu Lula pela terceira vez. Entre um momento e outro, ocorreram as Revoltas de Junho.

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Uma propaganda feita pelo governo Erundina a favor da Tarifa Zero marcou a memória das pessoas atuantes no período. Era um comercial, veiculado na TV, que utilizava como personagem uma criança de um ano. O argumento da peça era que, embora não se servisse do transporte, o bebê teria acesso a mais alimentos e brinquedos graças ao dinheiro que seus pais economizariam ao não pagarem a passagem. A publicidade contribuiu, junto a outros elementos da campanha, para gerar uma maioria favorável à política na cidade.

O bebê da propaganda poderia ter sido Mayara Vivian. Sua família possuía o perfil social dos que seriam beneficiados pela gratuidade do transporte. Moradores da Zona Leste da cidade, atuavam em profissões de remuneração baixa ou média, e se locomoviam por transporte público. Mayara ia para a escola de ônibus, e foi a primeira da família a chegar à universidade. Em 1990, enquanto a prefeitura tentava emplacar a Tarifa Zero, ela tinha um ano de idade.

Quinze anos depois, ela passou um sábado de verão junto a colegas do movimento estudantil sob uma tenda em um parque de Porto Alegre. Sentados em cadeiras de plástico e enfrentando o calor intenso por mais de seis horas de plenária, uma centena de jovens presentes fundou o Movimento Passe Livre, o MPL. A maior parte deles nunca tinha ouvido falar da história de proposição da Tarifa Zero em São Paulo. Naquele momento, a pauta do grupo era o passe livre estudantil.

Isso foi em 29 de janeiro de 2005. A plenária fez parte do 5º Fórum Social Mundial, que retornava à capital gaúcha depois de uma edição em Mumbai, na Índia. O evento estava em seu período de ouro, e contou com a presença de figuras expressivas da esquerda mundial, como Eduardo Galeano, José Saramago, Lula e Hugo Chávez. A tenda onde ocorreu a plenária de fundação do MPL foi chamada de “caracol intergaláctica”, e abrigou uma programação alternativa, de corte autonomista. Os jovens ali reunidos eram uma parte marginal do festejado evento de esquerda. Seria risível se alguém dissesse que o movimento fundado por eles iria abalar o Brasil daí a oito anos, e contribuir para encerrar o ciclo de hegemonia dos governos petistas.

O MPL nascia das revoltas contra aumentos tarifários ocorridas nos anos anteriores. Seus protagonistas eram estudantes, alguns ligados à esquerda partidária, outros ao autonomismo. A Revolta do Buzu, em Salvador, em 2003, inaugurou uma nova leva de rebeliões pelo transporte, depois de um período de calmaria. A Revolta da Catraca, ocorrida em Florianópolis em 2004, deu um passo adiante: conquistou a redução da tarifa depois de vários dias de protestos. Embalados pela vitória, os militantes da capital catarinense lideraram a articulação de um movimento nacional pelo transporte, que resultou no encontro de Porto Alegre. Mayara Vivian e seus colegas de São Paulo, que haviam fundado um movimento pelo passe livre no ano anterior, viajaram quase 24 horas de ônibus para chegar à capital gaúcha.

O ano de 2005 assistiu à emergência de tendências conflitantes, que colidiriam em pouco tempo. De um lado, uma juventude que ampliava sua organização na luta pelo transporte e pelo direito à cidade9; de outro, o abandono dessa agenda pelo governo federal. Em junho daquele ano veio à tona o escândalo chamado de Mensalão, um esquema de compra de votos de parlamentares pelo Executivo federal. Foi o primeiro caso vultoso de corrupção do governo Lula, e causou grande impacto.

Para garantir sustentação política no Congresso, Lula entregou o comando do Ministério das Cidades para o PP, partido derivado de setores da Arena, legenda de sustentação do regime militar. As lideranças do PP incluíam o ex-governador de São Paulo, Paulo Maluf, e o então presidente da Câmara, Severino Cavalcanti. A mudança foi um cavalo de pau. Criado no primeiro dia do governo petista, o Ministério das Cidades prometia enfrentar a aguda crise urbana brasileira. Seu primeiro ministro foi Olívio Dutra, ex-prefeito de Porto Alegre e ex-governador do Rio Grande do Sul, que montou uma equipe com figuras de relevo no debate urbano.

A primeira gestão do Ministério das Cidades estruturou processos participativos e elaborou diretrizes de políticas que, se implementadas, poderiam remediar os graves problemas de mobilidade urbana, habitação, saneamento e precariedade dos bairros. Mas pouco disso saiu do papel. Após a substituição no comando da pasta, as proposições mais transformadoras foram dando lugar a uma agenda conservadora, em muitos aspectos próxima àquela implantada durante a ditadura.

Isso ocorreu junto a uma guinada na política econômica do governo. O primeiro governo Lula fora marcado pela austeridade e contenção de gastos. A partir de 2007, a toada foi de expansão fiscal e crescimento dos investimentos públicos. Quando a torneira do governo se abriu, já prevalecia no Ministério das Cidades uma visão pautada pelos interesses de grandes empreiteiras e outros atores do andar de cima. As diretrizes progressistas estabelecidas pelos processos participativos foram deixadas de lado.

É notável que a fundação do MPL tenha se dado na mesma Porto Alegre em que Olívio Dutra desenvolvera algumas das políticas mais exitosas das gestões municipais petistas. Em 2005, a tentativa de replicação nacional dessas políticas foi sepultada. A crise das cidades e do transporte urbano se acirrariam nos anos seguintes. As respostas do governo seriam tímidas ou andariam na contramão. Enquanto isso, os movimentos pelo transporte aumentariam seu poder de mobilização. O choque não tardaria a ocorrer.

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Um dos principais argumentos deste livro é que as Revoltas de 2013 ocorreram pela colisão de tendências conflitantes, que remetem ao período da redemocratização e ganharam força durante os governos petistas. Essas contendas extravasam as disputas entre capital e trabalho. Talvez sejam melhor compreendidas na chave da disputa entre formas de vida, que dizem respeito ao conjunto de práticas que moldam o cotidiano, e que são objeto de conflitos quando as sociedades se transformam.10 As formas de vida se estruturam pela organização territorial.

Por isso, a compreensão de Junho de 2013 demanda um olhar para a urbanização sui generis brasileira e suas implicações na vida cotidiana, na manutenção das desigualdades, no tecido social e na política. Entre 1940 e 1980, o Brasil teve uma das maiores taxas de urbanização de que se tem notícia no mundo. O número de moradores nas cidades saltou de treze milhões para mais de 80 milhões de pessoas. Esse processo se deu com atuação seletiva do Estado, cujos investimentos nas áreas centrais destoaram em muito das periferias, marcadas pela precariedade, pela carência de serviços públicos e de oportunidades de emprego

Para os moradores dos bairros populares, estabeleceu-se uma dependência exacerbada do transporte coletivo, ao mesmo tempo em que este nunca foi estruturado como um serviço público essencial. Como resultado, o transporte tornou-se um elemento de martírio – atrasos, veículos lotados, longo tempo das viagens. Aqueles que não tinha condições de pagar as tarifas ou de viajar por longas horas tornavam-se “prisioneiros do espaço local”, como formulou o geógrafo Milton Santos.11 De tempos em tempos, a insatisfação com esse estado de coisas explodia em revolta súbita e violenta, que veremos ao longo do livro.

O automóvel teve seu papel na dinâmica, ao oferecer às classes mais altas a possibilidade de viajar mais rápido e longe dos pobres. Em uma sociedade segregada como a brasileira, o transporte público nunca foi um problema dos ricos. Mas o crescimento das frotas de veículos impacta os ônibus, devido ao aumento dos congestionamentos. Ou seja, quanto mais gente migra para os carros, pior fica a condição dos que não migram. Os períodos históricos de incremento das frotas foram sempre seguidos de crise do transporte público. Os governos petistas, que produziram o maior boom de carros da história do país, e não levaram adiante políticas consistentes para o transporte público, armaram uma bomba que não tardaria a explodir.

O legado deixado pela ditadura civil-militar no Brasil foi muito além da cultura autoritária que ainda hoje nos assola. Ou, dizendo de outro modo, essa cultura autoritária, patrimonial e elitista foi estruturada junto a uma forma de organização territorial, política e produtiva que tornou-se o solo da vida cotidiana. A forma das cidades, a alta desigualdade e segregação, a forma de operação do transporte público, os privilégios concedidos aos automóveis, a formação de um empresariado nacional próximo ao poder político que se beneficiava do arranjo – empreiteiras, mercado
imobiliário, montadoras de carros, empresários do transporte. Tudo isso constituiu a base infraestrutural que informa as possibilidades das formas de vida, da economia e da política.

Em um contexto de abertura e redemocratização, a manutenção da ordem das coisas se deu por meio do fechamento em enclaves. Aos muros dos condomínios e shopping centers, que se multiplicaram desde os anos 1980, minando a convivência nos espaços públicos, somaram-se outros. O sistema político, operando uma transição morna para a democracia, fechou-se em condomínios de poder. Os empresários do transporte aumentaram sua influência sobre a política e garantiram suas receitas mesmo em contexto de piora dos serviços. O mesmo se deu em outros setores, como saúde, educação e segurança, em que a elite buscou manter opções privatistas e nichos de privilégio.

Esse acúmulo de muramentos conviveu com uma tendência oposta, de abertura e modernização. Esta se expressou já na grande pulsação da sociedade nos movimentos das Diretas Já e durante a Assembleia Nacional Constituinte. Um conjunto expressivo de direitos foi colocado na arena pública naquele momento, e pautou o texto constitucional. Durante os governos petistas, essa força progressista ganhou escala e passou a abarcar outros temas, ligados ao espírito do tempo e a uma sociedade que se transformava rapidamente.

O lulismo acelerou as duas tendências, contribuindo para que a colisão fosse mais forte.

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As Revoltas de 2013 resultam de linhas históricas distintas, que se juntaram e formaram um híbrido novo. Trata-se da conjunção de ciclos de luta de longo, médio e curto prazo. O primeiro é a tradição de rebeliões pelo transporte, que remete ao período imperial e atravessou o século 20, sempre intercaladas por períodos de mansidão. O segundo é o conjunto de manifestações políticas massivas ocorridas desde a redemocratização, que teve as Diretas Já em 1984 e o Fora Collor em 1992. O terceiro são as mobilizações pelo direito à cidade, por questões ambientais e pela chamada agenda de costumes que emergiram por volta de 2010. Por fim, há ainda os protestos contra a corrupção que ganharam força a partir de 2011.

Essas vertentes desembocaram simultaneamente em Junho de 2013, de maneira inesperada e rara. Não é todo dia que condições históricas que fazem despontar manifestações tão variadas coincidem no tempo. A confluência de afluentes tão díspares formou o rio revolto e incompreendido de Junho – até hoje um enigma, que este livro busca ajudar a decifrar.

Quando comparadas a cada uma de suas antecessoras nas diferentes linhas históricas, as Revoltas de Junho apresentam particularidades, resultantes da hibridização. O país conviveu desde o período imperial com rebeliões populares contra aumentos tarifários ou más condições do transporte público. Como veremos, esses motins ficaram majoritariamente restritos a setores populares de baixa organização, com semelhanças com o que o historiador Eric Hobsbawm caracterizou como turbas urbanas.12 No ciclo que culminou em 2013, as revoltas pelo transporte ganharam a adesão de setores de maior politização e capacidade de disputa. No centro disso esteve a atuação do MPL e outros movimentos do período.

Os dois primeiros governos presididos por Lula ocorreram junto a – e contribuíram para – uma transformação profunda da sociedade brasileira. A redução da pobreza, o aumento do acesso à educação e à cultura, a difusão da internet e a maior mobilidade internacional produziram uma nova geração com visões de mundo distintas da anterior. As aspirações deram um salto de patamar. Tudo isso ocorreu em paralelo ao fortalecimento de tendências conservadoras, de manutenção do status quo na política, na economia e nos territórios.

As colisões se iniciaram já por volta de 2010. Emergiram mobilizações pelo uso compartilhado dos espaços públicos urbanos, pela qualidade ambiental nas cidades, contra intervenções decididas de cima para baixo e seus impactos na vida social, como as remoções de moradores pobres por obras ligadas à realização da Copa do Mundo no Brasil. Esses movimentos atingiram escalas variadas, e formaram um caldo que fervilhou em Junho, trazendo uma miríade de perspectivas sobre a vida coletiva para as ruas.

Embora hoje isso pareça corriqueiro, o fenômeno foi novo. Marcado historicamente por um déficit de cidadania, o Brasil assistiu pela primeira vez à expressão pública de um conjunto de demandas sobre a vida compartilhada nas cidades. Tudo isso produziu fissuras na hegemonia vigente, apontando, já nos anos que antecederam 2013, que o modelo de desenvolvimento estava desencaixado das aspirações de diversos setores. Também nessa linha, emergiram mobilizações pelos direitos das mulheres, contra a lgbtfobia e pela liberdade no uso de drogas; além de movimentos contra a corrupção, em contraposição à arraigada blindagem do sistema político brasileiro, que se mantinha firme e forte enquanto a sociedade se modernizava.

A conjunção desses temas fez com que Junho representasse uma importante diferença em relação aos outros dois grandes ciclos de manifestações anteriores. As Diretas Já, em 1984, e o Fora Collor, em 1992, embora tenham expressado certa pluralidade de demandas, foram articulados em torno de pautas objetivas: o direito às eleições abertas para presidente e a deposição de um presidente eleito. Em suma, a primeira delas procurava estabelecer regras justas para o jogo democrático, e, a segunda, que essas regras fossem cumpridas em acordo com a vontade popular.

Em 2013, o sentido das manifestações foi além do jogo democrático. Tratou-se de denunciar o déficit e reivindicar o aprimoramento da vida democrática, o que inclui o sistema político, mas também elementos da vida urbana, das condições ambientais, da agenda de costumes e do acesso a serviços públicos, centrais para uma cidadania plena. Esses elementos compõem aquilo que a filósofa Nancy Fraser chamou de lutas de fronteira14, que ocorrem nas bordas da economia capitalista com suas condições de fundo.

A diversidade de pautas contribuiu para que as manifestações de 2013 ficassem sem nome de batismo. Essa é uma diferença marcante em relação aos eventos anteriores. Ninguém se refere às Diretas Já ou ao Fora Collor pelo mês em que explodiram – abril de 1984 e agosto de 1992. Em 2013, não houve uma pauta guarda-chuva que nomeasse o ciclo. A “Revolta dos Centavos” não pegou, já que a pauta se diversificou justamente quando os atos cresceram. Por falta de um nome descritivo, “Junho de 2013” virou nome próprio, assim como seu antecedente mais conhecido – o “Maio de 1968” francês.

O nome próprio que não apresenta um sentido político sustenta o caráter enigmático de Junho, que permaneceu em disputa nos anos seguintes. À direita e à esquerda, emergiram leituras distintas sobre o fenômeno, que veremos ao longo do livro. Aqui, importa notar que as revoltas de 2013 sacudiram profundamente as estruturas da política e da sociedade brasileira. Trata-se daquele tipo de evento histórico que divide o mundo entre o antes e o depois. Como as infraestruturas do mundo físico não se alteram de um dia para o outro, o que se transforma rapidamente são as mentalidades, a percepção social sobre a realidade, e as correlações de força da política.

Depois de 2013, o Brasil passou por um dos períodos mais conturbados de sua história. Visto hoje, o 7 a 1 sofrido na partida contra a Alemanha na Copa de 2014 parece um presságio do que viria. Uma eleição marcada pela alta carga agonística, estelionato eleitoral, crise econômica, uma nova direita nas ruas, Operação Lava Jato, impeachment sem crime de responsabilidade, um presidente sem votos e impopular. Tudo isso desembocou na eleição para presidente, em 2018, de um ex-capitão do Exército saudosista da ditadura que, embora fosse deputado havia quase três décadas, se apresentava como alguém de fora da política.

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Em dezembro de 2019, Lula saíra da prisão havia um mês. Após 580 dias recluso por uma condenação de viés político, o ex-presidente retomava as atividades públicas. Em um entrevista à TeleSur, ele afirmou que “as manifestações de 2013 foram feitas já fazendo parte do golpe contra o PT. […] Elas não tinham reivindicações específicas.”15 Não era a primeira vez que Lula trazia essa perspectiva. Em 2017, ele dissera que “nos precipitamos ao achar que 2013 foi uma coisa democrática. Que o povo foi para a rua porque estava muito preocupado com aquela coisa do transporte coletivo”.

Esse posicionamento diferia daquele feito à época dos protestos, quando o ex-presidente saudou a vitalidade das ruas e afirmou que, “de protesto em protesto a gente vai consertando o telhado”.17 A mudança de posição veio junto da derrocada do PT, alvejado pela Operação Lava Jato e pela crise econômica. Lula, claro, não foi o único na esquerda que voltou as cargas contra Junho. Choveram comentários nessa linha, que questionavam as razões das manifestações e traçavam uma linha direta entre o resultado delas e o golpe parlamentar que derrubou Dilma Rousseff, em 2016.

As inconsistências dessa perspectiva são significativas. As razões das Revoltas de 2013 dizem respeito ao choque entre tendências conflitantes, que foram notadas também por intelectuais dos círculos petistas.18 Elas fizeram parte de um ciclo internacional, que ocorreu em diversos países. A ideia de que o sentido majoritário das manifestações teria sido apropriado pela direita encontra pouco lastro nos dados, fatos e registros, conforme veremos. E o estabelecimento de causalidade direta entre um acontecimento ocorrido em 2013 e outro em 2016, sem analisar o que se passou no meio, carece de sentido.

Só foi possível que uma abordagem desse tipo ganhasse espaço pelo caráter difuso das Revoltas de 2013, que não se organizaram em torno de um objetivo central. Ou seja, foi justamente por ser uma espécie de esfinge que Junho se tornou um bode expiatório. No conhecido mito grego, um ser alado com corpo de leão e rosto de mulher se colocava à entrada da cidade de Tebas, e detinha os passantes com a pergunta: qual é o ser que pela manhã tem quatro pés, ao meio dia tem dois, e à noite tem três? Decifra-me ou te devoro, dizia a esfinge, antes de aniquilar os que não sabiam respondê-la. No rito do povo hebreu, dois bodes eram levados a um templo. Um deles era sacrificado enquanto outro recebia simbolicamente as culpas da comunidade – e depois era abandonado no deserto.

No Brasil, Junho seguiu um fenômeno indecifrado. E muitos buscaram expiar a culpa dos descaminhos do país apontando que “tudo isso começou por vinte centavos”. O procedimento, que ganhou a adesão de nomes relevantes da esquerda brasileira, jogava parte das lutas sociais no deserto, onde deveriam carregar a culpa dos erros coletivos.

Talvez o principal problema desse raciocínio seja que as Revoltas de Junho, assim como outros ciclos similares, não são o ponto de partida de um processo, mas pontos de inflexão resultantes de acontecimentos anteriores. Não foram inventados por manifestantes voluntaristas, mas são resultado das dinâmicas social e política. Não são, tampouco, a panaceia dos problemas nacionais. Se os anseios colocados nas ruas não tiverem canalização política e institucional, eles não serão resolvidos – e o impasse pode abrir espaço para que alternativas distorcidas capturem o sentimento de mudança frustrado.

Esse tipo de narrativa que se disseminou no Brasil não teve paralelo em outros países. Nos Estados Unidos, não se acusou o Occupy Wall Street de ser responsável pela ascensão de Donald Trump. Na Espanha, não se acusou o 15M de chocar o ovo da serpente que levou ao crescimento da extrema direita. No Chile, os estallidos sociais de 2011 e 2019 não foram colocados como gênese do fortalecimento da extrema-direita – ao contrário, a eleição de Gabriel Boric para a presidência, em 2022, um líder da revolta de 2011, mostrou justamente que o fenômeno fez surgir uma nova esquerda no país.

O contexto que levou à ruptura da esquerda brasileira em torno de Junho de 2013 é complexo, e será analisado ao longo do livro. Não há bandidos ou mocinhos na história – o que há são escolhas, baseadas em apostas mais ou menos acertadas, cuja conjunção levou aos resultados que conhecemos.

Custos do conflito

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Vivemos momentos de grandes conflitos na sociedade internacional, na história as nações entram em confrontos constantemente, gerando prejuízos incalculáveis, com mortes de milhões de pessoas, destruições da infraestrutura dos países, gerando desesperanças crescentes, degradações emocionais e devastações espirituais. Neste histórico de fortes destruições, como estamos visualizando na contemporaneidade, quais os motivos que levam as nações a conflitos militares, sangrentos e demorados, sabendo que as guerras geram devastações incalculáveis?

Desde fevereiro do ano passado, a sociedade mundial está envolta em mais um conflito militar, com fortes devastações, mortes e desesperanças, levando a humanidade a se perguntarem se somos seres racionais como acreditam os teóricos da teoria econômica dominante? Neste cenário, a racionalidade dos seres humanos defendida pela teoria econômica me parece incapaz de compreender as realidades da humanidade, seus valores e seus comportamentos.

A guerra em curso entre russos e ucranianos está gerando graves constrangimentos para a sociedade internacional, matando milhares de pessoas, destruindo suas casas, devastando suas cidades, degradando as infraestruturas econômicas e produtivas que levaram décadas para ser levantadas, jogando milhões de pessoas para a indignidade, para a pobreza e para a desesperança. A guerra está gerando problemas para todas as nações do globo, enganam aqueles que acreditam que o problema deste conflito é regional e que estamos distantes deste conflito, essa escalada militar está impactando para toda a comunidade internacional, afetando os sonhos dos indivíduos da comunidade mundial e seus impactos são duradouros e devastadores, afetando confiança, credibilidade e valores humanos.

A guerra entre Rússia e Ucrânia está gerando graves constrangimentos para a economia internacional, isso acontece porque vivemos numa sociedade altamente integrada e interdependente, o desenvolvimento tecnológico aumentou a integração entre as nações, as novas tecnologias da comunicação estão alterando os conceitos de espaço e de tempo, desta forma, o conflito em curso está impactando rapidamente para todas as regiões do mundo, todos os grupos sociais e políticos estão sentindo, de uma forma ou de outra, os impactos negativos gerados pelas atividades militares.

Ambos os atores do conflito são produtores de produtos primários, produtores de alimentos, combustíveis, fertilizantes, gás natural, dentre outros, que com a guerra inflacionou essas mercadorias, afetando fortemente as nações europeias, inicialmente e, posteriormente impactando para outras regiões, obrigando seus governos a aumentarem as taxas de juros, com fortes impactos sobre os investimentos, reduzindo a geração de emprego e degradando salários e renda dos trabalhadores, levando os setores produtivos a reduzirem suas vendas e amargando fortes prejuízos, impactando sobre corporações, trabalhadores e governos nacionais.

Neste cenário, os desajustes econômicos estão se espalhando para todas as regiões, levando muitos governos a aumentarem seus subsídios para evitar um colapso econômico, aumentando políticas protecionistas para proteger seus empregos e seus setores econômicos e produtivos, gerando conflitos entre as nações, todos buscando a defesa de seus interesses imediatos, gerando confrontos diplomáticos e reacendendo rancores que podem culminar em conflitos posteriores.

Neste ambiente de conflitos e hostilidades crescentes, poucas nações da sociedade internacional conseguem defender abertamente o encerramento do conflito militar, estimulando conversas entre os contendores, evitando maiores destruições e uma busca de um instrumento rápido e eficiente para a reconstrução econômica e a superação dos conflitos anteriores que culminaram no conflito.

Percebemos, setores econômicos estimulando e ganhando com o conflito, indiferentes das mortes, das dores e das destruições, empresas angariando somas estrondosas na venda de mísseis e radares militares, governos hegemônicos repassando equipamentos militares para aprofundar o conflito. Espero, fortemente, que não esqueçamos o poderia nuclear e destrutivo de um dos contendores.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Novo consenso de Washington, por Michael Roberts.

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Michael Roberts – A Terra é Redonda – 18/06/2023

O Novo Consenso de Washington visa sustentar a hegemonia do capital dos EUA e de seus aliados juniores

No mês de março deste ano, o conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Jake Sullivan, delineou a política econômica internacional do governo americano. Fez um discurso fundamental porque, como graduado funcionário, nele explicou em que consiste o chamado de “Novo Consenso de Washington” sobre a política externa dos EUA.

O Consenso de Washington original constituía-se de um conjunto de dez prescrições de política econômica consideradas como um pacote de reformas “padrão” destinado aos países em desenvolvimento em crise de crescimento. Ele seria fomentado por instituições sediadas em Washington, D.C., como o FMI, o Banco Mundial e o Tesouro dos EUA. O termo foi usado pela primeira vez, em 1989, pelo economista inglês John Williamson.

As prescrições abrangeram políticas de promoção do livre mercado, como a “liberalização” comercial e financeira e a privatização de ativos estatais. Recomendavam também políticas monetárias e de gasto público destinadas a minimizar os déficits orçamentários e a despesa pública. Era o modelo de política neoclássico aplicado ao mundo e imposto aos países pobres pelo imperialismo norte-americano e suas instituições aliadas. A chave era o “livre comércio” sem tarifas e outras barreiras, o livre fluxo de capitais e a regulação mínima – um modelo que beneficiava especificamente a posição hegemônica dos EUA.

Mas as coisas mudaram desde a década de 1990 – em particular, com a ascensão da China como uma potência econômica rival globalmente, mas também diante do fracasso do modelo econômico internacional neoliberal em gerar crescimento econômico e reduzir a desigualdade entre as nações e dentro das nações.

Particularmente desde o fim da Grande Recessão, em 2009, e no correr da Longa Depressão dos anos 2010 em diante, os EUA e as outras economias capitalistas avançadas – normalmente consideradas como líderes – passaram a rastejar. A “globalização”, baseada no rápido aumento do comércio e dos fluxos de capitais, estagnou e se inverteu. O aquecimento global aumentou o risco de catástrofe ambiental e econômica. A ameaça à hegemonia do dólar se expandiu um bocado. Era, pois, necessário um novo “consenso”.

A ascensão da China com um governo e um sistema econômico que não se curva aos desejos dos EUA é um sinal vermelho para os estrategistas norte-americanas. Os números do Banco Mundial abaixo falam por si mesmos. A participação dos EUA no PIB global subiu de 25% para 30% entre 1980 e 2000, mas nas duas primeiras décadas do século XXI caiu para menos de 25%. Nessas duas décadas, a participação da China subiu de menos de 4% para mais de 17% – ou seja, quadruplicou. A participação de outros países do G7 – Japão, Itália, Reino Unido, Alemanha, França, Canadá – caiu acentuadamente, enquanto os países em desenvolvimento (excluindo a China) estagnaram como proporção do PIB global. E essas participações têm mudado conforme se alteram os preços das commodities e eclodem as crises da dívida.

O Novo Consenso de Washington visa sustentar a hegemonia do capital dos EUA e de seus aliados juniores mediante uma nova abordagem. Eis o que Sullivan assentou: “Diante do agravamento das crises – estagnação econômica, polarização política e emergência climática – uma nova agenda de reconstrução é necessária.” Nesse quadro, os EUA devem manter sua hegemonia, completou, mas é preciso ver que “hegemonia (…) não consiste na capacidade de prevalecer – isso é de dominar os outros – mas na disposição dos outros de nos seguir (sob constrangimento, é claro) e na nossa capacidade de definir a agenda global”. Em outras palavras, os EUA definirão um novo programa e seus parceiros juniores deverão segui-lo – trata-se, pois, de uma aliança dos dispostos a serem liderados. Quem não segue as novas orientações, entretanto, pode enfrentar consequências.

Mas o que é esse novo consenso? O livre comércio e os fluxos de capitais e nenhuma intervenção governamental devem ser substituídos por uma “estratégia industrial” em que os governos intervêm para subsidiar e tributar as empresas capitalistas para que os objetivos nacionais sejam alcançados. Haverá mais controles comerciais e de capital, mais investimento público e mais tributação dos ricos.

Circundando essas metas, de 2020 para frente, cada nação deve se manter por si mesma – isto é, sem pactos globais, mas mediante acordos regionais e bilaterais; não se prescreve mais a livre circulação do capital, mas esse último e o trabalho deverão ser controlados nacionalmente. E em torno disso, novas alianças militares serão necessárias para impor esse novo consenso.

Esse tipo de mudança não é nova na história do capitalismo. Sempre que um país se torna dominante economicamente em escala internacional, ele quer livre comércio e mercados livres para seus bens e serviços, mas quando começa a perder a sua posição relativa, quer passar do livre-comércio para formas de gestão mais protecionistas e nacionalistas.

Em meados do século XIX, o Reino Unido era a potência econômica dominante e defendia o livre comércio e a exportação internacional de seu capital, enquanto as potências econômicas emergentes da Europa e da América (após a guerra civil) contavam com medidas protecionistas e “estratégia industrial” para construir sua base industrial.

No final do século XIX, entretanto, o Reino Unido perdeu o seu domínio e, por isso, passou a defender uma política protecionista. Então, em 1945, depois que os EUA “venceram” a Segunda Guerra Mundial, o consenso Bretton Woods-Washington entrou em cena e a política econômica voltou-se para a “globalização” sob a hegemonia dos EUA. Agora é a vez dos norte-americanos passarem do livre mercado para estratégias protecionistas orientadas pelo governo – mas com uma diferença. Os EUA esperam que seus aliados também sigam o seu caminho e que seus inimigos sejam esmagados como resultado.

Dentro do Novo Consenso de Washington encontra-se uma tentativa de introduzir, ainda sob a égide da economia convencional, o que está sendo chamado de “moderna economia do lado da oferta”. A antiga “economia do lado da oferta” era uma abordagem neoclássica que se opunha à economia keynesiana; ela argumentava que tudo o que era necessário para promover o crescimento eram medidas macroeconômicas, fiscais e monetárias para garantir uma “demanda agregada” suficiente no sistema econômico; se isso ocorria, tudo ficaria bem.

Os economistas mais liberais não gostaram da implicação de que os governos deveriam intervir na economia, argumentando que a macrogestão não funcionaria, mas apenas “distorceria” as forças e os preços de mercado. Nisso eles estavam certos, como mostrou a experiência dos anos 1970 em diante.

A alternativa para promover a economia do lado da oferta era se concentrar no aumento da produtividade e na ampliação do comércio, ou seja, na oferta – e não na procura. No entanto, os mais liberais também se opuseram totalmente à intervenção do governo no abastecimento. O mercado, as empresas e os bancos – argumentavam – poderiam fazer o trabalho de sustentar o crescimento econômico e a renda real, se deixados sozinhos. Isso também se provou falso.

Então, agora, dentro do Novo Consenso de Washington, tem-se pretensamente uma “economia moderna do lado da oferta”. Isso foi delineado pela atual secretária do Tesouro dos EUA e ex-presidente do Federal Reserve, Janet Yellen, em um discurso no Stanford Institute for Economic Policy Research. Janet Yellen é a última neokeynesiana que ainda defende tanto políticas de demanda
agregada como medidas do lado da oferta.

Janet Yellen explicou: “o termo ‘moderna economia do lado da oferta’ descreve a estratégia de crescimento econômico do governo Biden; para que entendam, vou contrastá-la com as abordagens keynesianas e tradicionais do lado da oferta”. Dito isso, continuou: “estamos realmente comparando a nossa ‘nova abordagem’ com a ‘tradicional’ economia do lado da oferta”; esta última – notem – buscava expandir o produto potencial da economia por meio de uma desregulamentação agressiva combinada com cortes de impostos destinados a promover o investimento de capital privado”.

Então, o que tem de diferente essa nova política do governo Biden? “A moderna economia do lado da oferta, em contraste com a anterior, prioriza a oferta de trabalho, capital humano, infraestrutura pública, pesquisa e desenvolvimento e investimentos em um ambiente sustentável. A preocupação com essas áreas destina-se a aumentar o crescimento econômico e a resolver problemas estruturais de longo prazo, em particular a desigualdade”.

Janet Yellen descarta assim a velha abordagem: “a nossa nova abordagem é muito mais promissora do que a velha economia do lado da oferta, que vejo como tendo sido uma estratégia fracassada para aumentar o crescimento. Cortes significativos de impostos sobre o capital não alcançaram os ganhos prometidos. E a desregulamentação tem um histórico muito ruim em geral; mas foi muitíssimo ruim no que diz respeito às políticas ambientais – especialmente no que diz respeito à redução das emissões de CO2.” Realmente!

Janet Yellen observa, então, aquilo que foi discutido neste blog [The next recession blog] muitas vezes. “Na última década, o crescimento da produtividade do trabalho nos EUA foi, em média, de apenas 1,1% – cerca de metade do que nos cinquenta anos anteriores. Isso contribuiu para um crescimento lento dos salários e das remunerações, com ganhos históricos especialmente lentos para os trabalhadores na base da distribuição salarial.”

Janet Yellen quer direcionar a preocupação de seu público de economistas do “mainstream” para a natureza específica da moderna economia do lado da oferta. “O potencial de crescimento de longo prazo de um país depende do tamanho de sua força de trabalho, da produtividade de seus trabalhadores, da capacidade de renovação de seus recursos e da estabilidade de seus sistemas políticos”.

Assim, “a moderna economia do lado da oferta busca estimular o crescimento econômico, aumentando a oferta de trabalho e aumentando a produtividade, ao mesmo tempo em que reduz a desigualdade e os danos ambientais. Essencialmente, estamos focados em alcançar um alto crescimento que seja sustentável, que seja inclusivo e verde.” Assim, a “moderna economia do lado da oferta” visa, segundo ela, resolver as falhas do capitalismo no final do século XX e início do XXI.

Porém – pergunta-se – como isso deve ser feito? Basicamente, por meio de subsídios governamentais destinados à indústria. Mas não se entenda por isso que o Estado vai controlar os setores-chave do lado da oferta. Mas sim que ele vai tributar as empresas tanto a nível nacional como por meio de acordos internacionais visando acabar com a evasão fiscal em paraísos fiscais e outros truques de elisão fiscal praticados pelas empresas.

Como disse e em resumo: “a estratégia econômica do governo Biden abraça, em vez de rejeitar, a colaboração com o setor privado por meio de uma combinação de melhores incentivos baseados no mercado e gastos diretos baseados em estratégias empiricamente comprovadas. Por exemplo, um pacote de incentivos e descontos para energia limpa, veículos elétricos e descarbonização incentivará as empresas a fazer esses investimentos críticos para o nosso desenvolvimento.”

Em minha opinião, os “incentivos” e as “regulamentações fiscais” não produzirão mais sucesso do lado da oferta do que a versão neoclássica dessa mesma política porque a estrutura existente de produção e investimento capitalista permanecerá amplamente intocada. A moderna economia do lado da oferta olha para o investimento privado para resolver problemas econômicos, supondo apenas que o governo vai “orientar” esse investimento na direção certa. Mas a estrutura existente depende da rentabilidade do capital. De fato, tributar as empresas e a regulamentação governamental é mais provável que diminua a lucratividade mais do que quaisquer incentivos e subsídios governamentais irão aumentá-la.

A moderna economia do lado da oferta e o Novo Consenso de Washington combinam a política econômica doméstica e internacional para as principais economias capitalistas em uma aliança daqueles que estão dispostos a colaborar. Mas esse novo modelo econômico não oferece nada aos países que enfrentam níveis crescentes de dívida e custos de serviço que estão levando muitos deles ao calote e à depressão.

O Banco Mundial informou esta semana que o crescimento econômico no Sul Global (fora a China) cairá de 4,1% em 2022 para 2,9% em 2023. Atingidos pela alta inflação, pelo aumento das taxas de juros e por níveis recordes de dívida, muitos países estavam ficando mais pobres. Quatorze países de baixa renda já estão em alto risco de endividamento, contra apenas seis em 2015. “Até o final de 2024, o crescimento da renda per capita em cerca de um terço das economias ditas em desenvolvimento será menor do que era às vésperas da pandemia. Nos países de baixa renda – especialmente os mais pobres – os danos são ainda maiores: em cerca de um terço desses países, a renda per capita em 2024 permanecerá abaixo dos níveis de 2019 em uma média de 6%.”

E não há mudança nas condições de empréstimo do FMI, da OCDE ou do Banco Mundial: espera-se que os países endividados imponham medidas fiscais austeras nos gastos do governo e privatizem as empresas estatais restantes. O cancelamento da dívida não está na agenda do Novo Consenso de Washington… [assim como não está uma renovação da social-democracia].

Além disso, veja-se o que disse Adam Tooze recentemente: “Janet Yellen procurou demarcar as fronteiras para que a competição e a cooperação sejam saudáveis, mas não deixou dúvidas de que a segurança nacional, hoje como sempre, supera qualquer outra consideração por parte de Washington”. A moderna economia do lado da oferta e o Novo Consenso de Washington são modelos, não para que haja melhores condições econômicas e ambientais para o mundo como um todo, mas para oferecer uma nova estratégia global que seja capaz de sustentar o capitalismo nos EUA, ou seja, em casa, e para sustentar o imperialismo desse país, no exterior.
*Michael Roberts é economista. Autor, entre outros livros, de The great recession: a marxist view.

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

Introdução a financeirização, por Luiz Carlos Bresser Pereira

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Luiz Carlos Bresser Pereira

A Terra é Redonda – 18/06/2023

Prefácio do livro recém-lançado de Ilan Lapyda

Este livro se propõe a ser uma introdução ao conceito de financeirização e realiza plenamente seu objetivo. O jovem autor, Ilan Lapyda, terminou recentemente seu doutoramento da USP com uma tese sobre a financeirização no Brasil, e para escrevê-la precisou dominar a ampla literatura sobre o tema que se formou desde as contribuições ao mesmo tempo pioneiras e definitivas de François Chesnais. Este livro é dedicado a este grande marxista francês, há pouco falecido. A dedicatória me estimulou a escrever este prefácio porque François Chesnais era um ótimo amigo com quem eu sempre me encontrava em Paris.

O livro passa por todos os principais autores que discutiram a financeirização e o neoliberalismo – dois aspectos centrais do capitalismo contemporâneo. Eu entendo a financeirização como a captura, pelo setor financeiro, de uma parcela do excedente econômico mundial ocorrida desde 1980 até 2008. Ilan Lapyda, porém, vê a financeirização como um fenômeno que se confunde com o capitalismo neoliberal. Para ele a financeirização consiste na “predominância da lógica financeira nas atividades econômicas (e na sociedade e na política), que leva à intensificação e à diversificação da exploração do trabalho para atender à apropriação rentista da riqueza produzida”.

É uma boa definição, na qual nós vemos um conceito importante – “a apropriação rentista”. De fato, nós podemos pensar o capitalismo neoliberal dessa maneira, porque enquanto o capitalismo social-democrático e desenvolvimentista do após-guerra era dirigido por uma ampla coalizão fordista, a coalizão neoliberal que esteve por trás do processo de financeirização é estreita, formada apenas por uma elite financeiro-rentista. E promoveu um enorme aumento da desigualdade no mundo capitalista. François Chesnais foi novamente pioneiro nesse ponto.

Como observa Ilan Lapyda, o rentista, voltado à extração de rendas, é mais do que um simples credor; este participa de um “financiamento efetivo” e possui uma relação direta com o empreendimento financiado (inclusive tendo de aguardar o retorno do seu capital com os juros). “O interesse da propriedade patrimonial (rentista) não está voltado para o consumo das famílias, nem para o incremento permanente dos mercados secundários, mas para a garantia de um rendimento regular e liquidez permanente dos mercados secundários”.

Ilan Lapyda trabalha com dois autores principais. Toda a primeira parte do livro tem como referência a contribuição notável de François Chesnais e seu conceito de “mundialização financeira”. O projeto imperialista americano de globalização ou mundialização esteve a serviço não do povo americano, mas de uma elite financeiro-rentista. O objetivo não foi o de apenas abrir o mercado de mercadorias do resto do mundo para a troca desigual de bens e serviços sofisticados com alto valor adicionado per capita por bens e serviços simples que agam baixos salários; foi também abrir o mercado de capitais e incluir todo o mundo no processo de financeirização.

O imperialismo não está apenas interessado em exportar mercadorias, interessa-se também por exportar capitais e, para isso, a partir da “virada neoliberal” de 1980, promoveu a abertura financeira. Com isso os países que se submeteram – principalmente os da América Latina – perderam capacidade de controlar sua taxa de câmbio e perderam, assim, um instrumento fundamental para o seu desenvolvimento.

Depois de sintetizar o pensamento de François Chesnais, Ilan Lapyda volta-se para outro notável marxista, este inglês, David Harvey, que foi pioneiro na análise e crítica do neoliberalismo.

Ainda nos anos 1980 ele percebeu que estava havendo uma transição do fordismo para um sistema de ‘acumulação flexível’, que foi assim um primeiro nome para o neoliberalismo. David Harvey e François Chesnais pensam de maneira semelhante. “Assim como François Chesnais, David Harvey também observa a diminuição da separação das atividades do capital monetário (que tem como objetivo juros e dividendos) e do capital industrial (voltado para a obtenção de lucros)”.

Aproveito esta afirmação para fazer minha própria crítica a este excelente livro. Ao lê-lo podemos ficar com a impressão de que financeirização, neoliberalismo, e capitalismo são a mesma coisa; que entre as elites capitalistas não há conflitos maiores; que a clássica divergência entre o capital financeiro e o capital industrial deixou de existir. Não creio que seja assim. A financeirização e o neoliberalismo entraram em crise em 2008, essa crise assumiu um caráter também político em 2016 com a reação etnonacionalista e populista representada pela eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos, e entrou em colapso com a pandemia da Covid em 2020.

O resultado foi a “virada desenvolvimentista” de 2021, liderada pelo presidente Joe Biden. Desde então o Estado está de volta na economia americana, e o mesmo acontece, ainda que com menos intensidade, na Europa. O governo de Joe Biden está envolvido em um grande projeto de reindustrialização e, para isto, está usando amplamente da política industrial e do aumento do investimento público. Está em curso nos Estados Unidos uma estratégia nacional de desenvolvimento – algo que não existia nos Estados Unidos desde o governo do presidente Franklin D. Roosevelt. Joe Biden está atendendo, dessa maneira, às demandas populares, mas é difícil considerar que o capitalismo produtivo não esteja também envolvido nessa virada maior do capitalismo.

No Brasil, as elites brasileiras revelam novamente seu atraso e continuam presas ao neoliberalismo, mas aconteceu algo maravilhoso – a derrota do populismo fascista e neoliberal de Jair Bolsonaro e a eleição do presidente Lula. Surge, assim, uma nova esperança para o Brasil. A financeirização e o neoliberalismo estão reagindo duramente ao novo que aqui está surgindo, mas o êxito dos países do Leste da Ásia deixou claro para o Norte Global que o desenvolvimentismo faz mais sentido, e o novo governo brasileiro sabe muito bem disto. Ilan Lapyda não discute esta questão. Escreveu, porém, um livro que eu recomendo vivamente a quem se interessa em compreender o capitalismo contemporâneo.

*Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor Emérito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP). Autor, entre outros livros, de Em busca do desenvolvimento perdido: um projeto novo-desenvolvimentista para o Brasil (Ed. FGV).

Referência
Ilan Lapyda. Introdução à financeirização: David Harvey, François Chesnais e o capitalismo contemporâneo. São Paulo, CEFA Editorial, 2023, 160 págs.

Stiglitz: retrato do neoliberalismo em fase senil

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Globalização recua, pois o Ocidente não é capaz de conviver com o avanço da China. Quebra de regras torna o comércio internacional caótico. Ao sul Global, impõem-se juros altos — e se negam vacinas. Um sistema como este merece sobreviver?

Joseph Stiglitz em entrevista Ciro Krauthausen, no El Periódico – Outras Mídias, 15/06/2023

As políticas protecionistas estão ganhando terreno em todo o mundo. Você diria que a ordem mundial neoliberal entrou em sua fase final?

Sim, merecidamente. Deu lugar a um crescimento menor ao de antes do neoliberalismo e todo esse crescimento foi para as mãos dos de cima. Criou mais desigualdade e mais instabilidade. O lamentável é que os princípios do level playing field, da igualdade de condições que eram fundamentais para a Organização Mundial do Comércio (OMC) e o mundo, não foram substituídos por nada. Até certo ponto, não existem mais regras. E isso é obviamente muito inquietante.

Estamos também diante do fim da expansão do comércio global?

O comércio global iria se contrair de qualquer forma devido à estrutura das economias. Caminhamos para serviços que são menos comercializáveis do que os bens. As energias renováveis em vez do petróleo, por exemplo.

Fala-se de uma economia mundial fragmentada.

Menos integrada é uma descrição melhor. Também será fragmentada, mas isso tem a ver com a nova guerra fria.

Concorda com quem pensa que a Europa deveria se desvincular da China, como os Estados Unidos já estão tentando fazer?

Prefiro o termo utilizado pelos europeus: de-risking. Ou seja, reduzir os riscos e se tornar menos dependente. Pode ser que seja necessário levantar uma pergunta: onde estaríamos se o que é uma guerra fria suave se transformasse em uma guerra fria mais intensa?

A inter-relação com a China é muito forte. É possível rompê-la?

Sim, é forte, mas na maioria das coisas que são produzidas lá, a China não tem o monopólio da capacidade de produzi-las. O Ocidente poderia produzi-las. Pode ser que tenhamos que pagar mais por isso, mas não seria o fim do mundo se, por exemplo, os iPhones custassem um pouco mais.

Custariam muito mais.

Não muito mais porque as margens de lucro são enormes. Grande parte do valor extra vai para os acionistas da Apple (risos). O preço aumentaria um pouco. Os acionistas da Apple obteriam um pouco menos. Então, haveria ajustes. E é até concebível que, em termos gerais, o ritmo de aumento do nível de vida possa diminuir.

Essa é a perspectiva dos países desenvolvidos. Como os países em desenvolvimento veem isso?

Existem dois ou três aspectos. Em primeiro lugar, há uma longa história de colonialismo, que moldou seus pontos de vista. Depois, existe a era do neocolonialismo, em que se tornaram politicamente independentes. E depois as consequências de tudo isso na pandemia, quando os acordos da OMC para a proteção de patentes supuseram que pessoas entre eles morressem e que nossas empresas farmacêuticas se enriquecessem.

Nada poderia ter demonstrado melhor o neocolonialismo. Claramente, ficaram enfurecidos que estivéssemos colocando os lucros de gigantescas corporações à frente de suas vidas. Então, começou a guerra e, de repente, tiveram que enfrentar o aumento dos preços do petróleo e dos alimentos, e nós não os ajudamos em absoluto.

Além disso, durante a pandemia, fornecemos enormes recursos à nossa economia, enquanto eles não tinham meios financeiros suficientes. Tiveram que se endividar. E, depois, respondemos à inflação aumentando as taxas de juros, o que cria uma crise de dívida em muitos países. Não é de estranhar, portanto, que digam: essa guerra não é nossa, é de vocês. Na minha opinião, a guerra tem a ver com o direito internacional, mas é isso que eles dizem.

Qual pode ser o tamanho da crise da dívida em consequência dos aumentos de juros?

Provavelmente, não será uma crise sistêmica da dívida, mas para países como Zâmbia, Gana e Sri Lanka é um problema importante. Um número significativo de países estão em risco.

O que fazer? Parar de aumentar as taxas?

Sim, mas é preciso mais do que isso. Já lançamos uma iniciativa de suspensão da dívida, mas não é fácil. O setor privado se recusou e a China se mostrou muito lenta na hora de cooperar. Antes, nas crises de dívida, havia um número limitado de credores. Agora, você se encontra com um montão de interesses muito diferentes. O que está sendo debatido no estado de Nova York é um passo importante na boa direção: uma lei que faria o setor privado assumir uma redução da dívida proporcional à que o governo assume.

Qual é o risco de uma crise bancária em consequência dos aumentos de taxas?

Devido à falta de transparência, não sabemos realmente. Há quem analisou e disse que há uma série de bancos que correm quase o mesmo risco que os bancos regionais que quebraram nos Estados Unidos.

E também sabemos que, hoje, as pessoas podem sacar dinheiro de seu banco com muita facilidade. A tecnologia aumentou todos os riscos bancários. O que não sabemos é o risco do portfólio. Houve melhorias nas bases de capital, sim. Contudo, também sabemos que as provas de estresse do Federal Reserve são ineficazes. Isso deveria nos incomodar.

E qual é a dimensão do risco de uma crise imobiliária?

A preocupação se concentra no mercado imobiliário comercial. Se não houvesse dívida, não seria um problema. Sempre existem aqueles que perdem dinheiro e aqueles que lucram. As pessoas no setor imobiliário comercial apostaram mal. Em sua maioria, são pessoas ricas, então, poderiam assumir as perdas, mas quando isso é transferido para o sistema bancário pode se tornar um problema maior.

Tudo isso como consequência de um acontecimento sem precedentes e uma mudança imprevisível na estrutura. Quem poderia prever que as pessoas deixariam de ir para os escritórios, preferindo trabalhar em casa?

Em termos de inovação e tecnologia, os países europeus, e em especial a Alemanha, estão com muito receio de ficar para trás da China e dos Estados Unidos. Você enxerga motivos para isso?

Eu vejo muito mais fortalezas. Antes de 2008, ouvia a mesma coisa: que a Europa estava ficando para trás dos Estados Unidos. E depois se viu que a economia estadunidense se baseava em um castelo de cartas. Hoje, se você perguntar qual é o motor subjacente de nosso setor tecnológico: é a publicidade. Não tem como ser uma boa economia, se tudo gira em torno de vender e não de produzir e aumentar a qualidade de vida das pessoas.

Como estadunidense, quando você vai para a Europa observa a diferença na qualidade de vida. Olho para os dados e vejo que a expectativa de vida dos estadunidenses é menor. As disparidades são enormes. Se permitissem que você caísse aleatoriamente em um país sem saber se estaria entre os 5% da população com renda superior, iria preferir cair na Dinamarca ou nos Estados Unidos?
Na Dinamarca.

Sim, e se você soubesse que seria Bill Gates, iria preferir cair nos Estados Unidos (risos). É preciso pensar nesta perspectiva. Penso que a Europa é inovadora em muitos aspectos. Eu gostaria que houvesse mais financiamento público para a pesquisa básica, mas a capacidade da Alemanha, por exemplo, de traduzir a pesquisa em produção é realmente impressionante. Obviamente, precisam se diversificar, há muita dependência da China. Mas quando olho para a Europa, de onde vem grande parte da inovação eólica? Da Espanha e Portugal. É um erro desmerecer esse potencial inovador.

As chamadas autocracias estão ganhando espaço. Elas colocam em risco a democracia como o melhor modelo de organização da sociedade e da economia?

Não, os governos autoritários não têm se saído bem economicamente. A China desacelerou.
De um nível muito alto.

Sim, tem tido sucesso em recuperar terreno. Contudo, se olharmos para a qualidade de vida, e parte da qualidade de vida é ter controle sobre as decisões importantes que afetam sua vida, os governos autoritários são terríveis.

Mesmo assim, votam neles.

Sim, mas isso é outra questão. Por muito tempo, investimos pouco em educação e permitimos que 40 anos de neoliberalismo gerassem ressentimentos. Isso é difícil de reverter. Temos que agir. Os regimes autoritários são populistas no pior sentido da palavra. Prometem muito e cumprem pouco.

Parte disso é que não acreditam nas restrições orçamentárias. Então, antes das eleições, gastam muito dinheiro. Mas, isso não é sustentável, não estão criando um ambiente inovador. A maioria deles é antieducação. Assim como Trump, odeiam as universidades. Como você pode ter uma economia inovadora, quando odeia as universidades? Penso que estão em um beco sem saída. É o que espero.

Os economistas que desafiam os velhos dogmas, por Ladislau Dowbor

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Crise do neoliberalismo desperta, em todo o mundo, busca de novas teorias. Elas zombam do culto à cobiça e falam em igualdade, volta do Estado, missões sociais e repeito á natureza. Quem as defende? Por que a mídia brasileira omite este debate?

Ladislau Dowbor

Outras Palavras – 15/06/2023
Temos nos apegado aos experimentos mais curiosos e muitas vezes ridículos em análise econômica, alguns até consagrados com o Prêmio Nobel do Banco da Suécia (não um prêmio Nobel oficial) como é o caso de Milton Friedmann, com pessoas ofegantes com a profundidade de sua simplicidade: “O negócio do negócio é o negócio”. Como se isso significasse algo além de comportamento corporativo gratuito. Os modelos matemáticos deram uma aparência de ciência séria ao que se tornou, nas palavras de Michael Hudson,“economia lixo”. Parece que a economia está atualmente recolocando os pés no chão. E, olhando para trás, é impressionante o quanto estivemos (e ainda estamos) atrelados a simplificações absurdas. Basicamente, se cada um de nós se concentrar em se apropriar do máximo que puder, o resultado será mais prosperidade para geral. Quão racional é o slogan A ganância é boa?

A humanidade está pronta para acreditar em quase tudo, e transformar suas crenças em dogmas, se sentir que tem companheiros ao seu lado. A bestialidade coletiva surge com tanta força e muitas vezes encontra cientistas de prontidão para apoiá-la com argumentos. Esses argumentos são racionais, mas construídos sobre pressupostos absurdos, como a invenção do homo economicus, o indivíduo racional que maximiza o lucro. Dar asas às tensões internas e poder cobri-las com argumentos gera uma impressionante sensação de libertação. Jonathan Haidt chamou isso de “mente correta”, que justifica qualquer coisa. Se hoje reagimos aos absurdos da Ku-Klux-Klan, ou ao lema nazista Deutschland Über Alles (com Gott Mit Uns, é claro), tantos compraram a “teoria do dominó” que justificou a invasão do Vietnã, ou a narrativa das “armas de destruição em massa” para justificar a invasão do Iraque, ou as ditaduras militares na América Latina supostamente para nos salvar do comunismo. É difícil abrir a mente de alguém, se seu conforto emocional depende de mantê-la fechada. E os interesses econômicos podem ser facilmente envolvidos em argumentos científicos, se possível complexos o suficiente para evitar que as pessoas olhem mais de perto. Na verdade, a teoria econômica tornou-se principalmente uma justificativa de interesses privados, disfarçada de ciência. J.K. Galbraith chamou isso de “economia da fraude inocente”.

“Devido às pressões e modas pecuniárias e políticas da época, a economia e os sistemas econômicos e políticos mais amplos cultivam sua própria versão da verdade. Isso não tem relação necessária com a realidade” (Galbraith, p.x). Este “[não ter] relação necessária com a realidade” faz parte da leve abordagem irônica de Galbraith. Às vezes ele é mais direto: “Os executivos da espetacularmente falida Enron foram um exemplo proeminente, assim como os da respeitável General Electric. Recompensas generosas para a administração se estendem por toda a empresa corporativa moderna. O autoenriquecimento legal de milhões de dólares é uma característica comum do governo corporativo moderno. Não surpreende: os gerentes estabelecem sua própria remuneração” (p. 27).

Bem, é o mercado! “A crença em uma economia de mercado na qual o consumidor é soberano é uma de nossas formas mais difundidas de fraude. Que ninguém tente vender sem o controle da gestão do consumidor” (p. 14). Nosso progresso econômico deve ser resumido no valor do PIB: “Mas do tamanho, composição e eminência do PIB se origina também uma de nossas socialmente mais difundidas formas de fraude… A fraude mais básica consiste em medir o progresso social quase exclusivamente pelo volume de produção influenciada pelo produtor, o aumento do PIB… Não a educação ou a literatura ou as artes, mas a produção de automóveis, incluindo SUVs: Aqui está a medida moderna de realização econômica e, portanto, social” (p. 15).

Em uma abordagem crítica similar, de acordo com Kate Raworth, as economias devem “nos fazer prosperar, cresçam ou não”. Nesta simples imagem, temos o pudim – o lugar seguro onde devemos estar –, o meio – as carências – e a parte de fora do círculo – os excessos que devemos reduzir. Colocar resultados em vez de velocidade na forma como medimos o progresso é uma mudança profunda naquilo para que vemos a economia ser útil. A economista apresenta mais visualizações em seu Doughnut Economics: seven ways to think like a 21st century economist [Economia do Pudim: sete maneiras de pensar como um economista do século 21]. Mas conduzir a economia para aquilo que precisamos, e não o contrário, é uma mudança profunda.

Robert Skidelsky, com What’s Wrong with Economics [O que há de errado com a economia], é outro estudioso que aponta para novas tendências. Ele sugere um “repensar radical da metodologia”, em que “os tópicos centrais seriam o papel do Estado, a distribuição de poder e o efeito de ambos na distribuição de riqueza e renda… Além disso, meu livro deixaria claro que o único propósito defensável da economia é tirar a humanidade da pobreza” (p. 193). E se a economia for útil hoje, “ela precisará modificar sua crença no mercado autorregulado”. As fortunas financeiras estão crescendo, mas “os historiadores do futuro, olhando para trás, podem muito bem identificar a globalização liderada pelas finanças como a causa raiz das tribulações do século XXI”. Não se trata apenas de crescimento, mas o que produzimos, para quem, com quais impactos ambientais. E recoloca a economia no seu lugar, apenas como parte das ciências sociais, numa abordagem sistêmica: “É pelo fato de que a economia não é uma ciência que ela precisa de outros campos de estudo – quais sejam, psicologia, sociologia, política, ética, história – para suprir as lacunas em seu método de compreensão da realidade… A tarefa é nada menos do que recuperar a economia para as humanidades” (p. 78).

Thomas Piketty teve um papel importante nessa redefinição do pensamento econômico. Analisando O Capital no Século 21, ele mostrou uma mudança fundamental nas economias atuais: a produção de bens e serviços cresce em torno de 2,5% ao ano, enquanto as aplicações financeiras rendem entre 7% e 9%, o que significa simplesmente que o sistema financeiro está drenando as atividades produtivas.

A financeirização tornou-se não apenas evidente, mas os economistas de todo o mundo voltaram sua atenção para um conjunto de transformações dela decorrente. Em seus estudos mais recentes, Piketty mostrou como isso mudou a relação entre poder econômico (e particularmente financeiro) e poder político. Com contribuições do WID (World Inequality Database) e de economistas como Gabriel Zucman, hoje podemos ter uma compreensão muito mais clara não apenas do aumento dramático da desigualdade, mas de como o dinheiro virtual (97% da liquidez hoje em dia são apenas sinais magnéticos, não dinheiro impresso pelo governo) permite uma gigantesca drenagem de riqueza.

Não se trata de “mercados”, mesmo que o chamemos assim. Trata-se de um poder radicalmente concentrado. Larry Fink, chefe da BlackRock, uma corporação de gestão de ativos, administra US$ 10 trilhões; o orçamento federal dos Estados Unidos da América é de US$ 6 trilhões. O rabo está abanando o cachorro. Compreender o dreno financeiro improdutivo da economia está levando a um amplo conjunto de estudos sobre sistemas de distribuição, tributação, financiamento de serviços públicos como saúde, educação, políticas ambientais. Em particular, ficou evidente a lacuna de governança entre os fluxos financeiros, um processo de escala global, e a regulação financeira, fragmentada entre tantos países. A evasão fiscal é escancarada, e em lugares próximos como, por exemplo, Delaware. O que ficou evidente é que atualmente não temos regulação de mercado (os gigantes corporativos mundiais gostam do nome, “mercados”, e afetam agir como se estivessem obedecendo a “eles”) nem regulação governamental (qualquer esforço de regulação em nível nacional leva a corporação a mudar seu local de residência fiscal).

O resultado geral é que estamos diante da convergência de uma catástrofe ambiental, de desigualdades explosivas (tanto a nível nacional como internacional) e de uma gestão caótica e oportunista dos recursos financeiros, que deveriam justamente estar nos ajudando a financiar os desafios ecológicos e sociais. Precisamos de uma sociedade que não seja apenas economicamente viável, mas também socialmente justa e ambientalmente sustentável. Esse triplo resultado final está se tornando óbvio em círculos amplos e foi detalhado nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Mas podemos organizar a economia de acordo com metas? A mudança básica deve ser a concentração em como devemos migrar da maximização do lucro em escala corporativa mundial gratuita para uma economia que seja social e ambientalmente útil, ou no mínimo menos destrutiva.

Praticamente todas as corporações afirmam aderir aos ESGs [ambiente, sociedade e governança], o que significa que estão conscientes dos desafios, mas deixam isso restrito aos seus departamentos de relações públicas e comunicações. Não é falta de entendimento, mas falha no processo de tomada de decisões corporativas. Governança é a questão central.

Mariana Mazzucato tem sido particularmente bem-sucedida na divulgação dessa nova visão da economia do mundo real, tanto em seu livro The Entrepreneurial State [O Estado Empreendedor] como em Mission Economy [Economia por Missões]. Em vez da maximização imprudente dos lucros corporativos junto com a tímida regulamentação pública, deveríamos nos concentrar nas principais questões que a humanidade enfrenta, particularmente nos dramas sociais e ambientais. Esses são os desafios, e políticas públicas, iniciativas empresariais e organizações da sociedade civil devem se unir para enfrentá-los em conjunto. O exemplo que ela usa é a missão da corrida à lua, que organizou contribuições de diferentes setores, gerando sinergia em vez de competição. Mazzucato mostra, assim, não apenas o papel fundamental do setor público na provisão de bens e serviços (o Estado como empreendedor), mas também seu papel em promover a convergência de esforços em torno de prioridades nacionais e internacionais.

J is for Junk Economics [L de Economia Lixo] de Michael Hudson apresenta, em linguagem fácil, uma descrição bem-humorada do que ele chamou de “os 22 mitos econômicos mais difundidos de nosso tempo”, como o de que os ciclos econômicos são regulados pelos estabilizadores automáticos da economia, que a privatização é mais eficiente do que a propriedade e gestão públicas, que não existe renda não auferida, que a desregulamentação do setor financeiro irá liberá-lo da burocracia e permitir que ele repasse a economia de custos para seus clientes, entre outros mitos muito presentes. “O antídoto para essa economia lixo deve explicar por que as economias tendem a se tornar mais instáveis e mais polarizadas como resultado de suas próprias dinâmicas internas (“endógenas”) – acima de tudo, dinâmicas de crédito e dívida, e a desoneração da renda econômica não auferida” (p. 267). Para cada mito, Hudson apresenta “realidade”.

Uma análise particularmente bem estruturada da mudança global na análise econômica é apresentada por Brett Christophers, em Rentier Capitalism (Capitalismo rentista, 2020), bem como em Our lives in their portfolios: why asset managers own the world (Nossas vidas nos portfólios deles: por que os gestores de ativos são donos do mundo, 2023). O argumento básico consiste no fato de que ganhar dinheiro (Big Money) resulta essencialmente de escoamentos financeiros, não de produção. Gestão de crédito e ativos financeiros, apropriação de reservas naturais, propriedade intelectual, plataformas digitais, contratos de serviços, taxas de licenciamento de infraestrutura, aluguel do solo – todas essas atividades têm a comum característica de obter dinheiro com produtos e capitais existentes, não com produção. Eles não estão aumentando nossa capacidade de produção, a estão drenando.

Quer se trate de fraude absoluta na análise econômica, como colocado por Galbraith, ou a mudança na forma como medimos os resultados que expõe o absurdo que é a contabilidade centrada no PIB, quer seja a análise de Skidelsky sobre como a economia perdeu sua ligação com aquilo para o que precisamos dela, a poderosa análise de Piketty sobre o significado do próprio capital, a abordagem de Mazzucato sobre o resgate da capacidade do Estado em definir missões e organizar a convergência racional de esforços, ou ainda a demonstração de Hudson de como a economia (a chamada economia ortodoxa) perdeu contato com a realidade, ou finalmente a síntese de Christophers sobre como o capitalismo produtivo migrou para o capitalismo de extração de renda financeira – a imagem geral que construo em minha mente é a de uma mudança global em como os economistas estão abordando nossas novas realidades. E eles são novos.

Gosto da abordagem direta de Robert Reich, em The System [O sistema]: “Não pode haver responsabilidade sem leis que obriguem as corporações a sacrificar alguns ganhos dos acionistas em benefício dos trabalhadores, das comunidades e da sociedade. E entenderão que as próprias leis não têm sentido se as grandes corporações continuarem a violá-las sempre que as multas resultantes forem inferiores aos benefícios derivados de sua ilegalidade. Eles verão que o atual sistema americano não é uma meritocracia onde a capacidade e o trabalho árduo são recompensados, mas uma impostura cruel dominada pela riqueza e pelo privilégio” (p. 189).
Tantos outros autores poderiam ser mencionados aqui, desde Joseph Stiglitz em New Rules for the 21st Century [Novas regras para o século 21], até Michael Sandel de The Tyranny of Merit: What’s Become of the Common Good? [A tirania do mérito: o que é feito do bem comum?], mas a questão-chave é que os contos de fadas, movidos a altos juros, a respeito dos mercados, do gotejamento para baixo ou que a busca por ganhos individuais trará naturalmente a prosperidade social estão todos sendo deixados para trás, enquanto uma nova economia do mundo real está nos dando novas ferramentas para enfrentar nossos desafios: a catástrofe ambiental, a desigualdade explosiva e o caos financeiro.

Americanas, do eufemismo à fraude, por Thiago Amparo

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Falta aos nossos capitalistas o devido escrutínio sobre as entranhas da corrupção privada

Thiago Amparo, Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

Folha de São Paulo, 15/06/2023

“Se vocês acham que o Brasil é um negócio que vai virar EUA, vocês estão no lugar errado. O Brasil não será EUA. Porque o Brasil é o país do coitadinho, do direito sem obrigação e é o país da impunidade. Isso é cultural. Não vai mudar.” As palavras são do bilionário Beto Sicupira, em entrevista de 2014.

Corta para 2023: o trio de acionistas de referência da Americanas —Lemann, Telles e o próprio Sicupira— podem ser convocados pela CPI para explicar a maior fraude corporativa da história.

No país em que a Justiça nega habeas corpus para um homem negro torturado por mera suspeita de furtar duas caixas de bombom, é estarrecedor que tenhamos usado por meses o eufemismo de “inconsistências contábeis” para descrever a fraude, agora admitida pelas Americanas na casa dos R$ 25 bilhões. Nos anais do capitalismo brasileiro, para usar o termo da revista Piauí, o que o jornalismo quer da gente é coragem de chamar as coisas pelo que elas são: tortura, chacina e fraude, para citar três exemplos. A Folha, neste ponto, tem produzido boas matérias a respeito.

Interessante, ademais, a comparação com os EUA na fala de Sicupira: foi justamente em 2014, mesmo ano da preleção do bilionário que ilustra a miopia do capital brasileiro, que um estudo de professores de Princeton e da Northwestern concluiu, a partir da análise de 1.779 decisões políticas, que os EUA deveriam ser melhor enquadrados como uma oligarquia de interesses econômicos, não uma democracia majoritária.

Em terras brasis, somente em maio deste ano que a Receita Federal começou a divulgar as empresas com Benefícios fiscais de diversas ordens, alguns justificáveis, outros muitos não. O valor é o dobro do avaliado até o momento na fraude da varejista. Sobra discurso moralista dos nossos capitalistas, falta mesmo é escrutínio sobre as profundas entranhas da corrupção privada.

Se vocês acham que o Brasil é um negócio que vai virar EUA, vocês estão no lugar certo.

Carta Mensal – Maio 2023

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A sociedade vem vivendo momentos de grandes expectativas, embora um novo governo tenha tomado posse no primeiro dia de janeiro de 2023, percebemos que vivemos em períodos de grandes conflagrações, desequilíbrios políticos e conflitos desnecessários, que limitam a capacidade de organização e de gestão do Estado, além de dificultar a reconstrução da economia nacional, atuando diretamente nas questões urgentes e prementes para a sociedade.

Neste ambiente, percebemos inúmeros confrontos econômicos, políticos e ideológicos, onde os atritos ainda prosperam, limitando as políticas públicas e postergando um cenário mais positivo, depois de um período de forte degradações institucional, econômica e política.
O governo do presidente Lula adota como uma estratégia de governabilidade bastante arriscada, de um lado não entra em conflitos abertos com outros grupos antagônicos, evitando brigas abertas com os grupos de direita e de extrema direita, que dominaram o ambiente político no governo anterior e, ao mesmo tempo, costura avanços econômicos para ganhar musculatura e garantir apoios maciços para impor seus ideais e formas de gestão.

A estratégia passa por alavancar a economia, tão degradada neste período anterior, retomando os investimentos públicos como forma de aumentar os investimentos privados, aumentando a geração de emprego, melhorando a renda agregada, reduzindo as taxas de juros e trazendo alívio para o sistema produtivo, criando um clima mais ameno para atrair investidores externos, melhorando o cenário interno e retomando o crescimento econômico.

Neste mais de cinco meses de governo, os saldos são controversos, de um lado, percebemos que os indicadores macroeconômicos estão melhorando sensivelmente, as perspectivas de redução da inflação estão melhorando, embora os juros ainda estejam muito elevados, os níveis de desemprego estão melhorando lentamente, a moeda local está se valorizando, as Bolsas de Valores estão apresentando crescimentos robustos e os ventos externos estão muito positivos, afastando uma visão negativa do Brasil criada no governo anterior, que afastava investimentos produtivos e eram vistos como uma nação pária do sistema internacional.

O arcabouço fiscal enviado pelo governo federal para o Congresso Nacional está avançando, na Câmara dos Deputados as votações foram aprovadas e, atualmente, estão sendo discutidas no Senado Federal, gerando um clima positivo para que as questões sejam equacionadas, embora percebamos que esse novo regime fiscal exige um grande esforço do Estado para aumentar as receitas do governo Nacional para cumprir as regras definidas neste modelo, reduzindo os subsídios e aumentando a arrecadação, trazendo para o centro dos debates econômicos uma agenda tão aguardada e, ao mesmo tempo, postergada para a comunidade nacional, a Reforma Tributária.

É importante destacar ainda, nos últimos dias, um novo assunto está voltando para as discussões cotidianas, a reindustrialização da economia brasileira, um país que se desindustrializou rapidamente, perdendo espaço na indústria internacional, perdendo força na nova configuração econômica global, perdendo empregos mais qualificados e um perda de renda agregada, tudo isso, contribuiu para visualizar um empobrecimento da população nacional em detrimento de um forte crescimento do poderio econômico e financeiro de poucos grupos social, aumentando as desigualdades e fragilizando os desequilíbrios estruturais da sociedade.

O novo governo está trazendo novos ventos para os setores industriais, retomando o crescimento industrial e melhorando as condições de vida da população. No começo do século XX, os industrializantes acreditavam que a indústria traria um forte desenvolvimento econômico para o Brasil, aumentando a renda interna e transformando a estrutura nacional. Apesar da importância do setor industrial, o crescimento industrial foi central para o incremento do produto interno, aumentando as riquezas nacionais, mas ao mesmo tempo não conseguiu elevar a nação ao tão sonhado desenvolvimento econômico.

Nesta trajetória de crescimento industrial, é importante destacar que o desenvolvimento da indústria exige grandes esforços de inovação, de pesquisa científica e tecnologia, com dispêndios crescentes e constantes, afinal a indústria não é um monolito, exige alterações constantes e imediatas.

Outro assunto importante e central nas discussões no mês de maio, foi o papel da mídia comercial e corporativa, seu papel de desestabilização do governo é gigantesco, defendendo um liberalismo atrasado e ultrapassado que não existe em nenhum lugar do mundo, até mesmo os países descritos como liberais, como os Estados Unidos e Europa, abandonaram as defesas constantes de seus ideários, trazendo medidas protecionistas e intervencionistas como forma de fortalecer seu setor produtivo e se capacitar para a concorrência com os países asiáticos, principalmente a China, a Coréia de Sul e Taiwan, países que ganharam espaço e relevância na estrutura global nas últimas décadas, defendendo políticas protecionistas, maciços investimentos em educação, fortes subsídios internos e a busca crescente de novos mercados internacionais.

Neste ambiente, percebemos que o atraso da mídia corporativa e comercial está ligado aos grupos econômicos que os controlam, uma elite atrasada, subserviente e altamente dependente dos centros internacionais sediados nos Estados Unidos e na Europa, um verdadeiro colonialismo cultural, ideológico e financeiro.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Economia Solidária

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Estamos vivendo momentos de grandes apreensões, o aumento da concorrência está reformulando as estruturas econômicas e produtivas globais, exigindo movimentações crescentes, estratégias claras e visões sistêmicas para conseguir sobreviver. Nesta nova sociedade, percebemos o crescimento da tecnologia todos os dias, falamos cotidianamente na Inteligência Artificial, na robótica, na Impressão 3D, na Internet das Coisas, além da nanotecnologia, da biotecnologia, as ciências dos materiais, todas impulsionadas pela Indústria 4.0.

Neste cenário, as transformações econômicas estão fomentando novos modelos de negócios, novas formas de organização social e política, estamos percebendo o fortalecimento do conceito de Economia Solidária, que podemos definir como uma forma de produção, consumo e distribuição de riquezas na sociedade, centradas na valorização do ser humano, não apenas do capital, uma verdadeira revolução numa sociedade marcada pelo imediatismo, na concorrência crescente e no imediatismo.

Nesta sociedade, percebemos que a concorrência é sempre algo salutar e nos traz grandes avanços na comunidade, impulsionando novos modelos de negócios e estimulando a geração de riquezas e melhorias no bem-estar da sociedade, mas imprescindível destacar, que esta concorrência é totalmente desigual, de um lado percebemos atores altamente capitalizados e dotados de grande poder financeiro e forças políticas e, de outros, atores fragilizados e com grandes dificuldades de competição, num mercado desigual, centrado nos monopólios ou oligopolizados, centrados no imediatismo e no individualismo, gerando desigualdades crescentes e fortes degradações do meio ambiente.

A ascensão da economia solidária deveria ser vista como um avanço na comunidade internacional, seu modelo de negócio coloca os seres humanos no centro das visões econômicas e produtivas, vislumbrando uma sociedade mais cooperativa, mais solidária e fortemente centradas de convivência harmoniosa, remontando os melhores valores da história das civilizações.

A sociedade internacional vem passado por grandes desafios no século XXI, depois de variadas crises financeiras e alimentares, além das alterações climáticas, percebemos o incremento da pobreza e da indigência, neste cenário, percebemos um profundo questionamento do modelo produtivo convencional em curso na sociedade e das estratégias de desenvolvimento econômico, que beneficia os ricos em detrimento dos grupos mais fragilizados. Há, cada vez mais, o reconhecimento de que o modelo de negócio adotado na economia internacional não pode resolver os principais desafios do desenvolvimento contemporâneo, sendo necessário construir modelos integrados e sustentáveis em todos os níveis, incorporando nestes cenários aspectos econômicos, sociais, culturais e ambientais, além de reconhecer as interligações entre os mais variados aspectos da sociedade.

A economia social e solidária tem como objetivo central a proteção do meio ambiente e o
fortalecimento econômico e político dos grupos sociais mais desfavorecidos e de outras pessoas e organizações que se preocupam com a justiça social e ambiental, trazendo para a sociedade instrumentos efetivos para as melhoras climáticas e de desenvolvimento sustentável. Neste ambiente, percebemos que a economia solidária deve ser vista como uma alternativa para o capitalismo contemporâneo, infelizmente centrados no imediatismo, na busca crescente dos lucros monetários e centrado no individualismo.

Destacamos ainda, que a economia solidária apresenta um papel diferenciado para as pessoas comuns, mais ativos e dinâmicos nas mais variadas dimensões da vida humana: econômico, social, cultural e ambiental. Neste novo modelo de negócio, a economia solidária existe em todos os setores da economia – produção, finanças, distribuição, câmbio, consumo e governança. Dessa forma, percebemos que a economia solidária está transformando estruturalmente a teoria econômica convencional.

Economia Solidária, Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente são desafios imensos para inaugurarmos um novo momento da sociedade internacional, para isso, precisamos de valores sólidos, ousadias, lideranças e solidariedades.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia do Setor Público, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 14/06/2023.

Junho de 2013 e a falência do sistema político, por Camila Rocha.

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Manifestantes protestavam, em sua larga maioria, por um aprofundamento de direitos previstos na Constituição

Camila Rocha, Doutora em ciência política pela USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

Folha de São Paulo, 12/06/2023.

Ainda hoje, muita gente continua sem entender junho de 2013.
Na época, uma entrevista com o então ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, era anunciada com a seguinte manchete: “Ministro de Dilma diz que ainda não entendeu protestos pelo Brasil”.

Na entrevista, realizada no dia 18 de junho, quando teve lugar o sexto ato organizado pelo Movimento Passe Livre, Carvalho afirmava que os atos eram baseados em “novas formas de organização de mobilização que ainda não compreendemos”.

Acostumado a lidar com o que classificou como manifestações tradicionais, munidas de carros de som e lideranças claras, o ministro não conseguia entender como era possível que atos pudessem ocorrer de outra forma.

Apontou que todos no governo haviam sido pegos de surpresa e, ao procurar receber manifestantes que protestavam em Brasília, se deparou com a presença de apenas duas pessoas, uma estudante de 21 anos, que havia sido agredida por um policial, acompanhada pelo pai.

Para além da descentralização e da horizontalidade, a crescente ambiguidade ideológica dos manifestantes à medida que os protestos se alongaram no tempo dificultou ainda mais a tarefa de discernir o que se protestava afinal.

Os atos iniciados pelo Movimento Passe Livre no dia 6 de junho possuíam uma pauta bastante clara: tarifa zero no transporte público. No entanto, com o passar do tempo, demandas das mais diversas foram se avolumando nas ruas e nas redes digitais.

No dia 18, por exemplo, mesmo dia em que Carvalho concedeu sua entrevista, o grupo Anonymous Brasil divulgou nas redes sociais um vídeo intitulado “As cinco causas”.

O vídeo, que rapidamente alcançou 2 milhões de visualizações, demandava: “não à PEC 37”, “saída imediata de Renan Calheiros da presidência do Congresso Nacional”; “imediata investigação e punição de irregularidades nas obras da Copa, pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal”, “por uma lei que faça da corrupção crime hediondo” e “fim do foro privilegiado para políticos”.

No dia 20 de junho, quando mais de 1 milhão de pessoas saíram às ruas em 388 cidades brasileiras, uma pesquisa de opinião pública conduzida pelo Ibope procurou mapear, afinal, o que queriam os manifestantes.

A sondagem revelou que a motivação principal de 37,6% estava relacionada ao transporte público, dentre os quais 27,8% se posicionavam a favor da redução da tarifa.

Em seguida, 29,9% dos respondentes afirmaram que estavam nas ruas por conta de demandas relacionadas ao sistema político, sobretudo contra a corrupção (24,2%).

Os demais protestavam por melhorias na saúde (12%), educação (5,3%), contra a PEC 37 (5%), contra os gastos com a Copa (4,5%) e contra a violência policial (1,3%), entre outros motivos.

Assim é possível concluir que, independentemente da coloração ideológica, os manifestantes reunidos em junho de 2013 protestavam, em sua larga maioria, por um aprofundamento de direitos previstos na Constituição de 1988.

Contudo, como aponta Dilma Rousseff no livro “Junho de 2013: A Rebelião Fantasma”, se depararam com um sistema político falido, pouco democrático e que “serve de contenção à soberania popular”.

Chutando a escada da periferia novamente, por André Roncaglia.

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É hora de o ocidente rico difundir ao plano internacional a democracia que defendem em seus países

André Roncaglia, Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo, 09/06/2023

Há uma nova onda no ar: reabilitar o livre comércio como a escada para o desenvolvimento compartilhado das nações. Na semana passada, a diretora-executiva do FMI (Fundo Monetário Internacional), Kristalina Georgieva, criticou a formação de grupos regionais de comércio, baseados em proximidade geográfica (near-shoring), em valores comuns (friend-shoring) ou em políticas que internalizem setores que antes dependiam de importações (reshoring).

Georgieva foi cuidadosa em explicitar os benefícios do comércio, mas optou por ser telegráfica ao salientar seus limites. Defendeu “acordos sobre a redução de subsídios nocivos à pesca, remoção de barreiras à doação de alimentos e ao acesso à propriedade intelectual por trás das vacinas Covid”. Segundo ela, a oportunidade virá na próxima reunião ministerial da OMC em fevereiro de 2024.

O tom cuidadoso tem, pelo menos, três razões de ser. Primeira, a atual fragmentação geopolítica e comercial, bem como o bloqueio ao acesso às vacinas foram promovidos pelos maiores quotistas do FMI: EUA e Europa. O norte global também teve protagonismo nas sanções comerciais e tecnológicas contra a China, o avanço da Otan nas vizinhanças da Rússia e as tensões no estreito de Taiwan. Segunda, como relembrou o nobelista Joseph Stiglitz, é conversa para boi dormir o compromisso do governo Biden com os valores da OMC (Organização Mundial do Comércio) a saber: concorrência justa, abertura, transparência e o estado de direito. Afinal, desde os distópicos anos de Trump, os EUA ainda não permitiram a nomeação de novos juízes para a câmara de arbitragem da OMC. Segundo reportagem da Reuters, o órgão não poderá tomar medidas contra violações das regras do comércio internacional antes do final de 2024.

O terceiro motivo é que a violação dos valores liberais está vindo exatamente dos EUA, o país que escreveu as regras do comércio internacional que delimitaram a ordem neoliberal por 40 anos.

Como salienta Stiglitz, ao adotar políticas industriais, os EUA e a Europa estão reconhecendo abertamente que estas regras envelheceram. Cui bono? Os países em desenvolvimento poderiam ter ignorado as regras de propriedade intelectual de maneira igualmente explícita, salvando dezenas de milhares de vidas durante a pandemia. Não o fizeram por que sabem como a banda toca no contexto internacional. Mas se você, leitora, não sabe, vou lhe dar uma ilustração.

O artigo de Douglas Irwin, também publicado pelo FMI, revela os “dois pesos, duas medidas” que marcam a dinâmica centro-periferia no capitalismo. Diz Irwin que o futuro da globalização está em jogo. Países ricos estão se voltando para dentro para proteger setores-chave com subsídios industriais, controles comerciais focados em punir rivais geopolíticos, em preocupações ambientais e em garantir o abastecimento doméstico e a segurança nacional.

Mas ao refletir sobre como os países emergentes podem se beneficiar desta mudança, Irwin é taxativo: “subsídios industriais em larga escala parecem ser um luxo ao qual os países ricos podem se dar. Só porque os EUA, a China e a UE podem pagar subsídios não significa que outros devam copiá-los”. Só o livre comércio pode salvá-los. Será?

Esta estratégia é antiga. Em meados do século 19, Friedrich List, economista alemão, revelou o “expediente muito comum e inteligente de quem chegou ao topo da magnitude chutar a escada pela qual subiu a fim de impedir os outros de fazerem o mesmo. Não é outro o segredo da doutrina cosmopolita de Adam Smith…”.

Neste processo de redefinição das regras do comércio global, é fundamental que os países da periferia tenham mais voz. É hora de o ocidente rico difundir ao plano internacional a democracia que defendem em seus países.

2013: levante de muitos ninguéns, por Pimenta & Flores.

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Por Alexandre Marinho Pimenta & Paulo Henrique Flores

A Terra é redonda, 08/06/2023

O legado e o significado principal de 2013 continuam em disputa.

No dia 20 de junho de 2013, logo após o anúncio de revogação do aumento da tarifa de transporte de São Paulo, pelos já então parceiros Geraldo Alckmin e Fernando Haddad, uma charge de Angeli foi publicada no jornal Folha de S. Paulo. Da maneira que apenas a arte pode realizar, trata-se de uma síntese impressionante daquele momento. De um lado, três homens minúsculos, todos de terno, fazem uma pergunta: “afinal, quem vocês pensam que são?”. De outro, pessoas enormes, cujos sapatos surrados são do tamanho dos homens. Não há resposta. A grandeza diz por si só.

A charge não capta os rostos dos gigantes. Não são identificáveis. E, além de seus tamanhos desproporcionais, são muitos. Amotinados, formando uma turba. Se pudessem falar, como nos lembra Vladimir Safatle, responderiam como um manifestante a uma jornalista em 2013: “anota aí, eu sou ninguém!”.

Junho de 2013 completa dez anos. Como todo grande evento histórico, mesmo diante de inúmeros esforços de análise, Junho continua a ser, em vários aspectos, uma incógnita. Seus manifestantes, grandes esfinges. Diante das inúmeras e conflituosas interpretações que voltam a circular por conta do decênio, vê-se também que o legado e o significado principal de 2013 continuam em disputa.

A despeito de todas as minúcias históricas, não se pode negar que 2013 foi um levante popular. Uma onda de protestos surgida contra a carestia, depois em repúdio à violência policial, e alimentada pela insatisfação que se difundia junto à desaceleração econômica.

Enquanto levante popular, também não foi nenhuma jabuticaba brasileira: de certa forma, o 2013 brasileiro fecha um ciclo de lutas globais do início da década anterior. As massas em vários cantos do mundo já estavam reagindo contra os efeitos da crise de 2008 e a opressão governamental.

Esse levante de vários ninguéns, das classes dominadas em suas diversas gradações, não foi também um raio em céu azul por aqui. Em 2012 já se registrava um aumento no número de greves no país, desde as revoltas operárias nas construções de usinas hidrelétricas até a histórica greve da rede pública federal de ensino. Em 2013, as greves explodiram e, juntamente com os protestos de rua, continuaram nos anos seguintes em alto patamar.

No entanto, “Junho talvez seja a primeira grande revolta popular na história brasileira a ter sido demonizada pela esquerda —por parte dela, pelo menos” (Marcos Nobre, Folha de S. Paulo, 03.06.2023). Ora, o mais atingido com a revolta foi o governo central do país, à época do PT. E, como de 2013 para frente, o arranjo petista sofreu duros golpes e uma nova extrema-direita se apresentou no país, junto a uma profunda crise econômica e política, a defesa de 2013 enquanto um “ovo da serpente” se tornou comum nos meios desta esquerda.

Na realidade, tal tese diz mais desta dita esquerda do que de 2013. Ao acusarem a óbvia e esperada disputa e infiltração da direita ao longo do levante e seus desdobramentos, ou, ainda mais absurdo, traçarem uma linha reta entre junho de 2013 e a marcha fascista de 08 de janeiro, enquanto expressões da “anti-política”, só podem apontar, ao fim, para sua própria imagem refletida.

É, no mínimo, sintomática a acusação de que no então (e ainda) atual estado de coisas qualquer movimento anti-institucional fosse antidemocrático ou um embrião do autoritarismo. Fazer essa acusação é acusar, na verdade, sua própria posição nos acontecimentos, porque pressupõe que se afirme que o sistema institucional da República de 1988 é o de uma democracia a ser mantida e defendida.

Mas um dos problemas mais importantes que os eventos de junho de 2013 permitiu recolocar foi justamente este: a República de 1988 é uma forma política adequada para a expressão dos interesses e desejos das classes trabalhadoras ou uma República da Propriedade, antipopular e oligárquica? O fato de que a estrutura econômica capitalista neocolonial e o mesmo aparelho repressivo do Estado se mantêm desde a ditadura empresarial-militar de 1964 são índices suficientes para dar uma resposta concreta ao problema.

Acusar os eventos de 2013 de terem produzido a nova direita brasileira é, para bom entendedor, acusar o PT e seus satélites enquanto “partido da ordem”, a temer aqueles que, com sua insatisfação, naquele ciclo de lutas, não se enquadraram na teia da institucionalidade vigente.

É perfeitamente legítimo, então, entender que o verdadeiro nome desta esquerda é o de “esquerda da ordem”. Os acontecimentos demonstram que, ao se tornar “sistema”, gestor desse regime de exploração, esse campo político já não pode mais ser bandeira de nenhum levante dos ninguéns – e, como os conservadores de todos os tempos, oferecem apenas repressão e difamação em resposta.

Que se tire a prova real: afinal, onde estavam as forças da direita teológico-política nos dez anos de “calmaria” que precederam 2013? E o latifúndio? Quem afiançou as aventuras dos militares no Haiti, em que assumidamente começaram a programar sua volta à cena política? Questões incômodas, é certo, mas importantes para indicar qual foi a esquerda que de fato alimentou os embriões do fascismo.

2013 marcou, a seu modo, como não poderia deixar de ser, a longa história das rebeliões do país. Àqueles que se colocam do lado dos dominados, cabe, é claro, fazer suas críticas às organizações, forças e movimentos que atravessaram o levante, mas visando sempre o avanço daquela resistência e em nome do direito de viver dignamente para a imensa maioria.

2013 demonstrou que quando os sem nome e sem rosto se levantam, desorganizam o jogo dos homens de terno. Que eles não são tão intocáveis quanto parecem, atrás de seus caveirões e escudos da tropa de choque. Que, como diz Paulo Arantes, podemos revidar.

Porém, sem dúvida, o levante encontrou falhas e foi derrotado. Não porque se ousou lutar mesmo contra aqueles que dizem ser nossos representantes e se perturbou o frágil equilíbrio que permitia uma democracia racionada – sendo o reforço da direita uma espécie de castigo divino por tamanho pecado. Mas porque não se encontrou à época as formas de manter o levante de pé, resistindo aos ataques cada vez mais duros dos homens de terno. E, como consequência de tal fracasso, nossa vida piorou desde então, sem conseguirmos reagir à altura.

Fomos incapazes de gerar saldos políticos e organizativos daquele levante e é exatamente isso o que nos falta ainda hoje. Organização: é o que faz toda diferença em enfrentar altas e baixas, avanços e reveses comuns a toda luta. Nos faltou e ainda nos falta uma institucionalidade outra, sob outra diretriz política – que não esteja amarrada nas mil armadilhas dos aparelhos estatais e privados dos dominantes, nem na fluidez cada vez mais manipulável das redes. Eis uma questão que merece o melhor de nossos esforços teóricos e práticos. A destituição dos dominantes e a constituição autônoma do poder dos dominados impõe a resolução deste problema que 2013 abriu, mas que ainda não resolvemos.

Diferente daqueles que gostariam que 2013 nunca tivesse existido, é preciso dizer, por fim, que não há ilusão mais perigosa do que o desejo por um tempo histórico enquanto uma passagem indolor, gradativa. Esse sim é um ovo que gera muitos monstros. Os acontecimentos de 2013 traçaram, entre nós à esquerda, uma verdadeira linha de demarcação, que a ascensão do fascismo só tornou mais grave. Trabalhar na resolução dos problemas que temos, dos problemas que são nossos, tem como pressuposto analisar e entender essa demarcação. Essa é, talvez, a condição de encontrarmos o fio que nos leva para a saída do labirinto infernal em que estamos.

*Alexandre Marinho Pimenta é doutorando em educação na UnB.
*Paulo Henrique Flores é doutor em filosofia pela PUC-Rio.

Brics: Assim o Sul global desafia o Ocidente, por Pablo Bustinduy.

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Bloco aposta em aliança com o Sul e visa forjar um mundo de poderes regionais autônomos, sem a tirania do dólar, do FMI e do Pentágono. A ordem hegemônica de EUA e Europa está em xeque. Uma nova poderá ser forjada, sob outros valores?

Pablo Bustinduy, Deputado do partido Podemos por Madri, Espanha, foi porta-voz do Grupo Parlamentar Unidos Podemos na Comissão de Relações Exteriores do Congresso dos Deputados.

Outras Palavras, 06/06/2023

Um sentimento de estranheza se espalha pela política euro-atlântica. Em um artigo publicado recentemente em El País, o historiador Luuk van Middelaar resumiu isso como um sinal dos tempos: a Europa e os Estados Unidos se sentem sozinhos em um mundo cada vez menos alinhado com seus interesses. É fato que vários parceiros estratégicos do bloco operam com crescente autonomia em relação às suas prioridades. Há meses esse sentimento se reflete no mapa das sanções contra a Rússia: os 45 países que as assinaram equivalem a 61% do PIB mundial, mas apenas 36% da população. A guerra na Ucrânia aprofundou ainda mais as fronteiras entre o Norte e o Sul globais. A recente viagem diplomática de Lula transformou esse distanciamento em uma ameaça potencial: uma vontade própria dos países do Sul, desvinculada de interesses atlânticos, como disposição para deslocar o eixo da resolução do conflito para fora do continente europeu.

No entanto, o que mais preocupava Van Middelaar (que não é um formador de opinião qualquer: Perry Anderson apresentou-o neste retrato ácido como um símbolo do poder político e intelectual de Bruxelas) não era essa proposta de mediação, mas um comentário informal no qual Lula se questionou por que “todos os países têm que fazer suas transações em dólares”. Ainda mais do que a ideia de uma solução para a guerra desalinhada com os tempos e a linguagem do eixo transatlântico, este questionamento do dólar como moeda global foi lido como um verdadeiro desafio. É o espírito que inspirou a construção dos BRICS – a ideia de um contrapoder ao domínio atlântico sobre a globalização, a ideia de um mundo em que os poderes regionais se organizam autonomamente – revivido no pior momento possível para esse domínio, já que se encontra sob pressão de várias frentes e carece de uma estratégia clara de médio prazo.

Em um artigo de grande lucidez, o jornalista Wolfgang Münchau explica em que consiste exatamente essa ameaça. Não é simplesmente uma questão de os países do Sul substituírem uma moeda operacional por outra; nem mesmo que avancem na construção de suas próprias instituições financeiras. Este é um processo muito mais longo e complexo que afeta as estruturas produtivas desses países, suas cadeias de valor e suprimentos e os fluxos comerciais entre eles, que devem ser reorganizados para orbitar em torno de um novo centro. E para isso, a primeira economia que deve ser profundamente transformada é a da China, que também deve desenvolver uma enorme capacidade de coordenação e gestão regional, tanto econômica quanto politicamente. Essa é a outra perspectiva dos debates sobre o reordenamento da globalização. É a visão do outro lado.

Estamos realmente caminhando para essa situação? Existem análises conflitantes sobre quais seriam as intenções da China a esse respeito. Por um lado, proliferam as tentativas de lançar uma sombra antagônica sobre a sua posição no conflito europeu: a China estaria pagando a sua aliança com a Rússia e a atitude cada vez mais agressiva dos seus parceiros, o que significa que cada aproximação a Pequim significa aumentar o risco de um confronto indireto com os Estados Unidos. Por sua vez, as ambições chinesas teriam desencadeado reações defensivas em toda a região do Pacífico, e o fortalecimento da aliança Quad (EUA, Índia, Japão, Austrália) como contrapeso regional a essas ambições. Os que apostam em Washington na estratégia aceleracionista se apoiam nesta leitura: o objetivo é deter a China antes que seja tarde demais.

Por outro lado, não há dúvida de que o salto diplomático de Xi Jinping acumulou importantes sucessos nos últimos meses. A influência da China como potência mediadora é crescente e já se estende ao Oriente Médio e à Europa, como atesta o histórico acordo entre o Irã e a Arábia Saudita e o lançamento de seu plano de paz para a Ucrânia, ignorado por Washington e pela União Europeia, mas não é assim para Zelensky. Nos últimos meses, até 19 novos países se inscreveram para ingressar no BRICS: uma lista que inclui Egito, Argélia ou Argentina, além dos governos de Riad e Teerã. Na confusão da globalização, à medida que a arquitetura de comércio e segurança que governava o mundo está enfraquecendo em vários aspectos, a perspectiva de uma aliança de potências regionais não alinhadas parece mais promissora do que o alinhamento com os mandatos do FMI e do Pentágono.

Qual é a posição da Europa em relação a esses processos? Nas últimas semanas, a política externa europeia deu origem a um verdadeiro caos. O presidente francês, Emmanuel Macron, deslocou-se a Pequim e saudou a iniciativa chinesa para a Ucrânia, numa viagem acompanhada por Ursula Von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, que manifestou uma posição muito diferente em nome das instituições europeias. A Alemanha, por sua vez, continua fazendo malabarismos para manter o mercado chinês aberto para suas exportações, enquanto tenta liderar o esforço de guerra europeu e a futura reconstrução da Ucrânia. Enquanto isso, a atlantista Giorgia Meloni, primeira-ministra da Itália, ameaça tirar seu país da Rota da Seda e, ao mesmo tempo, se envolve em uma disputa diplomática com a França sobre as políticas de imigração de seu governo. O sociólogo Wolfgang Streeck leu nesta algaravia uma profunda divergência de interesses entre a França, inclinada a uma cessação das hostilidades que permita a reintegração da Rússia num espaço econômico e de segurança comum, e a posição alemã, ancorada num atlantismo que procura conter a ascensão política dos países do Leste, mas ao mesmo tempo temerosa de que Washington esteja preparando um salto para o Pacífico que acirraria ainda mais o conflito ucraniano e teria consequências gravíssimas para sua economia.

A essas diferenças internas somam-se as fissuras cada vez maiores na estratégia externa da coalizão transatlântica. A próxima cúpula do G7 nasce dividida, mais uma vez, por divergências sobre a estratégia a seguir com Moscou (desta vez é o Japão que se opõe a um bloqueio total das exportações para a Rússia). Mas também pela falta de solução para os conflitos regulatórios que o IRA trouxe: cada um se prepara por conta própria para uma grande reorganização tecnológica, industrial e comercial sem saber em que princípios assentam esses esforços nem para qual horizonte geral deveriam apontar. As gravíssimas emergências que hoje se acumulam não têm diagnóstico nem proposta conjunta de solução. A posição atlântica suspeita de um mundo dividido, cada vez mais distante de si e mais antagônico, mas sua principal fraqueza não vem de seus adversários, nem mesmo de sua falta de unidade interna: vem da ausência de uma visão geral do mundo por vir, e um projeto que ofereça segurança suficiente para poder ser compartilhado.

Cães de guarda da ordem social, por Luiz Marques.

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Luiz Marques, é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.

A Terra é Redonda – 06/06/2023.

As crises políticas nascem e crescem na medida em que se esfarela a credibilidade dos valores de um dos polos da disputa, na opinião pública

A mídia corporativa, que não aceita posições dissonantes entre “colaboradores”, defende a liberdade de expressão somente fora de sua jurisdição. Era postiça a indignação manifesta com a recepção oficial ao presidente da Venezuela, vindo a Brasília para o encontro de lideranças das nações latino-americanas, no Itamaraty. Mandatários de esquerda e direita estiveram presentes, à exceção do Peru que destituiu o governante. O objetivo foi fortalecer o continente em um mundo hegemonizado pelo Consenso de Washington (1989), que não trouxe o prometido crescimento econômico sustentável, com geração de empregos e distribuição de renda.

Para não fugir à regra lesa-pátria, remanescente do período colonial-escravista, os “caranguejos” do jornalismo nacional preferiram agourar o evento, em vez de divulgar a articulação pluralista para o reerguimento da Unasul. A alegação beirou o cinismo: “Cada corrente tem seus ditadores de estimação”. Como se a formação de um bloco político regional tivesse por critério, para recordar as categorias deontológicas de Max Weber, a identidade fundada em uma “ética da convicção”, e não na “ética da responsabilidade” ao lidar com a globalização.

Beirou a hipocrisia, idem, pelo negacionismo sobre a condição de chefe de Estado de Nicolás Maduro: “A decisão de estender o tapete vermelho poderá trazer mais prejuízos do que lucro”. Aos Estados Unidos? Aos promotores da agenda neoliberal? À direita neofascista? Desnecessário catar pelo em ovo. Tratou-se simplesmente de buscar a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina – sem o complexo de vira-lata.

Para uma noção do inescrupuloso jornalismo no Rio Grande do Sul, recomendo a leitura do relato de Carlos Águedo Paiva “A contribuição da mídia gaúcha para a decadência do RS”, publicado na Rede Estação Democrática (31/05/2023). Uma ótima reflexão sobre a escalada neoliberal em terras sulinas, e a intervenção da imprensa na arquitetura desse processo político-ideológico. No redemoinho, a crítica afundou no fosso entre o povo e a nação, sem forjar a contra-hegemonia.

A contrarrevolução

Falta à mídia e setores da vanguarda do atraso um programa de empoderamento transnacional em um contexto histórico multipolar, para inserir as demandas dos plebeus (nosotros). Prevalece o olhar hipostasiado e submisso frente ao erodido imperialismo estadunidense. Não se faz o balanço do neoliberalismo pelas más consequências. A gramática do Homo economicus registra o lucro, o rendimento e a acumulação, não o sofrimento social. A distopia da rápida evolução conservadora contra as funções estatais é encoberta por salamaleques.

A opinião pública é manipulada. A mídia substituiu o uso público da razão pela expressão pública de sentimentos. “Os assuntos se equivalem, se reduzem à banalidade do ‘gosto’ ou ‘não gosto’, do ‘achei ótimo’ ou ‘achei horrível’”, denuncia a análise midiática de Marilena Chaui, no livro Poder e simulacro. Infantiliza-se os receptores, feitos de idiotas.

O neoliberalismo é o princípio teórico e a doxa de uma nova forma de ação do Estado, orientada para a manutenção da ordem pública, a unificação do mercado nacional, a consolidação do mercado mundial e a concorrência que aquele impõe. O fenômeno acenou para uma dominação inusitada na história contemporânea, ao penetrar a subjetividade dos seres humanos pelas ondas de rádio, pela televisão e pelas big techs. Um mesmo mundo é possível.

“Modernização” então tornou-se sinônimo de “realismo”, de “equilíbrio fiscal” e de um “sentido de decoro”. Think tanks propagaram a mitologia, num ritmo alucinado. Contabilizavam 5.465 núcleos, em 2008. Em 2019, eram 8.248. No Brasil, no mesmo intervalo, saltaram de 30 para 103 nas pegadas do livre comércio. Coube ao Instituto Mises Brasil (IMB) influenciar a famiglia Bolsonaro nas áreas de educação, saúde, economia, relações exteriores, etc. Por trás da sabotagem do Estado havia, na surdina, a opção da trupe pelo anarcoliberalismo.

O protesto na Gare

Em 12 de dezembro de 1995, Pierre Bourdieu proferiu um célebre discurso na Gare de Lyon, em apoio à greve do funcionalismo público francês contrariamente às reformas neoliberalizantes do governo: “A nobreza de Estado que prega a extinção do Estado e o reinado absoluto do mercado e do consumidor, substituto comercial do cidadão, assaltou o Estado: fez do bem público um bem privado, da coisa pública uma coisa sua. O que está em jogo é a reconquista da democracia contra a tecnocracia. É preciso acabar com a tirania dos ‘especialistas’, estilo Banco Mundial ou FMI, que impõem os vereditos do novo Leviatã, os ‘mercados financeiros’, e que não querem negociar mas ‘explicar’. É preciso romper com a fé na inevitabilidade histórica”.

Entre nós, a reconquista da democracia contra a tecnocracia refere-se aos valetes do Banco Central e aos juros estratosféricos a serviço da ciranda financeira (um assalto à luz do sol). Os próceres do Parlamento se incluem entre os pseudopatriotas ao avalizar o extermínio das etnias indígenas e da devastação da Amazônia. É o que significa o “marco temporal” aprovado na Câmara dos Deputados – triste representação. Se ratificado no Senado, calcula-se que os indígenas estejam em risco em 871 das 1.393 reservas do país, estipula o Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Motivos sobram para barrar o criminoso genocídio dos habitantes originários.

Urge um “novo internacionalismo” para reatualizar o engajamento político e intelectual no combate ao status quo. Com ousadia pode-se galvanizar a sociedade civil e despertar a cidadania para agir na esfera pública, e modificar a ordem social. Há que enfrentar a hecatombe climática, a ameaça de uma guerra nuclear, a crise da democracia (o ovo da serpente do totalitarismo) e o capitalismo de vigilância, com tentáculos na Inteligência artificial (IA).

Não é fácil. Implica derrotar a lógica comunicativa e dissimuladora que obscurece e sufoca o bom senso, ao abrir as portas à ignorância que se autoproclama em patamar igual ao do conhecimento e da ciência. Na contramão dos filósofos iluministas que desconstruíam as crendices do povaréu, os tradicionalistas ressuscitam o pai do conservadorismo, Edmund Burke, para quem os preconceitos são úteis para organizar uma sociedade temente a Deus.

Cinismo e hipocrisia

Vale lembrar que a Inteligência Artificial é apenas uma extensão do sistema, com grande impacto no PIB mundial. A pergunta é: a solução reside na regulamentação do capitalismo (indômito, por natureza) ou em entregar os recursos, as pessoas e o trabalho para fomentar a economia no rumo do desequilíbrio ecológico, do irracionalismo bélico, dos suspiros da democracia politicista desvinculada do social e dos mecanismos controladores da vontade dos indivíduos. O capitalismo neoliberal é o gravíssimo problema a ser enfrentado, em tempos tão dramáticos.

Na derradeira fase do combo de opressão e exploração, a tarefa dos cães de guarda é faire l’opinion em favor das abissais desigualdades entre as classes sociais. Daí canalizarem a insatisfação contra os movimentos antissistêmicos, como o MST, ocultando o rentismo financeiro ao confundir a percepção das massas sobre o capitalismo realmente existente.

Para os bolsominions, a tragédia nacional se localiza com exclusividade na “superestrutura” – Superior Tribunal Federal/STF, Tribunal Superior Eleitoral/TSE, Congresso da República, Igreja Católica, Direitos Humanos, Universidades. Ligeiro cancelam as acusações que responsabilizam a “infraestrutura” econômica pelas mazelas que sacrificam o povo brasileiro, exemplificadas pelas commodities do agronegócio que não agregam valor e pela desindustrialização, que gera multidões de excluídos. O erro metodológico compromete o diagnóstico.

Não espanta a dependência de notícias falsas para minar a democracia e a verdade. As crises políticas nascem e crescem na medida em que se esfarela a credibilidade dos valores de um dos polos da disputa, na opinião pública. É o que os cães de guarda pretendem ao tatuar em Lula e, por extensão, na esquerda em geral a cumplicidade com “ditaduras”, deslocando as atitudes de cinismo e hipocrisia da burguesia para o espectro democrático-popular. Como no verso do poeta trotskista, Paulo Leminski: “nada como um dia indo atrás do outro vindo”.

Austeridade para quem? por Paulo Kliass

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Gasto com juros, que só alimenta o rentismo, nunca teve teto. É a segunda maior despesa do Estado, atrás apenas da Previdência, e só neste ano cresceu 50%. Insistir no arcabouço fiscal não nos livrará dessa herança maldita de Bolsonaro e Guedes

Paulo Kliass, Doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.

Outras Palavras, 06/06/2023.

Desde que foram anunciados os resultados das eleições presidenciais em outubro passado, as elites vinculadas ao financismo em nossas terras passaram a colocar em movimento uma estratégia de sequestrar o terceiro mandato do presidente Lula. Uma vez derrotado o candidato que eles também haviam apoiado de forma quase unânime em 2018, esse pessoal põe em marcha seu plano B para minimizar a derrota e impedir que as ideias do programa econômico apresentado pelo candidato vencedor à sociedade permanecessem fora de qualquer possibilidade de implementação pelo futuro governo.

Entre a oficialização da vitória de Lula e a data de sua posse, os representantes da oligarquia financeira e os grandes meios de comunicação buscaram indicar nomes para compor a área econômica, com o intuito declarado de evitar uma descontinuidade em relação à gestão de Paulo Guedes e também de Henrique Meirelles. Assim foram meses de balões de ensaio semanais, apresentando e sugerindo figuras com perfil conservador, alinhados à ortodoxia e ao neoliberalismo. Tendo em vista a resistência do futuro presidente em aceitar tais ofertas, surge em cena um plano C. Como não conseguiram emplacar nomes, voltaram-se à tentativa de assegurar um programa que não significasse nenhuma ruptura com os anos de austeridade fiscal e arrocho monetário.

Uma parte dessa tarefa já havia sido cumprida em 2021, quando Paulo Guedes conseguiu convencer seu chefe a apoiar a proposta de conferir independência ao Banco Central (BC). Assim, por meio dos dispositivos da Lei Complementar 179, o presidente e demais diretores do BC passaram a contar com mandato fixo. Por meio de tal artimanha, Lula só poderá indicar o novo presidente da instituição e contar com maioria no colegiado de nove membros a partir de 2024. Em razão de tal golpe perpetrado contra nossa democracia, o novo governo não consegue ter a seu dispor ferramentas essenciais da política econômica, a saber, a política monetária e a política cambial.

Como a diretoria do BC são os próprios integrantes do Comitê de Política Monetária (COPOM), os indicados por Bolsonaro mantêm uma política de sabotagem das intenções desenvolvimentistas do novo governo. Ao longo das 4 reuniões do colegiado responsável pela definição da taxa oficial de juros realizadas desde que foi reconhecido o nome do futuro Chefe do Executivo, a Selic foi mantida nos estratosféricos níveis de 13,75% ao ano. O Brasil permanece como o país de maior taxa real de juros do mundo e esse patamar do custo financeiro inviabiliza a retomada dos investimentos necessários na economia, além de provocar um impacto significativo nas despesas financeiras do governo.

Em outra esfera de atuação, os representantes do financismo metralharam de forma incessante qualquer tipo de proposta de flexibilização mais efetiva da política fiscal. Ainda que Lula tivesse anunciado inúmeras vezes durante a campanha eleitoral o seu desejo e a necessidade de o Brasil revogar a regra do teto de gastos, a pressão vinha no sentido de colocar alguma outra medida de austeridade fiscal no seu lugar. Infelizmente, esse movimento acabou conquistando alguns corações e mentes no interior da própria equipe econômica. Assim o desenho da PEC da Transição, promulgada sob a forma da atual Emenda Constitucional nº 126, incluiu a necessidade de aprovação de uma lei complementar com um novo regime fiscal para que o teto de gastos seja efetivamente revogado.

Fernando Haddad priorizou a negociação e a interlocução com o presidente do BC e com representantes do sistema financeiro para a elaboração de tal medida. O relator Cláudio Cajado (PP/BA), colega de confiança do presidente da Câmara dos Deputados Artur Lira (PP/AL), conseguiu tornar a proposta ainda mais distante das necessidades de um programa nacional de desenvolvimento. Se a proposta enviada pelo Executivo já mantinha a essência de controlar elevação de despesas em relação ao crescimento das receitas e insistia na lógica de obtenção de superávit primário, as alterações aprovadas pela Câmara aprofundaram ainda mais o caráter pró-cíclico da medida e retiraram as possibilidades de o Estado atuar como protagonista na busca do crescimento e do desenvolvimento.

Arcabouço fiscal: austeridade remaquiada

Assim, corre-se o risco de o Congresso Nacional aprovar um texto que signifique a manutenção da estratégia de redução do peso do setor governamental na economia. A grande imprensa se encarrega de torpedear as propostas de flexibilização das regras da austeridade fiscal, ignorando que tal estratégia há anos já vem sendo implementado nos países do próprio centro do capitalismo, a exemplo dos Estados Unidos e da União Europeia. Como o arcabouço fiscal em tramitação determina que as despesas orçamentárias só poderão crescer a um ritmo de 70% do aumento observado nas despesas, a médio prazo isso terá o significado de um encolhimento relativo do Estado.

Além disso, a malandragem toda reside na manutenção do conceito de superávit primário como métrica de avaliação do sucesso da austeridade. Ao apelar para o economês, o povo da finança esconde sua verdadeira intenção. Trata-se de continuar oferecendo um tratamento VIP às despesas financeiras – leia-se, gastos com juros sobre a dívida pública. Sim, pois estas rubricas não são consideradas “primárias” na terminologia adotada. Isso significa que o modelo pressupõe um enorme esforço para comprimir as despesas como assistência social, saúde, educação, previdência social, salários e outros, para que haja um resultado positivo nas contas públicas não financeiras. E esse saldo credor vai se transformar automaticamente no volume de juros a serem pagos aos detentores dos títulos da dívida pública.

Esse tipo de despesa não era submetido a nenhum limite na política do teto de gastos e vai continuar assim no novo modelo a ser adotado após a aprovação da referida lei complementar. Assim, o que se depreende é que as regras de austeridade fiscal não valem para todos. Os números apresentados oficialmente há poucos dias pelo BC confirmam essa hipótese. Já são conhecidos os valores despendidos pelo governo federal a título de juros ao longo do primeiro quadrimestre do presente ano.

Entre janeiro e abril de 2023 o governo federal gastou R$ 228 bilhões para pagamento de juros da dívida pública. O valor é 48% mais alto do que o a soma relativa ao primeiro quadrimestre do ano passado, que havia registrado R$ 154 bi. Esse total, por sua vez, representou uma elevação de 36% em relação aos R$ 113 bi de 2021. Ora, esses números evidenciam que a herança maldita do governo Bolsonaro & Guedes foi mantida e aprofundada durante os primeiros meses do novo mandato de Lula. A austeridade fiscal não se aplica aos gastos com juros.

Caso o enfoque seja direcionado sobre os valores pagos a título de juros ao longo do ano todo, o cenário se mantém o mesmo, ainda que com índices de crescimento mais atenuados de um período para outro. Os últimos 12 meses encerrados em abril de 2023 indicam um total de R$ 660 bi na conta financeira. Trata-se da segunda maior despesa do governo federal, atrás apenas dos gastos com previdência social. No entanto, como a rubrica é classificada como “não primária”, sobre ela não cabe a imposição de nenhum teto e nem de limite algum.

Esse montante corresponde a um aumento de 13% sobre os R$ 586 bi gastos observados entre janeiro e dezembro de 2022 a título de pagamento de juros. Além disso, a comparação de 2022 com os R$ 448 bi relativos a 2021 representou um crescimento de 31%.

Esses números refletem de forma bastante cristalina a verdadeira natureza do chamado “esforço fiscal”, elemento tão divulgado e idolatrado pelos defensores do financismo e do ajuste conservador. A austeridade tão proclamada como suposta condição para garantia de estabilidade macroeconômica não se aplica de forma isonômica sobre todos os setores da sociedade. À medida em que se introduz de forma sorrateira a separação entre as despesas financeiras e todas as demais não-financeiras, a busca da tão venerada responsabilidade fiscal deixa explícita a característica intrínseca à austeridade: reprodução das desigualdades sociais e econômicas.
Teto do Temer e subteto do Haddad

Partindo de um modelo conceitualmente viesado em prol do capital financeiro, o equilíbrio fiscal não pode ser considerado como “neutro” ou “técnico”, como costumam qualificá-lo os defensores do regime. A austeridade tem rosto e endereço conhecidos. A exemplo de outros aspectos da política econômica, pouca coisa muda em termos essenciais na comparação entre o teto de gastos da herança Temer & Bolsonaro e o subteto proposto por Haddad. Trata-se de buscar o ajuste em cima de redução dos direitos dos setores de base da nossa pirâmide da desigualdade, ao mesmo tempo em que preserva e até amplia os benefícios concedidos às elites e ao capital, quer sejam os 1% ou os 0,1% do topo da nossa vergonhosa figura geométrica da concentração.

Nova industrialização

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As transformações recentes na sociedade internacional estão exigindo o retorno do planejamento e a reconstrução de um novo projeto nacional. Esses desafios estão envoltos em todas as nações, motivados pela pandemia que assolou a sociedade internacional matando mais de seis milhões de pessoas, pela guerra em curso entre Rússia e Ucrânia, impactando sobre as estruturas produtivas globais, pelos grandes desafios gerados pelo incremento tecnológico, onde a inteligência artificial está contribuindo para o aumento das preocupações e das ansiedades dos indivíduos, além das questões referentes ao meio ambiente, natureza e da sustentabilidade, onde muitos desafios prescindem de um grande esforço e participação da comunidade internacional.

Neste momento, nações como o Brasil estão costurando e estruturando um conjunto de políticas para reconstrução industrial, motivando os setores econômicos e produtivos para um desafio de grande relevância, ainda mais, numa sociedade marcada por forte desindustrialização, onde os setores industriais perderam relevância na economia nacional, com repercussões negativas para a estrutura produtiva, redução de empregos industriais e uma forte degradação da renda dos trabalhadores, que culminaram sobre uma fragilização do mercado interno, perda de dinamismo econômico e desagregação dos termos de troca no comércio internacional.

Recentemente, as nações desenvolvidas estão retomando seus projetos de reindustrialização, canalizando recursos para a pesquisa e para a inovação, aumentando a busca por maior autonomia econômica, evitando os efeitos geradas pela pandemia, que demonstraram claramente que muitas economias desenvolvidas perderam espaço na estrutura econômica industrial, se transformando em nações dependentes de outras regiões, neste percurso, os grandes ganhadores foram as economias asiáticas, notadamente a China, Coréia do Sul, Taiwan, dentre outras.

Internamente, os desafios são sempre muito custosos, os recursos dispendidos nesta estratégia devem ser investidos pelo governo nacional, visando uma reconstrução industrial no longo prazo, com recursos subsidiados e taxas de juros condizentes, evitando projetos megalomaníacos e buscando vantagens comparativas que nos dão condições de competir num cenário altamente concorrencial e marcado por grandes conglomerados produtivos, dotados de grandes somas de recursos materiais e forte acesso aos mercados de capital global, cujos custos monetários são reduzidos e seus investidores vislumbram o longo prazo.

Outro grande desafio para a nova industrialização brasileira está na mentalidade de muitos agentes econômicos e produtivos, setores que, muitas vezes, se acostumaram com seus lucros elevados, gerados nos mercados financeiros, remunerados por taxas de juros escorchantes e proibitivas, que contribuíram para pavimentar o crescimento da desigualdade da renda e das oportunidades, que caracterizam a sociedade brasileira e contribuíram para perpetuar as exclusões sociais e as violências generalizadas, características visíveis da sociedade brasileiras.

Neste desafio de reindustrialização da economia brasileira, faz-se necessário elencar setores estratégicos, onde destacamos o complexo econômico da saúde, cujo potencial de crescimento é gigantesco, ladeando outros setores produtivos que poderiam reduzir as importações da área da saúde, complementando as compras governamentais, impulsionado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), cujo potencial de emprego, de renda e de salário são elevados, gerando fortes impactos na economia nacional. Destacamos ainda, nos esforços da nova industrialização, setores como a indústria da Defesa, além dos setores de máquinas e equipamentos, que possuem, historicamente, capacidade interna instalada, dessa forma, possuem mais capacidade de absorver e internalizar tecnologias.

Vivemos num momento de grandes transformações digitais e de transição energética, todos os esforços da nova industrialização prescindem de estratégias de inclusão social, fortes investimentos em ciência e tecnologia, fomento da pesquisa científica e estímulos crescentes de concorrência internacional. O momento é de decisões estratégicas, combatendo visões entreguistas e subservientes que contribuem para perpetuar nosso atraso civilizacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Circular, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 06/06/2023.

O marco temporal é letal, por Márcia Castro

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Aprovação da medida no Senado seria duro golpe para a Amazônia e um vexame para o país que vai sediar a COP em 2025

Márcia Castro, Professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard.

Folha de São Paulo, 05/06/2023.

No último dia 30, o projeto de lei que cria o marco temporal foi aprovado pela Câmara dos Deputados e agora depende de aprovação no Senado. O projeto propõe que a demarcação de terras indígenas se restrinja àquelas ocupadas à época da promulgação da Constituição Federal (5/11/1988).

Além disso, impossibilita a ampliação de áreas já demarcadas e propõe que estas possam ser retomadas pela União caso traços culturais do povo indígena tenham se alterado. Propõe, ainda, que projetos de infraestrutura (tais como estradas e hidrelétricas) possam ser implementados em áreas demarcadas sem consulta às comunidades indígenas que ali habitam.
Essa proposta é letal em várias dimensões.

É letal aos povos indígenas. É um absurdo usar a data da Constituição, ou qualquer outra data, para definir direito de posse de uma terra que sempre foi dos indígenas. Ao longo de séculos, povos indígenas sofreram com doenças trazidas pelos colonizadores, invasões e exploração predatória de recursos naturais, trabalho escravo e massacres cruéis como o ocorrido em 1963, em que cerca de 3.500 membros do povo indígena Cinta Larga foram assassinados e suas aldeias queimadas.

Se mesmo em áreas demarcadas, como a do povo Yanomami e dos povos isolados no Vale do Javari, as invasões ilegais, exploração, conflitos e violência se intensificaram durante o último governo, imagine nas áreas não demarcadas. Isso se agrava com a medida provisória (MP dos Ministérios) aprovada pelo Senado no último dia 1 que transferiu a atribuição de demarcar áreas indígenas do Ministério dos Povos Indígenas para o Ministério da Justiça.

O marco temporal é letal ao meio ambiente. Dados de desmatamento mostram que a demarcação de terras indígenas é um fator determinante para preservação da floresta, contribuindo para a manutenção da biodiversidade e a regulação do clima. Áreas mais desmatadas ao sul da Amazônia já recebem menos chuva.

O marco temporal é letal ao agronegócio. A ideia de que a mudança traria segurança jurídica aos proprietários rurais é enviesada e não considera as consequências de longo prazo, já que a redução das chuvas em áreas desmatadas afeta o agronegócio.

Uma análise de 2021 estimou que a produção de soja e gado pode ter uma perda de cerca de US$ 1 bilhão (cerca de R$ 4,9 bilhões) anualmente devido ao desmatamento acelerado no sul da Amazônia.

Um relatório recente do Banco Mundial estima que o valor da Amazônia preservada, mais de US$ 317 bilhões (cerca de R$ 1,5 trilhões) ao ano, é cerca de sete vezes maior do que o valor estimado de exploração ligada à agricultura extensiva, madeira ou mineração.

O marco temporal é letal à visão do Brasil como um país que respeita os direitos humanos, comprometido com a preservação ambiental e dos povos originários. Depois do enfraquecimento dos Ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas (MP dos Ministérios), a aprovação do marco temporal seria um golpe letal para o futuro da Amazônia e do Brasil e um vexame para o país que vai sediar a Conferência do Clima em 2025.

Hoje, um ano após a morte de Bruno Pereira e Dom Phillips, cruelmente assassinados por protegerem a floresta amazônica, o Brasil sofre um retrocesso na causa ambiental e indígena com a aprovação da MP dos Ministérios, que pode se agravar ainda mais caso o marco temporal seja aprovado.

A boiada continua passando, conduzida por parlamentares que ao invés de representar a vontade do povo brasileiro e prezar pelo futuro da nação, priorizam interesses gananciosos e predatórios.

Que os senadores tenham o bom senso e a sabedoria de vetar o marco temporal.

O Brasil não é uma potência ambiental global, por Rodrigo Tavares.

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Declarações de Lula e bravata diplomática não refletem as capacidades do país

Folha de São Paulo, 01/06/2023

Rodrigo Tavares, Professor catedrático convidado na NOVA School of Business and Economics, em Portugal. Nomeado Young Global Leader pelo Fórum Econômico Mundial, em 2017

Nas suas várias viagens internacionais, Lula tem destacado que o Brasil é uma “grande potência” na área ambiental e climática. Vários outros presidentes fizeram o mesmo. Até Bolsonaro exaltou os recursos brasileiros nessa área em seu discurso em Davos em 2019. A bravata diplomática tem sido recorrente.

Mas será mesmo o Brasil uma potência ambiental?

Desde os anos 50 que as várias teorias das relações internacionais têm dissecado o conceito de “potência global” sob todos os prismas possíveis. As diferenças entre “superpotências”, “grandes potências” e “potências regionais” ou a retratação do mundo como “unipolar”, “bipolar” ou “multipolar” já foram exploradas quantitativa e qualitativamente até as pálpebras pesarem. Ainda que falte um largo consenso sobre essa matéria, há entendimento em alguns pontos.

O primeiro é que as grandes potências usufruem de elementos congênitos que lhes garantem uma certa primazia natural, como um vasto território ou força populacional. Na área ambiental, certamente que o Brasil se destaca, como o país do cerrado, a savana com a maior biodiversidade arbórea do mundo, e da Amazônia, a maior floresta tropical do planeta. Também tem a maior reserva de água doce disponível. Mas estes são elementos passivos. Se fossem suficientes para outorgar a um país o estatuto de potência, o Canadá ou a Dinamarca (com a Groenlândia), com os seus vastos territórios, estariam no pelotão da frente.

O segundo elemento é material e corresponde à habilidade e experiência de um país para exercer sua influência em escala global. Não são características herdadas, mas criadas. Teóricos das relações internacionais, como Kenneth Waltz, John Mearsheimer ou Nuno Monteiro, destacam que, para ser uma potência global, um país precisa de força militar, capacidade econômica, estabilidade política, pujança tecnológica e educacional ou poder cultural, entre outros fatores tangíveis e intangíveis.

São eles que dão às grandes potências vantagens relacionais que lhes permitem exercer influência e mudar comportamentos de outros países a nível global. Se aplicarmos essa visão à área ambiental, a pujança brasileira já não é tão evidente.

Tem uma matriz energética de 43% de energia limpa e renovável. Tem o maior programa do mundo de produção de combustível extraído da biomassa. Tem inúmeras organizações da sociedade civil atuantes na área ambiental e uma quantidade significativa de quadros técnicos especializados que produzem reflexões organizadas sobre o tema, como a Estratégia Brasil 2045, do Observatório do Clima. A legislação ambiental é das mais densas do mundo. Mas titubeia na reindustrialização verde e na transição para uma economia de baixo carbono, um esforço colossal que ainda não angariou apoio político inequívoco. Desde a democratização, os líderes políticos com verdadeira vocação ambiental contam-se pelos dedos de poucas mãos. José Antônio Lutzenberger, Rubens Ricupero, José Goldemberg, Izabella Teixeira, Marina Silva. Quem mais?

O Brasil também está muito atrasado no aproveitamento dos mercados de carbono e não é referência em tecnologia climática. Praticamente não há presença brasileira entre os 350 fundos de venture capital dedicados a essa área. No país, 47% da população não tem acesso à rede de esgoto e as suas águas residuais são lançadas sem tratamento na rua ou em rios. As catástrofes de Mariana e Brumadinho geraram danos ambientais e lesões à imagem internacional do país. O índice de reciclagem é de apenas 4%, muito abaixo de países com o mesmo patamar de renda. O Brasil ocupa apenas o 81º lugar no Índice de Desempenho Ambiental da Universidade de Yale, atrás de países latino-americanos como o Chile, o Equador ou a Venezuela, que não se autodeclaram campeões ecológicos.

Para ser uma potência global ambiental, o Brasil precisaria também possuir capacidade ou interesse em resolver ou mitigar os mais graves problemas ambientais. O exercício de responsabilização, a ser exercido em nível global, é outro critério fundamental para ser considerado uma grande potência. Certamente que o Brasil tem organizado eventos internacionais (ECO-92, Rio+20 e a COP30, em 2025) e deixado as suas impressões digitais em acordos internacionais, mas não tem exercitado, de forma consistente, a sua eventual liderança na resolução de problemas climáticos e ambientais.

O Acordo de Paris de 2015 só foi possível porque em novembro de 2014 os EUA e a China assinaram um acordo bilateral. O Protocolo de Montreal sobre Substâncias que Destroem a Camada de Ozônio, de 1987, foi imposto pelos EUA. A União Europeia, pela sua robustez regulatória, comercial e financeira, tem conseguido influenciar práticas de sustentabilidade corporativa em vários países do mundo, incluindo o Brasil.

Qual a influência do Brasil em discussões globais sobre pobreza energética, reciclagem de eletrônicos, poluição atmosférica ou produção de plásticos? O Brasil tem 7.400 kms de costa, mas qual a sua contribuição global para o tema da acidificação dos oceanos? Qual a opinião do Brasil sobre uma eventual reforma da Convenção da ONU relativa ao Estatuto dos Refugiados para proteger refugiados climáticos? E que papel exerceu para resolver problemas ambientais em nível regional ou global? Por que não ajudou o Peru (Callao), o Equador (MV Jessica) ou a Venezuela (El Palito) a superarem desastres ambientais causados por derramamentos de petróleo?

Uma potência global também tem de ser reconhecida pelos seus pares como tal. Infelizmente não existem normas ou arranjos institucionais que confiram o estatuto de grande potência na área ambiental. Não há um Conselho de Segurança da ONU ou um G7 aplicados à liderança climática. O reconhecimento do poder é, por isso, mais arbitrário e interpretativo. Ainda assim, é difícil encontrar exemplos materiais em que o Brasil tenha sido aceito como uma potência ambiental global.

Certamente que há reconhecimento dos seus elementos congênitos; o país da Amazônia tem naturalmente lugar cativo em qualquer discussão global. Mas e além disso?

O meio ambiente é o maior diferencial competitivo que o Brasil poderia ter. Só falta aproveitá-lo. Se o país já fosse uma potência ambiental, isso já se teria refletido no aumento da renda e da qualidade de vida dos brasileiros.