Desastres, Pandemias e Espiritismo

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A Doutrina Espírita tem grande capacidade de auxiliar a sociedade internacional no momento que estamos vivenciando, neste instante marcado pela pandemia, que nos gera assombros, medos e preocupações, levando as pessoas a desesperanças, incertezas e instabilidades. Neste ambiente, os números de depressão crescem de forma acelerada, a ansiedade está presente em grande parte dos indivíduos, levando a um incremento do suicídio, pois muitos acreditam que a forma de resolver as dificuldades e reduzir as depressões está do suicídio, criando novos desequilíbrios, gerando escuridões e incertezas crescentes.

O Espiritismo nos mostra outras formas de reflexão sobre as dificuldades que vivemos, alguns acreditam que a pandemia está diretamente ligada a um grande castigo imposto pela humanidade por Deus, nesta tese, amplamente aceita por grandes partes dos pensamentos religiosos, um ser superior envia a pandemia para que as pessoas paguem por seus inúmeros débitos, ressarcindo suas dívidas e, para aqueles que sobreviverem, viverá melhor e mais equilibrado. A doutrina dos espíritos tem uma forma diferente de refletir sobre o momento de pandemias que estamos vivenciando, para o espiritismo todo o momento, as dores, as dificuldades estão, todas, diretamente atreladas as escolhas humanas, os caminhos que foram trilhados pela civilização. Diante disso, o mundo colhe as consequências de escolhas anteriores, muitas delas são intencionais e, em muitos casos, estas escolhas são conscientes e nos mostram nossa imaturidade.

No começo da segunda década do século XXI, o ser humano está sentindo na pele as muitas mudanças geradas pela pandemia, o surgimento deste flagelo, causado pelo coronavírus ou covid-19, está alterando as formas de sobrevivência, alterando os comportamentos, hábitos de consumo, o mundo do trabalho e da ocupação e modificando os relacionamentos humanos, com impactos sentimentais, espirituais e emocionais.
Olhando historicamente os registros de outras pandemias parecidas foram vivenciados a mais de 100 anos atrás, entre janeiro de 1918 a dezembro de 1920, quando o mundo sentiu na pele as agruras da pandemia gerada pela gripe espanhola. A espanhola infectou na casa dos 500 milhões de pessoas, sendo que as mortes ficaram entre os 17 milhões a 50 milhões, outros relatos contabilizaram quase 100 milhões de mortes. A gripe espanhola tornou-se a epidemia mais mortal da história da humanidade, se espalhou para todas as regiões, gerando desagregações familiares, conflitos emocionais e desestruturações sociais.

O mundo vem passando por grandes catástrofes humanas e naturais, exigindo reflexões constantes. Vivemos um período de desastres e agressividades para toda sociedade, vitimando milhões de pessoas em todos os continentes, deixando um rastro de tristezas, melancolias, desesperos e destruições familiares. Desagregando laços afetivos e emocionais, incrementando as depressões, as ansiedades e os suicídios, impactando sobre todos os grupos sociais.

Neste momento de variados desastres, podemos definir três grandes catástrofes sobre a sociedade humana: uma delas são criadas pela ação dos seres humanos, uma outra podemos chamar de desastre natural e uma terceira podemos chamar de desastres mistos, que tem suas origens nas ações dos seres humanos, mas ao mesmo tempo, são ações involuntárias e não intencionais.

No primeiro caso podemos destacar os desastres gerados por grandes guerras, conflitos militares ou crises financeiras, que levam a sociedade a destruições variadas, levando as coletividades a milhões de mortes e falências generalizadas, com impactos humanos, monetários e materiais muito agressivos. São desastres criados pelos seres humanos e trazem variadas consequências para a sociedade e exigem das nações altos investimentos de reconstrução das estruturas sociais e econômicas. Na primeira metade do século XX, o mundo passou por inúmeras destruições geradas por conflitos militares, as duas grandes guerras mundiais vitimaram mais de 100 milhões de pessoas, gerando catástrofes humanas e destruições materiais.

No livro Nosso Lar, psicografia de Francisco Cândido Xavier e ditado pelo espírito André Luiz, o espírito nos mostra como a cidade espiritual se organizou para receber os desencarnados em decorrência da segunda guerra mundial. Neste momento, percebemos a organização da comunidade neste momento de desafio, marcado pela chegada de milhares de pessoas em condições adversas, necessitando de auxílio e solidariedade. As guerras podem ser descritas como um dos mais severos e violentos flagelos do ser humano, os indivíduos não foram criados para a destruição e para a desagregação, os seres humanos foram criados pelo amor, pela solidariedade e pela caridade.

Uma das outras causas dos grandes desastres da sociedade são os fenômenos naturais, como um terremoto, um tsunami, uma tempestade agressiva e duradoura, dentre outras, gerando milhares de mortes e destruições generalizadas. Impactando as nações, regiões e coletividades, levando a adoção de políticas de reconstrução, gerando planejamento estratégico e coordenação política e atuação de todos os grupos sociais e econômicos, objetivando a reconstrução da sociedade, investindo altas somas monetárias.

As devastações em curso na sociedade são motivadas por movimentações da natureza, muitas delas são geradas por placas tectônicas existentes no interior da Terra, diante disso, muitas pessoas podem indagar se estas movimentações que vitimam milhares de mortes foram geradas pela ira de uma entidade superior, como um Deus, por exemplo? A doutrina dos espíritos acredita que muitas movimentações podem gerar destruições causadas pelas imperícias dos seres humanos, muitos morrem destas movimentações, enquanto outras pessoas sobrevivem e continuam vivendo por muitos períodos, neste caso, os estudos sistemáticos da reencarnação nos auxiliam a compreender o paradeiro das pessoas.

A terceira grande destruição pode ser classificados pelos desastres criados pelo ser humano de forma intencional, ou seja, as raízes deste desastre é a ação dos seres humanos, mesmo sabendo que as pessoas não tiveram intenção desta destruição. Neste caso, podemos destacar os desastres gerados pelo rompimento de barragens, os acidentes nucleares. Atualmente podemos citar o desastre gerado pela Covid 19, o chamado coronavírus, cuja destruição está se espalhando na comunidade internacional, afetando todas as regiões, povos e comunidades.

O desastre atual gerado pelo coronavírus está diretamente ligado a ação dos seres humanos, a adoção de um modelo econômico que degrada a natureza e gera impactos agressivos ao Meio Ambiente, extraindo recursos de forma insustentável, degradando rios e criando um rastro de destruição, poluindo o ar, aumentando a temperatura, degradando florestas e o derretimento das geleiras. Os impactos da devastação do meio ambiente estão empurrando os animais de seus habitats naturais, reduzindo seus espaços de sobrevivência, alterando seus alimentos naturais e espalhando doenças e vírus para os seres humanos e, numa economia globalizada, os produtos são espalhados para todas as regiões.

A terceiro forma de compreendermos os desastres da sociedade contemporânea, podemos debitar na conta dos seres humanos indiretamente, suas medidas foram imprudentes e os impactos são disseminados para toda a coletividade internacional e não se restringe a poucas pessoas, vitimando toda grande parte da civilização.

A exploração crescente da natureza tem impactos negativos para toda a sociedade, a sanha por acumulação monetária cresce nos anos atuais, o poder financeiro e os ganhos imediatos estão levando a sociedade a destruir o patrimônio comum, degradando o meio ambiente, aumentando a temperatura e aumentando os desequilíbrios do habitat natural, levando a novas epidemias, novos vírus e novas devastações.

Ao observarmos esta degradação do patrimônio do meio ambiente, o ser humano se esquece que somos espíritos estagiando nos corpos físicos, estamos encarnados, utilizamos corpos materiais para sobreviver no mundo físico e, posteriormente, retornamos ao mundo espiritual. Esta reflexão é fundamental, se destruirmos a natureza somos afetados por esta degradação, afinal estamos na matéria, mas brevemente estaremos no mundo espiritual nos preparando para voltarmos a matéria, desta forma devemos indagar: com esta destruição que patrocinamos como seres humanos, o que vamos encontrar no planeta Terra?

Muitos espíritos reencarnam em regiões inóspitas, atrasadas e degradadas, passando por inúmeras limitações financeiras, emocionais e existenciais em decorrência de vivências anteriores. São espíritos altamente inteligentes, brilhantes intelectualmente que reencarnam em situações marcadas por limitações sensoriais, mentais e fragilidades em todas as áreas, são espíritos brilhantes que utilizaram seus dotes intelectuais para a degradação da natureza, avarentos, egoístas e ambiciosos. São inúmeros indivíduos que se levaram para os ganhos monetários e financeiros, sua ambição cega os interesses coletivos e se concentram apenas na acumulação, sua riqueza e em seu entesouramento, acreditando que existem ainda uma única vida, justificando, assim seus interesses imediatos e seus prazeres do hedonismo.

A pandemia exige uma mentalidade nova como ser humano, neste momento devemos compreender que o responsável por esta dificuldade está dentro de cada pessoa, somos os grandes responsáveis pela degradação do meio ambiente, do ambiente tóxico centrado na competição e pela concorrência e na busca insana pelos prazeres materiais, diante disso, a pandemia deve ser compreendida como um momento de reflexão e de ensinamentos.

Os desastres crescem todos os anos e impactam sobre a coletividade, algumas dessas catástrofes são inevitáveis e são geradas pela própria natureza, mas outras podem ser evitadas, desde que os seres humanos consigam compreender sua importância e centralidade na civilização, construindo laços de respeito e solidariedade.

Política antiglobalista de Bolsonaro tem um preço, por Oliver Stuenkel.

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Com derrota da Donald Trump, Brasil fica ainda mais isolado em sua política radical e negacionista

O Estado de S.Paulo – 03/01/2021

Desde que assumiu a presidência, Jair Bolsonaro executa uma política externa precisa e disciplinada, cujo objetivo é manter sua base mobilizada. Trata-se de uma postura internacional feita sob medida para a cozinha de casa, e não para o mundo lá fora. Atitudes como não parabenizar o novo líder argentino, alegar que Joe Biden venceu as eleições de maneira fraudulenta, atacar a ONU, Xi Jimping, Emmanuel Macron e quem mais aparecer pela frente integram uma retórica cuidadosamente articulada para atiçar os ânimos de sua torcida. Ter se aproximado do Centrão e se afastado do discurso anticorrupção e antissistema fez com que o presidente dependesse ainda mais desses comentários bombásticos para garantir a fidelidade de seus seguidores mais radicais.

Mas a política antiglobalista tem um preço. Em dois anos de mandato, Bolsonaro deteriorou praticamente todas as relações do País. A reputação nos quatro mercados mais relevantes para a economia brasileira – o chinês, o norte-americano, o europeu e o latino-americano – é a pior em décadas. Tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, a retórica antiambientalista fortalece aqueles que se opõem a uma aproximação com o Brasil. Em círculos diplomáticos europeus, fala-se abertamente que o presidente brasileiro é o pior inimigo da ratificação do acordo comercial com o Mercosul. Fora os nacionalistas da Hungria, Polônia e Eslovênia, não há um único chefe de Estado da União Europeia que receberia uma visita oficial de Bolsonaro hoje em dia.

Com a onda ambientalista que vem dominando a política europeia, cresce o risco de boicotes mais amplos contra os produtos daqui. Isso ocorre não só pelas escolhas problemáticas do presidente no campo interno, mas também porque Jair Bolsonaro abriu mão de uma arma poderosa da qual os governos anteriores dispunham. Ao rifar as relações externas para manter sua popularidade interna, o presidente atou as mãos de um dos Ministérios de Relações Exteriores mais sofisticados do mundo. Até poucos anos atrás, o Itamaraty servia de escudo para a reputação do País no exterior mesmo em momentos em que o governo brasileiro estava obviamente errado. Essa proteção foi crucial em crises como os massacres do Carandiru e da Candelária, em 1992 e 1993, ou quando as taxas de desmatamento tiveram uma aceleração, nos anos 1990 e 2000. Enquanto um chanceler normal mobilizaria as missões brasileiras no exterior para reagir à crise de reputação, o atual chefe do Itamaraty amplia o isolamento ao defender teorias conspiratórias, e faz tempo virou chacota mundial.

Se antes a atuação independente do Itamaraty ajudava a reparar os danos de catástrofes nacionais, hoje o órgão encontra-se escanteado por um governo que ofusca até o que deveria capitalizar. Avanços com a reforma da Previdência de 2019 foi o grande exemplo disso. Em vez de ficar calado e deixar que uma medida celebrada pelos mercados ganhasse visibilidade na imprensa especializada, Bolsonaro lançou uma bomba que deixou o assunto em segundo plano: a tentativa de emplacar seu filho como embaixador nos EUA.

Com a vitória de Biden, o risco econômico da política bolsonarista tende a aumentar ainda mais. As nomeações do democrata sugerem que o tema ambiental será um pilar de seu mandato tanto no âmbito interno quanto no externo. A futura secretária do Interior, Deb Haaland, tem sido uma das críticas mais ferrenhas da política ambiental do presidente brasileiro. O desmatamento da Amazônia foi citado por Biden ainda em campanha. Na ocasião, Bolsonaro foi ao Twitter dizer que a soberania nacional não seria negociada. O atrito dá uma amostra do que vem pela frente na relação com os EUA. Para piorar a situação, é provável que o governo Biden coordene sua política ambiental com a União Europeia.

A derrota de Trump deixa o Brasil ainda mais isolado em sua política radical e negacionista. Antes ofuscadas pela atuação do colega americano, as patacoadas de Bolsonaro devem ganhar ainda mais atenção negativa dos observadores internacionais. Tivemos uma prévia disso logo em dezembro, quando ele virou notícia internacional por ser o último líder de um país democrático a parabenizar Joe Biden pela vitória.
Em 2021, cada aparição de Bolsonaro no noticiário internacional será um risco para a já combalida economia brasileira. O mesmo se estende ao ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles e ao Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. No caso desses dois, sua mera permanência no cargo já contamina qualquer tentativa de apaziguar investidores europeus e americanos preocupados com o desmatamento.

Se em 2019 Hamilton Mourão e Tereza Cristina foram a Pequim tentando desfazer o mal-estar causado pela retórica anti-China, em 2021 já não existe campanha publicitária ou iniciativa de quadros mais moderados que possa consertar a imagem tóxica da ala radical do governo.

A substituição de Salles e Araújo reduziria o risco de boicotes, fugas de investidores estrangeiros e complicações na ratificação de acordos comerciais. O problema é que eles representam dois grupos-chave de sustentação do governo: ruralistas e antiglobalistas. Sobretudo no caso de Salles, a facilitação do desmatamento e o desmonte das estruturas de fiscalização estão no cerne do programa bolsonarista. Desistir disso complicaria as relações do governo com uma parte obtusa, porém importante, do setor ruralista.

Em meio a essa confusão, avanços diplomáticos como a entrada do Brasil na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) já são improváveis, e os riscos de reputação do País inevitavelmente entrarão na conta de qualquer investidor. O País está aprendendo de um jeito doloroso que a imagem externa é uma abstração com consequências bastante reais, e que doem no bolso.

* COORDENADOR DA PÓS-GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA FGV-SP

A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do século XXI

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O livro, escrito pelos jornalistas Cesar Calejon e Adriano Vizoni, faz uma reflexão sobre a ascensão do bolsonarismo, analisando os períodos anteriores a eleição, mostrando a chegado de Jair Messias Bolsonaro na presidência, destacando as grandes transformações em curso na sociedade, o crescimento da direita e as incertezas do Brasil contemporâneo. Uma obra que deve ser vista para compreender a sociedade atual.

A república das milícias: Dos esquadrões da morte à era Bolsonaro

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A república das milícias: Dos esquadrões da morte à era Bolsonaro
por Bruno Paes Manso e Pedro Inoue, faz uma reflexão sobre o avanço das milícias na cidade de Rio de Janeiro trazendo informações preciosas para a compreender a organização e seu poder no imaginário da sociedade fluminense.

2020: Balanço de um ano desastroso e assustador

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Estamos caminhando para os últimos dias do ano de 2020, um período marcado por destruição, desesperanças e dificuldades crescentes, um ano que a sociedade mundial flertou com o caos e com a desagregação social, destruição econômica e dificuldades generalizadas, nesta toada estamos caminhando a passos largos a destruição da civilização, um vírus tão medíocre que deixou clara a arrogância do ser humano.

A pandemia está desnudando as grandes dificuldades das sociedades, países pobres marcados por grandes desigualdades sociais, econômicas e políticas. O cenário altamente desigual está vindo a tona em todas as regiões, incrementando os conflitos internacionais e confrontos internos que aumentam as incertezas econômicas, reduzindo os investimentos e postergando a recuperação das sociedades, num ambiente de alta no desemprego, no subemprego e na informalidade, piorando as questões sociais.

A economia brasileira vem perdendo espaço na economia mundial desde os anos 80, mas nesta década os indicadores econômicos estão piorando a olhos vistos, degradando as condições sociais, criando um pequeno grupo de privilegiados em oposição da da sociedade, cujos recursos se reduzem rapidamente, os direitos sociais se reduzem e as perspectivas para os próximos anos são assustadores.

O governo brasileiro se perde em discussões menores, de um lado percebemos setores querendo impor uma agenda liberal ultrapassada, ortodoxa e reacionária, defendendo a privatização selvagem e repassando todo patrimônio público para os defensores do mercado, transformando o monopólio público em monopólio privados, aumentando os ganhos de um pequeno grupo de detentores de recursos financeiros e de influência política. De outro lado, percebemos um grupo de linhagem mais intervencionistas defendem os recursos públicos para engordam suas aposentadorias e jetons monetários, sem compromisso de visão sistêmica, apenas interesses imediatos de grupos organizados. Num ambiente como este, a sociedade brasileira vem gerando uma leva gigante de pobreza, exclusão social, miséria e indigência moral.

Numa sociedade marcada por pandemia, o ano nos legou quase 200 mil mortos e mais de 7 milhões infectados, sem vacinas, sem organização, sem planejamento, sem políticas integradas e gerenciadas pelo Ministério da Saúde, além disso, vivemos num país em que, no período de 10 meses, o titular desta cadeira foi substituído três vezes, um caos generalizado, sem comando, sem perspectivas e sem esperança. Estamos condenando neste momento de pandemia, a sociedade brasileira a um genocídio da população mais pobre e dos vulneráveis, como os indígenas e dos negros.

A educação nacional está um verdadeiro frangalho, o Ministério não cumpre com seu papel mais fundamental, sem organizar as políticas públicas para a área da educação, a população estará cada vez mais condenada a degradação social numa sociedade onde o conhecimento se tornou o grande instrumento da riqueza das nações. Neste ambiente de omissão e ausência de planejamento, o Ministério da Educação se omite do papel central, deixando que as secretarias estaduais e municipais assumem uma posição mais efetiva, a população percebe que o ano foi perdido para os alunos das escolas públicas, colocando-os em condições desiguais na competição do setor da educação, perpetuando os péssimos indicadores educacionais e o atraso dos alunos das redes públicas.

Nas universidades percebemos situações paradoxais, nas escolas particulares as aulas aumentaram no ensino remoto e cresceram de forma acelerada nas modalidades a distância, empurrando os estudantes a aulas remotas, sem saber se estes alunos possuem condições financeiros para garantir recursos tecnológicos para assistir as aulas, com isso, sem uma supervisão do Estado, as condições de ensino tendem a se degradar de forma acelerada, com graves desastres sobre a metodologia educacional, seus rendimentos e aprendizados.

Nos próximos perceberemos um crescimento do fechamento das escolas de todos os níveis, desde os ensinos fundamentais, médios e superiores, onde os grupos dotados de mais recursos tendem a adquirir grupos menores, criando um ambiente oligopolizado onde poucos atores passam a mandar e comandar o sistema educacional, reduzindo a diversidade, reduzindo os custos, incrementando os lucros e deixando de lado a qualidade de ensino, criando novos instrumentos de negócios, sem compromissos com a nação, com a sociedade e, principalmente com o Brasil. Neste ambiente, os governos abençoam essa degradação, degradam as universidades públicas e reduzem os investimentos nos ensinos técnicos e estimulam a desintegração da pesquisas científicas, dos centros de pesquisa e os fundos de ciência e tecnologia, sem estes, o país se curva de forma subalterna as condições dos grandes grupos econômicos internacionais, perpetuando nossa pobreza e, principalmente da degradação moral.

Percebemos neste ano o crescimento das discussões sobre os limites da democracia, muitos analistas descrevem a fragilização da democracia nas sociedades ocidentais, muitas delas relacionadas ao crescimento das corporações transnacionais, que passam a angariar grande poder político e passam a pressionar a adoção de medidas que tragam benefícios, desde alteração jurídicas e institucionais, passando por aumentos das isenções financeiras e facilitando as chamadas evasões fiscais, garantindo vantagens para um pequeno grupo de corporações. A democracia, como destacou os cientistas políticos norte-americanos Daniel Ziblatt e Steven Levitsky, no livro Como as democracias morrem, muitos governos adotam políticas autoritárias para controlar as instituições, enfraquecendo e erodindo gradualmente as normas políticas de longa data garantindo os instrumentos de controle social. No caso brasileiro, percebemos uma política deliberada de esvaziamento das instituições de fiscalização, como o IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais e Renováveis, o INEP – Instituto Nacional de Pesquisa Espaciais, a ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária, reduzindo os recursos financeiros, diminuindo os efetivos técnicos, substituindo o corpo de funcionários por pessoas oriundas das Forças Armadas, que desconhecem a instituição e sem bagagem técnica, fundamentais para cumprir seus papéis de fiscalizar e organizar as atividades.

No Brasil, percebemos a adoção de políticas de matriz autoritária, agredindo as mídias tradicionais,
denegrindo a ciência, cultuando os benefícios do período militar e estimulando os meios alternativos de difusão de informações como as redes sociais, além de recorrer constantemente a mentiras, destruindo as reputações, adotando meias verdades, inverdades e as chamadas Fake News.

Neste ambiente, a pandemia nos traz novas oportunidades de repensar a sociedade, sem a atuação dos setores governamentais não teremos condições de angariar novos instrumentos de recuperação econômica. Cabe ao Estado concatenar novos projetos de desenvolvimento, centrados em setores fundamentais no século XXI, investimento em setores da indústria da saúde, da defesa, do agronegócio e no complexo petróleo e gás, deixando de lado os inúmeros incentivos para setores que ficaram para trás, tais como a indústria automobilística, recursos investidos foram gigantes e os retornos sempre foram controversos. Os inúmeros incentivos tributários devem ser repensados, desde as isenções de setores de aluguel de carros e utilitários, da Zona Franca de Manaus que desde a criação nos anos 60 consumiram grandes somas de recursos e os retornos sociais e econômicos foram insuficientes. No Brasil contemporâneo, os incentivos e as isenções tributárias geram um rastro de 300 bilhões de reais, recursos que aumentam os rendimentos de setores caracterizados por baixas produtividades e pequenos retornos sociais e econômicos, que sobrevivem graças aos benesses do Estado Nacional.

No setor externo, percebemos que o governo está dilapidando o capital político dos governos anteriores, com a adoção de uma política de alinhamento e subserviência ao governo de Donald Trump, algo que não existe na história da política externa brasileira. Com isso, o governo vem perdendo espaços internacionais importantes, levando o país a ser visto como uma pária global, perdendo espaços e investimentos estrangeiros. Na questão do meio ambiente, percebemos que a comunidade internacional está ameaçando a adoção de represálias que tendem a nos trazer constrangimentos econômico e político, restringindo investimentos e avaliações comerciais.

No ano de 2020, o governo adotou inúmeras políticas desagradáveis com antigos parceiros comerciais, criando conflitos com a Comunidade Europeia, com os muçulmanos e com o parceiro brasileiro, a China. Todos os confrontos geraram constrangimentos nas relações internacionais, prejudicando os negócios externos de empresas nacionais e apagando a imagem positiva do Brasil no cenário mundial, gerando incertezas e instabilidades na comunidade internacional.

As relações comerciais de alinhamento automático com os Estados Unidos geram grandes problemas com a China, uma economia que caminha para se tornar a maior economia internacional, cujos atritos comerciais podem criar graves perdas comerciais, afinal a economia chinesa é o grande parceiro comercial, movimentando bilhões de dólares e superávits comerciais. Um exemplo deste conflito está no mercado de tecnologia 5G, num momento os grandes atores globais estão garantindo novos mercados de expansão de suas tecnologias, neste embate os norte-americanos buscam fragilizar o maior ator deste mercado, a empresa chinesa Huawei, revivendo um dos momentos mais sombrios do período da guerra fria, levando a sociedade a um dos períodos mais nebulosos da história do século XX.

O ano de 2020 repetiu a estagnação da economia brasileira desde 2016, período marcado por baixíssimo crescimento econômico, recessão crescentes e incremento do desemprego. Muitos analistas podem destacar que o grande responsável pelo baixo crescimento econômico é a pandemia, acredito que esta verdade é parcial, desde a pandemia a economia apresenta grandes dificuldades de crescer de forma sustentável, nos três meses deste ano, a economia regrediu mais de 2% do PIB, mostrando que o país ainda não conseguiu encontrar o caminho da recuperação. Neste período percebemos inúmeras medidas alardeadas nos meios de comunicação que, brevemente, era desmentida, que denota um governo perdido, sem rumo e sem perspectivas, levando a economia nacional a condição de estagnação e incertezas crescentes.

Uma das mais flagrantes dificuldades do governo está na construção da imunização da sociedade, a busca da vacina se tornou um dos maiores desafios das políticas públicas das nações, neste momento que escrevo, os jornais nos trazem informações de que mais de quarenta países do mundo estão iniciando a imunização de suas populações e, infelizmente, dentre estes países não encontramos o Brasil, aumentando a ansiedade da população e a desesperança crescentes que tendem a aumentar na sociedade, principalmente dos grupos mais vulneráveis, tais como os mais pobres, os negros, os indígenas, dentre outros.

O ano de 2020 está terminando felizmente. O ano de 2021 está surgindo com raios de esperanças e expectativas mais claras de superação e de crescimento econômico, geração de empregos e melhora nas condições de vida. Neste momento devemos construir novos espaços de solidariedade e oportunidades para todos os grupos sociais, somente desta forma conseguiremos construir uma nação digna deste nome, onde todos os indivíduos tenham oportunidades de mostrar suas habilidades e potencialidades, construindo uma verdadeira meritocracia.

Perspectivas

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Estamos chegando o final de mais um ano, o ano de 2020 está acabando, trazendo inúmeras dificuldades, desafios e desequilíbrios. Dentre as grandes deficiências geradas pelo ano, é importante destacar as dores geradas pela pandemia, com destruições generalizadas, mortes, degradações e deixando claro nossas deficiências mais íntimas, desnudando nossas desigualdades, limitações e dificuldades em todos os campos, desde o econômico, o político, o social, o emocional, o psicológico e cultural.

No campo econômico percebemos nossa desigualdade mais íntima, nossa sociedade se caracteriza por inúmeras estruturas sociais, uma pequena parte se caracteriza por uma rápida adaptação, flexível e dinâmica, dotada de máquinas e equipamentos sofisticados características do mundo do conhecimento, aptos pelo trabalho remoto, com home office, protegido e isolados. De outra lado, percebemos uma parcela significativa da sociedade que carece de saneamento básico, sem água encanada, sem empregos, sem internet, sem iluminação decente e sem perspectivas de sobrevivência digna, desta forma, grande parte da sociedade tem dificuldade para fazer isolamento social. Vivemos em um ambiente marcado pelo desenvolvimento da tecnologia, onde o conhecimento se tornou o grande ativo social, neste ambiente percebemos que estamos longe do mundo da informação, gerando graves atrasos do capital humano na nação, salários baixos e produtividade reduzida no trabalho.

Neste momento de pandemia, de incertezas e de instabilidades crescentes, a sociedade precisa construir um novo projeto de desenvolvimento econômico, priorizando os setores reais da economia, a geração de emprego e o incremento da renda agregada, aproveitando o grande contingente de trabalhadores que foram alijados dos setores produtivos, dinamizando a economia nacional, reduzindo as desigualdades regionais, investindo em ciência, pesquisa e tecnologia e garantindo novos investimentos produtivos, aumentando a arrecadação de impostos, dos tributos e ampliando os recursos do Estado, garantindo ampliar os direitos e os deveres da sociedade.

A pandemia pode estimular novas reflexões, o desenvolvimento pode ser incrementado através de um projeto nacional, concatenado entre todos os setores econômicos, financeiros e produtivos, deixando de lado interesses imediatos e individuais, construindo um modelo de desenvolvimento que una os setores industriais, o agronegócio, as universidades públicas e privadas, os centros de pesquisas, os sindicatos, os trabalhadores, os setores do comércio e dos serviços, além de bancos e financeiras. Neste momento, para o desenvolvimento econômico é necessário um projeto que una a sociedade em prol do crescimento econômico que vise a construção da nação, evitando e superando um modelo predatório como utilizado atualmente, atrasado, concentrador de renda, baseado em taxas de juros escorchantes, centrado na tributação do consumo, que garanta benesses a um pequeno grupo de endinheirados em prol da miséria de uma grande parcela da sociedade, reconhecendo que temos potencial para sermos uma economia empreendedora, soberana e autônoma.

Estamos num momento crucial para a sociedade, garantindo novos investimentos do meio ambiente e na diversidade cultural, precisamos tomar as rédeas do crescimento econômico e, com isso, construir o desenvolvimento da nação. Precisamos construir um futuro consciente, sabendo das potencialidades e das dificuldades e dos desafios, melhorando as vantagens comparativas e garantindo novos espaços para a atuação da população, construindo empregos dignos e investimentos produtivos, reduzindo as desigualdades sociais, diminuindo os hiatos existentes na educação, melhorando as oportunidades e garantindo para todos os trabalhadores um verdadeiro discurso da meritocracia.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia/Unesp Araraquara, Professor Universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 30/12/2020.

Medos

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O mundo vem passando por grandes transformações, de um lado percebemos alterações profundas nas estruturas econômica e produtiva, aumento da tecnologia, fortalecimento dos setores financeiros, aumento do desemprego, novas exigências nos mercados, incremento dos conflitos culturais e degradação do meio ambiente, de outro, uma pandemia que espalha destruição em todos os continentes, mortes, medos e preocupações generalizadas, cujos impactos são os desequilíbrios emocionais, afetivos, financeiros e psicológicos, diante disso, percebemos a necessidade de reconstruir as bases da sociedade global.

O crescimento tecnológico ganhou espaço em todas as sociedades, as máquinas aumentam a produtividade do trabalho, garantem o crescimento das riquezas, o mercado de consumo passa por mudanças variadas, consolidando os mercados virtuais, as compras geram novos prazeres e satisfações, criando novas necessidades e aquisições, levando aos indivíduos os sabores do consumo desenfreado.

A tecnologia deve ser vista como uma grande conquista para a civilização, os benefícios devem ser socializados para todas as comunidades, enquanto estes frutos do conhecimento ficarem restritos a pequenos grupos da sociedade, os conflitos tendem a crescer de forma acelerada, gerando pulsões de medos e ressentimentos e, num período posterior podem gerar degradações e violências.

Nesta sociedade, os conflitos estão aumentando, os medos estão se mostrando cada mais evidentes, os grupos sociais estão em confrontos, todos buscando seus interesses imediatos, defendendo seus grupos sociais e esquecendo os interesses maiores da sociedade. Neste momento, muitos grupos sociais carecem de condições mínimas de sobrevivência, o desemprego e o subemprego crescem de forma acelerada, criando uma massa crescente de indignidade, consolidando um caldo de desesperança e de revolta. Numa sociedade, como a brasileira, percebemos que mais de cem milhões de pessoas não possuem saneamento básico, ruas sem asfaltos, água encanada e muito menos acesso a internet, uma coletividade que vive no século XXI mas traz, para seu desespero geral, o atraso e a degradação do século XIX, com isso, os medos contemporâneos alimentam as violências e as desesperanças.

Na pandemia, percebemos a importância da ciência, do conhecimento e da pesquisa, neste momento de medos que consumiram mais de 6 milhões de pessoas na sociedade mundial, um dos maiores aprendizados da sociedade contemporânea foi a união dos cientistas e pesquisadores de inúmeras nacionalidades, que conseguiram responder rapidamente com uma vacina em período recorde de tempo, mostrando a todos a relevância da união de esforços em prol da comunidade.

A pandemia está nos trazendo vários ensinamentos valiosos para a comunidade internacional, dentre elas, destacamos a união dos povos, das comunidades científicas e pesquisadores, viabilizando a vacina e combater os males do coronavírus, um desafio global que exigem dedicação e investimentos de todos os governos, superando este modelo centrado na concorrência e na competição, substituindo por novos paradigmas de cooperação e de auxílios, deixando de lado os interesses mesquinhos e imediatos em prol de uma sociedade mais igualitária, mais civilizada, onde todos os cidadãos possam participar dos frutos do progresso pela tecnologia, transformando os medos contemporâneos e as desesperanças em espaços de esperança e de solidariedade.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia/Unesp, Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 23/12/2020.

Fábricas são escolas produtivas, por Paulo Gala.

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21/12/2020 Paulo Gala

Entrevista para a revista da Confederação Nacional das Indústrias (CNI)

1) Como você visualiza a política industrial do Brasil?
Erros de política industrial não significam que a política industrial não funciona. O fato de o Brasil não ter conseguido avançar mais no mercado mundial significa apenas que não executou essas políticas de maneira adequada. Eu destacaria: metas de exportação, metas de sofisticação tecnológica e metas de conquista de mercados mundiais. Tudo isso a Ásia do leste fez com maestria. Taiwan, Singapura, Corei do Sul e hoje China. Foram milagres produzidos por políticas industriais bem feitas. No Brasil não conseguimos avançar tanto quanto eles e jogamos a toalha a partir dos anos 90. Abrir mão de políticas industriais significa abrir mão da possibilidade de se desenvolver.

2) Em que medida o sistema financeiro pode potencializar a atividade industrial no país?
O salto de escala e tecnológico das indústrias de países pobres e de renda média não vai ocorrer sem políticas adequadas que recuperem o papel dos bancos públicos como por exemplo o BNDES. A experiência asiática da segunda metade do século XX demonstra que é incontornável a constituição de um sistema financeiro formado pela interação virtuosa entre grandes bancos comerciais públicos e privados. Bancos de desenvolvimento de grande porte são necessários para desenvolver instrumentos financeiros destinados ao crédito de longo prazo. É bastante reconhecida entre economistas a necessidade da intervenção do Estado em processos que envolvam externalidades positivas e negativas, informação assimétrica, incerteza, risco elevado e concentração do poder econômico. Entre as externalidades positivas estão a construção de infraestrutura e outros bens públicos, como a geração de conhecimento científico e tecnológico, papel que muitas vezes cabe ao investimento público e apoio de bancos públicos.

3) Uma das demandas do setor é o prolongamento dos programas emergenciais de financiamento e da política de expansão de crédito. Como você visualiza essa demanda?
A implosão da economia brasileira em 2014 e 2015 arrastou nossa indústria para uma monumental queda até hoje não recuperada. O desaparecimento do crédito e da demanda interna tiveram efeitos diretos e violentos na produção doméstica de carros, motos, caminhões, moveis, eletrodomésticos, bens de consumo em geral, matérias da construção civil, aço, entre outros. Nossa produção industrial colapsou com queda de 20% entre 2014 e 2016; e lá ficou até hoje. Nossa retomada econômica desde então foi muito tênue. O pouco que crescemos foi baseado em serviços de baixa qualidade; novos empregos com salários menores e mais precários foram gerados. O pouco nível de proteção que ainda existe para nossa indústria nacional também não resolveu o problema. O auxílio de emergência somado a uma taxa de câmbio mais desvalorizada e juros SELIC na mínima trouxeram novas perspectivas. A transferência de renda via auxílio de emergência representará algo como 6% do PIB, com transbordamento de demanda para indústria. A SELIC em mínima histórica e juros reais negativos trouxeram importante impulso ao setor de construção civil que aumentou a demanda por bens industriais. A taxa de câmbio acima de R$5 aumento muito a competividade de nossa produção
industrial aqui e lá fora. Tudo isso deveria ser mantido em 2021, claro que com níveis menores do auxílio emergencial. Seriam ótimas e novas notícias para o setor. Ainda num contexto de pandemia o BNDES deveria ser usado para assumir riscos que bancos privados não aceitam. Isso ocorreu em parte com o fundo público criado pelo governo para socorrer pequenas e médias empresas, o PRONAMPE. Essas medidas deveriam ser mantidas a meu ver.

4) Você costuma dizer que “a indústria é a escola produtiva da economia”. O que isso significa exatamente?
O conhecimento formal codificado (alfabetização, conhecimento matemático e científico) é importante para adquirir habilidades específicas necessárias à prática profissional. Mas é na prática profissional que o conhecimento do tipo não codificado, que se manifesta no “know-how” embutido em rotinas inconscientes e muitas vezes complexas, é compreendido e internalizado. Isso ocorre em geral no setor manufatureiro e de serviços complexos atrelados. A indústria converte o capital humano aprendido nas escolas em produtos e serviços de alto valor agregado. Estudos da OCDE mostram que de todos os setores de uma economia as manufaturas são sempre os setores que mais gastam em pesquisa e desenvolvimento como proporção de suas vendas e valor adicionado.

5) E como o setor industrial contribui para a formação desse conhecimento?
Embora muitas empresas de países em desenvolvimento possam adquirir máquinas para atividades básicas de produção e contem com razoável disponibilidade de trabalhadores qualificados, falta-lhes a capacidade de produzir novas tecnologias e novas máquinas. Tecnologias essas que demandam um complexo processo de aprendizagem produtiva em empresas que tem marcas e processos proprietários, patentes e know how diferenciado. Esse tipo de dinâmica de inovação e aprendizagem se encontra na maioria das vezes no setor industrial. Países hoje emergentes apenas usam as máquinas, países ricos produzem as máquinas no coração de seus sistemas industriais.

6) Um dos problemas do país é a baixa escolaridade da população. Em que medida reverter esse cenário vai contribuir para o crescimento da produtividade industrial?
É ilusório acreditar que a mera escolarização da população será capaz de elevar a produtividade aos níveis requeridos pela competitividade nos mercados internacionais. A transformação estrutural em tempos de acelerada evolução tecnológica requer uma estratégia de aprendizagem tecnológica eficaz. Para tanto, é preciso identificar os hiatos de conhecimento relevantes em diversas industriais e as políticas que podem ser implementadas de maneira correta para lidar com essas deficiências. Os mercados mundiais para produtos nobres do ponto de vista tecnológicos são naturalmente concentrados. A inovação e o domínio tecnológico criam barreiras à entrada nos mercados, o que por sua vez cria poder de monopólio para as empresas. Existe enorme assimetria no comercio global que não poderá ser apenas compensada com investimento em educação. Políticas públicas precisam ser desenhadas em países emergentes para que se possa nivelar esse campo de jogo inclinado em favor de países hoje desenvolvidos.

7) Qual a relevância da indústria para o desenvolvimento econômico de uma nação?
Desenvolvimento econômico é acúmulo de capital humano, de conhecimento de uma sociedade que se traduz na capacidade de produzir bens e serviços complexos que geram altos lucros e salários. Para isso não basta que um país invista em educação. Precisa cultivar a indústria. O setor industrial é o único capaz de converter o acúmulo de conhecimento em produtos e serviços que geram a riqueza das nações. O processo de desenvolvimento econômico pode ser entendido como uma industrialização rumo a fronteira tecnológica mundial. Os países hoje ricos mantem a produção manufatureira de altíssimo conteúdo tecnológico em seu território junto com serviços empresariais complexos associados a essa produção. Transferem para países pobres as fábricas poluidoras e de baixo valor adicionado. Quando um país enriquece a indústria perde participação absoluta no PIB mas continua enorme em termos absolutos. Países hoje ricos tem a maior produção industrial do mundo tanto em termos absolutos quanto per capita. Não existe desenvolvimento econômico sem um setor industrial pujante.

Home office já tinha vantagens até no século 18

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Mesmo com poucos dados da época, é possível perceber que existem paralelos surpreendentes com os dias de hoje
The Economist, O Estado de S. Paulo / 20 de dezembro de 2020

Sally Brown, que nasceu em Vermont no início dos anos 1800, tinha uma rotina típica para uma trabalhadora da época.

Como mostra seu diário, um dia ela está terminando de fazer as meias; no outro, está ordenhando a vaca; no terceiro, tecendo lã. Todos os seus trabalhos eram feitos em casa.

A mudança dos escritórios para as mesas de cozinha das casas dos trabalhadores de colarinho branco em 2020 parece não ter precedentes e só foi possível com o Slack e o Zoom. Mas não é nada novo. Na verdade, a história do trabalho de casa sugere alguns paralelos surpreendentes com os dias de hoje.

O surgimento do capitalismo na Grã-Bretanha e em outros lugares de 1600 a meados do século 19 não ocorreu fundamentalmente nas fábricas, mas, sim, nas casas das pessoas. Em suas cozinhas ou quartos os trabalhadores faziam de tudo, de vestidos a sapatos e caixas de fósforos.

Quando Adam Smith escreveu A Riqueza das Nações em 1776 era perfeitamente comum trabalhar em casa. Smith descreveu a famosa operação da divisão do trabalho na fabricação de alfinetes, não em algum moinho escuro e infernal. Ele falou sobre uma “pequena manufatura” de umas dez pessoas – que poderia muito bem estar dentro ou anexada à casa de alguém.

Não é fácil estabelecer números exatos de quantas pessoas trabalharam em casa durante os diferentes períodos históricos. Até mesmo na Grã-Bretanha, onde os dados econômicos são mais extensos que em qualquer outro país, existem poucos dados confiáveis sobre a força de trabalho até meados do século 19. Mas outras fontes deixaram algumas pistas. Uma delas diz respeito ao significado da palavra house (casa, em inglês).

Hoje, o termo conota domesticidade. Mas, até o século 19, tinha uma definição muito mais ampla, com o sufixo – house abrangendo também a produção econômica. Em Uma Canção de Natal”, Scrooge trabalha numa counting-house, ou seja, uma “casa de contabilidade”. A arquitetura oferece outras dicas. Na Grã-Bretanha, muitas casas do século 18 ainda têm as janelas do andar superior excepcionalmente grandes, porque os tecelões que trabalhavam nesses espaços precisavam do máximo de luz possível.

Por volta de 1900, administradores franceses tomaram a iniciativa de perguntar às pessoas sobre seu local de trabalho, não apenas sobre o que faziam. Eles descobriram que um terço da força de trabalho industrial da França trabalhava em casa. Pesquisas dinamarquesas da mesma época revelaram que um décimo da mão de obra total o fazia em casa, em tempo integral.

Esses esforços de pesquisa ocorreram no auge do sistema de produção fabril; nas décadas anteriores, a parcela de trabalho realizado em casa deve ter sido muito maior. De acordo com uma estimativa feita para os Estados Unidos, a partir de dados oficiais, mais de 40% da mão de obra total trabalhava em casa no início do século 19. Somente em 1914 a maioria da força de trabalho passou a trabalhar em fábricas ou escritórios.

O surgimento dessa mão de obra industrial trabalhando de casa teve duas causas principais. O crescimento do comércio global e o aumento da renda per capita a partir de 1600 aumentaram a demanda por produtos manufaturados, como lãs e relógios. Mas a nova tecnologia emergente era mais adequada para o trabalho em pequena escala do que para as fábricas de grande escala (o tear jenny, a máquina que disparou a revolução industrial, só foi inventada na década de 1760). As casas eram o lugar óbvio para se estar.

O que surgiu foi chamado de “sistema putting-out”, ou sistema de produção domiciliar. Os trabalhadores retiravam matérias-primas e, às vezes, equipamentos de um depósito central. Eles voltavam para casa e produziam as mercadorias por alguns dias, antes de devolver os artigos prontos e receber o pagamento. Os trabalhadores eram contratados independentes: recebiam por peça, não por hora, e tinham pouca ou nenhuma garantia de trabalho de uma semana a outra.

Os relatos de como era trabalhar em casa nos séculos 18 e 19 são poucos e esparsos. Boa parte da força de trabalho do sistema putting-out era constituída por mulheres, que tinham menos chance de escrever autobiografias (o predomínio de mulheres no sistema putting-out também explica por que gerações de historiadores não lhe deram muita atenção).

Apesar disso, algumas características emergem dos arquivos. A jornada média de trabalho era mais longa. Ao contrário dos dias de hoje, quando a maioria das pessoas tem emprego, as pessoas saltavam de um trabalho a outro, dependendo de onde podiam ganhar dinheiro, como Sally Brown.

Com os dedos cansados e feridos

Alguns historiadores da economia sugerem que os trabalhadores eram impiedosamente explorados sob o sistema putting-out. Aqueles que possuíam as máquinas e matérias-primas gozavam de enorme poder sobre seus empregados. Com os trabalhadores espalhados por todo um condado, era difícil que eles se unissem contra patrões exploradores para exigir melhores salários – quanto mais formar sindicatos.

Os chefes “podiam facilmente se unir contra o fiador, que enfrentava uma oferta de trabalho do tipo pegar-ou-largar”, argumentam Jane Humphries e Ben Schneider, da Universidade de Oxford, em um artigo de 2019. Alguns trabalhadores realmente enfrentaram dificuldades. O poema de Thomas Hood “The Song of the Shirt” evoca uma trabalhadora que labuta na pobreza.

Como resultado, alguns historiadores aplaudem o desenvolvimento do sistema fabril a partir do final do século 18. Os trabalhadores se mudaram de um lugar onde a vida doméstica se misturava livremente à produção econômica para um lugar exclusivamente dedicado à busca da eficiência.

Não é de surpreender que a produtividade do trabalho fosse mais alta na fábrica, nem que o sistema fabril aos poucos tenha superado e substituído o sistema putting-out. Amontoados na fábrica, os trabalhadores podiam se juntar para pedir salários mais altos; e os sindicatos começaram a crescer a partir da década de 1850. Segundo dados ingleses, os trabalhadores fabris recebiam de 10 a 20% mais do que os trabalhadores que trabalhavam em casa.

Mas a história não para por aí. Alguns trabalhadores que trabalhavam em casa resistiram à mudança para o sistema fabril – sobretudo se unindo aos Luditas, uma sociedade de trabalhadores têxteis ingleses do século 19 que destruíam máquinas, pois sentiam que elas estavam tomando seu trabalho. Outra explicação é que os proprietários das fábricas, pelo menos no curto prazo, tiveram pouca opção a não ser oferecer salários mais altos para atrair os trabalhadores de suas casas. Isto sugere que trabalhar em casa tinha suas vantagens.

Uma dessas vantagens era econômica. Os trabalhadores que trabalhavam em casa talvez recebessem menos que os trabalhadores fabris, mas podiam ganhar renda por outros meios. Os trabalhadores de casa da indústria de lã recebiam uma determinada quantidade de matéria-prima e precisavam devolver o mesmo peso do material transformado em meias. Mas, ao expor a lã ao vapor, ela pesava mais, permitindo que os trabalhadores ficassem com uma parte da matéria-prima.

Esta não era a única vantagem. Trabalhadores que trabalhavam em casa nas áreas rurais ou semirrurais podiam obter lenha e alimentos e, assim, aumentar suas rendas escassas. Em 1813, um observador notou, com desdém, que as mulheres em Surrey, condado próximo a Londres, ganhavam 3 xelins por semana lavrando brejos para fazer vassouras – “produções miseráveis e empregos sem valor”, em sua opinião. Mas 3 xelins por semana não estava muito longe da média de ganhos femininos na época.

Os trabalhadores que trabalhavam em casa também tinham mais controle sobre seu tempo. Contanto que o trabalho fosse realizado de acordo com o padrão exigido e dentro do prazo, eles não eram obrigados a fazê-lo de determinada maneira. Isto contrastava fortemente com a fábrica, onde cada aspecto da vida era planejado com antecedência e os trabalhadores eram monitorados de perto.

E os trabalhadores de casa podiam decidir a combinação exata entre trabalho e lazer – em contraste com os trabalhadores fabris, que ou trabalhavam as jornadas de 12 ou 14 horas estipuladas pelo proprietário da fábrica, ou não tinham trabalho nenhum. A jornada de trabalho média no século 18 era mais curta do que viria a ser no século 19. Depois de beber um tanto na noite de domingo, os trabalhadores domésticos muitas vezes tiravam o dia de folga antes de voltarem “relutantemente ao trabalho na terça-feira, aquecerem-se para a labuta na quarta-feira e trabalharem furiosamente na quinta e na sexta-feira”, como escreveu David Landes, historiador da economia da Universidade de Harvard. As pessoas também dormiam mais.

Essa maior autonomia era especialmente importante para as mães. Num mundo em que os homens pouco faziam no trabalho familiar, as mulheres podiam combinar o cuidado dos filhos com a contribuição para a renda da família. Não era nada fácil. Às vezes, as mulheres davam a seus bebês o Godfrey’s Cordial, uma mistura de xarope de açúcar e láudano, para deixá-los desacordados por um tempo. Mas trabalhar de casa possibilitava conciliar o trabalho remunerado com o trabalho familiar de uma forma que o sistema fabril não permitia. Com a expansão das fábricas, a participação feminina na força de trabalho caiu.

Em 1920, o sociólogo alemão Max Weber argumentou que a separação do trabalhador de sua casa teve consequências de “alcance extraordinário”. A fábrica era mais eficiente que o sistema doméstico que a precedeu – mas também era um espaço em que os trabalhadores tinham menos controle sobre suas vidas e onde se divertiam muito menos. Dependendo de quão permanente seja, a mudança de volta para casa induzida pela pandemia de hoje pode ter efeitos de longo alcance semelhantes. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

O lucro das grandes S.A. e o interesse público, por Celso Ming.

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Cada vez mais grandes corporações maximizam seus lucros operando contra o interesse público e contra o interesse do consumidor

Estado de São Paulo, 20/12/2020

Os governos dos países mais avançados economicamente estão assustados com o crescimento do poder econômico e político das big techs.

Elas não apenas produzem lucros impressionantes, como, também, controlam praticamente metade da população mundial.

Sabem tudo sobre os hábitos de cada um, o que veste, o que come, o que faz nas horas de trabalho ou de lazer, qual orientação política segue e, obviamente, o que pretende comprar. E como esse controle vale muito dinheiro, somam mais riquezas às muitas que já possuem.

Além disso, manobram para acabar com a concorrência, desestimulam o desenvolvimento de outras empresas que rodeiam seu terreiro, pagam o mínimo de impostos onde atuam e contratam os melhores escritórios de advocacia para enfrentar qualquer pendenga judicial…

Há duas semanas, o mais prestigiado colunista econômico do mundo, o inglês Martin Wolf, do Financial Times, escreveu artigo em que demonstra que um dos maiores economistas do século 20, o norte-americano Milton Friedman, da Universidade de Chicago, estava totalmente equivocado quando em publicação de 1970 escreveu que “a responsabilidade social da empresa consiste em aumentar seus lucros”.

O ponto de vista de Friedman é o de que os bons lucros são as melhores indicações de que uma empresa atende ao interesse público. Se vende mais e lucra mais é porque responde adequadamente às necessidades do consumidor. Se deixasse de suprir o consumidor, seus produtos ou serviços encalhariam, a empresa deixaria de faturar e acabaria por ser alijada do mercado. Ela só tem de respeitar os reguladores e os contratos e seguir apresentando resultados para seus acionistas.

Martin Wolf aponta para outra direção. E, para isso, se apoia num livro recente publicado por Stigler Center (Milton Friedman, 50 years later), no qual fica demonstrado que as grandes empresas aumentam, sim, cada vez mais seus lucros, mas operam contra o interesse público e contra o interesse do consumidor.

Apenas em reforço ao que ficou dito acima, elas destroem o ambiente competitivo; ganham enormes economias de escala e, nessas condições, impõem seus preços; têm acesso às fontes mais baratas de capital; fogem o quanto podem do recolhimento de tributos e das regulações, na medida em que transferem suas sedes para paraísos fiscais, contratam os melhores especialistas em administração tributária e impõem cláusulas draconianas nos seus contratos.

Ainda passaram a ter importante controle sobre as regras do jogo, ao passo em que lobbies poderosos trabalham para moldar as leis e regulamentações a seu favor. E, porque contribuem copiosamente para financiamentos de campanha ou conseguem corromper funcionários públicos, passam a ter imenso poder político.

Se estivesse vivo, muito provavelmente Milton Friedman acabaria por rever sua tese que tanto impacto teve nos empresários. Mas dificilmente apresentaria recomendações de fácil implantação para mudar as regras desse jogo desigual, que eleva as grandes corporações para níveis que pairam acima do bem e do mal.

Na teoria, a proposta para começar a virar esse jogo talvez não esteja tão distante. Trata-se de levar os Estados a exercer o controle sobre essas fontes de poder que tendem a sabotar a própria capacidade de governar.

O problema é que nenhum governo sozinho seria capaz de impor suas condições. Antes mesmo da crise de 2008, as grandes corporações financeiras fizeram o diabo com as aplicações dos seus clientes, sem que nenhum organismo regulador interviesse nas pirâmides financeiras que empobreceram as classes médias. Até agora, nenhum país conseguiu cobrar impostos sobre as operações das gigantes de tecnologia.

Há anos, o G-20 tenta um acordo mínimo sobre a tributação desses capitais colossais, mas não consegue avançar. Os países são, por exemplo, contra a existência e a atuação dos paraísos fiscais dos outros países, mas não contra as de seus próprios. Os Estados Unidos não aceitam a taxação de suas big techs, pois entendem que invadiria seu próprio espaço tributário.

Ou seja, enquanto não houver amplo acordo entre governos, parece improvável que essas S.A., as gigantescas corporações e outras mais, possam ser controladas pelo poder público.

CELSO MING É COMENTARISTA DE ECONOMIA

Educação: a aposta radical do oficinar, por Antonio Lafuente

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Outras Palavras, 11/12/2020.

Contra a alienação do ensino taylorista, surgem dinâmicas que buscam valorizar múltiplos saberes, desierarquizá-los e quebrar fronteiras entre eles. Mas há riscos: superficialidade, performismo e menosprezo pela reflexão e pela crítica

Taylorizar um projeto supõe separá-lo em tantas partes quanto possível e, em seguida, designar a elas uma posição em uma cadeia de eventos sucessivos e, paralelamente, em outra cadeia de valor. Assim, cada fragmento tem sua hierarquia, seu responsável e seu momento em uma cadeia de produção e reprodução. Taylorizar é colocar cada um em seu lugar e criar um lugar para cada um. A finalidade de tudo é melhorar a eficiência do sistema e aproveitar melhor os tempos. Não importam as habilidades dos integrantes da cadeia porque, ao serem separadas as funções, basta que seja cumprida aquela que lhe foi designada. Nada é híbrido (mistura de culturas), aleatório (deixado à improvisação) ou insuficiente (aberto à adaptação). Tudo deve se encaixar em uma cadeia de causas-efeitos que funcione sem conflitos, sem ajustes, sem equívocos. Tudo deve ficar no nível de máxima operacionalidade.

A taylorização cria especialistas programados, funções fixas, margens vigiadas, concepções próprias, práticas submissas e culturas fechadas. Em oposição à taylorização estão as iniciativas hacker, os arranjos do bricoleur, os protótipos abertos, os coletivos amadores, os hábitos populares e todas essas formas de codificar o conhecimento dividido que implicam em truques, artimanhas e improvisações. Os espaços DIY [do it yourself, ou “faça você mesmo”], os movimentos táticos, os projetos makers ou os grupos de amantes das plantas, a cozinha e o patchwork, todos em seu conjunto, encarnam e mobilizam uma cultura que quer ser diferente. Uma cultura que é contra-hegemônica e que quer ser chamada de radical.

Contra-hegemônica e radical, mas não necessariamente esquerdista. Capaz de visualizar outro mundo possível, mas crítica com a ideia de que a divisão nas classes possa explicar todos os conflitos que enfrentamos. Radical porque aponta para todas as direções e contra todas as dicotomias que criam falsos e desnecessários lugares de passagem entre fronteiras imaginárias. Radical porque os rompimentos entre antigo e moderno, entre funcional e obsoleto, entre velho e jovem ou entre passado e futuro são tão artificiais quanto interessados no serviço de um mundo que vê empecilhos em tudo o que não pode instrumentalizar sem descanso. E junto com as formas mencionadas de territorializar o tempo, também há outras maneiras de habitar a urbe que levam a negar a pertinência dessas dicotomias que querem uma tensão extrema entre o privado e público, entre a tecnologia e o artesanato, entre o amador e o profissional ou entre a produção e a reprodução. Combater esses encerramentos da inteligência e da vida é apostar no radical, sem a necessidade de ser esquerdista, sem necessidade de colocar todos os ovos na mesma cesta ou, em outras palavras, sendo um pouco mais pós-moderno e um pouco menos universal.

Temos que distinguir entre taylorização e granularização. Fragmentar os projetos em partes é atribuir ao seu desenvolvimento etapas intermediárias a serem alcançadas. Há muita sabedoria em construir os projetos para que uma sequência de pequenas metas intermediárias estimule sua continuidade, aproveitando assim essa condição evolutiva do cérebro que premia essas simples vitórias com liberações de endorfina. A fragmentação então é uma estratégia que coloca os atores em primeiro plano, tanto porque é uma forma de fazer seu trabalho de maneira mais agradável e produtiva, como também porque é uma garantia de hospitalidade a quem possa se interessar pelo que fazemos. A descomposição em fragmentos dos projetos favorece a incorporação de interessados, tanto os que têm muito tempo, quanto os que apenas podem desviar algum momento esporádico e intermitente. Os projetos granulares criam espaços comuns, os taylorizados destroem a comunidade. A taylorização é um gesto vertical, autoritário, arrogante e fechado: se antepõe ao rendimento, nega a participação, ignora as “outras“ habilidades do trabalhador e é, em consequência, duplamente alienante, pois separa o trabalhador do fruto de seu trabalho, além de separá-lo também de suas habilidades cognitivas.

A taylorização do trabalho favorece sua mercantilização e nos transforma em dispensáveis, contingentes e dóceis. É a estrada que conduz à precarização. É a estrutura que confunde as organizações com seu organograma e que faz do trabalhador um escravo da máquina. Taylorizar a cultura é transformá-la em informação para que logo o mercado a transforme em um recurso. E aqui cabe, tomara que não aconteça tão logo, perguntar quem ganha e quem perde cada vez que tais dispositivos se mobilizam. Se você considerar o lado mau da equação, nunca encontrará respostas suficientemente satisfatórias. Se considerar o outro, não deveria descansar em paz. Por isso precisamos de mais conceitos para incluir no repertório de instrumentos com os quais podemos entender e mudar o mundo. Temos que aprender a trabalhar no modo oficina.

Oficinar a cultura ou a educação implica em suspeitar de todas as tentativas de descompor o aprendizado em seções, níveis, objetivos, provas e qualificações. Também supõe discutir a divisão por disciplinas, áreas, matérias ou conhecimentos. E, desde cedo, desrespeitar essas fronteiras que querem separar o formal do informal, ou o acadêmico do urbano, o objetivo do político, o tecnológico do artesanal e o cultural do científico. Nenhum estudo confiável que tenha se aproximado o suficiente dessas divisões deixou de nos explicar as muitas formas de atravessá-las, especialmente pelas pessoas que são seus vizinhos e que as suportam. Oficinar a educação implica então em apostar em outros modos de fazer com que seja diminuída a distância entre o que se ensina e o que se aprende, entre o que chamamos de saber e o que entendemos por fazer, entre ser original e ser um bom DJ, entre produzir e compartilhar, entre argumentar e visualizar. A oficina parece o instrumento adequado para a implementação do design thinking ou é o caminho necessário das palavras aos atos, o que é o mesmo que dizer que se configura como um excelente recurso para promover uma cultura socialmente colaborativa, juridicamente aberta, politicamente radical e epistemicamente plural. Sim, oficinar a educação é uma forma de “hackeá-la”.

Temos confiado tanto em seminários, simpósios ou congressos que nos surpreende sua ampla ascendência e seu rápido envelhecimento. É inevitável que acabem sendo a expressão genuína de uma cultura elitista e entediante. A oficina, o festival e a unconference continuam crescendo como formas mais abertas e praticáveis de troca de experiências e conhecimentos. Não se trata de mudar as palavras, mas as culturas. Ninguém mais quer escutar brilhantes ladainhas. Não se trata de se misturar com os mais inteligentes, mas de inaugurar outros processos. Não tem mais mérito quem sabe mais, mas quem mais (se) oferece. Não se trata de esclarecer, desvendar ou revelar nada, mas de escutarmos, dividirmos e cuidarmos. O mérito não é de quem assina primeiro, mas de quem cuida melhor. E cuidar é fazer as coisas juntos. A oficina é o novo espaço que precisamos? Será a oficina o lugar da crítica?

A cultura deve ser crítica. A cultura deve resistir a qualquer precipitação e estar atenta às muitas tentativas de simplificação. Ser crítico implica não se resignar aos modelos reducionistas. Ser culto não é saber fazer as coisas. Não basta dispor de um livro de receitas a partir do qual resolver (nossos) problemas. A cultura não deve ser só funcional. Melhor que o seja, mas não é suficiente. Para ser culto não basta mapear os problemas, os territórios ou os conflitos de forma verossímil, contrastada e normalizada. Ser culto não é o mesmo que ser científico. Uma cultura é crítica quando sabe medir as consequências das coisas. Uma pessoa culta sabe ver a face oculta da Lua. Não se contenta com as realizações, também quer avaliar os danos colaterais. Uma pessoa culta sabe que é impossível iluminar um objeto sem criar uma sombra. Uma pessoa crítica sabe que na sombra se acumula muita dor, muita exclusão e muita mentira criadas com o mesmo gesto que buscava a felicidade, a democracia e a justiça. Não há uma sem a outra e, portanto, não há cultura sem contracultura.

A oficina tem seus monstros: o imperativo do oficinismo e o mal da oficinite. Há pouco tempo, senti essa consequência que impõe um só modo de compartilhar conhecimento: o oficinismo. O oficinismo tem fácil explicação. Consiste em admitir que na sala de aula se vai desenhar, discutir, compartilhar ou trocar receitas. Tudo o que não cabe em uma receita é especulativo, discursivo, unidirecional e antigo. Temos que falar de coisas práticas, rápidas, replicáveis e divertidas. Sem uma apresentação na tela, um pacote de post-its coloridos, um momento de trabalho em círculo e algum contraste dramatizado de critérios, os conteúdos ficarão obsoletos, suas aulas serão interrompidas e os professores perderão o direito à cidade. Educar é ensinar, mas aprender junto. E aprender poderia se transformar em acumular habilidades: cultivar plantas, tocar piano, trocar conteúdos, recodificar algoritmos, narrar histórias e percorrer o mundo. Bonito sonho, e necessário.

Recapitulemos um instante. No modo oficina, o professor já não se imagina como docente, mas como um facilitador, mediador, treinador, acompanhante… Um coach, dizem as escolas de negócios. Para realizar um seminário, é preciso conhecer muito sobre o tema, mas para abrir uma oficina, é preciso ter outras habilidades, como a de ser versátil, espirituoso e sociável, assim como não exagerar no rigor, não manifestar erudição, não se envolver em virtuosismos dialéticos ou não exigir leituras exageradas. Alguém que trabalha nas oficinas, o oficinista opera como uma espécie de cola social e é o artista da sociabilidade. Conforme a maneira como o vemos, dependendo de onde o consideramos, o oficinista poderia ser um ator imprescindível, sempre atento ao cuidado dos afetos e efeitos que se mobilizam no espaço da oficina. Se o público já é social entertainment, a oficina poderia se transformar em terapia social. Na oficina, fazemos coisas, mas sobretudo as fazemos juntos e isso parece acalmar a ansiedade de muitos. Me parece que não é suficiente e que falta alguma coisa. Falta alguma coisa?

No modelo oficina, se lê pouco e com pressa. Se discute menos do que se fala. O objetivo não é problematizar nossos conceitos, nossas práticas, nossos códigos ou nossas tecnologias. O objetivo é adequá-los rapidamente e transformá-los em um tutorial. Sempre há muita documentação. Tudo deve ser registrado e postado na rede. O esforço documental é admirável e ensina o caminho a uma cultura mais aberta e participativa. Sempre há uma infinidade de fotos, vídeos, desenhos, mapas mentais e outros trabalhos manuais. Em uma oficina, sempre há tempo para criar, processar e pós-produzir resultados. Todos fazem tudo. Não há divisão especializada do trabalho. Há um preço a ser pago por tudo isso, pois o modo oficina consome muito tempo e, consequentemente, os processos que ele inicia devem ser concentrados e curtos. Enfim, não há tempo para tentativas, o incerto ou o imperfeito.

Em sua forma mais paródica, as oficinas são um espaço de estagnação, onde se forma gente obediente e conformista: exploradores de salão, não de campo; cozinheiros de domingo, não diários; redatores de críticas, não leitores. Engrandecer uma receita supõe implementar práticas móveis entre diferentes domínios do saber, pois implica em contrastar experiências, estabelecer termos ou trabalhar colaborativamente. Entretanto, destacar-se exige um compromisso de maiores riscos como, por exemplo, aceitar que a verdade certamente estará bastante dividida e que todos, incluindo os que creem ter razão, devem renunciar a sua imposição. Não se trata de convencer, mas de conviver: fazer o possível para a vida em comum. O gesto crítico implica escutar pontos de vista muito diferentes e, fugindo do consenso que sempre foi a forma na qual as maiorias se impuseram frente às minorias, construir narrativas que não sejam alérgicas ao frágil, ao contraditório, ao dividido e, enfim, ao plural. Ser crítico é criar mecanismos que evitem a produção de mais excluídos, mais minorias, mais periferias, mais invisíveis… Os muitos arredores com os quais convivemos.

Se a taylorização nos fez eficientes e alienados, a oficinização poderia nos fazer funcionais e estúpidos. E a essa nova doença poderíamos chamar de oficinite. Sofrem dessa doença as pessoas que já não confiam nas tradições dialógicas e que fogem das tensões, dos interstícios e das sombras.

ANTONIO LAFUENTE
Físico, pesquisador do Centro de Ciências Humanas e Sociais do Conselho Superior de Investigações Científicas (CSIC) da Espanha, na área de estudos da ciência. Seu interesse pela relação entre tecnologia, patrimônio e bens comuns desembocou nos laboratórios cidadãos, na inovação social e na cultura do prototipado.

O fundamentalismo de mercado, por Robert Reich

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Para reverter a desigualdade, precisamos desconstruir o mito do “livre mercado”
Como pôde um punhado considerável de bilionários – cujas vastas fortunas se multiplicaram mesmo durante a pandemia – convencer a vasta maioria do público de que sua riqueza não deve ser taxada para sustentar o bem comum?
Eles empregaram um dos mais antigos métodos usados pelos mais ricos para manter a riqueza e o poder – um sistema de crenças em que a riqueza e o poder nas mãos de poucos aparecem como natural e inevitável.

Séculos atrás, ele era o dito “direito divino dos reis”. O rei James I da Inglaterra e o rei Luís XIV da França, dentre outros monarcas, asseguravam que os reis recebiam sua autoridade de Deus e, portanto, não deviam prestar contas a seus súditos terrenos. Essa doutrina viu seu fim com a Revolução Gloriosa do século XVII e com as Revoluções Americana e Francesa do século XVIII.

Seu equivalente moderno pode ser chamado de “fundamentalismo de mercado”, uma crença que tem sido promovida pelos super ricos de hoje com o mesmo entusiasmo que a velha aristocracia tinha pelo seu direito divino. De acordo com ela, o que você recebe é simplesmente uma medida do que você vale em dinheiro.

Se você acumula um bilhão de dólares, certamente o mereceu, pois tal quantia foi um prêmio recebido do mercado. Se você mal sobrevive, a culpa é toda sua. Se milhões de pessoas estão desempregadas ou se seus salários estão encolhendo, ou elas têm que ter dois ou três empregos e não possuem a menor ideia do que receberão no mês seguinte ou, até mesmo, na próxima semana, é uma pena, mas este é o resultado das forças do mercado.

Essa visão predominante é absolutamente falsa. Um “livre mercado” não pode existir sem um governo. Um mercado – qualquer mercado – precisa de um governo para criar e garantir as regras do jogo. Na maioria das democracias, tais regras emanam das legislaturas, das agências e cortes administrativas. O governo não “interfere” no “livre mercado”. Ele cria e mantém o mercado.

As regras do mercado não são neutras nem universais. Elas parcialmente refletem as normas e os valores da sociedade. Elas também refletem quem, na sociedade, tem o maior poder de criar ou influenciar as regras tácitas do mercado.

O debate interminável sobre se o “livre mercado” é melhor do que o “governo” torna impossível o exame de quem exerce tal poder, como eles se beneficiam disso e se tais regras devem ser alteradas para que mais pessoas se beneficiem delas. O mito do fundamentalismo de mercado é, portanto, extremamente útil àqueles que não querem que tal exame seja realizado.

Não é nenhum acidente que aqueles com influência desproporcional sobre as regras do mercado – que são os maiores beneficiários da criação e adaptação destas regras – também são aqueles que apoiam de forma mais veemente o “livre mercado”, e são os mais fervorosos defensores da superioridade relativa do mercado sobre o governo.

O debate mercado vs. governo serve apenas para distrair o público da realidade subterrânea de como as regras são geradas e alteradas, do poder nos interesses dos endinheirados sobre este processo, e a extensão de seus ganhos resultantes disso. Em outras palavras, estes defensores do “livre mercado” não apenas querem que o público concorde com eles acercada superioridade do mercado, mas também sobre a importância central do debate interminável sobre quem – o mercado ou o governo – deve prevalecer.

É por isso que é tão importante expor a estrutura subjacente ao dito “livre mercado” e mostrar como e onde o poder se exerce sobre ele.

Desigualdades de renda, de riqueza e de poder político continuam a aumentar em todas as economias avançadas. Essa não é a única realidade possível. Mas para revertê-la, precisamos de um público informado capaz de ver através das mitologias que protegem e preservam os super ricos de hoje, assim como o Direito Divino dos Reis de séculos atrás.
*Robert Reich é professor de políticas públicas na Universidade da Califórnia-Berkeley. Foi Secretário do Trabalho dos Estados Unidos durante os governos de Bill Clinton (1993-1997).

“Moralmente, não estávamos preparados para esta pandemia”, afirma Michael Sandel.

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IHU, 16/12/2020

Michael Sandel tem muito a dizer e sabe como dizer. Professor de filosofia política na Universidade Harvard, sua condição de intelectual não o impede de ser um rockestar do pensamento contemporâneo: suas aulas são televisionadas, enche estádios, as pessoas fazem filas para o escutar.

A reportagem é de Elba Astorga, publicada por Telos, 14-12-2020. A tradução é do Cepat.

Sua mensagem não é complacente, há tempo está preocupado com as armadilhas da meritocracia: a globalização, o pensamento neoliberal, a tecnocracia. Seu ideário filosófico se baseia na consecução do bem comum: esse ponto onde confluem pessoas de todas as classes, todas as raças, todos os níveis de formação e o resultado (ideal) é a melhora de todos. Não se trata de uma busca romântica de igualdade, mas do interesse genuíno em que o conjunto da sociedade seja capaz de apreciar a diferença entre valor social e valor econômico.

Sandel participou da II edição do Fórum Telos, organizado pela Fundação Telefónica. Desta vez não encheu auditórios, mas pudemos vê-lo e escutá-lo através da tela, como se falasse só para nós. A mensagem é alta, clara, direta: é preciso valorizar as pessoas pela contribuição que fazem ao bem comum.

Solidariedade e pandemia

“Moralmente, não estávamos preparados para esta pandemia”, afirma Sandel. É que esses meses de emergência sanitária manifestaram a tremenda desigualdade econômica que ocorreu nas últimas décadas.

Esta lacuna, unida à produzida pela meritocracia, parece ter fechado os “vencedores” da corrida pelo mérito em uma bolha que invisibiliza aqueles que estão passando mal e torna a solidariedade um deus menor no panteão do capitalismo neoliberal. Daí a acusação de Sandel da perda dos princípios morais necessários para enfrentar esta pandemia.

Lamenta também que durante estes meses os famosos do mundo, de políticos a celebridades, lançaram uma mensagem perfeita como #hashtag em qualquer rede social: “Estamos juntos nisto”, uma frase que soa reconfortante para os ouvidos de qualquer um, mas que, quando se analisa um pouco, revela-se vazia de conteúdo, pois não descreve a sociedade atual, tão desigual e indiferente.

Ainda em março, nos primeiros meses deste choque global, a outra versão que circulava era: “estamos todos no mesmo barco”, que também soava legal até que alguém apontou, “no mesmo barco não, estamos todos no mesmo mar, mas uns vão de iate, outros em lancha, outros em barco”. E também existem aqueles que vão segurando em uma tábua, podemos acrescentar. É dessa desigualdade que Sandel fala.

Pode ser que o exemplo mais patente da desigualdade, nestes meses distópicos de 2020, tenha sido a divisão do trabalho. A grande distância entre aqueles que podem conservar seu emprego e trabalhar de casa, sem exposição, nem risco, e os que pela natureza de suas funções não tiveram outra opção a não ser ir para a rua e se expor ao vírus (e os que ficaram sem trabalho). Sendo assim, esse yin-yang perverso de vencedores-perdedores econômicos se tornou agora mais real e evidente.

A questão é que, segundo Sandel, neste tempo, vimos que sem profissionais da saúde, trabalhadores industriais, entregadores, repositores, assistentes, caminhoneiros e muitos outros saindo de suas casas para trabalhar, a vida em uma cidade, de um país, pode parar. O paradoxo é que, além de geralmente não ser bem remunerados, esses trabalhos são pouco reconhecidos. E agora ocorre que são essenciais.

Talento, ajuda e sorte

É aqui que nos deparamos com a última pedrinha que Sandel colocou em nossos sapatos: suas dúvidas acerca da idoneidade da meritocracia como método para estabelecer uma escala de valor social, sua certeza de que a meritocracia “é corrosiva para o bem comum”. De fato, é o tema central de seu último livro: A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum? (Civilização Brasileira, 2020).

A meritocracia parte da ideia de que, em igualdade de condições, os que triunfam são os melhores. Soa tão atrativa que, durante anos, partidos de diferentes tipos, em diferentes países, a tornaram parte de seu projeto.

Para Sandel, o problema está em que ninguém coloca em dúvida a promessa de que “se você se esforça, terá êxito”. E, assim, os que triunfam acreditam que é porque conseguiram sozinhos e merecem todas as recompensas recebidas, ao passo que os que ficam para trás se dizem: “Não fui capaz, sou um fracasso”. Estas crenças geram arrogância em alguns, desmoralização em outros, e contribuem para a indignação e a rejeição às elites meritocráticas.

Sandel aprofunda os fatores para o êxito que a meritocracia não vê: além do talento, também contam (e como!), a ajuda, a sorte. É realmente coisa de quem triunfa que possua os talentos que a sociedade valoriza e premia, ou é questão de boa sorte? E o que há de dívida com aqueles que o ajudam, com sua família, seus amigos, a comunidade e inclusive a época em que vive?

Sua impressão é que seria necessário refletir sobre o papel da sorte e a ajuda recebida no êxito pessoal para poder olhar para os menos afortunados e pensar: “Se não fosse por meu direito de nascimento, pela graça de Deus ou pela simples sorte, eu poderia estar aí”. Seria uma boa maneira para neutralizar a atitude tóxica em direção ao êxito da sociedade atual.

Incertezas Econômicas

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A sociedade mundial vem passando por momentos de grandes inquietações e incertezas em decorrência da pandemia, os desafios são gigantes e exigem líderes capacitados para compreender o momento que estamos vivendo e que consigam repensar as bases da economia e da sociedade. Cabem as lideranças encontrar novas oportunidades e caminhos, construindo esperanças e perspectivas para o futuro imediato. Ao mesmo tempo a pandemia nos mostra que está surgindo uma nova sociedade, a anterior está ficando para trás, precisamos reconstruir a economia em novas bases, criando empregos, melhorando as condições sociais e investindo em uma nova sociedade, vendo as tecnologias como aliadas, abrindo novas possibilidades e criando esperanças.

A economia prescinde de regras claras e de instituições estáveis. Os investimentos produtivos precisam de um ambiente de confiança e de perspectivas positivas. Sem estabilidade não conseguimos despertar o espirito animal dos empresários, como relatado pelo economista austríaco Joseph Schumpeter, cujas contribuições para o desenvolvimento econômico foram fundamentais, mostrando a relevância do empreendedorismo, da inovação e daquilo que chamou de destruição criadora, um momento dinâmico onde novos paradigmas superam estruturas ultrapassadas, destruindo negócios e criando novas oportunidades.

Neste momento, percebemos que as incertezas crescem em todos os países. Os indicadores negativos pressionam os governos e os mercados, de um lado, percebemos as dificuldades da pandemia e, de outro lado, vislumbramos a degradação dos indicadores sociais. Diante deste momento precisamos construir novos consensos, fortalecendo a economia e as estruturas produtivas, criando estabilidade e confiança, sem elas não teremos investimentos produtivos, incremento do desemprego e aumento da instabilidade política.

A economia brasileira vem apresentando performance medíocre, taxas reduzidas de crescimento econômico, perspectivas de inflação, incremento da dívida pública, aumento das desigualdades, degradação das condições sociais e incrementando a violência urbana. A economia precisa diminuir as incertezas, precisamos construir consensos políticos e estabilidades, sem regras consistentes, sem equilíbrio orçamentário, com inseguranças na condução econômica, dificilmente o país conseguirá galgar novos espaços de crescimento nos próximos anos.

Diante deste cenário de incertezas, marcadas por pandemias e instabilidades, percebemos mudanças inimagináveis, instituições tradicionalmente ortodoxas e críticas dos investimentos estatais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, estão sugerindo novos investimentos governamentais para superar este momento de fragilidades estruturais. Sem os investimentos públicos como alavanca econômica, os custos sociais aumentarão imensamente, gerando impactos políticos e instabilidades, aprofundando os fossos entre as classes sociais.

Os investimentos privados são fundamentais na recuperação econômica, o espírito animal dos empreendedores é imprescindível, para isso, faz-se necessário que o Estado defina uma agenda de prioridades econômicas e políticas. Intervenções devem ser pactuadas, as agendas de emprego são urgentes e emergenciais, cabendo ao Estado definir as políticas públicas dos próximos anos. Sem elas, corremos o risco de mergulharmos numa situação de deflagração social que jamais imaginamos. Neste momento de grandes incertezas e instabilidades, precisamos lembrar o grande mestre o economista Celso Furtado, que numa de suas obras destacou que os grandes problemas brasileiros não são econômicos, como muitos acreditam, mas sim os problemas políticos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia/Unesp, Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 16/12/2020.

Milton Friedman estava errado sobre as corporações, por Martin Wolf.

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Folha de São Paulo, 09/12/2020.

Mas como H.L. Mencken supostamente disse (embora talvez não o tenha feito), para cada problema complexo existe uma resposta simples, clara e errada

Qual deveria ser o objetivo de uma corporação de negócios? Por muito tempo, a opinião prevalecente, nos países de fala inglesa e, cada vez mais, em outras regiões, foi a defendida pelo economista Milton Friedman em um artigo para o The New York Times, intitulado “a responsabilidade social das empresas é elevar seus lucros”, publicado em setembro de 1970. Eu costumava acreditar nisso, igualmente. Mas estava errado.
O artigo merece ser lido na íntegra. Mas o cerne daquilo que ele defende surge na conclusão:

“Existe uma e apenas uma responsabilidade social para as empresas: usar os recursos de que dispõem e se engajar em atividades concebidas para aumentar seus lucros, desde que respeitem as regras do jogo, ou seja, se engajem em competição livre e aberta, sem trapaça ou fraude”.

As implicações dessa posição são simples e claras. Essa é sua principal virtude. Mas como H.L. Mencken supostamente disse (embora talvez não o tenha feito), “para cada problema complexo existe uma resposta simples, clara e errada”. E a conclusão citada acima é um exemplo poderoso de como isso é verdade.

Passados 50 anos, a doutrina precisa ser reavaliada. Apropriadamente, se considerarmos a conexão entre Friedman e a Universidade de Chicago, o Centro Stigler, da Escola Booth de Administração de Empresas, parte daquela instituição, acaba de publicar um livro eletrônico, “Milton Friedman 50 Years Later”, que contém opiniões variadas a respeito do assunto.

No excelente artigo que conclui o volume, Luigi Zingales, que promoveu o debate, tenta oferecer uma avaliação balanceada. Mas, em minha opinião, sua análise é devastadora. Zingales propõe uma pergunta simples: “Sob que condições é socialmente eficiente que os gestores se concentrem apenas em maximizar o valor para os acionistas?”
A resposta dele tem três pontos. “Primeiro, companhias devem operar em um ambiente competitivo, que definirei como um ambiente no qual as empresas acatam preços e acatam regras. Segundo, não deve haver externalidades (ou o governo precisa ter a capacidade de tratar com perfeição dessas externalidades por meio de regulamentação e tributação). Terceiro, os contratos devem ser completos, no sentido de que todas as contingências relevantes possam ser especificadas no contrato, sem custos”.

É desnecessário dizer que nenhuma dessas condições se aplica. De fato, a existência mesmo das corporações demonstra que não se aplicam. A invenção da corporação permitiu a criação de entidades imensas a fim de explorar as vantagens da economia de escala. E levando em conta essa escala, a ideia de que as empresas acatem preços é absurda. Externalidades, muitas delas de alcance mundial, são onipresentes. E as corporações também existem porque os contratos são incompletos. Se fosse possível escrever contratos que especifiquem todas as eventualidades, a capacidade dos gestores para responder ao inesperado seria redundante. Acima de tudo, as corporações não acatam regras, e sim as fazem. Envolvem-se em jogos na criação de cujas regras elas têm um papel importante, via política.

Minha contribuição para o livro enfatiza esse último ponto, ao questionar o que constituiria um bom “jogo”. Argumento que “seria um jogo no qual as companhias não promoveriam falsa ciência sobre o clima e o meio ambiente; em que companhias não matariam centenas de milhares de pessoas, ao promover o vício em opioides; em que as companhias não fariam lobby por sistemas tributários que permitem que estacionem boa proporção de seus lucros em paraísos fiscais; em que o setor financeiro não faria lobby por regras de capitalização insuficientes que causam imensas crises; em que companhias não fariam lobby para buscar castrar uma política efetiva de defesa da competição; em que companhias não pressionariam vigorosamente contra os esforços para limitar as consequências sociais adversas do trabalho precário; e assim por diante”.

É verdade, como argumentam muitos dos autores que contribuíram para o compêndio, que a corporação por cotas de responsabilidade limitada foi (e continua a ser) uma brilhante inovação. Também é verdade que tornar mais complexos os objetivos corporativos podem ser problemáticos. Assim, quando Steve Kaplan, da Escola Booth, pergunta de que maneira as corporações deveriam calcular as vantagens e desvantagens relativas de muitos objetivos diferentes, ele conta com minha simpatia. De forma semelhante, quando líderes empresariais nos dizem que a partir de agora atenderão às necessidades mais amplas da sociedade, eu me pergunto: primeiro, devo acreditar que o farão? Segundo, devo acreditar que sabem como fazê-lo? E, por fim, quem os elegeu para essa função?

E, no entanto, os problemas que o grave desequilíbrio econômico, social e de poder político inerente à situação atual gera são vastos. Quando a isso, a contribuição de Anat Admati, da Universidade Stanford, é convincente. Ela aponta que as corporações obtiveram muitos direitos políticos e civis mas que não estão sujeitas a obrigações correspondentes. Entre outras coisas, é raro que pessoas sejam responsabilizadas individualmente por crimes corporativos. A Purdue Pharma, agora insolvente, se admitiu culpada por acusações criminais relacionadas à maneira pela qual trabalhou com o medicamento OxyContin, que viciou um número imenso de pessoas. Indivíduos são presos rotineiramente por comerciar drogas ilegais, mas, como ela aponta, “nenhum indivíduo da Purdue foi parar na cadeia”.

O poder corporativo irrestrito vem sendo, além disso, um fator importante para a ascensão do populismo, especialmente o populismo de direita. Considere a maneira pela qual alguém age ao tentar convencer as pessoas a aceitar as ideias econômicas libertárias de Friedman. Em uma democracia dotada de sufrágio universal, a tarefa é realmente difícil. Para vencer, os libertários precisam se aliar aos defensores de outras causas – guerra cultural, racismo, misoginia, nativismo, xenofobia e nacionalismo. Mas boa parte disso acontece, é claro, por baixo dos panos, de forma a permitir que as conexões sejam negadas plausivelmente.

A crise financeira de 2008, e o resgate subsequente àqueles cujo comportamento a causou, tornaram ainda mais difícil vender a ideia de um mercado livre e desregulamentado. Assim, se tornou politicamente essencial para os libertários apostar ainda mais nas causas acessórias. Trump não era a pessoa que eles desejavam: ele é errático e desprovido de princípios, mas é um empreendedor político que parecia um candidato adequado para conquistar a presidência. E ele deu aos libertários o que mais desejavam: desregulamentação e cortes de impostos.
Há muita discussão a realizar sobre como as corporações deveriam mudar. Mas a maior questão, por larga margem, é como criar boas regras para o jogo em termos de competição, normas trabalhistas, meio ambiente, tributação, e assim por diante. Friedman presumia que nada disso importasse, ou que uma democracia funcional sobreviveria a ataque prolongado por pessoas que pensavam como ele. Nenhuma dessas suposições se provou correta. O desafio é criar boas regras do jogo, por via política. E hoje isso não é possível.

Financial Times, tradução de Paulo Migliacci

Martin Wolf
Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

‘Apressar a austeridade não é o modo de assegurar crescimento’ diz OCDE.

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Aumento de gastos públicos na quarentena e de impostos sobre os mais ricos no pós-pandemia. A receita fiscal que a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) tem dado para os países serve também para o Brasil, ainda que seja preciso dosá-la com mais cuidado, diz o diretor do Centro de Política e Administração tributária do órgão, Pascal Saint-Amans.

“Não quero parecer ingênuo. Tenho completa noção de que países ricos podem ter um nível de dívida alto e que países como o Brasil são muito mais frágeis. Então, o “custe o que custar” (nos gastos) talvez possa requerer mais foco”, diz ele. 

Depois, acrescenta: “O melhor modo para resolver a sustentabilidade da dívida e para assegurar crescimento é não apressar a austeridade.”

A OCDE recomendou que os governos continuem gastando para impulsionar suas economias. Mesmo o Brasil, que tem dívida elevada, deve fazer isso? 

Sim, estamos recomendando essa política no pico da crise. Apoiamos completamente os governos para que adotem políticas para compensar os impactos negativos da covid. Em termos de política tributária, também é preciso dar suporte para a economia, concedendo isenções sobre contribuições sociais e para pequenos negócios. Uma vez que o país deixa o pico da pandemia, nosso conselho é não se apressar com a consolidação fiscal. Porque o que aconteceu em 2008 e em 2009 foi que os governos encararam a crise e rapidamente voltaram para as políticas de austeridade. A Europa sofreu com essa política ruim, foi por isso que teve a crise grega. Então, é preciso ser cuidadoso na consolidação fiscal. Quando você está na fase de recuperação, você pode deixar o ‘custe o que custar’ para melhorar o direcionamento das políticas. Focar naqueles que vão precisar mais. Por exemplo, em um país como o Brasil, direcionar os gastos aos mais vulneráveis, porque o país tem uma desigualdade muito elevada e uma parte muito grande da população extremamente vulnerável. No que diz respeito aos impostos, não se apressem para aumentá-los. Na terceira fase, quando as coisas estiverem estabilizadas, aí vocês terão de aumentar os impostos.

A carga tributária brasileira é elevada quando comparada a de outros países emergentes. Isso também serve para o Brasil? 

O Brasil, quando você o compara com o restante da América Latina, tem uma carga tributária bastante elevada. Mas, ainda assim, provavelmente será necessário aumentar os impostos para fortalecer a política tributária. Aqui há dúvidas não só de qual o nível ideal, mas também em relação à estrutura do sistema tributário. Mas o que dizemos é que essa crise é grande demais para ser desperdiçada em termos de revisão de políticas tributárias. Vocês precisarão revisá-las seriamente. Façam isso de modo que se possa reduzir desigualdades. No Brasil, isso serve em relação à questão de taxar renda do capital, renda do capital em termos de imposto sobre pessoa física e sobre pessoa jurídica, imposto sobre herança… São áreas que nos últimos 30 anos tiveram, em todo o mundo, políticas generosas que precisam ser revisadas. Também recomendamos políticas ambientais. Isso vai trazer vocês para uma reflexão de que é preciso taxar mais emissões de carbono – e, sim, o Brasil precisa taxar muito mais, apesar de vocês terem a Amazônia para absorver parte do excesso do carbono no mundo. Mas vocês terão de fazer isso. Estamos cientes de que o Brasil, como outras economias emergentes, têm subsídios para combustíveis fósseis e, se vocês cortarem esses subsídios, terão de compensar os mais vulneráveis. Mas isso significa que vocês terão de fazer uma revisão séria da política tributária no médio prazo.

Essas mudanças devem incluir alteração no teto do Imposto de Renda, como alguns defendem?

Não sei de cor os detalhes do sistema tributário brasileiro. Mas um teto de 27,5% para a população mais rica é bastante baixo. Especialmente em um país onde você tem uma concentração de riqueza, receita e renda nos 10% mais ricos. Definitivamente é muito baixo. Mas esse tipo de reforma tem de ser feita de forma global, com todos os outros elementos do sistema tributário.

E as medidas de ampliação de gasto público também são aplicáveis ao País, ainda que a relação dívida/PIB já seja alta?

Não quero parecer muito ingênuo. Tenho completa noção de que países ricos podem ter um nível de dívida alto e que países como o Brasil, economias emergentes, são muito mais frágeis, especialmente com taxas de juros muito baixas. O fluxo de capital não os ajuda muito. Então, provavelmente, o “custe o que custar” talvez possa requerer algum foco. Deve-se manter uma política tributária mais generosa durante a recuperação, mas talvez não tão generosa. E depois (da crise), reconstruir o sistema melhor, esse é o mantra hoje no G-20. Construir melhor a política tributária, com descarbonização, redução de desigualdades, taxação de renda de capital. Não só reconstruir melhor, mas também mais em termos de aumento de receita para enfrentar o crescimento da dívida. 

A discussão sobre aumento de progressividade de tributos parece não ecoar muito ainda no Brasil. O que pode acontecer se o mundo avançar nessa direção, menos o Brasil?

Política tributária é uma questão doméstica. Cada país escolhe seu sistema. Na questão de progressividade, é uma questão social de vocês. Se os brasileiros estão felizes com uma sociedade extremamente desigual e com políticas tributárias a favor dos ricos, isso é problema dos brasileiros. Um modo em que pode haver respingos (da tendência mundial no País) é na tributação de emissão de carbono. É com ela que você atinge o Acordo de Paris. Se alguns países não participarem, então suas ações domésticas podem ter impacto no bem coletivo. Veremos nos próximos anos qual será a dinâmica da luta contra as mudanças no clima e qual será o papel do Brasil no jogo, que pode mudar com os EUA voltando ao debate em janeiro (quando Joe Biden assume a Casa Branca).

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Amin Maalouf: ‘O mundo está sem uma bússola moral’ 

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Em entrevista ao ‘Estadão’, escritor fala sobre ausência de lideranças no cenário internacional
Entrevista com
Amin Maalouf, escritor libanês, membro da Academia Francesa

Paulo Beraldo, O Estado de S.Paulo 
06 de dezembro de 2020

A nova guerra fria entre Estados Unidos e China o crescimento do ódio e da violência em diferentes partes do mundo e uma “floresta Amazônica de informação”, em referência à quantidade de notícias que inundam o cotidiano nos tempos atuais. Esses são alguns exemplos que o escritor libanês Amin Maalouf usa para descrever o momento pelo qual passa o mundo.  
Esta semana, Maalouf fez uma palestra no Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri). Depois, concedeu entrevista ao Estadão, na qual abordou a disputa entre China e EUA, a ausência de liderança internacional, o futuro do populismo e até o lugar do Brasil no mundo.  

Para onde o mundo caminha no cenário atual? 
Meu sentimento é de que existem dois riscos principais: a incapacidade de lidar com várias crises, em todos os níveis, e o fato de estarmos caminhando em direção a uma nova guerra fria. Se olharmos para a pandemia, não há resposta mundial. Se pegarmos as preocupações ambientais e todos os fenômenos ligados ao meio ambiente, não há uma mobilização global para enfrentá-las. Enquanto isso, caminhamos para uma nova corrida armamentista, agora entre EUA e China. No momento, vivemos sob a neblina da pandemia. Não temos uma bússola moral. Mas este momento em que o mundo parou é o correto para fazer uma reflexão sobre para onde estamos indo e como corrigir o rumo. 

Como o sr. descreveria essa nova guerra fria?
Temos um poder que ainda é o principal, os EUA, militarmente, economicamente e também tecnologicamente. A China vem atrás, mas muito rápido e com muitas cartas na mesa. Claro que também tem fraquezas, mas há realmente um risco de colisão e conflitos em todas as formas: comerciais, tecnológicas, políticas. Provavelmente, haverá uma corrida armamentista, já existe uma disputa para conquistar aliados. Está claro que existe alguma aliança entre China e Rússia, e uma coalizão de países que temem a expansão chinesa, como Japão, Austrália e Índia. Há muitos países e movimentos interessados em ter uma relação forte com a China. E é preciso lembrar que o mundo hoje não é governado por uma ordem global. Tudo hoje é mais fluido e ambíguo. A China não carrega uma ideologia, como a União Soviética tinha, mas há claramente um modelo de sociedade e de escolhas políticas. O que é novo é a posição econômica da China, sem as fraquezas soviéticas, que pode ter um papel que a URSS não conseguiu ter.
  
Voltando à ideia da bússola moral. Por que ela acabou?
Um dos elementos é a ausência de liderança. Não acho que os EUA ofereceram um exemplo de liderança moral nos últimos anos. Ainda há o elemento da democracia, mas a credibilidade não está lá. E a Europa não está tendo esse papel. Ela não teve capacidade e poder para exercer esse papel. Então, ninguém o exerce. É muito difícil enxergar onde estão os valores. De certo modo, é uma lei da selva. Olhe o que ocorreu no Cáucaso, entre Armênia e Azerbaijão, uma guerra sem intervenção de nenhuma autoridade internacional. Há ausência de uma autoridade que evite guerras e resolva problemas.  

Quando Hungria e Polônia desafiam a democracia podemos dizer que a UE está em crise? 
A construção do bloco atravessa um momento difícil. O que aconteceu com o Brexit é um alarme real que pode ocorrer em outros países. Ela deveria ter sido construída sobre uma base mais sólida, quase como uma federação, que elegesse o seu presidente por voto popular, que tivesse um chefe do Executivo. Ela precisa da capacidade real de ter um papel e tomar decisões. Mas, infelizmente, é impossível.
  
Qual o papel da ONU? 
No mundo ideal, a ONU deveria ter um papel mais importante, o que não é o caso hoje. Muitos fatores contribuem para seu enfraquecimento. Mas acredito que a ONU seja a única autoridade possível. Uma ONU revigorada, com mais poderes, capaz de intervir de maneira eficiente para resolver problemas. Mas isso depende dos principais poderes. É preciso reformar a ONU, torná-la menos burocrática, revisar seus métodos de tomada de decisão. Ela ainda é um organismo muito interessante.  

Como o sr. avalia o aumento da radicalização islâmica? 
É muito preocupante. Esse fenômeno está mudando a atmosfera política e intelectual de muitos países na Europa. Países que já tiveram atitudes tolerantes, como Holanda, Dinamarca, Suécia, agora têm certa impaciência com o que está acontecendo. São problemas que estão ficando maiores e ninguém parece ter a solução. A radicalização, por si só, é mais fraca do que já foi há 10 anos, mas há uma violência residual muito difícil de parar. Um jovem influenciado por propaganda, pega uma faca, sai à rua e mata alguém. É difícil evitar isso, mesmo com a melhor polícia e a melhor inteligência.
 
O sr. diz que a derrota de Trump não foi uma derrota do populismo. Pode explicar melhor? 
Fiquei satisfeito de ver que muitos americanos decidiram mudar de governo, pois estava desconfortável com Trump, principalmente por sua personalidade. Mas é preciso olhar a realidade com objetividade: o apoio a Trump foi muito importante. Ele perdeu depois da pandemia e da crise econômica que destruiu tudo o que ele conquistou. Não fossem esses dois fatores, ele provavelmente teria vencido. Então, apresentar o que aconteceu como uma histórica derrota do populismo não parece verdadeiro. Foi um revés para um presidente cujo estilo não agrada a todos, que enfrentou uma situação única. O que ocorreu nos EUA não será determinante para o desaparecimento do populismo. 

O sr. diz que vivemos em uma “floresta Amazônica de informação”. Como sobreviver nessa selva? 
É difícil distinguir o que é verdadeiro do que não é. Hoje, todo mundo pode se expressar e alcançar milhões. O único controle possível é pela educação, para permitir a uma pessoa olhar para uma informação e ter a capacidade de julgar se aquilo é sério ou não. É uma luta que temos de engajar as próximas gerações, pois não será decidida por governos e nem de uma vez por todas.  

Qual a posição do Brasil no mundo hoje? 
O Brasil tem uma posição interessante e um futuro brilhante. Ele está longe dos conflitos, não é afetado pelas disputas do mundo árabe. É um dos países emergentes que não é puxado por conflitos entre potências e é capaz de manter boas relações com ocidentais e países da Ásia. O Brasil pode evitar pagar o preço de conflitos e tem dimensões que lhe permitem isso, assim como reconstruir sua economia e avançar. Poucos países no mundo têm as vantagens geopolíticas do Brasil. 

Economia Pós-pandemia

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A economia brasileira vem passando por grandes desequilíbrios macroeconômicos nos últimos anos, crescimento do desemprego, redução no investimento produtivo, diminuição da renda agregada e baixa capacidade de investimentos produtivos externos, para piorar estes desequilíbrios, percebemos repiques inflacionários e o crescimento da dívida pública. Estamos passando por momentos de incertezas crescentes, cujos impactos são o aumento dos desequilíbrios sociais, econômicos, empregos precários e o incremento da desesperança.

Neste momento, marcado por uma nova economia internacional centrada na concorrência e no aumento da competição entre as nações, as empresas e os indivíduos, as sociedades precisam construir agendas mais consistentes de redução das desigualdades sociais, do incremento dos investimentos públicos, melhoras da saúde, da eficiência dos indicadores da educação e da segurança, construindo uma sociedade que garanta a todos os cidadãos oportunidades e renove as esperanças de um futuro melhor.

O pós-pandemia prescinde de novos investimentos públicos e privados, sem estes recursos a economia terá grandes dificuldades para estimular novos espaços de crescimento econômico, incrementando maiores oportunidades de emprego, melhoras das rendas e dos salários agregados. Historicamente, em momentos de instabilidades e crises econômicas, os investimentos privados se retraem imediatamente, diante disso, como destacou o economista britânico John Maynard Keynes, faz-se necessário a atuação dos investimentos públicos. Sem estes recursos estatais, as condições sociais devem se degradar de forma acelerada, aumentando a violência urbana e a exclusão social, com o incremento do racismo, do aumento da pobreza e da redução das oportunidades para as classes mais vulneráveis, reduzindo as esperanças e incrementando os conflitos distributivos.

Neste momento, as decisões contemporâneas terão impactos para toda a coletividade, os desafios são enormes, as escolhas políticas prescindem de maturidade, a sociedade precisa optar por investimentos seguros, estimulando os setores da educação, capacitando o capital humano para os desafios da sociedade do conhecimento, construindo e viabilizando projetos futuros, viáveis e cujos retornos serão colhidos em anos, ou mesmo em décadas. Neste momento precisamos pensar no longo prazo, garantindo novas oportunidades e reduzindo os privilégios que perpetuam a pobreza e a degradação social.

Vivemos um momento peculiar no Brasil e na sociedade global, nestes momentos os governos devem mostrar caminhos para a reconstrução das nações, como aconteceu na crise de 1929, quando os governos passaram a intervir diretamente para alavancar os sistemas econômicas. Atualmente, cabe a sociedade global agir rapidamente, importando ideias parecidas como o Green New Deal Global, como ventilado nos círculos políticos e acadêmicos, neste momento de reconstrução precisamos estimular investimentos verdes, a humanidade deve diminuir a queima de combustíveis fósseis nos próximos trinta anos, e deve fazê-lo de modo a melhorar o padrão de vida e as oportunidades para os trabalhadores.

Na pandemia precisamos repensar o modelo econômico e social dominante da sociedade mundial, melhorar os indicadores sociais é fundamental para que garanta melhorias para todos os agentes sociais, sem estas mudanças a sociedade caminha por um período de grandes conflagrações e degradações para todos os indivíduos, pensemos sobre o assunto, a pandemia nos traz a oportunidade de evoluirmos como civilização e como seres humanos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia/Unesp, Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 02 de dezembro de 2020.

“Investimento público é mais importante que juro baixo tanto para atenuar os efeitos da recessão como no longo prazo”, segundo Lara Resende.

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Para economista, é preciso superar o arcabouço analítico anacrônico e equivocado que impõe o equilíbrio fiscal como o único objetivo de política econômica

Adriana Fernandes
26 de novembro de 2020 |O Estado de São Paulo

O economista André Lara Resende é hoje uma voz dissonante do pensamento econômico dominante no Brasil. Quinto entrevistado da série do Estadão “Saídas para a Crise Fiscal”, Lara Resende afirma que o investimento público é hoje muito mais importante do que a política de juros como resposta para a retomada econômica após a pandemia do coronavírus e também para o desenvolvimento de longo prazo do País.

Um dos formuladores do Plano Real e com a experiência de ter trabalhado mais de 30 anos no mercado financeiro, Lara Resende propõe a criação de um órgão, protegido de “pressões políticas ilegítimas”, para definir os investimentos públicos. Para ele, essa é hoje uma medida mais valiosa do que um Banco Central Independente.

O economista alerta que até agora não houve uma única iniciativa, nem mesmo propostas, de políticas públicas para garantir uma recuperação sustentada, uma vez superada a pandemia. Ambientalista, Lara Resende diz que é incompreensível a postura do governo Jair Bolsonaro em relação à questão ambiental, considerada por ele o mais grave problema a ser enfrentado pela humanidade, e que compromete o Brasil no exterior.

● Como o sr. avalia a resposta do governo à pandemia da covid-19?
A resposta à pandemia foi conturbada, incompetente e negacionista no todo. Quanto à política econômica, apesar de alguma hesitação inicial, com o auxílio de emergência, o governo acabou por dar uma resposta que aliviou temporariamente a situação dos que perderam o emprego ou a renda. O auxílio emergencial foi fundamental para aliviar a recessão e a crise social provocada pela pandemia. Até agora não houve uma única iniciativa, nem mesmo propostas, de políticas públicas para garantir uma recuperação sustentada, uma vez superada a pandemia. Quando a pandemia parece recrudescer, volta-se a falar na necessidade de encerrar o auxílio em nome do equilíbrio fiscal. Mais uma demonstração clara de que o governo continua dominado por restrições ideológicas.

● Uma das preocupações no Brasil é justamente o crescimento da dívida, que caminha para 100% do PIB. É um problema?
Trata-se de uma preocupação infundada. Em várias ocasiões na história, sobretudo depois de guerras ou catástrofes, inúmeros países tiveram dívidas superiores ao PIB. Hoje, Japão, EUA, Itália, entre outros, têm dívida superior ao PIB. A dívida pública não pode ter uma trajetória explosiva, mas, desde que o seu crescimento acelerado seja transitório, que passada a crise, com as contas reequilibradas e restaurado o crescimento da economia, a relação entre dívida e PIB volte a cair, não há qualquer problema em ultrapassar os 100% do PIB.

● Existe um limite para a dívida?
Não existe um limite intransponível para a dívida interna e o PIB. O endividamento externo, que depende de financiamento do exterior em moeda estrangeira, é sim perigoso. Como aprendemos com as sucessivas crises da dívida externa no século passado, quando os credores internacionais passam a ter dúvida sobre a capacidade do País de honrar seus compromissos em moeda estrangeira, a súbita interrupção do fluxo de financiamento pode provocar crises gravíssimas. No século passado, o Brasil era importador líquido de petróleo e derivados, assim como de trigo e outras commodities (produtos classificados como básicos por não ter tecnologia envolvida ou acabamento). Precisava de financiamento externo para cobrir o déficit com o resto do mundo. Hoje, somos autossuficientes em petróleo, exportadores líquidos de commodities e temos um setor agropecuário altamente superavitário. O Brasil de hoje não tem dívida pública externa, ao contrário, tem quase 30% do PIB em reservas internacionais A nossa dívida é interna, do Estado com os brasileiros.

● Em entrevista recente ao ‘Financial Times’, a economista-chefe do FMI, Gita Gopinath, disse que os países precisam evitar o erro de retirar prematuramente os estímulos fiscais, como ocorreu na crise financeira. Ela chama atenção que há formas de investimento público que podem criar empregos e aumentar a atividade econômica e, ao mesmo tempo, serem fiscalmente responsáveis para sair da crise. Como conciliar essas coisas?
Gita Gopinath disse apenas o que se sabe desde a publicação do livro de John M. Keynes (1883-1946, defensor de maior intervenção do governo na economia para estimular o crescimento) na década de 1930. Gopinath não é uma heterodoxa irresponsável, mas economista-chefe do FMI, doutora pela Universidade de Princeton, onde teve como orientadores Ben Bernanke, ex-presidente do Fed, e Ken Rogoff, professor da Universidade Harvard, dois expoentes da ortodoxia econômica. A política fiscal, sobretudo investimentos públicos que aumentem a produtividade e o poder aquisitivo da população, é o mais poderoso instrumento, tanto para se sair de uma recessão como para garantir a retomada do crescimento sustentado. A pergunta mais complicada de ser respondida é por que hoje no Brasil a opinião dos economistas que aparecem na imprensa, assim como a da própria imprensa, regrediu para o que era a ortodoxia do século XIX na Inglaterra? A chamada “Visão do Tesouro”, que sustentava a necessidade de sempre equilibrar as contas públicas, depois duramente criticada por Keynes, deixou de ser levada a sério.

● O Brasil, que tinha uma situação fiscal frágil e déficits há sete anos e com previsão de resultados negativos até 2028, pode seguir essa recomendação do FMI em 2021?
É verdade que há mais de duas décadas a relação dívida e PIB do Brasil tem aumentado, mas não temos uma situação fiscal frágil. A carga fiscal do Brasil é de quase 35% do PIB, muito alta para um país de renda média. Apesar da alta carga fiscal, não conseguimos controlar o crescimento da dívida. A razão é que a taxa de juros foi extraordinariamente alta até muito recentemente. Com taxas de juros que chegaram a mais de 25% ao ano e um crescimento medíocre da economia, o resultado é inexorável: a relação dívida/PIB cresce. O Estado brasileiro custa muito e gasta mal? Com certeza, mas não é essa a razão do crescimento da dívida. A política de taxa de juros do Banco Central, do real até muito recentemente, foi um gravíssimo equívoco. A história irá deixar claro o preço de uma política de juros extraordinariamente altos, associada a uma pesada e kafkiana carga fiscal.

● Qual a saída a seguir?
Antes de mais nada, é preciso superar a camisa de força imposta por um arcabouço analítico anacrônico e equivocado que impõe o equilíbrio fiscal como o único objetivo de política econômica. Dizem que com equilíbrio fiscal todos nossos problemas estarão milagrosamente resolvidos. Sem ele, caminhamos a passos largos para o abismo. Nada mais falso. Precisamos urgentemente voltar a ter um projeto para o País, ter objetivos de políticas públicas que balizem os investimentos públicos e privados, que norteiem a transição para uma matriz energética limpa e não nos deixe perder o bonde da revolução digital em curso. Precisamos refletir sobre as políticas de emprego, saúde e educação neste novo mundo do século XXI.
● Por que o sr. considera ser uma falácia o argumento de que o governo não tem dinheiro para investimento?
Porque é falso. O governo não tem recursos para investir porque adotamos restrições legais-administrativas que deixam relativamente livres os gastos correntes e impõem limites ao total dos gastos. O teto dos gastos (regra que proíbe que as despesas cresçam em ritmo superior à inflação) é exemplar: se mantido, vai levar ao colapso completo do investimento público. O governo que emite sua moeda fiduciária (documento que possa ser aceito como pagamento, como as notas de real), como é o nosso caso, não tem restrição financeira, pois, quando gasta, necessariamente, emite moeda. A decisão de obrigar o governo a retirar a moeda emitida, seja através da cobrança de impostos ou da emissão de dívida, é uma decisão político-administrativa. Pode se justificar para impedir que o governo gaste de forma irresponsável e incompetente, mas não é uma restrição real.

● É mais eficiente deixar os investimentos fora do teto?
Sim. O teto pode até ser uma restrição importante para impedir um Estado inchado, que gaste muito na sua própria operação, mas não faz sentido ter um teto com os gastos correntes não controlados. O resultado é a inviabilização dos investimentos. Os investimentos públicos são muito mais importantes do que juro básico baixo tanto para atenuar os efeitos da recessão quanto para o desenvolvimento de longo prazo. É mais importante ter um órgão sério e competente, protegido das pressões políticas ilegítimas, para definir os investimentos públicos, do que um Banco Central independente.

● É possível fazer uma recuperação econômica verde e sustentável pós-pandemia?
Infelizmente, o governo Bolsonaro está na contramão de uma política ambiental sustentável. A incompreensível postura do governo em relação à questão ambiental, hoje considerado o mais grave problema a ser enfrentado pela humanidade, compromete o Brasil no exterior, prejudica nossas exportações e reduz os investimentos externos. Além de fazer a coisa certa, teríamos muito a ganhar com uma política ambiental inteligente e responsável, que poderia servir de balizador de uma nova etapa de nosso desenvolvimento.

● Qual o papel das reformas administrativa e tributária para destravar o crescimento?
Me parece que uma reforma tributária cujos objetivos fossem a simplificação, a racionalização e a equidade, não o equilíbrio a qualquer custo, e que nos livrasse do atual cipoal tributário, seria um passo importante para nos tirar do atoleiro em que nos metemos. Mais do que uma reforma administrativa, nome que se dá ao que é apenas mais uma tentativa de reduzir os salários e os benefícios do funcionalismo, precisamos modernizar a governança do País, inclusive o sistema político, que caminha a passos largos para se tornar disfuncional e corre o risco de perder legitimidade.

“O racismo estrutura a sociedade brasileira, está em todo lugar”, diz Djamila Ribeiro

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Edson Veiga, MSN Notícias

Em entrevista, a filósofa e escritora fala sobre heranças da escravidão no Brasil e afirma que, com o caso Beto Freitas, a revolta negra historicamente sufocada encontrou “coro para ecoar pelo país”.

Foi pelas redes sociais que, na manhã de 20 de novembro, data em que o Brasil celebra o Dia da Consciência Negra, a filósofa, escritora e feminista negra Djamila Ribeiro soube do espancamento e assassinato de João Alberto Freitas, ocorrido em um supermercado Carrefour de Porto Alegre. “Fui ver a fundo do que se tratava e não consegui assistir ao vídeo”, conta. “Até hoje não assisti.”

Autora dos livros Lugar de Fala, Quem Tem Medo do Feminismo Negro e Pequeno Manual Antirracista, Ribeiro disse que conversou com a militante e teórica do feminismo negro Carla Akotirene sobre o caso. E a conclusão foi que toda vez que um negro vê outra pessoa negra sofrendo uma agressão, uma violência, este revisita “o trauma do colonialismo e de tudo o que as pessoas negras sofreram neste país”. No entendimento de ambas, é evidente que “uma pessoa branca consciente” também se choca com fatos assim; mas para um negro esse sofrimento assume proporções muito maiores.
Ao analisar o assassinato de Beto Freitas, ela recorda outras mortes que despertaram a raiva da população negra recentemente. Como a do adolescente João Pedro, baleado em operação policial, a da vereadora Marielle Franco, assassinada em março de 2018, e a da auxiliar de serviços Cláudia Silva Ferreira, baleada quando ia comprar pão para sua família, em março de 2014.

O caso Beto Freitas, no entanto, está sendo um marco no país, aponta. “Gerou uma onda de protestos contra o racismo que é, de certa forma, inédita. Uma revolta que foi ao longo da história sufocada, encontrou coro para ecoar pelo país”, afirma em entrevista à DW Brasil.

Mestra em Filosofia Política pela Universidade Federal de São Paulo, Ribeiro é colunista do jornal Folha de S.Paulo e da revista ELLE Brasil e professora convidada da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Em 2016, foi secretária adjunta de Direitos Humanos de São Paulo. No ano passado, recebeu do Reino dos Países Baixos o Prêmio Prince Claus, por conta do seu ativismo.

Na entrevista a seguir, ela também fala sobre as heranças da escravidão e a falta de inclusão das populações negras. “O racismo estrutura a sociedade e, assim sendo, está em todo o lugar”, afirma.

DW Brasil: Em seu livro Pequeno Manual Antirracista um dos pontos que você aborda é justamente combater a violência racial. Em casos extremos como o ocorrido na última semana em Porto Alegre, qual seria a melhor resposta antirracista?

Djamila Ribeiro: Nesse capítulo do meu livro, aponto a violência racial por diversos meios: pela morte em massa dos corpos negros por uma polícia militarista, num país onde a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado; pelo Poder Judiciário ser uma extensão da viatura de polícia, aceitando ralas “provas” como suficientes para condenar alguém, isso quando muito verificam.

Em geral, apenas a palavra do policial é o suficiente para condenar por anos à prisão, e aí eu me pergunto: como seria se não tivesse uma câmera lá? Se não houvesse uma demonstração cabal do assassinato?

Ora, um dos responsáveis é um policial militar e, não fosse a manifestação evidente de prova, a palavra dele seria suficiente para que Beto Freitas fosse um assassino, e o policial, uma potencial vítima em legítima defesa. Isso é a manifestação de um sistema que foi desenhado para operar dessa forma, uma forma que continua a alimentar o projeto racial supremacista branco. Precisamos nos questionar sobre qual formação tem sido dada aos agentes de segurança no país, bem como sua estrutura em si. Uma polícia militarizada, em guerra, na qual morrem predominantemente pessoas negras, qual projeto é esse? Ao fundo, estamos diante da estrutura racista. […]

Independentemente disso, penso também que a empresa deve uma indenização por danos morais coletivos à população negra, em um valor tão alto para que seja desinteressante ignorar as demandas históricas antirracistas, como essa em particular tem feito. Trata-se de uma empresa com um preocupante histórico de violência com pessoas negras no Brasil e funciona numa lógica colonial profunda.

Veja, a matriz do Carrefour está no Norte global, e para lá é enviada boa parte do lucro que aufere no Sul. Não sei qual discurso é feito na Europa, mas a sua filial brasileira vem se alinhando aos projetos políticos que têm promovido o desmonte dos direitos sociais no país. Reforma trabalhista, previdenciária, entre outras estão alinhadas com um discurso que nega humanidade. Então, é de se questionar o choque da matriz quando há a materialização do ranço colonial que tem promovido mortes. É preciso insistir em um debate honesto sobre a postura de empresas transnacionais em suas filiais abaixo da linha do Equador e cobrar indenizações por isso.

Declarações tanto do vice-presidente, Hamilton Mourão quanto do presidente Jair Bolsonaro buscaram negar a existência do racismo no Brasil e ainda dizer que a sociedade estaria “importando” uma questão dos EUA. De que maneira esse tipo de declaração aumenta o problema?

Não é surpresa para quem acompanhou a trajetória do homem que está hoje na Presidência do Brasil que tanto ele quanto seu vice digam algo nesse sentido. Eles representam um projeto político que fez do racismo a base do seu meio de produção econômica e de suas relações sociais e, a serviço desse projeto, eles continuarão seu discurso e sua prática. E é evidente que estão a dizer uma grande falácia.

O Brasil é a maior nação negra fora da África, somando 54% da população, e mesmo sendo maioria, [os negros] estão fora dos lugares de poder e experimentam em larga maioria os piores índices de desenvolvimento humano. Foram quase quatro séculos de escravidão em pouco mais de cinco séculos de chegada dos colonos.

Em 1888 houve a abolição formal, mas nenhuma política de inclusão das pessoas negras, pelo contrário. Ao passo que foi estimulada a vinda de imigrantes europeus, que receberam terras e oportunidades, pessoas negras foram marginalizadas de qualquer contato com o poder econômico e destinadas a serem base de exploração que, no caso das mulheres negras, se somam ao patriarcado. Nas palavras de Carla Akotirene, mulheres negras são a matriz geradora pois parem as vidas que serão a base do sistema.

Para aqueles que negam a existência do racismo no Brasil, como explicar ou mostrar que, sim, há muito racismo na sociedade?

Ao longo da história, o projeto de miscigenação foi romanceado no país, como manifestação sublime da democracia racial, pensamento do [sociólogo] Gilberto Freyre, no sentido de que no Brasil teria havido a transcendência racial com a convivência harmoniosa entre brancos, negros e indígenas. Ou seja, de acordo com esse pensamento, não existe racismo no Brasil, apenas desigualdade entre ricos e pobres. As mulheres negras brasileiras são as mulatas que sambam e estão sempre disponíveis sexualmente. Trata-se de algo entranhado no pensamento brasileiro e na organização social do país, algo que os movimentos negros ao longo de muitas décadas vêm denunciando e combatendo.
É uma construção supremacista histórica e vejo o Brasil exportá-la para o Norte global como se fosse cana-de-açúcar. Está na escola, nas famílias, no discurso midiático, em todo lugar. Então muitas pessoas negras não sabem que são negras, não têm sequer condições materiais para formular algo nesse sentido. Então, o que nos resta é lutar por políticas públicas, de educação, assistência social e apoiar projetos políticos nesse sentido. Isso em um sentido coletivo.

O que é racismo estrutural?

Olhar a história do Brasil desde a escravização até a falta de inclusão das populações negras. Entender que foram criados mecanismos legais para afastar pessoas negras de possibilidades de emancipação social. São vários os exemplos: a Constituição Federal de 1824 vedava o acesso de pessoas negras à educação, a Lei de Terras de 1850 condicionava o acesso a terras à compra e venda, e naquele contexto nenhuma pessoa escravizada estava apta a possuir uma propriedade, entre tantas leis de escravização.

Com o fim formal da escravidão, houve um processo de criminalização de pessoas negras, sobretudo homens, alvos de leis como a vadiagem, que determinava a prisão de pessoas “sem ocupação”, numa época de alto desemprego para os homens negros. As mulheres negras foram destinadas ao trabalho doméstico, uma herança presente até hoje. Atualmente, estima-se que mais de 6 milhões de mulheres negras são empregadas [domésticas] no país, e a lei que regulamenta a profissão somente foi aprovada em 2013, sob intensos protestos do sistema que se beneficiou historicamente desse trabalho.

Então, estamos dizendo que o racismo estrutura as relações raciais no Brasil. Uma estrutura presente antes mesmo de nós termos nascidos. No Brasil é comum entrarmos em restaurantes e não encontrar nenhuma pessoa negra no local – nem como garçom ou garçonete. Quem vai a shopping terá dificuldade de encontrar uma vendedora de lojas negra. Isso, vale frisar, em um país com 54% da população negra. Ou seja, o racismo estrutura a sociedade e, assim sendo, está em todo o lugar.

Como você avalia os protestos que pipocaram pelo país a partir do conhecimento público do recente assassinato ocorrido no Carrefour?

Penso que está sendo um marco no país, pois gerou uma onda de protestos contra o racismo que é, de certa forma, inédita. Há pouco mais de dois anos, Marielle Franco, mulher negra vereadora no Rio de Janeiro e grande promessa para a política nacional, foi assassinada em um contexto até hoje não revelado, porém com fortes ligações com a milícia que atua em favor do chefe do executivo nacional. Naquela época chegou a haver uma comoção nacional e internacional, pela brutalidade com a qual Marielle foi morta. Aquele contexto era de um assassinato com fins políticos, pelo que ela representava de potencial para o país, bem como por ser uma figura completamente antagônica ao projeto miliciano que se instaurou no poder. No caso de Beto Freitas, uma revolta que foi ao longo da história sufocada, encontrou coro para ecoar pelo país.

A polícia brasileira é a polícia com o mais alto índice de letalidade: em um ano, somente a polícia do estado do Rio de Janeiro mata mais que a polícia de todos os Estados Unidos. Então podemos ter uma dimensão de quantas vidas negras foram ceifadas no país, quantas mães enterraram seus filhos. Alguns casos despertaram a raiva da população negra ao trauma do colonialismo.

Não há como não citar o menino João Pedro, de pouco mais de 14 anos, que estava brincando em sua casa, durante o isolamento do coronavírus, quando a polícia disparou mais de 70 vezes sobre a residência em que ele estava, na qual não tinha ninguém sequer investigado. São tantos casos que podemos citar… Claudia Silva Ferreira, em 2014, mulher negra, mãe, que foi morta numa ação policial no Rio de Janeiro. Sem qualquer cerimônia, seu corpo foi jogado no porta-malas da viatura. Na saída da comunidade, o porta-malas abriu, e ela foi sendo arrastada pelo chão. Uma cena que nenhuma de nós jamais esqueceu, mas que para muitos é assunto do passado. Então, esse país deve muito à população negra, e o despertar está sendo na medida da dívida.