A era de insegurança

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Vivemos momentos de grandes transformações na sociedade internacional, neste momento de alterações crescentes que eram vistos como sólidos e consistentes estão sendo modificados, sentimentos estão se esvaindo, modelos de negócios foram devastados, setores econômicos estão em franca decadência, relacionamentos sólidos perdem espaço e amores estão sendo cada vez mais vistos como líquidos, como diz o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, gerando incertezas, instabilidades e depressões constantes.

Neste ambiente, percebemos que vivemos numa sociedade marcada por grandes inseguranças, as transformações do mundo do trabalho estão gerando medos crescentes, desesperanças e conflitos internos, culminando em depressões, ansiedades e fortes instabilidades emocionais.

Estamos vislumbrando uma sociedade marcada por poucas certezas e grandes incertezas, dominadas por sensações de medo e de desesperança, que crescem em todas as regiões do mundo, anteriormente as inseguranças eram normais nos países pobres e miseráveis, na contemporaneidade, essa sensação se espalhou também para todas as nações desenvolvidas. Neste cenário centrado em desajustes elevados, carecemos de proteção e de segurança, com isso, os medos contemporâneos nos levam a abraçar ideias salvadoras, filosofias religiosas pouco confiáveis, abraçando informações falsas, equivocadas e espalhando fake news, desta forma, nossos medos se tornam cada vez mais patológicos, mais degradantes e com potencial de criar conflitos maiores, com polarizações políticas e graves constrangimentos para a vivência e a convivência em sociedade.

As grandes transformações na economia internacional, que culminaram na globalização da economia, responsável pelo aumento da competição e pelo incremento da concorrência, estas rápidas alterações estão fragilizando os valores humanistas, degradando a ética, reduzindo a solidariedade, o respeito, a cooperação entre os cidadãos e a responsabilidade social e ambiental. Dessa forma, o incremento da insegurança está dominando a sociedade contemporânea, transformando os indivíduos em pessoas cada vez mais individualistas, que se preocupam única e exclusivamente por defender seus interesses imediatos, olhando seus ganhos monetários e financeiros e, desta forma, contribuindo ativamente para a degradação dos laços sociais, criando uma verdadeira guerra de todos contra todos.

Vivemos amedrontados com os conflitos militares que espalharam na sociedade internacional, tememos os fenômenos naturais, as catástrofes geradas pela pandemia, os receios do desemprego, do terrorismo e das exclusões do cotidiano. Como consequência, intensificamos nossa qualificação profissional, buscando atualizações e capacitações cotidianas, nos fechando em casas e residências fortemente equipadas, com sistemas de segurança, câmeras sofisticadas e filmagens em todos os locais, mesmo assim, a sensação de insegurança é crescente e nos levam a grandes constrangimentos.

Nessa sociedade marcada pela insegurança, os laços sociais se reduzem, os vínculos humanos estão em constantes fragilizações, os relacionamentos amorosos estão em franca degradação, os amores são líquidos e não criam vínculos mais consistentes, os indivíduos querem apenas relacionamentos rápidos e prazeres imediatos, com isso, percebemos na sociedade contemporânea uma fuga crescente de relacionamentos mais sólidos e consistentes, para alguns especialistas ao criarmos vínculos com outras pessoas, corremos o risco de se decepcionar, podendo gerar constrangimentos íntimos, ansiedades e depressões.

As razões destas degradações da sociedade são variadas e seus impactos são elevados e geram fortes constrangimentos para todos os indivíduos, as alterações geradas pela tecnologia da informação estão motivando muitas destas transformações, que estão reconfigurando o mercado de trabalho e trazendo graves mudanças no mundo do trabalho e, ao mesmo tempo, as redes sociais ou antissociais criam a sensação de que estamos cercados de amigos e seguidores, ledo engano, somos cada vez mais monitorados, sem privacidade, atolados em dívidas, trabalhando cada vez mais, estamos na era da insegurança e da degradação da saúde física, mental e espiritual.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Livro premiado conta como China comunista fez transição à economia de mercado

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Isabella Weber evita velho erro de pensar o Estado chinês como monolito e explicita a luta política da burocracia

Isabela Nogueira, Professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Folha de São Paulo, 29/07/2023

Os contrastes são gritantes. De um lado, a transição da União Soviética para a Rússia foi guiada pelo receituário da chamada terapia de choque —rápida desregulamentação de preços, liberalização de capitais e privatização em massa—, levando a uma hecatombe econômica de curto prazo e a uma desindustrialização continuada no longo prazo.

De outro, a China comunista fez sua transição para uma economia de mercado de maneira controlada e gradual, com o Estado se mantendo firme nos setores estratégicos da economia. Os resultados, enfim, ninguém precisa dizer o que a China representa hoje para a economia mundial.

Esse é o pano de fundo da pergunta que a economista alemã Isabella Weber, da Universidade de Massachusetts em Amherst, faz em “Como a China Escapou da Terapia de Choque”, uma obra premiada que acaba de ser lançada em português pela Boitempo.

Engana-se quem pensa que este é um livro apenas sobre os anos 1980. Trata-se de uma obra sobre as bases intelectuais em torno da formulação de políticas econômicas na China. E com desdobramentos que tornaram Weber uma das economistas mais importantes no debate atual sobre inflação no mundo.

Ao contrário do mito de que a China seria um Estado monolítico, um ente racional e guiado pelo Partido Comunista de maneira unitária, Weber destrincha os debates ferozes entre formuladores de políticas públicas sobre como conduzir a transição chinesa rumo a uma economia de mercado. É uma rigorosa pesquisa empírica, baseada em 51 entrevistas com fontes chinesas (e algumas internacionais) e fontes primárias não publicadas.

Weber mostra como o pensamento neoliberal penetrou na China ao longo dos anos 1980 e, em dois momentos, quase venceu a luta política dentro do Partido Comunista por reformas tipo “big bang”.

Essa visão defendia que a liberalização de preços deveria ser rápida, causando uma dor de curto prazo e evitando uma dor de longo prazo, e teria que ser acompanhada de forte ajuste fiscal e aperto monetário para evitar uma espiral inflacionária. Compunham esse grupo os economistas de inspiração neoclássica, muitos baseados nas teorias de “rent-seeking”, que argumentavam que o sistema de controle de preços em vigor seria uma distorção que deveria ser abolida rapidamente.

Eles se baseavam no sucesso internacional de Milton Friedman e nos modelos matemáticos em busca de preços de equilíbrio.

O próprio Deng Xiaoping, principal líder no período, teria se transformado em um defensor da terapia de choque durante uma curta fase em 1988. Isso levou a uma disparada inflacionária e as políticas de liberalização foram rapidamente revertidas, mas o embrião para a revolta social que eclodiu em 1989 estava implantado.

Do outro lado da disputa política estava um grupo de burocratas que defendia o que a autora chama de “gradualismo experimental”. Em vez de um modelo teoricamente derivado, o novo sistema deveria ser induzido por meio da experimentação e da pesquisa empírica.

Essa é a essência do pragmatismo chinês: no caso da reforma, só poderiam ser liberalizadas as partes da economia que não fossem essenciais para o controle de preços. O objetivo seria ampliar os mercados gradualmente, pelas margens, sem abrir mão do controle pelo Estado de tudo que fosse considerado essencial.

Em resumo, o que esse grupo defendia era que o excesso de demanda agregada não deveria ser resolvido por meio da sua supressão (austeridade fiscal e aperto monetário), mas por meio de um aumento expressivo da oferta. A escassez deveria ser gerida em nível setorial, mantendo a gestão estatal em energia e commodities essenciais. E o foco seria industrializar rapidamente o país.

Qual a base intelectual desse grupo? A resposta, segundo Weber, está na história e no método.
A autora mostra como os debates sobre temas básicos da economia política são parte da civilização chinesa há 2.000 anos. Ela revê textos antigos como o “Guanzi” e argumenta que a responsabilidade do Estado por disciplinar mercados e estabilizar os preços dos grãos para evitar convulsão social é uma preocupação constante dos tempos imperais.

Do ponto de vista do método, em todos esses textos ela encontra a necessidade de estudar relações econômicas de maneira concreta e adaptar as políticas públicas de maneira experimental.

O pragmatismo seria, enfim, congruente com uma longa linha de pensamento tradicional.

A autora ressalta que não está buscando uma explicação sinocêntrica baseada exclusivamente na experiência civilizacional. Burocratas dos anos 1980 também se debruçaram sobre vários outros casos, inclusive Brasil e América Latina.

Lições essenciais teriam vindo dos Estados Unidos e das experiências de estabilização de preços em países ocidentais no imediato pós-Segunda Guerra. E da própria experiência de sucesso do Partido Comunista no controle de preços assim que tomaram o poder, em 1949.

Weber entrega uma narrativa institucionalista sobre o sucesso do modelo econômico chinês que não incorre no velho erro de pensar o Estado enquanto um monolito.

Ela explicita a luta política da burocracia, reconstruindo o papel central de figuras como Zhao Ziyang, ex-secretário geral do Partido que morreu em prisão domiciliar após tentativa de evitar o Massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989. Por conta da censura à história de Zhao, o livro está, ironicamente, tendo dificuldades para ser publicado na China continental.

Daí deriva o principal limite da obra de Weber. O Estado chinês não chega a ser propriamente caracterizado e é retratado como insulado das forças sociais, como no velho institucionalismo.

As relações sociais imbricadas com o poder político surgem como sombras difusas na narrativa.
Weber remete a um Estado sem forma social, com uma burocracia que aparece de maneira independente das forças produtivas. Tudo em uma sociedade que está transformando suas relações de produção e de propriedade e criando novos capitalistas na velocidade da luz.

COMO A CHINA ESCAPOU DA TERAPIA DE CHOQUE
Preço R$ 97 (472 págs.) Autoria Isabella M. Weber Editora Boitempo Tradução Diogo Faia Fagundes

Big Techs e Educação: o fim do professor? por vários autores.

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Corporações prometem customizar ensino e fazer da educação um game. Por trás do marketing, a cartilha neoliberal: privatizar sistemas públicos via plataformas, forjar o aluno-consumidor e reduzir o docente a um mero operador da tecnologia

Por Antonio Lovato Sagrado, Amanda Aliende e Enric Prats Gil – Outras Palavras – 26/07/2023

A erosão da profissão docente é um fenômeno que vem se desenvolvendo há décadas, principalmente com a aceleração do capitalismo, e é um tema que já vem sendo discutido na Academia e na mídia.

Diversas transformações nas últimas décadas vêm determinando diretamente mudanças nos papéis dos professores, algumas diretamente educacionais (como a universalização da educação básica e a ampliação da influência de organismos internacionais nas políticas educacionais nacionais) e outras socioeconômicas (como a globalização ou a rápido desenvolvimento das tecnologias digitais e a expansão de seu uso no dia-a-dia).

Atualmente, neste contexto, as fundações filantrópicas com alcance global estão adquirindo um papel especial na formação de docentes e na formação dos papéis dos professores. Tendem a promover um discurso sobre a (in)eficiência da escola e dos professores, o que favorece a sua entrada nas escolas públicas, incorporando no dia-a-dia escolar tecnologias educativas que eles próprios desenvolvem e financiam, como as plataformas digitais na educação.

Este artigo argumenta que as corporações de tecnologia estão moldando um novo docente. Para isso, fazemos uma leitura sobre pedagogia seduzida pelo mercado, apresentamos brevemente duas das grandes plataformas digitais que estão entrando na sala de aula (Byju’s e Khan Academy) e analisamos como esse processo afeta a reconfiguração dos professores.

A pedagogia seduzida pelo mercado

Compreender as incursões no mundo educacional do mercado e da ideologia neoliberal é fundamental para refletir sobre os impactos e as mudanças que são promovidas no campo da pedagogia. Um dos argumentos que sustenta a entrada das plataformas digitais na educação é a suposta necessidade de personalizar as trajetórias de aprendizagem de cada estudante.

A personalização visa oferecer serviços educacionais sob medida para que cada aluno-consumidor possa alcançar uma experiência de aprendizagem adaptativa (adaptative learning). Isso requer o uso de algoritmos, mineração de dados, análise de aprendizado e inteligência artificial (IA).

Algumas das ferramentas que foram criadas nesse sentido são: a customização dos módulos de aprendizagem, o alinhamento dos conteúdos que cada aluno deve trabalhar com base em suas necessidades específicas e o uso de chatbots, que incentivam, interagem e fornecem feedbacks imediatos aos estudantes sobre seu desempenho e seu nível de avanços, através de uma comunicação em linguagem natural, mantendo os alunos envolvidos em diferentes níveis.

A personalização pode ser expandida com novas contribuições da IA. Isso permite a extração e processamento de uma quantidade muito elevada de dados, o que possibilita, entre outros aspectos, a tomada de decisões com base em um maior número de elementos. Por meio dos últimos avanços em IA, as plataformas aprenderão, por exemplo, o que cada aluno mais ou menos desenvolveu em seu processo de aprendizagem e, com base nas informações de milhares de outros alunos, saberão prontamente qual conteúdo oferecer. Ainda assim, até o momento, a tecnologia desenvolvida é incipiente. No entanto, todas as decisões baseadas em dados respondem a uma lógica de eficiência escolar que não é necessariamente uma lógica pedagógica.

Junto a isso, a política de marketing das plataformas digitais na educação é bastante agressiva, embora aparentemente amigável. Seu interesse em seduzir a clientela é detectado no uso de imagens de jovens sorridentes de diferentes origens étnicas e culturais, bem como famílias heterossexuais felizes, com textos sempre muito positivos e depoimentos de usuários e especialistas, destacando valores supostamente universalizáveis do mainstream neoliberal, como equidade, inclusão e diversidade. Essas plataformas são populares entre quem estuda em casa e têm grande potencial de mercado na América Latina, refletido em seu uso generalizado em diferentes países do continente, bem como nas estratégias de marketing que oferecem para sua adaptabilidade aos diferentes idiomas.

As plataformas digitais na educação tendem a ampliar lógicas narrativas que se sustentam na possibilidade de romper com o ensino tradicional e o modelo classes de aulas, incorporando novos valores e ensinando as habilidades necessárias no século XXI. Argumenta-se que isso permitiria, finalmente, aproximar ensino e entretenimento, garantindo melhores resultados educacionais. Há uma década, Gingrich (2014) já encorajava que projetos pioneiros como Khan Academy e Coursera, hoje amplamente difundidos, seriam mais parecidos com a Netflix do que com as antigas lousas.

As empresas digitais globais que atuam nessa área tiveram um crescimento espetacular na última década, oferecendo produtos e serviços de alta qualidade gráfica por meio de plataformas digitais, incluindo conteúdo educativos para educandos, suas famílias, professores, escolas e outras empresas. Seus negócios incluem um longo repertório de fórmulas voltadas para um público amplo e diversificado. Os efeitos pedagógicos desses produtos já estão sendo estudados, e parte do setor educacional parece defender uma incorporação acrítica devido à suposta eficiência das plataformas para oferecer conteúdo.

O que é certo é que esse número crescente de ferramentas está sendo desenvolvido em um contexto de mercado com alto potencial de lucro. O modelo típico é o das EdTechs: empresas de base tecnológica em rápido crescimento (startups) que se desenvolvem no campo das tecnologias educacionais. O capitalismo digital entrou fortemente pela mão das empresas EdTech, que começam a ser difíceis de mapear (Saura, 2021; Williamson & Hogan, 2020).

Big Tech ou gigantes tecnológicos é uma categoria analítica que se refere às corporações mais importantes do mundo, que operam por meio da monopolização de serviços e, portanto, têm avançado na configuração dos futuros digitais dos sistemas educacionais. É importante diferenciar entre os gigantes da tecnologia dos EUA (Alphabet, Amazon, Apple, Meta e Microsoft) e os baseados na China (Alibaba, Baidu, Huawei ou Tencent). É comum que esses atores políticos privados atuem pela lógica da expansão global para moldar visões cada vez mais simplistas e populistas da IA, e o fazem apresentando a IA como um avanço democrático orientado para a justiça social, como exemplificado pela aliança entre Microsoft e Abra AI 1 . (Saura, 2023: 3)

Segundo o Holon IQ, os fundos de investimento investiram US$ 10,6 bilhões em empresas em 2022, 49% a menos que em 2021. Apesar disso, o investimento aumentou 14 vezes em 12 anos e essas empresas têm alta incidência em todas as facetas do processo educacional, desde o desenvolvimento de materiais didáticos para formação de professores e substituição do ensino universitário em formatos digitais.

Empresas como a estadunidense Age of Learning ou a chinesa 17zuoye disputam esse mercado e têm captado investimentos de grande escala. Além da disputa com o mercado editorial tradicional, o campo da personalização na educação faz fronteira com aplicações de mineração de dados e de análise de dados de aprendizagem (learning analytics application), que possuem alto potencial lucrativo:

(…) a adoção contínua de inteligência artificial na educação regular ao longo da década de 2020 lançará a datificação em uma escala sem precedentes. É inegável que todas essas formas díspares de inteligência artificial (do aprendizado profundo à IA generativa) estão famintas por dados.

Na vanguarda da extração de dados de ambientes educacionais estarão os provedores de plataformas digitais, para quem os dados do usuário são seu ativo mais valioso (Selwyn et al., 2020: 2, tradução nossa).

Ao lado das grandes empresas, existem também unicórnios tecnológicos educacionais que usam imaginários baseados em uma visão tecnosolucionista que oferece soluções tecnocráticas para problemas sociais e dissemina imagens de progresso e modernidade para justificar suas operações (Saura, 2023). Esses imaginários do futuro estão ligados à abertura de novos mercados financeiros.

Como exemplo, podemos destacar que a EdTech indiana Byju’s foi a patrocinadora oficial da Copa do Mundo FIFA no Catar 2022 2. Empresas como essa não são mais apenas unicórnios, mas “decacornios” (Williamson, 2022), já que estão avaliadas nos mercados financeiros acima de 10 trilhões de dólares. A plataforma Crunchbase (s.f.), especializada em monitorar e fornecer informações sobre o ecossistema de investimentos em empresas globalmente, informa que a Byju’s arrecadou mais de 5,5 bilhões de dólares desde sua fundação em 2015. A empresa desenvolve tecnologia educacional para aprendizagem personalizada para crianças e tem mais de 150 milhões de alunos em mais de 100 países (Byju’s, s.f.). Em seu site 4 eles são apresentados da seguinte forma:

A Byju’s torna o aprendizado envolvente e eficaz, aproveitando a pedagogia e a tecnologia de ponta. Com ofertas que vão desde cursos adaptativos de autoestudo em aplicativos e na web até aulas personalizadas individuais com professores especializados para idades de 4 a 18 anos ou mais, temos programas para todos os alunos.

Outra empresa que movimenta quantidades significativas de recursos é a Khan Academy. A lista de doadores e aliados da empresa é poderosa: alguns deles aparecem na lista da Forbes, como Carlos Slim, Bill Gates, Scott Cook, Jorge Lemann e Susan McCaw. Além disso, conta com conselheiros e assessores, gurus e policymakers ligados ao campo educacional e promotores de visões e estratégias de larga escala.

A Khan Academy se apresenta como uma empresa sem fins lucrativos 5 e opera na modalidade B2C (sigla em inglês para Business to Consumer ou de empresa a cliente). O que em seus primórdios, em 2006, eram videotutoriais de algumas disciplinas, elaborados e realizados por seu próprio fundador, Salman Khan 6/, hoje é uma complexa plataforma de aprendizagem personalizada que opera com poderosas ferramentas de IA. É focada nas disciplinas básicas obrigatórias e não obrigatórias, e também se concentra no ensino superior: matemática, ciências, programação de computadores, línguas e leitura, artes e humanidades, economia e até habilidades para a vida, como segurança na internet, financiamento ou apoio ao ingresso em universidades e, mais recentemente, a saúde e medicina. Propõe realizar um desafio de grande escala: oferecer uma educação gratuita e global.

Com o discurso sedutor e eficiente de for every student, every classroom. Real results, a plataforma propõe acompanhar o aluno na resolução dos seus problemas acadêmicos com uma metodologia própria que se apresenta como muito eficaz e efetiva. A Khan Academy argumenta que funciona porque incentiva o domínio do conteúdo: os alunos aprendem em seu próprio ritmo, primeiro identificando seus déficits e depois acelerando o processo.

A plataforma também oferece treinamento de professores na metodologia “aprendizado para o domínio”, que escalona o processo em quatro níveis (tentativa, familiar, competente e dominado): o papel do professor é selecionar o assunto e verificar o alcance dos marcos de aprendizagem . Além disso, a conexão com o Google Classroom permite a comunicação direta com alunos e famílias, e a plataforma alerta sobre riscos jurídicos para menores. A Khan Academy defende consistentemente o ensino à distância, e isso a sintoniza com as famílias que ensinam em casa, tornando essas famílias alguns de seus principais usuários.

Os últimos avanços da Khan Academy incluem a incorporação do ChatGPT-4 da OpenAI, que criou a figura do Khanmigo: um tutor de IA que conversa com os alunos em linguagem natural, recriando a experiência de um professor humano. A tecnologia também trabalha com os professores, gerenciando e preparando cronogramas de ensino e corrigindo as respostas dos alunos.

A plataforma oferece a cada aluno a experiência de um tutor humano, concentra conteúdos educacionais supostamente de alta qualidade, media o processo de aprendizagem e personaliza a trajetória de cada aluno de forma gamificada e viciante. Não há como competir com a capacidade de processamento de dados da plataforma, então entende-se que a Khan Academy conhecerá o processo de desenvolvimento de conteúdo de cada aluno muito melhor do que um professor.

A reconfiguração docente

No contexto da incorporação de plataformas como a Khan Academy às instituições de ensino, a função docente é fortemente afetada. Um professor que atue mais como auxiliar das plataformas do que como personagem central no acompanhamento do desenvolvimento do aluno parece ser o objetivo final dessas plataformas. Nesse contexto, o que se busca é que o estável e o imutável seja o serviço oferecido pelas plataformas; o professor seria cada vez mais secundário e facilmente substituível.

Os imaginários históricos sobre a função docente deixam de fazer sentido neste novo cenário. O professor não é mais a fonte de informação, conteúdo e conhecimento; não é quem desenvolve ou seleciona os materiais didáticos; nem é quem expõe o conteúdo, oferece exemplos e tira dúvidas do dia a dia. O currículo passou a ser desenhado por plataformas com alcance global, e não é mais uma pessoa que conhece os alunos e seu contexto o suficiente para tomar decisões sobre como avançar em sala de aula para reduzir as desigualdades.

No entanto, a introdução das tecnologias digitais na educação intensificou a carga de trabalho docente e fortaleceu os mecanismos de controle externo e de autocontrole interno. “(…) Por meio de todas essas mudanças, está sendo gerada a expressão máxima da subjetividade neoliberal digitalizada. O professor, que se acredita livre, se autoexplora e se autocontrola sem as limitações do plano analógico.” (Saura, Cancela e Parcerisa, 2023: 28). A gestão de todos esses dados gera um novo controle da função docente. “O papel tinha um limite. Os dígitos, no entanto, são infinitos.” (Saura, Cancela e Parcerisa, 2023: 28).

A privatização educacional digital por meio de plataformas hegemônicas como Google e Microsoft cria um solucionismo tecnológico que os professores devem atender. Essas corporações também oferecem formação, certificados e prêmios para os docentes inovadores, o que faz com que os professores que se adaptam ao seu discurso criem “inovações” e valorizem sua nova personalidade digital certificada. Desta forma, contribuem para a tecnocratização da educação e a desprofissionalização dos docentes (Saura, Cancela e Parcerisa 2023: 28).

As consequências das tecnologias digitais são imprevisíveis e dificultam o mapeamento dos atores da educação global. Isso causa uma pressão adicional sobre a função docente, que se desgasta devido à deterioração das três funções básicas (qualificação, socialização e subjetivação) propostas por Gert Biesta (2015). A abordagem de Biesta destaca que a nota não é apenas atribuir um número, mas que os alunos entendam o significado do conhecimento que é transmitido. A socialização implica a capacidade de encontrar um significado local e particular na aprendizagem, que pode ser afetado pelas barreiras impostas pelo campo digital. Por fim, a subjetivação implica que os jovens se considerem como indivíduos particulares, algo que a abordagem globalista e digital não atende. Esta deterioração tem um acentuado sotaque cultural e anula o filtro necessário do professor nas três áreas referidas, tendo efeitos perversos nos educandos.

A erosão digital na educação implica que o professor perca ou desvalorize alguns dos seus papéis e tarefas. A sua participação no planeamento, implementação e avaliação da aprendizagem é diminuída, a sua decisão sobre o currículo é anulada e a realidade das condições em que o ensino decorre é omitida. Além disso, sua figura de pesquisador desaparece e a essência da escola é subsumida pelo aprender por aprender, sem a necessidade de recorrer ao significado dessa aprendizagem.

Considerações finais

Esse processo de incorporação das EdTechs nas instituições de ensino e a configuração de uma nova função docente vem ocorrendo há anos. Na América Latina, por exemplo, existe um conglomerado de empresas que está atuando para se inserir nas escolas públicas e assumindo todos os riscos: a Samsung financia salas de aula tecnológicas 6 que poderão receber produtos educacionais da Khan Academy e de outras empresas. Mas em decorrência da pandemia de covid-19, a presença de agentes comerciais privados na educação ampliou-se ainda mais e eles defenderam a necessidade da manutenção de um mínimo de cotidiano escolar (sem que se considere, neste discurso, o gap tecnológico).

Este movimento tem causado tensões que afetam os objetivos, conteúdos e habilidades da educação.

Isso corrói o controle democrático delegado ao docente, deteriora sua figura e reduz seu papel como ator social, o que acarreta uma perda da “comunidade simbólica idealizada” (Sennett, 2000).

Nesse sentido, é importante destacar que a figura do docente é fundamental para garantir o acesso a uma educação de qualidade e equitativa para todos os alunos. Por isso é fundamental proteger o trabalho do professor como agente público e como mediador entre os alunos e o conhecimento. Num contexto em que a educação é cada vez mais influenciada por agentes comerciais privados, o papel do professor torna-se ainda mais importante enquanto defensor dos valores democráticos e da justiça social. Portanto, é fundamental que mais atenção seja dada à proteção do controle democrático da educação e do trabalho do docente nela, para garantir uma educação de qualidade e equitativa para todos os estudantes.

Os senhores da morte, por Vera Iaconelli.

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O filme ‘Oppenheimer’ faz o espectador experimentar uma profunda tristeza reflexiva

Vera Iaconelli, Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e “Criar Filhos no Século XXI”. É doutora em psicologia pela USP.

Folha de São Paulo, 25/07/2023

Freud não tinha razões para se iludir com a natureza humana. Três de seus filhos participaram da Primeira Guerra Mundial, na qual perdeu um sobrinho. Ele só escapou da perseguição nazista que antecedeu o segundo conflito mundial por obra e graça de Marie Bonaparte, princesa da Grécia e psicanalista.

Ele sentiu na pele a derrocada da pretensão civilizatória iluminista, que projetava os horrores da humanidade nos outros: basicamente nos povos originários a serem colonizados com a justificativa de que seriam selvagens. Mas quando as guerras se deram entre irmãos europeus ficou mais difícil sustentar a retórica eurocêntrica. Como se sabe, nos olhos dos outros, pimenta é colírio. A lavagem cerebral colonial é tão persistente que ainda existe quem se espante com a guerra na Ucrânia como se conflitos bélicos fossem coisa do sul global.

Freud foi mais longe, para desconsolo dos otimistas de plantão, e disse que o mal-estar na cultura é resultado do próprio processo civilizatório. A exigência de que renunciemos a parte de nossas satisfações pulsionais sempre cobra a fatura. Sua falta, por outro lado, é a barbárie. Ruim com, pior sem. Nos resta identificar como se apresenta o mal-estar de cada época para buscarmos as melhores formas de enfrentá-lo.

Mas a humanidade também é capaz de prodígios de criação que embalam nossa imaginação e engrandecem nosso espírito. Goethe, Shakespeare e Cervantes eram faróis a inspirar Freud em busca de valor na combalida humanidade.

Os grandes criadores da humanidade têm gana por aprender, resolver problemas, criar e receber o reconhecimento devido, o que os leva a um ciclo de angústia e satisfação. O prazer da descoberta, o reconhecimento social e o poder — financeiro e político — seduzem a ponto de ofuscar o interesse pelas consequências. Se algo espetacular pode ser criado, por que deveríamos nos importar com os efeitos da criação, a glória não justificaria tudo?

Atendi descendentes das vítimas da explosão das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki em mais de uma ocasião. Ouvi os relatos de sofrimento e adoecimento psíquico de familiares de sobreviventes, pais e avôs que, quando crianças, assistiram a vizinhos falecerem na sua porta sem que pudessem socorrê-los. Herdaram também riscos consideráveis de produzirem câncer em decorrência da radiação.

É uma geração que viu o esplendor de nossas capacidades intelectuais e imaginativas serem usadas para construir a maior expressão da violência humana até então. Como Primo Levi. que tentou em vão comunicar a máquina de desumanização criada pelos nazistas, também essas vítimas tentam nomear o inominável da experiência de aniquilação anônima e programática de um ser humano por outro.

O que mais se pode falar sobre tamanha tragédia, que fará 78 anos no próximo dia 6 de agosto?

O filme “Oppenheimer”, sobre o pai da bomba atômica, tenta uma abordagem. O ator Cillian Murphy sustenta magistralmente um personagem no qual convivem genialidade, lealdade para com os seus e incapacidade de se colocar no lugar das vítimas de sua criação até que seja tarde demais — e talvez nem assim, pelo potencial psicotizante. O autor da bomba não está só, logicamente. Uma empreitada dessas é sempre uma ação coletiva e gigantesca, como foi a escravidão e o holocausto.

Christopher Nolan, diretor dessa obra-prima, não dá ao espectador direito à catarse, fazendo-o experimentar uma profunda tristeza que o acompanha durante e depois da sessão. Como nas melhores obras, essa tristeza não vai sem angústia e reflexão.

Filme obrigatório para aqueles que insistem em encarar a ciência como um brinquedo lucrativo e cujas consequências negligenciam acintosamente.

Por que o capital está deixando os EUA? por Richard D. Wolff

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Richard D. Wolff – A Terra é Redonda – 24/07/2023

O capitalismo avançou, abandonando seus antigos centros e, assim, empurrando os seus problemas e as suas divisões para crises cada vez maiores.

No início, o capitalismo norte-americano estava centrado na Nova Inglaterra. Depois de algum tempo, a busca pelo lucro levou muitos capitalistas a deixar aquela área e se transferirem para Nova York e para os estados do meio do Atlântico. Grande parte da Nova Inglaterra ficou com fábricas abandonadas e cidades deprimidas – o que é evidente até hoje. Eventualmente, os empregadores se mudaram novamente, abandonando Nova York e o meio do Atlântico para o Meio-Oeste.

A mesma história foi se repetindo à medida que o centro do capitalismo se deslocava para o Extremo Oeste, o Sul e o Sudoeste. Termos descritivos como “cinturão da ferrugem”, “desindustrialização” e “deserto manufatureiro” se aplicavam cada vez mais a espaços antes habitados pelo capitalismo norte-americano.

Enquanto os movimentos do capitalismo permaneceram principalmente dentro dos EUA, os alarmes levantados por suas vítimas abandonadas permaneceram regionais, não se tornando ainda uma questão nacional. Nas últimas décadas, no entanto, muitos capitalistas transferiram as instalações de produção e os novos investimentos para fora dos EUA, para outros países, especialmente para a China. Controvérsias e alarmes contínuos cercam agora esse êxodo capitalista. Mesmo os célebres setores de alta tecnologia, sem dúvida o único centro robusto remanescente do capitalismo dos EUA, investiram pesadamente em outros lugares.

Desde a década de 1970, os salários eram muito mais baixos no exterior e os mercados também cresciam mais rápido por lá. Cada vez mais capitalistas americanos tiveram que sair ou correr o risco de perder sua vantagem competitiva sobre aqueles capitalistas (europeus e japoneses, bem como os EUA) que haviam partido mais cedo para a China e estavam obtendo taxas de lucro incrivelmente melhores. Além da China, outros países asiáticos, sul-americanos e africanos também forneceram incentivos de baixos salários e mercados em crescimento, o que acabou atraindo capitalistas americanos, assim como outros, para transferirem os seus investimentos para lá.

Os lucros obtidos por esses movimentos do capital estimularam mais movimentos. O aumento dos lucros fez a subir os mercados de ações dos EUA e produziu grandes ganhos em renda e riqueza para alguns. Isso beneficiou principalmente os já ricos acionistas corporativos e altos executivos corporativos. Eles, por sua vez, promoveram e financiaram a formulação de ideologias, segundo as quais o abandono do capitalismo dos EUA foi, na verdade, um grande ganho para a sociedade americana como um todo.

Essas afirmações, categorizadas sob os títulos de “neoliberalismo” e “globalização”, serviam perfeitamente para esconder ou obscurecer um fato-chave: lucros mais altos principalmente para os poucos mais ricos era o principal objetivo e o resultado do abandono dos EUA pelo capital sempre ganancioso.

O neoliberalismo era uma nova versão de uma velha teoria econômica que justificava as “escolhas livres” dos capitalistas como o meio necessário para alcançar a eficiência ótima para economias inteiras. De acordo com a visão neoliberal, os governos devem minimizar qualquer regulação ou outra interferência nas decisões orientadas pelo lucro dos capitalistas.

O neoliberalismo celebrava a “globalização”, seu nome preferido para a escolha dos capitalistas de transferir especificamente a produção para o exterior. Dizia-se que a “livre escolha” permitia uma produção “mais eficiente” de bens e serviços, porque os capitalistas poderiam explorar recursos de origem global. As linhas de força que fluíam das exaltações do neoliberalismo, das escolhas livres dos capitalistas e da globalização, era que todos os cidadãos se beneficiam quando o capitalismo avançava. Com exceção de alguns dissidentes (incluindo alguns sindicatos), políticos oportunistas, meios de comunicação de massa e acadêmicos auto-interessados em grande parte se juntaram à intensa torcida pela globalização neoliberal do capitalismo.

As consequências econômicas do movimento do capital impulsionado pelo lucro para fora de seus antigos centros (Europa Ocidental, América do Norte e Japão) trouxeram o capitalismo para sua crise atual. Primeiro, os salários reais estagnaram nos antigos centros. Os empregadores que podiam exportar empregos (especialmente na manufatura) o fizeram. Empregadores que não podiam (especialmente nos setores de serviços) procuraram automatizá-los.

À medida que as oportunidades de emprego nos EUA pararam de aumentar, os salários também pararam de crescer. Desde que a globalização e a automação impulsionaram os lucros das empresas e os mercados de ações, enquanto os salários estagnaram, os velhos centros do capitalismo exibiram um aumento extremo das diferenças de renda e riqueza. O aprofundamento das divisões sociais se seguiu e culminou na crise do capitalismo agora.

Em segundo lugar, ao contrário de muitos outros países pobres, a China possuía a ideologia e a organização para garantir que os investimentos feitos pelos capitalistas servissem ao seu próprio plano de desenvolvimento; ora, essa foi a estratégia econômica da China. A China exigia o compartilhamento das tecnologias avançadas dos capitalistas entrantes (em troca do acesso desses capitalistas à mão de obra chinesa de baixos salários e à rápida expansão dos mercados chineses).

Os capitalistas que entravam nos mercados de Pequim também eram obrigados a facilitar parcerias entre produtores chineses e canais de distribuição em seus países de origem. A estratégia da China de priorizar as exportações significava que precisava garantir o acesso aos sistemas de distribuição (e, portanto, às redes de distribuição controladas por capitalistas) em seus mercados-alvo. Parcerias mutuamente lucrativas foram desenvolvidas entre a China e alguns distribuidores globais, tal como o Walmart.

O “socialismo com características chinesas” de Pequim incluía um poderoso partido político e um Estado focado no desenvolvimento. Juntos, supervisionavam e controlavam uma economia que misturava o capitalismo privado com o capitalismo de Estado. Nesse modelo, empregadores privados e empregadores estatais dirigem massas de empregados em suas respectivas empresas.

Ambos os conjuntos de funções patronais, entretanto, estão sujeitos às intervenções estratégicas de um partido e de um governo determinados a atingir seus objetivos econômicos. Como resultado dessa definição e operação do “socialismo” com características chinesas, a economia desse país ganhou mais (especialmente no crescimento do PIB) com a globalização neoliberal do que a Europa Ocidental, a América do Norte e o Japão. A China cresceu rápido o suficiente para competir agora com os velhos centros do capitalismo.

O declínio dos EUA dentro de uma economia mundial em mudança contribuiu para a crise do capitalismo norte-americano. Para o império norte-americano que surgiu da Segunda Guerra Mundial, a China e seus aliados do BRICS representam agora o seu primeiro desafio econômico sério e sustentado. A reação oficial dos EUA a essas mudanças até agora tem sido uma mistura de ressentimento, provocação e negação. Não se apresentam soluções para a crise nem ajustamentos bem-sucedidos a uma realidade alterada.

Em terceiro lugar, a guerra da Ucrânia expôs os principais efeitos dos movimentos geográficos do capitalismo e do declínio econômico acelerado dos EUA em relação à ascensão econômica da China.

Assim, a guerra de sanções liderada pelos EUA contra a Rússia não conseguiu esmagar o rublo ou colapsar a economia russa. Esse fracasso se seguiu em boa parte porque a Rússia obteve apoio crucial das alianças (Brics) já construídas em torno da China. Essas alianças, enriquecidas por investimentos de capitalistas estrangeiros e domésticos, especialmente na China e na Índia, forneceram mercados alternativos quando as sanções fecharam os mercados ocidentais às exportações russas.

As disparidades de renda e riqueza anteriores nos EUA, agravadas pela exportação e automação de empregos de alta remuneração, minaram a base econômica dessa “vasta classe média” da qual tantos funcionários acreditavam fazer parte. Nas últimas décadas, os trabalhadores que esperavam desfrutar do “sonho americano” descobriram que o aumento dos custos de bens e serviços levou a que o sonho estivesse fora de seu alcance. Seus filhos, especialmente aqueles forçados a pedir empréstimos para a faculdade, se viram em uma situação semelhante ou pior.

Resistências de todos os tipos surgiram (movimentos de sindicalização, greves, “populismos” de esquerda e direita) à medida que as condições de vida da classe trabalhadora continuavam se deteriorando. Para piorar a situação, os meios de comunicação de massa celebraram a riqueza estupefaciente daqueles poucos que mais lucraram com a globalização neoliberal.

Nos EUA, fenômenos como o ex-presidente Donald Trump, o senador independente de Vermont Bernie Sanders, supremacia branca, sindicalização, greves, anticapitalismo explícito, guerras “culturais” e extremismos políticos frequentemente bizarros refletem o aprofundamento das divisões sociais.

Muitos nos EUA se sentem traídos depois de serem abandonados pelo capitalismo. As suas diferentes explicações para a traição exacerbam o sentimento amplamente difundido de crise na nação.

A deslocalização global do capitalismo ajudou a elevar o PIB total dos países BRICS (China + aliados) bem acima do G7 (EUA + aliados). Para todos os países do Sul Global, seus apelos por ajuda ao desenvolvimento agora podem ser direcionados a dois possíveis entrevistados (China e EUA), e não apenas ao Ocidente. Quando as empresas e entidades chinesas investem na África, é claro que os seus investimentos são estruturados para ajudar tanto os doadores como os receptores.

Se a relação entre eles é imperialista ou não, depende das especificidades da relação e do saldo dos ganhos líquidos. Esses ganhos para os BRICS provavelmente serão substanciais. O ajuste da Rússia às sanções relacionadas à Ucrânia contra ela não apenas a levou a se apoiar mais nos BRICS, mas também intensificou as interações econômicas entre os membros dos BRICS. Os laços econômicos existentes e os projetos conjuntos entre eles cresceram. Novos estão surgindo rapidamente. Sem surpresa, outros países do Sul Global solicitaram recentemente a adesão ao BRICS.

O capitalismo avançou, abandonando seus antigos centros e, assim, empurrando os seus problemas e as suas divisões para crises cada vez maiores. Como os lucros ainda fluem de volta para os velhos centros, aqueles que lá recolhem os lucros iludem os cidadãos e a si mesmos pensando que tudo está bem no capitalismo global.

Como esses lucros agravam drasticamente as desigualdades econômicas, as crises sociais se aprofundam. Por exemplo, a onda de militância trabalhista que varre quase todas as indústrias dos EUA reflete uma raiva e um ressentimento crescente contra essas desigualdades. O bode expiatório histérico de várias minorias feitas por demagogos e pelos movimentos de direita é outro reflexo do agravamento das dificuldades. Outra é a crescente percepção de que o problema, em sua raiz, é o sistema capitalista. Tudo isso são componentes da crise atual.

Mesmo nos novos centros dinâmicos do capitalismo, a crítica socialista, mascarada ou não, volta a agitar as mentes das pessoas. A organização dos novos centros de trabalho – mantendo o velho modelo capitalista de empregadores versus empregados em empresas privadas e estatais – é desejável ou sustentável? É aceitável que um pequeno grupo, os empregadores, permita que a maioria das empresas decida em seu próprio favor, de forma exclusiva e irresponsável?

Richard D. Wolff é economista. Fundou o portal Democracy at Work. Autor, entre outros livros, de Capitalism”s Crisis Deepens (Haymarket books).

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

Alívio econômico

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A economia brasileira vem padecendo de baixo crescimento econômico desde meados dos anos 1980, depois de forte crescimento da estrutura produtiva nas décadas anteriores, o país perdeu o dinamismo, perdeu espaços na economia internacional, fragilizando sua estrutura industrial, mergulhando em taxas elevadas de inflação e que culminaram em políticas de estabilização, austeridade fiscal, baixo crescimento econômico e incremento da desigualdade social, com aumento da exclusão social, com crescimento das drogas e a explosão da violência em todas as regiões, vide a Cracolândia que cresce de forma acelerada, gerando desafios e prescindem de políticas públicas planejadas e organizadas.

Vivemos numa sociedade altamente integrada, onde as estruturas econômicas e produtivas estão interligadas, o crescimento tecnológico está moldando uma nova sociedade, com novos modelos de negócios, centrados nas novas plataformas de comunicação, novos instrumentos de marketing, com o incremento da inteligência artificial, das biotecnologias, demandando profissionais altamente capacitados, flexíveis, dinâmicos, dotados de inteligência emocional e fortemente engajados nos desafios que crescem cotidianamente, vide os desafios criados com o surgimento do ChatGPT, que estão transformando setores e exigindo uma constante atualização.

Neste ambiente, percebemos que a economia brasileira vem demonstrando melhoras constantes, embora acreditemos que os avanços sejam tímidos, uma sensível redução dos combustíveis, com taxas de inflação demostrando sinais claros de redução sistemática, a moeda nacional apresentou forte valorização, atraindo moedas externas, impactando sobre os preços internos e um incremento da renda dos trabalhadores.

Destacamos ainda, os avanços da reforma tributária, que surgem para simplificar os impostos, além dos avanços do arcabouço fiscal, uma medida tão aguardado pelo chamado mercado e foram bem vistos pelos donos do dinheiro, com isso, percebemos que os índices de confiança da economia nacional apresentaram números positivos, com aumento dos investimentos externos e as tratativas de novos investimentos, que estão em alta crescente e as perspectivas se apresentam positivas, vide as investidas de empresas chinesas que estão buscando o mercado brasileiro, inicialmente no setor automobilístico e eletroeletrônico e, posteriormente, outros setores econômicos, demonstrando que o país está voltando para os círculos de investimentos internacionais, depois de anos de escassez de recursos externos e pouco investimento produtivo, aonde recebíamos apenas grandes levas de investimentos financeiros que vinham para angariar ganhos com nossa taxa de juros escorchantes.

Neste momento, percebemos que existe uma reconfiguração do poder global, estamos percebendo o nascimento de um mundo multipolar, onde os eixos econômicos estão saindo das nações desenvolvidas ocidentais para os países asiáticos, que ganharam novas estruturas econômicas e produtivas, passaram a competir com as nações ocidentais e passaram a ganhar espaço na nova configuração da economia internacional, marcada por forte concorrência externa, grandes investimentos em ciência e tecnologia, maciços dispêndios nos setores educacionais e melhora na estrutura produtiva, saindo de nações exportadoras de produtos primários de baixo valor agregado para uma estrutura mais tecnológica, centradas em produtos industrializados e dotadas de mercadorias de alto valor agregado.

Numa economia altamente concorrencial, marcada pelos fortes investimentos em tecnologia, educação e inovação, onde os Estados Nacionais usam todos os instrumentos para fomentar seus setores econômicos e produtivos, como estamos vendo nos países desenvolvidos que despejam trilhões de dólares para fortalecer seus setores produtivos, faz-se necessário que as economias estejam estabilizadas, estimulando a confiança e a credibilidade, para atrair novos investimentos internos e externos, desta forma, percebemos que a melhora econômica da economia brasileira pode abrir novos horizontes para investimentos e melhorar o ambiente de negócio, deixando de ser vistos como um pária internacional e retomando um lugar de destaque no cenário internacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Circular, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 26/07/2023.

Violência nas escolas é também reflexo de quem nós somos, por Belinda Mandelbaum

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Instituições de ensino e famílias reproduzem lógicas de mercado e trabalho, causando adoecimento, intolerância e vergonha

Belinda Mandelbaum, Psicanalista e professora titular do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho da USP. Autora de “Psicanálise da família” (Artesã, 2020) e “Trabalhos com famílias em Psicologia Social” (Blucher, 2023)

Folha de São Paulo, 23/07/2023

Ficamos horrorizados ao tomar conhecimento de episódios de violência em escolas, que resultaram no brutal assassinato de crianças, adolescentes e adultos, e em traumas psíquicos que perduram naqueles que testemunharam esses acontecimentos de perto ou de longe.

Diante desse horror, nós, pais e educadores, nos perguntamos atordoados o que fazer para auxiliar nossas crianças a lidar com essa brutalidade, de forma a elaborarem pessoal e coletivamente o possível, e não perderem o gosto e a confiança na escola, sentimentos que ficaram abalados em tantos de nós.

Parte do modo de darmos sentido a esses acontecimentos é buscar explicações que, no geral, tendem a se deter nas patologias mentais dos perpetradores. E isto, de fato, é parte da explicação: os assassinos via de regra têm histórias pessoais traumáticas, resultantes de violências sofridas na infância e juventude, como maus tratos e humilhações em casa, na escola, na rua.

Mas, alguma reflexão que conseguirmos fazer sobre essas histórias pessoais já nos obriga também a ampliar o nosso foco de compreensão das causas e sentidos da violência, que partem da psicologia dos perpetradores e vão em direção à constatação de como atos de violência física, psicológica e moral fazem parte do cotidiano das instituições de ensino. Se manifestam em diversificadas práticas de agressão, desrespeito e humilhação, e ocorrem com maior frequência quando as vítimas são ou mostram-se mais vulneráveis por quaisquer diferenças que se apresentem.

Raça, gênero, orientação sexual, classe social, incapacidades físicas ou psicológicas são algumas delas.

Crianças e adultos no espaço escolar podem ser estigmatizados e discriminados por mínimas diferenças em relação aos padrões socialmente valorizados. Todos temos ou já tivemos essas experiências: há violência dentro e fora da sala de aula, nas atividades esportivas e recreativas –por exemplo, quando os jogos perdem as suas potencialidades de prazer, cooperação e socialização para se tornarem competições frenéticas e desesperadas pela superação e alcance dos melhores desempenhos.

A escola hoje, tal como uma empresa, foi tomada por uma lógica competitiva e avaliativa, reproduzindo em seu interior os modos hegemônicos das relações de mercado e trabalho. A escola “prepara” os alunos para o mundo da competição, da (auto)avaliação contínua, da exigência de incessante superação das metas, até o limite da exaustão. E não dar conta ou adoecer pode ser alvo de intolerância e vergonha.

Tudo ocorre tal como nos games, em que aos vencedores há a promessa de riqueza e sucesso, e aos perdedores resta a humilhação, a exclusão, até o extermínio. Isto está em toda parte hoje, como uma ideologia que tende a ser totalitária em nossas vidas. Está também dentro das nossas casas, nas expectativas e ansiedades que vivemos em relação a nós mesmos e aos filhos desde o nascimento.

Enfraquecer ou adoecer se tornou sinônimo de intolerância e vergonha. É preciso repensar esse modo de vida, pelo mal que nos tem causado no corpo, na mente e nas nossas relações em todos os espaços sociais, ainda que a tendência seja estarmos convencidos de que não há alternativa, não há outra forma de viver.

Mas, a conversa em casa e na escola a partir das violências ocorridas e seu impacto em todos nós, crianças e adultos, pode já ser parte de outra forma de viver. Assim, abrimos uma brecha, um espaço e um tempo para que o outro se sinta à vontade para falar do seu jeito, do que sente e pensa, de suas fantasias, temores e ansiedades. Sem julgarmos, apenas ouvindo, acolhendo e pensando juntos, podemos ser transformadores de modos profundos, surpreendentes e inusitados.

Quem sabe assim também possamos nos dar conta de nossas próprias violências.

Lula quer taxar os muito ricos, por Celso Rocha de Barros.

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Regime atual da taxação dos fundos exclusivos é aberração evidente

Celso Rocha de Barros, Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra) e autor de “PT, uma História”.

Folha de São Paulo, 23/07/2023

O governo Lula vai tentar cobrar mais impostos dos muito ricos. O Ministério da Fazenda planeja propor novas regras para tributar os fundos exclusivos, um tipo de aplicação financeira para quem tem muitos milhões para investir.

Dá até vergonha explicar isso, mas, pelas regras atuais, os ricos que aplicam no fundo exclusivo “Guedes Totoso” pagam menos impostos que a classe média que, por exemplo, investe no fundo de renda fixa “Merreca DI”. Para um resumo das vantagens que isso proporciona aos investidores, sugiro a reportagem de Lucas Bombana publicada na Folha da última quinta-feira.

O governo defende que os fundos dos milionários e os fundos da classe média sejam sujeitos às mesmas regras. Não chega a ser nada muito bolchevique.

Nesse ponto, você pode estar pensando: rapaz, o Brasil está com problema nas contas públicas faz muitos anos. Já tinham cortado dinheiro de tudo que era lado, e só agora notaram que milionário pagava imposto de menos?

Todo mundo sempre soube. Mesmo governos de direita, como Temer e Bolsonaro, cogitaram mudar a regra dos fundos exclusivos, mas não conseguiram fazer a proposta andar. Uma vez perguntei ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso porque não tornar os impostos brasileiros mais progressivos (isto é, fazer os ricos pagarem proporcionalmente mais).

Ele me respondeu que todo mundo sabia que tinha que ser feito, mas que os interesses contrários eram fortes no Congresso. Foi a mesma resposta que obtive quando entrevistei petistas graduados para meu livro sobre o PT: ninguém propunha porque todo mundo sabia que ia perder.

E se você leu isso e pensou, “bom, então o problema é o Congresso, é a democracia”, errou. No estatuto da Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido que apoiava a ditadura militar constava: “por um sistema tributário justo, instrumento do desenvolvimento econômico e de redistribuição social, através de crescente utilização dos impostos pessoais e diretos, de caráter progressivo” (artigo 2, alínea “i”). Apesar dessa declaração de intenções, a desigualdade de renda aumentou enormemente durante a ditadura.

Não é fácil cobrar imposto de rico.

Entretanto, há um bom motivo para que mesmo governos de direita recentes tenham pensado em mexer nos fundos exclusivos. O Brasil enfrenta uma crise fiscal terrível há muitos anos. Qualquer um que assuma a Presidência do Brasil vai ter que sair procurando de onde tirar dinheiro sem gerar uma crise social. Os pouco mais que 2.500 investidores que aplicam um total de mais de R$ 700 bilhões em fundos exclusivos provavelmente sobreviverão bem se tiverem que pagar um pouco mais de imposto. Isso não é verdade sobre a maioria dos brasileiros.

A proposta sobre os fundos exclusivos não deve ser confundida com outro projeto do governo, a reforma do Imposto de Renda, que deve ficar para o ano que vem e é um assunto mais complexo, que exigirá mais negociação.

O regime atual da taxação dos fundos exclusivos é uma aberração evidente, algo que faria o Von Mises cantar a “Internacional” tomado de indignação.

Torço para que isso torne a proposta do governo Lula mais fácil de aprovar. O exemplo dos outros governos mostra que talvez não seja o caso.
Mas é para pelo menos tentar essas coisas que os brasileiros votam na esquerda.

Levantar-nos da sociedade do cansaço, eis o desafio, por Luiz Marques

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Vivemos a era das doenças neuronais, sugere Byung-Chul Han. Terror é ameaça permanente. A hiper-atenção esgota corpos e mentes, produz o sujeito depressivo. Mas há uma brecha: decodificar o poder totalitário de hoje – o neoliberalismo

Luiz Marques – Outras Mídias – 17/07/2023

O filósofo radicado na Alemanha, Byung-Chul Han, em Sociedade do cansaço, considera que o fim da época bacteriológica coincide com a descoberta dos antibióticos, em 1928. A pandemia do vírus HIV, que a partir de 1977-78 vitimou 32 milhões de pessoas e o da Covid-19, que no biênio 2020-21 cravou 15 milhões de óbitos, para não citar os diversos tipos de gripe Influenza (A, B, C e D) e o vírus ebola, não o fizeram mudar de ideia. Sua ênfase recai nos imunizantes das moléstias virais, ignorando as tragédias mundiais. A publicação em português do ensaio, sem o posfácio autocrítico, demonstra que o autor segue com as antigas convicções ao propor um salto acrobático e arriscado, da biologia e da medicina, para a filosofia, a sociologia e a política.

O século XXI seria a época das doenças neuronais: depressão e transtornos, seja do déficit de atenção com síndrome de hiperatividade, seja da personalidade limítrofe. Já não morreríamos de infecção atacados por uma alteridade, mas de enfartos pelo excesso de positividade (o mesmo). A globalização suspendeu a negatividade (a diferença) ao trespassar as barreiras nacionais e impor um cosmopolitismo. Aqui, vale recordar: “A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, as relações produtivas e as relações sociais… A burguesia obriga as nações a adotarem o modo burguês de produção, constrange-as a abraçar o que ela chama de civilização”, como previra Karl Marx no Manifesto de 1848.

Na verdade (que liberta), o capital é que foi globalizado. Se no decênio de 1960 a “sociedade de consumo” foi alvo de críticas acadêmicas nos países desenvolvidos, mais de sessenta anos depois o problema nos países em desenvolvimento não é o consumismo, senão a dificuldade da população em acessar uma cesta básica. O autor abstrai do raciocínio a realidade. Apaga das estatísticas o aumento das desigualdades sociais, consequência das políticas neoliberais: a desindustrialização, a precarização do trabalho, o desemprego e a inempregabilidade por falta de absorção da mão de obra não qualificada perante os extraordinários avanços da tecnologia.

Para o professor da Universidade de Berlim, “o igual não leva à formação de anticorpos”, logo, “não é possível falar de força de defesa, exceto em sentido figurado”. O imigrante seria apenas um peso, ao invés de uma ameaça. Ora, no capitalismo, admitir que os indivíduos se constituem em peças da engrenagem sistêmica ou que a concorrência interindividual corrompe a solidariedade – é razoável, mas não nivela os desiguais. Nas últimas eleições presidenciais nos Estados Unidos e na Europa, o assunto preponderante entre os eleitores foi disparado a imigração. As tribos que esgrimem uma igualitarização tóxica não são parâmetro para universalizar as teses pós-modernas (ou pior) sobre a sociabilidade, in totum. Antes, reenviam à equação cognitiva dentro-fora.
Sociedade de desempenho

Diferentemente de Michel Foucault, Byung-Chul Han avalia que os estudos sobre as instituições totais da “sociedade disciplinar” – hospitais, presídios, quartéis, fábricas, seminários – cederam a instituições como os bancos, laboratórios de genética, aeroportos, escritórios, shopping centers. Correspondem melhor à “sociedade de desempenho”, em que “os habitantes não se proclamam mais sujeitos de obediência, mas sujeitos de desempenho e produção; são empresários de si mesmos”. Note-se que a matriz do empreendedorismo, a desindustrialização, é sequestrada da tela.

A sociedade disciplinar era caracterizada pela negatividade (proibição, coerção). A sociedade do desempenho, com a “desregulamentação crescente, vai abolindo-a”. A passagem a seguir é muito ilustrativa: “O poder ilimitado é o verbo modal positivo da sociedade de desempenho. O plural coletivo da afirmação Yes, we can expressa precisamente o caráter de positividade da sociedade de desempenho. No lugar de proibição, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa e motivação.

A sociedade disciplinar gera loucos e delinquentes. A sociedade de desempenho produz depressivos e fracassados”. Na imagem descritiva, a luta de classes e o malogro da meritocracia passam ao largo. A condenação ecoa uma lamentação resignada, sem bússola. Um campo fértil para a literatura de autoajuda e as palestras motivacionais de neurolinguística a empresários.

O impacto do neoliberalismo no continente europeu resultou na guinada da social-democracia para la pensée unique, que fez tábua rasa da direita e da esquerda. De repente, todos estavam a favor da austeridade, do equilíbrio fiscal e da contenção dos gastos sociais. Quase batendo à porta de Murray Rothbar, fundador do anarcocapitalismo, para o qual a organização social deve pautar o axioma “o Estado é um mal desnecessário”. Isso, apesar das lições catastróficas da crise de 2008 evidenciarem a imprescindibilidade da regulamentação estatal. Vide a negligência fatal da segurança privada na tragédia do submersível, que levou bilionários ao cemitério do Titanic.
“Liberalização nem sempre cria mais produtividade. É preciso estimular gastos de governos em áreas que tragam retorno (saúde, educação, etc.)”, reconhece agora o comentarista do Financial Times, Martin Sandbu, na contramão dos dogmas monetaristas dos anos 1990 que criminalizavam investimentos essenciais. Não obstante, o produtivismo extrativista a expensas do meio ambiente prossegue colado como um kárman ao inconsciente social da sociedade de desempenho, em perseguição do lucro imediatista. Conforme o velho Marx, o processo econômico em curso marcha independentemente da vontade do sujeito: “assemelha-se ao feiticeiro que não pode controlar as potências internas que pôs em movimento com suas palavras mágicas” (op.cit.).
Uma lacuna da narrativa

Byung-Chul Han realiza uma espécie de fenomenologia dos sentimentos que afloraram na dita pós-modernidade, a começar pelo tédio. Explicaria então as pessoas, de um lado, rejeitarem o ato da contemplação e, de outro, correrem a maratona da hiper-atenção, com o radar em múltiplos sinais e uma certeza somente – a derrota ao final. Feito um animal na selva que ao comer cuida para não ser comido, os humanos seriam entes irrequietos. Sem a paciência dos zen-budistas, absolutizam a vita activa e afundam na histeria e no nervosismo do redemoinho da ação.

“A sociedade do cansaço, enquanto sociedade ativa, desdobra-se lentamente numa sociedade do doping. A incessante elevação de desempenho leva a um enfarto da alma”. A pressão por resultados, a ausência de regramentos e os esgotamentos causados pela super positividade induzem ao uso de ansiolíticos e antidepressivos. Um fenômeno que Christian Dunker com senso de humor denomina “síndrome de domingo à noite”, momento entre o ócio e o ativismo.

“O cansaço profundo afrouxa as presilhas da identidade. As coisas cintilam e tremulam em suas margens. Tornam-se mais indeterminadas, permeáveis, e perdem certo teor de sua decisibilidade”.

Quem somos, de onde viemos e para onde vamos. As célebres perguntas não calam. O autor sul-coreano metaboliza a subjetividade aflita do tempo marcado pela irracionalidade da hecatombe climática, do terror da guerra nuclear, da erosão da democracia e do espectro de novas pandemias. Motivos para combater a distopia da extrema direita, a necropolítica, na acepção foucaultiana do soberano que controla a mortalidade e define a vida como uma manifestação do poder. É hora de mobilizar a opinião pública e superar os maus agouros coletivos.

O neoliberalismo, isto é, a nova razão do mundo, serve de pano de fundo ao ensaio de Byung-Chul e ao filme O lobo de Wall Street, de Martin Scorsese, estrelado por Leonardo DiCaprio. Contudo, na obra de arte cabia evitar o conceito para valorizar as emoções. Em uma reflexão teórica, o silêncio sobre a sociedade que não ousa dizer o seu nome é uma grande lacuna da narrativa. Não contribui para o trabalho de decodificação do totalitarismo do livre mercado. Esse é o ponto central. No teatro da política, não existe um diagnóstico sem responsabilização do diretor do espetáculo e sem um prognóstico com vistas à reordenação do papel dos atores, e da plateia.

Tempos estranhos

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Vivemos momentos estranhos na sociedade internacional. Os valores estão invertidos, os ganhos monetários e financeiros se tornaram o grande objetivo social, onde os indivíduos estão sendo vistos através de seu poderio econômico, os valores estão centrados no imediatismo, no individualismo e na busca frenética pelas riquezas materiais, deixando de lado valores centrados no humanismo, na solidariedade e na busca do bem-estar social, desta forma estamos caminhando a passos largos a uma fragilização civilizacional.

Nesta sociedade, encontramos descobertas científicas e tecnológicas que contribuíram para novos horizontes de melhorias sociais, doenças vistas como incuráveis, responsáveis por ceifar milhões de vidas, foram controladas por novas drogas, novos medicamentos e tratamentos revolucionários. Regiões inóspitas e inabitadas foram transformadas pela ciência, pelas pesquisas científicas que contribuíram para melhorar o clima e a vegetação, levando a riqueza material, a fartura alimentar e a melhora das condições de vida da população, deixando a pobreza e a indigência nos registros dos livros e nas anotações acadêmicas.

Vivemos numa sociedade que a tecnologia se transformou no agente instrumental da transformação social e econômica, trazendo uma aproximação física entre os indivíduos, aumentando a comunicação entre os seres humanos, barateando novos produtos, máquinas e serviços que estão revolucionando as relações sociais, alterando o convívio das pessoas, mudando seus comportamentos, modificando seus relacionamentos e impactando sobre as convenções sociais, criando novos modelos de negócios, novos desafios e oportunidades. Nesta sociedade, encontramos várias contradições, tais como uma tecnologia que nos aproxima virtualmente e, ao mesmo tempo, nos torna cada vez mais distantes fisicamente, mais solitários e infelizes, num verdadeiro paradoxo contemporâneo.

A atual sociedade revolucionou as descobertas espaciais, levando satélites, criando estações estelares e investindo trilhões de dólares para conhecer os segredos planetários e, ao mesmo tempo, percebemos que estamos se degradando com conflitos íntimos e pessoais, trabalhamos em excesso, acumulamos cada vez menos recursos monetários e estamos envoltos em crises existenciais crescentes e numa busca generalizada pelo sentido da vida, levando muitas pessoas a se entregarem em soluções milagrosas e elixires mágicos que, posteriormente, aumentam sua indigência emocional e afetiva. Neste cenário, os especialistas em saúde pública acreditam que estamos vivendo um incremento de desequilíbrios emocionais e espirituais, com aumento da depressão, das ansiedades crescentes e um aumento generalizado dos suicídios diretos e indiretos, ceifando milhões de pessoas em todas as regiões do mundo.

Desde o desenvolvimento industrial da humanidade, encontramos novas técnicas de gestão, novos instrumentos de incremento da produtividade, elevando o conhecimento da sociedade, melhorando os sistemas educacionais e, ao mesmo tempo, percebemos que estamos degradando mais efetivamente o meio ambiente, levando inúmeras espécies humanas à extinção, aumentamos a temperatura do Planeta Terra e estamos degradando regiões inteiras e plantações tradicionais, gerando riquezas para poucos e espalhando a miséria e a indigência para muitas pessoas do mundo, neste cenário, ainda encontramos inúmeros céticos, por desconhecimento ou por conveniência?

Vivemos momentos preocupantes e tempos estranhos, como destacou o sociólogo polonês radicado em Londres Zygmunt Bauman, onde as tecnologias da comunicação estão sendo utilizadas para espalhar inverdades e ressentimentos, aumentando os conflitos sociais e políticos, aumentando as tensões sociais e os conflitos dentro das comunidades, exigindo dos governos nacionais uma atitude cada vez mais agressiva para controlar os desequilíbrios, gerando mais repressões, mais prisões e mais dispêndios econômicos e fragilizando os orçamentos públicos.

Vivemos momentos estanhos, assustadores e preocupantes, neste cenário, precisamos de lideranças capacitadas e, urgentemente, repensar o modelo econômico dominante na sociedade brasileira, que estimular o rentismo, o imediatismo e o individualismo que aprofundam as desigualdades que caracterizam a sociedade nacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre e Doutor em Sociologia.

Carta Mensal – Junho 2023

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O mês de junho de 2023 completou seis meses do governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva, um momento de grandes expectativas no cenário econômico, além de grandes incertezas políticas e inseguranças sociais, geradas por movimentos de polarizações constantes, que levaram o governo a adotar políticas serenas com o objetivo de gerar maiores instabilidades no campo econômico, cujo potencial é elevado e pode criar graves constrangimentos para o governo e, ao mesmo tempo, um conjunto de medidas que deveriam iniciar o sepultamento de políticas anteriores criadas e estimuladas no governo anterior.

Destacamos neste mês grandes desafios no campo econômico, onde destacamos as votações do chamado Novo Arcabouço Fiscal (NAF), medida criada pelo governo com o intuito de substituir o modelo anterior, chamado de Teto de Gastos, implementado no governo de Michel Temer e que congelava os gastos públicos num período de vinte anos, mesmo sabendo que os recursos fiscais fossem aumentados, gerando impactos sobre os chamados gastos sociais e públicos.

Depois de uma costura cotidiana, onde o Ministro da Fazendo Fernando Haddad, conseguiu aprovar o novo arcabouço, contando com o forte apoio do governo federal, além de seus integrantes e do Presidente da Câmara, Arthur Lira, o grande e poderoso no cenário nacional, detentor de forte representatividade na eleição de fevereiro no Congresso Nacional.

O chamado Novo Arcabouço Fiscal (NAF) pode ser visto como uma forte vitória do governo Lula da Silva, angariando força política perante os mercados e um fortalecimento do Ministro da Fazendo, visto como muitos políticos e empresários, o próximo candidato para a próxima eleição presidencial, se o atual governante não aceitar uma reeleição.

O NAF pode ser visto como um acerto entre o governo e o mercado, como forte potencial de elevar os indicadores econômicos nacionais, onde destacamos a valorização da moeda nacional, que o dólar saiu de mais de R$ 5,40 no começo do ano e, no momento, está na casa dos R$ 4,80, um movimento interessante que está contribuindo ativamente para melhorar o ambiente de negócio e reduzir as taxas de inflação, aliviando os preços internos e melhorando a renda do consumidor nacional e criando novos horizontes para o segundo semestre.

Outro assunto que precisamos destacar é os dados referentes a inflação, que está dando sinais claros de redução, depois de anos de forte crescimento e que levou o Banco Central a elevar as taxas de juros ao patamar de 13,75%, a maior taxa de juros entre as economias internacionais, que contribuiu para que o comportamento da economia nacional fosse preocupante e assustador, reduzindo os investimentos produtivos e elevando os recursos ligados aos setores rentistas da economia nacional.

A queda da inflação está ligada a variados movimentos, onde destacamos a chegada de um novo ambiente externo marcado por viagens internacionais e novos acordos comerciais com outras nações, onde destacamos as medidas adotadas na viagem da China, onde várias empresas estão sinalizando novos investimentos produtivos para o Brasil, destaque para o setor automobilístico, que está recebendo novos projetos bilionários, como a chegada da empresa BYD, conglomerado chinês líder em baterias elétricas, além de carros, caminhões e outros produtos variados.

A chegada de novos investimentos deve se somar aos novos acordos com a renovação do Mercosul, com conversas bilaterais e os acordos comerciais com a União Europeia que, no momento, está sendo rediscutido e futuramente será implementado totalmente ou parcialmente, só o tempo pode responder essa indagação.

A chegada de recursos internos, valorizou a moeda nacional, além de novos horizontes fiscais, com o NAF, que podem melhorar o ambiente de negócios, melhorando as condições econômicas e produtivas, atraindo investimentos externos e novas levas de geração de emprego.

Destacamos ainda a Reforma Tributária em curso na economia nacional, com potencial de simplificar as questões tributárias, diminuindo os custos com a questão dos impostos, vistos como um grande emaranhado complexo e centrado na ineficiência e nos desperdícios elevados, desta forma, a aprovação dessa reforma na Câmara dos Deputados pode trazer boas sinalizações no horizonte para a economia brasileira e atraindo novos investimentos internos e internacionais.

Muitos foram os avanços neste seis meses de governo, embora muitos críticos acreditem que as mudanças sejam pontuais, percebemos que muitos analistas estão sendo excessivamente críticos com as mudanças neste período, se esquecendo que se o governo anterior continuasse no poder, as questões econômicos seriam muito mais agressivas e degradantes, com isso, percebemos que falta uma maior complacência com um governo que assumiu a poucos meses, depois de um verdadeiro tsunami de degradação e destruição.

Embora destaque as muitas medidas positivas, é importante destacar, que o governo se tornou muito dependente do presidente da Câmara dos Deputados, responsável por grandes vitórias do governo, mas sabemos que todas as vitórias capitaneadas por Arthur Lira, tem uma fatura salgada para o governo nacional, como aconteceu no período da presidente Dilma Rousseff que culminaram no impeachment.

Destacamos ainda os movimentos de reindustrialização da economia brasileira que estão em curso e estão apresentando frutos interessantes, embora saibamos que os verdadeiros frutos tendem a demorar muitos anos, mas é fundamental que essa política seja estimulada por todo governo, uma medida de governo que una todos os setores econômicos, políticos e sociais, como uma forma de transformar um projeto é uma verdadeira Missão, como destaca a economista italiana Mariana Mazzucatto.

Neste cenário, destacamos a desoneração de carros de até 120 mil reais, como forma de estimular a produção, reduzir os estoques das montadoras e dar um alívio para a economia nacional, mobilizando os setores econômicos e produtivos, garantindo empregos e movimentando a economia.

A medida foi criticada por muitos críticos, que acreditam que essa medida piora as condições das cidades, aumentando a quantidade de carros circulando nas vias públicas, aumentando a emissão de dióxido de carbono e estimulando um setor produtivo com forte impacto sobre a economia linear em detrimento da chamada economia circular.

Depois de seis meses, os avanços são visíveis, embora saibamos que os desafios contemporâneos sejam elevados e as perspectivas podem ser positivas, mesmo sabendo que os riscos são elevados e as preocupações são muitas e prescinde de atenção constantes…

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Poder e progresso, por Hélio Schwartsman.

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Livro mostra que avanços tecnológicos podem virar concentração de renda ou prosperidade compartilhada

Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”.

Folha de São Paulo, 16/07/2023

Daron Acemoglu, um dos autores do best-seller “Por que Nações Fracassam”, volta à carga com mais um livro importante. Trata-se de “Power and Progress” (poder e progresso), desta vez em parceria com Simon Johnson.

Os autores admitem, por óbvio, que avanços científicos e tecnológicos estão na base da era de bem-estar material em que nos encontramos. Hoje, mesmo os mais pobres vivem vidas mais longas, mais saudáveis e com acesso a confortos com que nossos ancestrais de 300 anos atrás nem sequer podiam sonhar. O ponto da dupla é que nem todos os progressos tecnológicos se convertem automaticamente em prosperidade para todos.

Em algumas circunstâncias conseguimos transformar os avanços em bem-estar compartilhado, mas em várias outras o que se vê são elites se apropriando dos ganhos de produtividade, podendo até mesmo levar a maioria a experimentar uma piora nas condições devida. Foi o que ocorreu, por exemplo, com vários dos grupos que trocaram a caça/coleta pela agricultura/pastoreio. Foi também o destino das primeiras levas de trabalhadores sob a revolução industrial.

Acemoglu e Johnson analisam mil anos de história e tentam mostrar as razões para a diferença. Os detalhes obviamente variam muito, mas a repartição dos ganhos só ocorreu de forma mais equitativa quando a sociedade conseguiu desenvolver instituições, como sindicatos, imprensa etc. que lograram fazer com que as decisões sobre a tecnologia e a organização do trabalho não ficassem unicamente a cargo das elites.

Com esse instrumental, a dupla também aborda vários temas quentes do momento, como a inteligência artificial e as ameaças à democracia representadas pelas redes sociais. No capítulo final, eles elencam medidas que ajudariam a robustecer a sociedade civil, transformando-a numa força capaz de contrabalançar a tendência de concentração de poder e riqueza nas mãos de grupos cada vez mais restritos.

Professores, uni-vos!, por Jean Pierre Chauvin

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A Terra é Redonda -11/07/2023

Iean Pierre Chauvin

Um voto de protesto contra o discurso nefasto sobre o duro, incompreendido e desvalorizado ofício de professor

Uma das notícias mais tristes, nos últimos anos, foi constatar a existência de colegas que não só votaram no mitômano especializado em matar,[i] mas continuam a defendê-lo em 2023, apesar de tudo o que ele negou, distorceu, corrompeu e desfez; a despeito de todas as ignomínias que cometeu; apesar do absoluto deboche com que desgovernou as pessoas, as coisas, as culturas, as leis e as contas do país, em favor de si mesmo e de seus asseclas, todos situados muito abaixo da mediocridade.

Ora, se nem mesmo a hecatombe sanitária por negligência federal foi capaz de sensibilizar alguns professores durante a pandemia, o que o discurso leviano do seu filho poderia despertar? É nisso que tenho refletido desde que o deputado comparou “professores doutrinadores” a “traficantes” – em prejuízo moral dos educadores –, durante o final de semana, em ato que “coincidiu” com os seis meses do atentado aos três Poderes da República, no dia 8 de janeiro de 2023.

Alguém objetará que resulta inútil propor qualquer forma de diálogo com essa turma nefasta; mas, persisto.

Comecemos pela suspeita de que pouca gente lembra ou sabe que entre os antigos romanos, o verbo “doutrinar” subjazia o ato de lecionar, ou seja, era prática inerente à relação entre Mestre e Discípulo (veja-se o que ensinou Antônio Geraldo Cunha em seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa).

Entretanto, o correr dos séculos, a mudança dos regimes, as novas formas de conceber o mundo, emprestaram caráter pejorativo ao termo doutrinação. Se até o final do Oitocentos, doutrina traduzia um conjunto de preceitos e, por extensão, a ideia de sistema, o fato é que a palavra assumiu caráter negativo ao longo do século XX, especialmente quando ela passou a ser empregada como sinônimo de perversão, desvio ético e/ou intelectual dos “puros” alunos, por obra do professor “doutrinador”.

Se resgatar a etimologia de doutrina pode resultar em argumento inconsistente (já que foram atribuídas muitas camadas de sentido a essa palavra, ao longo dos séculos), consideremos o uso que Paulo Freire fez dela em Pedagogia do Oprimido – publicado em 1968. Contrariando o que disparam seus detratores sem tê-lo lido, repare-se que em nenhum momento ele defendeu o papel doutrinário do professor, mas o seu propósito libertário, no trabalho com os alunos.

Uma explicação possível. A concepção freiriana de ensino-aprendizagem pressupunha solidariedade contra antagonismo; educação crítica em lugar de escolarização ingênua. Em suma, superar a contradição oprimido-opressor envolveria a relação horizontal entre educador-educando e educando-educador.

A lição pode soar óbvia aos colegas familiarizados com a extensa obra de Paulo Freire; mas, provavelmente será condenada como peça de pedagogia “doutrinária” pela extrema direita e seus adeptos – especialistas em ressentimento que fingem acreditar nos absurdos que eles mesmos criam e disseminam, em nome de quimeras como “Pátria” (quintal dos EUA), “Deus” (da prosperidade), “Família” (das aparências) e “Propriedade” (do latifúndio improdutivo) etc.

O que seres dessa estirpe simulam esquecer é que não há professor neutro, tampouco ensino isento de parcialidade. O que eles teriam a dizer sobre coachs apologetas do neoliberalismo, que transferem toda a cota do insucesso para o indivíduo “fracassado”? Sobre instrutores que “ensinam” o empreendedorismo como se fosse um valor absoluto, alheio aos limites do indivíduo e infenso às assimetrias sociais? Sobre líderes “religiosos” que espoliam os fiéis mais carentes, em benefício próprio? Sobre sujeitos na política que se divertem enquanto alvejam os profissionais da educação?

Professores, uni-vos!

Jean Pierre Chauvin é professor de Cultura e literatura brasileira na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros de Sete Falas: ensaios sobre tipologias discursivas.

A economista que desmascarou a “austeridade”

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A poucos meses de lançar seu livro no Brasil, Clara Mattei sustenta: “Falta de recursos” é armadilha ideológica. Dinheiro, os Estados criam o tempo todo. Corte de serviços públicos visa disciplinar as maiorias, forçando-as a aceitar qualquer trabalho

Outras Mídias – 06/07/2023

A professora e escritora Clara Mattei é objetiva: já no título de seu mais recente livro ela fala da conexão direta entre austeridade econômica e o fascismo. Em The Capital Order: How Economists Invented Austerity and Paved the Way to Fascism (ainda sem título em português – em tradução livre: “a ordem do capital: como os economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo”) ela destrincha essa relação. O livro será lançado no Brasil ainda este ano pela editora Boitempo.

Mattei foi a convidada do Brasil de Fato Entrevista desta semana. Ela contou sobre o processo para elaboração da obra, que é fruto de dez anos de estudo. Italiana radicada nos Estados Unidos (ela é professora de Economia na The New School for Social Research, em Nova Iorque), a pesquisadora cita personagens como Benito Mussolini, Donald Trump e a atual primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, como frutos políticos de um caminho trilhado com apoio na lógica da austeridade econômica.

“Para o capitalismo funcionar, a maioria das pessoas deve estar desempoderada, precarizada e
dependente do mercado. E é isso que a austeridade faz. Tira recursos da maioria das pessoas, que ganham dinheiro através de um salário, e entrega a uma minoria, cuja riqueza vem de patrimônios e rendas”, afirma ela, que destaca que a alternativa a esse sistema passa pela organização das pessoas em suas comunidades locais.

A senhora passou dez anos escrevendo o livro que nasceu da sua tese de doutorado. Como e quando decidiu se aprofundar neste assunto?

Tudo começou quando estava vivendo os anos de grande austeridade de Mario Monti, na Itália. Ele chegou ao poder após a crise da dívida soberana em nosso país e estava estudando e vivendo na pele, assim como a maioria das pessoas no mundo ainda vive hoje, os efeitos da austeridade, a redução de verbas para a educação e saúde pública. Vi as pessoas na Itália ficarem cada vez mais pobres a olhos vistos. Era um país em que não tínhamos pessoas morando na rua e as ruas estavam ficando cheias de gente. Não havia moradia.

Mas você passou dez anos pesquisando e procurando material em arquivos, certo?

Sim, é um trabalho em economia histórica e política. É baseado em fontes primárias e na reconstrução do passado através de uma nova perspectiva, analisando material que ainda não havia sido publicado. O tipo de debate sobre austeridade que estava ocorrendo na mídia, na política pública e até entre movimentos de esquerda era muito insatisfatório porque era muito apolítico.

Transformaram a austeridade em uma ferramenta técnica para gerir a economia e a discussão era se a austeridade estava ou não funcionando para equilibrar o orçamento e promover crescimento. Era um debate sem solução. E não muito útil para entender por que a austeridade continuava emergindo mesmo que claramente não estivesse gerando crescimento, nem ajudando a resolver a questão da dívida.

Então o estudo histórico é muito importante porque nos dá uma análise com perspectiva de classe que estava ausente no debate econômico contemporâneo, que era muito tecnocrático. A tentativa era então olhar para o que aconteceu 100 anos atrás e mostrar como a austeridade tem uma clara lógica política que visa manter todos nós em uma situação de precariedade, de dependência do mercado, desempoderando assim a população para que o sistema se proteja e mantenha a ordem do capital, que é o título do livro: A ordem do capital, para se manter intacto.

Se olharmos para a história, isso só é visível porque aconteceu em um momento em que o capitalismo foi muito contestado depois da Primeira Guerra, e assim realmente vemos como a austeridade operava como uma contraofensiva usada pelas elites para impedir qualquer alternativa ao nosso sistema.

Na apresentação do livro, você fala sobre várias crises econômicas e políticas em países do mundo todo, já que essas crises e essa austeridade são intrínsecas à nossa sociedade moderna.

Nos últimos anos, mais uma vez vimos uma crise do neoliberalismo no mundo todo, algo que já se dizia no início do século passado. Esse modelo econômico não é o mais adequado, certo?

Sim, com certeza. Estamos em outro momento em que as pessoas não acreditam no sistema, penso eu.

Aliás, é por isso que a austeridade voltou com força total. Não só no Brasil. Eu moro nos Estados Unidos e o motivo pelo qual o Federal Reserve, o [equivalente ao] Banco Central, está aumentando a taxa de juros é porque a maioria das pessoas não está voltando ao trabalho.

Muitos trabalhadores estadunidenses, 46 milhões, em 2022, largaram seus empregos porque estão cansados da exploração e porque veem que o sistema não trabalha para eles e sim para uns poucos que enriquecem constantemente. Então é nessa situação que a austeridade deve voltar para nos convencer que, na verdade, estamos enganados e não existe outra saída a não ser através do sacrifício dos trabalhadores e, em última instância, do corte de salários para atrair a confiança dos investidores.

E o capital parece tentar se reestabilizar e se preservar o tempo todo. Mesmo diante de uma crise, os bancos, o sistema inteiro, e até os governos liberais, ainda tentam protegê-lo.

Com certeza. Mas acho que existe aí uma mensagem de esperança que surge quando levamos a História a sério: o capital não é fixo, não é algo dado e não é uma coisa, não é um objeto. É uma relação social e se traduz em uma maioria que aceita sua condição e aceita sua condição de vender sua capacidade por um salário.

A relação social não é de maneira alguma estática. É dinâmica e pode ser subvertida. É dinâmica e pode ser subvertida. Então a realidade é que a ordem do capital é muito frágil. E é por isso que a austeridade é tão cara a ela, porque a protege de todas essas demandas de transformação social que vão surgindo.

A mensagem aqui é que precisamos saber como a classe dominante opera para preservar um sistema injusto. Precisamos parar de idealizar o capitalismo como um sistema que pode ser reformado e que tem flexibilidade para incorporar nossas necessidades, e perceber que o capitalismo tem limites rígidos. É um sistema que só cresce e produz para gerar lucro e isso requer austeridade.

A tese central aqui é que a austeridade não é uma exceção no capitalismo, não é algo que só se vê nas etapas neoliberais, começando nos anos 80. Ela é muito mais intrínseca à longa história do capitalismo. Está no DNA do sistema exatamente porque, para o capitalismo funcionar, a maioria das pessoas deve estar desempoderada, precarizada e dependente do mercado. E é isso que a austeridade faz. Tira recursos da maioria das pessoas, que ganham dinheiro através de um salário, e entrega a uma minoria, cuja riqueza vem de patrimônios e rendas.

A pesquisa aborda os primeiros anos do século 20 até a atualidade. E a austeridade esteve sempre presente, como você acaba de dizer, desde o período entreguerras, que é onde começa a pesquisa.

Você disse que a austeridade foi uma ferramenta técnica e despolitizada para a ascensão de lideranças autoritárias. Por que unir Mussolini, Jair Bolsonaro, Viktor Orbán e Giorgia Meloni, por exemplo? A pergunta é: “o que os une?”

É muito importante aqui dar um passo para trás. No livro, faço uma reconstrução da crise do capitalismo após a Primeira Guerra, há exatos 100 anos. Em 1919 e 1920, a população em geral tinha desistido do capitalismo, pensando que haveria um futuro melhor após a reconstrução pós-guerra. E todos esses experimentos que surgem de conselhos de trabalhadores demandam democracia econômica, o que significa que as pessoas estavam se reapropriando da produção e distribuição de recursos. Isso estava acontecendo concretamente.

Meu foco é o movimento de Antonio Gramsci, em Torino, L’Ordine Nuovo, em que é possível ver um esforço real não só para pensar diferente, como também para agir diferente. E só se podia agir diferente realmente pensando diferente e só se podia pensar diferente agindo diferente. Então é a importância da prática, de uma sociedade diferente nascer de experimentos dentro das fábricas e também no campo, em que as pessoas se reapropriaram dos meios de produção e da organização do trabalho.

Nessa situação explosiva, a burguesia ficou muito assustada. Porque, é claro, ela se beneficiava do capitalismo, queriam protegê-lo e qualquer forma de distribuição e democracia econômica teria significado, de certo modo, o fim dos seus privilégios. É nesse momento em que vemos emergir a austeridade como uma contraofensiva e aqui há dois fatores relacionados à sua pergunta. O primeiro é que os economistas participaram muito ativamente na construção de modelos econômicos supostamente “neutros”, teorias “neutras”, conhecimento científico, para dizer às pessoas que elas eram ignorantes, que elas não entendiam e, em suma, que estavam vivendo por conta própria e tinham que aceitar a verdade dura, como diziam, do trabalho duro e abster-se de consumir.

Então esse lema de austeridade, “consuma menos, produza mais”, foi imposto à população italiana e inglesa. Esses dois países são o foco dos meus estudos porque meu interesse é mostrar que a austeridade surge onde a democracia econômica é mais palpável. E naquele momento na Europa as pessoas tinham ganhado o direito ao voto, por exemplo. Mas o que se vê é uma aliança entre economistas e governos. Os economistas são convocados pelos governos para ajudar a impor à população a austeridade. E a austeridade veio em uma variedade de formas. Não foram só cortes de gastos, foi, em primeiro lugar, cortes de gastos sociais, taxação regressiva. Então houve aumento em impostos sobre o consumo, como ainda vemos no mundo todo hoje, mais impostos para pessoas físicas e corte de impostos para ricos e impostos corporativos ou sobre patrimônio etc.

Também se tratava de aumentar as taxas de juros, que também vemos hoje, ou seja, austeridade monetária, e, por último, aquilo que chamo de medidas industriais, que são ataques diretos a sindicatos, privatização, desregulação do trabalho e arrocho salarial. Então essa tríade da austeridade; fiscal, monetária e industrial; foi imposta à população também graças a economistas que estavam dizendo: “Este é o caminho certo a seguir e somos especialistas e objetivos”. Nesse sentido, fica evidente que os economistas desempenharam um papel bastante classista, participaram nessa guerra de uma classe contra o resto dos cidadãos e isso poderia ter sido feito de outro jeito, como foi na Inglaterra, onde a democracia liberal usou a austeridade contra seu povo e isso aumentou o desemprego e assim disciplinou os trabalhadores.

Eles tiveram que deter as greves, voltar ao trabalho com um salário bem menor e em piores condições. Voltando à pergunta, na Itália, vemos que Benito Mussolini, o fundador do fascismo, foi o mais eficiente implementador e aprendiz da austeridade. Mussolini chegou ao poder através de uma eleição, não um golpe, assim como Giorgia Meloni e Orbán hoje. Mas com uma intenção explícita de impor austeridade, dizendo às pessoas para não se preocuparem porque iriam fazer os cidadãos italianos pararem as greves, as reclamações e voltarem ao trabalho.

Agora, eu acho que hoje vemos muitos desses políticos “autoritários parafascistas” emergirem porque as pessoas estão insatisfeitas com a austeridade. A austeridade venceu a um ponto em que não há mais a noção de classe: as pessoas pensam que são indivíduos [isolados], e é uma típica mensagem de austeridade: “Não há classes, não há antagonismo, só indivíduos. E são os empresários que lideram a máquina econômica, não os trabalhadores.”

Então, no caso da Itália, para mim, Meloni chegou ao poder porque prometeu redistribuição de renda, e é claro que não cumpriu, porque assim que assumiu o poder mais uma vez impôs austeridade, como Mussolini e outros regimes autoritários.

Sobre isso, você diz que a austeridade não teve sucesso em estabilizar a crise econômica, mas teve sucesso em estabilizar as relações de classe. Estamos vendo agora uma mudança global nas relações de trabalho. Os sindicatos estão enfraquecidos, perdendo poder em alguns países. Como poderíamos ver nascer uma nova organização de trabalhadores?

Tenho algumas ideias sobre isso. Em primeiro lugar, mesmo se existe essa ideia de que os trabalhadores estão enfraquecidos, isso se deve à ação da austeridade sobre nossa vida por mais de 100 anos. Ela foi muito bem-sucedida, como você disse. A austeridade não teve sucesso em atingir os objetivos estabelecidos de crescimento econômico e pagamento da dívida, mas teve muito sucesso em atingir seu verdadeiro maior objetivo: garantir que as pessoas não pensem que podem viver em outro tipo de sociedade, aceitem sua condição de trabalhadores assalariados. Mais uma vez, impondo a ordem do capital. E isso também é uma armadilha para a mente porque os modelos econômicos reafirmam que os trabalhadores não importam, só os empresários.

Então é justo e correto afastar os recursos dos preguiçosos e favorecer os supostamente meritórios. Eles oferecem justificativas para essas políticas de extração de todos nós.

Claramente a austeridade teve sucesso e vemos que, historicamente, os trabalhadores perderam poder, o poder de barganha, o poder de imaginar um novo futuro. Dito isso, quero chamar atenção ao fato de que, no capitalismo, a luta de classes nunca para. É uma constante. Nosso sistema está em movimento, é um processo, não há nada fixo, mesmo que os economistas queiram que acreditemos que há algo fixo. Porque acreditar que algo é fixo nos desempodera e aprisiona nossa imaginação.

Então quero dizer que, é claro, existe um motivo por que a coisa não vai tão bem para os trabalhadores neste momento histórico, mas não é à toa que existem muitas mobilizações novas.

Nos Estados Unidos, por exemplo, é o setor de serviços: pessoas em restaurantes, hotéis, em áreas em que normalmente o trabalho é muito precarizado e individualizado, estão agora se sindicalizando. Starbucks, Amazon, Chipotle. E isso está assustando muito as classes dominantes.

Eu diria que estamos em um momento, na verdade, em que existe novamente certa turbulência. Claro, não é o espírito revolucionário de 100 anos atrás, mas há muita demanda por libertação.

Respondendo a sua pergunta, me sinto muito esperançosa. Há pouco estive na África do Sul, apresentando o livro, e me organizei e me encontrei com ativistas das townships [áreas urbanas comparáveis a favelas]. As townships são lugares onde o apartheid ainda existe, em termos de precarização econômica. No entanto, há muita energia no território, muita gente das novas gerações que abandonou as velhas categorias e estão pensando o novo.

Acho que o importante, para avançarmos, é abrir espaço para essas iniciativas que buscam recuperar independência e autossuficiência. Trata-se de romper a principal armadilha, que é a dependência do mercado. O que quero dizer? Que a maioria de nós, para poder viver, precisa ter dinheiro no bolso. Se quiser comer, tem que comprar algo no supermercado. Se quiser morar, tem que pagar aluguel. Se quiser ser curado, tem que pagar pelos médicos. Se quiser ir à escola, muitas vezes tem que pagar. Este é o resultado da austeridade. A mercantilização de todos os aspectos da nossa vida para nos desempoderar cada vez mais.

Acho que a primeira missão aqui é ser capaz de recuperar nosso poder através da organização, de conselhos, da vizinhança, de atividades locais, de formas de produzir e distribuir por nossa conta. Assim não dependeremos do salário dos capitalistas e não gastaremos nosso dinheiro em supermercados, para que o dinheiro não vá embora assim que entrar. Precisamos que os recursos permaneçam dentro da comunidade. E acho que esse é um primeiro passo importante para engajar as pessoas na ideia de organizar, colaborar e perceber que não é suficiente só votar nas eleições.

Votar nas eleições é um ato muito superficial. E é algo que mantém viva a servidão econômica.
Então é preciso romper e combater a servidão econômica. E esse seria um primeiro passo em um projeto muito mais ambicioso, que vai além da democracia social. É a derrubada das relações salariais em si. Repito que isso está acontecendo. Está acontecendo nas townships, eu estive lá há pouco. Está acontecendo no Chile, onde os conselhos são fortes. Acho que está acontecendo no mundo todo, mas a mídia não fala disso. Mas é suficiente para se envolver, ir para a rua, conhecer sua vizinha, ver que essas realidades existem e a austeridade está aí justamente para parar esses processos. Mas nós precisamos lutar contra isso.

Você mencionou a viagem à África do Sul. Seu livro será publicado no Brasil no segundo semestre, editado pela Boitempo. Está preparada para esse tour ao redor do mundo?

Tenho um filho de 8 meses que está viajando conosco. Seria melhor não ter que me mover tanto, mas faço isso porque acredito no poder do conhecimento, em ajudar a levar processos adiante.

Novamente, a mudança tem que vir de baixo, de quem está mobilizado. Mas acho que as bolsas de estudo de militância podem ajudar a desenvolver ferramentas para afiar a mente e o conhecimento sobre as estratégias inimigas. E é por isto que a História é útil, para abrir espaço a novas maneiras de fazer as coisas, para fomentar a imaginação política porque, no passado, houve muitos esforços para mudar a nossa sociedade. E ainda existem esforços assim e acho que meu papel é fazer a discussão avançar e dar esperança às gerações mais novas.

A ideia de ter um orçamento elevado é o debate central no Brasil hoje. Esse debate eterno torna impossível avançar em direção a uma agenda positiva para o país. Por outro lado, muita gente, incluindo o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, acredita que os juros altos vão barrar o crescimento econômico e que o controle da inflação não deveria ser o foco principal.

Essa ideia sobre o orçamento primário tem a mesma origem que a austeridade?

Com certeza. É exatamente isto que a austeridade faz. Passa a mensagem de que não há alternativa. Equilibrar o orçamento é uma prioridade indiscutível. É uma prioridade neutra e necessária. Agora, sabe que a mensagem do livro não é que esses economistas estão necessariamente errados. Acho que em boa parte dos casos, principalmente em países do Sul, nos quais os limites do capitalismo são reais, é realmente um problema que a inflação esteja alta, que a moeda esteja desvalorizada. Mas isso dialoga com a violência econômica que é muito estrutural no sistema. Por isso a solução não é só fazer remendos no nosso sistema, com algumas reformas. Porque o estrangulamento é forte.

E é verdade que, sob o capitalismo, dependemos da confiança dos investidores para o crescimento econômico. E como você atrai investidores? Só se mantiver baixas as taxas sobre grandes riquezas e as taxas empresariais. Só se abrir às privatizações. O que ocorre agora é que grandes gestores de ativos estão comprando infraestrutura, imóveis, para tirar o máximo de taxas e renda, para aumentar o máximo possível as nossas necessidades diárias. Mas é exatamente isto que o Estado capitalista deve fazer, em suma, abrir-se a esses investidores privados. Essa é a realidade do sistema. É por isso que é muito idealista pensar que o Estado capitalista pode se opor a essas tendências global de austeridade. É por isso, repito, que temos que encontrar formas através de processos de libertação da propriedade privada, meios de produção e relações salariais. Porque o capitalismo realmente nos aprisiona. Não sei se isso faz sentido.

Esse debate entre economistas soa, é claro, como se não fosse uma escolha política. E podemos dizer que obviamente é uma escolha política. Mas também é uma escolha restritiva porque são decisões políticas favoráveis à manutenção da estabilidade de certa forma de mercado capitalista, certo? E isso requer nossa subordinação às leis do mercado que nos estrangulam e beneficiam uma minoria muito pequena. Essas escolhas políticas são restritivas. Mas nós podemos pensar grande, querer mais que migalhas para manter o povo controlado. Precisamos pensar grande, pensar em realmente romper com a nossa posição de subordinação ao mercado.

Aqui no Brasil, em 2016, o governo, que aliás não tinha sido eleito pelo povo, criou um marco fiscal conhecido como “teto de gastos”. A ideia era controlar o orçamento e a relação entre gasto público e PIB. Na verdade, vimos uma drástica redução em investimentos sociais, como educação, saúde pública e outros programas sociais. Essa política de austeridade, junto a outros eventos do sistema político brasileiro, pavimentaram o caminho para a eleição de Jair Bolsonaro.

Movimentos como esse poderiam dar lugar ao avanço de partidos de extrema direita?

Sim, esse é outro exemplo de que a austeridade não é um erro. Muita gente na esquerda diz que é fruto de uma economia ruim, que é um erro. Infelizmente, não é um erro. O que você descreveu mostra o sucesso da austeridade. As pessoas foram tão desempoderadas, que perderam seu senso de união de classe. Perderam a noção da luta coletiva contra o inimigo, que é a minoria que se beneficia do sistema, e terminaram votando por essa minoria que se beneficia do sistema. Porque a austeridade nos individualiza, nos convence que todos nós podemos ser empresários se nos esforçarmos e que deveríamos sentir vergonha de ser pobres. O motivo por que as pessoas votam em alguém como Trump é exatamente o sucesso da austeridade. Não acho que podemos culpá-las por votarem em Bolsonaro ou Trump. Deveríamos culpar a elite dominante, incluindo, infelizmente, o Partido Democrata [dos Estados Unidos] e todos os partidos supostamente progressistas que, de forma hipócrita, já vinham praticando a austeridade.

A austeridade atravessa fronteiras partidárias. Infelizmente, aqueles que supostamente representam o povo, incluindo os sindicatos, apoiaram a austeridade, criaram a sensação de falta de esperança e de que deveríamos fazer o possível para nos salvar como indivíduos, sem olhar para o fato de que somos, na verdade, produtores, produtores coletivos que deveriam lutar contra a exploração e contra aqueles que nos exploram. Então é só através da recriação do senso de coesão de classe e da conscientização de classe que podemos nos libertar da armadilha de pensar que regimes autoritários vão nos salvar. Eles não vão. Mas o mesmo vale para partidos democratas, como o de Biden, que estão desfinanciando todos os setores sociais. Por toda parte.

Quase trinta anos depois

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O começo de julho completou quase trinta anos do Plano Real, um plano de estabilização monetária que trouxe grandes alterações na economia brasileira, gerando algum tipo de estabilidade, melhora nos indicadores de preços e o incremento do ambiente de negócio, efetivando a redução dos preços que assolavam a economia nacional a décadas, atraindo novas formas de investimento, deixando claro nossos horizontes e os novos desafios para a sociedade brasileira.

Neste mês estamos comemorando quase trinta anos de sucesso no controle inflacionário, embora encontremos muitos especialistas que duvidem deste sucesso, as taxas de inflação caíram sensivelmente, trazendo suspiros e sonhos de que a economia brasileira se consolidassem de forma mais efetiva como uma das economias mais pujantes, se caracterizando como uma das maiores economias mundiais, donas de um potencial invejável, com espaços de crescimento econômico e, posteriormente, nos levando a vislumbrar a possiblidade, concreta, de seu desenvolvimento econômico, com melhorias substanciais para a população, impulsionando o bem-estar social e deixando para trás anos de subdesenvolvimento e heranças coloniais degradantes.

No começo dos anos 1990, a sociedade brasileira era vitimada por taxas elevadas de inflação e degradação do poder de compra da moeda, contribuindo efetivamente para a vergonhosa concentração de renda da sociedade nacional, onde os grandes setores econômicos e produtivos conseguiam se defender das taxas elevadas de inflação, garantindo ganhos reais, em contrapartida, uma parte substancial da população tinham suas rendas e salários mensais degradados pela elevada inflação, reduzindo seus rendimentos e contribuindo ativamente para que as condições de vida e de desigualdade fossem mais precárias.

O Plano Real pode ser visto como uma engenharia financeira muito sofisticada. Inicialmente, o governo dialogou constantemente com os setores econômicos e políticos, deixando de lado as medidas drásticas que foram utilizadas anteriormente, que distorcia o comportamento dos agentes econômicos e contribuíram para gerar desconfiança e descrédito. De outro lado, o Plano buscou um equilíbrio fiscal e, num próximo momento, inaugurou uma nova moeda, o Real, que substituiu a moeda anterior, marcada por grande depreciação e a perda crescente de poder de compra.

O Plano Real trouxe grandes transformações na economia brasileira, a estabilização monetária permitiu uma melhora da situação econômica, atraindo grandes fluxos financeiros para os sistemas produtivos, valorizando a moeda nascente e valorizando demasiadamente o câmbio, facilitando a importação, atraindo novos investidores e prejudicando os setores exportadores, contribuindo ativamente para o processo que vivemos na contemporaneidade, de desindustrialização da economia brasileira.

O câmbio valorizado trouxe grandes investimentos externos, melhorando o ambiente econômico, atraindo empresas internacionais, mas contribuiu, negativamente para fortalecer nosso potencial exportador de produtos industrializados, levando a economia nacional a uma desindustrialização.

Embora a desindustrialização não seja uma característica apenas da economia brasileira, grande parte das economias ocidentais perderam força de seus setores industriais e garantiram aos países asiáticos novos espaços na economia internacional, levando esses países a liderarem setores industriais no cenário global, onde destacamos a China, Coréia do Sul, Taiwan, dentre outras nações.

O câmbio valorizado contribuiu para reduzir os preços internos e contribuíram para debelar a forte inflação, mas levou a economia nacional a perder espaço na indústria global, muitas empresas tradicionais foram vendidas ou foram anexados por conglomerados internacionais, perdendo o dinamismo industrial, levando-nos a um caso único na economia mundial, de uma nação que se desindustrializou sem ter conhecido um setor industrial de ponta, ficamos mais uma vez, pelo caminho e fomos ultrapassados por outras nações, que na atualidade colhem os louros da industrialização e, novamente, ficamos para trás na competição internacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia do Setor Público, Mestre, Doutor em Sociologia. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 12/07/2023.

Por que os jovens saem precocemente da escola? por vários autores

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Distorção idade-série é um fator antecedente e determinante da evasão

Folha de São Paulo, 11/07/2023

Paulo Tafner, Economista e pesquisador da Fipe/USP; autor de “Reforma da Previdência: Debates, Dilemas e Escolhas” (2005), “Demografia: a Ameaça Invisível” (2010) e “Reforma da Previdência: a Visita da Velha Senhora” (2015)

Sergio Guimarães Ferreira, Economista e diretor de pesquisa do Imds

Leandro Rocha, Economista e pesquisador do Imds

Matheus Leal, Economista e pesquisador do Imds

O Brasil, segundo projeção do IBGE, tinha no ano passado 21,7 milhões de jovens entre 15 e 21 anos. Desses, 2,8 milhões não frequentavam a escola. E também não concluíram a educação básica, segundo dados do mesmo ano do Suplemento de Educação da Pnad Contínua.

É um número preocupante. A educação é essencial para o desenvolvimento de habilidades que favorecem a inserção no mercado de trabalho e a mobilidade social dos jovens. Além disso, a evasão escolar reflete a desigualdade social que limita as chances de ascensão dos mais pobres. A maioria dos jovens que deixam a escola (60%) pertence aos 40% mais pobres da população, enquanto apenas 5% estão entre os 20% mais ricos.

Os motivos para o abandono escolar variam conforme o sexo e a idade dos jovens. Entre os homens, os principais fatores são a necessidade de trabalhar e a falta de interesse pelos estudos. Entre as mulheres, a gravidez é o principal motivo. A gravidez afeta especialmente as mulheres mais pobres: dentre aquelas que evadem, 26% citam a gravidez como a razão para sair da escola. A necessidade de realizar afazeres domésticos ou cuidar de pessoas e a falta de interesse são outros motivos que afetam de forma mais ampla as mulheres pobres.

As diferenças entre os principais motivos para deixar de frequentar a escola variam conforme a idade. Entre os homens, a falta de interesse é o motivo mais frequente para os jovens de 14 a 18 anos, enquanto a necessidade de trabalhar é o motivo mais comum para os jovens de 19 a 21 anos.

Para as mulheres, o motivo mais relevante varia entre a falta de interesse e a gravidez. Entretanto, conforme a idade aumenta, a necessidade de trabalhar torna-se mais relevante.

Uma política integrada de combate à evasão deve reunir desde incentivos financeiros à permanência (um exemplo é o “Poupança Jovem Piauí”) até programas de Busca Ativa (existem diversos exemplos, entre os quais podemos destacar o executado pelo estado de Pernambuco pela sua focalização em jovens em territórios mais vulneráveis), de cunho mais reativo.

Contudo, prevenir é melhor e mais barato do que remediar. A distorção idade-série é um fator antecedente e determinante da evasão escolar. No Brasil, a taxa de abandono é de 17% dentre alunos com dois anos ou mais de atraso escolar em relação à série, e apenas 2% dentre alunos com um ano ou menos de atraso, segundo os dados do Inep de 2019 organizados pelo Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (Imds). Logo, a evasão no ensino médio resulta da desatenção da escola com relação aos seus alunos mais vulneráveis nos primeiros anos do ensino fundamental.

Uma política de combate à evasão é prioritária e deve envolver estados e municípios, já que esses últimos são os responsáveis por boa parte do ensino fundamental público. E não deve ser tarefa somente das secretarias de Educação, mas também, e no mínimo, das secretarias de Assistência Social e de Saúde, todas atuando de maneira integrada. E muitas vezes atores como varas de infância e adolescência, nos casos em que a infrequência escolar é sinal de violação de outros direitos da criança.

Concentrar esforços, integrar áreas de atuação do Estado e focalizar ações específicas devem ser prioridade da gestão governamental. Não se trata de falta de recursos.

Paulo Tafner diretor-presidente do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (Imds), Sergio Guimarães Ferreira diretor de pesquisa do Imds, Leandro Rocha pesquisador do Imds, Matheus Leal pesquisador do Imds

IA não é inteligência e sim marketing para explorar trabalho humano, diz Nicolelis

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Neurocientista diz que a mente humana resulta de milhões de anos de evolução: ‘quero ver ChatGPT sobreviver a um jogo do Palmeiras’

Pedro S. Teixeira

SÃO PAULO – FOLHA DE SÃO PAULO, 08/07/2023

O ChatGPT funciona como uma ferramenta de marketing por gerar desigualdades na relação entre empregador e força de trabalho, diz o neurocientista Miguel Nicolelis. Para ele, a inteligência é o resultado de milhões de anos de evolução, que não podem ser computados em código binário.

Nicolelis trabalha há 30 anos com redes neurais, mecanismo por trás dos atuais algoritmos de aprendizado de máquina. Referência em interfaces entre cérebro e máquina, atuou no desenvolvimento de neuropróteses capazes de restaurar movimentos do corpo. Durante a abertura da Copa de 2014, na capital paulista, um cadeirante chutou a bola ao gol com o auxílio de um equipamento desenvolvido por ele.

Nicolelis afirma à Folha que é absurdo dizer que os modelos de linguagem como o ChatGPT são dez vezes mais inteligentes que um ser humano por escreverem de forma veloz ou se comunicarem em diversos idiomas, como fez Geoffrey Hinton, cientista da computação que inventou as redes neurais e foi sócio e conselheiro do Google por mais de uma década. “A tartaruga é extremamente inteligente, só é lenta.”

O sr. criticou o escritor Yuval Harari. Por quê?

Ele mistura coisas de outras áreas sem ter conhecimento profundo. No Sapiens, ele mistura as referências e interpreta os nossos resultados de uma maneira que não tem absolutamente nada a ver com o que fizemos. É um trabalho que gastei 30 anos da minha vida. Quando ele fala que no futuro vamos colocar essa coisa chamada interface cérebro-cérebro, que era algo experimental que fiz entre ratos, fiz entre macacos e fizemos entre seres humanos, para reabilitação. Mas não é que eu vou trocar meus sentimentos com outras pessoas. É uma troca de comandos motores, coisas apropriadas para reduzir a lógica digital. Ele fez uma interpretação disso como se eu estivesse lendo a mente de alguém, o que nunca vai acontecer. Ele fala: ‘nós vamos viver até os 200 anos’, ‘vamos acabar com o envelhecimento’. Tudo isso é fantasia.

E sobre o que Harari diz da inteligência artificial?

Ele vive de lacração em lacração. Ele escreveu que a inteligência artificial sequestrou o sistema; ela não sequestrou nada. A espécie humana está sequestrando sua própria evolução.
Por trás da inteligência artificial, existem exércitos de pessoas que anotam dados.

E tem exércitos de evangelistas. Nunca gostei dessa palavra, porque ela denota que a vasta maioria dos movimentos humanos viraram religiões. Tudo parece religião. Do ponto de vista científico, digo isso há anos, e agora Noam Chomsky usa a mesma frase, a inteligência artificial não é nem inteligente nem artificial. Não é artificial porque é criada por nós, é natural. E não é inteligente porque a inteligência é uma propriedade emergente de organismos interagindo com o ambiente e com outros organismos. É um produto do processo darwiniano de seleção natural. O algoritmo pode andar e fazer coisas, mas não são inteligentes por definição. Se estivesse vivo, Charles Darwin teria um infarto com isso.

Chamar de aprendizado de máquina é melhor?

Aprendizado de máquina, deep learning, machine learning, são grandes nomes que usam palavras que nós nos acostumamos coloquialmente a usar, relacionadas ao cérebro humano ou de qualquer animal, para definir coisas que nós fazemos com lógica binária. A inteligência humana não é binária. Por isso, é um nome impróprio.

O criador das redes neurais Geoffrey Hinton diz que ele tenta simular a estrutura do neurônio, para pensar esses algoritmos.

Ele comenta um monte de absurdo também. Ele falou que a inteligência artificial já é dez vezes superior à inteligência humana, o que é um absurdo. Nós temos esses marqueteiros dessas áreas de tecnologia que alegam coisas que parecem verdade. Mas eles não têm a prova.

Ele trabalha com resultados. Ele fala da velocidade com a qual ele entrega respostas, vários idiomas.

A tartaruga é extremamente inteligente. Ela é lenta. Mas o que nós estamos falando é tentar usar a linguagem do mercado para definir o que a vida faz. O mercado quer coisas rápidas, eficientes, com lucro infinito e gasto zero. A inteligência não tem esse compromisso. A inteligência do organismo tem o compromisso de fazê-lo sobreviver o máximo possível em um ambiente em contínua mudança. Só porque um computador joga xadrez mais rápido e ganha de um campeão mundial, não indica que ele é inteligente. Ele só é mais eficiente, porque o xadrez é um jogo com regras predeterminadas. Esse computador não consegue sobreviver no estádio do Palmeiras em uma noite de jogo, não entende os motivos de uma briga, porque não tem a capacidade de generalizar sua inteligência.

A pesquisadora do instituto Open Philantropy, Ajeya Cotra, estimou que, no atual modelo de sociedade, a mente humana corre o risco de estar obsoleta até 2037 em termos de produção para o mercado de trabalho. Isso faz sentido?

Depende do que você chama de produção e do que chama de obsolescência. Existe um limite da lógica digital. Acabei de ler um livro de um dos melhores intelectuais da área de IA, o Michael Wildridge, da Universidade de Oxford. Saiu em 2021. No livro ele fala: sabemos que existe um limite determinado por fenômenos não computáveis, nos quais não há um algoritmo, não há uma fórmula matemática solucionável com um programa. Só que ele põe dois parágrafos sobre a coisa mais importante do livro, e comenta que os pesquisadores não prestam muita atenção nisso porque têm muita coisa para fazer. Mas a mente humana é repleta de fenômenos não computáveis: inteligência, intuição, criatividade, senso estético, definições de beleza, de criatividade, tudo isso é não computável. Qual é a fórmula para a beleza?

Uma jovem publicou no Twitter que seu tio foi acusado de plágio porque um professor pegou um trecho do trabalho dele e perguntou se havia sido feito pelo ChatGPT para o ChatGPT. A plataforma não é feita para reconhecer se um texto foi feito por inteligência artificial e sempre responde que é o autor de qualquer texto.

De certa maneira, o ChatGPT é um grande plagiador, porque pega o material feito por um monte de gente, mistura e gera algo que chama de produto novo, mas, na realidade, é em grande parte influenciado pelo produto intelectual de milhares e milhares de seres humanos. Para o sistema capitalista atual, moderno, a inteligência artificial é a grande ferramenta de marketing, porque gera uma total desigualdade no relacionamento com a força de trabalho.

Um patrão pode dizer: tenho um aplicativo de inteligência artificial, se o trabalhador não aceitar o salário que estou disposto a pagar, que é 10% do que ganha hoje, demito e uso o aplicativo.

Existe toda uma ideologia de substituição do trabalho humano, que não pode ser feita 100%, não há como.

Dá para dizer que ganha espaço na sociedade um pensamento mais utilitarista?

Esse é o problema, isso não tem nada a ver com a máquina. O que está se fazendo é forçar a biologia humana a seguir regras de mercado. As regras de mercado não são divinas, elas são abstrações criadas pela mente humana. O que elas produziram na história da humanidade? Uma estrondosa desigualdade de distribuição de renda. Nós temos gente gastando dinheiro para mergulhar para ver o Titanic explodindo no meio do oceano. Se alguém andar da avenida Paulista até aqui, como eu fiz, vê dezenas de milhares de pessoas morrendo de fome nas ruas. Tudo isso está sendo ignorado porque esses sistemas são convenientes. Eles aumentam a nossa produtividade e nosso alcance como ser humano.

O sr. está mais alinhado com o pensamento de que hoje esses modelos de linguagem são mais como papagaios estatísticos?

Totalmente. Deep learning nada mais é do que redes neurais com múltiplas camadas, mais camadas, mais neurônios e mais conexões entre essas camadas. O cérebro faz isso também. Todavia, é impossível simular os mecanismos biológicos que o cérebro usa para tomar essa decisão.

O cérebro gasta muito menos energia do que supercomputadores de IA para entregar o mesmo processamento.

É um processo de otimização de milhões de anos. Não é à toa que nós descemos das árvores, levou 4 milhões de anos para sairmos andando. É uma coisa muito mais elaborada: 20% da energia que seu corpo produz vai para cá [aponta para a cabeça]. A energia do cérebro dá para acender uma lâmpada, mais ou menos. É um troço extremamente otimizado que sofreu modificações brutais desde que a vida apareceu na Terra. E não é computável. O próprio Alan Turing sabia disso, depois de propor sua tese, disse: há certos problemas que essa minha máquina teórica, que já virou máquina de Turing e gerou os computadores, não vai conseguir resolver. E quando eu tiver esse impasse, só tem uma solução. Tenho que chamar um oráculo para tomar uma decisão. O oráculo é um ser humano.

Mas dentro dessa lógica de concorrência entre máquina e ser humano, o senhor concorda com os riscos para a espécie aventados por pesquisadores e gente da indústria de tecnologia?

Os riscos são tremendos. Essas ferramentas têm de ser usadas sob a supervisão humana. Na programação de um sistema de IA, a pessoa pede algo, mas pode não considerar que os meios para alcançar o objetivo são indesejados. É o que ocorre com o computador HAL do filme “2001 – Uma Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick. A missão dele era chegar com a tripulação a um local. Só esqueceram de falar que HAL não podia matar a tripulação. Esqueceram os cenários em que a missão seria completa, mas não sobraria gente para ver. Quando alguém delega para algo fazer uma missão em seu nome, não vai ser possível oferecer para essa coisa todas as restrições que temos de imediato por causa da evolução.

Esses mecanismos podem ser úteis, em termos de pesquisa, como são seus estudos em neurociência?

Uso redes neurais para interpretar padrões de atividade neural reais desde os anos 1990. Não as mesmas redes de hoje, mas mais simples. É um método estatístico de reconhecimento padrão.

Não concordo com transformar uma ferramenta estatística em um novo Deus e construir embaixo dele toda uma religião, como está acontecendo. Eu chamo a igreja da tecnologia.

RAIO-X
Miguel Nicolelis, 62
Chefiou, o Centro de Neuroengenharia da Universidade de Duke, antes de se aposentar como professor emérito em 2021. Médico, ele é referência no estudo da interface entre cérebro e máquina e coordenou comitê científico do Consórcio Nordeste. Foi o primeiro brasileiro a publicar um artigo na capa da revista científica Science.

Dowbor: Assim o rentismo tornou-se doutrina

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Livro apresenta o homem que forjou o receituário corporativo do capitalismo improdutivo: cortar gastos obsessivamente, criar competição tóxica e buscar o lucro máximo, a qualquer custo. Fórmula inspirou personagens como Lemann

Ladislau Dowbor – Outras Palavras, 27/06/2023

A principal transformação do capitalismo nas últimas décadas é de ter migrado do lucro sobre processos produtivos como eixo central, para a maximização dos rendimentos financeiros, materializados em dividendos para acionistas. Trata-se do rentismo moderno, da maximização de dividendos por meio de sistemas especulativos, recompra de ações, cortes de empregos e de salários, evasão fiscal por meio de paraísos fiscais e outros mecanismos, no que tem sido chamado de financeirização. Há numerosos trabalhos sobre esta nova fase neoliberal do capitalismo, e de primeira linha, como de Joseph Stiglitz, que qualifica esses lucros de “unearned income”, ou seja, rendimentos não merecidos; de Thomas Piketty, que os qualifica de “rentas” (rentes em francês); de Mariana Mazzucato, que se refere ao “extractive capitalism”; de Michael Hudson, que os apresenta como bactérias que matam o hospedeiro (Killing the Host); de Gabriel Zucman (The Triumph of Unjustice), isso sem falar dos que abriram os caminhos, como François Chesnais e David Harvey. É
uma visão que está se tornando dominante na economia em geral. Bom senso em construção.

Mas o aporte de David Gelles, no livro The man who broke capitalism: how Jack Welch gutted the heartland and crushed the soul of corporate America – and how to undo his legacy, é contundente, pela análise detalhada de corporações concretas, como a General Electric – como exemplo básico – mas também da Amazon, AT&T, Boeing, BlackRock, Unilever, Paypal, e também, particularmente interessante para nós, da 3G Capital. Esta última é controlada por Lemann, Sicupira e Telles, responsáveis pelas fraudes bilionárias das Lojas Americanas, e que constituem o grupo privado mais poderoso hoje no Brasil, conforme vemos na edição da Forbes sobre bilionários brasileiros. O trabalho de Gelles alimenta sem dúvida uma visão de conjunto da financeirização, mas construída a partir do comportamento detalhado das grandes corporações, no cotidiano da tomada de decisão dos executivos. Poucas obras são tão ricas em termos de fazer compreender os mecanismos deste bicho novo que ainda chamamos de capitalismo, mas que funciona de maneira diferente e obedece a regras que nos escapam. Ainda se auto-qualificam de “mercados”, mas estão muito mais próximos de uma “aristocracia capitalista”, como as qualifica Michael Sandel.

David Gelles escreve de maneira excepcionalmente clara. Jornalista e colunista do New York Times, e pesquisador sobre o funcionamento concreto de corporações financeiras e tecnológicas, navega com conforto na área, e torna a temática muito acessível. A realidade é que escreve muito bem, o livro “se lê”. E a seriedade da pesquisa, riqueza de fontes e facilidade de consulta faz deste trabalho, a meu ver, uma das melhores ferramentas para entender a dimensão atual dos nossos desafios. Não precisa ser economista, Gelles insiste em que os mecanismos sejam entendidos. Queiramos ou não, esses gigantes corporativos, com seu alcance global, estão definindo os rumos das nossas economias, dos nossos empregos, inclusive das nossas políticas.

Jack Welch é um protagonista central. Executivo da uma das maiores corporações mundiais, a General Electric, ele conseguiu, em 20 anos, entre 1981 e 2001, transformar uma empresa de ponta de produção de utilidades domésticas em um gigante financeiro que compra e revende empresas de qualquer setor da economia, seguindo à risca os conselhos de Milton Friedman, de que se trata de maximizar o retorno dos acionistas, pouco importa como e a que custo. Friedman deu a benção acadêmica para essa economia do vale-tudo corporativo: The business of business is business. Essa fratura entre a busca de lucros e dividendos, e os interesses da sociedade é central. “A lucratividade da corporação já não se traduz em ampla prosperidade econômica”, escreve Gelles, citando William Lazonick. (65).

Eu me familiarizei com Jack Welch ao ler há alguns anos o seu principal livro, Straight from the Gut, título que sugere uma escrita enraizada nos sentimentos mais profundos e sinceros, mas um dos livros de gestão mais cínicos que já tive entre as mãos. E teve impacto planetário, legitimando o vale-tudo, ao mostrar como os acionistas da GE passaram a ganhar muito mais dinheiro, e valorizando a empresa na bolsa. De certa forma, o que Friedman fez para os economistas, liberando-os de qualquer relação com ética e valores em geral, Welch o fez para uma geração de executivos pelo planeta afora, um impacto impressionante, mas que coincide com os interesses de se fazer dinheiro a qualquer custo. Basta olhar o que “os mercados” aprontam no Brasil. Não à toa hoje enfrentamos a “economia desgovernada”.

Uma das técnicas de Welch que ficou famosa e foi muito replicada consiste em organizar a empresa em unidades, cujo chefe é obrigado, a cada fim de ano, a definir quais são os 20% de trabalhadores mais produtivos, os 70% seguintes, e os 10% menos produtivos, que seriam despedidos. Isso gera uma guerra permanente em todos os departamentos, luta pela sobrevivência, em vez de sistemas colaborativos e sentimento de equipe. Acompanhado de despedimentos em massa (downsizing), de liquidação de segmentos menos lucrativos, substituindo-os por terceirizados, e compras dispersas de qualquer empresa que pudesse gerar mais lucro ao ser fragmentada e revendida, o resultado foi um dreno poderoso a favor dos acionistas, na linha, precisamente, da maximização de dividendos.

Dos desastres gerados resulta a batalha atual de muitas empresas, de promover o ESG (Environment, Social, Governance), tentando recolocar no horizonte empresarial não só o lucro dos acionistas (shareholders), mas também os impactos sociais e ambientais (stakeholders).

Como exemplo de comportamentos lucrativos mas desastrosos de grandes corporações, o autor aponta a 3G Capital, controlada por Lemann, Sicupira e Telles, os maiores bilionários brasileiros, que drenam recursos não só das Lojas Americanas, por quaisquer meios legais ou ilegais, mas de uma imensa rede de empresas controladas por participações de diversos tipos. “No caminho, escreve Gelles, os brasileiros desenvolveram uma reputação de cortadores selvagens de custos e de demitidores despiedados (merciless downsizers).” Gelles cita o próprio Lemann: “Na realidade, somos copiadores. É o que somos. A maior parte do que aprendemos foi de Jack Welch, de Jim Collins (autor de Good to Great), da GE, da Walmart. De certa maneira juntamos tudo isso” (p. 178).

Centrar tudo no lucro financeiro e no curto prazo é hoje a filosofia de inúmeras corporações, e explicam em grande parte o paradoxo de tantos avanços tecnológicos, enquanto as economias estagnam, aumentam a desigualdade, o desemprego e os empregos precários. É uma deformação sistêmica, que no Brasil atingiu dimensões absurdas, inclusive com desindustrialização.

“Considerem, escreve Gelles, o caso da 3G Capital, um grupo privado de acionistas que controla marcas incluindo Budweiser, Burger King, e Kraft Heinz. Fundado por um grupo de financistas brasileiros, os homens por trás da 3G Capital são os Neutron Jacks (apelido dado a Jack Welch por sua capacidade de explodir empresas, LD) do século 21, implacavelmente adquirindo empresas, cortando custos e cabeças, e extraindo lucros para si mesmos e investidores enquanto pareciam ignorar o bem-estar da sua força de trabalho e a necessidade de pesquisa e desenvolvimento” (p. 177). É importante entender que essa maximização de apropriação de dividendos pelos acionistas leva à redução de investimentos produtivos na empresa, fragilizando-a. “As corporações, que outrora compartilhavam generosamente os lucros com os seus trabalhadores no país todo (EUA), agora canalizam a parte do leão da riqueza que criam para investidores institucionais e executivos.

Enquanto nos anos 1980 menos de metade dos lucros corporativos voltavam para investidores, durante a última década, este número subiu (soared) para 93%” (p. 183). Para claro o contraste, David Gelles, descreve a tentativa do grupo 3G Capital de controlar a Unilever, fazendo uma proposta dourada ao seu executivo Paul Polman (anteriormente da Nestlé).

Seria uma aquisição gigantesca, da ordem de US$143 bilhões, o que dá uma ideia da força financeira internacional deste grupo. Polman resistiu, e orientou a Unilever para uma linha que prioriza o desenvolvimento produtivo, com equilíbrio entre dividendos, remuneração dos trabalhadores e reinvestimento na empresa. “Temos de sair desta corrida de ratos” disse Polman. “Era uma transação puramente financeira que era atraente no papel, mas constituía na realidade dois sistemas econômicos conflitantes” (p. 206). Segundo Gelles, “os brasileiros tinham mal avaliado a sua presa.”

Eu queria muito recomendar a leitura desse livro. Sem frescuras, academicismos ou gráficos complexos, mas com muita documentação de apoio e pesquisa, é a melhor radiografia que li sobre como se deformou o que conhecíamos antigamente como capitalismo industrial, e que hoje conhecemos como “mercados”, aos quais temos de obedecer, se não “ficam nervosos”, e temos pagar obedientemente os juros extorsivos, e acreditar que se eles ficam ricos – sem gerar produtos, pagando mal os poucos empregos que geram, e evitando os impostos – a economia irá prosperar. Bem, é o que os consultores na mídia comercial nos repetem todo dia.

O comunismo está chegando? por Luís Miguel Felipe.

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Luís Miguel Felipe – A Terra é Redonda -03/07/2023

Segundo o Datafolha, metade dos brasileiros teme a chegada do comunismo. Mas, afinal, o que se entende por comunismo? O que essa metade entende por capitalismo e as implicações que ele tem em sua vida?

Metade dos brasileiros teme que o país vire comunista, diz o Instituto de pesquisas Datafolha.
Pesquisas de opinião precisam ser analisadas com precaução. Como Pierre Bourdieu demonstrou há meio século, elas tratam como convicções o que são meras respostas a perguntas que, na verdade, as pessoas nem fazem a si mesmas.

Ainda assim, é preciso perguntar: que cazzo seria o comunismo, para que metade dos nossos compatriotas achem que ele está para chegar?

Um sentido de “comunismo” remete a sociedades em que tudo é comum a todos. Em que não há “meu” e “teu”. Como em tantos povos não europeus, para os quais a primeira tarefa do colonizador foi ensinar o sentido de “propriedade privada”.

O Brasil de hoje está neste caminho? Difícil de acreditar.

Outro sentido de comunismo se refere à sociedade imaginada por Karl Marx. Nela, não existiria Estado, repressão ou desigualdade. A necessidade estaria abolida e todos seriam integralmente livres. A harmonia entre indivíduo e comunidade ocorreria naturalmente.
Estamos chegando lá? Não parece.

É mais razoável imaginar que, por “comunismo”, as pessoas indicam o tipo de governo autoritário que imperou na antiga União Soviética e que hoje permanece em países como China, Coreia do Norte e Cuba. Alguém realmente acredita que há, no Brasil, alguma força política relevante que planeja implantar esse modelo?

Há um quarto sentido de “comunismo”. É tudo o que não é a extrema direita delirante. Quem difundiu essa acepção foi o (hoje calado) Olavo de Carvalho, que dizia que o governo FHC estava comunizando o Brasil. Então “comunista” é a Rede Globo, o Gilmar Mendes, o Joe Biden, o Emmanuel Macron. Até Sérgio Moro teve sua fase comunista, no curto período de tempo em que ficou de mal com Jair Bolsonaro e tentou se fazer de “terceira via”.

Seria bacana se, em vez de alimentar o medo irracional de um bicho-papão criado pela desinformação da direita, o eleitor brasileiro fosse capaz de discutir o que realmente quer para o seu país. Se entendesse o que é o capitalismo e quais as implicações que ele tem em sua vida, o que é e o que pode ser o socialismo, como uma democracia efetiva deveria funcionar.

Para chegarmos lá, só tem um caminho: educação política. Cabe à esquerda promovê-la – porque, para a direita, a alienação e a desinformação são vantagens.

*Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil (Autêntica).

Demanda insuficiente

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A economia brasileira vem passando por grandes alterações conjunturais, programas exitosos internacionalmente foram fragilizados, muitas políticas públicas foram desestruturadas, ausência de investimentos em setores fundamentais para compreender os grandes desafios na sociedade contemporânea, redução de repasses para a saúde e para a educação, ausência de uma estratégia de qualificar e capacitar os trabalhadores vitimados pelo desenvolvimento tecnológico, tudo isso nos leva a compreender, que vivemos num momento de grandes decisões que podem mudar a sociedade num futuro próximo.

Neste momento, percebemos que a economia brasileira carece de políticas consistentes para fortalecer o mercado interno, aumentar a demanda interna, melhorando a empregabilidade da classe trabalhadora, garantindo educação de qualidade para fortalecer os espaços mais dinâmicos numa economia em transformação.

Nestes últimos anos, os governos se preocuparam em reduzir investimentos públicos, piorando as condições de trabalho dos trabalhadores, reduzindo benefícios para todos os setores econômicos, fragilizando as organizações sindicais e diminuindo os gastos públicos em saúde e educação, acreditando que esse era o caminho correto para aumentar os investimentos da economia, alavancando a renda total do sistema econômico, o resultado destas políticas foram exitosas para os donos do poder econômico e financeiro, os indivíduos que vivem do rentismo e do parasitismo do Estado e, em contrapartida, os setores trabalhadores estão digladiando para a sobrevivência cotidiano, com salário aviltantes e cargas de trabalho elevadas, transporte precário, saúde pública em forte degradação e educação de péssima qualidade, neste cenário, encontramos indivíduos defendem a possiblidade de ascensão social, os méritos da meritocracia e a defesa incondicional do empreendedorismo como forma de revolução social.

Vivemos momentos de reconstrução nacional, precisamos reconstruir nossa estrutura industrial, não aquela indústria do século XX, mas a indústria do século XXI, a chamada Indústria 4.0 ou a Quarta Revolução Industrial, incrementando os investimentos maciços em educação de qualidade, fortalecimento o Sistema Único de Saúde (SUS), investindo em ciência e tecnologia, dessa forma, começamos a repensar a sociedade nacional nos próximos anos e deixando de lado picuinhas desnecessárias, conflitos degradantes, corporativismo ultrapassados e interesses individuais, tudo isso está contribuindo ativamente para que a economia brasileira vem se degradando todos os anos, saindo da sexta para a décima segunda posição no cenário econômico mundial.

Precisamos compreender que o país empobreceu na última década, o salário da classe trabalhadora vem se degradando rapidamente, o desemprego vem aumentando a passos largos, a educação vem perdendo a atratividade para os estudantes e os professores perderam a capacidade de estimular o brilho do conhecimento, isso acontece porque as cargas de trabalho são elevadas e seus salários estão em constante degradação, sem educação um país não consegue pintar uma perspectiva de futuro digna e decente para seus concidadãos e acabam perpetuando essa situação de desintegração social, de ressentimentos elevados e ódios generalizados cotidianos.

As teorias econômicas dominantes deveriam retomar as visões da economia como a ciência da escassez, retomando políticas que incrementem a renda da classe trabalhadora, melhorando os salários e renda agregados, dinamizando as políticas públicas para redistribuir a renda, tributando setores que pouco pagam impostos, desta forma, todos os setores sentirão impactados imediatamente, alavancando o consumo, melhorando a renda dos indivíduos, impulsionando a produção, melhorando o setor de serviços, movimentando os setores econômicos e produtivos e angariando mais recursos para os governos nacionais e financiando as políticas públicas, que são imprescindíveis para melhorar as condições sociais.

As nações que se desenvolveram investiram fortemente em sua população, foram ousados, priorizaram mercado interno e como diz Barbosa Sobrinho “capital se faz em casa”.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista Economia do Setor Público, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.