Do Bolsa Família às cotas, por Luiz Augusto Campos.

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Sem prejuízo de outros desenhos institucionais, é esse modelo de política pública que explica parte do sucesso do PT no passado

Luiz Augusto Campos – Folha de São Paulo, 23/01/2023

Apesar de terem a paternidade disputada, o Bolsa Família e as cotas no ensino superior foram as mais originais políticas encampadas pelos governos petistas. Embora distintos, ambos os programas têm uma premissa comum: para reduzir desigualdades, é preciso considerar a existência e complexidade das
discriminações.

Num mundo de desigualdades complexas, políticas redistributivas não podem simplesmente tirar dos ricos e dar para os pobres. Isso porque outras assimetrias atravessam a pirâmide social. Mesmo dentro de uma mesma classe social, negros têm menos chances de melhorar de vida do que brancos, mulheres ganham comparativamente menos que homens, e crianças são infinitamente mais vulneráveis
do que adultos.

Louvada como política eficaz na redução da pobreza, o sucesso do Bolsa Família reside no modo complexo como ele manejou conjuntamente diferenças de classe, gênero e geração. Em seu desenho original, são as mães de família mais pobres as titulares prioritárias do benefício. As condicionalidades, por seu turno, recaíam sobre as crianças, que deviam ter certa assiduidade escolar e estarem em dia com as vacinas. Embora esse desenho possa ser criticado, precisamos reconhecer que ele multiplicou o impacto de cada real investido no programa.

Ainda que as cotas raciais tenham sido objeto privilegiado de polêmica, fato é que o governo federal adotou em 2012 um programa de cotas com recorte econômico, que privilegiou estudantes de escola pública e baixa renda. Só depois da aplicação dessas cotas é que inc idem subcotas raciais, ainda assim com percentuais totais bem menores que a representatividade de negros na população. Ao termo, a política de cotas ajudou a quase duplicar o percentual de negros e pobres nas universidades federais, tudo isso sem perda de qualidade no ensino e a custo próximo de zero.

O fato de essas medidas combinarem clivagens de raça, gênero, classe e/ou geração não nos autoriza a rotulá-las como “políticas identitárias”. Ao contrário, o Bolsa Família e as cotas são políticas que utilizam as diferenças entre grupos discriminados justamente para produzir mais igualdade de acesso a recursos e oportunidades. O sucesso do Bolsa Família é que os filhos das beneficiárias dispensem o auxílio, do mesmo modo que o sucesso das cotas é que os filhos dos beneficiários prescindam da reserva. Sem prejuízo de outros desenhos institucionais, é esse modelo de política pública —universalista nos fins e focal nos meios— que explica parte do sucesso do PT no passado e que, portanto, deve ser retomado e potencializado nesse novo ciclo.

O que está ocorrendo no Peru? por Sylvia Colombo

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Ingovernabilidade do país reside no desmonte dos partidos, vendidos ou alugados a grupos de interesse

Sylvia Colombo – Folha de São Paulo, 21/01/2023

Como se não bastasse o drama político e econômico que vive Lima no último mês, na última semana nos chocamos com as chamas que saíam de um antigo casarão colonial, dando conta de um desastre arquitetônico que se desenha trágico em uma das mais antigas e belas cidades da América do Sul.

Não se trata de mero detalhe. Como sempre, a história aparece para explicar alguns eventos do presente. Lima não foi construída para receber a população camponesa em fúria que decidiu “tomá-la” na última semana. Ao contrário, foi levantada para escondê-la. Por praticamente todos os séculos da história peruana, o campo era o lugar do indígena, do branco pobre, do afroperuano.

Enquanto isso, as exuberantes praças e os gloriosos palacetes limenhos, exuberantes possessões do Império Hispânico, estavam ali para os olhos dos que vinham da Europa visitar uma das capitais mais ricas do Novo Mundo. Se estiver em Lima, ligue a TV num noticiário ou numa novela e dificilmente verá uma apresentadora indígena ou uma atriz afroperuana num papel “comum”.

A “tomada de Lima” mostrou que, entre as demandas veiculadas pelos atores políticos —novas eleições, Constituinte, reforma do sistema político e tributária—, há também a do reconhecimento da diversidade do país, pelo fim do racismo e da desigualdade. Enfim, por maior representatividade social e política.

É por isso que os manifestantes insistem na restituição de Pedro Castillo, não tanto porque o consideram um “bom” ou “mau” presidente, mas porque a sensação que eles têm é que foram enganados por alguma artimanha constitucional que levou ao afastamento, outra vez, de um verdadeiro representante do povo.

Será difícil resolver essa equação de modo institucional. Afinal, o que Castillo tentou foi um autogolpe, uma artimanha fora das regras do jogo. Daí a transitar a uma posição de mártir, suas chances são parcas.

Para isso, conta com sua curta biografia e alguns símbolos: o fato de vir dos rincões do país, de pertencer a uma família camponesa e “rondera”, ou seja, que participava das rondas campesinas, uma polícia civil, na época do conflito com o Sendero Luminoso, e ser professor.

O principal culpado pela frágil institucionalidade do Peru hoje é o fujimorismo. Foi durante aqueles anos ditatoriais (1990-2000), quando opositores foram perseguidos, grupos atuantes da sociedade, destruídos, e lideranças políticas e estudantis importantes desapareceram, que o sistema de partidos se foi.

É comum escutar o comentário de que o sistema de governo é o que faz do Peru um país ingovernável.

Não creio que resida aí o problema, mas no fato de já não haver partidos, no desmonte das siglas e na venda ou aluguel delas a grupos de interesse. Reestruturar partidos e espaços de debate, envolver grupos que representam os distintos matizes sociais e voltar a debater o Peru pode ser um bom início.

Por ora, o atual Congresso se encheu de gente que não quer fazer política, mas defender pequenos negócios em suas regiões. O acordo para sair dessa crise deve se dar por meio de um Parlamento que escute as ruas. Se não for assim, de fato, fica fácil entender por que essa população tem todo o direito de ir a Lima e perguntar, afinal, o que esses políticos pretendem fazer com o país?

Sylvia Colombo, Correspondente em Buenos Aires, foi editora da Ilustrada e participou do programa Knight-Wallace da Universidade de Michigan.

Economia Circular

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Estamos vivendo momentos de grandes ansiedades, oportunidades e desafios crescentes. Vivemos momentos de mudanças estruturais, novas formas de convivência social, novas tecnologias que reduzem a privacidade, novos modelos de negócios, somos constantemente monitorados, com alterações no mundo do trabalho, exigindo de todos, estudos constantes e atualizações cotidianas, demandando investimentos financeiros e emocionais, estamos num momento de grandes incertezas e instabilidades.

Nesta sociedade, percebemos alterações crescentes no meio ambiente, as preocupações alarmantes do clima global, mudanças crescentes na agenda da sustentabilidade, fenômenos climáticos violentos que geram destruições humanas e degradação da natureza, levando a comunidade internacional a reflexões consistentes sobre o futuro da humanidade.

Neste ambiente, a Economia Circular vem ganhando espaço na sociedade global nas últimas décadas, na verdade percebemos uma grande preocupação com as condições de degradação do meio ambiente, o clima vem passando por grandes incertezas e instabilidades, os solos estão passando por perdas crescentes de produtividades, regiões propícias para um tipo de cultura estão percebendo uma degradação de seu solo original, gerando instabilidades sociais, tufões, maremotos, chuvas assustadoras, perdas econômicas e pressões demográficas, gerando milhões de pessoas que fogem de seus países para buscar abrigo em outras regiões, gerando, muitas vezes, conflitos culturais, violências, desesperanças e xenofobias.

Neste instante, percebemos o surgimento de novos conceitos na sociedade, a economia nos traz novos instrumentos de reflexão, destacando, compreendendo e estimulando o que chamamos de Economia Circular, uma nova forma de reflexão, deixando a economia linear, imediatista e abrindo espaço para o que chamamos de circularidade.

A economia circular está ligada a uma grande revolução em curso na lógica econômica e produtiva, impactando fortemente a economia linear, que domina a sociedade internacional, onde os recursos são utilizados para a produção de um determinado bem ou mercadoria e este produto é descartado quando o produto perde efetividade, degradando o meio ambiente e gerando um passível ambiental para toda a comunidade.

A economia circular traz novas reflexões para a sociedade, olhando não apenas a mercadoria inicial, mas toda a vida deste produto, onde o produto que perde espaço e, posteriormente, pode ser reaproveitado constantemente, onde se recicla, se reutiliza e se reinventa para que os produtos originais sejam vistos como um instrumento de circularidade, gerando uma verdadeira revolução na sociedade, uma grande transformação sobre o capitalismo, levando-o a repensar todos os instrumentais de produção, distribuição, marketing, consumo, desejos, necessidades, uma verdadeira revolução que impacta sobre a sociedade.

A Economia Circular também tem um papel mais estrutural do que as pessoas imaginam, estimula uma reflexão sobre conceitos ligados a necessidades, repensando o conceito de economia como uma ciência. Os economistas aprendem no começo do curso de ciência econômicas que a economia é a ciência da escassez, que nasce para satisfazer as necessidades dos indivíduos, a economia surge como um instrumento para responder a um dilema ético da sociedade, destacando os conflitos entre necessidades ilimitadas e recursos limitados. A Economia Circular nasce com um papel de grande relevância, surge para repensarmos a sociedade, as necessidades dos seres humanos, os comportamentos e que nos auxilia a compreender que vivemos numa sociedade marcada por recursos naturais, finitos e ambientais limitados, diante disso, somos levados constantemente a fazermos escolhas.

A economia circular nos traz novos horizontes para refletirmos sobre a coletividade, sobre a comunidade, sobre o pertencimento e nos levam a compreender que somos todos seres humanos, ao destruirmos o planeta para alavancar a riqueza de poucos estamos nos comportando irracionalmente e a consequência imediata é a degradação da vida de todos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Circular, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 18/01/2023.

Ataque golpista tem digitais da Lava Jato, diz pesquisador

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Para Fábio de Sá e Silva, que analisou postagens da operação, Moro e Deltan alimentaram discurso contra instituições democráticas

UIRÁ MACHADO – FOLHA DE SÃO PAULO, 16/01/2023

SÃO PAULO Autor de estudos sobre a Lava Jato, o pesquisador Fábio de Sá e Silva enxerga as digitais do ex-juiz Sérgio Moro e do ex-procurador Deltan Dellagnol nos eventos do dia 8 de janeiro, quando apoiadores de Jair Bolsonaro (PL) avançaram sobre Brasília numa tentativa de golpe de Estado.

Primeiro, diz Silva, elas aparecem quando a operação Lava Jato começou a sofrer derrotas na Justiça e subiu o tom contra os tribunais, sobretudo contra o STF (Supremo Tribunal Federal).
“A Lava Jato acelera e fomenta uma indisposição de parte da sociedade contra os poderes instituídos. Ela reforça uma ideia de que todas as instituições estão contaminadas pela corrupção”, diz Silva, professor de estudos da Universidade de Oklahoma, nos EUA.

Depois, num segundo momento, quando ganha força a ideia de que Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não teria legitimidade para enfrentar Bolsonaro, como se sua saída da prisão e sua habilitação eleitoral fizessem parte de uma grande trama cujo desfecho seria garantido pelas urnas eletrônicas, supostamente fraudulentas.

Em entrevista à Folha, Silva também diz que é cedo para avaliar a conduta de Alexandre de Moraes, do STF, na condução de processos contra atos antidemocráticos e fake News. Mas afirma que, em comparação com Moro, o ministro tem à disposição instrumentos jurídicos melhores e os utiliza de maneira mais inteligente.

O sr. argumenta em um estudo que o “fora STF” nasceu com a Lava Jato e que o discurso anticorrupção de membros da força-tarefa foi se transformando em ataques às instituições democráticas. Na sua visão, há relação entre isso e a intentona golpista em Brasília? Sim. Eu vejo como uma linha de continuidade. É um processo de mudança política que foi acontecendo no Brasil, com o centro de gravidade da política se movendo à direita até a consolidação de uma extrema direita. E é difícil, para mim, separar a Lava Jato disso, porque ela deu uma contribuição grande.

De que maneira? A Lava Jato se apoiava juridicamente em teses controvertidas algumas das quais cruzavam as linhas do que é razoável na interpretação da legislação, e lidava com um histórico legislativo recente, então não tinha jurisprudência consolidada. Era uma arena de disputa.

Dentro dessa disputa, tem uma retórica muito forte do Dallagnol no sentido de envolver a sociedade no combate à corrupção. É claro que é importante envolver a sociedade no combate à corrupção, mas isso foi feito de modo a colocar a opinião pública contra os tribunais, para forçar os tribunais a acolher as teses que a Lava Jato elaborava. Eles inclusive usaram uma estratégia de comunicação pesada, em contato com a mídia e pelas próprias redes sociais.

Num primeiro momento, o sistema de Justiça cede. Cometem-se barbaridades na Lava Jato, como o grampo ilegal da ex-presidente Dilma Rousseff com o atual presidente Lula. O Moro pede escusas e não perde a jurisdição dos processos.

Mas, quando a Lava Jato sofre alguns reveses, há uma subida de tom contra os tribunais. E, com isso, ela acelera e fomenta uma indisposição de parte da sociedade contra os poderes instituídos.

Ela reforça uma ideia de que todas as instituições estão contaminadas pela corrupção, de que os tribunais superiores são coniventes com isso. Não só contra o Supremo Tribunal Federal, mas também contra o Congresso.

E isso a gente observa nos dados. Estou falando antes de Bolsonaro assumir esse discurso no governo. Alguns eventos foram mais catalisadores disso. O indulto do [Michel] Temer, por exemplo, foi bastante explorado pelo Dallagnol. Ele fez diversas postagens. E o tom dos comentários sobe muito.

É quando começa a aparecer discurso de intervenção militar no STF, “vamos sitiar o STF”, “se forem 200 mil pessoas em Brasília cercar o prédio, eu duvido que eles vão continuar decidindo assim” etc.

É possível comparar esse evento aqui no Brasil com a invasão do Capitólio nos EUA? Ambos envolveram violência contra os poderes instituídos e ambos estão fundados numa mesma coisa, na “big lie”, uma grande mentira. No caso do [Donald] Trump, foi a acusação de fraude eleitoral nos estados. No caso do Brasil, a ideia é mais complexa: começa com uma trama para soltar o Lula, para que ele pudesse concorrer nesse sistema eleitoral em que as urnas são fraudadas para derrotar Bolsonaro.

E aí tem as digitais do Moro e do Dallagnol. Já na política, eles usaram a soltura do Lula como uma plataforma para acusar o STF de beneficiar indevidamente o [então] ex-presidente. O Dallagnol, inclusive, elaborou a noção do “descondenado”, que aparece muito no discurso das pessoas que estão pedindo golpe.

Óbvio que, quando se olha isso objetivamente, é uma argumentação que não tem sentido. Até porque o [ministro Edson] Fachin anulou condenações do Lula numa tentativa de preservar a Lava Jato. Ele queria evitar discussão da suspensão, e a tese da incompetência já estava estabelecida no STF, tanto que alguns casos tinham sido transferidos de Curitiba para outros tribunais.

A soltura e a elegibilidade do Lula não têm nada de armação, nada de ilegítimo. São decorrência natural de três fatores: a decantação de algumas questões jurídicas; as trapalhadas da Lava Jato, depois expostas com a Vaza Jato e a operação Spoofing; e a ida do Moro para o governo Bolsonaro.

A ida do Moro e do Dallagnol para a política contradiz o discurso antipolítica que eles sustentavam? Não acho que seja plenamente contraditório. Eles desvalorizam a política que está aí e, ao mesmo tempo, se vendem como pessoas que vão imunizar essa política, que vão agir em defesa do interesse público. Ou seja, com o discurso antipolítica você cria um problema para vender uma solução, e a solução é você.

E é preciso ponderar que tanto Moro como Dallagnol escolheram caminhos políticos que estão muito bem situados à direita ou à extrema direita. Ambos têm agendas profundamente conservadoras. E, no caso do Moro, o empreendimento é familiar, porque a Rosângela [esposa de Moro] também vai para a política.

Qual sua avaliação da passagem do Moro no Ministério da Justiça? É trágica. O Moro tem as digitais em algumas das coisas mais terríveis que aconteceram nesse período. Na primeira semana, ele assina os decretos de armas. Depois, dá início a uma prática, que depois ganhou mais densidade sobretudo com o [também ex-ministro da Justiça] André Mendonça, que é a perseguição de críticos do governo.

Ele também tem declarações terríveis. Por exemplo, quando teve denúncia de tortura num presídio federal, ele dizia que isso era apenas o “rule of law” [Estado de Direito, ou primado da lei], expressão que ele adora usar de forma distorcida.

Ele foi diferente dos dois sucessores, André Mendonça e Anderson Torres? Vejo muita semelhança. A diferença, se existe, é que Moro tinha pretensões políticas mais elevadas. E isso o colocou em rota de colisão com Bolsonaro.

Como essa trajetória do Ministério da Justiça sob Bolsonaro termina no decreto golpista encontrado na residência de Torres? Num projeto com a FGV em São Paulo, a gente estuda o que a gente chama de legalismo autocrático, que é o uso do direito para fins não democráticos. Bolsonaro, na medida do que pôde, cooptou as corporações jurídicas e fez uso do direito para fins autoritários.

Não é só o Ministério da Justiça. A gente está falando também da Advocacia-Geral da União e da Procuradoria-Geral da República. Essas três instituições foram colonizadas, e todos os que estiveram à frente delas foram serviçais do Bolsonaro.

Como o Brasil escapou do destino de países como Hungria, Turquia e Rússia? Em outras palavras, por que o decreto ficou na gaveta? O sistema político brasileiro é muito complexo. Eu falo isso porque o Bolsonaro tentou, por exemplo, passar uma PEC do voto impresso. E o voto impresso era só um artifício que ele buscava para criar confusão nas eleições. Bastaria um cidadão dizer, ‘eu votei Bolsonaro e apareceu o Lula’. Pronto, criava a confusão que poderia ser usada para justificar uma medida de força.

A [deputada] Bia Kicis [PL-DF], na Câmara, apresentou uma proposta de reversão da PEC da Bengala, para tentar aposentar ministros do STF.

Houve várias tentativas da parte do Bolsonaro de fechar o regime. Mas é difícil isso andar, em parte porque o Congresso é complexo. A fragmentação do sistema político brasileiro impede soluções pelo Legislativo.

Além disso, no caso do Executivo, tem a dificuldade de legitimação internacional. Os Estados Unidos soltaram várias notas afirmando o respeito pelas eleições, parabenizando o Lula logo que ele foi eleito. Isso gera um receio das elites de embarcar nesse tipo de aventura.

E teve o [ministro] Alexandre de Moraes. Quando o PL entrou com aquela ação para contestar o resultado das urnas, ele deu uma resposta pronta e dura, o que teria desencorajado o partido a continuar esse tipo de conversa.

O sr. citou o Alexandre de Moraes como um obstáculo ao Bolsonaro. Alguns especialistas têm apontado exageros dele, tanto no Tribunal Superior Eleitoral quanto no STF. De que maneira ele difere de Moro na Lava Jato? O caso do Alexandre de Moraes ainda está em andamento. A gente precisa ver como ele pousar esse avião: se vai ser uma queda brusca e fatal, como a Lava Jato, ou se ele vai ter habilidade de fazer um pouso tranquilo na pista.

Mas já dá para dizer, em primeiro lugar, que a gente tem de internalizar no Brasil a ideia de que o sistema de Justiça não é feito para defender a democracia ou para causar grandes transformações no sistema político.

Um erro da Lava Jato foi achar que, pelo processo judicial, conseguiria transformar a estrutura política no país –que tinha problemas, evidentemente, e eu nunca em meus estudos neguei a existência de esquemas de corrupção. É oneroso para o sistema de Justiça levar adiante esse tipo de tarefa muito ambiciosa, porque logo surgem questionamentos e porque os instrumentos são limitados.

Dito isso, Alexandre de Moraes tem à mão instrumentos melhores do que os da Lava Jato, porque ele lida não só com direito penal, mas também com direito administrativo-eleitoral. Por exemplo, muitas das medidas dele durante o processo eleitoral estão salvaguardadas por leis eleitorais. Ele não está simplesmente usando a lei penal pura.

Além disso, ele soube fazer um uso um pouco mais inteligente e menos espetaculoso dos instrumentos. A Lava Jato era baseada no espetáculo. O Alexandre de Moraes decidia e colocava nos autos; não dava entrevista, não fazia PowerPoint. Recentemente, ele começou a dar algumas declarações, e é onde eu acho que às vezes ele escorrega, como quando ele disse que essas pessoas são incivilizadas, que não dá para conversar.

Terceiro ponto: como ele é parte de um colegiado, ele consegue construir legitimidade de uma maneira diferente da que o Moro construía. O Moro teve muitas decisões validadas por instâncias superiores, mas demorava um tempo maior e gerava tensão em torno das decisões.

E o que faz muita diferença é o fato de o Alexandre de Moraes estar um pouco sozinho nisso, o que não é bom, mas também não é ruim.

Na Lava Jato, Ministério Público e juiz estavam consorciados. No caso de Moraes, ele é criticado por promotores, e isso serve como espécie de sistema de freios e contrapesos. Assim como a própria mídia, que tem apontado muito mais problemas agora do que fez em relação ao Moro.

RAIO-X | FÁBIO DE SÁ E SILVA, 42

Formado em direito na USP, com mestrado em direito na UnB (Universidade de Brasília) e doutorado direito, política e sociedade na Universidade Northeastern (EUA), é professor assistente de estudos internacionais e professor Wick Cary de estudos brasileiros Universidade de Oklahoma (EUA). Publicou na revista “Law & Society Review” o artigo “Relational legal consciousness and anticorruption: Lava Jato, social media interactions, and the co-production of law’s detraction in Brazil (2017–2019)” (Consciência jurídica relacional: Lava Jato, interações de redes sociais e a coprodução da detração do direito no Brasil).

Por que é preciso repolitizar a Economia, por Monica de Bolle

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Por trás da visão segundo a qual ela é uma ciência “técnica”, que trata “da escassez”, há um truque ideológico. É o de ocultar as disputas sociais pela riqueza coletiva e, ao fazê-lo, tratar como “naturais” as piores desigualdades

Monica de Bolle – Outras Mídias -12/01/2023

Qual é o objeto de estudo da economia e porque a resposta é tão importante para os rumos do Brasil? Comecemos pelo objeto de estudo. Pregam os livros-básicos de economia que a disciplina tem como foco a análise da escassez, ou, dito de outro modo, em um mundo em que há restrições de todo tipo — orçamentárias, de acesso, de oferta — a economia busca revelar os mecanismos que levam às alocações mais eficientes, guardadas as inescapáveis limitações.

Essa forma de orientar o olhar sobre a ciência econômica é relativamente “nova”, tendo vindo à tona mais ou menos em meados do Século XX, durante o período do pós-guerra. Não por acaso, foi nessa época que a disciplina se distanciou da política e adquiriu ares de ciência exata com a matematização crescente e o desenvolvimento de variadas técnicas quantitativas de análise. Desde então, a economia, parte integrante das ciências sociais, tendeu a se enxergar como uma ciência mais científica do que as demais. Afinal, o arsenal matemático e a crescente tecnocracia que passou a envolvê-la eram vistos como superiores às metodologias utilizadas por outras áreas das ciências sociais. Essa redefinição da economia foi possibilitada pela ótica da escassez: a partir do momento em que a economia é entendida como o estudo das privações e das restrições, tudo passa a ser uma questão de demanda e de oferta. O que determina a demanda? O que determina a oferta? Identificados esses fatores de ordem técnica, pouco sobra para a política, e, sobretudo, para a ordenação dos direitos conferidos pela Constituição às pessoas que integram a economia.

A economia como ciência da escassez é o que permite a soberania dos argumentos tecnocráticos sobre gasto e inflação, é o que dá o espaço para que medidas equivocadas como o Teto de Gastos instituído em 2016 sejam articuladas e postas em prática. Pouco importa se são ou não compatíveis com a Constituição. O que vale é que estejam bem concatenadas com as noções de demanda e oferta e com seus determinantes. Essa forma de olhar a economia, portanto, a afasta da política, da vida das pessoas, dos direitos que possuem como cidadãos. Não espanta que, em última análise, essa forma de olhar a economia gere resultados como o rebaixamento normativo da Constituição Federal, como vimos acontecer com o Teto de Gastos e suas sucessivas alterações ao longo desses últimos seis anos.

Mas, a economia como ciência da escassez está com os dias contados ao menos desde a crise financeira global de 2008. De lá para cá, vimos ruir os pilares da macroeconomia conforme a entendíamos e nada ainda conseguimos pôr no lugar. Testemunhamos a volta do debate sobre o aumento da desigualdade e da pobreza, além das convulsões políticas geradas por essas mazelas: a ascensão da ultradireita mundo afora, a vitória de líderes autoritários, os questionamentos sobre a Democracia, a insatisfação popular, o nacionalismo em suas piores vertentes. O Brasil não escapou dessas tendências, como bem sabemos após 4 anos de intenso sofrimento. Direitos foram pisoteados, vidas foram descartadas, instituições foram abaladas. A tecnocracia em excesso resultante dessa visão aparentemente inócua a respeito da economia pavimentou o caminho para os “conservadores nos costumes” e os “liberais na economia”. Os liberais na economia, sobretudo os mais extremados, se orientam pelos preceitos da escassez — da demanda e da oferta. Não há lugar para a Constituição naquilo que propõem. Portanto, os defensores de um Estado diferente daquele que foi pactuado em 1988 inadvertidamente abrem os caminhos para os anti-democratas.

Como deslocar esse olhar pernicioso da economia? A disciplina, na verdade, jamais tratou simplesmente da escassez, dos fatores técnicos que determinam as restrições. A economia nasceu há séculos da economia política, e a economia política sempre tratou de estudar os conflitos distributivos existentes em qualquer sociedade, e sob qualquer regime político. Os conflitos distributivos são a essência do nosso convívio em sociedade. Como distribuir os recursos públicos?

Quem deve deles mais se beneficiar? Essas são perguntas fundamentais da economia que tratam, sim, de escassez. Contudo, a tratam de forma indireta. A questão é: os recursos são limitados. Logo, quem deve recebê-los? E o quê garante tal ordenação de prioridades, qualquer que seja? Definida dessa forma, a economia é, também, política, por óbvio. Vista dessa maneira, a economia é indissociável da Constituição. A resposta para “o quê garante a ordenação de prioridades” é “a Constituição Federal”, a Lei das leis que define os direitos fundamentais e aponta os caminhos para a resolução dos conflitos distributivos. Entendida assim, a economia não haverá de gerar políticas econômicas inconstitucionais como o Teto de Gastos, e menos ainda pavimentará a ascensão do autoritarismo. O motivo é simples: a economia desse modo definida não é algo apartado da Constituição, mas por ela legitimado.

Ao longo dos próximos meses o Brasil nos oferece uma oportunidade única de pôr a discussão econômica dentro dos marcos constitucionais a partir do entendimento aprofundado de nossos conflitos distributivos. Fazer o esforço de reconfigurar o que a economia de fato representa e tornar esse esforço o centro do debate, extirpando de vez a tecnocracia que anima fiscalistas e desgasta a população, é um dever civilizatório. Ou melhor, é o dever civilizatório. Só assim seremos capazes de evitar o retorno de uma ultradireita anti-democrática, ainda que repaginada, em 2026.

Desafios da Reindustrialização

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Nestes últimos anos, percebemos grandes transformações nas estruturas produtivas internacionais, novos modelos de negócios, novas exigências para os trabalhadores, novos desafios para as empresas, novas formas de organizações social e política, que exigem, na sociedade contemporânea, novos instrumentos de acumulação que tendem a levar as nações a buscarem uma reestruturação produtiva e industrial ou aquilo que os economistas chamam de reindustrialização para diminuir as dependências externas e aumentarem a soberania nacional.

Desde o começo do século XXI a sociedade global foi assolada por grandes crises econômicas e financeiras, como o grande crash do mercado imobiliário nos Estados Unidos, com repercussões violentas sobre a economia internacional, gerando quebradeiras, falências de bancos e empresas, aumento no desemprego e da degradação das condições de vida de milhares de trabalhadores nos países desenvolvidos e subdesenvolvidos, cuja recuperação demandou forte intervencionismo estatal, estatização de empresas e recursos bilionários para evitar que a bancarrota não fosse maior.

Recentemente, a sociedade internacional, sentiu na pele a pandemia da covid-19, que ceifou mais de 7 milhões de pessoas no mundo todo, gerando degradações crescentes, instabilidades econômicas, quebras produtivas e incrementos nos preços. Neste cenário, muitas nações desenvolvidas perceberam crescimento da dependência industrial dos países asiáticos, notadamente crescimento da dependência das estruturas produtivas chinesas, responsáveis por grande parte da produção de insumos industriais, transformando nações ocidentais em sociedades dependentes do gigante asiático.

A pandemia desnudou a dependência das nações ocidentais da indústria asiática, fortalecendo a China, Coréia do Sul e Taiwan, gerando insatisfações internas nas economias europeias e estadunidense, aumentando as pressões dos setores produtivos para aumentarem as políticas protecionistas de seus respectivos governos, como forma de preservar a estrutura produtiva e sua autonomia industrial. Diante disso, os governos ocidentais passaram a implementar novas políticas protecionistas para garantirem mercados internos para suas indústrias, recuperar empregos perdidos anteriormente e aumentaram, sensivelmente, os subsídios para atrair novas indústrias, garantindo um estímulo para a reindustrialização e reduzir a dependência da indústria asiática.

Estamos vivendo um momento de forte intervencionismo estatal por parte das nações desenvolvidas, notadamente europeus e norte-americanos, que anteriormente, se caracterizavam com um discurso liberal agressivo, defensor dos mercados livres e forte estímulo da concorrência e da competição como o grande agente gerador de desenvolvimento das nações, uma verdadeira falácia que a contemporaneidade está desmascarando.

Neste cenário, percebemos os governos desenvolvidos dispendendo trilhões de dólares para estimular a produção interna, impedindo empresas norte-americanas de comprarem produtos de fornecedores chineses, como está acontecendo com a Dell Computadores que foi proibida de importar chips fabricados pelo gigante asiático, destacamos ainda, o governo Biden aportando mais de US$ 52 bilhões para que a TSMC e a Samsung instalem fábricas de semicondutores em solo estadunidense, fortalecendo a produção interna, aumentando a produtividade das empresas nacionais e reduzindo a dependência externa da estrutura produtiva norte-americana. Todas estas medidas fazem parte de um grande pacote de 280 bilhões de dólares dos Estados Unidos para estimular a reindustrialização de sua economia, além de mais de US$ 550 bilhões de um programa de investimento em infraestrutura e geração de empregos, capacitando sua economia para uma forte competição com as economias asiáticas e, principalmente, a China.

A reindustrialização das economias desenvolvidas voltou a agenda internacional, depois de fortes crises econômicas e da pandemia, que geraram grandes destruições produtivas, as nações perceberam a importância do setor industrial, infelizmente, internamente, a indústria brasileira foi dizimada nas últimas décadas, estimulando o rentismo, degradando o emprego e matando o mercado interno, com isso, nos afastamos fortemente do desenvolvimento.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Brasileira Contemporânea, Mestre, Doutor e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 11/01/2023.

Os inimigos da democracia, por Oscar Vilhena Vieira

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Houve falha de setores, e apurar responsabilidades deve ser primeira tarefa

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

Folha de São Paulo, 09/01/2023

A ação violenta dos manifestantes bolsonaristas contra os Poderes constitucionais, com a conivência dos setores de segurança do Distrito Federal, configura crime de tentativa “abolição do Estado democrático de Direito”, conforme disposto pelo artigo 359-L do Código Penal.

As autoridades constituídas não mais podem transigir com inimigos da democracia. Sem uma ação contundente que apure a responsabilidade, não apenas dos vândalos que invadiram e depredaram a sede dos Poderes da República, mas também aqueles que vêm vandalizando as nossas instituições democráticas nos últimos anos, a democracia perecerá.

De imediato, o presidente decretou intervenção federal, conforme disposto no artigo 39, III, da Constituição Federal, que deverá ser apreciada imediatamente pelo Congresso Nacional. O decreto lido pelo presidente da República restringe a intervenção à esfera de segurança pública.

Caso tivesse optado pela decretação do Estado de Defesa, poderia haver restrição aos direitos de “reunião”, assim como quebrado o sigilo de “correspondência” e “comunicação telegráfica e telefônica”.

Restabelecida a ordem, a primeira tarefa será apurar responsabilidades. Os que invadiram e depredaram prédios devem ser presos em flagrante imediatamente. Aqueles que financiaram e organizaram essas caravanas golpistas também devem ser presos temporariamente, para que não persistam esses atos contrários ao regime democrático e para que as provas possam ser coletadas.

As responsabilidades do governador do Distrito Federal, do seu secretário da Segurança e de outras autoridades também devem ser imediatamente apuradas. O afastamento dessas autoridades, por prática de crime de responsabilidade, é um imperativo para que a ordem pública, não apenas seja restaurada, mas para que possa ser mantida no futuro imediato. Não se deve negligenciar ainda, a apuração daqueles que têm incitado animosidade das Forças Armadas contra os Poderes constitucionais, conforme disposto no artigo 286, parágrafo único do Código Penal.

O novo governo, por fim, deverá tomar medidas urgentes para reorganizar os setores de inteligência e de segurança do Estado brasileiro. Essa insurgência estava prevista. Vinha sendo anunciada há vários dias. Houve falha desses setores, ao não prevenirem esses ataques à democracia. Se não se colocar em marcha uma profunda reforma desses setores, assim como uma revisão da legislação e dos mecanismos institucionais de defesa do Estado democrático de Direito, nosso regime constitucional continuará sob a grave ameaça dos inimigos de nossa democracia.

A rebeldia de direita e o homem comum, por Camila Rocha.

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Slogan da esquerda de 1968 tornou-se central para as direitas contemporâneas

Camila Rocha, Doutora em ciência política pela USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.

Folha de São Paulo, 09/01/2023

Por que e em que momento a ideia da rebeldia foi apropriada pela direita? Foi com essa pergunta que o presidente chileno Gabriel Boric iniciou uma entrevista concedida à jornalista Mônica Bergamo. De fato, ao longo das últimas duas décadas, o “politicamente incorreto” ganhou ares de rebeldia. Hoje, o conhecido slogan da esquerda de 1968, “é proibido proibir”, tornou-se central para as direitas contemporâneas.

As origens do fenômeno coincidem com a popularização da internet entre pessoas de classe média e alta. No início dos anos 2000, redes sociais como MySpace e Orkut, e fóruns como Reddit, 4chan e Vale Tudo, do brasileiro UOL Jogos, permitiram a circulação de ideias inusitadas, absurdas ou mesmo odiosas e violentas.

O propósito de direitistas que frequentavam tais espaços era demolir as estruturas ideológicas do establishment a partir da periferia da esfera pública. A esquerda era vista como hipócrita, corrompida e vendida à sociedade de consumo, e a direita tradicional tida como abobalhada, tediosa e incapaz de fazer frente aos avanços da esquerda no campo cultural.

Com o tempo, a partir da circulação crescente de memes, discursos que antes ficavam restritos a livros e fanzines obscuros começaram a atingir cada vez mais pessoas. Mas foi apenas quando a internet se massificou, e privilégios históricos começaram a ser questionados na esfera pública tradicional, amplificando o alcance do chamado “politicamente correto”, que parcelas mais amplas da sociedade passaram a fazer coro à rebeldia de direita.

Para um segmento expressivo de trabalhadores, os avanços progressistas incomodam em várias frentes. Em primeiro lugar, há o incômodo com a possibilidade de que outros setores oprimidos possam roubar seu lugar na fila do pão. Depois, a percepção de que a família e a religião, suas principais fontes de proteção e acolhimento frente à violência e insegurança cotidianas, teriam passado a ser vilipendiadas. Mas mais do que isso, seu próprio modo de ser e estar no mundo, e seu orgulho, estariam sendo atacados de forma insistente e pedante pelo “politicamente correto”.

O sentimento é de que qualquer deslize pode provocar brigas na família, com amigos e conhecidos, ou até mesmo a perda do trabalho. Daí a sensação constante de repressão e a catarse provocada por políticos e influenciadores que “mandam a real, sem papas na língua”, alardeando uma suposta liberdade absoluta contra uma “ditadura do politicamente correto capitaneada por esquerdistas”.

Porém, o que ocorre de fato é que o mesmo “ímpeto civilizatório” utilizado nas redes sociais para defender grupos que historicamente são alvo de discriminação e violência não costuma se estender à defesa de trabalhadores comuns. Sobretudo daqueles tidos como ignorantes e atrasados.

Além disso, a esquerda não consegue enfrentar a opressão econômica e as injustiças vivenciadas por largos setores da população, que incluem justamente as pessoas tachadas de ignorantes e atrasadas. Na prática, o que prevalece é o neoliberalismo progressista, que, na visão de vários trabalhadores, seria o mesmo que defender os interesses dos ricos e o “politicamente correto”. E assim o homem comum fica abandonado à própria sorte e aos rebeldes de direita, que apresentam ser mais “empáticos” com suas angústias.

No mote do governo Lula, falta ‘retirar o rico do Orçamento’, por Sérgio Firpo

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Políticas públicas, por mais bem intencionadas, podem ser ineficazes na redução de desigualdades

Sérgio Firpo, Professor de economia e coordenador do Centro de Ciência de Dados do Insper

Folha de São Paulo, 07/01/2023

Há diversos fatores estruturais para a manutenção da desigualdade de renda no Brasil em níveis extremamente elevados. São causas conhecidas e reconhecidas há tempos, como o acesso limitado à educação básica de qualidade; discriminação no mercado de trabalho por gênero, raça e idade; e acesso desigual a transferências governamentais implícitas ou explícitas.

Entre essas transferências destacam-se, entre outras aqui não listadas, os benefícios previdenciários para além das contribuições individuais; as isenções e desonerações tributárias como as do IR (Imposto de Renda) sobre gastos privados com saúde e educação, e as regionais ou setoriais, como nos regimes especiais de tributação; e os subsídios financiados pelo Tesouro (ainda que camuflados sob diversos disfarces) a empresas como nos empréstimos indexados pela antiga TJLP (Taxa de Juros de Longo Prazo).

A desigualdade de renda se alimenta e se fortalece tanto da forma como o Estado brasileiro arrecada tributos, quanto da forma como gasta e investe. O Estado brasileiro, em vez de desfazer desigualdades de oportunidades, as cristaliza e as amplifica.

O mote do novo governo de “colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda” aponta na direta correção de rumos do papel do Estado brasileiro. Mas dificilmente o fará sem “retirar o rico do orçamento”. O papel amplificador da desigualdade de renda que o Estado brasileiro tem desempenhado não se alterará com uma transitória inclusão de grupos socialmente vulneráveis no orçamento.

A luta por fatias no orçamento tem tradicionalmente beneficiado grupos politicamente mais fortes, ainda que não necessariamente mais representativos do tecido social. O resultado tem sido a acomodação de demandas particulares, que até a criação do teto de gastos, fazia com que as despesas governamentais crescessem continuamente como proporção do PIB (Produto Interno Bruto) nas últimas três décadas.

Crescem as despesas, mas a desigualdade não necessariamente cai junto. A queda da desigualdade de renda entre o fim dos anos 1990 e começo dos anos 2010 foi puxada pelas mudanças no mercado de trabalho. Pode-se argumentar que o principal mecanismo pelo qual o aumento do orçamento público afetou a queda na desigualdade nesse período tenha sido via aumento da cobertura educação básica.

A inclusão no sistema educacional de parte da população tradicionalmente excluída, que se refletiu no aumento do investimento em educação pública desde o fim dos anos 1980, colaborou com a redução nos prêmios educacionais e, portanto, com a queda da desigualdade da renda do trabalho.

Programas focalizados e bem desenhados de transferência de renda, como o Bolsa Família, são ótimos para redução da pobreza extrema, mas não têm capacidade de reduzir desigualdade de renda. Transferências diretas só afetam a desigualdade extraordinariamente, como foi o caso do ano 2020, num arcabouço de mercado de trabalho paralisado pela pandemia.

Há pouco espaço para aumento da carga tributária. Pode-se e deve-se “colocar o rico no imposto de renda”, sobretudo ao se extinguirem as diversas desonerações e isenções tributárias. Mas o Estado brasileiro deve ter permanentemente o foco de seus investimentos e gastos nos mais vulneráveis.

Não será com distribuição de subsídios nas taxas de juros para projetos economicamente inviáveis ou com falta de focalização nas despesas sociais, entre elas a previdenciária, que se conseguirá, finalmente e permanentemente, “colocar os pobres no orçamento”.

A escolha de políticas públicas precisa de orientação, não apenas política, mas técnica. A eficácia das políticas na redução da desigualdade pode ser mensurada com base nas experiências prévias e nas técnicas disponíveis para avaliação de impacto. Ao não fazermos escolhas e tentarmos incluir quem precisa sem excluir quem não precisa, apenas adiamos o enfrentamento sério de nossas iniquidades sociais.

O Brasil pode liderar a transição para uma bioeconomia circular, por Ayla S. da Silva

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Exploração racional da maior biodiversidade do mundo pode gerar desenvolvimento

Ayla Sant’Ana da Silva, é pesquisadora do Instituto Nacional de Tecnologia e docente do Programa de Pós-Graduação em Bioquímica da UFRJ.

Folha de São Paulo, 06/01/2023

O Brasil é a nação de maior biodiversidade do planeta, com 15% a 20% da quantidade de espécies estimadas. De acordo com dados do Governo Federal, há cerca de 116 mil espécies animais e 46 mil espécies vegetais catalogadas, dispersas pelos biomas terrestres e ecossistemas marinhos. Apesar de parecerem dados expressivos, calcula-se que esses números representem apenas um pequeno percentual da diversidade do país, já que a identidade de centenas de milhares de outros organismos permanece um mistério.

Grande parte dessa biodiversidade, no entanto, antes mesmo de ser conhecida está ameaçada por atividades humanas não sustentáveis. A devastação descontrolada da Amazônia, por exemplo, faz com que estejamos num momento em que a taxa de destruição é muito mais rápida que a velocidade de descoberta de novas espécies.

É um cenário de corrida contra o tempo, pois a cada vez que uma área é desmatada, destruímos parte da biodiversidade que nunca mais conheceremos — uma vez perdida, provavelmente o será para sempre. Isso porque muitas espécies são encontradas somente em determinada região do globo, e em mais nenhuma. São as espécies endêmicas, que requerem atenção quanto a sua preservação. No Brasil, há preocupação especial com a Mata Atlântica e o Cerrado, biomas classificados como hotspots de biodiversidade por serem regiões com níveis excepcionais de endemismo e graves percentuais de perda de habitat.

Para além do impacto ambiental, a perda de nossa biodiversidade e a ignorância a respeito dela precisam ser analisadas do ponto de vista dos possíveis impactos econômicos e das oportunidades de desenvolvimento desperdiçadas. Atividades essenciais para a economia brasileira, como a agropecuária e a produção de alimentos e bebidas, são altamente dependentes do equilíbrio da natureza. É um contrassenso expandir essas atividades sem considerar as consequências da perda de diversidade nesses sistemas produtivos no médio e longo prazo.

A biodiversidade também deve ser considerada um ativo para alavancar o desenvolvimento econômico e social no Brasil. Ao desconhecer seu potencial, deixamos de produzir novos bioprodutos, como medicamentos, suplementos alimentares, biocombustíveis e cosméticos, entre outros.

É nesse contexto que nas últimas décadas o mundo vem discutindo oportunidades para passar à era da bioeconomia. Antes de mais nada, é preciso ressaltar que o termo bioeconomia pode ter muitos significados, dependendo do interlocutor. Aquela que pode beneficiar o Brasil de forma significativa é a que faz uso de recursos naturais em conjunto com novas tecnologias para criar produtos e serviços mais sustentáveis, sem prejuízo da biodiversidade. No caso brasileiro, um país com atuação consolidada no agronegócio, também é interessante incorporar conceitos da economia circular à bioeconomia. O modelo de bioeconomia circular irá gerar cadeias produtivas com menos desperdício, por meio da implantação de sistemas econômicos de ciclos fechados que aproveitam matérias-primas de forma mais completa, pois os resíduos gerados em um processo passam a ser matéria-prima na produção de novos produtos, agregando valor à cadeia como um todo.

Contudo, hoje, mesmo levando em conta o que já se conhece, há pouquíssimos estudos aprofundados que nos permitem usufruir de todas as potencialidades de nossa biodiversidade. Por exemplo, se olharmos para cadeias produtivas de frutos nativos como açaí, macaúba, cambuci, uvaia, jabuticaba ou licuri, vamos identificar uma gama de resíduos com uma diversidade química ainda pouco explorada, que por sua vez poderia ser fonte para obtenção de novos bioprodutos e derivados sintéticos. Essas potencialidades, no entanto, só serão desvendadas com o estímulo à pesquisa e à experimentação científica.

Tais estudos fundamentais, que vão da classificação de novos microrganismos, animais e plantas a pesquisas direcionadas a aplicações industriais, podem constituir a base do desenvolvimento sustentável descentralizado e duradouro com potencial de impactar economias locais, já que a biodiversidade varia de um bioma para o outro. Por exemplo, a produção de insumos de alto valor agregado na Amazônia por meio de empreendimentos de base biotecnológica pode aumentar a geração de empregos e a demanda pela profissionalização da população local, minimizando efeitos migratórios para grandes centros.

A abundância de recursos naturais põe o país numa posição privilegiada para assumir um papel de liderança mundial na era da bioeconomia. Dificilmente, porém, novos medicamentos e inovações biotecnológicas surgirão enquanto a biodiversidade brasileira não for pesquisada e financiada de forma sistemática e contínua, com visão multidisciplinar e investimentos de longo prazo. Somente o fomento da pesquisa científica, além do investimento em infraestrutura e educação, darão ao país a oportunidade de se transformar num importante agente na produção de bioprodutos de alto valor agregado. Assim, a exploração racional de nossos recursos naturais pode se somar à nossa já consolidada produção de commodities, dando suporte ao desenvolvimento tecnológico.

Taxem os ricos! por André Roncaglia

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Tentativa de se impor um teto à riqueza ganhou força com a pandemia

André Roncaglia, Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo, 06/01/2023

Em seu discurso de posse no domingo (1º), o presidente Lula contrastou a fila do osso no açougue com a fila nas concessionárias de carros de luxo. Poucos dias antes, a Assembleia Legislativa de São Paulo decidiu reduzir de 4% para 1% o imposto sobre heranças no estado. Estes eventos reacenderam o debate sobre a injustiça social no país.

Desde as infames Leis dos Pobres na Inglaterra do século 19, foi longo e tortuoso o caminho para se impor um piso à pobreza, por meio de programas de proteção social. A tentativa de se impor um teto para a riqueza ganhou força com a pandemia. O maior número de bilionários contrastou com as centenas de milhares de famílias vitimadas pelo vírus. Esse contexto reforçou o apelo social de impostos sobre patrimônio dos mais ricos, em particular o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF).
Sistemas tributários com maior participação da arrecadação sobre patrimônio têm melhor desempenho econômico. Além disso, impostos sobre heranças e doações, sobre riqueza financeira e imobiliária elevam o grau de isonomia e a progressividade da tributação. Neste sentido, o IGF é um instrumento indispensável.

O estado da arte sobre o tema é apresentado no livro Progressividade Tributária e Crescimento Econômico, organizado por Manoel Pires (IBRE-FGV e UnB). A experiência internacional mostra limitado potencial arrecadatório em termos do PIB. As razões estão na base de incidência sobre uma camada muito restrita no topo da distribuição, mas também no mau desenho do imposto e no pouco esforço de fiscalização.

Em contexto de maior mobilidade de capitais e amplo acesso a paraísos fiscais, acredita-se que este imposto afugenta a riqueza. Estudos mostram efeitos heterogêneos entre países, bem como há evidências de que este risco de fuga seja superestimado (home bias). De qualquer forma, a focalização nos ricos requer uma alíquota moderada para evitar distorções potenciais de alocação de recursos e comportamentos evasivos.

Além da capacidade de evasão, os grupos abastados têm grande influência sobre a opinião pública. A pressão política pode restringir a base de tributação (excluindo-se ativos e elevando o limite de isenção), reduzir a alíquota e a duração do tributo (taxar uma única vez ou em contextos de calamidade).

Mesmo assim, vale a pena enfrentar o desafio. Por ser um tributo sobre riqueza líquida (ativos menos dívidas), pode-se elevar a progressividade no topo da distribuição. Em sua ausência, famílias com patrimônio elevado, mas renda baixa, podem ficar sub-tributadas em termos relativos. A digitalização é importante aliada na redução do custo administrativo em monitorar e fiscalizar a riqueza no topo.

O caso brasileiro exubera injustiça tributária e, por isso, oferece boas condições à aplicação do IGF. Os superricos pagam 5% de alíquota efetiva de IR sobre sua renda e têm quase R$ 7 em cada R$ 10 da sua renda anual isenta de impostos. A imagem piora ao subir a pirâmide. O 0,01% mais rico da população detém cerca de 20% da renda total do grupo. Neste grupo a isenção pode atingir 90% da renda pessoal.

A Constituição prevê a instituição do IGF no inciso VII do artigo 153. Desde 1989, mais de 40 projetos de lei foram apresentados ao Congresso Nacional para regulamentar o imposto. As propostas mais recentes propõem taxar fortunas acima de R$ 20 milhões, com alíquotas que vão de 0,5% a 1%. As 220 mil pessoas afetadas pelo imposto representam 30% da riqueza declarada no IRPF.

Modulações de limites de isenção e de alíquota afetam o potencial de arrecadação. Uma proposta prevê isenção a patrimônios menores que R$ 5 milhões e estima R$ 40 bilhões (0,4% do PIB) em recolhimentos.

Por não ser uma bala de prata, o IGF deve integrar um arranjo mais amplo de tributação sobre patrimônio. Ao produzir maior progressividade, ele pode reduzir a injustiça tributária no Brasil. E isso já é um bom começo.

Depressão geopolítica, por Nouriel Roubini

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A Terra é Redonda – 04/01/2023

As economias avançadas e os mercados emergentes estão cada vez mais envolvidos em “guerras” inevitáveis. Por isso, o futuro será estagflacionário. E a única questão é saber quão ruim ele será

A inflação aumentou acentuadamente ao longo de 2022 nas economias avançadas e nos mercados
emergentes. As tendências estruturais sugerem que o problema será secular – e não transitório. Especificamente, muitos países estão agora envolvidos em várias “guerras” – algumas reais, outras metafóricas – que levarão a déficits fiscais ainda maiores, mais monetização da dívida e inflação mais alta no futuro.

O mundo está passando por uma forma de “depressão geopolítica” coroada por uma crescente rivalidade entre o Ocidente e potências revisionistas alinhadas entre si (se não aliadas), como China, Rússia, Irã, Coréia do Norte e Paquistão. As guerras frias e quentes estão em ascensão. A brutal invasão da Ucrânia pela Rússia ainda pode se expandir e envolver a OTAN. Israel – e, portanto, os Estados Unidos – está em rota de colisão com o Irã, que está prestes a se tornar um Estado com armas nucleares. O Oriente Médio, de modo amplo, é um barril de pólvora. E os EUA e a China estão se enfrentando sobre quem dominará a Ásia e se Taiwan será reunificada à força ou não com a China continental.

Consequentemente, os EUA, a Europa e a OTAN estão se rearmando, assim como praticamente todos os países no Oriente Médio e na Ásia, incluindo o Japão, que embarcou agora num reforço militar, o maior em muitas décadas. Assim, níveis mais altos de gastos com armas convencionais e não convencionais (incluindo as dos tipos nuclear, cibernética, biológica e química) estão praticamente garantidos e esses gastos pesarão nas contas públicas.

A guerra global contra a mudança climática também custará caro – tanto para o setor público quanto para o privado. A mitigação e a adaptação às mudanças climáticas podem custar trilhões de dólares por ano nas próximas décadas; é tolice pensar que todos esses investimentos impulsionarão o crescimento. Depois de uma guerra real que destrói grande parte do capital físico de um país, uma onda de investimento pode, é claro, produzir uma expansão econômica; no entanto, o país vai estar mais pobre por ter perdido grande parte de sua infraestrutura. O mesmo se aplica aos investimentos climáticos. Uma parte significativa do capital social existente terá de ser substituída, seja porque se tornou obsoleta seja porque foi destruída por eventos climáticos.

Agora também estamos travando uma guerra cara contra as futuras pandemias. Por diversas razões – algumas delas relacionadas às mudanças climáticas – os surtos de doenças com potencial para se tornarem pandemias se tornarão mais frequentes. Mesmo se os países investirem em prevenção para lidar com futuras crises de saúde, após o evento acontecer, eles incorrerão em custos mais altos de forma permanente. Ora, isso aumentará o fardo crescente associado ao envelhecimento da sociedade o que onerará os sistemas de saúde privados e os planos de pensão. Já se estima que essa carga implícita de dívida não financiada esteja próxima do nível da dívida pública explícita para a maioria das economias avançadas.

Além disso, será necessário travar cada vez mais guerras contra os efeitos disruptivos da “globótica”, ou seja, a combinação de globalização e automação (incluindo inteligência artificial e robótica), pois essa tecnologia está ameaçando um número crescente de ocupações manuais ou intelectuais. Os governos estarão sob pressão para ajudar os que ficaram para trás, seja por meio de esquemas de renda básica, transferências fiscais maciças ou expansão dos serviços públicos.

Esses custos permanecerão altos mesmo que a automação leve a um aumento no crescimento econômico. Por exemplo, sustentar uma escassa renda básica universal de US$ 1.000 por mês custaria aos EUA cerca de 20% de seu PIB.

Finalmente, também será preciso travar uma guerra urgente contra o aumento da desigualdade de renda e de riqueza. Em caso contrário, o mal-estar que aflige os jovens e muitas famílias da classe média e mesmo da classe operária continuará a gerar reações contra a democracia liberal e o capitalismo de livre mercado. Para evitar que regimes populistas cheguem ao poder e sigam políticas econômicas imprudentes e insustentáveis, as democracias liberais precisarão gastar uma fortuna para reforçar suas redes de segurança social – como muitas já estão fazendo.
Lutar contra essas cinco “guerras” será caro; fatores econômicos e políticos limitarão a capacidade dos governos de financiá-las com impostos mais altos. As taxas de impostos em relação ao PIB já são altas na maioria das economias avançadas – especialmente na Europa – e a evasão, a elisão e a arbitragem fiscais complicarão ainda mais os esforços para aumentar os impostos sobre altas rendas e sobre os ganhos de capital (supondo que tais medidas possam vencer a reação dos lobistas e dos partidos de centro-direita).

Assim, essas guerras necessárias aumentarão os gastos e as transferências do governo como parcela do PIB – provavelmente sem um aumento proporcional nas receitas fiscais. Os déficits orçamentais estruturais irão crescer ainda mais do que agora, o que produzirá certamente dívida insustentáveis. Ora, isso aumentará os custos dos empréstimos, mas poderá culminar em crises de dívida, com óbvios efeitos adversos no crescimento econômico.

Para os países que tomam empréstimos em suas próprias moedas, a opção mais conveniente será permitir que uma inflação mais alta reduza o valor real da dívida nominal de longo prazo quando ela é remunerada com taxa de juros fixa. Essa abordagem funciona como uma taxação adicional contra os poupadores e os credores e em favor dos tomadores de empréstimos e devedores. Como o “imposto inflacionário” é uma forma sutil e sorrateira de tributação que não requer aprovação legislativa ou executiva, ele se afigura como um caminho padrão de menor resistência quando os déficits e as dívidas se tornam cada vez mais insustentáveis.

Essa opção pode ser combinada com medidas complementares e draconianas, tais como repressão financeira, impostos pesados sobre o capital e aceitação da inadimplência total em certos casos (por exemplo, para países que tomam empréstimos em moedas estrangeiras ou que mantêm uma grande dívida de curto prazo ou uma dívida total indexada à inflação).

Concentrei-me principalmente nos fatores do lado da demanda e estes levarão a maiores gastos, maiores déficits, mais monetização da dívida e mais inflação. Mas também haverá certamente muitos choques negativos de oferta agregada no médio prazo e eles poderão aumentar as pressões estagflacionárias, as quais já se fazem presentes atualmente, elevando assim o risco de recessões e de crises de dívida em cascata. A “grande moderação” está morta e enterrada; a “grande crise da dívida estagflacionária” está aí vivíssima e prosperando.

*Nouriel Roubini, professor de economia na Stern School of Business da Universidade de Nova York, é economista-chefe da Atlas Capital Team. Autor, entre outros livros, de MegaThreats: Ten Dangerous Trends That Imperil Our Future, and How to Survive Them (Little, Brown and Company).
Tradução: Eleutério F. S. Prado

A alienação do trabalho intelectual, por Bruno Machado

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Bruno Machado*

A Terra é Redonda – 05/01/2023

É de interesse da classe proprietária que a classe trabalhadora se enxergue como dividida entre trabalhadores físicos e intelectuais

É comum entre jovens de classe média, indo da classe média baixa à classe média alta, a entrada no mercado de trabalho diretamente em funções de trabalho intelectual, com pouca ou nenhuma presença de trabalho físico. A entrada na Universidade e o primeiro emprego após a graduação, ou mesmo a atuação profissional dentro de empresas familiares, faz com que boa parte dos jovens de classe média nunca tenham contato com qualquer tipo de trabalho que não seja intelectual como o trabalho físico, ainda que de leve intensidade.

Esse fenômeno favorece a divisão entre o trabalho físico e o trabalho intelectual na sociedade. O que faz com que esses jovens de classe média que entram no mercado diretamente em funções intelectuais se sintam melhores do que os jovens que atuam no mercado de trabalho em funções de menor posição hierárquica e em trabalhos não voltados a intelectualidade.

Essa enganosa sensação de superioridade, que muitas vezes sequer acompanha um salário mais alto, cria uma falsa divisão de classes no mercado de trabalho. Em vez de enxergar a divisão social entre trabalhador e proprietário, por ter mais contato com o “peão” do que com o “patrão” essa classe média se vê no topo de pirâmide social, acima dos trabalhadores braçais.

Isso ocorre tanto nas classes médias de visão de mundo liberal quanto nas de visão de mundo socialista. A classe média liberal enxerga a classe trabalhadora apenas como a parte que exerce o trabalho físico, se excluindo dessa classe social, apesar de pertencer a mesma. Dessa forma, veem as massas como gente a ser explorada, por crer que esses não têm condições de exercerem outro papel social.

Por outro lado, a classe média socialista, principalmente a que compõe uma esquerda universitária, vê as massas como gente a ser educada, esclarecida e ajudada, pois não vê nessa parcela da sociedade uma capacidade de autonomia política. Ambas as visões de mundo, fundadas no privilégio do trabalho intelectual, alienam essa classe média, que passa a se identificar como uma classe diferente das massas. Porém, do ponto de vista do sistema como um todo são massa junto com aqueles que eles veem como a massa.

Por isso, o trabalho físico, que é fundamental para o funcionamento da sociedade e necessita ser realizado, não precisa ser exclusivo de uma parcela da sociedade enquanto outra se vê distante dele. Da mesma maneira que o acesso a capacitação para o exercício do trabalho intelectual deve ser universal, deve haver uma equânime divisão social do trabalho físico na sociedade. Tal ideia sequer é nova, na União Soviética muitos estudantes universitários que tinham acesso gratuito a graduação também tinham que trabalhar em carga horária reduzida em fábricas ou plantações. Tal política tinha como objetivo valorizar o trabalho e demonstrar a igualdade da importância do trabalho físico com o intelectual.

Se a classe média que vive desde a entrada no mercado de trabalho o privilégio do trabalho intelectual tivesse contato com o trabalho físico, ainda que de forma reduzida, teria menos preconceito com os trabalhadores ditos “peões” e desenvolveriam maior consciência de classe, se identificando como classe trabalhadora. É de interesse da classe proprietária que a classe trabalhadora se enxergue como dividida entre trabalhadores físicos e intelectuais e não se
voltem contra a verdadeira classe dominante na sociedade capitalista.

É evidente que políticas públicas voltadas a inserção de jovens universitários no mercado de trabalho em trabalhos não intelectuais que levem a valorização do trabalho como um todo e, por consequência, também eleve a conscientização de classe desses jovens, seria duramente rejeitado pela classe média brasileira. Isso ocorreria pois o trabalho não intelectual, que inclui o trabalho meramente físico, é visto como castigo para essa parcela da sociedade privilegiada.

*Bruno Machado é engenheiro.

Desejos de ano novo

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Estamos iniciando mais um ano, um novo governo, com novas esperanças, novas expectativas, novos sonhos, vontades e desejos no coração. Depois de momentos de incertezas, instabilidades, conflitos políticos, polarizações ideológicas e fraco crescimento econômico. O ano nos traz grandes desafios e oportunidades, depois de uma pandemia global que dizimou quase 7 milhões de pessoas, sendo que no Brasil, os dados mostram mais de 700 mil pessoas mortas, um número assustador e nos coloca como um dos países que mais foram afetados pela pandemia.

Neste momento, fomos assolados por graves crises econômicos e sociais, com aumento da fome, incremento do desemprego, crescimento da violência urbana, degradação dos serviços públicos e aumento considerável da desesperança, os medos aumentaram, a convivência humana foi degradada, o ambiente corporativo fortemente competitivo e centrado no individualismo gerou mais fragilidades emocionais e desequilíbrios sentimentais, criando uma sociedade cada vez mais degradada, polarizada, individualista e imediatista, desta forma, infelizmente estamos caminhando rapidamente para um colapso social.

O próximo ano precisa reestruturar a sociedade, inserindo uma parcela substancial da comunidade no mercado de consumo, garantindo espaço de empregabilidades para todos os indivíduos, garantindo novas esperanças e perspectivas para todos os grupos sociais, fortalecendo os laços familiares e sociais na comunidade, construindo políticas públicas que insiram os jovens e os adolescentes nas escolas e faculdades, garantindo uma educação de qualidade.

A sociedade precisa compreender que a educação não é a bala de prata para a sociedade, a educação é imprescindível para o desenvolvimento de uma sociedade, mas desde que seja inserida num projeto maior de país, um projeto de nação, precisamos discutir qual tipo de educação queremos para as crianças, adolescentes e jovens, precisamos discutir todo ecossistema relacionado com a educação e com o sistema econômico e produtivo, cobrando qualidade nas instituições de ensino, investindo em melhorias substanciais e impedindo o funcionamento de instituições de ensino superior dotadas de grandes bilhões de recursos financeiros, caixas abarrotadas de cifrões e responsáveis pela formação de alunos de péssima qualidade que contribuem ativamente para os indicadores degradantes da educação brasileira.

O ano novo deve trazer de volta para a sociedade o planejamento econômico e políticas estratégicas para o futuro da nação, que adianta aumentar a arrecadação tributária numa estrutura de tributos altamente regressivo que degrada a classe média e os setores mais fragilizados em detrimento dos grandes milionários e bilionários que pouco contribuem e são os grandes ganhadores das isenções fiscais e das taxas extorsivas da economia, que destroem os empreendedores e aumentam os lucros dos financistas e dos prepostos do mercado financeiro.

O ano novo deve trazer de volta os sonhos dos criadores do sistema de saúde nacional, os precursores do Sistema Único de Saúde (SUS), que vislumbraram a saúde integral para cada cidadão nacional, garantindo-a como um direito do Estado Nacional, mas se não revermos as políticas em curso, estamos caminhando a passos largos para um processo, sem volta, de uma financeirização da saúde, como aconteceu no setor educacional e suas consequências se mostram cada vez mais degradantes, garantindo aos donos dos recursos atendimentos de saúde de qualidade, exames de grande complexidade e uma grande massa de degradados, exilados em condições de indignidade, de desesperança e de exclusão social.

O ano novo pode nos trazer novas perspectivas positivas para a sociedade, os desafios são imensuráveis, grande parte dos grupos sociais e econômicos não perceberam a urgência destes desafios, diante disso, é urgente reconstruirmos os laços sociais, fortalecer as instituições e consolidar a democracia.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 04/01/2023.

Carta Mensal – Dezembro 2022

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O último mês do ano de 2022 foi marcado por grandes discussões referentes ao novo governo, a formação dos ministérios, as secretarias e as pessoas que participariam da nova gestão a partir de janeiro de 2023. Foi um momento de grandes conversas e discussões que visavam a construção de um governo de coalizão, com inúmeros partidos políticos, com variados grupos sociais, com agendas variadas, visando a chamada a governabilidade.

Neste momento, os olhos estavam voltados a definição da equipe econômica, as pessoas que seriam responsáveis pela condução da política econômica, onde os jornalistas destacavam como seria a nova âncora fiscal do novo governo, quais as medidas que seriam implementadas para reverter os indicadores econômicos herdados do governo Jair Bolsonaro. Depois de grandes conversações foram alçados ao posto maior da economia brasileira o professor Fernando Haddad, ex-ministro da Educação, ex-prefeito de São Paulo e ex-candidato à presidência da República de 2018. A escolha foi marcada por grandes críticas e aplausos da mídia corporativa, de um lado, ligados aos donos do capital, ressaltavam a pouca experiência no cargo e o fato de Haddad não ser visto como um economista original, sua formação contempla uma formação em Direito, Economia e Filosofia. De outros, mais progressistas, a escolha de Haddad foi positiva, com muitos elogios e visto como uma pessoa responsável fiscalmente, sensível socialmente e dotado de grande capacidade de conversação política.

Neste mês de dezembro foram escolhidos todos os 37 ministros, com nomes conhecidos, como Marina Silva (Meio Ambiente), Simone Tebet (Planejamento), Margareth Menezes (Cultura), Carlos Luppi (Previdência), Luiz Marinho (Trabalho), Wellington Dias (Desenvolvimento , Silvio Almeida (Direitos Humanos), Carlos Fávaro (Agricultura e Pecuária), Paulo Pimenta (Secretaria de Comunicação Social), Rui Costa (Casa Civil), Alexandre Padilha (Relações Institucionais), Flávio Dino (Justiça e Segurança Pública), Ana Moser (Esporte), Esther Dweck (Gestão), Nísia Trindade (Saúde), Camilo Santana (Educação), Márcio França (Portos e Aeroportos), Mauro Vieira (Relações Exteriores), José Múcio Monteiro (Defesa), dentre outros.

Destacamos um governo de coalizão com vários partidos políticos, setores do PSD foram contemplados, União Brasil, PSB, PT, PC do B, Rede Sustentabilidade, dentre outros. Neste momento, percebemos que vivemos de grandes desafios políticos, a democracia brasileira está sendo, novamente, testada, tudo como forma de construirmos uma governabilidade, que é fundamental para que o governo consiga impor uma agenda de grandes transformações para a sociedade brasileira, marcada por grandes destruições nas mais variadas áreas e setores, desde a educação, da saúde, das políticas públicas, da infraestrutura, da cultura, uma verdadeira destruição que precisa ser reconstruída urgentemente.

Destacamos ainda, as movimentações dos grupos bolsonaristas, que desde o final do segundo turno, se concentraram na frente dos quartéis como forma de pressionar as forças armadas a atuarem diretamente para reverter os resultados das urnas, um movimento antidemocrático, organizado e financiado por setores que ganharam grandes recursos no governo de Bolsonaro, visto como “patriotas” e defensores do “povo” brasileiro, uma grande falácia, centrada numa narrativa enviesada e pouco convincente. Neste período, percebemos que os setores das Forças Armadas atuaram, indiretamente, para impedir a remoção destes movimentos das portas dos quartéis, gerando fortes constrangimentos na sociedade e levando os setores militares perderam uma parte substancial da respeitabilidade na sociedade brasileira.

O mês de dezembro de 2022 não foi apenas marcado pela formação do novo governo brasileiro, destacamos alguns fenômenos que devemos comentar e deixar como um instrumento de registro na Carta Mensal/2022. Dentre elas, destacamos a Copa do Mundo do Catar, que muitos acreditavam na vitória da seleção de Tite, depois de alguns jogos pouco envolventes e vitórias fracas e descritas como magras, a seleção brasileira foi, novamente, desclassificada pela Croácia, dando adeus ao sonho de nos tornarmos a primeira nação a ser seis vezes campeã, amargando, ainda, o título de nossos irmãos argentinos, que se tornaram tricampeões depois de uma final eletrizante com os franceses. Parabéns aos Argentinos!!!

Dois outros fenômenos marcaram o mês de dezembro de 2022, ou melhor, duas mortes que entraram para história mundial, de um lado, os brasileiros e todos os fãs do futebol se despedem da Edson Nascimento, o Pelé, o maior jogador de todos os tempos. A história de Pelé é imprescindível para compreendermos o futebol brasileiro, o drible, os lances, os ritmos e a leveza. O mundo perde a morte do maior jogador de futebol de todos os tempos, único que parou uma guerra, responsável por transformar o Santos, um time do interior do estado de São Paulo, um dos times mais conhecidos de todos os tempos e tornar o Estádio de Vila Belmiro o templo do futebol mundial durante algumas décadas.

O ano terminou com o passamento do Papa emérito Bento XVI, depois de 95 anos e um legado que tende a gerar grandes reflexões sobre o futuro do Cristianismo, o primeiro papa na história do cristianismo a renunciar, diante disso, vivemos um momento de repensarmos as questões religiosas, momentos de valores novos, pensamentos novos, comportamentos novos, vivemos num momento de grandes incertezas e instabilidades, onde não sabemos para onde estamos indo…. infelizmente!

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

A desigualdade como bloqueio estrutural, por Vladimir Safatle

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Vladimir Safatle

A terra é redonda – 31/12/2022

A desigualdade econômica traz em seu bojo uma urgência propriamente biopolítica; ela define os ritmos de vida e morte que separam grupos sociais

A igualdade é o horizonte normativo fundamental da vida democrática. Seu sentido não está vinculado a alguma forma de imposição de homogeneidades, como se não fosse possível, em uma sociedade igualitária, o reconhecimento efetivo da diferença. Na verdade, podemos dizer exatamente o contrário, a saber, que só em uma sociedade radicalmente igualitária, diferenças e singularidades são possíveis. Pois, nesse contexto, “igualdade” significa ausência de hierarquia, ausência de sujeição. Quando a hierarquia impera, diferenças só podem ser vividas como desigualdades, pois a hierarquia impõe níveis de valores. O que é diferente do que está acima é necessariamente menos valorizado. Nesse sentido, ser diferente em uma sociedade hierarquizada significa ser desigual, ser mais vulnerável, não ser conforme ao que se espera para ter poder.

Note-se ainda que a crítica da hierarquia não significa necessariamente o desconhecimento da existência de relações sociais baseadas em autoridade e poder, mas significa simplesmente que tais relações de autoridade e poder podem circular em várias direções, que elas não se cristalizam, que elas são continuamente reversíveis e dinâmicas. Ou seja, em uma sociedade desprovida de hierarquia, as relações de poder não se transformam em relações de dominação.

Poder e dominação não são necessariamente a mesma coisa, embora normalmente eles se sobreponham.

Poder é a capacidade de exercer sua própria potência de ação e engajar outros nesse processo.

Poder é compreender que essa potência de ação não é individual, mas é expressão do desdobramento
de relações sociais, passadas e atuais, das quais faço parte. Por isso, a ação que daí deriva não é uma imposição. Ela é um encontro. Todo encontro é uma relação de poder, pois permite a circulação de dinâmicas de ação e transformação através de um engajamento coletivo que ressoa dimensões inconscientes de minhas motivações para agir.

Dominação, por sua vez, é a sujeição da vontade de um sujeito à vontade de outro. Por isso, ela só pode se exercer como mando e vigilância. Pois uma vontade individual só se exerce pela força ou pela promessa de participação de mandos posteriores.

Ou seja, em uma sociedade radicalmente igualitária, as diferenças não são destruídas por hierarquias, o poder circula e não se cristaliza em pontos específicos. E se as diferenças não são destruídas, isso significa que uma sociedade igualitária reconhece tais diferenças, essa é sua real dinâmica. Devemos falar em “dinâmica” nesse contexto porque reconhecimento não é simples recognição. Reconhecer algo ou alguém não significa simplesmente tomar nota de sua existência. Antes, significa mudar estruturalmente quem reconhece, pois ao reconhecer outro que até então eu não reconhecia, algo de meu mundo se modifica, sou afetado por aquilo que até então me era inexistente, uma mutação estrutural do campo da experiência ocorre. Por isso, sociedades igualitárias são plásticas e em contínua mutação.

Essas colocações iniciais servem para lembrar como a desigualdade é não apenas um problema de ordem socioeconômica, mas um bloqueio estrutural na realização de uma sociedade democrática. Ela não é um problema dentre outros, mas o problema central quando se é questão de compreender os déficits normativos de uma sociedade e as limitações em sua potencialidade de criação e coesão.

E, nesse ponto, é claro que a sociedade brasileira aparece como um caso dramático, devido a seus níveis exponenciais de desigualdade.

O problema da desigualdade em uma sociedade como a brasileira é algo que exige uma abordagem transversal, pois atinge múltiplas dimensões de nossas formas de vida e de nossos processos de reprodução material. Tais dimensões não podem ser tratadas separadamente, mas exigem abordagens focadas que possam ser capazes de consolidar um conjunto articulado de ações.

De forma esquemática, podemos dizer que não há discussão sobre a desigualdade entre nós sem que
possamos analisar as articulações entre desigualdades econômicas, regionais, raciais, de gênero e epistêmicas. Um país como o Brasil, que se constituiu a partir da naturalização de hierarquias e apagamentos coloniais, não pode confundir a luta contra a desigualdade com a realização de políticas de redistribuição. De fato, a redistribuição é fator central desse debate, mas ela não elimina a necessidade de lidar com as múltiplas dimensões de reconhecimento bloqueado advindo das hierarquias presentes em estruturas sociais de gênero, raça e circulação de saberes.

Redistribuição e reconhecimento são assim dimensões constituintes das políticas de combate à desigualdade e precisam estar no horizonte de toda constituição de ações articuladas de governo.

Desigualdade econômica e regional

É evidente, no entanto, que historicamente a desigualdade econômica tem chamado mais a atenção dos que se debruçam sobre a realidade brasileira. O que não poderia ser diferente para um país que se encontra entre os dez países com maior desigualdade econômica no mundo, segundo o índice Gini. Essa desigualdade econômica se mostrou extremamente resiliente, a despeito das inúmeras políticas tentadas nas últimas décadas. Na verdade, ela se agravou nos últimos anos. Basta levar em conta o fato de que, em 2000, o 1% mais rico da população brasileira detinha 44,2% da riqueza nacional. Em 2010, esse número cai para 40,5% e em 2020 sobe novamente para 49,5%. Para se ter uma ideia da magnitude de tais números, nos EUA, 1% da população mais rica detém, em 2020, 35% da riqueza nacional.

Vale lembrar que, segundo o mesmo índice Gini, em 2020 o Brasil conheceu paradoxalmente uma queda significativa da desigualdade, fruto da massiva transferência de renda realizada no momento da pandemia. No entanto, essa era uma política emergencial, que não tocava efetivamente nas estruturas de concentração de renda e preservação de ganhos e propriedades que caracterizam a sociedade brasileira. Por isso, ela foi um ponto fora da curva. Esse fato demonstra como as políticas necessárias precisam ser duradouras, e isso exige mobilizar uma dimensão propriamente estrutural da economia brasileira.

Notemos, entre outros, como a questão da desigualdade econômica traz em seu bojo uma urgência
propriamente biopolítica, ou seja, ela define os ritmos de vida e morte que separam grupos sociais. Tomemos, por exemplo, os níveis de expectativa de vida nos bairros da cidade de São Paulo. Segundo o Mapa da desigualdade, em Alto de Pinheiros, a expectativa de vida média é atualmente de 80,9 anos. Em Guaianazes, ela é de 58,3 anos.

Isso demonstra de forma clara como a sociedade brasileira, por preservar de forma atávica seus níveis de desigualdade, decidiu de forma soberana quem pode ter uma vida longa e quem deve morrer rápido.

Contra a estabilização de tais situações, faz-se necessário não apenas políticas públicas de reparação, mas de transformação estrutural. Elas deveriam passar por dois eixos. O primeiro deles lembra que a desigualdade econômica é fruto direto da desigualdade no controle e posse dos aparelhos produtivos. Essa é a questão mais intocada de nossas sociedades capitalistas, no entanto, ela é uma das chaves fundamentais para a luta contra a desigualdade econômica.

Sociedades que criam dispositivos de autogestão da classe trabalhadora ou de participação conjugada da classe trabalhadora no processo de gestão de empresas e corporações têm melhores condições para realizar administrações voltadas ao interesse coletivo e ao enriquecimento comum.

Podemos lembrar, nesse contexto, de um exemplo de nosso Estado de São Paulo. A partir de 2003, a fábrica de reservatórios e tonéis plásticos Flaskô, sediada no município de Sumaré, passou à autogestão da classe trabalhadora. Nesse período, ela viu sua produção aumentar, o tempo de trabalho diminuir e os salários subirem. Pois a visão do processo produtivo própria a quem está efetivamente vinculado à produção é mais racional e menos onerosa. Exemplos dessa natureza demonstram que incentivos à autogestão (como isenção de impostos a empresas que passem para esse modo de gestão) e à gestão participativa (como leis que obriguem empresas e corporações a terem ao menos 30% de seus conselhos diretivos compostos de representantes das trabalhadoras e trabalhadores) teriam impacto relevante na estrutura da desigualdade econômica.

Da mesma forma, a limitação da diferença de ganhos é elemento fundamental em tal política. Isso
passa por uma reforma tributária que efetivamente taxe renda e lucros, ao invés de taxar consumo. Devemos lembrar que o Brasil é, juntamente com a Estônia, o único país no mundo a não taxar lucros e dividendos. Da mesma forma, ele desconhece imposto sobre grandes fortunas, mesmo que tal imposto esteja previsto na Constituição de 1988. Há uma exigência de justiça tributária que deve ser o horizonte real de políticas públicas.

Mas a limitação de ganhos passa também pela possibilidade de impor limites claros para diferenças salariais. O Brasil é um país onde o menor e o maior salário no interior de uma empresa (sem contar bonificações e outros rendimentos) pode chegar a até 120 vezes. Uma limitação legal dessa diferença, assim como a implantação de um salário máximo poderia servir como fator robusto de limitação de tais desigualdades.

Soma-se a isso o fato de países como o Brasil conhecerem ainda profundas desigualdades regionais, fruto da concentração de seu desenvolvimento industrial e de sua política tributária na qual a arrecadação vai à União sem os correspondentes repasses aos Estados e municípios.

Desde os anos sessenta, graças ao trabalho pioneiro de economistas como Celso Furtado, é clara a
necessidade de conjuntos específicos de políticas de desenvolvimento regional com respectivas instituições gestoras. Se quisermos utilizar o mesmo critério de expectativa de vida para medir o impacto das desigualdades regionais, há de se lembrar que em Estados como Santa Catarina a expectativa de vida é de 79,4 anos enquanto no Maranhão encontramos 70,9.

Desigualdades de gênero, raça e epistêmica

Mas como foi dito anteriormente, a reflexão sobre a desigualdade brasileira exige uma abordagem transversal na qual problemas de redistribuição e reconhecimento possam ser pensados conjuntamente. O processo de acumulação primitiva do capitalismo exige não apenas a espoliação do trabalho pago, mas o uso do trabalho gratuito. Nesse caso, seja como trabalho realizado por populações escravizadas, seja como trabalho não pago resultante da sujeição patriarcal das mulheres. E mesmo nas estruturas tradicionais da espoliação do trabalho pago, encontramos o impacto das desigualdades de gênero e de raça. A sociedade brasileira preserva suas hierarquias de desigualdade através da consolidação de certos setores como potencialmente vulneráveis.

A esse respeito, lembremos como o Brasil foi um país criado a partir da implementação da célula econômica do latifúndio escravagista primário-exportador em solo americano. Antes de ser uma colonização de povoamento, tratava-se de desenvolver, pela primeira vez, uma nova forma de ordem econômica vinculada à produção exportadora e ao uso massivo de mão de obra escrava. Lembremos como o Império português será o primeiro a se engajar no comércio transatlântico de escravos, chegando à posição de quase-monopólio em meados do século XVI. 35% de todos os escravos transportados para as Américas foram direcionados para o Brasil. Sendo o latifúndio escravagista a célula elementar da sociedade brasileira, sendo o Brasil o último país americano a abolir a escravidão, não será estranho conceber o País como o maior experimento de necropolítica colonial da história moderna.

De fato, a dinâmica colonial assenta-se em uma “distinção ontológica” que se demonstrará extremamente resiliente, conservando-se mesmo após o ocaso do colonialismo como forma socioeconômica. Ela consiste na consolidação de um sistema de partilha entre dois regimes de subjetivação. Um permite que sujeitos sejam reconhecidos como “pessoas”, outro que leva sujeitos a serem determinados como “coisas”. Aqueles sujeitos que alcançam a condição de “pessoas” podem ser reconhecidos como portadores de direitos vinculados, preferencialmente, à capacidade de proteção oferecida pelo Estado.

Como uma das consequências, a morte de uma “pessoa” será marcada pelo dolo, pelo luto, pela manifestação social da perda. Ela será objeto de narrativa e comoção. Já os sujeitos degradados a condição de “coisas” (e a degradação estruturante se dá no interior das relações escravagistas, embora ela normalmente permaneça mesmo depois do ocaso formal da escravidão) serão objetos de uma morte sem dolo. Sua morte será vista como portadora do estatuto da degradação de objetos. Ela não terá narrativa, mas se reduzirá à quantificação numerária que normalmente aplicamos às coisas. Aqueles que habitam países construídos a partir da matriz colonial sabem da normalidade de tal situação quando, ainda hoje, abrem jornais e leem: “nove mortos na última intervenção policial em Paraisópolis”, “85 mortos na rebelião de presos de Belém”. A descrição se resume normalmente a números sem história.

Não é difícil compreender como esta naturalização da distinção ontológica entre sujeitos através
do destino de suas mortes é um dispositivo fundamental de governo. Ele perpetua uma dinâmica de guerra civil não declarada através da qual aqueles submetidos à espoliação econômica máxima, às condições mais degradadas de trabalho e remuneração, são paralisados em sua força de revolta pela generalização do medo diante do extermínio de Estado. Ela é assim o braço armado de uma luta de classes para a qual convergem, entre outros, marcadores evidentes de racialização. Pois trata-se de fazer passar tal distinção ontológica no interior da vida social e de sua estrutura cotidiana. Os sujeitos devem, a todo momento, perceber como o Estado age a partir de tal distinção, como ela opera explicitamente e em silêncio.

Neste sentido, notemos como tal dinâmica necropolítica responde, após o ocaso das relações
coloniais explícitas, às estratégias de preservação de interesses de classe, na qual o Estado age, diante de certas classes, como “Estado protetor”, enquanto age diante de outras como “Estado predador”. Em suma, há de se insistir como a necropolítica aparece assim enquanto dispositivo de preservação de estruturas de paralisação de luta de classes, normalmente mais explícita em territórios e países marcados pela centralidade de experiências coloniais.

Essa gestão de uma guerra civil não declarada passa necessariamente pela degradação de matrizes epistêmicas vinculadas a populações submetidas ao extermínio (povos originários) e à escravidão.

Nesse ponto, a universidade brasileira deve ter consciência de sua posição paradoxal. Podemos falar em paradoxo porque a universidade latino-americana está diante de um processo emancipador e silenciador. Por exemplo, a primeira universidade da América Latina (San Marco, Peru) data do século XVI. Ela se instaura no meio de uma guerra colonial contra um povo com largo conhecimento tecnológico e complexa cosmovisão, a saber, os incas. Uma das funções da universidade será impor um silenciamento cultural e epistêmico que irá perdurar, de certa forma, até hoje. Ter essa consciência autocrítica, entender-se também como parte do problema, é uma das maiores contribuições que a universidade brasileira pode dar à luta contra a desigualdade.

*Vladimir Safatle é professor titular de filosofia na USP. Autor, entre outros livros, de Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação (Autêntica).

Carta de um professor aos novos governantes, por Walber Gonçalves de Souza.

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Convido-os a conhecer as entranhas de uma escola

Walber Gonçalves de Souza, Professor, é doutor em geografia (PUC Minas).

Folha de São Paulo, 01/01/2023

Completo 22 anos de magistério, do ensino básico ao superior —são muitas experiências acumuladas no chão de uma sala de aula. Sempre pensei que pela educação podemos transformar o rumo de uma nação, em especial o nosso Brasil, um país tão rico, de gente (maioria) tão pobre.

Infelizmente não é isso que tenho percebido. A educação pública no Brasil não passa, com raras exceções, de uma grande mentira, de uma farsa. Vemos uma triste realidade camuflada em índices e um monte de conversa fiada, com ares de uma pedagogia modernizada. Basta conhecer as entranhas de uma escola que saberão que nossa realidade é de aterrorizar.

Sem medo de errar, posso afirmar que a nossa educação é de péssima qualidade e caminha a passos largos para se tornar ainda pior, mesmo parecendo não ser mais possível ultrapassar o fundo do poço. Um dia pensei que a educação poderia mudar a sociedade, mas o que vejo é justamente o contrário: a sociedade mudou a educação e levou para dentro das escolas todos os seus vícios e problemas.

Discursos bonitos aparecem em todas as eleições. Mas vivemos de promessas e contos do vigário. Sempre há alguém que nunca pisou em uma sala de aula da educação básica propondo uma metodologia nova; mas, como diria o ditado popular, “de boas intenções o inferno está cheio”.

A “pedagogia da modinha”, criada por aqueles que não conhecem a realidade de uma escola, só escancara um dos nossos grandes desafios: estabelecer uma política pública de Estado para a nossa educação, não a corriqueira política de governo.

Nossas escolas estão tomadas e reféns da indisciplina, várias pelo tráfico e abandono. A falta de professores já é percebida. A educação brasileira é um faz de contas. Pouco se ensina, por inúmeros motivos, e por consequência pouco ou quase nada se aprende. Mas o discurso governamental é sempre o mesmo: nossa educação vai bem! Afinal, ninguém quer admitir a realidade.

Provavelmente esta carta não chegará ao seu destino final, mas fica o desabafo e a eterna esperança de dias melhores. Peço: vamos encarar os desafios da educação. Ela não pode ser medida simplesmente por estatísticas. Precisamos alcançar resultados, que se manifestam na vida das pessoas, através de condições humanas e civilizadas de vida.

Precisamos solucionar a indisciplina, valorizar a carreira docente, tornar o ambiente escolar um lugar propício e necessário para o aprendizado e, principalmente, estimular as pessoas a acreditarem na escola (educação) como um meio de crescimento humano e social. O que não dá mais é continuar como está: fingindo que as coisas estão acontecendo.

Finalizando, convido-os a escolherem uma escola de uma cidade brasileira, pois retratará a realidade da imensa maioria, e ministrarem aulas durante um mês. E, se não for pedir demais, que vossos salários, ao longo do mandato, sejam iguais aos dos professores. Quem sabe assim entenderiam o que é a educação brasileira e, por consequência, fomentariam as devidas soluções.
Cordiais saudações de um professor que não vai desistir da educação!

Que 2023 venha com saúde!, por Márcia Castro

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Com o novo governo eleito de forma democrática, há esperança de dias melhores

Márcia Castro, Professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard.

Folha de São Paulo, 02/01/2023

O Brasil entra 2023 enfrentando uma crise sanitária. Há necessidade urgente de trilhar um caminho de recuperação. Com o novo governo eleito de forma democrática, há esperança de dias melhores.

A deterioração da saúde começou com a implantação da Emenda Constitucional 95, conhecida como PEC da Morte, no final de 2016. A EC 95 congelou os gastos com saúde e comprometeu a capacidade do SUS de prover serviços essenciais. A estimativa é que, entre 2018 e 2022, o SUS tenha perdido cerca de R$ 60 bilhões por causa da EC 95.

Os últimos quatro anos, porém, foram sem precedentes. Vivemos uma pandemia, administrada por um governo irresponsável, sem compromisso com a verdade, a ciência e a vida. O saldo disso tudo? Quase 700 mil vidas perdidas, mais de 113 mil crianças órfãs e um retrocesso de décadas em vários indicadores de saúde.

Esse governo que acaba de sair deixa um legado mórbido na saúde. Afastou a ciência da tomada de decisão, não apoiou a pesquisa básica e comprometeu a coleta de dados que são fundamentais para uma resposta rápida e eficaz às demandas sanitárias.

Cortou os canais de comunicação com a sociedade e se isolou do mundo, rompendo uma tradição de protagonismo que o Brasil costumava ocupar em acordos de cooperação internacional.

Não reconheceu o racismo estrutural como um determinante social de saúde e cortou parte do orçamento para ações de saúde indígena, a qual também foi drasticamente prejudicada por decisões que impulsionaram o desmatamento e o garimpo ilegal na Amazônia (“passar a boiada”).

A lista é longa! Parte do que o SUS bravamente conquistou ao longo de três décadas foi destruída em pouco mais dois anos.

É esse cenário que terá que ser administrado pelo novo governo. Será um trabalho intenso. Realisticamente, não há como resolver tudo ao mesmo tempo e em apenas quatro anos. Afinal, também há desafios na educação, economia, meio ambiente, infraestrutura etc. Será necessário definir prioridades e promover ações intersetoriais a fim de otimizar os resultados.

O Relatório do Grupo Técnico de Saúde da Comissão de Transição Governamental, apresentado pelos ex-ministros Arthur Chioro e José Gomes Temporão à nova ministra Nísia Andrade no dia 29 de dezembro, faz uma análise do desmonte das políticas públicas de saúde, lista pontos de alerta que demandam ações urgentes, identifica atos normativos e decretos que deveriam ser revogados e recomenda dez prioridades para os primeiros cem dias de governo.

Conforme apresentado durante a coletiva, essas prioridades incluem fortalecer a gestão do SUS, reestruturar o Programa Nacional de Imunizações, fortalecer a resposta à pandemia e outras emergências, reduzir as filas do serviço especializado, fortalecer a atenção básica, resgatar o Programa Farmácia Popular, fortalecer a saúde da mulher, criança e adolescente, bem como a saúde indígena, retomar o desenvolvimento do complexo industrial da saúde e revitalizar a tecnologia de informação e saúde digital.

A ministra Nísia Trindade e sua equipe começam agora o trabalho árduo de não só definir prioridades como também elaborar o Plano Nacional de Saúde para os próximos quatro anos.

Para quem acha que os problemas podem ser resolvidos de imediato, lembre-se de que a destruição é rápida, mas a retomada é lenta. Que em 2023 haja empatia, senso comunitário e responsabilidade política e fiscal. Acima de tudo, que os direitos estabelecidos pela Constituição Federal sejam respeitados.

“A saúde é direito de todos e dever do Estado.” Feliz 2023, com saúde!

Responsabilidade fiscal e políticas sociais, por Reynaldo Fernandes

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Cortes de gastos podem ser mais fáceis de anunciar do que de realizar

Reynaldo Fernandes, Professor titular do Departamento de Economia da USP em Ribeirão Preto (SP)

Folha de São Paulo, 02/01/2023

Por responsabilidade fiscal entende-se manter, no longo prazo, os gastos do governo compatíveis com a arrecadação de impostos. Significa que os gastos públicos não devem ser sistematicamente financiados por inflação ou aumento da dívida pública (que, ao final, acaba virando inflação). Portanto, responsabilidade fiscal não determina o tamanho nem a composição dos gastos públicos.

O governo pode ter responsabilidade fiscal gastando e arrecadando 20%, 30% ou 40% do PIB e, para um dado montante de gastos, pode ter uma participação maior ou menor dos programas sociais.

O tamanho e a composição do Orçamento público são questões de escolha política. Costumava-se dizer que, na Europa e nos Estados Unidos, o debate entre esquerda e direita poderia em grande medida ser resumido ao tamanho do Estado de bem-estar social almejado. A esquerda defendendo mais gastos sociais e mais impostos, e a direita menos impostos e menos gastos.

O teto de gastos, introduzido no governo Michel Temer (MDB), é uma medida de responsabilidade fiscal com viés à direita. Congela os gastos reais da União e, assim, impõe uma redução dos gastos em relação ao PIB na medida que haja algum crescimento econômico. E mais: como algumas despesas tendem a crescer mais que a inflação, as demais rubricas teriam que ser comprimidas. Os próprios defensores da medida reconheciam a necessidade de realizar outras reformas, reduzindo, por exemplo, o crescimento das despesas com Previdência e assistência social.

Com a volta do Partido dos Trabalhadores ao governo, seria de esperar uma nova orientação à política fiscal: a proteção e mesmo a expansão dos gastos sociais. O novo presidente tem garantido que, a exemplo de seus governos anteriores, não haverá irresponsabilidade fiscal. A questão, então, é como financiar esses novos gastos. O equacionamento é fundamental para o sucesso do novo governo —e não se trata de uma questão simples. Cortes de gastos em outras rubricas podem ser mais fáceis de anunciar do que de realizar.

O mesmo vale para a alta da carga tributária. Um aumento de alíquotas ou criação de novos impostos, por exemplo, pode sofrer resistências no Congresso. Por outro lado, nosso sistema tributário é cheio de vinculações e transferências, de modo que parte significativa do aumento da carga tributária por parte da União pode ficar comprometida com novos gastos e transferências. Deixar que o ajuste fiscal seja realizado no bojo de uma necessária reforma tributária é temeroso, pois a reforma pode demorar para ser concretizada.

Orientar a política fiscal de modo a sinalizar uma trajetória sustentável da dívida pública é o principal desafio econômico para o início deste novo governo. Além de rever gastos em áreas não prioritárias e desonerações tributárias, um novo aumento de impostos pode ser inevitável. Mudar as metas de inflação, de modo que ela seja um pouco mais elevada para 2023 e cadente até 2026, também seria uma alternativa. Pode ser preferível a colocar uma meta de inflação incompatível com o fiscal, obrigando o Banco Central a elevar os juros e a dívida pública.

Se as metas devem ser revistas, o início de um novo governo é o momento para isso. Por fim, a responsabilidade fiscal deve ter uma perspectiva de longo prazo. Em uma recessão, a política fiscal restritiva pode agravar o quadro, e uma política fiscal expansionista seria mais recomendável.

No entanto, é preciso cautela com certas ideias econômicas em circulação, que parecem ver o estado recessivo como a situação sempre prevalecente na economia. Nesse caso, uma política fiscal expansionista seria sempre benéfica: elevaria a produção, o emprego e a arrecadação tributária. Em sua versão mais otimista, o aumento de arrecadação seria suficiente para financiar o aumento inicial dos gastos. Tais ideias podem soar atraentes para muitos, mas são a receita para a crise fiscal e o descontrole inflacionário.

Desajustes Externos

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Estamos terminando mais um ano marcado por grandes desafios e oportunidades, a sociedade global está vivendo momentos de rápidas transições, vivendo conflitos militares crescentes, degradação ambiental, pandemias insistentes, desigualdades sociais preocupantes, elevada concentração de renda, desemprego estrutural, crescimento tecnológico, incremento de uma ultradireita violenta e agressiva, além de uma fragilização democrática, desesperanças em todas as classes sociais e um medo premente e generalizado, de que o futuro pode ser mais devastador e degradante do que o presente que vivenciamos na contemporaneidade.

Nesta sociedade, percebemos que os valores estão em constante movimentação, aquilo que anteriormente eram vistos como errado e equivocado, na contemporaneidade são vistos como aceitáveis, palatáveis, justificáveis e até estimulados, os valores morais e os comportamentos éticos passaram a ser regidos pela lógica dos mercados, das trocas cotidianas, dos ganhos elevados, do imediatismo constante, do individualismo exacerbado e da busca constante pela acumulação material.

Diante disso, assistimos passivamente a degradação das relações sociais e da convivência pacífica, as políticos públicas estão sendo sucateadas e usam como justificativa a falta de recursos financeiros, enquanto os grandes conglomerados financeiros seus ganhos e isenções são garantidos e aumentados, com isso, percebemos o aumento da desigualdade na sociedade, o crescimento dos discursos de ódio e de ressentimento, as guerras estão degradando a economia mundial, elevando os preços de produtos imprescindíveis para a sobrevivência humana, levando os governos a aumentarem as taxas de juros que degradam as condições de vida de grande parte da sociedade internacional e garantindo, em contrapartida, altos lucros de poucos privilegiados, na maioria bilionários e herdeiros de grandes impérios, cujos ganhos crescem exponencialmente, garantindo lucros estratosféricos da ciranda financeira e da especulação monetária.

O modelo econômico dominante na comunidade internacional, centrado no imediatismo, no individualismo, na busca crescente por lucros e o consumo exagerado, na construção de desejos inalcançáveis, centrados no desenvolvimento tecnológico e poupador de mão de obra vislumbram ganhos e rentabilidades imediatas mas, em contrapartida destrói a estrutura produtiva das nações, desindustrializando as economias, achatando os salários dos trabalhadores, fragilizando o poder de negociação dos sindicatos, acabando com o mercado de consumo interno, espalhando pobreza e exploração crescentes, dificultando a recuperação econômica, maltratando as famílias, empobrecendo e gerando um caos generalizado.

Neste ambiente, as agendas dominantes dos economistas ortodoxos preconizam a diminuição do Estado na estrutura produtiva como forma de melhorar a eficiência econômica e alocação dos investimentos privados, defendendo que a iniciativa privada, o tal mercado, será o grande motor do crescimento econômico, ator central do desenvolvimento das nações e da melhoria das condições sociais das sociedades. Embora estas teorias embalaram o pensamento ocidental até o final do século passado, a crise imobiliário norte-americana, a ascensão chinesa e a pandemia começaram a rascunhar novas pensamentos econômicos nos países desenvolvidos, todas estas nações perceberam que o mercado não possuem instrumentos para reativar o crescimento econômico sozinhos, neste ambiente, surgem as ideias de planejamento econômico, as políticas industriais e os investimentos governamentais como forma de estimular as demandas internas, sem estas políticas o capitalismo internacional caminharia a passos largos à bancarrota.

Embora entendamos que o ambiente externo é marcado por grandes desajustes, preocupações e oportunidades, a sociedade internacional está compreendendo que o modelo econômico dominante não consegue construir uma sociedade mais justa e igualitária, que garanta oportunidades para todos os indivíduos, educação de qualidade e perspectivas de empregos melhores e salários dignos e decentes. Depois de tantas crises e instabilidades, quem sabe o ano novo traga novos horizontes e esperanças para a sociedade internacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 28/12/2022.