Lições do Vale do Silício chinês devem ser lembradas no atual ajuste de rumo de Pequim

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 PIB de Shenzhen, primeira zona econômica especial do país, ultrapassou o de Hong Kong em 2018

Tatiana Prazeres – FSP, 03/09/2020

Há 40 anos, era impensável que uma vila de pescadores no sul da China pudesse se tornar um polo mundial de tecnologia. Pois nenhuma cidade simboliza melhor a modernização do país do que Shenzhen.

A região então pacata que começou produzindo cópias baratas de calculadoras e toca-fitas passou a ser conhecida como fábrica do mundo e hoje é chamada de Vale do Silício chinês.

Poucos dias atrás, a China comemorou os 40 anos de criação da primeira zona econômica especial do país. Rememora o passado de olho nos desafios atuais.

Quando a China ainda era fechada ao mundo, Deng Xiaoping ousou ao estabelecer quatro áreas-piloto para atrair capital estrangeiro, estimular industrialização e exportações. Shenzhen foi a primeira e a mais bem-sucedida delas.

Diferentemente do restante do país, naqueles enclaves as empresas poderiam buscar lucro, demitir funcionários, remeter divisas para o exterior.

Quatro anos depois, mais 14 cidades replicariam o modelo pioneiro de Shenzhen, localizada na província de Guangdong, que, aliás, tinha o pai de Xi Jinping como chefe do Partido Comunista à época.

A experiência transformou não apenas a China mas também a governança do país. Em primeiro lugar, reforçou a capacidade de o governo chinês experimentar. Atravessa-se um rio sentindo suas pedras —a frase atribuída a Deng simboliza a disposição em aprender fazendo e corrigir rumos.

Em segundo lugar, a experiência deu ímpeto aos esforços de descentralização econômica. Ao contrário do que comumente se pensa, províncias e cidades chinesas têm margem de manobra considerável. O experimento com as zonas econômicas especiais contribuiu para isso.

Shenzhen é hoje sede de empresas de equipamentos de telecomunicações como Huawei e ZTE. Alberga a maior empresa de drones do mundo, a DJI, e o grupo Tencent, dono do superaplicativo WeChat.

Cerca de metade dos pedidos de patente da China vem de Shenzhen. Em 2000, tinha 100 empresas de tecnologia. Hoje, mais de 30 mil.

Em 2018, o PIB de Shenzhen passou o de Hong Kong, que fica a 15 minutos de trem, com quem hoje rivaliza e que lhe serviu como fonte de capital, tecnologia e talento.

Das inúmeras lições sobre Shenzhen, duas são particularmente oportunas hoje: o equilíbrio de forças entre Estado e setor privado, e a abertura para o mundo. Como em nenhum outro lugar da China, o modelo desenvolvido em Shenzhen permitiu liberar a energia do empreendedorismo chinês. Desfez amarras que ainda prosperam em outras partes.

Igualmente, a abertura para comércio e investimentos estrangeiros que se viu em Shenzhen estimulou reformas no plano nacional, fundamentais para a modernização do país.

Hoje, parece estar em curso na China uma atualização do seu modelo econômico. Cunhado de estratégia da dupla circulação, o modelo ainda carece de detalhes, mas sugere mais foco na economia interna e menos na integração global.

Vários temem que a nova linha implique desaceleração dos esforços de abertura e modernização da economia. Receiam que empresas estatais voltem a ganhar maior importância. Nesse contexto, vozes a favor da autossuficiência passam a ser mais influentes, sobretudo depois que os EUA adotaram sanções contra empresas da China —não por acaso, de Shenzhen.

A impressão que se tem é de que a China vai se voltar para dentro, inclusive para diminuir riscos de um ambiente externo mais desfavorável tanto sob ponto de vista político quanto econômico.

A mudança de circunstâncias externas pode exigir ajustes de rumo, mas não justifica abandonar as lições que Shenzhen legou para a China.

Em 2012, quando se tornou líder do Partido Comunista Chinês, Xi Jinping foi a Shenzhen e depositou uma coroa de flores aos pés de uma estátua de Deng Xiaoping, artífice da modernização econômica do país. Hoje, a lembrança parece especialmente oportuna.

Tatiana Prazeres

Senior fellow na Universidade de Negócios Internacionais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheira sênior do diretor-geral da OMC.

 

O desastre anunciado da economia brasileira

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Ontem o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou os dados do produto interno bruto (PIB) no período do segundo trimestre, os dados não trouxeram nenhum estranhamento, queda em 9,7% na economia nacional, mesmo sabendo que a situação econômica retratada pelo instituto é claramente desastrosa, mostrando os impactos do vírus, da quarentena e dos desencontros das políticas governamentais, sem foco, sem planejamento, sem organização e sem estratégias claras e, muitos equívocos, vários conflitos políticos, mentiras generalizadas, hipocrisias crescentes e omissões constantes na gestão da pandemia, os dados mostram uma situação caótica, incremento no desemprego e no subemprego, queda vertiginosa da renda agregada, redução dos salários e uma maior desesperança.

Desde 2014 a economia brasileira está passando por grandes dificuldades de crescimento econômico, desemprego crescente e aumento da degradação social, levando a situação social a situações de desesperanças e desagregação generalizadas, criando na sociedade brasileira um ambiente de caos político, social, econômico e, na atualidade, uma crise sanitária causada pelo coronavírus e que levou a mais de 120 mil mortes de cidadãos.

No ambiente econômico, os dados do IBGE destaca números assustadores da economia brasileira, mais de 9,7% queda do produto interno bruto (PIB), aumento dos desequilíbrios do sistema econômico, gerando novas instabilidades e exigindo dos gestores públicos a uma atitude mais incisiva, utilizando todos os instrumentos econômicos disponíveis para reverter esta situação de degradação, sob pena de um incremento dos desajustes sociais que estão presentes na maior dos lares brasileiros, marcados por desempregos e medos crescentes. Os números desnudados pelo instituto exigem atuações dos agentes governamentais, assim como a grande maioria dos países civilizados estão fazendo, para diminuir os estragos do vírus, reconstruir as estruturas econômicas e produtivas e abrir novas perspectivas econômicas para a sociedade brasileira, sem estas providências urgentes, as condições tendem se degradar de forma acelerada.

Os dados divulgados pelo Instituto só foram piores, porque o auxílio emergencial aprovado pelo governo e incentivado pelo Congresso Nacional de 600 reais, com custos mensais de mais de 56 bilhões de reais. Importante destacar ainda que, segundo as ideias do ministro da economia e da equipe econômica, os valores deveriam ser algo em torno de 200 reais, valores insuficientes para a manutenção das condições de vida digna de uma parcela da sociedade brasileira.

Os recursos destinados pelo governo federal no auxílio emergencial de 600 reais foram fundamentais para que os dados divulgados pelo IBGE não fossem mais negativos e degradantes para a sociedade, neste momento, percebemos novas discussões e novas políticas para a superação deste ambiente marcado por graves desequilíbrios sociais e forte retração da economia nacional, sem novas estratégias claras e consistentes, os desequilíbrios devem crescer de forma mais degradantes, com maior falência de empresas, violência urbanas e incremento da insegurança e da desesperança.

Os indicadores econômicos da economia internacional mostraram que todos as nações estão em recessão, marcadas por incremento do desemprego e caos generalizados, os dados mostraram que o único país que conseguiu apresentar dados positivos no segundo trimestre foi a China, cujos dados chegaram a um crescimento econômico de 11,5%, valores surpreendentes que mostraram o potencial do país asiático, cujo isolamento social, a quarentena e o planejamento foram organizado pelo governo com êxito e grande sucesso.

Observando os dados disponibilizados pelo IBGE, percebemos que o único setor da economia brasileira que apresentou crescimento no período foi o agronegócio, que avançou 0,4% no segundo semestre, mostrando o forte crescimento da produtividade deste setor da economia brasileira, responsável pelo incremento das exportações e o aumento das vendas externas, principalmente, os negócios com o maior parceiro do país, a China, responsável por grandes aquisições e pela manutenção dos superávits comerciais brasileiros, a entrada de recursos externos e o equilíbrio das contas externas.

A conjuntura econômica brasileira está mostrando a queda acentuada dos investimentos (Formação Bruta de Capital Fixo) na estrutura produtiva nacional, chegando a algo em torno de 15% do produto interno bruto, dados muito distantes dos investimentos da economia, que chegaram a quase 22% do PIB no começo do século e garantiram uma taxa de crescimento maior de 3%, além de novos empregos e novas oportunidades de crescimento econômico.

O colapso da economia brasileira neste ano nos leva a ausência de um novo projeto econômico consistente, a ausência de planejamentos e estratégicas de emprego e reformas que ampliam o potencial de crescimento econômico. Neste momento, percebemos que os dados divulgados pelo IBGE não surpreenda todos aqueles que observam a conjuntura econômica, as dificuldades políticas do governo, as fragilidades no legislativo e os embates com o judiciário estão aumentando as dificuldades de gestão, dificultando o gerenciamento da crise, incrementando e degradando a situação econômica que é claramente caótica e seus impactos da crise gerada pelo covid-19 são cada mais maiores e consistentes.

A crise mostra os equívocos da equipe econômica liderada pelo economista Paulo Guedes, muitas versões equivocadas, mentiras crescentes, previsões furadas e falas desnecessárias levam a um ambiente de grave degradação social, instabilidade no mercado financeiro e afastando os investidores externos, que buscam espaços de investimentos consistentes e oportunidades claras de ganhos e melhorias de rentabilidades, todas ausentes da economia brasileira contemporânea, explicando os dados divulgados pelo IBGE.

Embora muitos setores, principalmente os detentores de grandes fortunas, a sociedade brasileira acumula grande ojeriza ao Estado Nacional, colocando-o no centro de todos os desequilíbrios sociais, políticos e culturais. Devemos destacar que o Estado Nacional tem grande papel na sociedade global, os defensores do pensamento liberal devem reconhecer o papel central para o crescimento e para a consolidação dos mercados, já que sem Estado os mercados não teriam formas de garantir os ganhos da acumulação, a acumulação financeira, os aparatos de seguranças públicas e a institucionalidade social, funções estas que tem no Estado seu espaço de atuação na sociedade moderna.

Os desastres geradas pelo coronavírus na economia brasileira e, principalmente, na sociedade nacional, deve ser vista como a ausência de planos concretos, pela fragilidade dos programas em curso, ausência de políticas organizadas em todos os entes federativos, marcados pela dificuldade de lideranças nacionais, visões mais amplas e  elaboradas, que incluam a todos os setores nacionais e todos os grupos sociais, sem estes programas e planos gerados e consolidados pelos governos, os dados trazidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) não são novidades, estamos mergulhados na pior recessão econômica nacional, na verdade, estamos em crescente depressão, cujos impactos sobre a sociedade são assustadores, marcados pela ausência de projeto nacional claro, consistente e ambicioso.

As discussões em curso na economia brasileira são frágeis e desnecessárias, o Estado está perdendo a capacidade de estimular as grandes discussões nacionais, características existentes em décadas anteriores, onde a industrialização era conduzida pelos agentes governamentais e, tendo ao lado os setores industriais, os empresários nacionalistas, os grupos acadêmicos, da mídia e da sociedade civil, grupos interessados no progresso do país e a construção do desenvolvimento nacional. Na atualidade, os poucos grupos políticos estão interessados e dispostos a auxiliar na construção do desenvolvimento de um projeto nacional, querem apenas incrementar a acumulação e o crescimento dos interesses imediatos, atuando como lobistas de seus grupos econômicos e financeiros.

Na sociedade brasileira, os grupos mais abastados insistem em reformas fracassadas que recaem aos mais frágeis e nos setores da classe média, deixando de lado os grandes detentores da riqueza nacional, reformando os holerites dos outros setores e se colocando distante de reformas que atingem os status quo, como grupos dotados de grandes privilégios, pagam poucos recursos, conseguem isenções tributárias, não pagam seus recursos oriundos de lucros e dividendos crescentes e conseguem dominar todas as esferas nacionais de poder, perpetuando o poder e a dominação. No momento que escrevo, o governo federal deposita no Congresso Nacional uma proposta de Reforma Administrativa, uma reforma urgente e necessária para a sociedade, mas infelizmente, na proposta deixa de fora os grandes grupos detentores de salários mais elevados que impacta sobre as contas públicas. Os grandes detentores dos privilégios nacionais se perpetuando no poder e nos privilégios, com isso, o Brasil, mais uma vez, se especializa de perder novas oportunidades para dar um salto na produtividade e estimulando o desenvolvimento econômico e social, perpetuando as desigualdades e a exclusão social.

A economia mundial sente os desajustes gerados pelo coronavírus, seus impactos negativos é global, a pandemia exige atuação de todos os grupos nacionais e concatenação de interesses diversos, onde todos os grandes sociais devem compreender que uma sociedade não se constroem apenas como acumulo de seus ganhos econômicos e financeiros, a sociedade se constrói com ajustes constantes, com trabalho árduo e atuação de todos os grupos sociais, sem trabalhos dignos e decentes, sem crescimento da desigualdade social e do incremento de oportunidades para todos os setores. Desta forma, percebemos que a civilização está avançando lentamente e impulsionando a humanidade, deixando aos nossos herdeiros diretos melhores perspectivas, pela esperança e pela solidariedade.

As ideias liberais são interessantes e devem ser estimuladas na sociedade, para que este pensamento traga mais bem estar para a sociedade, faz-se necessário, construir novos espaços de oportunidades socias e de incremento profissional e emocional, sem estes crescimentos, os grandes beneficiados pelo liberalismo são aqueles que nasceram em grupos mais sociais mais consistentes financeiros e emocionais, perpetuando as desigualdades e consolidando os poderes de uma pequena parte da sociedade, os verdadeiros beneficiados pela iniquidade que crassa na sociedade brasileira. Num momento de pandemia, as discussões são fundamentais, a tributação deve ser centrada em grupo mais abonados, que neste momento de instabilidades e incertezas devem ser tributados mais intensivamente, garantindo o acúmulo de recursos econômicos e financeiros para diminuir os desequilíbrios nacionais, sem estes movimentos de atuação de maior tributação para a todos os grupos mais abastados, as instituições jurídicas e os agentes do Estado Nacional perderão mais legitimidade social, levando a sociedade a movimentos de renovação, a conflitos e reconstrução nacional.

O Brasil está doente, as pulsões mais delirantes vieram à tona, afirma psicanalista Maria Homem.

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Para ela, é preciso encarar o tratamento e identificar os problemas recorrentes nacionais

Emílio Santanna – FOLHA DE SÃO PAULO – 31/08/2020

Um paciente que, por muito tempo, deu pouca importância aos sintomas de um mal maior e, agora, movido pela urgência, precisa se deitar no divã e passar por um profundo processo de análise. A psicanalista Maria Homem vê assim o Brasil.

Um país com suas subjetividades individuais e coletivas pressionadas por mais de 120 mil mortes causadas pela pandemia do novo coronavírus, longe de conseguir baixar as marcas diárias de vítimas e em meio uma crise política e econômica. É preciso fazer uma escolha que leve à aproximação dos polos que se estabeleceram na vida nacional.

Em meio a esse processo, a crise de conceitos como individualismo e liberdade também nos coloca diante de escolhas e reposicionamentos prementes.

Maria Homem falou à Folha sobre algumas dessas mudanças e os desafios da pós-modernidade.

A pandemia e a quarentena colocam em xeque alguns conceitos como os de liberdade e individualismo. Como lidar com isso?

A modernidade toda está embasada na invenção da subjetividade individual. Antes, tínhamos a ideia de sermos parte de um clã, da família, da tradição, de que há um Deus transcendente que sabe o que estou pensando. Grosso modo, você não tinha um espaço de privacidade subjetiva individual, que é uma invenção moderna. É o que vai fundar o Estado democrático de direito, igualmente moderno. Qual o princípio básico? Um sujeito de liberdade e autonomia, cartesiano, kantiano, que diz “penso, logo existo” e “eu sou livre”.

Só que nós estamos numa era de críticas a alguns aspectos dessa modernidade. Estamos quebrando alguns grandes pilares da modernidade, ou ao menos colocando em xeque. A liberdade é do indivíduo? Também. Você quer sair da realidade, injetar, cheirar, fumar, pôr em baixo da língua, beber, tudo o que quiser? Qual é o limite? Não pode fazer isso tendo uma criança para tomar conta, tendo um carro para dirigir, que pode ser uma arma.

A gente tem uma liberdade, a priori inalienável, de ir e vir. Deveria ter, porque também não temos. O capital regula a circulação de pessoas. Também temos grandes narrativas: todos somos iguais perante a lei. É verdade que afirmamos isso, mas não é verdade que realizemos. Estamos há 200, 300 anos tentando executar o projeto iluminista.

A princípio, dentro do quadrado da nação, você pode ir e vir. Mas, mesmo nele, quando você tem um vírus com altíssima mobilidade e que é potencialmente letal, aí temos que fazer o isolamento social. Isso não é contra meu direito.

Eu não sou livre para ir e vir sem ser regulado pelo Estado?

Sim, seria. Por isso que é interessante discutir essa premissa da liberdade individual. É um grande pilar da modernidade. Eu sou livre, autônoma e racional. Não é Deus que vai dizer vá para cá ou vá para lá, não é uma guerra entre deuses e demônios para te fazer ser gay ou heterossexual, ser rei ou não ser. É Hamlet. É a grande questão shakespeariana: “Ser ou não ser, eis a questão”. Isso é o sujeito moderno por excelência.

Isso o século 19 já quebra. Freud cifra o sujeito ultramoderno com a ideia de que não temos plena consciência. Não somos movidos por aquilo que a gente deseja, porque o desejo é sobretudo inconsciente. Desejo, inconsciente, pulsão. É a crítica da subjetividade moderna, é a subversão do “cogito” cartesiano. Você é livre? Não. É escravo? Não, você é livre e escravo. Não é totalmente livre, porque age de acordo com seus impulsos basais. E também é identificado ao outro, é submetido aos imperativos do outro que você introjeta. Superego, “Úber-ich”. Todos carregamos um pedaço que é do outro dentro da gente.

Agora, vou andar cem anos, de Freud até hoje, sobretudo com as redes sociais que dizem o que a gente deve ser ou não e o que os outros aprovam ou não [às vezes] de uma maneira superegóica como a cultura do cancelamento Então a gente vai ser o quê? O que a gente acha, o que o outro acha? É o que eu acho que você acha? O que eu vou postar? O que eu acho que você acha que eu vou gostar? E aí vai, num movimento infinito de suposições, de ideias egóicas que estão sempre fora de mim. E chega um momento em que eu nem sei mais se quero ou não ir para a rua. Nem sei o que eu quero, do que eu gosto, o que eu posso, quem sou eu.

Se você no seu país, se colocou como adulto —a Nova Zelândia é o grande exemplo, governando por uma mulher que não precisa de um estratagema ficcional de governo calcado na fantasia e na mentira, como no Brasil e nos EUA—, nesse momento que você tem um problema, não pode tudo.

E se você não tinha acreditado no Freud, agora observe. Se eu vou mostrar, se quero mostrar, isso é todo esse jogo narcísico das redes sociais. E, se quer mostrar e quer que eu veja, que eu tenha inveja, ótimo.

Você é o sujeito pós-moderno por excelência, que é uma máquina de produzir inveja no olhar do outro para ter o seu valor reconhecido. A gente ampliou a lógica do reconhecimento. Não é sua família, é uma massa anônima que te dá “like”.

Isso nos torna ainda menos livres do que éramos há cem anos? 

Nesse aspecto eu diria que sim. A gente se complicou. Esse avatar que você constrói na rede é libertador? Não, não diria isso. Ou, então, deixaria essa pergunta para o leitor. Quão livre você é, tendo que construir continuamente um avatar para ser amado? Estamos mais livres do paradigma da demanda de amor, de que um Deus nos ame e nos aceite no Juízo Final? Sou otimista? Não diria isso… A gente está é inventando mais trabalho.

Então, no fim, só os preguiçosos serão salvos? 

[Rindo] E os tolos… Não sei se tenho sorte. Eu apanho, claro. Mas eu tenho um grande privilégio de ser muito livre para falar, pensar… A menina de dez anos, o estupro, o aborto, o que o Jair, o que o falou… Tem tanto material no Brasil que, se você deixar, não para de trabalhar.

Em que medida o isolamento social favorece o acirramento da polarização que vivemos?

A quarentena é uma operação gigantesca de desvelamento. Nessa situação de estresse e sofrimento, tudo vem à tona. Você está apertando subjetividades individuais e coletivas, e as estruturas vêm à tona, o Brasil veio à tona. O que é o bolsonarismo, o que são os filhos [de Bolsonaro], o que é a lógica miliciana, da corrupção, da política? Como a gente compra o centrão, o meio, a borda? Está tudo a céu aberto, é como se fosse um declínio da contenção, da inibição, crise do recalque, e todas as potências vêm à tona. Acho interessante como psicanalista. Sem isso você não faz tratamento. Você precisa saber bem o que é o Brasil. Tem racismo, misoginia, exploração, homofobia, desigualdades, tradições escravocratas, autoritária, violenta, assassina, bandida. Tudo isso faz parte da história do Brasil.

Precisa parar de se enganar, de maquiar, de pôr a culpa no outro, porque aí a gente vai fazer uma polarização que diz “Eu tenho o bem, você não tem”. Todo o bem está comigo, a raça superior, o futuro da nação, Novo Reich, todo o mal está com você que tem que ser exterminado. Isso é uma regressão para um mecanismo psíquico muito arcaico.

O racismo é problema nosso. Tivemos séculos de escravidão. Sempre tivemos transformação política via autoritarismo. Foi sempre com golpe. A Independência, a República, acreditamos na força. Milhões de pessoas elegem o cara com o símbolo de arma porque a gente acredita na força. Acreditamos na autoridade suprema e a desejamos para “parar com essa bagunça”. Esse binarismo mental entre o caos, a desordem, a puta zona e a ordem; a força, a violência, o “AI 5 quero, sim”, isso revela crenças, estruturas do que somos.

Temos que saber que são questões constitutivas, têm a ver com o que somos. É um processo analítico. O Brasil deveria entrar agora num processo analítico coletivo, como qualquer sujeito. “Eu estou com insônia, tenho síndrome do pânico’; ou “estou com vontade de matar quatro e já matei dois”. “Estou indo para análise. O que está acontecendo comigo?” É a ponta do iceberg, são problemas de séculos.

Assim, o bolsonarismo não ocorreu por acaso.

Não existe acaso no inconsciente. Nem no consciente. Acaso não existe. Mas existe, sim, o acaso/contingência? Claro. Tem toda uma estrutura por trás para possibilitar esse acaso. A vida é estrutura e acaso. Ela é tudo aquilo que já está montado. Se 58 milhões de pessoas entraram nesse delírio, isso está muito profundamente arraigado. Não existe acaso que eleja uma ficção com um imaginário tão delirante. Assim como o lulismo é outra construção que tem um aspecto profundamente imaginário. Não só, mas também, e é em alguma medida próximo a Bolsonaro —que consegue maior aprovação ao dar esse dinheiro mensal a uma parcela miserável da população.

É isso o que explica o aumento da popularidade do Bolsonaro?

Uma parte são os R$ 600 [do auxílio emergencial]. Outra parte é a ideia do salvador da pátria. Esse caudilhismo autoritário é curioso. Ele é de extrema esquerda porque é desenvolvimentista, estatista, vide o Exército no poder —como Chávez e Maduro, na Venezuela— com o verniz ultraliberal. É tão confuso que a gente tem generais no poder com o Paulo Guedes.

Será que não temos uma potência, uma pluralidade de pensamentos? Mas não estamos sabendo sentar à mesa e falar o que queremos. A gente quer a perpetuação do extrativismo, da miséria, o máximo de desigualdade, o máximo de dinheiro para esse grupo? Essa plutocracia que a gente está exercendo, queremos continuar nessa?

Tem muita gente boa, acho que dá para sentar à mesa e dizer “Olha nós vamos ceder, vamos negociar”.

Há uma disputa entre esses potenciais transformadores e algo como uma pulsão de morte que perpetua essa situação?

Tem muita pulsão de morte, claro. Uma pulsão de morte que, no momento, está vencendo. Quando você leva o pior do estado do Rio de Janeiro para o poder central, você vai ter uma “milicianização” global do poder do Estado. E nós estamos vendo isso. Estamos numa encruzilhada seríssima. Como vamos restaurar um mínimo pacto da lei? Como vamos barrar o gozo do outro? Se não barramos, é pulsão de morte, tânatos.

É isso que queremos? É o que estamos fazendo. É uma pergunta analítica. É realmente isso que você quer? É isso que você, Brasil, está fazendo da sua vida. Ou sentamos à mesa e explicitamos o que estamos fazendo, quem somos nós, ou vamos ser deixados fazer inconscientemente.

Agora que vieram à tona as pulsões mais delirantes, mais doentias, mais loucas do Brasil, vamos escutar e falar. O Brasil está doente. Não tenho dúvidas, o Brasil está doente. É preciso olhar no espelho.

Maria Homem 
Psicanalista, doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, professora da Faap, autora de livros como “No Limiar do Silêncio e da Letra: Traços de Autoria em Clarice Lispector” (Boitempo, 2012) e “Coisa de Menina? Uma Conversa sobre Gênero, Sexualidade, Maternidade e Feminismo” (Papirus 7 Mares, 2019), em parceria com Contardo Calligaris. Seus cursos e palestras, como os que faz na Casa do Saber, se popularizaram nas redes sociais

 

O agronegócio na crise global

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Vendendo comida, o Brasil perdeu menos que outros países no segundo trimestre

Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, 30/08/2020

O mundo precisa comer, com ou sem crise, e o Brasil produz e vende muita comida. Graças a isso a exportação brasileira caiu bem menos que a média mundial na pior fase do ano. O comércio global despencou no segundo trimestre e isso é bem visível no desempenho das maiores economias. Nesse período o Grupo dos 20 (G-20) exportou 17,7% menos que no primeiro trimestre. O valor importado foi 16,7% menor que o de janeiro-março. Países com grande participação da agropecuária nas vendas externas, como Brasil, Argentina e Austrália, perderam muito menos receita que os demais, segundo relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

O Brasil faturou no segundo trimestre 7,2% menos que no primeiro. A despesa com a importação foi 18,2% menor que nos três meses anteriores. Apesar da retração comercial observada na maior parte do mundo, a balança brasileira continuou no azul. Dois fatores contribuíram para isso. Com milhões de famílias fechadas em casa, consumo em queda e economia quase inerte, a demanda de importações foi muito baixa. O segundo fator foi o dinamismo permanente do agronegócio.

A exportação de comida e matérias-primas produzidas pela agropecuária continuou vigorosa no segundo trimestre, embora a economia mundial estivesse afundada em severa recessão. No primeiro semestre o agronegócio exportou produtos no valor de US$ 51,63 bilhões, 9,7% mais que um ano antes. O saldo comercial do setor chegou a US$ 45,40 bilhões e continuou sustentando o saldo positivo da balança comercial brasileira.

Em junho as vendas externas do agronegócio atingiram o recorde de US$ 10,17 bilhões, com crescimento anual de 24,5%, e corresponderam a 56,8% do valor total exportado pelo Brasil. Um ano antes a participação havia sido de 44,4%. O vigor se manteve em julho, quando o setor faturou US$ 10 bilhões com as vendas externas e garantiu 51,2% da receita geral do comércio de bens.

O agronegócio, convém sempre lembrar, mantém forte presença no mercado global apesar de ter sua imagem manchada pela desastrosa política ambiental do presidente Jair Bolsonaro e pela vergonhosa diplomacia do atual governo.

Mesmo com esses fatores adversos, o verdadeiro agronegócio, pouco presente na Amazônia e respeitador do ambiente natural, tem conseguido contornar a má fama do governo brasileiro e evitar o protecionismo baseado em bandeiras ambientalistas.

Mas o risco das campanhas protecionistas permanece, enquanto o presidente e seus piores ministros mantêm tolerância à devastação da Amazônia e de outros biomas e à violação de direitos dos povos indígenas. No mercado financeiro já é sensível o custo das más políticas federais. Grandes investidores cortam aplicações no Brasil ou ameaçam retirar-se. A decisão de três dos maiores bancos – Itaú, Bradesco e Santander – de criar o Conselho Consultivo Amazônia – para incentivar o desenvolvimento sustentável da região – mostra uma nítida percepção do problema ambiental e de seus custos.

Com grande peso da agropecuária na exportação, a Argentina faturou no segundo trimestre 11,8% menos que no primeiro, também com desempenho melhor que a maior parte dos países do G-20. Na Austrália a queda foi de 4,4%.

Na União Europeia o valor exportado caiu 21,3% e o importado diminuiu 19%. No bloco europeu a França teve a maior perda de receita, 29,3%, seguida pela Itália, com redução de 26,5%. Na maior economia do mundo, os Estados Unidos, a receita comercial do segundo trimestre foi 28,2% inferior à do primeiro. O gasto com a importação de bens diminuiu 14,5%.

A exceção no G-20 foi a China. Vendeu 9,1% mais no segundo trimestre, depois de ter perdido 9,3% no primeiro. Mas sua importação continuou em queda no período abril-junho, com recuo de mais 4,9%, mas sem danos para o agronegócio brasileiro. No primeiro semestre o mercado chinês absorveu 39,6% das vendas externas do setor. Em segundo lugar, apesar de alguma redução, ficou a União Europeia, principal núcleo das campanhas protecionistas contra o agro brasileiro.

 

 

O prosador de promessas

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Folha de São Paulo, 30/08/2020.

Como ministro, Guedes é bom contador de causos

VÁRIOS AUTORES (nomes ao final do texto)

Independentemente de qual teoria econômica se siga —ortodoxa ou heterodoxa—, é consenso que a boa condução de expectativas é fundamental para o bom funcionamento da economia. Foi Keynes quem primeiro trouxe essa ideia, e boa parte dos grandes economistas depois dele lidaram com ela —Friedman, Lucas, Skidelsky, Arkelof, Shiller. Trata-se de um instrumento de política econômica chamado de “forward guidance”. A importância de as medidas sempre mirarem o hoje e o amanhã é porque as decisões na economia, quaisquer que forem, acontecem e perduram no tempo. Quanto mais clara e crível for, portanto, a informação sobre o que fará o principal ente econômico —o governo federal—, melhor é para economia.

Alçado ao posto de figura inabalável e concentrando poderes de política econômica com poucos paralelos na história, Paulo Guedes é a voz com maior capacidade de moldar expectativas no país. Não há ministro do Planejamento para lhe fazer contraponto, e os presidentes dos bancos públicos e autarquias da área econômica lhe prestam continência. O presidente da República, aliás, reforça recorrentemente sua submissão —ainda que com deslizes práticos — à agenda do por ele apelidado “Posto Ipiranga”.

Ainda na campanha de 2018, Guedes garantiu, contra todas as evidências, que zeraria o déficit primário de cerca de R$ 130 bilhões já no primeiro ano de governo. Desta forma, ele implicitamente menosprezava todos aqueles que, familiares ao Orçamento, reforçavam a inviabilidade dessa tese. Pois 2019 passou e o déficit permaneceu.

Guedes tem prometido, com frequência, a privatização de todas as estatais, que trariam R$ 2 trilhões, ou seja, 30% do PIB, a serem anunciadas sempre “na semana que vem”. O BNDES apontou em julho que a maioria dos estudos sobre os efeitos de eventuais privatizações sequer foi concluída. Em vez do realismo, o ministro Paulo Guedes opta pelo discurso simples, que encanta quem vive de vender e comprar papeis em cima de promessas e boatos, mas que não altera a realidade das contas públicas ou a vida do cidadão brasileiro médio.

Guedes garantiu em setembro de 2019 que apresentaria a proposta de reforma tributária; claro, “na semana que vem”. Ela só chegou em julho de 2020 — e fatiada. Impressionam, também, as projeções superlativas do impacto das medidas do governo. Redução de 40% no preço da energia com o novo mercado do gás, anunciado em julho de 2019, e que nunca saiu do papel. Aliás, a reforma administrativa, que viria “na semana que vem” em 2019, também não saiu do papel. Geração de 3,7 milhões de empregos com a MP da Liberdade Econômica e outros 4 milhões com a Carteira Verde e Amarela. Investimentos de R$ 800 bilhões com o marco do saneamento. Agora, R$ 630 bilhões com um novo, de novo, marco regulatório do gás.

Em abril, o ministro da Economia disse, em uma live, ter “um amigo inglês” que doaria 40 milhões de testes de Covid-19 por mês ao Brasil. Quem era e onde estão os testes? Aliás, ficará na história a frase de Guedes, em 13 de março: “Com três, quatro ou cinco bilhões” o país “aniquilaria” o coronavírus. Os gastos do governo com a pandemia estão perto do meio trilhão de reais.

Diante da maior crise econômica de sua história, Guedes propaga uma recuperação em “V”, algo que contrasta com o que ocorreu em 2019, quando o PIB reduziu seu ritmo de crescimento —1,1%, contra 1,3% de 2017 e 2018. Isso sem contar a desarticulação da política econômica, que vem ocorrendo desde 2019, e os impactos econômicos negativos do desastre ambiental que é este governo: recuperação em “V”?

Guedes é, como ministro da Economia, um bom contador de causos. Um prosador de promessas: as pronuncia provavelmente com a mesma certeza que tem, em seu íntimo, de que não as entregará. Tendo lido Keynes três vezes no original antes de ir estudar com Friedman em Chicago, Guedes aparentemente pouco aprendeu de ambos os mestres.

Suas promessas confundem a sociedade, o que é sempre danoso à economia —como Keynes e Friedman ensinaram. A economista Esther Duflo, Prêmio Nobel em 2019, cunhou a sina dos três “is” que atrapalham o desenvolvimento: inércia, ideologia e ignorância. É uma pena que o Brasil pareça se encontrar preso nessa tríade, bem em meio à sua maior crise.

Débora Freire
Professora da UFMG

Élida Graziane
Professora da Eaesp-FGV

Fabio Terra
Professor da UFABC e do PPGE-UFU

Gabriel Brasil
Economista pela UFMG

Igor Rocha
Doutor em desenvolvimento econômico pela Universidade Cambridge

João Villaverde
Doutorando em administração pública pela FGV

Laura Carvalho
Professora da USP

Thomas Conti
Professor do Insper e IDP-SP

 

 

Fim do teto de gastos: não se, mas como. Por Armínio Fraga.

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Limite sinalizou entendimento contra o crescimento ininterrupto dos gastos a partir dos anos 1990

Armínio Fraga – FSP – 30/08/2020

A emenda constitucional número 95 de dezembro de 2016 instituiu o teto de gastos públicos, que congelou em termos reais os gastos do governo federal. O teto sinalizou um bem-vindo entendimento quanto à necessidade de se lidar com o crescimento ininterrupto dos gastos a partir dos anos 1990.

Foi parte de uma guinada na gestão macroeconômica do país em resposta ao colapso fiscal que ocorreu a partir de 2014. A partir da guinada, as taxas de juros entraram em trajetória de queda, chegando aos inéditos níveis que prevalecem hoje.

Parecia claro desde o primeiro momento que a manutenção do teto por mais do que alguns anos seria difícil sem que se encarasse de frente a absoluta rigidez dos gastos obrigatórios. Um exemplo pode ajudar aqui. Sob as regras da EC 95, se o PIB crescesse a 2,5% por dez anos, o gasto federal cairia de 19% para 15% do PIB. Se todos os gastos públicos ficassem congelados, em termos reais, teríamos uma queda de 35% para 27%. Não faz muito sentido.

Havia esperança de que reformas mais profundas ocorreriam, o que permitiria em algum momento uma flexibilização do teto, sem grandes estresses. Mas não foi o caso. Algo se fez, como a reforma da Previdência aprovada no ano passado, mas não foi o suficiente: o espaço para cortes nos gastos correntes discricionários praticamente se esgotou e o investimento público está próximo de zero, o que é política e economicamente insustentável.

Não surpreende, portanto, que um exame mais detalhado dos fatos sugira que não se exagere o impacto causal do teto sobre as taxas de juros: a Selic (a taxa de curto prazo fixada pelo BC) está em 2% e a taxa dos títulos do Tesouro de dez anos em torno de 7,5%.

Ambas caíram bastante desde 2016. Parece razoável atribuir parte relevante da queda na Selic à enorme recessão que nos assola há sete anos. As taxas de longo prazo embutidas na curva de juros estão em torno de 9%.

Ou seja, o prêmio de risco segue elevado, espelhando juros reais acima de 4% e ainda algum medo de inflação. E isso num período em que as taxas de juros equivalentes para as economias avançadas caíram em cerca de 1,5 p.p..

Conclusão: o futuro macroeconômico do país ainda está longe de ser confiável. Quem vai investir em um país com indicadores tão incertos? O que fazer então com o teto?

Há quem acredite que um caminho seria abandonar o teto e seguir gastando e acumulando dívida (presume-se que por mais algum tempo). Alguns cogitam prorrogar o orçamento de guerra. Outros entendem que, no limite, seria possível reduzir a taxa de juros de curto prazo a zero (se a inflação permitir) e encurtar ainda mais o perfil de vencimento da dívida (na prática, “emitir moeda”).

Acreditam também que haveria espaço para abrir novas frentes de investimento público e privado de boa qualidade. Essa opção conta com o atraente apelo de dispensar a definição de prioridades, bem como parece não impor custos.

Seria bom, mas não para de pé. Falta combinar com os russos. Não há confiança na capacidade de o governo executar bons investimentos. Tampouco há confiança interna e externa para financiar tal caminho. E não sem razão. Nas atuais condições, nem se fala. Seria mais crise na certa. Já vimos esse filme. O Brasil não é uma economia avançada. Os reais problemas seguiriam intocados.

Restam então duas alternativas: defender a ferro e fogo o teto ou buscar uma saída mais equilibrada. Não creio que a defesa pura e simples do teto seja uma solução viável por muito mais tempo, pelas razões que expus acima. Melhor planejar o quanto antes uma saída organizada e crível. A operação é muito delicada. Flexibilizar o teto sem uma nova âncora traria consequências dramáticas.

O quadro geral é bastante complexo. O país apresenta déficits primários há sete anos. O Ministério da Economia sinaliza compromisso com o teto. O presidente da República, pensando na reeleição, aposta suas fichas políticas no Renda Brasil e se opõe a cortes em outros benefícios e aumentos de impostos.
A PEC Emergencial, que ganharia algum tempo para o teto, não parece contar com o apoio do Executivo, pela mesma razão. Claramente a conta não fecha. O que fazer?

Tenho defendido uma estratégia de ajuste estrutural que começou com as reformas do BNDES e da Previdência (3 p.p. do PIB) e que ao longo de dez anos liberaria recursos crescentes, que poderiam chegar a mais 8 p.p. do PIB no décimo ano.

Perdoem-me a repetição, mas não vejo saída para o Brasil que não passe por alguma redução simultânea do nível e das distorções de uma parcela relevante do gasto público.

A economia viria da eliminação de subsídios e brechas tributárias regressivas, de ajustes na folha de pagamentos do setor público e de mais ajustes na Previdência. Boa parte dos recursos ficaria livre para gastos e investimentos em áreas de alto retorno social como saúde, assistência social, pesquisa básica, educação e infraestrutura, sempre que possível alavancados por capital privado. Ficaria livre também para reduzir a carga tributária.

Seria fundamental que a economia com o funcionalismo fosse obtida por meio de uma reforma de recursos humanos do Estado, que promovesse um salto na qualidade nos serviços públicos, seu principal objetivo e importante alavanca para o desenvolvimento.

O lobby do funcionalismo se opõe, mas se espera que o entendimento de que há muito privilégio e desperdício a eliminar acabará prevalecendo. O Brasil é um ponto fora da curva global no que tange ao peso do funcionalismo no gasto público. É prerrogativa do Executivo federal encaminhar ao Congresso uma proposta, mas aqui também a reeleição parece atrapalhar.

Parte do resultado da estratégia acima se destinaria à obtenção de um superávit primário capaz de viabilizar uma queda gradual do endividamento público, hoje elevado pelas barbeiragens, emergências e recessões dos últimos sete anos. O ajuste do primário deveria ser gradual, atingindo cerca de 3 p.p. do PIB em três anos.

Notem que o espaço de manobra seria limitado. No curto prazo haveria um (pequeno) aumento real no gasto público e um aumento da carga tributária. Com o correr dos anos, na medida em que as reformas mostrassem resultado, seria possível aumentar os gastos em termos reais, mas reduzi-los como proporção do PIB. O mesmo vale para a carga. Seria uma decisão política.

Como o único caminho que enxergo é gradual e a nossa credibilidade, baixa, me parece de todo essencial que se aprove o quanto antes uma versão da PEC Emergencial que ofereça ao governo as ferramentas necessárias para se desenhar e executar um orçamento plurianual crível.

Esse orçamento deveria indicar com clareza as metas mencionadas acima para o gasto público e o superávit primário. Só assim seria possível uma flexibilização segura do teto.

A bem-vinda discussão em curso sobre uma renda básica universal, que ampliaria e consolidaria os programas de assistência social existentes, teria que obrigatoriamente acontecer no bojo desse orçamento plurianual. Um igualmente desejável reforço do SUS teria que fazer parte do processo, disputando espaço com outras prioridades. A discussão de temas isolados é má prática econômica e política.

O tempo é curto e o espaço de manobra, ainda menor. Mas ainda temos a oportunidade de reduzir privilégios, buscar a saúde fiscal do Estado e perseguir um crescimento inclusivo. Isso requer metas claras e factíveis e um plano integrado como esboçado aqui. Requer também liderança política com visão de longo prazo.

Arminio Fraga

Sócio da Gávea Investimentos, é presidente do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

Empreendedorismo, Desenvolvimento e Subdesenvolvimento

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Um dos mantras que mais cresce na sociedade contemporânea é a importância do papel do empreendedorismo para o mundo dos negócios, nesta corrente de pensamento o empreender é um dos meios mais consistente de superar o subdesenvolvimento, levando a sociedade a construir bases mais sustentáveis para o desenvolvimento econômico com melhoria dos indicadores sociais, incremento do bem-estar social e a inclusão de todos os grupos sociais mais vulneráveis.

Numa sociedade marcada por grandes transformações no mundo do trabalho, os trabalhadores estão sendo estimulados a empreender, abrir novos negócios e enveredar pelos espaços do empreendedorismo, estruturando novas bases do sistema capitalista de produção e criando novas oportunidades de ocupações, sem as amarras dos chefes e donos dos negócios, o sonho de uma nova sociedade marcada pelo empreendedorismo, pelas novas ideias, nossas oportunidades e novos ares mais consistentes estão sendo estimulados pelos grupos mais endinheirados.

Neste novo ambiente, o empreendedorismo está sendo estimulado pelas universidades de gestão, onde as grades curriculares e os conteúdos programáticos estão adaptados para o empreender, levando os alunos a correr riscos, atuar de forma flexibilizada, analisar os ambientes empresariais e, principalmente, analisar as bases das sociedades, buscando novos espaços de negócios e novos investimentos, gerando empregos, rendas e crescimento econômico, levando as coletividades ao tão sonhado desenvolvimento econômico. Os estímulos do novo capitalismo contemporâneo motivam as pessoas comuns a empreender, transformando ideias, costumes, hábitos e comportamentos, reduzindo burocracias e melhorando os indicadores sociais e políticas públicas, melhorando a toda a comunidade.

São inúmeras as definições do termo empreendedorismo, onde podemos entender como uma disposição ou capacidade de idealizar, coordenar e realizar projetos, serviços e negócios. O empreender é uma iniciativa de implementar novos negócios ou mudanças em empresas já existentes, com alterações que envolvem inovação e riscos. O empreender deve ser entendido como uma capacidade de correr riscos e encarar novos desafios, ainda mais quando analisamos um país como o Brasil, cuja economia está marcada pela instabilidade e por grandes espaços de incertezas e de desajustes, empreender numa economia como a nossa, percebemos que os desafios são maiores e exigem perseveranças e muitas sorte.

Muitos empreendem em períodos de desempregos, famílias que perderam seus empregos ou tiveram uma queda considerável de suas rendas, investindo seus recursos escassos em novos negócios, neste caso, as chances de êxito deste empreendimento são reduzidos, como nos mostram as pesquisas de empresas especializadas, como o Sebrae, que ao analisar o caso percebemos que mais de 75% dos empreendimentos nacionais quebram em menos de cinco anos, levando um rastro de degradação de empresas, famílias e relacionamentos, gerando novos traumas e desesperanças nesta sociedade.

O empreendedorismo pode ser uma opção de renascimento no mercado de trabalho, pode abrir novas oportunidades e criar novos espaços de crescimento para inúmeros grupos sociais, estimulando novas oportunidades mas, exigem algumas capacidades inerentes para os empreendedores, flexibilidade, agilidade, rapidez na tomada de decisão, perseverança e uma grande dose de sorte, ainda mais quando percebemos que inúmeros concorrentes perseguem o mesmo sonho de serem donos de seus estabelecimentos comerciais, levando-os a situação desejado de ser dono de seu nariz.

Numa sociedade como a brasileira o sonho do empreender, de ser dono do seu negócio mostra cada vez mais distante deste sonho, isto porque nossas estruturas econômica e produtiva estão sempre marcada por desequilíbrios, incertezas e instabilidades, obrigando aos empreendedores uma verdadeira batalha diária, um sistema tributário anacrônico, impostos elevados, burocracias exageradas, mão de obra ineficiente e pouca produtiva, taxas de juros elevadas, serviços e produtos bancários caros, levando os empreendedores a se distanciar dos seus negócios, criando desesperanças e uma perpetuação desta estrutura concentrada e ineficiente.

Nas faculdades e nas universidades, percebemos a incutir nos alunos os sonhos do empreendedorismo, mas percebemos que estas instituições estimulam o empreendedorismo, mas não consegue construir uma mentalidade global em prol deste sonho de empreender, mostrando parcialmente os desafios daqueles que correm riscos novos, infelizmente o resultado imediato desta empreitada é a perpetuação da falácia do empreendedorismo, onde grande parte daqueles indivíduos que buscam abrir novos negócios acabam encontrando com a bancarrota, com a falência e com a degradação econômica e social, trilhando rastros de perdas e se transformando em estatísticas negativas.

Na sociedade contemporânea percebemos que os grandes atores do mundo do negócio, nacional e internacional, banqueiros, financistas e grandes empresariais, estimulam o empreendedorismo, alimentando uma corrida insana, onde as pessoas buscam as melhores ideias e os retornos mais consistentes, mas percebemos ainda, que as regras desta competição são pouco visíveis para a grande parte dos concorrentes, na maioria das vezes os contendores estão pouco capacitados ou desqualificados para o desafio, com isso, a grande maioria se perde no caminho e acumulam prejuízos elevados e percebem, posteriormente, que estão falidos, cheios de dívidas e desesperançados, levando a economia a recessões severas e desemprego elevado.

Numa sociedade caracterizada por uma estrutura autoritária, pela exclusão social e pelo racismo, falar em empreendedorismo leva a teses sociológicas animadas, discussões acaloradas e reflexões constantes. No Brasil contemporâneo, o empreendedorismo aprofunda uma sociedade desigual, os vencedores dos valores do empreendedorismo reprofundam ideais caras ao pensamento da meritocracia, que defendem que todos que se esforçarem, se dedicarem e batalharem arduamente, seus esforços seriam premiados com empreendimentos, ganhando espaço no mundo dos negócios. Estas teorias impressionam as pessoas que acreditam e defendem os valores liberais, advogam a concorrência e pregam a competição, alguns conseguem alçar voos nesta corrida, empreendem e acumulam alguns recursos, mas a grande maioria soçobra, ficam na praia e deixam marcas de endividamento e degradação social.

As escolas de gestão e dos cursos de negócio defendem o pensamento liberal, pregam os valores do competição, da meritocracia e da concorrência e do livre comércio e acreditam que os valores do empreendedorismo são fundamentais para a construção de uma carreira exitosa, tornando empresários ou pessoas de negócio, muitos deixam de destacar, que as escolas de negócio enriquecem defendendo estas teorias, alegram os donos do poder econômico e financeiro, com isso, percebem o crescimento ascensional de seus investimentos.

O empreendedorismo deve ser caracterizado como um movimento sólido de crescimento e desenvolvimento para as sociedades, todos os países que conseguiram se desenvolver se caracterizaram por indivíduos marcados por sentimentos liberais, defensores da concorrência, da competição e da meritocracia, mas devemos destacar ainda, que em todas as nações que alçaram em postos do desenvolvimento econômico, contaram por atuação sólida e consistente de seus Estados Nacionais, atuando diretamente com políticas efetivas para consolidar o crescimento industrial, criando e consolidando políticas de valorização dos ambientes de negócios, com atuação no ambiente político e institucional, criando as condições para que os empreendimentos consigam transformar seus sonhos, melhorando as condições econômicas, gerando empregos, incremento de rendas e salários, culminando em maior desenvolvimento econômico.

Um dos teóricos mais importantes do empreendedorismo, estudar a importância e centralidade do empreender numa sociedade, foi o austríaco Joseph Schumpeter, que defendia a expressão destruição criadora, onde defendemos que as ideias de pessoas inovadoras e empreendedoras, impulsionam a sociedade capitalista, dando espaços de crescimento e desenvolvimento econômico. Nos escritos do economista austríaco, o empreendedorismo é visto como uma força crescente de transformação da sociedade, novas políticas e novos pensamentos que mudam os rumos da sociedade, mudando os rumos da economia, criando novos estilos de negócios e de investimentos.

No Brasil, percebemos que as ideias defensoras do empreendedorismo estão muito atreladas em pensamentos mais liberais do que os dos antigos liberais, um pensamento atrasado e retrógrado. Na atualidade, chamamos de empreendedores todos aqueles que se enveredam a aventurar em novos negócios, muitos deles investem seus recursos, frutos de uma vida de trabalho, em carrinhos de cachorro quente ou num automóvel para se tornar motoristas da Uber ou os entregadores dos aplicativos, empregos degradantes, sem garantias, sem perspectivas, sem direitos sociais, explorados por um sistema capitalista degradante que condena os indivíduos a cargas elevadas de trabalho, sem proteção de sindicatos e refém de serviços públicos degradantes e políticas sociais de péssimas qualidades, neste caminhos estamos enveredando um caminhos de desumanidade, onde estamos condenados ao trabalho degradante e ultrajante.

O estímulo ao empreendedorismo deveria ser bastante interessante para a sociedade brasileira, políticas consistentes para arregimentar grupos mais aptos para empreender, políticas canalizadas para a inovação, cursos e qualificações estruturadas, recursos financeiros disponíveis, impulso das universidades e faculdades, reduzida burocracia e cobranças equilibradas, todas estas políticas deveriam ser estimuladas e controladas por agências controladas por governos e mercados, atuando em comum, visando a construção de novos investimentos produtivos estimulando a destruição criativa, lembrando o ideal deste economista, cujo seu pensamento é atual e fundamental para o desenvolvimento das nações, principalmente em momentos de grandes incertezas e instabilidades, marcados pela pandemia que desgasta as bases da sociedade, aumenta os medos, destacando os pensamentos líquidos do sociólogo Zygmunt Baumann.

Neste momento de grandes incertezas e instabilidades, deixarmos nas costas dos indivíduos a tarefa de empreender, de construir novos espaços de desenvolvimento social e econômico, nos parece um desafio inalcançável pela sociedade mundial. O empreendedorismo deve ser visto com respeito e com admiração, e deve ser estimulado, mas nos parece insuficiente. O empreendedorismo e o pensamento liberal nos parecem insanos, nestes momentos de pandemia e de instabilidades crescentes, somente conseguiremos alterar os rumos da sociedade mundial e, no caso da sociedade brasileira, se todos os grupos sociais relevantes se juntarmos e atuarmos em comum acordo, rompendo com pensamentos que estimulam o individualismo e o egoísmo que reinam na sociedade, sem esta união o país estará condenada a degradação social, a insuficiência econômica e destruição dos direitos constitucionais. Estamos num momento de escolhas cruciais e decisões inadiáveis, neste dilema atual, estamos entre a civilização ou a barbárie.

 

 

 

Onde está o dinheiro que falta à política social.

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Roteiro para compreender os “paraísos fiscais”, usados pelas corporações e bilionários para não pagar impostos. Quantos existem. Como funcionam as empresas de fachada. Quanto as sociedades perdem com a sonegação

Por Will Fitzgibbon e Ben Hallman, no ICU Tradução de Simone Paz

Outras Palavras

As receitas tributárias permitem que a civilização não se afunde nem se afogue. Mas nem todos os contribuintes seguem as mesmas regras.

Com a ajuda de advogados, contadores, empresários de prestígio e governos ocidentais cúmplices, os ricos e bem relacionados conseguem fugir do pagamento de trilhões de dólares em impostos. O resto de nós cobre a diferença — ou, como é mais comum, essa diferença fica descoberta, deixando os Tesouros sem o dinheiro necessário para construir estradas e escolas e enfrentar ameaças existenciais como mudanças climáticas e pandemias globais

Os paraísos fiscais tornam tudo isso possível.

Segundo estimativas, cerca de 10% do valor da produção total de todas as economias do mundo encontra-se em centros financeiros offshore [isto é, com contabilidade feita fora das fronteiras do país onde operam], mantidos por empresas de fachada que existem apenas no papel. O custo para os governos, em receita perdida, é calculado e, mais de 800 bilhões de dólares ao ano.

Os ricos preservam o dinheiro para manter fortunas intergeracionais, que dão origem a uma nova classe aristocrática global e agravam o abismo entre abastados e empobrecidos. As multinacionais usam esse excedente de dinheiro para recompensar acionistas e eliminar concorrentes menores

Os países que mais precisam de receita tributária, perdem mais dinheiro de impostos do que os países ricos — em porcentagem do PIB. Tal como acontece com outras desigualdades, os pobres sempre se dão pior.

Anos depois do Panamá Papers, o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos [ICIJ, na sigla em inglês] continua comprometido em expor todos aqueles que usufruem dos paraísos fiscais — uma longa lista que também inclui políticos corruptos, mafiosos, narcotraficantes e outros criminosos que lavam dinheiro e ativos por meio de empresas offshore para despistar as autoridades. O fácil movimento do dinheiro ilícito desestabiliza governos e ajuda déspotas a permanecer no poder.

Eis aqui um guia que criamos para ajudar a explicar como funcionam as finanças offshore e por que isso é importante:

O que é um Paraíso Fiscal?

Não há uma definição universal para eles, mas os paraísos fiscais, ou centros financeiros offshore, costumam ser países ou lugares com impostos corporativos baixos ou até nulos, que permitem que estrangeiros abram negócios facilmente. Os paraísos fiscais também limitam a divulgação pública sobre as empresas e seus proprietários. Como as informações podem ser difíceis de extrair, os paraísos fiscais às vezes também são chamados de jurisdições secretas. Os paraísos fiscais quase sempre negam ser paraísos fiscais.

Onde ficam esses paraísos fiscais?

Espalhados pelo mundo inteiro. Alguns são países independentes, como Panamá, Holanda e Malta. Outros estão dentro de países, como o estado de Delaware nos EUA, ou são territórios, como as Ilhas Cayman.

As investigações do ICIJ têm se concentrado em diversos paraísos fiscais, a depender, geralmente, da origem e do conteúdo dos documentos. O Panama Papers, por exemplo, expôs como o Mossack Fonseca, um dos maiores escritórios de advocacia offshore do mundo, vendeu milhares de empresas de fachada nas Ilhas Virgens Britânicas para clientes do mundo todo. O Mauritius Leaks revelou como as empresas usavam as Ilhas Maurício para evadir impostos, enquanto a Paradise Papers revelou os segredos das Bermudas, ilha onde o escritório de advocacia Appleby foi fundado

Alguns paraísos fiscais, como Niue e Vanuatu, deixaram de atuar como tal por conta da pressão internacional; enquanto outros, como Dubai, emergem como novos focos de riqueza ilícita

Por que um país ou região resolve virar um paraíso fiscal

Por dinheiro. Os paraísos fiscais recebem receitas significativas advindas das taxas pagas por pessoas e empresas que criam e utilizam as empresas de fachada. Os paraísos fiscais também geram trabalho para advogados, contadores e secretários. As Ilhas Maurício, por exemplo, afirmaram que 5.000 pessoas perderiam seus empregos se o país deixasse de ser um paraíso fiscal

O que é uma empresa de fachada?

Uma empresa de fachada é uma entidade legal, criada num paraíso fiscal. Normalmente, as empresas de fachada existem somente no papel, não possuem empregados fixos nem escritórios. Um único prédio comercial nas Ilhas Cayman, por exemplo, abriga 19 mil empresas de fachada. As regras diferem, mas os verdadeiros proprietários de muitas delas não são divulgados nos documentos de incorporação. Alguns usam o termo “empresa de fachada”; outros, “empresa offshore”, de forma intercambiável.

Por que são chamadas de empresas de fachada?

Porque assim como uma concha vazia [em inglês, o termo para “empresa de fachada” é “shell company”, ou empresa-concha], não possuem nada dentro. Uma empresa de fachada (feito uma simples fachada de cenografia), só existe, legalmente, no papel.

As empresas de fachada são usadas para quê?

Fins legais e ilegais. As empresas de fachada podem possuir dinheiro, casas luxuosas, propriedade intelectual, negócios e outros ativos. Elas também desempenham um papel vital em facilitar o fluxo de dinheiro ilícito no mundo inteiro.

Quem utiliza os paraísos fiscais, e para quê?

Pessoas ricas, mas também pessoas “comuns” — por exemplo, dentistas e pelo menos um ou outro dono de quitanda do Alabama — usam empresas de fachada por motivos que podem incluir tornar mais difícil para credores em potencial — incluindo ex-cônjuges, sócios descontentes ou inspetores fiscais — identificar e recuperar dinheiro devido

Investimentos feitos por meio de paraísos fiscais podem ser especialmente lucrativos, devido às economias fiscais significativas das quais as empresas offshore podem desfrutar.

Bob Geldof, Madonna e o secretário de comércio dos EUA, Wilbur Ross, estão entre os nomes destacados que o ICIJ vinculou a empresas de fachada. Alguns, como a Rainha Elizabeth II, alegam que nem sabiam terem investido no exterior.

Políticos, como o ex-primeiro-ministro da Islândia, Sigmundur David Gunnlaugsson, e o ex-presidente do senado da Nigéria, Bukola Saraki, ocultaram investimentos e casas luxuosas com a ajuda das empresas de fachada. Seus filhos fizeram o mesmo. Entre alguns que se destacam, estão o filho e a filha do ex-primeiro-ministro do Paquistão, Nawaz Sharif, e Isabel dos Santos, a bilionária filha do ex-presidente angolano, José Eduardo dos Santos.

Senhores do tráfico de drogas e de armas, ladrões de banco, chefões da máfia, rainhas e corruptos também usam empresas de fachada para ocultar suas identidades e, junto com isso, dinheiro, bens e atividades ilícitas.

Possuir uma empresa de fachada é ilegal?

A resposta simples é não. A resposta longa e profunda é que depende de como ela é usada e de onde a empresa de fachada é criada ou incorporada. Esconder ativos roubados no exterior é claramente ilegal, mas comprar um iate de luxo com uma empresa de fachada pode não ser. (Olá, Paul Allen — da Microsoft — e Príncipe saudita Mohammed bin Salman Al Saud!). Advogados e contadores são ótimos em propor formas tecnicamente legais de gastar ou esconder dinheiro no exterior.

Como as empresas se beneficiam dos Paraísos Fiscais?

Por exemplo: uma grande empresa farmacêutica pode abrir uma nova organização nas Bermudas ou na Holanda e “vender” a essa entidade a patente de um medicamento lucrativo. A empresa-mãe pode então pagar uma grande taxa de licenciamento à empresa offshore, o que por sua vez permite que ela registre lucros menores em casa — e pague menos impostos. As empresas farmacêuticas evadem bilhões de dólares em impostos dessa forma, de acordo com a Oxfam

Todos os anos, as empresas escapam de pagar mais de 500 bilhões de dólares em impostos usando métodos como esses. Alguns nem chegam a pagar impostos em seus países de origem

Entre a grandes corporações que evadem impostos estão a Apple, a Johnson&Johnson e o Skype.

As corporações costumam dizer que empresas de fachada incentivam o investimento estrangeiro e fazem negócios que não seriam possíveis de outra forma. Muitos dizem que eles também incorporam offshore para evitar o pagamento de impostos duplicado para o mesmo lote de dinheiro. Especialistas dizem que essas defesas são exageradas e até míticas.

Para saber mais, assista nosso repórter Simon Bowers numa palestra do TED falando de como descobrir os segredos fiscais da Nike e da Apple nos Paradise Papers.

O que as empresas querem dizer quando afirmam que pagam os impostos devidos, onde são devidos?

Os especialistas chamam isso de “mantra fiscal”. Ele permite que as corporações pareçam ser bons cidadãos corporativos, mas não contradiz o fato de que muitas dessas empresas usam brechas (algumas das quais são posteriormente consideradas ilegais) para evitar o pagamento de impostos.

Como é possível abrir uma empresa de fachada?

Na maioria dos casos, é tão simples quanto enviar um e-mail ou fazer um telefonema. Você nem precisa sair de casa. Em grande parte dos casos vistos pelo ICIJ, os indivíduos pagam outra pessoa para fazer isso por eles. Há uma pequena indústria de especialistas offshore — incluindo Mossack Fonseca (já extinto), Appleby e Asiaciti, como relatamos anteriormente — ansiosos para fazer aquela ligação ou escrever aquele e-mail em seu nome (com a cobrança de uma taxa) para criar uma empresa de fachada.

As regras variam de acordo com a jurisdição, mas, de modo geral, você precisaria fornecer alguma forma de identificação e responder a perguntas sobre como ganhou seu dinheiro e o propósito do novo negócio. Os especialistas offshore com frequência omitem essas perguntas

Após a investigação dos Panamá Papers, por exemplo, advogados do mundo inteiro se esforçaram para tentar descobrir a identidade de seus próprios clientes.

Alguns repórteres chegaram ao ponto de criar uma empresa de fachada para si próprios. Ouça Planet Money da NPR fazer isso, aqui. Os parceiros do ICIJ na Univision’s Fusion abriram uma empresa de fachada em Delaware … para um gato.

Quem mais colabora com o funcionamento das empresas de fachada?

Consultores, gestores de fortunas e advogados tributários, que aconselham sobre a melhor forma de evadir impostos e esconder dinheiro das autoridades. Também, contadores — que assinam as auditorias das empresas de fachada.

Quanto custa abrir uma empresa de fachada?

Os custos dependem de onde será criada a sua empresa de fachada e de quem vai ajudar você a fazer isso. Alguns advogados, incluindo Mossack Fonseca, do Panama Papers, cobravam US$ 350 para constituir uma empresa. Outros escritórios de advocacia, incluindo o Appleby, do Paradise Papers, cobravam uma taxa fixa de quase 2 mil dólares em um paraíso fiscal popular, a Ilha de Man, e US$ 2.700 nas Bermudas

Quais são os diferentes tipos de empresas de fachada?

As empresas de fachada, corporações ou “entidades” existem de diversas maneiras. Embora as empresas e corporações sejam a ferramenta offshore mais comum (em Delaware, Ilhas Virgens Britânicas, Bahamas e Niue), outras entidades offshore incluem trustes (Jersey) e fundações (Panamá). Cada um tem uma regra diferente, de acordo com as leis internas de um paraíso fiscal. Trustes são particularmente abertos a abusos porque usam princípios jurídicos antigos para evitar declarar ou definir um proprietário. Os trustes dividem a possível propriedade em três: o proprietário legal dos bens, a pessoa que controla os bens e a pessoa que pode usufruir ou usar os bens.

Continua confuso? Esse é o ponto. Estruturas complexas confundem autoridades fiscais, policiais e jornalistas investigativos. Segue um exemplo de uma estrutura complexa configurada para laboratórios Abbott a partir de nossa investigação de Lux Leaks:

O que é um diretor nomeado e o que eles fazem?

Um diretor nomeado pode ser uma pessoa ou empresa paga para aparecer nos documentos oficiais. As empresas de fachada podem usar nomeados, também conhecidos como “manequins”, em vez do verdadeiro proprietário (ou proprietários) da empresa como diretores, para evitar divulgação pública. Os indicados executam tarefas administrativas, incluindo a assinatura de atas de reuniões da empresa, mas não têm poder real ou legal ou controle sobre a empresa de fachada. Um exemplo recente de empresa nomeada dummy foi o uso da Regula pelo Deutsche Bank.

Qual a diferença entre evitar impostos (“tax avoidance”) e a evasão de impostos?

De acordo com as definições tradicionais, a evasão fiscal é ilegal (um crime), mas o ato de evitar impostos (“tax avoidance”) usa brechas legais para reduzir ou evitar o pagamento de impostos. Cada vez mais, os especialistas argumentam que a distinção é confusa; muito (mas não tudo) do que é chamado de “tax avoidance” poderia ser criminalizado ou anulado se houvesse uma contestação no tribunal, mas grande parte disso permanece em segredo. Essa área cinzenta levou ao termo “tax avoision” (algo como “evitação” fiscal, em português).

O que é um proprietário beneficiário?

A pessoa ou empresa que, em última instância, possui a empresa de fachada, não importa quantos diretores nomeados ou empresas subsidiárias sejam colocados entre ela e a empresa de fachada.

Como o governo do meu país pode descobrir se sou proprietário de uma empresa de fachada?

Depende de onde você mora. Como regra geral, manter segredos offshore não é mais tão fácil como antes. Muitos governos, incluindo os Estados Unidos, podem receber informações automaticamente de paraísos fiscais e outros países sobre contas bancárias estrangeiras de seus próprios cidadãos. Outros países, especialmente os países em desenvolvimento, devem fazer solicitações individuais aos paraísos fiscais para obter informações. Muitas jurisdições, incluindo o estado americano de Delaware, se recusam a fazer registros públicos onde constem os proprietários beneficiários de empresas de fachada.

O que é uma “ação ao portador” e o que ela faz?

Uma ação ao portador permite que quem detém o documento físico (a “ação”) seja o seu proprietário legal, o que pode tornar alguém proprietário de uma empresa de fachada. A ação ao portador não é registrada sob nome de nenhuma pessoa, o que significa que a propriedade nunca é registrada. As ações ao portador foram proibidas em muitos países porque criminosos usavam essa falta de registro de propriedade para ocultar crimes e bens.

O que é o preço de transferência?

O preço de transparência ocorre quando duas empresas do mesmo grupo negociam entre si. Isso acontece, por exemplo, quando o Facebook Irlanda vende um serviço ou um ativo para o Facebook EUA. Um erro no preço de transferência é quando as empresas (supostamente, incluindo o Facebook) evitam ou sonegam impostos ao inflar ou deflacionar artificialmente o valor dos serviços ou ativos vendidos internamente

Quando dinheiro é guardado em contas offshore?

É impossível saber com certeza (essa é parte da questão: é segredo). O economista francês Gabriel Zucman estima que o equivalente a 10% do PIB global seja mantido no exterior — cerca 5,6 trilhões de dólares. O economista americano James Henry calcula até US$ 32 trilhões

Que investigações do ICIJ expuseram os paraísos fiscais — e aqueles que usufruem deles?

O Panama Papers, publicado pela primeira vez em 2016, é provavelmente a investigação mais conhecida do ICIJ sobre paraísos fiscais. Foi a maior colaboração jornalística da história (na época) e levou à renúncia de líderes mundiais, condenações criminais e mais de $ 1 bilhão de dólares em dinheiro recuperado. Ele se baseava no trabalho de nossas investigações anteriores, Offshore Leaks, Swiss Leaks e Lux Leaks. Nós retornamos com a Paradise Papers, West Africa Leaks, Mauritius Leaks e, em 2020, com Luanda Leaks.

Por que não há grande repressão contra as empresas offshore?

Por um simples motivo: alguns dos países mais poderosos do mundo são grandes beneficiários. O dinheiro offshore flui através dos territórios ultramarinos do Reino Unido; os estados norte-americanos de Delaware, Wyoming, Nevada e Dakota do Sul; e pela Suíça e Holanda

No entanto, desde que o Panama Papers foi publicado pela primeira vez, houve uma pressão nos EUA para eliminar o sigilo corporativo. Alguns especialistas se mantEm otimistas quanto a essa reforma; no ano passado, a Câmara dos Representantes dos EUA aprovou a Lei de Transparência Corporativa.

Escola precária não vai garantir educação de qualidade em escala, diz Daniel Cara

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Especialista defende constitucionalizar o chamado custo-aluno qualidade, já previsto na PEC do Fundeb

Depois de aprovada na Câmara, a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) do Fundeb chegou ao Senado com expectativa de passar sem alterações. A votação é prevista para quinta-feira (20), mas ainda há disputas, sobretudo em torno do chamado CAQ (custo-aluno qualidade).

O CAQ indica o financiamento necessário para chegar ao padrão a partir da realidade de cada escola, o que significa mais investimentos.

O texto prevê o CAQ como referência de padrão de qualidade das escolas. Isso exigirá, por exemplo, a busca por elevação do salário docente, número adequado de alunos por sala, escolas com biblioteca, laboratório, quadra e também luz e água potável.

A desigualdade é marca da educação brasileira. Quatro em cada dez escolas de ensino fundamental não têm biblioteca e 12% não têm banheiro no prédio. A média salarial do professor não chega à metade do que é pago em países da OCDE (em valores paritários de compra). Até no cenário da América Latina a situação do Brasil é desfavorável.

Críticos do CAQ indicam riscos de judicialização ao constitucionalizar o dispositivo. A Constituição, porém, já preconiza a “garantia de padrão de qualidade”. Previsto na lei do PNE (Plano Nacional de Educação), de 2014, o CAQ não foi operacionalizado até agora.

Para Daniel Cara, da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o CAQ garante controle do gasto e constitucionalizá-lo é a única forma de o Brasil ter uma escola de qualidade em larga escala. “Determina que é preciso garantir condições adequadas para o processo de aprendizagem. É aquilo que não pode faltar.”

A Campanha elaborou o CAQ a partir de 2002. Professor da USP (Universidade de São Paulo), Cara, 42, é seu principal defensor. Foi candidato em 2018 ao Senado pelo PSOL, mas não se elegeu.

O Fundeb é o financiador central da educação básica. A Câmara ampliou de 10% para 23% a complementação da União ao fundo, de forma gradual até 2026.

Por que o CAQ corre o risco de ser retirado no Senado? 

Muitos não entenderam. Ele é o materializador do padrão mínimo de qualidade, em que se afirma o direito de todos ter educação em um ambiente que respeite professores e estudantes.

O CAQ determina que é preciso garantir condições adequadas para o processo de aprendizagem, e isso significa determinar insumos, os ingredientes da qualidade.

De que insumos estamos falando? É uma lista?

É o que não pode faltar. Professores recebendo piso, que é o elemento principal, número adequado de alunos por turma, recursos pedagógicos, biblioteca, laboratório, quadra, banda larga, alimentação, transporte. E tem fatores ainda relevantes no Brasil, como água, banheiro, luz e esgoto.

Disseram que biblioteca não garante aluno leitor, mas a falta vai garantir? O CAQ é a garantia de igualdade de condições, como é no mundo todo. Mas, no Brasil, para a elite, a escola pública é sempre a escola do outro, nunca a do filho.

Quem veio de escola pública defende o CAQ, quem não estudou acha que é exagero mas esquece que falta dignidade nas escolas.

O CAQ leva em conta o gasto total com educação, mas o Fundeb representa parte dele. Não pode causar uma distorção a vinculação ao fundo?

O dinheiro novo do Fundeb vai ter de ser orientado para a qualidade das escolas, hoje não tem isso. Talvez não se alcançe o CAQ com os 23% de complementação, mas, com o CAQ, o recurso vai para a escola.

Prefeitos são favoráveis até por causa dos 5% da complementação que devem ser destinados para a educação infantil. Ele consolida estratégia de melhor uso do recurso na escola, evita corrupção, por isso Tribunais de Contas apoiam.

A definição do CAQ passou no CNE (Conselho Nacional de Educação), mas o parecer nunca foi homologado. Não há risco de constitucionalizar mecanismo que ainda não tem definição consolidada?

É o inverso: se não tiver na Constituição, nunca teremos escola de qualidade em escala. O parecer do CNE, de 2010, não foi homologado porque diziam que ele não garante efeito vinculante para implementação. Veio a lei do PNE e o CAQ entrou como o instrumento de sua realização.

A emenda do teto de gastos [que limita o aumento das despesas no Orçamento federal à inflação do ano anteiror] matou o plano e trabalhamos para que o Fundeb ficasse fora do teto.

Se o CAQ não foi implementado por norma do CNE, lei do PNE, tem de ir para a Constituição. Se não, garanto que não estará nas leis de regulamentação. A desculpa é sempre que falta na lei maior.

Vozes contrárias ao CAQ e ao aumento de recursos do Fundeb citam exemplos, como o do Ceará, que mesmo em contexto adverso alcançam bons resultados.

Escola precária não vai garantir melhoria de desempenho em escala. O Brasil há 200 anos aposta nisso e nunca deu certo.

O aprendizado deve orientar a política pública, mas muitas escolas não têm água potável. Aí pegam exceções, acham que a indignidade [das condições] das exceções é valiosa, e nunca se resolve o problema de 40 milhões de alunos.

Sobral, por exemplo, não tem escolas precárias. Se não tivermos esse mecanismo, São Paulo, município mais rico, vai continuar com escola de lata.

Gasto é sinônimo de qualidade? Há, de fundo, uma ideia de que enquanto não tiver 100% das condições não dá para cobrar melhoria?

Isso nunca foi nossa posição. Os professores tiram leite de pedra mesmo em péssimas condições. A escola pública é extremamente eficiente porque, com pouco, faz muito.

A questão com o CAQ é o que o Brasil quer como nação. Se quer respeitar o direito à educação e ser uma sociedade justa, economicamente próspera, precisa dar um passo além.

A médio e longo prazo vai haver uma revolução. Portugal priorizou a educação em 1974 e foi dar resultado em 2014. Certamente vai ter melhora no aprendizado das crianças que estudam em escolas com biblioteca, internet, laboratório, quadra.

Ao prever mais custos, o CAQ não pode desincentivar a inclusão de jovens fora da escola ou piora na evasão? 

Hoje não temos padrão e poucos gestores incentivam a busca ativa. A principal demanda dos alunos é um bom espaço escolar, como mostrou pesquisa do Porvir. E é tão óbvio.

Para o jovem da periferia, a escola é o espaço mais importante da vida, para aprender, interagir, se divertir. O jovem quer estar em uma escola de qualidade.

Vamos ter lei de regulamentação, um processo de transição para definição e depois para a busca do padrão de qualidade. E é preciso que o governo federal faça esforços técnicos e financeiros no apoio às redes.

Há críticas de que o CAQ pode ampliar judicialização. Como vê isso?

Estão querendo dizer que fortalecer a escola pública enfraquece o direito à educação, o que não faz sentido. O CAQ vai aumentar a força do direito à educação.

O Fundeb prevê mínimo de 70% dos recursos com salários, peso similar no CAQ. Há corporativismo, como acusam críticos?

O professor é a essência do processo educativo. Educação é o compartilhamento do legado humano e a qualidade é dada concretamente na relação entre professores e alunos.

Os 70% são uma conta na ponta do lápis. O Brasil tem de garantir escola que permita experiências, com profissionais plenos, por isso tem de ser valorizado.

Daniel Cara, 42
Graduado em ciências sociais pela USP, é mestre em ciência política e doutor em educação, pela mesma instituição. É professor da Faculdade de Educação da USP. Coordenou, de 2006 a 2020, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, da qual ainda é membro. Foi candidato ao Senado, por São Paulo, pelo PSOL nas eleições de 2018, mas não se elegeu

 

 

 

Globalização almejada até a chegada do vírus é inatingível, por Dani Rodrik.

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Miguel Lago e Pablo Peña Corrales

23.ago.2020 às 23h15

Há décadas, Dani Rodrik, professor de economia na Universidade Harvard, adverte sobre os perigos de uma globalização excessiva, que ameaçaria a democracia e a soberania nacional, e critica receitas clássicas de liberalização e desregulação para o desenvolvimento econômico.

Agora, o economista afirma que estamos “começando a perceber que o tipo de hiperglobalização que tentamos ter até a [chegada da] Covid-19 não é mais atingível”.

“Mas muitas dessas tendências nas cadeias de valor globais já estavam se estabelecendo há mais ou menos uma década.”

As ideias de Rodrik, consideradas por muito tempo heterodoxas, estão agora no centro do debate público. Uma delas, a teoria do trilema da economia global, diz que não se pode perseguir simultaneamente democracia, soberania nacional e globalização econômica.

Se a ideia é impulsionar a globalização, afirma o acadêmico, será necessário desistir do Estado-nação ou de políticas democráticas. Se o projeto for aprofundar a democracia, é preciso escolher entre integração econômica internacional e autodeterminação nacional. Por fim, se a soberania nacional for a prioridade, será necessário apostar na democracia ou na globalização.

Durante a crise da Covid-19, a globalização parece ter diminuído drasticamente. Esse movimento é temporário ou duradouro?

 Muitos indicadores econômicos mostram uma forte queda, e não sabemos ainda quanto tempo vai demorar para se recuperar. Mas o quadro geral é que muitas dessas tendências no comércio e nas cadeias de valor globais já estavam se estabelecendo há mais ou menos uma década. Após a crise financeira global de 2008, o comércio mundial começou a desacelerar a expansão das cadeias de valor globais, e começamos a ver uma regionalização cada vez mais forte.

Se observarmos a proporção das exportações no PIB, a China viu uma queda em torno de 15 pontos percentuais, e a Índia caiu algo como cinco pontos percentuais. Portanto, há tendências seculares em curso que nos afastam do que eu chamaria de “hiperglobalização”.

Nessa nova globalização, e diante da Covid-19, como ficará a mobilidade da mão de obra e a migração global? Mais limitada?

Penso que sim. Mas gostaria de salientar que os países estavam começando a limitar o fluxo internacional de pessoas. Nunca tivemos um regime internacional que regulasse e liberalizasse progressivamente a circulação de pessoas entre países, ao contrário do que ocorre com comércio de bens, serviços, capital e finanças.

Eu diria que, nos últimos 20 ou 30 anos, uma combinação de globalização crescente e tendências tecnológicas realmente afastaram as sociedades umas das outras. Tem havido muita insegurança, econômica, cultural, física e, agora, cada vez mais, de saúde.

O sr. disse que existem diferentes tipos de globalização.

Vivemos três globalizações diferentes desde o final do século 19, e acho que poderíamos facilmente imaginar diferentes variantes no futuro. Diferentes globalizações se distinguem pelos mercados em que a globalização ocorre. Com o padrão ouro no final do século 19, por exemplo, a globalização era uma em que não se tinha apenas capital, mas também livre mobilidade de trabalhadores, algo que não existe depois da Segunda Guerra, quando ela focou mais bens industriais.

O tipo de globalização que tivemos desde a década de 1990 restringiu cada vez mais o que os governos eram capazes de fazer em suas economias domésticas. A tarefa agora é visualizar uma globalização que será muito mais consistente com o tipo de diversidade que temos no mundo.

Precisamos alcançar um equilíbrio entre os ditames de uma economia mundial aberta e as preferências de diferentes nações para conduzir seus modelos econômicos e sociais.

Como podemos identificar quais áreas precisam de regras globais e quais áreas deveriam ser reguladas por determinação nacionais?

Há dois critérios que nos moveriam na direção da cooperação global. Um deles é se questionar se existem características de bens públicos. Se sim, haveria incentivos significativos para que os países ajam como passageiros clandestinos e gerem resultados muito negativos para o mundo como um todo se não houver regras globais ou disciplinas globais?

Duas áreas em que isto se aplica especialmente são, primeiro, a mudança climática, porque ela afeta a todos, mas nenhum país quer pagar o custo da descarbonização, e, segundo, a saúde pública, incluindo o desenvolvimento de vacinas e terapias. Curiosamente, a maioria das áreas econômicas em que temos realmente procurado criar regras globais não tem características de bem público global.

Os países têm interesse em estabelecer regulamentos financeiros adequados, políticas econômicas abertas e estabilidade macroeconômica. Portanto, os países relativamente bem governados tenderiam a perseguir políticas econômicas que também são boas para todos os outros.

Um segundo critério para a cooperação global é evitar políticas genuinamente mesquinhas. Elas são relativamente poucas: o abuso do poder de mercado, por exemplo, com países que produzem alguma mercadoria rara e podem aumentar os preços nos mercados mundiais, ou países que estabelecem paraísos fiscais para empresas fictícias. Se não tivermos bens públicos ou políticas mesquinhas, acho que o instinto deveria ser deixar os países escolherem o que querem fazer por conta própria.

Que tipo de coordenação global precisamos nas políticas de saúde?

Todo regime global enfrenta uma espécie de compromisso entre os benefícios das regras comuns e os benefícios da diversidade, ou a experimentação de regras.

Na saúde, é muito importante ter uma cooperação global em redes de informação e conhecimento. No caso da Covid-19, houve atrasos significativos no compartilhamento de informações, e outros países pagaram caro por isso. Outra grande área da saúde em que haveria benefícios significativos de uma cooperação global seria o desenvolvimento de vacinas.

Uma vez que a vacina é desenvolvida, o custo para utilizá-la é muito pequeno. Se tivéssemos um sistema de saúde pública global realmente bom, a pesquisa para a vacina seria realizada por meio de uma organização de saúde global.

Há outras áreas em que precisamos ser mais cuidadosos. Se você centralizar as recomendações de resposta [a crises], pode acabar coordenando políticas erradas, e às vezes há benefício em deixar os países seguirem seus próprios caminhos para que possam descobrir o que funciona melhor.

Um exemplo concreto disso é que, no início, a OMS [Organização Mundial da Saúde] foi bastante contrária ao uso de máscaras, o que acabou se revelando, em grande parte, um erro. Em um mundo onde a OMS fosse levada muito mais a sério e, assim, muitos mais países seguiriam suas recomendações provavelmente teríamos ficado em uma situação pior.

O trilema que o sr. desenvolveu sugere que os países só podem escolher dois elementos entre globalização, soberania nacional e democracia. A soberania nacional está no caminho para dominar essa trindade? 

A razão pela qual isso está acontecendo é que principalmente os populistas autoritários de direita têm entendido efetivamente a lógica do trilema. Eles aproveitaram as tensões que o trilema destaca para ganhar impulso político e não estão interessados em fortalecer a democracia, porque seus instintos tendem a ser autoritários.

Penso que a única maneira de sairmos dessa situação é esperar que tenhamos forças políticas progressistas, uma espécie de populismo de esquerda que possa não só capturar o terreno em termos de soberania nacional, mas também fazê-lo de uma forma que não prejudique as normas democráticas. Voltando ao trilema, você pode ter no máximo dois [dos três pontos] e certamente pode ter dois. Nós estamos tendo apenas um, e isso não é bom.

A reivindicação por soberania nacional acrescentou mais tensões políticas em organizações internacionais. É algo que temos que tolerar ou existem maneiras de alcançar uma globalização mais tecnocrática? 

Não creio que possamos ou devemos ter uma globalização tecnocrática. A economia, a saúde ou o meio ambiente não são questões puramente técnicas; elas têm ramificações de distribuição muito significativas. Impossível imaginar qualquer tipo de regime político que seja ou deva ser isolado da política.

A maioria das instituições de representação de responsabilidade é em nível local e nacional e, nas instituições globais, a cadeia de delegação democrática é muito longa. Essa é outra razão pela qual teremos muito cuidado ao delegar demais a organizações internacionais, pois isso tende a fortalecer interesses particulares que têm os recursos e a capacidade de influenciar essas organizações.

Estamos começando a perceber que, de fato, o tipo de hiperglobalização que tentamos ter até a Covid-19 não é mais atingível. Acho que isto poderia ser o tipo de motor de uma globalização mais multifacetada, mais contextual, mais flexível. Certamente também existem cenários ruins, e receio não poder ignorá-los. Depende um pouco de que lado da cama me levanto.

 

 

 

O mito dos gestores militares, por Rodrigo Zeidan.

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Encher de militares o governo e elevar o orçamento das Forças Armadas vai acabar mal, de novo

22/08/2020 – Folha de São Paulo

Treinados para a guerra, os militares vão conseguir derrotar seus inimigos na batalha pelo Orçamento: a população brasileira.

Hoje, o capitão está para continuar nossa grande tradição de ignorar os problemas reais e inventar inimigos imaginários, propondo um orçamento para a Defesa maior que para a educação.

Em 2018, o orçamento para a Defesa totalizou R$ 77 bilhões, dos quais R$ 67 bilhões foram executados. O governo de extrema direita não se fez de rogado, e, em 2019, com a economia crescendo 1% e a inflação baixíssima, o orçamento saltou para R$ 85 bilhões, dos quais R$ 75 bilhões foram executados, aumento de mais de 10%.

Pior: gastamos em tecnologia, manutenção e pesquisa? Não, 92% dos gastos são com pessoal da ativa e da reserva.

Tanto na época do golpe quanto no governo do capitão não há preocupação com a melhoria da economia ou real defesa do país, mas simplesmente uma busca por maiores soldos.

Durante as três primeiras décadas do século passado, as Forças Armadas representavam 22% das despesas públicas. Obviamente, esse percentual aumentou durante a Segunda Guerra Mundial, com pico de 37% em 1942.

Em 1963, sem inimigos externos (a não ser imaginários), gastávamos 16% do orçamento dos ministérios com defesa nacional. Mas a ditadura avançou sobre os cofres públicos. Em 1965, os gastos com as Forças Armadas já tinham saltado para 22% do Orçamento total. Oito anos depois, no auge da megalonamia do “milagre econômico”, as Forças Armadas recebiam 44% do total despendido pelo governo federal; o Ministério da Educação ficava com 10%.

Infelizmente, como os militares saíram pela porta da frente e parte do governo coincidiu com o ciclo natural do processo de industrialização, inventou-se por essas bandas a ideia de um “milagre econômico”, de 1968-1973, no qual a economia brasileira teria crescido a 11% ao ano. Cresceu mesmo, mas no contexto do maior crescimento da história do sistema capitalista no mundo (8% ao ano) e através da formação da dívida externa, que afundaria o país por quase 20 anos.

Os militares nunca foram bons gestores da economia. Surfaram a onda do crescimento mundial, enquanto gastavam como bem entediam. E isso sem nenhuma preocupação com pobreza ou desigualdade social.

A dívida externa começou a crescer a 20% ao ano já em 1964. Pegaram um país com dívida de US$ 3 bilhões (14% do PIB e dois anos de exportações) e entregaram algo impagável (mais de US$ 100 bilhões, 45% do PIB e quatro anos de exportações). O golpe de mestre foi culpar a crise externa e o FMI (Fundo Monetário Internacional), empurrando a conta para os governos seguintes.

Mas a realidade é que os militares lideraram processo de crescimento baseado em pirâmide financeira —pegavam novas dívidas para pagar os juros das anteriores, até que, em 1980, o choque Volcker acabou com a farra.

Paul Volcker, chefe do Fed, decidiu, numa tacada, acabar com a inflação americana jogando os juros nas alturas (a taxa básica chegou a 20%). O Brasil foi pego com as calças arriadas. Sem crédito, não tinha como pagar os juros da dívida. Logo vieram o calote e a hiperinflação.

Infelizmente, não aprendemos com a história. Encher de militares, mesmo que da reserva, o governo e validar o aumento do orçamento das Forças Armadas vai acabar mal, de novo.

É hora de abandonar o mito: os generais não conduziram bem a economia no passado e nem hoje saberiam fazê-lo.

Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ

Divaldo Pereira Franco, o mensageiro da paz

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Recentemente tivemos a oportunidade de assistir ao filme Divaldo Pereira Franco, o mensageiro da Paz, um dos grandes ícones do movimento espírita brasileiro, neste filme tivemos a alegria de conhecer um pouco da história e a trajetória de um brasileiro bastante interessante, aplaudido pelas milhares de pessoas, admirado e respeitado numa história de décadas de dedicação com o Espiritismo, responsável por um rastro de caridade, fraternidade e iluminação.

Neste filme, a trajetória deste brasileiro se confunde com movimentos de solidariedade e caridade, como destacou o codificador do movimento do Espírita, Allan Kardec, a caridade não é salvação, uma frase que sempre ecoou em seu espírito e ajudou na construção de uma sólida vivência entre os dois lados da vida. O filme nos mostra o surgimento de uma mediunidade enorme, Divaldo se caracteriza por inúmeros tipos de mediunidade, dotado de grande sensibilidade, vidência, oratória, incorporação, dentre elas, onde a relação entre os espíritos era constante e, para muitos, assustadora e esclarecedora.

A infância de Divaldo é marcada por brincadeiras, alegrias e sentimentos agradáveis, podemos caracterizá-lo como uma criança feliz, religiosa e trabalhador da Igreja Católica, constantemente próximo da oração e a devoção oriunda do cristianismo pregado pela Igreja. Sua família nos parece organizada e bem estruturada, nasce em uma casa de classe média, sem luxos materiais, sem posses materiais e sem privações cotidianas.

Desde pequeno, Divaldo convive com inúmeros espíritos, desde os encarnados de um lado, e de outros irmãos desencarnados, uma mistura crescente que, no começo, gerava grandes constrangimentos para o garoto baiano, levando-o a momentos pitorescos, além de momentos de grandes constrangimentos e desagradáveis, passando por humilhações e preocupações.

Ao assistir o filme, algumas questões se fazem presentes em minhas reflexões, quando nos deparamos com inúmeros espíritas, que desde pequenos passaram por grandes dificuldades, viam espíritos constantemente e eram vistos como mentirosos e detentores de desequilíbrios emocionais e psicológicos, sendo maltratados e humilhados. Nesta trajetória, passam a conhecer inúmeras pessoas que o auxiliam no seu cotidiano, pessoas que foram colocadas em seu caminho para orientação, irmãos que nos ajudam a compreender os fenômenos espirituais, seus medos e desesperanças.

O filme nos mostra a importância de uma vida centrada e equilibrada para a construção de uma sociedade melhor e mais consciente, onde a Doutrina Espírita tem um papel central na conscientização dos indivíduos e na compreensão de que a morte não existe e todos nós nos encontraremos num outro momento, numa outra situação e numa outra oportunidade, neste momento as pessoas devem construir o crescimento espiritual, desenvolvendo valores mais consistentes e verdadeiros.

O filme descreve superficialmente o episódio do suicídio de sua irmã, um momento que, no meu ponto de visto, deveria ser trabalhado com mais intensidade, ainda mais num momento como este, marcado pelo incremento dos suicídios no mundo contemporâneo, estes crimes estão aumentando de forma acelerada, gerando medos e preocupações, impactando novas e estruturadas políticas públicas de conscientização, neste momento, este assunto deve ser analisado com seus pormenores. No decorrer do filme, percebemos o suicídio de sua irmã, ainda mais quando o padre destaca que as pessoas que se suicidam são vistos com reservas da igreja romana, momento que sua mãe se revolta com os ensinamentos desta religião tradicional, que acreditam piamente que os suicidas não podem ser abraçados com as orações, com as missas e com as santidades, que acreditam que todas as pessoas que descaminham nos extremos do suicídio estão condenados para o inferno. Numa das passagens, o filme mostra o suicídio de sua irmã, destacando que a morte não existe, a morte é vista na doutrina espírita como algo natural, nunca como o fim, mas para um novo momento da vida e da evolução dos indivíduos, sem corpo físico, sem matéria, mas a vida nasce ou renasce do mundo espiritual.

Um dos pontos mais interessados na trajetória da vida do médium baiano, é o papel central de sua mãe, cuja importância e relevância em sua vida é crucial, seu apoio, estímulo e o desapego constante, auxiliando na mudança para Salvador e aceitando que seu papel não era ficar ao seu lado, mas de todos aqueles que precisam de seu auxílio e solidariedade.

O encontro com Chico Xavier nos traz informações importantes para o médium baiano, neste momento Divaldo faz inúmeras perguntas e recebe esclarecimentos e indagações pessoais, uma delas é que não devem trabalhar juntos, cada um destes médiuns devem ser vistos como um poste para iluminar a sociedade, com isso, o Chico Xavier nos mostra, que devem residir em locais distantes, para auxiliar uma maior quantidade de pessoas, levando para a coletividade as luzes para aqueles que precisam de esclarecimento e equilíbrio, fundamentais para o desenvolvimento individual e a conscientização espiritual.

No filme Divaldo Pereira Franco, o mensageiro da Paz, percebemos uma amizade afetuosa e desinteressada entre estes vultos do movimento espírita brasileira, no decorrer das trajetórias entre estes dois médiuns, percebemos que o médium baiano sempre buscou estímulos e auxílio nos conselhos de Chico Xavier, que sempre foi visto como o baluarte do movimento espírita nacional. Embora percebamos no filme, muitos no movimento espírita acreditam existir uma competição entre os dois médiuns, na minha visão o filme acertadamente não entra neste conflito que apenas faz mal ao movimento, criando desestruturação, desavenças constantes e desagregação.

Na trajetória, temos contato, com a perseguição de um irmão que persegue Divaldo Pereira Franco de forma renitente, um irmão que caminha ao lado durante muitas encarnações, obsediando e perseguindo de forma inclemente, humilhando-o, maltratando-o e desvirtuando sua caminhada cotidiana. As perseguições espirituais estão na trajetória do médium baiano, muitos momentos o perseguidor leva Divaldo a situações de humilhações e constrangimentos, compreender e se educar, melhorando seus sentimentos e energias nos capacitam para se melhorar espiritualmente e, com isso, auxiliará seu companheiro desencarnado, ainda muito preso aos rancores e aos ressentimentos. No decorrer do filme, percebemos os contatos entre Divaldo e seu perseguidor, aos poucos as conversas entre os dois melhoram intensamente, surgindo diálogos interessantes e esclarecimentos, com auxílio espiritual e crescimento mútuo, neste momento percebemos a transformações nestes dois indivíduos.

Numa passagem do filme, Divaldo Pereira Franco perde um de seus irmãos, que ao desencarnar passa a obsediá-lo, impedindo seus passos e prostrando-o numa cama, queixando dificuldades físicas de locomoção, sendo amparado por alguns trabalhadores do movimento espírita da cidade, que visitam sua casa, recebem uma vibração carinhosa, além de um passe energético e inúmeras orações. Neste momento percebemos a presença, em espírito, de seu irmão, que mesmo não tendo interesse de causar-lhe constrangimentos, sua influência espiritual desequilibrada está causando problemas físicos e emocionais. Depois da interferência dos trabalhadores espíritas e, principalmente, dos amigos espirituais, liderados por Joanna de Angelis, sua mentora espiritual, o irmão desencarnado é retirado do local e conduzido a uma comunidade espiritual no mundo imaterial, libertando-o desta obsessão e levando-o a buscar as explicações para suas dificuldades intimas e desequilíbrios constantes que o afligiam no cotidiano.

O filme nos mostra, em alguns momentos, trabalhos mediúnicos e conversação dos espíritos obsessores, momentos de incorporação de espíritos mais agressivos, marcados por ódios, mágoas e centrado na vingança de irmãos que, durante séculos, perseguem e maltratam como forma de se vingar, como se esta vingança lhe trouxesse grandes prazeres duradouros e uma maior sensação de bem-estar, sentimento passageiro e insignificante.

Numa da passagem do filme, percebemos uma conversa entre o médium baiano e a mentora Joanna de Angelis, nesta conversação, o médium deixa clara o desejo de constituir sua família, com esposa e filhos. Neste momento, a mentora deixa claro que nesta existência, não faz parte da programação de ter filhos e constituir uma família sanguínea, mas o mundo espiritual tinha outra programação para o médium e orador espírita baiano, posteriormente será pai de inúmeras crianças e adolescentes abandonados, deixado ao relento e sem perspectivas e oportunidades de vida.

O filme destaca o crescimento contínuo de um menino inexperiente e um dos maiores médium da humanidade, dotado com grande oratória, responsável por mais de milhares de palestras, entrevistas e conferências em mais de cinquenta países, tendo escrito mais de 250 livros, alguns psicógrafos por inúmeros espíritos, desde Victor Hugo, Joanna de Angelis, Manoel Philomeno de Miranda, dentre outros, cujos recursos oriundos destas obras foram todos convertidos para todo o trabalho espiritual, acolhendo as mais variadas pessoas, desde crianças, adolescentes e adultos, um trabalho de grande valor e responsabilidade.

Devemos destacar que o lado orador é pouco enfatizado no filme Divaldo Pereira Franco, o mensageiro da Paz, afinal o médium é considerado uma dos maiores oradores da humanidade de todas as épocas, o filme destaca um momento constrangedor e quase humilhante, onde o médium recebe um convite para fazer uma palestra numa outra casa espírita, neste momento percebe a influencia de seu perseguidor espiritual para lhe causar constrangimentos e humilhações, embora percebemos os medos que dominava seu espírito e sua influência negativa com o médium baiano é socorrido pelo sua mentora espiritual Joanna de Angelis e o grande espírito de Humberto de Campos, que se aproxima espiritualmente e inspira mentalmente as palavras, recebendo elogios dos presentes. Depois deste momento, seus amigos espirituais forçam os estudos sistemáticos da Doutrina Espírita, levando a leitura constante de todos os livros da codificação.

O filme deve ser assistido por todos as pessoas do movimento espírita e mais, para todos aqueles que querem ter contato com o pensamento espírita, a vida e a obra de Divaldo Pereira Franco serve como instrumento de iluminação para todos os corações, mostrando as dificuldades que estão presentes na trajetória de todas as pessoas mas, muitas pessoas conseguem superar estas dificuldades, os medos e as preocupações do cotidiano, vencendo a vida e deixando como legado uma experiência de sucesso e de superação.

 

 

‘Está surgindo uma arte populista de governança’, diz cientista político

Líderes autoritários que se preocupam com gestão podem usar pandemia para ter mais poderes, analisa alemão Jan-Werner Müeller

Entrevista com Jan-Werner Müeller, cientista político

Guilherme Evelin, O Estado de S.Paulo – 15/08/2020.

Líderes populistas “inteligentes” e preocupados com a gestão de seus governos, e não só com “guerras culturais” podem aproveitar a pandemia do novo coronavírus para concentrar poderes e reforçar seu autoritarismo, à maneira do que está fazendo Viktor Órban na Hungria. O alerta é do cientista político alemão Jan-Werner Müeller, uma das principais referências mundiais no debate sobre a ascensão de líderes considerados populistas e que chegaram ao poder surfando ondas de revolta contra o sistema político, como Donald Trump, nos Estados Unidos, e Jair Bolsonaro no Brasil.

Depois de escrever O que é populismo?, lançado no mesmo ano da eleição de Trump, Müeller, professor da Universidade Princeton, está fazendo pesquisa para um novo livro. Nele, vai discutir propostas para revigorar os partidos políticos e a imprensa – dois pilares cruciais, segundo Müeller, das democracias liberais, mas ambos em crise. Em entrevista, por e-mail, ao Estadão, ele discutiu possíveis efeitos da pandemia para líderes populistas.

Acho que isso dependerá de muitas variáveis e os contextos nacionais ainda são muito importantes. Líderes populistas inteligentes, com conhecimento de governo e de administração – como Viktor Orbán, na Hungria – estão aproveitando a situação para consolidar seu poder. Mas populistas interessados principalmente na guerra cultural e profundamente desinteressados das questões de governo e da administração – como Trump e Bolsonaro – não estão indo bem.

  • A resposta à pandemia ditará quais líderes populistas permanecerão no governo e quais vão concentrar mais poder? 

Os populistas experientes usaram o momento para aumentar seus poderes – não há dúvida sobre isso. Mas não há garantia de que, apesar de toda a repressão, eles vão se manter. Estamos apenas começando a ver o início das consequências econômicas da pandemia. E os cidadãos podem ficar muito insatisfeitos com líderes que dizem que lutam por “pessoas comuns”, mas operam, na realidade, como cleptocratas e apenas reforçam ainda mais as políticas neoliberais.

  • A menos de três meses da eleição presidencial nos Estados Unidos, Joe Biden, do Partido Democrata, é hoje o favorito. Por que a guerra cultural promovida pela direita americana até agora não produz os mesmos resultados de outras campanhas eleitorais? 

É um momento muito perigoso e, ao mesmo tempo, de muita esperança nos EUA. É perigoso porque, num sistema bipartidário, um dos partidos passou a se opor a princípios democráticos básicos. Trump não é a causa, mas um sintoma da crise do Partido Republicano, que virou uma agremiação dedicada ao populismo plutocrático. Ao mesmo tempo, é um momento esperançoso porque a mensagem de movimentos como o “Black Lives Matter” passou a ecoar. Os observadores têm razão em dizer que Biden dificilmente é uma figura progressista inspiradora. Mas Lyndon Johnson ou, até certo ponto, Franklin Delano Roosevolt também não eram. O que importa é que eles promoveram mudanças porque os movimentos sociais continuaram a pressioná-los.

  • Qual pode ser o impacto político de uma eventual derrota de Trump para outros movimentos populistas de direita no mundo?

É ingênuo pensar que uma derrota de Trump necessariamente prejudicará outros autoritários populistas. Repito que os contextos nacionais são importantes. Uma coisa, porém, provavelmente mudará: os EUA deixarão de sinalizar aos ditadores que a democracia não importa.

  • No Brasil, Bolsonaro também tem resultados ruins no enfrentamento à pandemia, mas mostrou resiliência política. Quão importante é a guerra cultural como ferramenta de luta política? 

Os populistas dizem que eles, e somente eles, representam o “verdadeiro povo”. Para eles, no entanto, o “povo” não é formado por todos. Minorias consideradas indesejadas ou pessoas com ideias de esquerda são excluídas. O modelo político dos populistas é dividir as pessoas e marcar uma fronteira entre quem realmente pertence ao “povo” e quem não. A guerra cultural é realmente muito importante para eles, mas, por si só, não vence eleições.

  • A pandemia do coronavírus ocorre em um ambiente em que a desinformação é promovida com fins políticos e a imprensa está sendo atacada por líderes autoritários. Que efeito a pandemia terá para o jornalismo profissional? 

Em tese, a pandemia deve levar os cidadãos a perceber o quão importante são as notícias precisas (não apenas os fatos, mas também as interpretações de especialistas). O jornalismo que reporta as notícias locais é especialmente importante e sofreu tremendamente porque Google e Facebook acabaram com seu modelo de negócios baseado na publicidade. Essa percepção abstrata, porém, não é, obviamente, suficiente; é preciso haver uma pressão política por novas regulamentações – como tributar o Google e o Facebook para que noticiários locais sejam subsidiados de forma adequada.

  • Bolsonaro não tem partido para apoiá-lo, mas seu governo está cheio de oficiais das Forças Armadas. Isso aumenta o risco de uma deriva autoritária no Brasil?

De maneira mais geral, diria que estamos vendo o surgimento de uma arte populista de governança – resultado do fato de que os líderes populistas também podem aprender uns com os outros. Na maioria das vezes, os militares têm sido marginais nesta nova arte (ou foram conscientemente subjugados, como no caso da Turquia). Os populistas têm preferido colonizar a administração do Estado e usar a economia para exercer poder, por meio de redes clientelistas.

  • A oposição a Bolsonaro permanece fragmentada. Isso joga a favor de líderes autoritários?

Em geral, uma oposição deve ser unida – essa continua sendo uma das lições importantes das transições para a democracia nas décadas de 1970 e 1980. Mas há também uma armadilha: uma situação de “todos contra um, um contra todos” pode parecer confirmar a retórica dos populistas de que o establishment está fechando fileiras contra os recém-chegados, a fim de preservar seus privilégios corruptos. Portanto, uma oposição inteligente se unirá quando se trata de defender o básico da democracia, mas saberá manter diferenças políticas normais e não se envergonhará de apontar contrastes entre si.

  • Quais serão os principais aspectos a serem observados no futuro para verificar a força das democracias liberais no mundo?

Acho que precisamos prestar mais atenção às instituições que, desde o século 19, foram consideradas cruciais para fazer funcionar a democracia representativa: partidos e imprensa livre. Precisamos ao mesmo tempo reinventar como essas instituições são financiadas e precisamos torná-las mais abertas, e não menos abertas, aos cidadãos. Não sou tão pessimista quanto alguns observadores que pensam que as redes sociais ou os partidos políticos baseados em plataformas da internet significam o fim da democracia. Acredito que precisamos pensar em novas regulamentações para os partidos e para a imprensa que estejam alinhadas com os padrões democráticos básicos.

Neoliberais versus Desenvolvimentistas: uma falsa dicotomia.

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O Brasil sempre se caracterizou como o país do futuro, desde anos 1970 o Brasil notabilizou sua fama na sociedade mundial, muitos analistas políticos acreditavam que o século XXI levaria a sociedade brasileira para o panteão das maiores economias do mundo, crescimento econômico e social levaria o país ao desejado desenvolvimento, com melhorias na qualidade de vida, incremento na renda agregada per capita e uma maior equidade social, com maior autonomia e avanços científicos e tecnológicos.

O debate entre os liberais ou neoliberais de um lado e desenvolvimentistas de outro, está sempre nas discussões entre os economistas, cientistas sociais ou formuladores de análises econômicas. Os neoliberais defendem uma redução do Estado na sociedade, visto como o grande responsável pelas intempéries da economia brasileira, desde a inflação, as taxas elevadas, ineficiência do Estado e baixa eficácia dos serviços públicos, marcados pelos quadros de funcionários remunerados acima dos trabalhadores da inciativa privada, nos cálculos em média os servidores recebem mais de 67% dos rendimentos dos trabalhadores das empresas privadas. De outro lado, percebemos os desenvolvimentistas, que defendem um papel estratégico para a sociedade com políticas anticíclicas, atuando constantemente para reduzir os desequilíbrios dos mercados, direcionando os investidores e abrindo novas perspectivas para os setores produtivos, este debate não é moderno, mas recorrente e contínuo, colocando em grupos diferentes e interesses específicos, gerando instabilidades e incertezas crescentes, impediam novos investidores na sociedade brasileira e levando os investidores a sempre pensarem no curto prazo, deixando de lado o planejamento no longo prazo.

Ao analisar esta discussão na sociedade brasileira, percebemos que o debate intelectual é imensamente desonesto em seus contentores, uns defendendo interesses com poucas comprovações científicas e metodologias poucos transparentes buscando seus interesses ideológicos imediatos, com isso, percebemos como a ciência econômica vem perdendo espaço na sociedade, deixando as análises históricas e sociológicas e direcionadas para os cálculos matemáticos, concentrando na econometria e nas estatísticas, criando novos modelos que transformam os seres humanos em variáveis secundárias, deixando de lado as reflexões filosóficas e as estruturas políticas e antropológicas.

Neste embate, as conversas servem apenas para defender suas ideologias, se defendem o Estado devem ser vistos como comunistas ou esquerdistas, nestas reflexões os que defendem o desenvolvimentismo são pichados de corruptos e ineficientes, destacando a degradação moral, não importa a discussão científica, todos os dotados de pensamentos contrários ao seu grupo político devem ser agredidos, maltratados e detratados verbalmente. Neste momento os liberais degradam os desenvolvimentistas e estes últimos recorrem aos mesmos expedientes, falando alto, gritam e partem para palavras agressivas e deseducadas.

Os liberais apresentam ideias interessantes, a privatização e a diminuição devem ser defendidos por todos os grupos, o Estado gigante podem trazer ganhos monetários para alguns grupos mais estruturados, são os mais capacitados para influenciar seus interesses imediatos, com isso, garantem para este grupo retornos polpudos e riquezas elevadas. O pensamento me parece bastante limitado e ingênuo ao acreditar que, os extrair o Estado, garantirá ganhos constantes para toda a coletividade, muitos grupos sociais menos aquinhoados precisam constantemente das políticas públicas, serviços governamentais e atuação dos órgãos do Estado para garantir a construção de uma sociedade menos desigual e capacitadas para sobreviver neste ambiente marcado pela competição, pela concorrência e o crescimento exagerado do egoísmo e dos interesses imediatos.

A defesa inconsequente do pensamento liberal garante os grupos mais capacitados nos embates da economia globalizada, elevando as oportunidades para os setores mais aquinhoados, capacitando os setores mais bem nascidos em detrimento dos grupos mais fragilizados, com isso, o pensamento liberal aprofunda uma sociedade mais desigual, reduzindo as oportunidades de grande parte da sociedade, aumentando as desigualdades sociais, aumentando da degradação do trabalho e incrementando as desesperanças.

Os desenvolvimentistas argumentam que exista um papel fundamental para o Estado, acreditando que sua atuação numa sociedade em constante transformação é relevante para estimular os setores produtivos, capacitando os trabalhadores, motivando e estimulando as empresas, os fortes investimentos em ciência e tecnologia, sendo assim, a atuação do Estado deve ser profissionalizada para angariar novos mercados na economia internacional e garantindo novos produtos para conquistar países, regiões e continentes.

Defender o papel do Estado na sociedade não deve se fechar pelas suas ineficiências e seus desperdícios, cabendo aos instrumentos governamentais fiscalizar os gastos públicos, garantiam a todos os órgãos de regulação utilizar análises constantes, transparências e controles rígidos para que todos os recursos públicos, sempre escasso, continuem servindo os cidadãos, as empresas e todos os entes governamentais. A transparência é fundamental para o Estado contemporânea, os instrumentos jurídicos devem estar aptos para fiscalizar todas obras e investimentos sociais, instituições do Estado devem analisar os gastos, tais como a Receita Federal, o Tribunal de Contas, o Ministério Público, a Mídia, as universidades e a opinião pública, o envolvimento de todos os entes públicos e privados são fundamentais para a construção de um novo modelo de desenvolvimento social.

Neste momento, percebemos o tímido investimento de instituições de fomento, tais como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), uma instituição de grande relevância para a economia brasileira, cujo papel está destoando neste momento de grandes instabilidades e incertezas, marcadas pela pandemia, crises econômicas e sanitárias. De posse dos dados, percebemos que o BNDES sempre desempenhou um papel crucial para a sociedade, neste momento está a quem do seu papel histórico, deixando um vácuo de investimentos de médio e longo prazo, como estão sendo com suas coirmãs de outras nações, como a KFW Alemã ou a KBD da Coréia do Sul, duas importantes instituições que investem grandes recursos e priorizam investimentos nacionais, produção local, exportações com impactos sociais para toda a coletividade. Outro ponto central neste momento de pandemia e grandes instabilidades, faz-se necessário, destacar que o BNDES deve assumir um papel crucial, infelizmente os seus críticos estão sendo criminalizando o banco, disparando equivocados e buscando internamente medidas para diminuir seu papel na sociedade nacional, bancando auditorias e criminalizando contratos, prendendo funcionário, degradando a moral da diretoria, mesmo assim, as auditorias independentes não conseguiram degradar a atuação do banco como agente de investimentos no longo prazo e impulsionando os investimentos nacionais.

Neste momento, percebemos que os defensores do pensamento liberal estão perdendo o embate no interior do governo federal, embora acredite que muitas teses defendidas pelos seus defensores, percebemos que, num momento de pandemia, marcada por grandes investimentos em todas as nações, os defensores do liberalismo insistem em abertura econômica, austeridade, reformas liberalizantes, redução dos encargos e dos benefícios sociais, neste momento de grandes instabilidades, suas ideias são insuficientes para alavancar a economia brasileira, como nos mostra claramente desde 2015, quando desde então, as políticas de austeridades e tentativas constantes de privatizações, além de reformas trabalhistas e previdenciária, a economia ainda está totalmente desorganizada, com demanda reduzida, queda considerável do consumo interno, incremento no desemprego, aumento da falência, estamos flertando com o caos generalizado.

O grande problema não é o embate entre os dois grupos de economistas sobre a estratégia de condução da política econômica, ambas apresentam características importantes para a construção do planejamento da economia nos próximos anos, ninguém deve se opor a um Estado sólido nas suas questões fiscais, orçamento equilibrado, serviços públicos eficientes, empresas estratégicas consolidadas e organizações de Estado bem geridas e conscientes de seu papel social para a coletividade, onde todos os agentes econômicos e políticos precisam ter consciência de que o desenvolvimento não se faz individualmente e num período de quatro anos, mas devem ter consciência de que o desenvolvimento econômico perdurará por muitas décadas, melhorando o bem-estar social de todos os grupos.

Os liberais estão corretos quando fazem uma crítica sobre o Estado brasileiro, suas intervenções crescentes e suas ineficiências reforçam este nível de subdesenvolvimento, gerando cargas tributárias elevadas, em torno de 34% do produto interno bruto, número elevado a um país de nível de desenvolvimento, mas incapaz de gerar serviços públicos de alta qualidade, degradando as questões sociais e aumentando a desigualdade. Como destacou Bráulio Borges, um dos coautores do livro Contas Públicas no Brasil: “O Estado brasileiro, com o nível de arrecadação de hoje, em torno de 33% do PIB, deveria prover um bem-estar médio muito mais alto do que efetivamente entrega. Ou agente deveria ter uma carga dez pontos percentuais menos para entregar o nível de bem-estar que a gente constata nos nossos dados”.

Estamos num momento de grandes transformações na sociedade brasileira, uma reestruturação seria urgente e necessária para economia, trazendo novas oportunidades no pós-pandemia. A reforma tributária deve ser priorizada neste período de crise sanitária, entendendo que o sistema é muito mal estruturado, marcado por ineficiências crescentes, que oneram a produção, penalizam o consumo e perpetuam as desigualdades sociais. Como percebemos nos dados disponibilizados no livro Contas Públicas no Brasil, no artigo escrito pelos economistas Guilherme Ceccato e Pedro Jucá Maciel, ambos do Tesouro Nacional, o Brasil apresenta carga tributária semelhante à do Reino Unido, mas tem uma capacidade de reduzir a desigualdade inicial de renda que é a metade da verificada no país europeu. Como destacam: “Entre os motivos estão uma carga tributária regressiva, baixa focalização das políticas sociais para a população mais pobre e, principalmente, elevadas transferências para a parcela mais rica da população”. Como os pesquisadores, no Brasil, os 10% mais ricos são beneficiados com 20% das transferências públicas, como aposentarias e pensões. No Reino Unido, os 10% recebem 2,3% das transferências.

Os dados acima nos mostram que o debate intelectual dos economistas neste embate entre liberais/neoliberais e desenvolvimentistas é desonesto e enviesado, uns defendem mais gastos em investimentos governamentais que aprofundem estas desigualdades e, muitas vezes, em critérios eficientes, gerando mais iniquidade e concentração da renda em um pequeno grupo de rentistas. De outro lado, defendem menos Estados e mais Mercados, como se a retirada dos investimentos governamentais fosse substituída por investimentos da iniciativa privada. Na história econômica brasileira isto nunca ocorreu, na verdade, os dispêndios oriundos do mercado acontecem depois dos investimentos públicos, estes últimos são fundamentais para orientar os recursos da iniciativa privada.

Neste pandemia e crise generalizada na sociedade brasileira, um debate honesto cientificamente orientado é fundamental para que consigamos superar este momento de pandemia, o fortalecimento das instituições, a participação dos sindicatos e representantes dos trabalhadores, dos empresários e federações ou confederações, devem auxiliar para a população, pactuando em prol do emprego, estimulando a renda e fomentando a demanda, sem elas, nossa recuperação será limitada e ineficiente, levando o caos generalizado para toda a coletividade, incrementando a exclusão, a desigualdade e aumentando a violência social.

 

 

Libaneses não se veem como parte de uma mesma nação, diz escritor

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Para Amin Maalouf, divisão do poder entre religiões acirrou sectarismo e está no cerne da crise

Patrícia Campos Mello – Folha de São Paulo -13/08/2020

“Nasci com boa saúde nos braços de uma civilização que morria…” Assim o franco-libanês Amin Maalouf começa seu último livro, “O Naufrágio das Civilizações”, recém-publicado no Brasil pela editora Vestígio.

Maalouf, que nasceu no Líbano e vive na França há mais de 40 anos, afirma acreditar que as sucessivas crises políticas que tomaram conta de seu país natal têm como cerne a divisão sectária.

“As pessoas no Líbano, hoje, têm muito mais vínculo com suas comunidades [xiitas, sunitas, cristãos, drusos], não se veem como pertencendo à mesma nação”, diz à Folha o escritor, que ganhou o prêmio Goncourt e ocupa na Academia Francesa a cadeira que foi de Claude Lévi-Strauss.

O primeiro-ministro do Líbano, Hassan Diab, renunciou na segunda-feira (10), seis dias após a explosão em Beirute que deixou mais de 220 mortos e desencadeou uma nova onda de protestos no país, que vive recessão econômica profunda e crise política.

Maalouf critica o sistema de cotas instituído após a guerra civil (1975-1990), que reserva posições no governo e no Parlamento para representantes de acordo com as diversas religiões do país.

Tradicionalmente, o primeiro-ministro é sunita, o presidente é cristão e o líder do parlamento é xiita —mas há reservas em todo o serviço público.

“O sistema fez com que as pessoas ficassem ainda mais comprometidas apenas com suas comunidades, mais reféns dos líderes de suas comunidades que, por sua vez, aliam-se a outros países que então exercem influência sobre o país”, diz o escritor.

O senhor acredita que “O Naufrágio das Civilizações” pode ser uma previsão de conflitos internacionais que estão por vir, da mesma forma que seu livro de 1998, “Identités Meurtrières” (identidades assassinas, em tradução livre), acabou prenunciando o choque entre árabes e ocidentais que culminou nos atentados do 11 de Setembro? Da mesma forma, sua obra de 2008, “O Mundo em Desajuste”, anteviu o colapso da confiança global que se deu em meio à crise financeira?

O livro não é uma predição, é uma descrição do mundo que temos hoje, do naufrágio moral e político por causa de governos e movimentos que não estão equipados para liderar nações neste momento complicado. Não tenho dons premonitórios, sou apenas uma pessoa que está sempre observando o mundo cuidadosamente.

Meu pai era jornalista, eu trabalhei em jornal. Minha paixão é examinar o mundo. Em muitas ocasiões, as pessoas simplesmente deixam de enxergar o óbvio. Por exemplo, não enxergaram que o problema identitário não ia ficar restrito ao Oriente Médio e se transformaria em uma questão global, precisaram testemunhar os atentados do 11 de Setembro para acreditar.

Da mesma maneira, tiveram de ver o colapso financeiro de 2008 para entender a desordem do mundo. Os três livros mostram a importância do Oriente Médio nesses contextos. Não é que tudo tenha começado em minha terra natal. Mas o Levante tem um papel especial no mundo —é onde as três maiores religiões tiveram origem. Se tivéssemos, naquela parte do mundo, sociedades em que as pessoas vivessem juntas de forma pacífica, isso mandaria uma mensagem para o mundo de que isso é possível. O fato de o Levante passar por tantos conflitos, continuamente ao longo da história, espalha ideias e sentimentos negativos. Essa região, onde eu nasci, acabou espalhando a pior mensagem possível, de que não podemos viver juntos e brigamos o tempo todo.

A que se devem as sucessivas crises políticas que tomaram conta do Líbano nos últimos tempos?

O Líbano tinha uma grande possibilidade de ser um local onde pessoas de diferentes religiões viviam juntas, em uma sociedade moderna, e, por alguns anos, parecia que isso estava acontecendo. Mas esse arranjo entrou em colapso, e agora temos uma crise muito grave. Por quê? Bom, para começar, a situação regional não é favorável. Sempre me lembro da frase de um líder polonês, reagindo a questionamentos sobre a influência soviética sobre o seu país, que teria dito “precisamos lembrar que a Polônia não é na Austrália”.

Da mesma maneira, o Líbano não é uma ilha no Pacífico, vive em uma região problemática, onde há vários países competindo para ganhar influência. Um enorme problema é a lealdade às diferentes comunidades. É preciso transformar essa lealdade a diferentes comunidades [xiitas, cristãos e sunitas, que dividem o poder no Líbano] em uma lealdade a uma nação de todos. Os governos dividiram o poder entre as diferentes comunidades, mas o sistema de cotas revelou ser perverso, porque não deixava as pessoas superarem as lealdades a suas comunidades, as mantinha reféns dos líderes de suas comunidades.

O senhor acha que, para resolver as crises do Líbano, seria necessário acabar com o sistema de partilha de poder instituído após a guerra civil?

Eu acho o sistema ruim, mas não acredito que possa ser mudado agora. Os governos deveriam ter agido de forma diferente muitos anos atrás, formando uma sociedade em que os jovens se sentem membros da mesma nação, que querem proteger e trabalhar por sua nação. Se mudarem isso hoje, ou não fará nenhuma diferença, ou pode descambar em conflito sectário aberto, porque as pessoas estão totalmente vinculadas a suas comunidades.

A divisão de poder foi uma ideia razoável na época, fazia sentido reservar certos cargos para determinadas religiões. Assim, não haveria disputas entre cristãos e sunitas, por exemplo, pelo cargo de premiê. As disputas eleitorais seriam sempre entre integrantes da mesma comunidade, o que reduzia potencial de conflitos. Mas isso foi desenhado para ser uma medida provisória, até que a mentalidade das pessoas mudasse e elas estivessem preparadas para ter um sistema democrático mais eficiente.

Mas, em vez de preparar a população para isso, o sistema fez com que as pessoas ficassem ainda mais comprometidas apenas com suas comunidades, mais reféns dos líderes de suas comunidades que, por sua vez, aliam-se a outros países que então exercem influência sobre o país. O Líbano já foi um país diferente, onde havia um convívio entre as diferentes religiões, que preservavam suas histórias, sem perder a ideia de nação. Quando eu era jovem [o escritor deixou o Líbano no início da guerra civil, aos 27 anos], eu olhava para outros países e via o sectarismo como uma coisa arcaica, pensando que outros países deveriam mudar e ter um arranjo como o nosso. Mas o Líbano não avançou, e os outros países regrediram e se tornaram cada vez mais sectários. Está cada vez mais entranhada a ideia de que pertencimento só é definido por raça, origem. Isso é cada vez mais forte nos EUA, na Índia.

A ascensão do populismo no mundo se encaixa nesse contexto?

Sim, certamente, o populismo é uma questão de identidade. Uma das principais mensagens dos atuais líderes populistas é dizer que seus apoiadores são os únicos que são realmente cidadãos, e que aqueles que não compartilham os valores deles não são cidadãos, não são patriotas. Populismo sempre foi baseado em fomentar a divisão e hostilizar o outro, a pessoa com outra identidade. A narrativa da invasão dos imigrantes na Europa transformou totalmente a atmosfera política, deixou países como Holanda e Dinamarca irreconhecíveis.

Há esperança?

Se nos mantivermos na rota em que estamos hoje, caminhamos para um conflito inevitável entre o Ocidente e a China. Precisamos de uma abordagem diferente em relação a outras identidades. Não queremos voltar para a visão ideológica, de Guerra Fria, do século 20. Fingimos acreditar que nossa hostilidade à China tem como motivo o fato de o regime chinês prender opositores, reprimir Hong Kong. Mas vai muito além disso. A China é vista como uma ameaça à ordem global e tem muito a ver com a identidade. Precisamos evitar os erros que cometemos após a queda do muro de Berlim, quando perdemos a oportunidade de incluir a Rússia na ordem mundial.

Estamos vendo algo semelhante, o mesmo tipo de abordagem agressiva, de confronto. Isso só alimenta sentimentos nacionalistas e anti-Ocidente —como aconteceu na Rússia. O Ocidente perdeu a oportunidade de incluir a Rússia, e agora está perdendo a oportunidade de incluir a China.

Amin Maalouf, 71

Nascido no Líbano, viveu também no Egito e emigrou para a França em meados dos anos 1970, após a guerra civil eclodir em seu país natal. Membro da Academia Francesa de Letras desde 2011, o escritor franco-libanês teve sua obra traduzida para mais de 50 idiomas.

 

Dia dos Economistas

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No dia 13 de agosto se comemora o dia dos Economistas, uma data importante para todos os aqueles que se dedicam a compreender os movimentos e as flutuações do sistema econômico, entendendo os fenômenos políticos, históricos e sociais para entendermos a sociedade contemporânea. Esta profissão tem grande relevância social, embora seus profissionais perderam o status na sociedade nos últimos trinta anos, deixando de lado os instrumentos históricos, sociais e políticos, se concentrando nos estudos dos modelos econométricos, privilegiando os cálculos matemáticos, afastando-a desta ciência social. Cabe uma reflexão.

A “Indústria Americana” e o novo modelo de trabalho

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Neste período de pandemia, instabilidades, incertezas e crescentes conflitos econômicos entre as maiores economias internacionais, o filme A Indústria Americana, ganhador do melhor documentário no Oscar deste ano, analisa grandes mudanças nas estruturas organizacionais das empresas, de um lado encontramos os modelos adotados nos países asiáticos e de outro os modelos que dominaram quase todo o século XX, mas perdeu centralidade no cenário internacional, mostrando impactos culturais das organizacionais dos grandes atores da economia global, para muitos, este será o grande conflito ou geopolítico contemporâneo.

Estamos num momento de novos conflitos geopolíticos, neste momento percebemos o crescimento da China na economia internacional, uma economia que, desde os anos 1980, vem ganhando centralidade na economia global. Inicialmente, percebemos uma economia produtora de produtos de baixo valor agregado, como produtor de grandes escalas produtivas, marcados com preços reduzidos e uma gigante capacidade produtiva, levando o país a ganhar espaço na indústria global. De um crescimento econômico com mais de 10% ano nos últimos quarenta anos, o país angariou grandes somas de recursos monetários internacionais, com isso, é atualmente o grande detentor das maiores reservas mundiais, em torno dos US$ 4 trilhões, recursos que a China está dianteira das grandes aquisições em todas as regiões, desde os negócios no continente africano, na América Latina, no Oriente Médio e no continente Europeu, temendo seus concorrentes e possibilitando novas possibilidades de negócios rentáveis.

O documentário mostra um impacto dos modelos organizacionais dos dois grandes atores internacionais, um conflito cultural, econômico, político e geopolítico. O filme destaca a compra de uma planta industrial da General Motors em Dayton, Ohio, depois pela crise de 2008, que levou a empresa norte-americana a fechar a fábrica e mandar embora mais de 2,8 mil funcionários, gerando grandes impactos pelos trabalhadores e em toda a cidade, com incremento no desemprego, queda na renda das famílias e o crescimento da desesperança, gerando indicadores sociais negativos para toda a coletividade.

O documentário tem uma peculiaridade interessante, dentre os investidores deste filme está o ex-presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, e a ex-primeira dama Michele Obama, que patrocinaram a ideia e levou a película para o prêmio mais importante de Hollywood, levando a estatueta e garantiu o Oscar de melhor documentário de 2020.

O filme destaca os primeiros períodos da compra da planta industrial da General Motors, adquirida pela empresa multinacional chinesa Fuyal, responsável pela produção de vidros automotivos, cujos métodos de produção e sua estrutura organizacional entram em conflitos, mostrando a precarização crescentes, a exploração dos trabalhadores, a aversão pelos sindicatos e os novos modelos de exploração industrial centrados nas chamadas empresas da indústria 4.0.

Neste filme, A Indústria Americana, percebemos que grande parte dos trabalhadores são norte-americanos, permeados por trabalhadores oriundos da própria China, com seus modelos de organização, centrado na disciplina, na rigidez, na hierarquia, no trabalho duro e os turnos elevados, salários reduzidos e sem cobertura sindical, cuja diretoria deixa claro para todos os empregados americanos que são contrários a sindicalização, que incorreria em custos elevados de produção e o corte de funcionários, aumentando o desemprego.

Percebemos que a diretoria da Fuyal, uma grande produtora de vidros automotivos, enxerga o projeto da planta industrial nos Estados Unidos como um grande desafio para a multinacional, uma forma de mostrar para as autoridades americanos como os chineses conseguem produtos com alta qualidade e com baixos preços reduzidos, colocando-a como no nível de produtividade das plantas industriais de outras regiões do mundo e, principalmente, da produtividade da empresa chinesa.

No decorrer do documentário, percebemos os conflitos organizacionais e os modelos produtivos, destacando as diferenças dos trabalhadores destes dois países, os asiáticos são magros e ágeis, flexíveis, trabalhando em cargas crescentes e disponíveis a aceitar salários reduzidos, muitos destes trabalhadores são oriundos da China, ficam distantes de suas famílias, seus pais, seus filhos e não conseguem acompanhar o crescimento de seus descendentes. De outro lado, percebemos trabalhadores norte-americanos, vistos como obesos, lerdos e poucos ágeis, sem iniciativas limitadas e descontentes com seus salários, vistos como uma remuneração baixa e cargas excessivas de trabalhos.

No decorrer do documentário, um dos funcionários americanos critica a remuneração reduzida paga pelo empregador chinês, cujos salários giram em torno de US$ 12,2 ao dia, um valor muito a quem dos salários pagos pela General Motors, ex-dona da planta industrial de Dayton, cujos valores giravam em torno de US$ 29,2 ao dia. Estes recursos monetários garantia uma qualidade de vida maior para os trabalhadores e perspectivas melhores para seus familiares, possibilidades de estudos, alimentação mais dignas e esperanças de um futuro mais promissor, todos buscando o sonho americano.

O documentário mostra como as empresas estão cada vez mais centradas em novas tecnologias, nas fábricas percebemos uma redução significativa dos empregos e, ao mesmo tempo, um incremento da produtividade e o crescimento dos lucros. Dentro da dependência, os gestores da empresa Fuyal, criticam o excesso de horas de trabalho dos trabalhadores norte-americanos, que na cultura organizacional foram contratados para cargas de trabalho de oitos horas de segunda a sexta, visto como excessivo e dispendioso, quando comparamos com as cargas na China, cujos trabalhadores possuem apenas um dia de descanso no decorrer do mês, um modelo altamente degradante e humilhante nos colaboradores.

A globalização impulsionou a economia internacional no século XX, principalmente o final da segunda guerra mundial, período marcado pelo incremento da hegemonia dos Estados Unidos, neste período os norte-americanos se transformaram no país hegemônico da economia global, criando as bases da estrutura econômica, concentrando a força industrial, além do poder financeiro baseado na moeda, na força bélica e pelo soft power, centrados na força da cultura e das instituições americanas, a democracia, da livre concorrência e da busca constante do sonho liberdade.

            Este modelo criado pelos Estados Unidos foi responsável pelo empoderamento da economia norte-americana, ganhou espaço nos países socialistas, fragilizou os interesses hegemônicos do Japão e sente a força de outro país asiático, percebendo que a China é o maior rival para a predominância da hegemonia dos Estados Unidos, levando-o a adotar políticas que sempre contestaram em outros países ou regiões, recorrendo a políticas protecionistas contra empresas concorrentes, com isso, percebendo que os ideários liberais são adotados quando lhe convém e são rechaçados quando os ameaçam frontalmente.

O documentário, mostra claramente que os Estados Unidos encontraram seu maior adversário, além de desbancar empresas norte-americanos no cenário internacional, as empresas chinesas estão ganhando espaço internamente, instalando em solos americanos, implantando as estruturas organizacionais asiáticas, adotando modelos de organizacionais do trabalho, a ojeriza pela organização sindical, o alto crescimento das horas trabalhadas, a queda dos direitos trabalhistas e salários reduzidos. Neste novo modelo organizacional, adotado pela Fuyal em solo norte-americano, percebendo um novo modelo de trabalho e estrutura laboral, com cargas rigorosas de trabalho, diminuição dos modelos hierárquicos, alta rotatividade de funcionários, redução das conversas entre os funcionários e rigorosa fiscalização dos gestores.

No documentário A Indústria Americana, destaca um momento em que uma trabalhadora negra norte-americana chora diante dos gritos e das ordens de chefes chineses, neste momento percebemos que os asiáticos descrevem os trabalhadores americanos como “preguiçosos”, trabalhando menos que os chineses e são substituídos pelos empregadores quando percebem a inaptidão do cargo, sendo trocados por trabalhadores importadores diretamente da China, mais aptos pela cultura organizacional asiática.

O documentário mostra as perseguições pelos empregadores chineses, as demissões constantes, os assédios são crescentes, principalmente para que os trabalhadores não vinculassem os sindicatos, para evitar estas organizações sindicais os chineses adotaram inúmeras medidas para pressionar os funcionários americanos, principalmente os mais novos, para que não os trabalhadores aceitem a intermediação com os sindicatos.

O modelo de trabalho destacado no documentário é assustador, ao analisar os modelos laborais nos Estados Unidos, percebemos que não é nenhum modelo de organização virtuoso para os trabalhadores, muito ao contrário. Nos Estados Unidos, o modelo é marcado por pouca regulação do trabalho, onde boa parte das pessoas realiza o trabalho intermitente (pagamento por horas trabalhadas permitindo mais de um emprego), muitas horas de trabalho, sem acesso à saúde e educação pública, e com muita restrição ao direito de livre organização sindical.  A sociedade brasileira precisa se atentar com as mudanças no mercado de trabalho, o modelo norte-americano está no horizonte das mudanças implementadas na Reforma Trabalhista de novembro de 2017, baseadas nos ideários norte-americanos, com mais redução dos custos de trabalho, facilidade da contratação e da dispensa dos trabalhadores e, principalmente, numa redução abrupta do Estado como intermediário dos conflitos entre capital e trabalho.

O documentário A Indústria Americana mostra claramente que os modelos preconizados pelos conglomerados produtivos chineses são piores e excludentes para os trabalhadores, as cargas de trabalhos são elevadas, o controle interno é crescente, os benefícios e os salários são reduzidos, as folgas são pequenas e a facilidade de demissão são mais altas, um ambiente preconizado são instáveis e incertos, gerando ambiente de desesperança e medo elevados, vivemos um ambiente de inseguranças crescentes.

O documentário não destaca uma crítica mais consistente nos modelos de trabalho que crescem em todas as regiões, o capitalismo está criando um rastro de destruição em todos os continentes, os trabalhadores estão sem proteção e percebemos um discurso de que os sindicatos são incapazes de garantir ganhos para os trabalhadores, mas percebemos que a ausência destes instrumentos de defesa aos trabalhadores apenas facilitam o controle das classes dominantes do capitalismo contemporâneo e o incremento da degradação das classes trabalhadores, com salários reduzidas, benefícios menores e cargas de trabalhos cada vez maiores. O ambiente da Indústria 4.0 poderia ser um novo momento de melhoria de todos os grupos sociais, levando-os todos a participarem dos ganhos desta nova sociedade, mas o que percebemos, é que estamos gestando uma sociedade mais segregada, desigual e centrada na exclusão social.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

‘Pandemia é resposta biológica do planeta’, diz físico Fritjof Capra

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 Autor de “O Tao da Física” relaciona desigualdade social, economia predatória e devastação ambiental ao surgimento do novo coronavírus

Fernanda Mena – folha de São Paulo, 10/08/2020

Ícone do pensamento sistêmico, o físico e ambientalista austríaco Fritjof Capra, 81, interpreta a pandemia da Covid-19 como uma resposta biológica da Terra diante de emergências sociais e ecológicas amplamenta negligenciadas. J

Segundo Capra, as mudanças de paradigma necessárias a essas emergências já são possíveis, tanto do ponto de vista do conhecimento quanto do desenvolvimento tecnológico. “Teremos a vontade política que falta?”, provoca ele, em entrevista à Folha por e-mail.

Autor de best-sellers internacionais como “O Tao da Física” e “Ponto de Mutação” (Cultrix), entre outros, o Capra articulou a física moderna a uma visão holística da vida no planeta e dos fenômenos naturais, inserindo a humanidade e suas ações nos ciclos de transformação da vida no planeta.

Capra é uma das estrelas deste ano do ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento, cujo tema – Reinvenção do Humano – implica um debate de múltiplas variáveis que, na visão do físico austríco, são sempre indissociáveis e interdependentes.

Diretor do Centro de Alfabetização Ecológica, com sede em Berkeley, na Califórnia (EUA), Capra desenvolveu uma pedagogia da ecologia a ser aplicada no ensino formal, primário e secundário.

Convertido em ambientalista por sua própria pesquisa, o austríaco há décadas denuncia o caráter predatório da economia global capitalista extrativista e a captura corporativa da política, que sucumbe a interesses econômicos em detrimento dos recursos naturais do que chama de Gaia —a Mãe-terra da mitologia grega que batizou uma visão do planeta como um imenso organismo vivo.

Para ele, estão equivocadas as atuais métricas do desenvolvimento baseadas no crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) a partir de uma cultura de excessos, que implica em perdas sociais e econômicas.

Em quais aspectos o momento presente pode redefinir a condição humana?

Na minha visão, o coronavírus deve ser visto como uma resposta biológica de Gaia, nosso planeta vivo, à emergência social e ecológica que a humanidade criou para si própria. A pandemia emergiu de um desequilíbrio ecológico e tem consequências dramáticas por conta de desigualdades sociais e econômicas.

Cientistas e ativistas ambientais há décadas vêm alertado para as terríveis consequências de sistemas sociais, econômicos e políticos insustentáveis. Mas até agora as lideranças corporativas e políticas teimaram em resistir a esses alarmes. Agora eles foram forçados a prestar atenção, já que a Covid-19 trouxe os avisos de antes para a realidade de hoje.

Quais paradigmas a humanidade precisa mudar e por quê?

Com a pandemia, Gaia nos trouxe lições valiosas capazes de salvar vidas. A questão é: teremos a sabedoria e a vontade política necessárias para ouvir essas lições? Mudaremos do modelo de crescimento econômico indiferenciado baseado no extrativismo para outro de crescimento qualitativo e regenerativo? Vamos substituir combustíveis fósseis por formas renováveis de energia que dêem conta de todas as nossas necessidades? Vamos substituir nosso sistema centralizado de agricultura industrial com uso intensivo de energia por um sistema orgânico de agricultura regenerativa, familiar e comunitária? Vamos plantar bilhões de árvores capazes de retirar o CO2 da atmosfera e de restaurar diferentes ecossistemas do mundo?

Nós já temos o conhecimento e a tecnologia para embarcar em todas essas iniciativas. Teremos a vontade política que falta?

Num momento em que o valor do conhecimento científico biológico e tecnológico se mostram tão importantes, qual é o papel das humanidades?

Isso está diretamente relacionado a sua pergunta anterior. Se temos todo o conhecimento científico e tecnológico para construirmos um futuro sustentável, porque não o fazemos simplesmente?

Quando refletimos sobre essa questão crucial, rapidamente percebemos que o nível conceitual não conta toda essa história. Nós também precisamos lidar com valores e éticas, e é por isso que as ciências humanas são mais importantes do que nunca. Literatura, filosofia, história, antropologia podem todas nos imbuir do compasso moral que tanto falta à política e à economia atuais.

Índices de desmatamento têm aumentado na Amazônia brasileira. Quais são os incentivos para isso?

Esses crimes são uma consequência direta da obsessão com o crescimento econômico e corporativo. A devastação de grandes áreas de florestas tropicais é impulsionada pela ganância de corporações multinacionais do setor de alimentação, que buscam incansavelmente lucro e crescimento.

Se o que chamamos de progresso foi atingido às custas de danos ao meio ambiente, nossa ideia de progresso está errada?

A crença em um progresso contínuo e, em particular, a obsessão de nossos economistas e políticos com a ilusão de um crescimento ilimitado em um planeta finito constituem o dilema fundamental que permeia nossos problemas globais.

Isso equivale ao choque entre o pensamento linear e os padrões não lineares da nossa biosfera —a interdependência dos sistemas ecológicos e os ciclos que constituem a teia da vida. Essa rede global altamente não linear contém inúmeras alças de retroalimentação por meio das quais o planeta se regula e se equilibra.

Nosso sistema econômico atual, ao contrário, parece não reconhecer a existência de limites. Nele, um crescimento perpétuo é perseguido incessamente através da promoção do consumo excessivo e de uma economia do descarte que usa de maneira extravagante tanto recursos como energia, aumentando a desigualdade econômica.

Esses problemas são exacerbados pela emergência climática global, causada pelas tecnologias de uso intensivo de energia e baseada em combustíveis fósseis.

Com a pandemia, projeções apontam para o aprofundamento das já marcantes desigualdades sociais de nosso tempo. O que as produziu e como reverter esse processo?

O aprofundamento das desigualdades é uma característica inerente ao sistema econômico capitalista de hoje. O chamado “mercado global” é, em verdade, uma rede de máquinas programadas de acordo com o princípio fundamental segundo o qual ganhar dinheiro tem primazia sobre direitos humanos, democracia, proteção ambiental.

Valores humanos, no entanto, podem mudar porque eles não são leis naturais. A mesma rede eletrônica de fluxos financeiros pode ter nela embutidos outros valores. O ponto crítico não é a tecnologia, mas a política.

Há sinais de mudanças neste sentido na política de hoje?

Uma nova liderança começou a emergir recentemente em uma série de movimentos jovens muito potentes, como Sunrise Movement, Extinction Rebellion, Fridays for Future, entre outros.

Há também a ascensão de uma nova geração de políticos, curiosamente formada por mulheres, como a primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinta Arden, a primeira-ministra da Finlândia, Sanna Marin, ou a congressista [democrata] norte-americana Alexandria Ocasio-Cortez.

A crise atual prescreve nossa percepção de soberania e de globalização? Como?

Com certeza absoluta! Para prevenir o alastramento da pandemia, agora e no futuro, teremos de reduzir densidades populacionais excessivas, como ocorre no turismo de massa e em condições de vida marcadas pela superlotação. Ao mesmo tempo, necessitamos de cooperação global.

A justiça social se torna uma questão de vida ou morte durante uma pandemia como a da Covid-19. E ela só pode ser superada por meio de ações coletivas e cooperativas.

Seu trabalho explorou a interconectividade entre as ciências e os conceitos e filosofias considerados não-científicos. Como esse diálogo complexifica nosso entendimento do planeta e da humanidade?

Eu me formei como físico e fiquei fascinado pelas implicações da física quântica, que nos mostra que o mundo material não é uma máquina gigante mas uma rede inseparável de padrões de relações. Durante os anos 1980, minha pesquisa virou para a área das ciências da vida, da qual tem emergido um novo conceito sistêmico que confirma a fundamental interconectividade e interdependência de todos os fenômenos naturais.

Quando nós entendemos que compartilhamos não apenas as moléculas básicas da vida, mas também princípios elementares de organização com o restante do mundo vivo, percebemos o quão firme estamos costurados em todo o tecido da vida.

O que você aprendeu com a pandemia?

Tem sido incrível para mim ver como o coronavírus expôs tantas injustiças ecológicas, sociais e raciais omitidas por décadas pelas mídias de massa.

Também fiquei espantado de ver como, em um curto espaço de tempo, a poluição quase desapareceu da baía de São Francisco, na Califórnia (EUA), onde eu vivo, assim como ocorreu em várias das grandes cidades do mundo. Isso me encheu de esperança quanto à capacidade da Terra de se regenerar.

 

A desigualdade e o mito de que qualquer um pode virar trilhardário

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Livro ‘Capital e Ideologia’, de Thomas Piketty, tem pesquisa de alcance histórico e geográfico maior que seu título anterior

Folha de São Paulo, 08/08/2020

Ninguém tira de Thomas Piketty o condão de ter posto a desigualdade no centro do debate econômico. Publicado em 2013, “O Capital no Século 21” foi traduzido para 40 línguas e vendeu 2,5 milhões de exemplares. Veio para ficar.

Com mais de mil páginas, centenas de gráficos e tabelas, cifras de tirar o fôlego, e escrito com objetividade, o livro deu sentido ao progresso. A saber: depois de um século de genocídios e revoluções, de um incremento tecnológico nunca visto antes, a concentração do capital é hoje a mesma da belle époque. Regredimos.

O século das guerras mundiais, às quais se seguiram a Guerra Fria e a implosão soviética, resultou num mundo semelhante ao da década que precedeu os tumultos. A concentração da riqueza é igual à dos anos 1910 —riqueza essa produzida por bilhões de miseráveis e remediados em benefício de um pugilo de nababos.

Piketty volta à carga com “Capital e Ideologia” (ed. Intrínseca, 1.053 págs.). É uma sequência do livro anterior, mas com uma pesquisa de alcance histórico e geográfico maior. Vai-se da Revolução Haitiana à Guerra Civil Americana e ao New Deal; da independência indiana ao pós-comunismo e aos governos do PT.

O primeiro “O Capital”, o de Marx, começa com a produção —o primeiro capítulo é sobre a mercadoria— para depois investigar a sua circulação e chegar ao sistema capitalista. Já “Capital e Ideologia” se centra na distribuição do capital, na desigualdade, e põe em xeque o ideário que a legitima.

A desigualdade é analisada na Revolução Francesa; em sociedades escravistas e coloniais; no pós-Guerra do século 20; e na atualidade. Social-democrata, Piketty concluiu sua pesquisa com uma receita: taxação
pesada dos ricos, de suas propriedades, lucros e heranças.

Não é preciso concordar com o receituário para usufruir do livro. Ele funciona como uma série de monografias sobre situações diversas no tempo e no espaço —algumas convincentes e outras não. Em todas, se procura investigar como um grupelho de proprietários disseminou a crença que a desigualdade é não só natural como positiva.

O pilar ideológico da crença é a meritocracia —para Piketty um “conto de fadas”. Trata-se do mito que, no capitalismo, qualquer um pode virar trilhardário. No altar-mor da devoção fica a santíssima trindade de Mark Zuckerberg (Facebook), Jeff Bezos (Amazon) e Bill Gates (Microsoft).

A meritocracia despreza o colossal esforço humano, o empenho social secular e a legislação em causa própria que permite aos novos paxás o acúmulo astronômico de capital.

Enfatiza os indivíduos, as garagens na Califórnia onde seres iluminados descobriram a pedra filosofal do dinheiro que gera dinheiro. E sublinha a sua filantropia, a generosidade com que jogam migalhas aos desvalidos. Como são bonzinhos. Desde que não lhe toquem no tesouro.

A mitificação dos megarricos —que no Brasil se manifesta no culto brega a Jorge Paulo Lemman, o maioral escutado como um sábio até quando manda um zé mané lhe engraxar os sapatos— só existe devido a mecanismos financeiros que espoliam o planeta.

O primeiro deles é a desregulamentação do lucro e a sua livre circulação. Ele foi obra do arraso neoliberal de Reagan e Thatcher —louvados em prosa e verso por economistas e devotos do livre mercado, ambos muito bem pagos.

O mecanismo é complementado pelos paraísos fiscais. Offshores, bancões e banquinhos fraudam fiscos nacionais numa boa. Papéis do Panamá, contas secretas na Suíça, ações e derivativos que pulam de Bolsa em Bolsa garantem sombra e água fresca —e jatinhos, helicópteros e apartamentos na Flórida— aos donos da cocada preta.

Piketty nota que a ideologia meritocrática não está isenta de preconceitos. Os bilionários ocidentais são tidos por empreendedores afortunados. Já os russos são chamados de oligarcas; os africanos, de cleptocratas; os árabes, de sheiks. E assim se fermentam disputas nacionais por mercados.

Em outros termos, que “Capital e Ideologia” não usa: a burguesia é internacional, mas com raízes nacionais. Elas estão cravadas em territórios onde multidões extraem riqueza material, de cujo trabalho a classe dominante se apropria.

Distributivista, Piketty também não tem no seu léxico o verbete “exploração”. Acredita que uma reforma tributária radical e internacional poderá construir uma nova ordem, a do “socialismo participativo”. Ele não está à vista. A alternativa mais evidente é a pauperização, o salve-se quem puder. Quem viver verá.

Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de “Notícias do Planalto”.

 

Uberismo é a total desumanização das relações trabalhistas, por Esther Solano.

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Carta Capital, 02/08/2020.

Há palavras cuja sonoridade é aparentemente inócua, cuja grafia parece inocente, insuspeita, mas basta ir um pouco além da fisionomia ortográfica para entender os infernos que escondem. Uberismo seria uma das mais recentes formas de exploração da forma de trabalho, consistente numa hiperexploração dos trabalhadores por meio de plataformas. Um emaranhado algorítmico pensado para arrancar direitos trabalhistas na forma de startup jovem, de sucesso, vibrante, lucrativa. Recomendo a leitura atenta do que escreve o professor Ruy Braga, da USP, excelente pesquisador na área sobre as ameaças brutais da “plataformização” do trabalho ou a tirania à qual as novas tecnologias digitais submetem a vida dos trabalhadores mais precarizados.

É a total desumanização das relações trabalhistas. Não há um patrão de carne e osso, não existe um departamento de recursos humanos, muitos sindicatos rejeitam representar essas categorias. O contato com o “cliente” resume-se, muitas vezes, a uma entrega rápida e insensível, com um portão com grades no meio de dois indivíduos, que no momento estão a centímetros de distância, mas cujas mãos apenas se tocam e cujas vidas se tocam menos ainda. Não há direitos, não há humanidade.

Um país como Brasil é o ambiente perfeito para esse processo de uberização da vida. Milhões de trabalhadores informais, uma pauperização crescente, um exército de jovens sem formação, a volta da miséria, o desmonte incessante dos direitos trabalhistas desde o governo Temer e agora a tragédia bolsonarista. No Brasil, a carne do trabalhador precarizado se vende barata. Muito barata.

Uber, Ifood, Rappi, o mundo do trabalhador escravizado pelo algoritmo que, em tempos de crise, absorve, engole milhões de profissionais sem expectativas. São os descartáveis. Mas, paradoxos de uma vida fortuita, os descartáveis viraram essenciais na pandemia. O número de entregadores antes do coronavírus era de 280 mil. Depois da pandemia, passaram a 500 mil. São números impressionantes: 500 mil indivisíveis que entregam comida, mas cujas famílias passam fome ou convivem com ela. São 500 mil. Mais gente, menos lucro.

O estudo “Condições de Trabalho de Entregadores Via Plataforma Digital Durante a Covid-19” identificou as jornadas de trabalho maiores e a queda nos rendimentos de 58,9% dos entregadores. Segundo a pesquisa, cerca de metade recebia até 520 reais por semana antes da pandemia. Depois, 71,9% declararam receber até 520 reais, e 83,7% até 650 reais. “É possível aventar que as empresas estão promovendo uma redução do valor da hora de trabalho dos entregadores em plena pandemia”, descreve o relatório. E ainda tem gente que diz que o coronavírus é democrático, afeta igual a ricos e pobres. Contem-me outra piada.

Não se preocupe. O entregador é microempresário, empreendedor. Não é pobreza, é um processo de sucesso individual. Os entregadores não são trabalhadores, são “parceiros” das plataformas. Os jovens que se endividam para comprar uma moto investem no seu futuro. Num país como Brasil, o discurso da meritocracia mata, assim como matam as motos dos entregadores cansados de trabalhar durante mais de dez horas por dia. Entre março e maio deste ano, 87 morreram na capital paulista.

“Agora dão duas opções para quem é pobre, morrer na rua de corona ou em casa de fome. Entre morrer em casa e morrer na rua, eu prefiro nenhuma das duas.” Esta sentença demolidora do Rap dos Informais é a que melhor define a situação da população mais pobre no Brasil. Drama por todos os lados. Em casa, fora dela, na moto, sem ela.

Mas a exploração tem seus limites. Os explorados também explodem. Os invisíveis se cansam da invisibilidade. As greves de entregadores e a formação dos Entregadores Antifascistas são focos de luz nas trevas. Entre as exigências dos trabalhadores estão reajuste de preços, entrega de EPIs para trabalhar com mais segurança durante a pandemia, fim dos bloqueios indevidos, demanda de auxílios ou licenças de saúde e acidente, questionamentos com relação a programas de pontos realizados por algumas plataformas. Dignidade para os que são tratados com indignidade. É a revolta dos de baixo, dos que passavam despercebidos e hoje se tornaram essenciais.

Todo o meu respeito, todo o meu apoio.

#BrequeDosApps.

Basta que o capital pense: a vida não vale o preço de uma entrega.