Deveríamos ajudar os trabalhadores, não matá-los

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 Auxílio-desemprego: uma história de sucesso que não é celebrada

Folha de São Paulo, 19/05/2020 –

Paul Krugman

Até onde sei, a maioria dos epidemiologistas está horrorizada com a corrida dos Estados Unidos para reabrir sua economia, e abandonar boa parte do distanciamento social que ajudou a conter a Covid-19.

Sabemos o que uma reabertura segura requer: um nível de contágio baixo, testes abundantes, e a capacidade de rastrear e isolar rapidamente os contatos de novos casos. Até o momento, não temos qualquer dessas coisas.

É claro que os epidemiologistas podem estar errados. Mas em cada estágio da crise, eles estiveram certos, enquanto as previsões dos políticos e seus asseclas quanto a um fim rápido da pandemia se provaram absolutamente incorretas. E se os especialistas estiverem certos mais uma vez, a abertura prematura pode resultar em centenas de milhares de mortes –e gerar resultados adversos mesmo em termos econômicos, já que uma segunda onda de infecções poderia nos forçar a voltar ao confinamento.

Assim, de onde vem essa pressão pela reabertura?

Parte dela vem dos malucos da direita. Apenas uma pequena minoria de americanos acredita que a liberdade inclui o direito de colocar vidas alheias em risco (e é isso que congregar grandes grupos de pessoas em meio a uma pandemia causa); que usar uma máscara seja antipatriótico, ou efeminado, ou algo assim; que a Covid-19 seja uma trapaça perpetrada pelos progressistas. Mas essa minoria tem imensa influência dentro do Partido Republicano.

Parte da pressão vem da obsessão de Donald Trump com o mercado de ações. Sua recusa inicial a fazer qualquer preparativo para a pandemia aparentemente se devia à preocupação de que reconhecer a ameaça, de qualquer maneira que fosse, “assustaria o mercado”. E a pressão pela reabertura pode refletir uma convicção semelhante de que voltar à vida normal seria bom para o mercado, mesmo que mate muita gente. Vamos morrer pelo índice Dow Jones!

Uma coisa que ouço com frequência é que devemos reabrir pelo bem dos trabalhadores, que precisam voltar a ganhar salários a fim de colocar comida na mesa para suas famílias. Por isso é importante compreender que esse é realmente um péssimo argumento.

Pois os Estados Unidos são perfeitamente capazes de proteger contra dificuldades econômicas severas os trabalhadores que perderam o emprego. Como disse Jerome Powell, o chairman do Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos, em uma entrevista televisada domingo, podemos e devemos adotar políticas que “mantenham os trabalhadores em suas casas, permitam que continuem pagando suas contas e mantenham suas famílias solventes”.

E o que realmente surpreende é que já estamos fazendo boa parte disso. A Lei CARES, o pacote de US$ 2 trilhões em assistência contra a pandemia aprovado no final de março, expandiu substancialmente a elegibilidade para o auxílio-desemprego e a generosidade desse auxílio. E os benefícios expandidos, a despeito de alguns tropeços iniciais, estão cada vez mais fazendo o que necessita ser feito.

É verdade que quando as solicitações de auxílio-desemprego começaram a disparar, em março, os escritórios que distribuem os benefícios – administrados pelos governos estaduais– ficaram sobrecarregados, o que levou muitos americanos que tinham direito a benefícios a não conseguir atendimento. E muitas famílias ainda não estão recebendo a assistência a que teriam direito.

Mesmo assim, um estudo da Brookings Institution indica que em abril o desemprego-desemprego cobriu cerca de metade dos salários perdidos por conta do confinamento –uma estimativa que confirma meus cálculos caseiros.

E esse “índice de substituição” deve quase certamente ter crescido de forma substancial nas últimas semanas. Os escritórios que administram o auxílio-desemprego estão gradualmente eliminando os atrasos acumulados no atendimento dos pedidos, e com isso o auxílio vem chegando a um número cada vez maior de trabalhadores desempregados. Ao mesmo tempo, as provas disponíveis indicam que os mercados de trabalho mais ou menos se estabilizaram, ao menos por enquanto, há cerca de um mês.

Por isso é uma aposta segura que, a esta altura, a maior parte, se bem que não toda, a perda de salários causada pelo distanciamento social esteja sendo compensada pela assistência governamental ampliada.

É uma história de sucesso que não está sendo celebrada; a maior parte da atenção da mídia se concentrou em outras partes da Lei CARES, especialmente o apoio às pequenas empresas, que está uma bagunça.

Mas o auxílio-desemprego, depois de problemas iniciais, está fazendo muito para ajudar os trabalhadores americanos. E o crédito por isso cabe aos democratas, que insistiram em que essa assistência fosse parte do pacote.

Suspeito que o sucesso do auxílio-desemprego ajude a explicar um aspecto chave da situação política com relação à reabertura –ou seja, que o clamor pelo fim das restrições não está vindo dos trabalhadores. As perdas de empregos se concentraram entre os trabalhadores de remuneração mais baixa, mas pesquisas de opinião pública indicam que a demanda por abertura rápida vem principalmente dos republicanos de alta renda.

Ou seja, fizemos um trabalho bem melhor do que a maioria das pessoas percebe em proteger os trabalhadores americanos contra dificuldades no período de confinamento. É claro que não foi um completo sucesso, e as primeiras semanas foram bem complicadas. Mas o fato é que o sofrimento foi bem menor do que se poderia esperar diante de um índice de desemprego real de provavelmente cerca de 20%.

Mas o auxílio-desemprego expandido que está apresentando resultados tão bons deve expirar em 31 de julho. Isso deveria causar medo.

Suponha que os epidemiologistas estejam certos, afinal, e que uma reabertura prematura leve a uma segunda onda de infecções. O que precisaremos nesse caso será de um segundo período de confinamento. Mas todas as indicações são de que os republicanos se opõem a prorrogar o auxílio.

O que eles querem, em lugar disso, são leis que isentem as empresas de responsabilidade legal caso seus empregados adoeçam.

Ou seja, querem forçar os americanos a voltar a trabalhar mesmo que isso os mate.

 

 

Vírus limitou tática de Trump de mudar a história quando convinha, afirma filósofo.

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Para Simon Critchley, pandemia é pior para líderes populistas como Bolsonaro e o presidente dos EUA.

Bruno Benevides – Folha de São Paulo, 17/05/2020

A pandemia de coronavírus está aumentando a importância das nações ao redor do mundo —e isso, paradoxalmente, pode prejudicar líderes de viés nacionalista, como o americano Donald Trump e o brasileiro Jair Bolsonaro, de acordo com o filósofo político britânico Simon Critchley.

“Quando as pessoas estão sob ameaça de ficarem doentes ou de morrerem, elas querem um governo que saiba o que está fazendo. E isso é ruim para líderes como Bolsonaro e Trump. Eles não vão poder mudar de ideia a toda hora”, diz ele à Folha, por telefone, de Nova York, onde é professor da universidade The New School.

Conhecido pela capacidade de unir filosofia e cultura pop, Critchley tem livros publicados sobre assuntos como futebol, o músico David Bowie e a importância do humor na história humana. Atualmente ele atua como curador da Stone, a seção de filosofia do jornal The New York Times.

Ex-integrante de bandas punks antes de enveredar pela vida acadêmica, Critchley usa o tempo durante a pandemia para refletir sobre a mortalidade humana.

“É um momento que força as pessoas a pensarem em algumas questões básicas, de como elas vivem a vida, como elas entendem sua vida e outras coisas nesse sentido. É muito revelador o que está acontecendo”, afirma.

É possível voltar para o mundo como ele era antes da pandemia? Possível é, mas não é provável. Algumas coisas estão sendo revistas. Acho que o período de auge da globalização acabou. Há uma mudança em como compreendemos essa globalização, ela traz questões sobre a produção. Muitos países que supostamente são economias avançadas, como os Estados Unidos e o Reino Unido, não produzem mais as coisas, eles são dependentes de uma cadeia global, o que é uma opção questionável. Há também uma mudança sobre a ideia de nação.

Qual é essa mudança? O interessante da pandemia, em especial no contexto europeu, é que está ocorrendo uma espécie de reação nacional, um nacionalismo indefinido. A União Europeia é uma tentativa de 70 anos de estabelecer instituições transnacionais. Só que ninguém enfrentou um problema de saúde pública como o atual.

As pessoas estão assustadas, voltamos a um mundo hobbesiano, no qual a obrigação primária da nação é proteger e garantir a segurança de seus cidadãos. E isso requer um governo mais tradicional. É isso que está sendo revisto pela pandemia. É possível olhar para a Europa e ver a diferença na resposta de cada país, da Alemanha à Dinamarca, da Itália à Holanda, cada um desses países respondeu de acordo com seu contexto nacional. E seus líderes foram julgadas por um tipo de competência mais tradicional. Quem está se saindo melhor são pessoas como [a chanceler alemã] Angela Merkel.

E como ficam líderes com discurso nacionalista, como Jair Bolsonaro e Donald Trump? Eles estão em dificuldade política. Isso revela algo muito tradicional da natureza de governar. Quando as pessoas estão sob ameaça de ficarem doentes ou de morrerem, elas querem um governo que saiba o que está fazendo. E isso é ruim para líderes como Bolsonaro e Trump. Eles não vão poder mudar de ideia a toda hora.

Há um problema real no mundo, que tem efeitos reais. Não dá para mudar a história como Trump fazia a todo momento, todo dia. Obviamente que a pandemia é algo ruim, mas para uma pessoa como eu, que ensina filosofia, é um momento de muita reflexão. É um momento que força as pessoas a pensarem em algumas questões básicas, de como elas vivem a vida, como elas entendem sua vida e outras coisas nesse sentido. É muito revelador o que está acontecendo.

Como assim? Há um choque de realidade acontecendo. Há uma verdade. A verdade é o vírus, e ele não se importa. São processos diferentes dos processos políticos dos últimos anos, da era da pós-verdade. Não há pós-verdade em relação a isso, não em relação a um vírus. Há uma verdade sobre esse vírus.

No contexto americano, Trump tem administrado a situação de uma maneira muito ruim e desonesta. Creio que essa estratégia que ele usou nos últimos três anos, de constantemente mudar a história quando convinha, encontrou um limite com o vírus. Ele está aqui, está tendo efeitos reais em diferentes partes do mundo e requer um pensamento cuidadoso de longo prazo.

Quase todos os cientistas estão trabalhando para tentar encontrar uma vacina, mas isso ocorre em um tempo diferente do tempo político. Trump conseguia controlar esse tempo da política muito bem. Então o que está acontecendo agora é uma grande ameaça para Trump. E acho que vale a mesma coisa para Bolsonaro. O lado esperançoso do que estou falando é que a pandemia terá consequências políticas reais para o tipo de populista que chegou ao poder nos últimos anos.

Alguns intelectuais têm defendido que a pandemia causará grandes mudanças na sociedade. O senhor concorda? Acho que a mudança será menos dramática. Vamos lembrar que o que queremos do governo é a capacidade de liderar as pessoas, de ajudar as pessoas durante uma situação crítica. Então acho que a situação atual vai produzir uma espécie de conservadorismo leve. Espero que faça as pessoas terem um pouco mais de compaixão com as outras, que as faça serem um pouco mais solidárias, que as faça se sentirem parte de uma unidade maior, seja qual for —no meu caso, é a cidade de Nova York.

Há um desejo desesperado de se sentir a salvo, de se sentir seguro. A melhor coisa que pode acontecer em decorrência da pandemia é nos fazer focar assuntos como sustentabilidade. Se conseguirmos juntar a pandemia à mudança climática, isso será uma grande conquista. Não estou extremamente esperançoso que isso irá acontecer, mas é uma possibilidade.

O senhor disse que pensamos em questões básicas durante a pandemia. Ela mudou o modo como lidamos com a morte? Nós nos esquecemos de que somos mortais, que somos finitos, que morremos, parece que sempre precisamos ser lembrados disso. De certa maneira, a pandemia é uma coisa muito antiga, é uma situação muito semelhante à que nossos ancestrais viveram. Se pensar na peste negra, na varíola, nos efeitos da guerra. Nós somos parte de uma geração à qual foi permitida esquecer a nossa mortalidade, negá-la. Essa pandemia está nos lembrando dessa característica muito antiga dos seres humanos. E é bom que estejamos sendo lembrados disso.

Estamos nos sentindo menos imortais, então? Espero que sim. O que está acontecendo durante a pandemia é que estamos sendo lembrados disso, isso está sendo jogado na nossa frente. Eu espero que isso nos deixe menos narcisistas, porque esse sentimento de imortalidade tem sido amplificado por essa nossa vida virtual. Essa segunda vida, essa vida mágica online, os rastros que deixamos para trás nas mídias sociais, imaginamos que isso seja imortal. Um dos grandes problemas nos últimos tempos tem sido o grande crescimento do narcisismo. E acho que a pandemia mostra isso, acho que ela cria buracos nesse nosso senso de proteção.

O senhor é um conhecido fã de futebol. Como fica o esporte no meio disso tudo? Olha, eu tenho um interesse pessoal nisso, sou torcedor do Liverpool. Faz 30 anos que não ganhamos a Liga e estávamos 25 pontos na frente na Premier League [o campeonato inglês]. Se decidissem cancelar o campeonato, eu ficaria muito desapontado. Acho que os campeonatos vão terminar, mas sem torcedores, vai ser uma caricatura. Os jovens vão ser muito estranhos, esporte sem torcedores é algo sem sentido.

O senhor disse que acabou o auge da globalização. Isso também acontecerá no futebol? Eu não sei se o futebol vai mudar, hoje há esse livre comércio de seres humanos no mercado de transferências. Acho que seria bom se conseguíssemos pensar mais racionalmente na quantidade de dinheiro envolvida no jogo, que é uma questão pornográfica. Acho que seria ótimo se essa pandemia levantasse algumas questões sobre isso, se nos fizesse repensar o que realmente importa no futebol.

SIMON CRITCHLEY, 60

Inglês, formou-se em filosofia na Universidade de Essex, onde também concluiu seu doutorado sobre a obra do francês Jacques Derrida. Já deu aulas em instituições da Holanda, Alemanha, Austrália, Noruega e Estados Unidos e desde 2004 é professor da The New School, em Nova York. Além da vida acadêmica, tem mais de uma dezena de livros publicados (a maioria sem tradução para o português), incluindo “The Ethics of Deconstruction”, “The Book of Dead Philosophers” e “What We Think When We Think About Football”

 

Ameaça protecionista, por Lourival Sant’Ana.

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Mudança na OMC é resultado do enfraquecimento da ordem comercial internacional

O Estado de S.Paulo – 17 de maio de 2020

A renúncia do diplomata brasileiro Roberto Azevêdo ao cargo de diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC) um ano antes de encerrar seu mandato é resultado do espetacular enfraquecimento da ordem comercial internacional baseada em regras.

A OMC foi criada em 1995 sob a liderança dos Estados Unidos e da Europa. Na época, eles eram os mais competitivos do mundo e portanto os mais beneficiados por regras que impedem a imposição arbitrária de tarifas e o exercício de subsídios que solapam a concorrência.

Se americanos e europeus eram os beneficiários imediatos, no longo prazo o incentivo à concorrência abriria caminho para novos players. Afinal, o livre-comércio leva as empresas a se desdobrar para melhorar seus produtos e reduzir seus custos, sob pena de desaparecer.

Inversamente, a proteção, na forma de tarifas altas e outros benefícios, cria um ecossistema de ineficiência e acomodação. O Brasil, um dos países mais fechados do mundo, é o melhor exemplo disso. Quando viajam para países que têm acordos de livre-comércio com o restante do mundo, os brasileiros compram tudo o que podem.

Nesse processo, surgiram concorrentes como Japão, China, Taiwan, Coreia do Sul, Índia e México, na indústria; Brasil e Austrália, no agronegócio. Por isso, as regras de livre-comércio se tornaram nocivas para camadas da população nos EUA e na Europa, que perderam seus empregos para mexicanos, chineses, etc.

A China se tornou a principal vilã no comércio internacional. Manipulava a moeda, subsidiava a indústria, praticava dumping, inundando o mercado com produtos abaixo do custo de produção, desrespeitava patentes, violava direitos trabalhistas e normas ambientais. Em 2002, a China entrou na OMC, com apoio dos EUA, que pretendiam com isso enquadrar o parceiro/concorrente.

Foi o que aconteceu. Na medida em que aperfeiçoou sua tecnologia, ela passou a usufruir das regras e do sistema. Já no governo de Barack Obama, os EUA começaram a barrar a nomeação de juízes para o Órgão de Apelação (OA) da OMC, o mais importante da entidade.

A eleição de Donald Trump foi parte desse processo. Ele apresentou o discurso mais contundente para os americanos que se sentiam – ou que passaram a se sentir, por influência de Trump – prejudicados pela globalização. Trump passou a ameaçar e a impor tarifas contra a China e outros países. O aço e o alumínio brasileiros estiveram na mira. Os EUA se tornaram grandes violadores das regras do comércio.

Em dezembro, com a falta de nomeações, o Órgão de Apelação ficou reduzido, de sete, para um juiz. Isso o tornou inoperante, já que ele só pode tomar decisões na presença de três juízes. Dois dias antes de Azevêdo anunciar sua saída, dois deputados democratas apresentaram proposta de retirada dos EUA da OMC. Antes disso, um senador republicano havia feito a mesma coisa, sugerindo que essa é uma posição acima de diferenças partidárias.

No último lance da disputa entre EUA e China, Trump determinou, na sexta-feira, que exportações de componentes para a Huawei, a gigante chinesa do 5G, precisarão de autorização. Ele acusa a China de tentar roubar as pesquisas de vacina dos EUA.

Trump ameaça até mesmo não honrar títulos da dívida americana em mãos da China, em retaliação contra a suposta origem do coronavírus em um laboratório de Wuhan. As evidências indicam que ele veio da natureza.

As pesquisas do Partido Republicano mostram que o eleitorado gosta quando Trump ataca a China. Por isso sua campanha tem dito que o candidato democrata Joe Biden ficou do lado da China e não do povo americano.

Kellie Meiman Hock, estrategista democrata para comércio exterior, me garantiu que as duas campanhas se diferenciarão nitidamente nesse tema. Seria uma prova de duas coisas: coragem e lucidez. O protecionismo fará mais mal do que bem aos EUA. Pergunte ao Brasil.

‘Dívida externa deveria ser suspensa’, diz Carmen Reinhart

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Economista de Harvard defende que emergentes adiem pagamentos para poderem gastar no que é necessário

Entrevista com

Carmen Reinhart, economista e professora em Harvard

Luciana Dyniewicz, O Estado de S.Paulo – 17 de maio de 2020

Após publicar, em meio à crise de 2009, um estudo que foi abraçado por governantes que defendiam a austeridade e que indica que países com uma relação entre dívida e PIB superior a 90% crescem menos, a economista Carmen Reinhart vem defendendo que os países gastem o que for preciso para amenizar a crise decorrente da pandemia da covid-19. Professora em Harvard, Reinhart diz que, neste momento, há preocupações maiores do que o endividamento. “Há muitas rupturas, além da questão do endividamento, que provavelmente terão um efeito adverso maior no crescimento.”

A seguir, trechos da entrevista.

A sra. tem defendido políticas fiscais agressivas durante a pandemia. Depois da crise de 2009, porém, advogava pela redução de gastos públicos, porque seus estudos indicavam que países com dívida maior que 90% do PIB cresciam menos. Por que essa mudança?

O que estamos respondendo agora não é uma crise padrão. É uma emergência de saúde. Durante uma guerra – e hoje há muitos elementos de guerra -, você se preocupa em vencê-la e, depois, em pagar a dívida. Eu me preocupo com os desafios que teremos no futuro por causa do endividamento, mas também me preocupo que uma falta de reação agora tenha consequências grandes tanto em termos de vidas como em efeitos de longo prazo que uma epidemia pode causar em todas as dimensões da vida.

O que podemos esperar para esses países que chegarão a uma dívida/PIB superior a 90%, como o Brasil? Vão crescer menos depois da pandemia?

Não tenho ideia. Sabemos se a crise vai terminar em um mês ou em um ano? A feição da economia dependerá da duração da pandemia. Minha suspeita é que teremos um período de crescimento mais lento, mas isso não ocorrerá apenas por causa do endividamento. Ocorrerá também porque cadeias de fornecimento globais estão sendo interrompidas. A Organização Mundial do Comércio (OMC) indicou que o comércio global neste ano pode cair de 13% a 32%. Se for um número no meio desses dois extremos, teremos a maior queda desde a depressão de 1930. Outra questão é que a pandemia não é sincronizada, começou na China, foi para a Europa, agora está atingindo os Estados Unidos. Por quanto tempo o turismo e outras atividades relacionadas ficarão suspensas? Há muitas rupturas, além da questão do endividamento, que provavelmente terão um efeito adverso maior no crescimento.

Como ficam os países emergentes diante dessas rupturas?

O Brasil e outros produtores de commodities vão sofrer mais um impacto negativo. Esses países se beneficiaram depois da crise de 2008/2009, porque a China estava crescendo a dois dígitos, o que elevou o preço das commodities. Não acho que a China vá voltar a crescer nem 6%. Então o preço das commodities não vai mais ser um propulsor. O que quero dizer é que me preocupo com o endividamento dos países, mas tenho muitas outras preocupações, incluindo uma desglobalização.

A sra. vem defendendo a suspensão do pagamento da dívida externa de países emergentes. No caso do Brasil, que tem sobretudo uma dívida doméstica, o que poderia ser feito?

O que Kenneth Rogoff (também autor do estudo que relaciona endividamento elevado a baixo crescimento) e eu propomos é uma suspensão temporária para permitir que os países não tenham de se preocupar com a dívida neste ano e possam se preocupar em gastar no que é preciso. Suspender o pagamento da dívida externa ajudaria um pouco o Brasil também, porque há dívida externa, mas não é algo relevante. Suspender o pagamento da dívida interna não ajudaria. Se você tem um fundo de pensão que depende de investimentos em letras do Tesouro e suspende os pagamentos, as consequências são o oposto do que se quer, que é colocar dinheiro no bolso de famílias. O mais próximo do que estamos propondo seria o Brasil negociar com os investidores estrangeiros que têm papéis da dívida doméstica brasileira.

O que o Brasil poderia fazer, então, para amenizar a crise?

O Brasil entrou na crise já endividado e com questões fiscais não resolvidas. O Banco Central está sendo mais agressivo na parte dos juros. Mas, do lado fiscal – e você está falando com alguém que se preocupa muito com endividamento -, minha visão é que não se pode lutar uma guerra como essa com um braço atrás das costas. É preciso uma resposta fiscal para ajudar aqueles que perderam seus empregos por causa do lockdown e os negócios que tiveram de fechar. Não estamos falando de luxo, estamos falando de necessidades.

Como um país como o Brasil pode financiar esse aumento de gastos?

Tem de ser uma mistura: uma parte com emissão de dívida, outra com relaxamento monetário (que reduz os juros da dívida). Uma coisa que tem de ter cuidado é com o gerenciamento da dívida. Não se pode ter muita dívida de curto prazo, porque aí você pode enfrentar problemas de risco mais alto. É preciso escalonar os pagamentos para não ter agrupamentos, para não ter um perfil de pagamento de dívidas que dê origem a pontos vulneráveis.

Quais impactos no sistema financeiro global teria uma suspensão do pagamento da dívida externa pelos emergentes? Não poderia incentivar os países a adotarem políticas fiscais irresponsáveis?

A palavra chave é ‘temporário’. O G-20 já endossou isso para países da IDA (braço do Banco Mundial que ajuda os países mais pobres do mundo) enfrentarem uma crise que supera qualquer outra desde 1930

Em artigo recente, a sra. mencionou que a situação das empresas americanas é preocupante, dado suas dívidas. Qual a probabilidade de a crise causada pela pandemia resultar também em uma crise financeira global?

Significante e depende de quanto a pandemia vai durar. O Fed (Federal Reserve, o banco central americano) foi agressivo ao estabelecer medidas para incentivar a economia. Então, há políticas tentando mitigar esse risco (de crise financeira). Mas, quanto mais tempo a pandemia durar, mais provável serão os defaults, sejam eles corporativos ou de países. Os ingredientes para uma crise sistêmica estão aí.

Se houver uma crise financeira depois da crise da pandemia, podemos ter um cenário similar ao de 1930?

A diferença chave é que políticas monetárias e fiscais estão sendo adotadas para estimular a economia. Em 1930, as taxas de juros reais eram altas, ainda que as nominais tivessem caído a zero. Não acho que haverá isso agora. Mas há similaridades importantes. Como em 1930, agora há a queda do preço das commodities, que não é apenas um choque da covid-19. A guerra do petróleo entre Arábia Saudita e Rússia derrubou o preço do petróleo e de outras commodities e golpeou mercados emergentes. Outro problema é a queda do comércio global. Temos ainda uma parada brusca e exagerada em fluxos de capitais para mercados emergentes e uma volatilidade enorme no mercado financeiro. Outra semelhança é que economias avançadas e emergentes serão atingidas de forma grave, a última vez que isso ocorreu foi em 1930. Nos anos 80, foi uma crise nos emergentes e, em 2008/2009, foi mais nos avançados.

 

Afinal, emitiremos dinheiro para lutar contra a Covid-19? Por Bresser Pereira

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Folha de São Paulo, 15/05/2020.

Não precisam ter medo: prática não provocará aumento da dívida pública

Desde o fim de março venho defendendo que o Banco Central seja autorizado a emitir dinheiro para financiar os grandes gastos necessários para enfrentar o novo coronavírus. Já há algum tempo o tema é objeto de uma reforma constitucional, a emenda da guerra à Covid-19. Os membros do Congresso, porém, mal assessorados, e a opinião pública brasileira, ainda escaldada pela grande inflação de 1980-1994, tem medo de que isso provoque alta de preços.

Não precisam ter medo. No quadro atual de aumento violento do desemprego e de recessão —senão depressão—, a compra de títulos novos do Tesouro não causará inflação. Hoje, depois de ter sido abandonada pelos bancos centrais nos anos 1990, e depois das enormes emissões de moeda feitas pelos países ricos desde 2009 sem que houvesse qualquer inflação, a teoria monetarista está completamente desmoralizada.

Essa prática, baseada em uma identidade elementar (MV=Py), transformava-se em uma teoria na qual V, o número de vezes em que a mesma moeda é usada no ano, era considerada constante; e, portanto, a inflação (P) era causada pelo aumento da quantidade de moeda (M) acima do aumento da produção (y). Na prática, a velocidade de circulação da moeda não é constante, e é o PIB que determina a quantidade de moeda. O aumento dos preços independe da quantidade de moeda; ele é causado pelo excesso de demanda, que não faz parte dessa equação.

Como é possível que a variação do PIB determine a quantidade de moeda em circulação? Porque o dinheiro é criado pelo aumento do crédito, seja ao setor privado ou ao Estado, e o crédito tende a crescer com o PIB para que a moeda possa desempenhar seu papel de óleo lubrificante do motor econômico. Quando o país entra em recessão e precisa aumentar fortemente sua despesa pública, o Tesouro precisa de crédito para financiá-lo, e, portanto, haverá uma emissão de moeda, não importando se os títulos emitidos forem financiados pelo setor privado ou público.

Portanto, se concordamos que o Estado precisará realizar grandes gastos, muito mais do que os 3,2% hoje previstos, haverá emissão de moeda, tanto quando o setor privado for o credor quanto se o Banco Central fizer esse papel.

Qual é, então, a diferença entre a venda de títulos do Tesouro ao setor privado ou ao Banco Central? A diferença objetiva é que no primeiro caso haverá aumento da dívida pública, que depois precisará ser paga e envolverá anos de austeridade, enquanto no segundo não há aumento da dívida pública. A dívida pública é a dívida do Estado, e tanto o Tesouro quanto o Banco Central fazem parte dele. Em termos líquidos, não há qualquer aumento da dívida pública.

É verdade que as normas contábeis geralmente seguidas pelos países não reconhecem esse fato. Segundo meus cálculos, o Japão deve ter reduzido em 77%, e os Estados Unidos, em 12% do PIB sua dívida pública entre 2009 e 2019 —mas a dívida pública contabilizada desses dois países não mudou por isso. Porque os economistas adoram ficções.

Neste momento, é importante jogar no lixo esse medo de emissão de moeda. Porque não haverá aumento da dívida pública e porque não se deve prever que o governo federal mergulhe na irresponsabilidade fiscal —ele apenas terá menos medo em realizar os gastos necessários.
Parece que esse medo está diminuindo. No dia 1º de maio, a Folha dedicou duas páginas ao problema da emissão de moeda via Banco Central-Tesouro.

Paulo Guedes diz que pode emitir moeda se a inflação for a zero. Dois economistas igualmente ortodoxos, Henrique Meirelles e Márcio Garcia, defendem essa política. E a Folha defende que “ao imprimir dinheiro, o Estado cria poder de compra que antes não existia”. Equivoca-se apenas em afirmar que haverá aumento da dívida pública.

A compra de títulos do Tesouro pelo Banco Central precisará ser cuidadosamente regulada e transparentemente controlada. Dessa maneira, estou seguro que será um trunfo na luta contra a Covid-19 e a depressão à vista.

 

A era da superexploração virtual do trabalho, entrevista com Ruy Braga.

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Isolamento impõe transformação radical do ambiente doméstico, com jornadas extenuantes e redução de salários. Corporações aceleram projeto de ensino à distância. Um desafio urgente à esquerda: a criação de plataformas cooperativas.

Ruy Braga Neto e Rafael Grohmann, em entrevista ao IHU Online.

Sociologicamente, nas análises, costumava-se usar o termo “mundo do trabalho”. Ou seja, é observar os diversos aspectos da vida atravessados pela perspectiva do trabalho. Mas, e quando o trabalho – ou a falta dele – transborda, passa a ser uma espécie de agenciador de todas os aspectos da vida? Nesses tempos de pandemia causada pelo novo coronavírus, muitas pessoas foram jogadas na realidade do home office e o lar passou a ser organizado desde a centralidade do trabalho. As jornadas extrapolam e as demais tarefas e aspectos da vida preenchem os – poucos – espaços que sobram. De outro lado, há quem sequer consegue se manter no trabalho, seja porque foi demitido em decorrência da crise ou porque a exposição a jornadas extenuantes levou ao adoecimento. Nesse contexto, em que a Revolução 4.0 é o outro aspecto a ser levado em conta, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU foi ouvir especialistas sobre o atual contexto do mundo do trabalho, na passagem por um 1º de maio nunca visto.

O professor Ruy Braga Neto observa que o “home office tem se mostrado viável até o momento, apesar de todo o improviso”. Mas adverte que “sua generalização e rotinização exigirão mudanças muito profundas no ambiente de trabalho, além de investimentos em plataformas digitais pelas empresas e novas soluções relativas às jornadas de trabalho”. Além disso, lógicas de produção terão de ser repensadas. “O ambiente doméstico não é – e na minha opinião, nem deve ser – estruturado para favorecer a produtividade do trabalho. Em geral, os trabalhadores e os profissionais não estão preparados para trabalhar em casa ao lado das atividades mais tradicionais do lar”, pontua em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. “Evidentemente, essa tendência irá aprofundar as desigualdades existentes entre aqueles que terão condições de acompanhar as mudanças tecnológicas e aqueles que não serão capazes de se adaptar ao novo contexto social que se avizinha”, acrescenta.

Já o professor Rafael Grohmann chama atenção para outra perspectiva de uma mesma realidade. “De um lado, trabalhadores que ficam em home office estão perdendo parte dos seus salários, perdendo parte da jornada de trabalho, intensificando a própria precarização do trabalho. Por outro lado, esta situação acaba colocando ainda mais pessoas para trabalhar em plataformas digitais, como os entregadores, que estão sendo mais solicitados e expostos ao risco”, analisa, em entrevista concedida via WhatApp à IHU On-Line. Para Rafael, que ainda lembra daqueles que simplesmente são excluídos desse mundo, este é um momento em que a discussão sobre uma renda universal se coloca com força. “Falar em renda básica universal nesse cenário é o mínimo em que uma saída liberal poderia incorrer. É o mínimo em um cenário de situação econômica tão grave que não se vê desde 1930”, sintetiza.

Ruy Braga também pensa nesse sentido e aponta que entre as propostas para se sair da crise está a necessidade de o Estado “ampliar políticas redistributivas e investir na universalização do acesso à saúde, à educação, ao saneamento e à habitação”. “É claro que isso terá um preço que deverá ser pago conforme o princípio do “quem pode mais, paga mais”, ou seja, tributos e impostos progressivos”, acrescenta. Rafael ainda vê a emergência de “pensar também como se dá a extração de valor das plataformas no mundo do trabalho e lutar por outras plataformas possíveis no mundo do trabalho a partir da coletivização delas e de projetos como o cooperativismo de plataforma”.

Ruy Gomes Braga Neto é especialista em Sociologia do Trabalho e leciona no Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – USP, onde coordenou o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania – Cenedic. Graduado em Ciências Sociais, mestre em Sociologia e doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, é autor dos livros A política do precariado (São Paulo: Boitempo, 2012) e A rebeldia do precariado (São Paulo: Boitempo, 2017).

Rafael Grohmann é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos. Doutor e Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo – USP, é criador e editor da newsletter DigiLabour. Entre os livros publicados, está As Mudanças no Mundo do Trabalho do Jornalista (São Paulo: Atlas, 2013).

Confira as entrevistas

IHU On-Line – Que mudanças de fundo vislumbra no mundo do trabalho?

Ruy Braga Neto – A questão principal diz respeito aos desdobramentos econômicos em escala mundial decorrentes do que muitos estão chamando de “grande isolamento”. O mais evidente é a desaceleração da economia e, consequentemente, a desaceleração do processo de globalização econômica. A partir de agora, ficaremos mais tempo em casa e, consequentemente, o mundo do trabalho tende a se transformar com um predomínio de tecnologias remotas e virtualização das relações de trabalho onde isso se mostrar viável. Apesar de o setor de serviços ser mais permeável ao trabalho remoto e virtual, contraditoriamente, alguns segmentos deste setor, notoriamente, o turismo, a aviação, a hotelaria, o entretenimento etc., serão mais duramente atingidos pela desaceleração econômica.

Por outro lado, uma das consequências do isolamento social é a ampliação do uso do trabalho remoto. O home office tem se mostrado viável até o momento, apesar de todo o improviso. Ocorre que sua generalização e rotinização exigirão mudanças muito profundas no ambiente de trabalho, além de investimentos em plataformas digitais pelas empresas e novas soluções relativas às jornadas de trabalho.

Na realidade, o ambiente doméstico não é – e na minha opinião, nem deve ser – estruturado para favorecer a produtividade do trabalho. Em geral, os trabalhadores e os profissionais não estão preparados para trabalhar em casa ao lado em casa ao lado das atividades mais tradicionais do lar. Isso deve causar inúmeros problemas relacionados ao sofrimento psíquico do trabalhador e, consequentemente, à queda da produtividade do trabalho. Ou seja, as empresas terão que redefinir os parâmetros globais dessa modalidade de trabalho a partir de algum modelo híbrido no qual as atividades remotas sejam combinadas com atividades presenciais. O grande isolamento irá promover uma mudança muito profunda no ambiente de trabalho e as tecnologias virtuais e comunicacionais serão cada dia mais importantes na redefinição deste ambiente. O mesmo deve ocorrer também na indústria com uma pressão cada vez maior para a automação de processos.

IHU On-Line – O que se pode esperar em termos de desemprego e desigualdades? Qual deve ser o papel do Estado nesse contexto?

Ruy Braga Neto – O futuro previsível do trabalho está muito conectado às soluções tecnológicas providas pelas tecnologias da informação. Evidentemente, essa tendência irá aprofundar as desigualdades existentes entre aqueles que terão condições de acompanhar as mudanças tecnológicas e aqueles que não serão capazes de se adaptar ao novo contexto social que se avizinha. A tendência é que haja um aumento das desigualdades e um aprofundamento da polarização social que fatalmente irá tensionar as estruturas políticas.

Isso é inescapável quando pensamos no aumento do desemprego e, consequentemente, do subemprego e da informalização econômica daí decorrentes. Trata-se de uma situação dramática na qual muitos serão lançados a sua própria sorte e tendo a rua, agora, mais como uma ameaça de morte do que como uma aliada da sobrevivência. Na realidade já estamos assistindo este fenômeno acontecendo agora. Basta observarmos os números do seguro-desemprego: mais de um milhão de trabalhadores acessaram o direito nos últimos 45 dias. Em pouco tempo, estes trabalhadores passarão para a informalidade, pois as empresas não irão recontratá-los.

A previsão feita recentemente pelo Banco Mundial para o Brasil aponta para um aumento de 5 milhões de desempregados decorrentes da crise econômica. O pior para o trabalhador ainda está por vir. E não há como enfrentar uma situação como essa sem o recurso às políticas públicas protetivas do trabalho. Ou seja, os Estados nacionais serão agentes cada dia mais centrais neste mundo redesenhado pelo grande isolamento.

IHU On-Line – Quais são as alternativas e propostas de saída para a crise?

Ruy Braga Neto – Em um sentido progressista, os Estados poderão ampliar políticas redistributivas e investir na universalização do acesso à saúde, à educação, ao saneamento e à habitação. É claro que isso terá um preço que deverá ser pago conforme o princípio do “quem pode mais, paga mais”, ou seja, tributos e impostos progressivos. O caminho da renda cidadã incondicional será cada dia mais desejável e, de uma certa maneira, incontornável.

Em um sentido regressivo, devemos assistir ao fortalecimento de populismo de direita com o emprego massivo de meios repressivos a fim de conter revoltas e o descontentamento social com o aprofundamento da fratura social trazida pelo grande isolamento. Infelizmente, para o caso brasileiro, prevejo um futuro bastante sombrio em termos de iniciativas políticas, com um processo de aumento da desigualdade alimentando a angústia dos trabalhadores. Resta saber se este estresse social que se acumula irá se voltar contra os governantes que nada fizeram para enfrentar a crise de saúde pública somada à crise política ou se servirá para alimentar protestos que reivindiquem mais proteção e soluções redistributivas.

IHU On-Line – Que mudanças de fundo vislumbra no mundo do trabalho?

Rafael Grohmann – Nós estamos num ponto crucial da história do século XXI porque estamos num momento de disputas e lutas em relação ao nosso futuro e o que vamos apreender desse futuro em relação também ao mundo do trabalho. O professor Rafael Evangelista, da Unicamp, escreveu um texto em que diz que estamos numa disputa de três caminhos: aceleração, ruptura e exceção, ou seja, qual vai ser o sentido da pandemia de coronavírus para as nossas vidas.

De um lado – e essa parece ser a narrativa e o sentido por enquanto dominante –, o capital quer acelerar processos que estavam em andamento pelas suas vias, como home office, educação a distância, digitalização de todos os serviços que já estavam numa agenda conjuntamente de financeirização, dataficação e uma racionalidade neoliberal por trás desses processos. Por outro, podemos considerar este momento como uma exceção ou uma ruptura – e esse é o ponto que o Evangelista coloca. Tenho entendido que este momento pode servir para essas questões, que o Rafael chama de aceleração do próprio movimento do capital – o que já tem acontecido – e algumas mudanças podem se manter a despeito de as pessoas estarem mexidas com sua saúde mental, estarem se sentido cada vez mais pressionadas por produtividade, sentindo que o mundo do trabalho é o único mundo possível neste cenário de quem acaba ficando em home office, por exemplo.

Então, de um lado, trabalhadores que ficam em home office – que é uma parcela da população –estão perdendo parte dos seus salários, perdendo parte da jornada de trabalho, intensificando a própria precarização do trabalho. Por outro lado, esta situação acaba colocando ainda mais pessoas para trabalhar em plataformas digitais, como os entregadores, que estão sendo mais solicitados e expostos ao risco. Mas o ponto do que vai mudar na sociedade é que este é um momento de disputa.

Neoliberalismo progressista

Já antes da pandemia, Nancy Fraser, no livro “Capitalismo em debate” (Boitempo, 2020), diz que o que está em crise é uma certa hegemonia do que ela chama – com certa controvérsia – de neoliberalismo progressista, ou seja, as alianças neoliberais do século XX, desde Tony Blair, Bill Clinton, Rede Globo e por aí vai. É isto que está colocado em xeque hoje tanto pela extrema direita quanto numa alternativa à esquerda. Se este é um momento de disputa, é hora também de a esquerda mostrar alternativas a esse momento e colocar-se na disputa por esse sentido. Quer dizer, de que maneira vamos sobreviver nesta crise de pandemia com mais cooperação, alternativas de trabalho que mudem uma lógica individualista, que pensem em coletivização, seja de plataforma, seja de trabalho, ou seja, como este também é o momento para prefigurar ou vislumbrar outros tipos de vida que estavam naturalizados antes da crise de pandemia.

Capitalismo: dominação plena ou seu fim?

Então, este é um momento de disputa e não são desses dois sentidos entre aceleração e essa possível volta, pois isso está em aberto. Não dá para dizer, de um lado, que o capitalismo já ganhou e dominou tudo e, por outro, não dá para dizer que o capitalismo nunca esteve tão próximo do seu fim. Isso seria de uma ingenuidade tremenda de não ver como as lógicas do capital, num cenário de financeirização e plataformização, e as grandes empresas tecnológicas estão de mãos dadas com vigilância extrema aos trabalhadores, inclusive pela própria gestão algorítmica. Por isso considero que este é um cenário aberto e que setores progressistas da sociedade têm que disputar o que é e como apreendemos outros futuros possíveis a partir disso que está acontecendo também no mundo do trabalho.

IHU On-Line – O que se pode esperar em termos de desemprego e desigualdades? Qual deve ser o papel do Estado nesse contexto?

Rafael Grohmann – A intensificação da digitalização do trabalho, neste contexto de pandemia, vai trazer uma intensificação das desigualdades de gênero, de raça, de classe num contexto como o do Brasil. Isso vai acabar dividido em pessoas que podem fazer home office e pessoas que estarão nas ruas e o trabalho digital feito de casa, em home office, com diferentes clivagens.

Pensando na própria questão de gênero, várias pesquisas estão mostrando que as mulheres acadêmicas estão sofrendo mais nesse processo de home office por maior sobrecarga de trabalho e estão submetendo menos artigos do que os homens proporcionalmente. Vamos ver uma intensificação da conta da pandemia para o próprio trabalhador. Por mais que se ensaie novamente o papel do Estado, o que temos visto por aí é uma intensificação do “se vire com o que você tem”, “faça mágica com o que você tem”. Saímos do que Ludmila Abílio chama de gestão da sobrevivência para a sobrevivência puramente, quer dizer, de nem conseguir pensar essa gestão. Isso envolve pensar como a crise de coronavírus impacta a saúde mental dos trabalhadores, porque falar em mundo do trabalho é falar que essas pessoas não são máquinas produtivas; são seres humanos que precisam ter não só o mundo do trabalho como o único norte da vida no sentido de só trabalhar, porque é preciso viver.

É preciso reinventar o espaço da vida de modo que não seja só trabalho. Aí entra o papel do trabalho não pago, do trabalho gratuito em contexto de pandemia e entra também a própria invisibilidade – se intensificando com o fato de todo mundo ficar em casa – de quem não trabalha e está perdendo o emprego. Isso é algo que se vislumbra para o futuro em relação a essa intensificação do trabalho.

Renda básica universal

Tem um índice criado pela Universidade de Oxford, The Online Labour Index, que mede a demanda e a oferta de trabalho digital on-line, principalmente home office, seja em plataformas para alimentar inteligência artificial ou plataforma freelancer em geral. Nesse tempo de coronavírus, a oferta de “jobs on-line” tem caído drasticamente. Pegar uns “freelas” em algumas plataformas enquanto se está com metade do salário tem sido cada vez mais difícil.

Na verdade, hoje, falar em renda básica universal nesse cenário é o mínimo em que uma saída liberal poderia incorrer. É o mínimo em um cenário de situação econômica tão grave que não se vê desde 1930. O que se prenuncia é isto: de que maneira os Estados vão assumir, no mínimo, essa tarefa? É preciso buscar formas alternativas de sustentação de arranjos produtivos para além da falácia do empreendedorismo. Quer dizer, como podemos pensar em coletivização das plataformas ou, como defende o autor Callum Cant num livro sobre entregadores de delivery, Riding for Deliveroo: Resistance in the New Economy, a expropriação das plataformas pelos trabalhadores. Este já era um desafio colocado antes da pandemia e agora se acentua não mais como uma utopia, mas de que maneira vamos sobreviver com o cenário que estamos enfrentando. Este é um ponto chave para pensarmos o que vai ser o pós-pandemia, que não vai ser “ok”. Vai ser um processo do qual não vamos sair os mesmos.

IHU On-Line – Quais são as alternativas e propostas de saída para a crise?

Rafael Grohmann – Se, como falei antes, estamos num momento de disputas e intensificação dessas disputas relacionadas ao mundo do trabalho, é hora de lutarmos por outros mundos possíveis em um contexto de trabalho digital e de plataformas. O que queremos não é uma volta ao mundo sem tecnologias, mas é preciso reconhecer as disputas políticas dentro das tecnologias e reconhecer que tecnologias são fruto do trabalho humano e reapropriadas por grandes empresas. É preciso pensar também como se dá a extração de valor das plataformas no mundo do trabalho e lutar por outras plataformas possíveis no mundo do trabalho a partir da coletivização delas e de projetos como o cooperativismo de plataforma.

Também é preciso lutar por uma regulação mais rígida das plataformas de trabalho, como tem feito o projeto Fairwork, coordenado pela Universidade de Oxford e que está vindo para o Brasil com a coordenação da Unisinos. Consiste em pressionar as plataformas digitais por melhores condições de trabalho. É hora de nós mesmos, pesquisadores universitários, estarmos mais envolvidos com pesquisas de intervenção no cenário do mundo do trabalho de maneira que não só compreendamos o que está acontecendo, mas busquemos, na prática, caminhos possíveis para outros futuros do trabalho que não este que repete a ideologia do Vale do Silício, que repete mantras de coaching e futuristas, através dos quais vamos cair num abismo do trabalho.

Lutas globais em contextos digitais

Precisamos ainda, como país, pensar o que queremos para as nossas políticas não só do trabalho, mas de ciência e tecnologia, como um país soberano também dentro de um contexto global. Quer dizer, como fazer circular a luta dos trabalhadores local, nacional e globalmente em um contexto digital. Como eu disse, não devemos lutar por uma era sem tecnologia, mas por plataformas alternativas.

Há uma pesquisa da Universidade de Westminster, capitaneada pelo professor Christian Fuchs, que mostra que mais da metade das pessoas no Reino Unido clama por outros tipos de plataformas alternativas. Precisamos também imaginar quais seriam esses modelos que não estão ainda dados. O que está colocado aí é que tipo de futuros possíveis podemos apreender e de que maneiras podemos ir além dos modelos que estão colocados. O momento é menos de respostas prontas e mais de imaginar futuros alternativos para o mundo do trabalho digital.

 

No governo, uma criança onipotente se transforma num canalha. Por Contardo Calligaris.

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Folha de São Paulo, 14/05/2020

Há quem ache que, diante da pandemia, deveríamos sacrificar vidas

A bolsa ou a vida? Anos atrás, o psicanalista francês Jacques Lacan se serviu dessa alternativa para explicar o que é uma escolha forçada —que, de fato, nem sequer é uma escolha.

Eis por quê: se eu escolher ficar com a bolsa, não perderei só a vida, mas também a própria bolsa pela qual me sacrifiquei, pois nenhum ladrão vai ser burro a ponto de deixar a bolsa com o meu cadáver.

Então, quem escolhe a bolsa perde a vida e também a bolsa.

Conclusão: só resta escolher a vida e entregar a bolsa. No Brasil, por causa de um gosto antigo pela violência (que talvez tenha penetrado a cultura nacional junto da prática da escravatura), o bandido, às vezes, recebe a bolsa e ainda assim nos dá um tiro de despedida. De qualquer forma, entregando a bolsa, temos ao menos uma chance de ficar com a vida —embora, é claro, uma vida sem a bolsa.

A alternativa de “a bolsa ou a vida?” talvez nos ajude a enxergar a estranheza do debate em curso entre a saúde e a economia diante da pandemia de coronavírus. Deveríamos, por exemplo, proteger as vidas com o maior isolamento social possível? Ou deveríamos aceitar um aumento da taxa de infecção e do número de mortos para preservar a atividade econômica? A vida ou a bolsa?

Parênteses: em outros países, o debate a favor ou contra o isolamento existe como discussão sobre qual caminho poderia, a longo prazo, produzir uma imunidade coletiva e portanto poupar mais vidas.

No Brasil, a questão é apenas sobre a “necessidade” de reabrir o comércio e retomar a atividade econômica.

Voltemos. Há uma diferença considerável entre a alternativa proposta pelo bandido e nossa situação atual. A pergunta do bandido se endereça a uma pessoa só —você, que está sendo assaltado.
Imagine que, na hora do assalto, você esteja com um seu conhecido. Ao serem assaltados, você consegue se entrincheirar numa sala segura, junto com a sua bolsa, mas seu conhecido fica de fora. O bandido pede para você escolher entre a sua bolsa e a vida do conhecido. Qual será sua escolha?

Os que acham que, diante da pandemia, deveríamos escolher a bolsa e sacrificar vidas não estão entrincheirados em abrigos que os protejam da contaminação e de uma morte eventual. Eles apenas se consideram invulneráveis. São crianças atrasadas, convencidas de sua onipotência e da proteção eterna que lhes seria reservada pelo amor de suas mães.

Essa é uma patologia frequente, sobretudo masculina, incômoda para quem tem a desgraça de conviver com o paciente e só realmente perigosa quando o paciente ocupa um cargo de governo, sobretudo executivo.

No governo, a criança onipotente se transforma facilmente num canalha, que, considerando-se invulnerável, está disposto a escolher a bolsa, porque a vida que ele perderia seria sempre a vida dos outros.

Ou seja, os negacionistas acham que deveríamos desistir do isolamento social para preservar a economia e estão dispostos, para isso, a entregar, não a vida deles, mas a vida dos outros. Eles escolhem a bolsa e deixam o bandido (o vírus) matar a quem ele quiser (salvo a eles mesmos, que se imaginam protegidos por serem os eternos bebês maravilhosos de suas mães).

Alguém dirá: então deveríamos escolher a vida e esquecer a bolsa? E como vamos pôr comida na mesa?

Pois bem, é exatamente aqui que se esperariam a existência e a intervenção de um governo. O debate entre privilegiar a saúde ou a economia (a bolsa ou a vida) parece ser uma diversão inventada por um governo que não enxerga sua função crucial, a qual consistiria em administrar as consequências econômicas da única escolha aceitável (a escolha pela vida).

Ou seja, uma vez que só é possível escolher a vida (e não a bolsa), resta a tarefa de sustentar a vida de todos da melhor maneira possível.

Os governos, mundo afora, gastam e gastarão o que têm e o que não têm (sim, há momentos em qualquer administração nos quais é necessário gastar o que não se tem) para que os cidadãos possam proteger suas vidas (e logo retomá-las) sem se preocupar com sua sustentação básica, suas dívidas vencidas, seu aluguel e seus impostos atrasados etc.

Em vez disso, no Brasil, até agora, assistimos a uma comédia patética em que o governo promete, brada e não consegue nem sequer distribuir dignamente uma ajuda irrisória (os famosos R$ 600) sem que a própria distribuição se torne, para muitos, a ocasião de mais uma sinistra exposição ao contágio, em filas de espera.

Se governo não agir em favor da economia, classe política o fará, diz economista.

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Para diretor do Ibre/FGV, com empresas privadas combalidas durante pandemia, caberá ao Estado impulsionar retomada

Eduardo Cucolo e Alexa Salomão

10 de maio – Folha de São Paulo

Nem tudo é desastre para a economia brasileira diante da pandemia do novo coronavírus, diz o diretor do Ibre/FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), Luiz Guilherme Schymura.

Contrariando alguns de seus pares, ele acredita que a equipe econômica do governo federal deve tomar a dianteira para comandar um plano de recuperação dos investimentos que ajude o país a sair da crise em marcha.

Schymura defende um programa nos moldes do Pró-Brasil, lançado sem o aval do Ministério da Economia, porque acredita na necessidade de investimento público. Mas faz a ressalva: é preciso garantir que fique restrito ao menor gasto possível com obras exequíveis e que ofereçam alta taxa de retorno.

Qual o cenário que o sr. traça para a economia do país em meio à pandemia? Há alternativas para dirimir a queda do PIB? 
Ainda há muitas incertezas no ar, pessoas que estão perdendo emprego, e há iniciativas iniciais de transferência de renda, como o auxílio emergencial. Mas o momento da retomada vai gerar inexoravelmente a discussão sobre a atuação do Estado.

Teremos um setor privado em uma situação muito difícil, alquebrado, por causa da dificuldade em relação ao crédito, do período de poucas vendas e da economia combalida. É natural que o setor privado demore para reagir.

Quando esse cenário se desenhar, haverá uma cobrança muito grande da classe política para que ações sejam feitas. Vamos esperar que, com o tempo, o mercado se ajuste e a economia comece a crescer? Não foi assim depois da reforma da Previdência.

Acredito que a saída está num programa de investimento público, como esse que o Ministério da Infraestrutura está desenhando. Tem de dosar a quantidade de recursos, ver quais as obras mais viáveis, mas é por aí. A pressão política será insuportável. É importante o governo sair na frente com esse programa, gastando o mínimo necessário.

Há muitas resistências por causa de programas anteriores que não deram certo, como o PAC [Programa de Aceleração do Crescimento]. 
Ficamos com a impressão de que todo investimento público tem uma efetividade muito pequena, e há obras paradas. Mas algumas estão maduras para serem concluídas. A equipe dessa área tem um programa que pode fazer sentido, com obras que pedem investimento relativamente baixo para uma taxa de retorno alta.

Dada a situação fiscal muito delicada, eu não seria favorável a esse movimento, mas não podemos esquecer a pressão política que haverá e que alguns investimentos poderão ter uma taxa de retorno muito acima do esperado se forem bem selecionados.

Mas não é necessário um programa que não mexa negativamente com as expectativas? 
Isso é fundamental. É importante que o governo crie uma narrativa que deixe claro aos agentes econômicos que isso é inexorável em razão da necessidade de retomada da economia, mostre o quão eficazes serão os investimentos nesses projetos e que não é tanto [dinheiro] assim.

Nada de pensar em Plano de Metas, Plano Marshall, nada disso. Esse discurso neste momento é temerário. Não conseguiremos sair da crise se não mantivermos nossos juros em um patamar razoável. Os agentes econômicos precisam entender que não haverá aventuras, que o Brasil amadureceu na questão fiscal.

Mas repito. Se o governo não se mobilizar e agir para impulsionar a economia, a classe política o fará. Não esqueçamos que dificilmente iniciaremos a retomada com uma taxa de desemprego abaixo de 15%.

É possível administrar a questão fiscal com uma dívida que vai crescer? Saindo da pandemia, o estoque da dívida será muito mais alto, na faixa de 90% a 100% do PIB [Produto Interno Bruto]. Não vejo isso como uma situação tão dramática hoje.

As dívidas só fazem crescer em outros países, e ninguém está preocupado, porque tem um excesso de poupança, e a taxa de juros vai continuar muito baixa.

Pela pandemia, o mundo vai se tornar um lugar mais pobre. Que efeito pode ter para o brasileiro, em termos históricos, empobrecer? 
Devemos ter uma queda do PIB próxima a 4%, e o desemprego vai para 18%. Não estou dizendo que seja bom, mas, se no ano que vem começar a retomar um pouquinho, não vejo muitos problemas do ponto de vista de desastre social. Mas ficarão algumas questões.

Uma pergunta que eu me faço é como ficará esse modelo em que, no meio de uma pandemia, estamos repassando R$ 600, até R$ 1.200, para pessoas do Bolsa Família que ganhavam em média R$ 190. Como vai trabalhar politicamente o retorno aos R$ 190? Difícil entabular um discurso.

Como fica a questão do distanciamento social para a economia? Distanciamento horizontal é uma saída? Por enquanto, sim. Quem tentou fazer coisas diferentes entrou pelo cano, e estou falando de países de primeiro mundo.

Não sabemos o que significa esse vírus entrando nas nossas comunidades. Achar que a economia vai ter um desempenho pelo menos satisfatório enquanto esse vírus andar por aí é ilusão, isso não é possível. Enquanto não conseguirem uma vacina ou um antiviral com uma força grande, difícil acreditar que os países da América Latina consigam ter uma economia pujante.

A gente não consegue nem fazer dinheiro chegar à mão do informal. Como vai pensar em separar a população?
Isso aqui não é Coreia nem Japão. Mesmo naqueles países que estão tentando alternativas que não o isolamento horizontal a economia está sofrendo. Esse dilema isolamento horizontal e economia não é uma coisa tão simples.

Como o senhor avalia as ações atuais do governo do ponto de vista econômico? 
Um aspecto que me preocupa muito é a questão das pequenas e médias empresas. Vou mostrar uma coisa. [O entrevistado pega o celular e mostra uma imagem, uma placa na frente de um bar]. Está escrito assim: “Devido o [sic] novo coronavírus, não estou vendendo fiado!!! Vai que você morre”.

Isso é uma metáfora para o problema que estamos enfrentando. Os bancos privados não têm como emprestar para alguém se o risco de não receber é muito alto.

E vai ter quebradeira. Muitas das pequenas e médias empresas não têm como superar o momento de queda da demanda tão acentuada. Para muitas delas, esse financiamento não as tornará empresas viáveis. As empresas pequenas e médias têm fôlego para um ou dois meses. Os bancos não querem botar a mão nesse negócio, não têm interesse. No final das contas, o risco dessas operações deveria ficar com o governo. Não tem como.

O governo precisa ser mais enfático no combate à crise? 
Eles estão tentando, é difícil. Você vê hoje a PEC do Orçamento de Guerra. O objetivo é que o Banco Central possa comprar papéis do setor privado, coisa que não era permitida. Isso é muito razoável. Os bancos não vão ajudar diretamente. Quem vai fazer esse papel tem de ser o governo. No país mais liberal ou menos liberal do mundo, funciona dessa maneira.

Não interessa aos bancos emprestar, o risco é muito grande. Você acha que vai adotar medidas que os bancos vão sair emprestando como loucos? Isso não vai acontecer.

Agora, imagina qualquer um de nós sentado no Banco Central. Você compra um papel. A empresa quebra. O papel vira pó. Essa pandemia acaba daqui a três meses. Quanto tempo você acha que você fica fora da cadeia? Quem vai assinar um negócio desse? Você vê o BNDES. Passaram a limpo 500 vezes todas as operações que fizeram. Hoje tem um apagão de canetas. Você vai assinar uma coisa de altíssimo risco?

A postura do presidente da República, que se contrapõe a grande parte das medidas de isolamento, ajuda ou atrapalha? 
Não quero entrar na discussão da parte política, porque acho que já temos um problema institucional grande. O ideal é que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário estivessem trabalhando juntos, não tenho dúvida de que ajuda. A atual situação também não resolveria o problema do trabalhador informal. Não resolve a falta de liquidez das empresas de pequeno e médio porte. Não resolve o fato de comunidades não terem estrutura de saneamento.

Nós temos problemas socioeconômicos, e instituições que têm dificuldade de lidar com crises, como essa pandemia, o que não tem nada a ver com a questão política.

Pelo fato de a gente ter uma posição socioeconômica mais desfavorável que países de Primeiro Mundo e algumas instituições que não funcionam como no primeiro mundo, é mais importante que tenhamos uma coordenação não só entre os Poderes, mas entre os entes federativos.

Temos muitos informais, o que gera uma dificuldade em identificar quanto ganham. Nos países em que você quase não tem informalidade, é mais fácil fazer política para mitigar riscos dessa classe trabalhadora.

O que o senhor mencionou tem a ver com problemas estruturais do Brasil. O ministro Paulo Guedes estaria certo ao dizer que é o momento de mexer nas estruturas também? Que reformas seriam importantes neste momento? 
Acho que agora não dá para mexer nas estruturas. A gente ainda não sabe quais setores serão mais atingidos.

Agora é hora de questões mais emergenciais. Vamos esquecer as questões estruturais. Seria ótimo se conseguisse parar para resolver isso. Estamos vivendo um momento muito complicado.

O grande tema é a reforma do Estado. Essa eu acho essencial. Existe uma pressão da opinião pública com relação à visão dos servidores. Algumas vantagens, de estabilidade, de aposentadoria, que incomodam muito, vão incomodar muito mais.

Essa pandemia vai agravar essa questão. Enquanto o desemprego vai ser crescente e os salários de quem tem emprego vão cair na iniciativa privada, os servidores estarão sendo preservados.

Também está ficando claro com essa crise a questão do papel do Estado, ter um setor público que seja funcional, que esteja bem organizado. Quem é que está complementando salário? É o setor público. Essa questão do empoçamento de liquidez. Quem tem de estar por trás disso? O setor público. Inclusive estou aliviando os bancos aqui. Não estou criticando nenhum. Não estou esperando nada do setor privado. Nossa conversa toda aqui é setor público. Não falei nada de setor privado hoje. O setor privado está para ser ajudado, não está se exigindo nada do setor privado, pelo contrário.

Ocorre que isso exige mudanças do papel do Estado. Temos quadros espetaculares no setor público. Temos um grupo de servidores muito qualificados. É importante que essa questão seja desenvolvida puxando a questão da eficiência, da produtividade. Quando se fala de reforma do Estado, se fala de uma reforma administrativa para cortar salário. Mas estou falando em uma coisa mais pensada.

Se essa pandemia se estender, é possível ir mais longe nesses gastos? 
Aí é difícil traçar cenários. Tem de ver um pouco como está a situação global, como a economia mundial vai andar, como vão resolver a questão da pandemia, como vai estar o juro internacional nesse contexto.

Já estão falando em coronabonds na zona do euro para salvar alguns países. Será que isso vai virar um processo inflacionário que obrigue a elevação dos juros? Para nós, seria uma desgraça. Mesmo nos EUA. Eles são muito mais organizados do que a gente, mas lá está morrendo gente.

Quanto mais distante estamos da vacina ou de um antiviral que reduza o contágio ou a letalidade, pior vai ficando a situação para a gente.

Bolsonaro, escute: não há frases como ‘quem manda aqui sou eu’ na democracia, por Luís F. Ponde.

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A gangue do presidente é boçal como um churrasco de varanda.

Folha de São Paulo/ 11.mai.2020

Se as Forças Armadas caíssem na tentação de apoiar o golpismo bolsonarista, embarcariam num dos seus priores momentos da história. Não teriam nem a desculpa da Guerra Fria dos anos 1960. Seria pura e simplesmente se transformar numa gangue de farda, como o Exército da Venezuela, que junto com Chávez e Maduro, transformaram a Venezuela num pária geopolítico, matando a esmo sua população.

Ao longo dos últimos anos, as Forças Armadas (que incluem Exército, Aeronáutica e Marinha) conseguiram um respeitável reconhecimento por parte da população, afastando-se do horror da ditadura.

Já a gangue de ethos miliciano dos Bolsonaros é candidata à lata de lixo da história. Traço dessa gangue é achar que governo (eleito) e Estado são a mesma coisa. E, no seu ethos de churrasco de varanda, Bolsonaro entende que ambos são dele.

Bolsonaro quer se passar por militar, mas não é. Sua participação no Exército foi medíocre e curta em comparação a sua vida no centrão. ​

Bolsonaro é uma criatura do pântano, o centrão no período da Revolução Francesa, local onde crescem serpentes venenosas.

Para a excelente formação dos generais brasileiros fica claro que a única coisa a fazer agora é apoiar as instituições da democracia e dizer um grande “não” a Bolsonaro e sua gangue, mostrando a esses ignorantes que na democracia não existe frases como “quem manda aqui sou eu”.

Não, o senhor não manda em nada aqui, senhor Bolsonaro. Quem manda são as instituições.

É bom explicar a esse equivocado e seus seguidores ignorantes que a democracia é um regime institucional cujo primeiro objetivo de todos é controlar o poder pelo próprio poder.

Esses ignorantes que portam a camisa da seleção brasileira para agredir a imprensa são a vergonha do país.

Enquanto esses idiotas berram frases a favor da ditadura, nós nos afogamos na pandemia.

Esses ignorantes não entendem patavina do que é que seja uma democracia.

Aliás, acho que o Ministério Público deveria processar a administração Bolsonaro e sua gangue por genocídio em massa de brasileiros. Seria de bom tom. Todo e qualquer esforço institucional para barrar essa nova gangue será bem-vindo.

Aqui vai um apelo às Forças Armadas: vocês estão tendo um momento histórico para mostrar que merecem a confiança depositada em vocês pela imensa maioria de gente decente que carrega o Brasil nas costas. Não deixem a delinquência falar mais alto. Apoiem o STF em suas decisões, o Legislativo em sua função, que assim como o STF, deve servir de contrapeso aos abusos do Executivo.

Um dos traços de profunda ignorância política é achar que alguém seja perfeito na representação do bem comum ou que alguma instituição seja plena em sua função.

Bolsonaro e seus idiotas se oferecem como salvadores da pátria. Ninguém ou nenhuma instituição merece confiança absoluta, por isso elas limitam umas as outras. Os idiotas da política não sabem disso.

Sob o olhar da filósofa Hannah Arendt (1905-1975), assistimos em cada fala de Bolsonaro e seus asseclas, à agonia da vida do espírito (a vida da inteligência, grosso modo) e ao risco da instalação de uma nova banalidade do mal: a banalidade do mal é a estupidez, a inapetência ao pensamento, a recusa de um entendimento da realidade, na sua complexidade e precariedade, e a empatia para com esta.

E como diria Lionel Trilling (1905-1975), crítico literário, nunca foi tão importante a obrigação de ser inteligente. Que a inteligência seja um antídoto à estupidez reinante. Que esmaguemos essa estupidez elevando o nível do debate.

A virtude política máxima agora é a vigília. A atenção diante do risco. Não vivemos um momento geopolítico dado a ditaduras, como na Guerra Fria, mas nem por isso podemos descartar o risco do oportunismo mau caráter dessa gangue.

O interesse individual e o bem comum, por Affonso Celso Pastore.

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Para um presidente populista de direita, um número enorme de mortes é apenas estatística.

O Estado de S. Paulo – 10 de maio de 2020

Em visita ao CDPP em 2018, o professor Robert Pindik do MIT deu uma palestra sobre o custo social do carbono. Emissões de carbono levam ao aquecimento global, e um aumento de 2 graus na temperatura do planeta acarreta custos gigantescos: regiões férteis tornam-se desertos e o aumento do nível do mar alaga cidades litorâneas.

A forma de evitar tal ocorrência é obrigar todos os países a cobrarem um imposto sobre as emissões. Por que tem de ser cobrado de todos os países? Se apenas um deles tributasse as indústrias que queimam carvão, cairia nesse país o retorno privado dos investimentos nos produtos que utilizam o carvão, as fábricas mudariam para outro país que não tributa as emissões, e a poluição mundial continuaria aumentando.

No primeiro capítulo do seu livro Economics for the Common Good, Jan Tirole, o ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 2014, começa discutindo as relações entre a economia e a sociedade, entre o benefício privado e o “bem comum”, usando o exemplo do custo social do carbono. Seu tema é a diferença de motivação na busca do lucro privado e na busca do bem-estar de todos.

Nas decisões sobre políticas públicas esta última é que deve predominar, e além de considerar o efeito de externalidades, como ocorre nas emissões de carbono, é preciso entender a diferença entre retornos sociais e retornos privados. Os investimentos em saneamento básico – esgoto e tratamento da água – têm um retorno privado dado pela diferença entre os custos e as receitas cobradas de quem utiliza tais serviços, que é internalizado pela empresa que produz o serviço. Para chegar ao retorno social é preciso somar a ele os ganhos vindos da melhoria das condições de saúde. O interesse da empresa é maximizar o lucro privado, mas o interesse da sociedade é maximizar o bem-estar social, o que justifica a cobrança de um preço mais baixo por parte da empresa, com o governo cobrindo a diferença através de um subsídio.

Como avaliar o custo social do carbono? Como avaliar o benefício social de um investimento em saneamento básico? Os economistas dispõem dos modelos apropriados, mas para encaminhar a resposta tenho de voltar ao tema de meu último artigo discutindo o papel da taxa de desconto, cujo valor difere entre governos populistas e altruístas.

Governos populistas preferem ganhos imediatos de popularidade e, por isso, suas taxas de desconto são muito altas, o que reduz o valor presente dos benefícios auferidos por gerações futuras. Tais governos não se interessam por investimentos em saneamento, e esta é uma das razões pelo desprezo que o governo populista de Donald Trump tem sobre o custo social do carbono.

Tirole também argumenta que todos nós somos vítimas de falhas de percepção. Os empresários dão maior peso às condições que afetam o seu lucro, o que é importante, mas a maximização do lucro não pode ser o único critério utilizado nas decisões sobre políticas públicas. É compreensível que quem trabalhou por décadas a fio para construir uma empresa se revolte contra uma medida do governo que em uma pandemia impõe restrições que derrubam sua receita e colocam em risco a sobrevivência da empresa. Cabe ao governo deixar claro por que impôs aquela restrição, e garantir que na medida do possível compensará a empresa através de transferências de renda. A percepção de um empresário é obtida pela história de construção de sua empresa, enquanto a percepção do governo tem de ser motivada pela busca do bem comum que, neste caso, justifica a transferência.

Falando sobre percepções Tirole usa o exemplo da fotografia de Ailan Kurdy, um menino sírio de 4 anos encontrado morto em uma praia turca em 2015, que simboliza a tragédia dos que migram para a Europa em condições precárias. O impacto da foto excedeu o da informação sobre as centenas de mortes na travessia do Mediterrâneo. Cita uma frase atribuída a Stalin: “A morte de uma pessoa é uma tragédia, mas a morte de 100 mil pessoas é uma estatística”. Stalin nunca se preocupou com as mortes dos prisioneiros nos Gulags. Ao insistir em sua campanha contra o isolamento social, Bolsonaro revela desprezo pelo número de mortes, atuando para que tudo volte ao normal, ignorando a pandemia. Sem surpresas. Afinal, para um ditador comunista e para um presidente populista de direita, que não respeita as instituições e os valores democráticos, um número enorme de mortes é apenas uma estatística.

‘Ajuda estatal não pode criar parasitas’ segundo Mariana Mazzucato.

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Para ela, governos precisam criar critérios e contrapartidas antes de socorrer empresas, o que não foi feito em 2008

Entrevista com Mariana Mazzucato, economista

Luciana Dyniewicz, O Estado de S.Paulo 

04 de maio de 2020

Fundadora e diretora do Instituto de Inovação e Finalidade Pública da University College London, a economista Mariana Mazzucato está trabalhando no projeto para reconstruir a Itália após a pandemia da covid-19, em um comitê criado pelo primeiro-ministro, Giuseppe Conte, e comandado pelo ex-diretor executivo da Vodafone Vittorio Colao. Nesse projeto, deve focar no desenvolvimento de condicionalidades para empresas que o governo deverá socorrer, assunto que já vinha estudando.

“A questão é como reestruturar o sistema de modo que a ajuda a uma empresa seja parte de um ecossistema simbiótico e mutualista, e menos parasita”. Segundo Mariana, a pandemia expôs fraquezas do capitalismo e, agora, há uma oportunidade para corrigi-las.

Em artigos recentes, a sra. afirmou que a crise expôs problemas do capitalismo, como o trabalho precário. Como resolvê-los?

A crise expõe uma fraqueza no modo que organizamos o sistema capitalista. Há modos diferentes para organizá-lo. Agora, as empresas estão pedindo ajuda dos governos. Então é também o momento para criar parcerias público-privadas simbióticas, cooperações reais, o que chamo de ‘stakeholder’ (parte interessada), e não ‘shareholder’ (acionista). Há uma oportunidade de repensar o papel do governo e de como podemos trabalhar juntos (setores público e privado) para resolver grandes problemas. Hoje, tendemos a socializar o risco e privatizar a recompensa. Podemos criar estratégias que admitam que valor e riqueza são criados coletivamente.

Na crise de 2008, empresas também pediram socorro e, depois, não houve grandes mudanças na relação público-privada. Como isso pode mudar agora?

Não será diferente se não fizermos o que estou falando. Em 2008, os governos encheram o sistema com liquidez. O Goldman Sachs foi resgatado pelo contribuinte americano, mas não houve condicionalidades. Esta é uma oportunidade para redesenhar contratos. É preciso financiar capacidade produtiva, inovações sociais e soluções para problemas, sejam eles de energia ou de desigualdade. É para isso que o dinheiro público deve servir. As empresas aéreas, você pode resgatá-las, mas precisa condicionar isso à redução de emissão de carbono, por exemplo.

A sra. vê algum governo pensando nessa reestruturação?

Na Dinamarca, o governo decidiu não ajudar empresas que usam paraísos fiscais. É assim que os governos devem operar. Por outro lado, deve-se recompensar e ajudar os negócios bons. Escrevi um livro que chama O Estado Empreendedor. Esse Estado não é apenas um que gasta e investe, é também um que sabe negociar. Qualquer capitalista ou empreendedor vai negociar e estabelecer essa relação de recompensa de risco. A questão é como reestruturar o sistema de modo que a ajuda a uma empresa seja parte de um ecossistema simbiótico e mutualista, e menos parasita.

Vários governos estão investindo em pesquisas para uma vacina contra o coronavírus. Esse trabalho com o setor privado está sendo desenvolvido de modo mais simbiótico?

Não. Não há garantias de que esses investimentos públicos para vacinas estejam sendo estruturados de modo que elas sejam acessíveis e gratuitas.

Após essa crise, os Estados continuarão tendo uma participação maior na economia?

Talvez, daqui a um ano, digam que precisamos apertar os cintos. Aí teremos mais dez anos de austeridade. Esse seria o maior erro, porque hoje os sistemas de saúde estão de joelhos, em parte, devido a cortes nos orçamentos. Outra coisa é que sempre dizem que não há dinheiro, mas, quando vamos para a guerra, ninguém diz: ‘não tem dinheiro’. Precisamos ver as crises do clima e da desigualdade com a mesma urgência que vemos um cenário de guerra. Você pode causar inflação se criar dinheiro e não expandir a capacidade produtiva necessária para crescer. Mas precisamos perceber que podemos criar dinheiro para fazer qualquer coisa se fizermos isso de modo estratégico.

Um país endividado como o Brasil também deve imprimir dinheiro para investir?

O problema nunca é a dívida, é o que acontece no país. Na Itália, antes da covid, tínhamos um déficit baixo, mas uma alta relação dívida/PIB. O motivo é que o PIB não cresce a uma boa taxa há 20 anos, porque o crescimento da produtividade é zero. Setores público e privado não investem bem. Se você tiver investimento público, mas não investir nas coisas certas – educação, saúde e pesquisa –, não vai crescer. Aí, mesmo se o déficit for baixo, a relação dívida/PIB se deteriora. A lição para o Brasil é que o País deve perguntar que tipo de crescimento quer. Se quer um crescimento conduzido pelo investimento, precisa investir em áreas importantes, em economia verde, por exemplo. O papel do governo não deve ser simplesmente aumentar os lucros da indústria, dando incentivo fiscal. Deve desenhar políticas que catalisem novos investimentos no setor privado.

Como a sra. vê o Brasil hoje?

A situação do Brasil é trágica, como a dos EUA. O País tem grandes desafios sociais e econômicos e um presidente que talvez esteja mais interessado em seu pequeno círculo. Se falta liderança preocupada com o bem comum em um país, o que acho que é o caso do Brasil, e há (na presidência) alguém que nega a ciência – quando a ciência está no centro da crise na saúde –, você vai ter um grande problema.

O que o comitê de reconstrução da Itália está fazendo e qual seu papel nele?

Acabamos de terminar a primeira fase, de estabelecer critérios para reabrir a economia. Muito disso vem da OMC, mas adaptamos para questões específicas da Itália. Comecei a trabalhar na questão de condicionalidades: como trazer objetivos ambiciosos à mesa agora que os setores estão recebendo ajuda do governo e como usar isso para que a Itália não volte ao seu normal, que é o de uma economia estagnada, com alta taxa de desemprego entre jovens e de diferenças regionais gigantes. A ideia é usar esse momento para conduzir investimentos para a inovação.

Flexibilizar o teto, já. Por Monica De Bolle.

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A falsa dicotomia entre Estado e mercado caducou. Viremos essa página.

O Estado de S. Paulo/29 de abril de 2020.

Na semana passada, o governo apresentou o plano Pró-Brasil. Tratava-se do anúncio de uma agenda de investimentos públicos em infraestrutura para o País. O plano foi duramente criticado por razões acertadas e outras não tão acertadas assim. Entre as justificadas críticas estava o fato de o plano consistir em não mais do que meia dúzia de slides sem qualquer detalhamento sobre as áreas prioritárias para obras públicas. Foi citada a cifra de R$ 30 bilhões em investimentos públicos, que muitos sabemos ser insuficiente para cobrir as inúmeras carências e os variados gargalos do Brasil. Mesmo assim, houve quem tenha resolvido chamar o plano de Segundo PND de Bolsonaro, ou de PAC do seu governo, numa clara tentativa de demonizar o investimento público.

O anúncio deu margem a respostas histriônicas da equipe econômica, verdadeiros chiliques, por exemplo quando alguns de seus membros disseram à jornalista Miriam Leitão que o plano era uma ameaça ao teto de gastos e que, fosse o teto flexibilizado, muitos deixariam o governo. Talvez seja a hora mesmo de buscarem a porta de saída. Afinal, a responsabilidade desses indivíduos deveria ser com o País, e não com uma medida que sofre de diversas falhas desde seu desenho original.

Em 2016, quando se iniciou a discussão sobre o teto, fui favorável à ideia, mas não ao desenho. Nesse espaço e em outros veículos discuti por que a formulação do teto brasileiro estava em completo desalinho com a boa prática internacional e afirmei que mais cedo ou mais tarde pagaríamos por isso. Minha visão à época, como agora, era a de que o teto era excessivamente rígido, não permitindo ao governo qualquer margem de manobra para a adoção de medidas contracíclicas, quando necessárias. Antes de a epidemia eclodir, alguns membros do Congresso já defendiam a flexibilização do teto em prol de uma retomada mais forte da economia, para que saíssemos da armadilha do crescimento de 1% ao ano. Há quem argumente que a sua adoção acabou retirando financiamento do SUS, na contramão do que se falava em 2016. No momento atual, ante a declaração de calamidade, o teto tem um dispositivo que permite a abertura de créditos extraordinários, o que na prática o suspende por tempo limitado. Formalmente esse tempo acaba no ano que vem, quando ainda precisaremos sustentar a economia diante do cenário de quarentenas intermitentes sobre o qual tenho falado.

No início de março, após a epidemia ser declarada pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e começar a derrubar mercados e economias, disse em entrevista à Globonews que o teto precisaria ser flexibilizado para acomodar o investimento público, fundamental não para o enfrentamento da crise de saúde pública, mas para o que dela sobreviria. Alguns reputaram estapafúrdia a ideia, embora naquele momento eu já enxergasse não apenas o drama que hoje atravessamos, como também a crise crônica que haverá de seguir à atual, mais aguda. Mas, para além disso, a inclusão do investimento público no teto de gastos é anacrônica do ponto da vista da experiência internacional. Estudo publicado pelo FMI em 2015 mostra que há alguma variância entre os diferentes tipos de tetos de gastos, mas todos tendem a excluir o investimento público e/ou ter cláusulas de escape para a adoção de medidas econômicas, quando necessárias.

Queiram os técnicos do governo ou não, o teto é profundamente inadequado tanto para a fase aguda da crise de saúde e da crise econômica quanto para a fase crônica que lhe seguirá. Teremos de continuar a conviver com o vírus, e, por essa razão, tenho insistido que a recuperação será volátil e lenta. Assim seria mesmo que não tivéssemos acrescentado aos nossos problemas a atual crise política e institucional com a saída de Sergio Moro. Dada a conjunção de crises e a dinâmica da economia brasileira, inevitavelmente teremos de nos valer do investimento público durante a fase de reconstrução econômica, pois o investimento privado não retornará tão cedo em situação de volatilidade. Para tanto é preciso pensar simultaneamente em três linhas de frente: as prioridades para o investimento; o detalhamento dos projetos, para que não tenhamos os fracassos vistos em governos anteriores; e a necessária flexibilização do teto. A economia e a população brasileiras precisam mais do que nunca que tabus sejam abandonados em prol do bem maior: a atenuação da crise humanitária provocada pela epidemia e pela crise econômica.

O momento é de pensar seriamente o papel do investimento público, como estão fazendo vários países mundo afora, e de lembrar que nossas deficiências de infraestrutura não serão sanadas sem o envolvimento do Estado. A falsa dicotomia entre Estado e mercado caducou. Viremos essa página.

*ECONOMISTA, PESQUISADORA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY

Estado forte, por Delfim Netto

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Economia de mercado separou os homens em duas classes

A economia política é um conhecimento que desde tempos imemoriais acumula observações para tentar entender os estímulos que levam os homens a se comportarem na sua atividade diária e como organizam a divisão do trabalho para produzir, no território que ocupam (como “seu”!), a sua subsistência material, ou seja, o total de bens e serviços produzidos coletivamente e quanto cada um receberá como “quota” pela sua cooperação no que foi produzido.

Nela, os problemas são sempre os mesmos: 1º) o que e como produzir, que depende das necessidades da sociedade e das “técnicas” para atendê-las, e 2º) como se distribuirá o produzido, se pela força de uma autoridade ou pelo consenso obtido numa negociação política. O que muda são as tentativas de resolvê-los.

Ao longo de sua história, o homem vivenciou múltiplas alternativas organizacionais, num processo de seleção quase biológico para encontrar qual lhe daria maior “liberdade” junto com maior “segurança”. Foi assim que chegou à concepção de um Estado forte, controlado por uma Constituição consensualmente construída que imponha —pela Lei— uma estrutura de poder republicano e garanta o Estado democrático de Direito, como já temos no Brasil.

Dito isso, é preciso lembrar que o que chamamos de “economia de mercado” foi descoberto (não inventado) pelos economistas nas feiras da antiguidade quando o poder local lhes dava proteção e garantia a propriedade privada. Talvez a contribuição mais importante dos economistas à civilização tenha sido dar àquele instrumento – o mercado — cada vez mais eficiência no uso dos fatores de produção disponíveis, mas sempre escassos para atender à demanda de todos.

O custo disso foi a separação dos homens em duas classes: a dos que comandam o processo (os que detêm o capital) e a dos que não têm outra alternativa a não ser servi-los, o que gera uma disparidade de poder insuportável.

Desde a autópsia de Marx (e da contribuição de Stuart Mill, o liberal), ficou claro que a “economia de mercado” tem três graves problemas: 1º) é incapaz de eliminar a pobreza dos menos favorecidos pela sorte; 2º) produz imensas desigualdades de renda, que são corrosivas para a coesão social, além de criar dúvidas sobre o processo democrático; 3º) as flutuações que lhe são ínsitas e promovem a “insegurança” dos trabalhadores pela variação do emprego, que inspirou as políticas keynesianas, vítimas, como Marx, de “vulgatas” da economia de “cordel”.

Foram esses fatos que levaram à necessidade de um Estado forte, que, nas crises agudas, se transforma, provisoriamente, no “garante” de última instância de nossa “segurança”.

‘O trauma da pandemia não vai nos redimir’, diz filósofo Mario Sergio Cortella.

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Para o filósofo, educador e escritor best-seller, apesar de coronavírus gerar temor coletivo comparável ao das bombas atômicas, muitos só vão querer voltar à vida normal

Jairo Marques

SÃO PAULO

Completando 45 dias de isolamento social nesta segunda-feira (27), o filósofo, escritor e educador Mario Sergio Cortella, 66, afirma não ter grandes desafios pessoais a serem enfrentados com a quarentena. Isso porque ele, na juventude, passou cerca de três anos enclausurado: pertencia à ordem católica dos carmelitas descalços.

Um dos palestrantes mais disputados do Brasil na atualidade, Cortella, que lançou recentemente, em coautoria com o historiador Leandro Karnal, o profético —estava pronto desde o ano passado— “Viver, a que se Destina?” (Papirus 7 Mares, R$ 39,90, 128 págs.) está se dedicando agora à releitura de “Criação”, de Gore Vidal, e “O Físico”, de Noah Gordon.

“Temos vivido tempos de silêncios internos. Quando me vem algum, recorro ao meu inventário de memórias construídas ao longo da vida para pensar sobre os passos que dei, que dou e que darei. Cada um de nós precisa buscar maneiras de não deixar um oco dentro de si neste momento, para evitar que a situação, que é difícil, se torne assustadora”, diz.

Cortella, autor de cerca de 40 obras e conhecido por arrastar uma multidão de fãs com suas falas relativas à valorização da vida, das diferenças humanas e de preceitos éticos, não é um entusiasta da ideia de que as pessoas serão transformadas positivamente após o fim da pandemia.

“Não creio numa redenção. Creio que muita gente, após um susto tomado, vai olhar algumas coisas de uma perspectiva diferenciada. Mas, quando se olha a humanidade, ao longo da história, percebe-se que nunca demos sinais de que aquilo que nos traumatiza, quando termina, vai nos redimir.”

Há amigos, parentes, gente próxima morrendo com a Covid-19. Como lidar com o medo de a fatalidade chegar cada vez mais perto de casa?

A natureza colocou em nós dois mecanismos de proteção: medo e dor. Quando perdemos qualquer um dos dois, ficamos num estado de vulnerabilidade muito extenso. O risco maior, neste momento, é não ter medo de nada, porque isso nos deixaria desatentos. À nossa volta estão rondando coisas com um nível de fatalidade e de desconhecimento que não pode ser desprezível. O maior perigo hoje é achar que não há perigo.

Um ser que, do ponto de vista da ciência, é chamado de não vivo, um vírus, ainda assim, consegue nos produzir um dano fortíssimo. Ele se aproxima da ideia, um pouco infantil, do medo de fantasma: aquilo que a gente não vê, mas nos ameaça.

Como lidar com a angústia da incerteza? Não se sabe se o confinamento vai durar mais algumas semanas ou se estenderá por anos, por exemplo.

Fomos desentronizados como humanidade, especialmente as camadas mais intelectualizadas, mais escolarizadas, mais marcadas por algum tipo de poder político ou econômico. Desabamos do pedestal no qual nos houvéramos colocado. Imaginávamos que, com o triunfo, no final do século 19, da ciência nas formas de progresso, que começou a se expandir, chegando ao final do século 20 com o mundo cheio de invenções e tecnologias inéditas, com novas formas de contato e comunicação, estávamos no controle.

Bastaram duas décadas do século 21 para que entrássemos num estado de entorpecimento e surpresa, provavelmente com nossa petulância anterior, de supormos que o triunfo de Prometeu —da mitologia grega— estava colocado em campo, que a racionalidade nos garantiria uma visão nítida dos próximos passos da vida.

De repente, chega uma circunstância inédita, em relação a seu modo de ação, sem indicativo de solução rápida em um mundo de instantaneidade e simultaneidade. Estamos habituados hoje a satisfazer nossos desejos de maneira quase imediata. Estamos surpresos agora com esse retardo das soluções. O tempo todo aguardamos o passo imediato da cura, da vacina, da saída, do pico da doença, como num passe de mágica.

Informações científicas nunca circularam com tanta rapidez e para um público tão amplo. Mas isso também gera insegurança. Ora aparece um medicamento salvador, ora se divulga que não há certeza sobre a imunidade contra o vírus. O que pensar?

A ciência não é infalível, mas é menos falível que a não ciência. Ninguém pode colocar na ciência uma fé inabalável. Ela também se equivoca, tem seus descaminhos históricos, mas eles são menores que seus acertos e sua capacidade de nos orientar. O esforço coletivo hoje, no campo científico, em todo o planeta, para encontrar uma solução que preserve a vida humana é inédito.

Temos dois momentos históricos de um grande temor da morte coletiva —desconsiderando as grandes pestes, que foram mais localizadas. A explosão das bombas nucleares, que trouxeram para nós um pensamento muito concreto de fim da humanidade, é o primeiro. O segundo é este que estamos vivendo, da pandemia do coronavírus, que, 75 anos depois, nos coloca em alerta máximo novamente.

O mundo do ataque nuclear, da Guerra Fria, que poderia acabar com a vida na Terra, era um efeito da ação da ciência. Agora, estamos lidando com o inverso, a ciência unida para enfrentar aquilo que não foi criado por nós, que não está sob o nosso controle, tentando nos salvar.

Como a ética e a filosofia abraçariam os profissionais essenciais que vivem o conflito de servir ao público nesta batalha e, ao mesmo tempo, têm de proteger a si mesmos e a suas famílias?

Pessoas diferentes fazem arranjos diferentes para o que entendem como seu propósito de vida, para que possam ir adiante. Não me estranha que alguém que esteja na linha de frente dessa batalha tema contaminar os seus e recue. E recuar não significa fugir. Às vezes, é uma proteção diante de uma outra condição.

Por outro lado, há os trabalhadores essenciais que reorganizaram a própria vida para cuidar dos outros, para darem conta de seus serviços que entendem como fundamentais. E muitos fazem isso sem se achar heróis, mesmo uma grande parte de nós não tendo o mesmo desprendimento.

Falar sobre isso sem estar diretamente envolvido na questão é sempre mais fácil. Mas não tenho dúvidas de que, se um dos meus ficar doente, se alguém do meu círculo de amizades precisar de mim para cuidar dele, eu o farei, mesmo sabendo que há risco. Tomarei todos os cuidados, mas o farei, porque eu ficaria envergonhado se, de alguma maneira, me acovardasse diante daquilo que, podendo fazer, não fiz. Mas insisto que não é um juízo moral imaginar que quem teme recue porque quer preservar a si ou a outros.

A questão ética é entre o poder e o dever. Aquele que deve, pode e não faz furta-se à tarefa que tem. O que deve, mas não pode, tem uma diminuição do conflito ético. Aquele que pode, mas não deve, está fazendo a escolha em ser contributivo.

A Covid-19 impõe o isolamento do paciente no hospital, que é apartado de todo tipo de contato com familiares. Dá para alentar quem está na solidão?

Tenho visto muita gente tentando romper a ausência de pontes, buscando conexão com quem precisa. Quando Guimarães Rosa criou o título “Grande Sertão: Veredas”, ele acertou em cheio a ideia de que a vida é grande sertão e nele a sua percepção é de abandono, que você está sozinho, mas também há veredas. Muita gente, pelo mundo afora, está se colocando como vereda de outras pessoas, mesmo que de forma limitada.

As ameaças do vírus também estão fazendo com que corpos sejam enterrados quase sem despedidas da família, sem cerimônias. Qual a consequência disso?

É uma situação inédita para uma geração que nasceu depois de 1945 e não viveu em realidades de guerras, em que não há tempo de enlutar. Ainda não tivemos tempo de avaliar o impacto que essa condição atual irá ter, até porque estamos tendo de lidar também com a sobrevivência.

Nossas grandes marcas de humanidade, quase sempre, estão ligadas a rituais que nos conectam com nossos mortos, sinais de túmulos, de fogueiras, de cinzas, paredes gravadas.

As cerimônias, como os velórios e sepultamentos, são para nos confortar, para ganharmos força. Neste momento, muita gente está tendo de encontrar força sozinho. É muito mais doloroso, não há nem o tempo de se dar conta da perda. Infelizmente, acho que o impacto dessas perdas não compartilhadas será conhecido dentro de alguns meses.

Muita gente tem dito que todos sairemos dessa pandemia transformados em algum sentido. Você crê nisso? O efeito pode ser coletivo?

Não creio nisso. Não acho que a humanidade irá se converter à solidariedade. Este tipo de perspectiva é muito mais marcada por um desejo de que isso tenha seu lugar no mundo. Também não acho que ficaremos do mesmo modo, que olharemos as coisas da mesma forma.

Foi impactante ver as pessoas transformarem algo que deveria ser comum, como o pôr do sol espetáculo que tivemos em São Paulo na terça-feira (14), que foi até manchete de jornal, em um momento de alegria, de satisfação.

Mas acontece que, quando vemos o arco-íris muitas vezes seguidas, ele vai deixando de ser deslumbrante para ser comum. O olhar habitual sobre as coisas nos amortece um pouco. Não há dúvida de que, quando essa penumbra se dissipar, não vamos olhar do mesmo modo algumas coisas, mas não será um modo inédito de olhar.

Não creio numa redenção, creio que muita gente, após um susto tomado, vai olhar algumas coisas de uma perspectiva diferenciada. Mas, quando se olha a humanidade ao longo da história, percebe-se que nunca demos sinais de que aquilo que nos traumatiza, quando termina, nos redime. As lições são aprendidas por uma parte, mas há uma outra parte que só quer voltar ao normal.

Antes da pandemia, o Brasil estava em uma polarização profunda na política, nas relações sociais. A crise pode restabelecer laços?

A crise, que deixou a vida em geral entre parênteses e nos deixou perplexos com a nossa tibieza de reação e nossa indigência de proposição, pode reduzir um pouco a extensão e frequência das polarizações, mas não as inserirá em trilhas de convergência, dada a agudização que tiveram na retórica furiosa sobre responsabilidades e alternativas durante a própria crise. Contudo as urgências para a regeneração das estruturas e fundamentos da sobrevivência econômica nos deixarão tão atarefados que pode ser que várias das contendas inúteis sejam colocadas como aquilo que são: inúteis.

 

Corremos o risco de repetir o erro de 2008, diz economista eleito um dos grandes pensadores.

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Mohamed El-Erian afirma que coordenação contra o vírus está menor do que na crise financeira global

19.abr.2020 –Folha de São Paulo

O maior risco econômico atual não é a recessão que será causada pela pandemia da Covid-19, mas a repetição de antigos erros na coordenação de políticas globais, que podem evitar uma retomada inclusiva do crescimento após a crise.

A opinião é de uma das vozes mais respeitadas do mercado financeiro global, a de Mohamed El-Erian, conselheiro econômico-chefe da seguradora Allianz e presidente da Queens College, uma das faculdades da Universidade de Cambridge, no Reino Unido.

“Até agora, o nível de coordenação das políticas tem sido menor do que vimos em 2008 e 2009 [na crise financeira global]”, diz El-Erian.
“Várias políticas, em alguns países, têm sido, explicitamente, inclinadas contra o resto do mundo”, afirma ele.

A falha dos formadores de políticas públicas em dar uma resposta conjunta às consequências da crise de saúde, diz, tende a exacerbar o sentimento antiglobalização, que já vinha aumentando nos últimos anos.

“Isso nos leva à possibilidade desconfortável de que terminemos repetindo o grande erro de 2008/2009. Ou seja, ganharmos a guerra contra a depressão global, mas falharmos em garantir um ritmo de crescimento rápido, inclusivo e sustentável.”

El-Erian concordou em falar com a reportagem da Folha na semana passada, desde que fosse por email, pois se descreveu “inundado de trabalho” nestes dias.

Antes de assumir o cargo na Allianz, ele foi presidente-executivo da Pimco, uma das maiores empresas de gestão de investimentos do mundo, com foco, principalmente, em mercados emergentes.

O economista liderou também o Conselho de Desenvolvimento Global do ex-presidente americano Barack Obama. Além disso, foi eleito pela revista Foreign Policy um dos grandes pensadores do mundo por quatro anos seguidos, entre 2009 e 2012.

Há algumas semanas, o sr. mostrou preocupação com a falta de coordenação de políticas globais para combater os efeitos desta pandemia. Isso melhorou? 
Infelizmente, não o suficiente, e isso é um problema real. Ninguém pode negar que esta é uma crise global que requer uma resposta globalmente coordenada.

Também está se tornando claro que o mundo está enfrentando um golpe econômico maior do que o da crise financeira global. Ainda assim, pelo menos até agora, o nível de coordenação das políticas tem sido menor do que vimos em 2008 e 2009. Além disso, várias políticas, em alguns países individuais, têm sido muito voltadas para dentro e, explicitamente, inclinadas contra o resto do mundo.

De forma mais geral, em termos das interações econômicas globais e da coordenação de políticas, esse é o terceiro golpe a todo o conceito de globalização. Os outros dois foram a forte reação contrária à globalização devido à marginalização de segmentos da população e a guerra comercial. Em cima deles, esse terceiro golpe pode alimentar um processo de “desglobalização” ao longo de muitos anos.

Tudo isso nos leva à possibilidade desconfortável de que terminemos repetindo o grande erro de 2008/2009. Ou seja, ganharmos a guerra contra a depressão global, mas falharmos em garantir um ritmo de crescimento rápido, inclusivo e sustentável.

Países com restrições fiscais e dívidas elevadas sofrem mais em recessões globais. Isso voltará a ocorrer? 

Infelizmente, sim. Esses dois problemas limitam a capacidade dos governos de conter a dor e o sofrimento reais ligados à economia por causa do confinamento.

Que países estão condenados a sofrer mais e que problemas deverão enfrentar? 
Aqueles com flexibilidade fiscal e monetária limitados, baixas reservas internacionais, alto endividamento, dinâmica de crescimento pobre, grandes descasamentos de moedas e muita dívida de curto prazo.

E estou me referindo apenas aos problemas econômicos e financeiros, deixando de fora questões políticas, institucionais e sociais. Se não forem ajudados por apoio estrangeiro por meio de concessões grandes e rápidas, esses países enfrentam um risco alto de uma “trifecta” [situação em que um apostador acerta a ordem dos três primeiros ganhadores em uma corrida] envolvendo uma crise de saúde, um colapso econômico e disrupções financeiras.

É possível que haja um aumento de calotes de dívidas soberanas e financeiras? 
Sim, por esses motivos que já citei. Muito dependerá da vontade dos credores de conceder alívio às dívidas e aumentar os financiamentos concessionais. Infelizmente, não podemos esperar que os fluxos de investimento financeiro direto aumentem no curto prazo.

Como o sr. vê a situação econômica do Brasil, que já não era boa, no contexto desta pandemia? 

Como todos os países, o Brasil enfrenta o risco de sair desta crise com alto endividamento, menos reserva monetária e um golpe em sua produtividade. É crucial para todos os países ter isso em mente e centrar seu radar na tela de políticas para conter o estrago às suas perspectivas de crescimento.

Líderes têm reagido de formas diferentes à pandemia. Alguns aderiram rapidamente ao isolamento social severo. Outros, como o presidente Jair Bolsonaro, minimizam os riscos de saúde, preferindo isolamentos menos radicais. O mercado deve reagir de forma distinta a essas posições diversas? 

As circunstâncias dos países variam, assim como variam seus julgamentos em relação ao balanço entre os riscos de saúde e os riscos econômicos. Isso é conhecido no mercado como o balanço entre vida e subsistência.

O atual impacto generalizado nos mercados vindo do que os economistas chamam de “fator global comum” tende a abrir lugar para mais diferenciações dos países ao longo do tempo.

Depois desta crise, muitos países estarão em uma situação fiscal muito pior. Como os mercados devem digerir isso? 
​É difícil generalizar, já que muito dependerá da capacidade e do desejo de cada país tanto de sustentar altos pagamentos de dívidas como de reduzir seu elevado endividamento

A educação de elite, a educação sucateada e o fosso social no Brasil, por Dora Incontri.

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Essa semana saiu a notícia de uma escola no Rio, para a elite da elite – 3.800,00 reais por mês – inspirada nos badalados métodos de educação da Finlândia. O principal acionista da escola é Paulo Lemann, dono do Burger King.

Dora Incontri

Para quem milita por uma educação de qualidade e inovadora para todos os brasileiros e brasileiras, essa notícia tem um sabor amargo, num momento em que a escola pública está sofrendo o seu último desmonte. Fechamento de escolas em Estados e municípios, anúncios de terceirização da educação em escolas estaduais, bloqueio federal de investimentos na Saúde e Educação por 20 anos, mexida reducionista e autoritária no currículo, extirpando-se ou diminuindo-se significativamente as matérias que ensinam a pensar e a entender o mundo, como História, Geografia, Filosofia e Sociologia… – são alguns dos retrocessos lamentáveis do momento em que vivemos no Brasil. Retrocessos acompanhados de outros, referentes aos direitos da classe trabalhadora. Ou seja, é o avanço para o achatamento cultural da população e da sua escravização no trabalho. Tudo combinando: menos escola, menos matérias que ensinam a pensar, menos ou quase nenhum direito no trabalho. Os poderes econômicos nacionais e internacionais querem todos escravos, ignorantes e submissos.

Mas a elite… a elite tem colégios como esses do Rio, como tantos em SP, alguns onde se aprende até mandarim (talvez já se pensando na aliança com o próximo Império, quando o Império americano ruir, afinal as elites sempre fazem alianças vantajosas para si com os que dominam o mundo e traem a população de seu pais – lembremos por exemplo de Herodes, aliado dos romanos dominadores, para recuarmos na história antiga). Mas esses, cujos filhos estudam até mandarim, pagam o preço de uma faculdade para crianças em pré-escola.

Elite muitíssimo instruída, plugada internacionalmente e o povão com escola sucateada, com ensino medíocre (de preferência numa Escola sem Partido, que, ao invés do que se pensa, não é a escola neutra – que aliás não existe – mas a escola em que não se pode pensar e discutir e entender as estruturas históricas e sociais que nos condicionam).

A classe média fica espremida entre os dois extremos, na maioria das vezes, sem se incomodar com o sucateamento da escola pública, porque ela dá a vida para pagar uma escola razoável para os filhos.

O método de ensino na Finlândia é promovido pelo Estado, para todos os cidadãos. Aí que está a graça da escola. É um projeto pedagógico pensado a partir da realidade local e uma oportunidade igualitária de desenvolvimento humano da população e não uma moda importada para servir de marqueting para uma escola para pouquíssimos privilegiados.

A diminuição das funções do Estado é algo que está se dando no mundo inteiro, pelo sistema hegemônico do neoliberalismo, que prega o Estado mínimo, o que menos gasta – ou não gasta nada – com benefícios sociais. É o modelo norte-americano, é o cada um por si. Se você consegue emprego (sem férias e nenhuma garantia), você paga a escola do seu filho, o convênio médico, a casa própria e tudo o mais. Se você não consegue… azar seu! Você não se esforçou o bastante. Se perde o emprego, azar, e se não consegue mais pagar o convênio, morra; se não consegue mais pagar a casa, vá para a rua (como tantos vivem em treilers nos EUA).

Se você já veio de uma situação de desvantagem – cresceu numa favela, ou é de uma etnia que foi historicamente marginalizada, como os afrodescendentes no Brasil e nos Estados Unidos, é deficiente físico ou ficou órfão de pai e mãe, você tem que esforçar mais. Se não conseguir, azar seu. Afinal, todo um continente – a África, que foi roubada, violentada, escravizada, durante séculos, está abaixo da linha da pobreza… azar dos africanos. É a lei do mais forte. É a chamada meritocracia – que na verdade é o mérito dos que já têm privilégios, mais dinheiro e mais poder.

Assim é o sistema capitalista no seu auge neoliberal. É a expulsão cada vez maior do Estado de todo benefício social, que vinha no último século tentado corrigir minimamente o desbalanceamento econômico nos países e proteger os mais fracos, os mais em desvantagem, os mais historicamente desmerecidos e conter os abusos das corporações.

O Estado está de joelhos diante do capital. As chamadas democracias são comandadas por políticos corruptos – não só no Brasil e não só de um partido!! – porque vendidos aos interesses das grandes corporações. O Estado sempre esteve comprometido com os ricos e os poderosos. Mas, durante um século, com o chamado Estado do bem-estar social, houve uma honesta tentativa de consertar um tanto as injustiças do sistema. Em alguns países essa tentativa foi bem sucedida e por isso ainda restam Estados, como a Finlândia ou a Alemanha que, embora tenham diminuído seus benefícios, ainda conservam muito do que foi construído, porque está solidamente assentado. No Brasil, havíamos conquistado muito – o SUS, por exemplo, por mais críticas que tenhamos, é um sistema que salva muitas vidas e atende à população, os EUA não tem SUS. A escola pública, por pior que fosse, ainda é uma possível porta de acesso a uma faculdade. A CLT, uma proteção aos trabalhadores dos abusos dos empregadores.

Por pior que tenham sido as tão criticadas últimas gestões, programas como bolsa-família (que aliás era condicionada às crianças irem à escola, o que colocou milhões de crianças dentro do processo de escolarização), a cota por pobreza ou etnia, os financiamentos para o estudo superior, o incentivo à casa própria… foram ajustes sociais que possibilitaram maior equalização de oportunidades.

Agora, está tudo ruindo. Estamos caminhando para um período de privação de direitos básicos e de aprofundamento do fosso social no país.

E o que fazer?

Tenho minhas dúvidas, como anarquista que sou, que possamos recuperar esse Estado de bem-estar social. Forças econômicas e militares poderosíssimas estão por trás desse desmonte mundial de Estados de Direito, dessa escravidão generalizada – basta ver as crianças trabalhando pelas indústrias de chocolate na África, basta saber que quase todos os produtos que usamos vêm de uma China, onde o trabalhador não tem praticamente nenhum direito…

Mas penso que há o que se fazer!

Temos que começar a nos organizarmos em sistemas de troca, de ajuda mútua, de cooperativas – e isso serve para escolas, sistemas de produção, bancos de crédito… Ou seja, temos que dispensar o Estado e resistir ao capital. Utópico? Nem tanto, porque esse sistema não se sustenta. Afinal, se grande parte da população mundial for sendo progressivamente escravizada e empobrecida, quem vai consumir? O sistema é autofágico. Então, temos que nos preparar para quando ele ruir. Estarmos solidariamente organizados para isso.

Castells debate pandemia, Público e Educação

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Para o pensador catalão, agora ministro espanhol das Universidades, o eurocentrismo e o projeto liberal entram em crise profunda. Mas a quarentena ajuda a refletir sobre o Comum – e o aspecto libertador da internet pode ressurgir

Entrevista a Álex Rodríguez e Carina Farreras, em La Vanguardia | Tradução: Antonio Martins

Sua vida é um laboratório. Analisa e conclui. Sociólogo honoris causa por inúmeras universidades, prêmio Holberg, considerado por alguns o Nobel das Ciências Sociais, Manuel Castells, aos 78 anos, é agora ministro das Universidades da Espanha. Nesta entrevista, defende uma governação global e lamenta que nos deparemos a covid-19 divididos.

Um vírus colocou o mundo em xeque. Por que acredita que não estávamos preparados para enfrentá-lo? Que lição é possível tirar, para o futuro?

Subjetivamente, por arrogância, por acreditar que nossa tecnologia pode tudo. Objetivamente, pelos cortes substanciais nos orçamentos dos sistemas de Saúde, durante as políticas suicidas de “austeridade” após a crise de 2008. A principal lição é que a Saúde é nossa infraestrutura de vida e requer cooperação global.

A pandemia pilhou o Ocidente e o mundo sem liderança clara, já que os EUA de Trump recusaram-se a exercê-la.

Trump é um nacionalista norte-americano. Pretende liderar o mundo mas para proveito exclusivo dos Estados Unidos, de modo que perde a condição de ser um líder mundial.

A China, onde nasceu o novo coronavírus e onde não há praticamente um momento da vida cotidiana que escape à vigilância digital, parece ter sob controle a situação. Será a nova superpotência?

A China não foi capaz de superar, mas sim de controlar a pandemia. Ainda assim, pode crescer 2% este ano. E tem capacidade para produzir, exportar e até doar material de Saúde ao resto do mundo. É preciso reconhecer isso. Já é uma superpotência, mas não a única – porque não pode comparar-se militarmente aos Estados Unidos.

Os cidadãos da Coreia do Sul e de Taiwan aceitaram ser monitorados, através do uso da tecnologia e da inteligência artificial, para combater a pandemia. Perderam liberdades e privacidade? O mesmo ocorrerá no Ocidente? Estas concessões perdurarão? É preciso perder liberdades para estar seguros?

Historicamente, em todas as situações de emergência, os Estados restringem os direitos das pessoas, por necessidade e, em alguns casos, aproveitando-se da situação. E os cidadãos aceitam por convicção ou por medo. Mas até um certo limite, que é perigoso ultrapassar.
Ninguém no Ocidente pareceu intuir o perigo que representava a covid-19, até que ele entrou na sala de suas casas. Por que?

Porque a paralisação da economia e da vida social é algo que muda tudo e não se pensava necessário, até que uma boa parte da população foi infectada. Dizia-se: “não somos a China”. Mas não se avisou ao vírus.

A Itália enfrenta a situação de uma maneira, a Alemanha e a França, de outra. Também a Espanha, o Reino Unido, os Estados Unidos, o Brasil. O vírus é o mesmo, mas as políticas contra ele diferem muito em cada país. Seria necessária uma governação global?

Sim – nisso como em tudo. Um sistema global interdependente requer governação global – não necessariamente um governo global. Mas os Estados-Nação resistem a perder seu poder e cada um utiliza mecanismos de governança supostamente globais para defender seus interesses nacionais.

Na Europa, reabre-se a brecha norte-sul. Que lhe parece a maneira de agir da União Europeia diante da crise? Será que ela não alimenta o desencanto entre os cidadãos, que veem como se dilui o princípio de solidariedade, um dos que supostamente fundou o projeto europeus?

Estamos outra vez no mesmo debate colocado na crise financeira de 2008, o que demonstra a ausência de identidade europeia, exceto em alguns setores sociais, mais escolarizados e jovens.

Algo que estudo e sobre o que publico há muito tempo. Desta vez, ao menos, o Banco Central Europeu e a Comissão europeia adotaram uma postura mais solidária – mas o Reino Unido está fora e a Alemanha e seus aliados mais próximos querem intervir nas políticas econômicas de todos os países que resgatam. Obviamente, a Europa do sul e a França não aceitam e, portanto, enfrentamos desunidos a ameaça mais grave com que a humanidade se depara desde a II Guerra Mundial.

Você acredita que seria possível fazer algo para que situações com a que estamos atravessando não voltassem a ocorrer, ou para que ao menos estivéssemos melhor preparados?

Levar a sério os aplausos das sacadas, ao pessoal da Saúde, e traduzi-los em políticas de financiamento, de formação, de equipamento, de investigação científica e de prevenção. É nosso salva-vidas no mundo em que entramos. Qualquer que seja o custo, é mais barato que a morte e o colapso econômico.

A covid-19 emergiu como pandemia num momento de auge da ultradireita e das democracias liberais. Você que pensa que isso vai se aprofundar, ou que um dos grandes perdedores desta crise será a democracia liberal?

Publiquei um livro recente sobre a crise da democracia liberal, que foi perdendo legitimidade entre a cidadania por razões profundas, comuns a todas as sociedades. A extensão da pandemia em intensidade e tempo pode colocar ainda mais em xeque um sistema político que havia trazido relativa civilidade a nossa vida institucional.

Não houve revoltas na crise de 2008, porque os aposentados e a família ajudaram a suportar situações desesperadas. Agora, recomenda-se que não se coloque em respiradores os pacientes com mais de 80 anos. Que reflexões isto suscita?

Miséria da espécie humana que, se for de fato assim, talvez não mereça sobreviver. Em alguns setores, há pouca solidariedade com as gerações futuras, como mostra a indiferença diante da mudança climática. E agora há indícios, minoritários, de que começa a faltar solidariedade com os velhos. Por sorte, a maioria das pessoas mostra generosidade e empatia. Ainda apoiam as famílias, mas protegendo sobretudo aos seus.

Como você acredita que o mundo mudará?

Já mudou, e nunca voltará a ser como aquele em que vivemos. O que não sabemos é como será. Talvez o melhor seria que o decidíssemos e o construíssemos, em vez de nos resignarmos ao destino

As universidades a distância cresceram nos últimos anos e você foi professor de uma delas, na Catalunha. Acredita que a covid-19 ampliará os estudos online, e que eles substituirão progressivamente os estudos presenciais?

A pandemia mostrou a extraordinária utilidade da internet em todos os âmbitos. E particularmente nas universidades, que completarão seus cursos, principalmente, por meio do ensino online de qualidade. Houve um processo acelerado de formação prática de estudantes e professorado neste sentido, em poucas semanas, e sobre isso podermos construir coisas novas no futuro. Não apenas para emergências, mas para um sistema em que ambas modalidades se complementem em todas as universidades. O ensino presencial nunca desaparecerá, porque sua largura de banda é muito maior que a da rede de fibra ótica. Esta articulação deve ser um projeto de futuro imediato, quando acabe a guerra.

Muitas universidades tiveram de se adaptar da noite para o dia para dar aulas não presenciais, com dificuldades tecnológicas e de preparação dos professores. É possível garantir um mínimo de qualidade às titulações neste contexto?

Na Espanha, isso será controlado e garantido, de modo coordenado, pelas agências de qualidade de cada região autônoma, e pela Aneca, a agência do Estado espanhol. Não tenho a menor inquietude sobre este assunto, que sigo de perto.

Você acredita que, nesta situação, todos os universitários tenham igualdade de oportunidades? Não há alunos que enfrentam carências tecnológicas?

Há desigualdade tecnológica como há desigualdade social em todos os âmbitos. E portanto, as universidades terão de levar em conta estas situações particulares e ajudar os estudantes desfavorecidos. Porém a difusão da internet é muito ampla, assim como o uso de computadores. E, algo em que não se pensa, a imensa maioria dos estudantes tem um computador no bolso, que chamamos de telefone celular. A questão é desenvolver protocolos de ensino que possam ser adaptados ao uso destes aparelhos como terminais. O que chamamos m-learning. Neste processo estão várias universidades – por exemplo, segundo minha informação, a de Barcelona.

Que rastros a covid-19 deixará nas universidades?

A capacidade de liberar o potencial de ensino virtual, que estava injustamente menosprezada, e a exigência de uma digitalização mais avançada do conjunto do sistema universitário. Uma grande fronteira de inovação pedagógica e de investimento em ensino.

Nível de coordenação do Estado brasileiro contra o coronavírus é zero, diz Sérgio Lazzarini

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Professor do Insper diz que, com estratégia, poderia haver incentivo para a fabricação de máscaras e aumento da infraestrutura de leitos

ÉRICA FRAGA – FSP – 12/04/2020 – SÃO PAULO

A redução dos danos que a Covid-19 causará à saúde pública e à economia demanda uma estratégia de expansão rápida e muito bem planejada do Estado, incluindo critérios para a reversão futura das medidas adotadas.
O nível de coordenação do governo brasileiro nessa direção, até agora, é zero, segundo o pesquisador Sérgio Lazzarini, do Insper, que estuda esse tema.

Em trabalhos como o livro “Capitalismo de Laços”, Lazzarini tem demonstrado que conexões entre os setores público e privado, forjadas algumas vezes em momentos de crise como o atual, podem gerar custos altos e desnecessários para a sociedade.

Em co-autoria com o economista mexicano Aldo Musacchio, ele acaba de escrever um artigo que alerta para o risco de repetição desse cenário caso governos não reajam adequadamente à pandemia.

Intitulado “Leviathan as a Partial Cure? Opportunities and Pitfalls of Using the State-Owned Apparatus to Respond to the Covid-19 Crisis”, o texto será publicado, em breve, pela Revista de Administração Pública, da FGV.

O setor privado conseguiria oferecer, sozinho, as respostas para a crise atual?
Não. Precisamos de uma infraestrutura de crise, como lugares em hospitais e produção de máscaras, respiradores. A pergunta é: o mercado dá conta disso? Os mais liberais dirão que precisamos criar regulamentações nesta direção. Isso, realmente, é necessário. Melhor deixar o setor produtivo produzir em caráter de urgência emergencial, sem restrições sobre poder ou não produzir máscara, por exemplo. Essa é uma discussão mundial. Nos Estados Unidos, foram afrouxadas uma série de regras.

Mas isso é suficiente? Não, porque é necessário um esforço de coordenação. Estamos vendo empresários se comprometendo a produzir determinadas coisas, expandir os hospitais privados. Mas, no fim do dia, os governos estão precisando ir atrás de hotéis para conseguir leitos. As ações não precisam ser, exclusivamente, estatais. Podem ocorrer parcerias público-privadas.

O que deverá sobreviver dessa nova atuação estatal?
A gente vai se perguntar se temos uma estrutura mínima de proteção para esses eventos mais relevantes e difíceis de prever. A incerteza na economia aumentou a tal ponto que evidenciou o risco já existente desses eventos. Qual a probabilidade de haver outra pandemia dessas? Vai ficar claro que não sabemos.

A gente vinha em uma linha de “surgiu o Uber, um monte de profissionais autônomos, deixa eles, deixa o mercado funcionar”. Agora estamos pensando: “calma, que rede de proteção esse pessoal tem contra esses eventos extremos?”

E podemos falar de eventos extremos de forma bem ampla, incluindo crises políticas e de outras naturezas. Isso nos levará a pensar em estrutura de segurança que incluirá o Estado porque, de novo, o setor privado não tem interesse nisso. Mas precisamos também considerar que isso terá custos, que muitos dos investimentos serão ineficientes.
Como reduzir esses custos?

O que aprendemos com eventos anteriores, como a crise financeira global em 2008, é que há momentos em que a expansão do Estado é inevitável, mas precisamos definir estratégias de saída e de acompanhamento contínuos.
Por que vocês se opõem ao resgate de setores afetados inteiros?

Se você falar que precisa resgatar o setor aéreo, virá o de hotéis, e teremos de considerar: por que não hotéis? Aí virá o de restaurantes, o de shows. Vamos fazer uma discussão interminável. O BNDES anunciou discussões com o setor aéreo e está uma briga sobre qual será o preço. Eu não faria esse tipo de discussão setorial, eu faria uma discussão horizontal. Firmas com necessidades serão avaliadas de acordo com determinados critérios preestabelecidos.

Quem fez algo nessa linha foi o KfW [banco de desenvolvimento alemão]. Criou uma linha para empresas com dificuldades financeiras. Elas podem pegar empréstimo, expandir atividade, rolar sua dívida. Empresas grandes, de forma geral, não deveriam ser prioritárias, apenas as de médio porte para baixo.

Vocês ressaltam que é importante considerar também que ocorrerão mudanças de hábitos. Por quê?
O setor aéreo passará por uma queda de demanda, as pessoas vão mudar seus estilos de vida, de forma talvez permanente. Na China, os restaurantes reabriram, mas as pessoas estão reticentes, o formato de vendas está migrando para entregas, com detalhamento sobre a forma de preparo e de higienização da comida, sobre as credenciais do produtor, e assim por diante. Novos formatos de negócios serão testados.

A gente pode querer tentar salvar o setor aéreo, mas ele será diferente. Então, certas discussões serão inócuas e há um risco de que terminem favorecendo os setores mais organizados e, não necessariamente, os negócios mais eficientes.
Esse é outro motivo para termos critérios mais horizontais.

Por que é importante que o governo aja rápido?
Os modelos estão nos indicando que para controlar essa pandemia precisamos agir o quanto antes. A melhor estratégia parece ser o isolamento social rápido e, ao mesmo tempo, expandir a estrutura de suporte, criar uma estrutura de proteção para que as pessoas tenham renda neste período.

Se você demorar muito, vai estender a crise e as dificuldades financeiras das empresas, aumentando a chance de precisar resgatá-las, dar mais crédito, dar mais renda, no futuro.

Se você não usar o Estado agora inteligentemente, terá de usá-lo mais no futuro, com um custo elevadíssimo lá para a frente.

Mas também precisamos estabelecer as condições de saída. O que são elas? Se o governo precisar assumir o capital de uma empresa, tem de deixar claro quanto tempo isso vai durar, assim como monitorar indicadores preestabelecidos de seu progresso.

As ações de transferência de renda têm de ser condicionais à evolução dos programas de isolamento e as próprias curvas de contaminação. Depois, terão de ser suspensas. Senão, teremos pedidos intermináveis. Isso precisa estar claro desde o início.

Depois da crise de 2008, expandimos o Estado. Fizemos com que o BNDES ampliasse suas operações, mas ele continuou se expandindo porque foi criada uma mentalidade de que o Estado resolve tudo, sempre. Essas condições de saída, com cláusulas de término, são essenciais para a gente evitar que isso se repita.

Essa tendência brasileira de apego a um Estado grande pode dificultar a reversão futura da expansão atual?
Sim. Nosso arranjo institucional ainda é muito permeável a interesses, mesmo sem considerar corrupção. Há setores e grupos mais organizados que exercem maior poder de influência sobre governos, que vão dizer que a vida está ruim, difícil. Não precisam ser grandes empresas. Podem ser, por exemplo, os caminhoneiros.

Imagine um cenário em que acabou a crise e grupos venham dizer que sofreram muito e precisam de compensações. Por isso, o estabelecimento de métricas, indicadores, prazos, condições é, absolutamente, fundamental. É uma forma de, agora, você se comprometer a cumprir os objetivos necessários para amenizar os efeitos da crise, mas evitando que a expansão do Estado seja indefinida. Mas, para que esse processo seja bem sucedido, é necessária uma grande coordenação de política pública.

Que nível de coordenação o Estado brasileiro tem demonstrado?
Zero. A gente tem conflitos entre governos, na esfera federal e estadual, sobre a estratégia de achatar a curva. Não estamos em um uníssono na direção de achatar a curva agora, ter uma estrutura de proteção de renda e recuperar a economia mais para a frente.

Estamos batendo cabeça, o que é muito ruim. Há algumas iniciativas inteligentes. O BNDES e o Banco Central anunciaram uma linha de crédito para a folha de pagamento das empresas, garantida pelo Tesouro [Nacional]. É uma iniciativa engenhosa, de liquidez e garantia de emprego. Mas esse tipo de iniciativa ainda é isolado.

A partir do momento em que temos claro que a estratégia nacional é o isolamento social e medidas preventivas, damos um norte para a produção. Isso cria incentivo para a fabricação de máscaras, produtos de higiene e o aumento da infraestrutura de leitos. Aí poderíamos criar, de forma mais acelerada, mais linhas de crédito especificas.

Em que estágio de reação à crise o Brasil está?
Estamos em um processo grave, uma briga do governo federal com os governos estaduais e municipais. Não se pode nem falar em coordenação. Vamos coordenar o que? Para qual direção? Não sabemos nem se o ministro da Saúde vai continuar no cargo até amanhã.

Caminhamos, então, para arcar com custos maiores dessa crise no futuro?
Acho que não estamos no cenário ideal de tomada de iniciativas mais rápidas. Na verdade, estamos nos distanciando disso. Se a gente continuar batendo cabeça, descoordenados, vamos reduzir bastante a chance de ser um processo curto.

Saldo pode ser a volta da credibilidade da ciência’, diz Cortella sobre pandemia.

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Filósofo vê chance de retomada da crença na mídia durante pandemia e sugere transparência e didatismo aos políticos
Entrevista com Mario Sergio Cortella, filósofo e escritor

Adriana Ferraz, O Estado de S. Paulo. 

05 de abril de 2020

Autor de mais de 40 livros, o filósofo Mário Sérgio Cortella, de 66 anos, acredita que o enfrentamento da pandemia do coronavírus pode deixar alguns legados para a sociedade, além dos problemas sanitários e econômicos. Para ele, a ciência e a mídia devem recuperar sua credibilidade, e o distanciamento social pode ser uma oportunidade para fazer coisas que o “cotidiano atribulado” não permite. 

Ao responder sobre o que acha da atuação do presidente Jair Bolsonaro na crise, Cortella lembra que é importante, neste momento, que as lideranças políticas sejam didáticas e transparentes ao se comunicar com a população. “Não estamos tendo ainda esse conjunto virtuoso por parte de quem deveria”, disse na entrevista, respondida por e-mail. O filósofo diz que tem seguido as orientações para ficar em casa e que, desde que começou seu distanciamento, só saiu de carro duas vezes.  

Leia os principais trechos da entrevista: 

O sr. acha que vivemos uma situação de guerra? Nessa situação, o coronavírus é o único inimigo? Ou também devemos combater a negação à ciência e a propagação de fake news?

O vírus já resulta em malefício suficiente sem que precisemos perder energia lidando com negações contínuas que tentam nos enganar ou que implicam má e falsa informação. Ainda assim, um saldo menos virulento deste momento será uma maior seletividade de fontes e uma retomada da confiabilidade e credibilidade de instituições, como a ciência e a mídia decentes.

As pessoas esperam uma liderança do presidente da República nesse momento? Acha que a atuação de Jair Bolsonaro, quando ataca medidas de restrição de circulação adotadas em todo o mundo, pode frustrá-las?

Toda liderança precisa, acima de tudo, ser didática, transparente e nítida nas trilhas que sugere e nos esforços que estimula. Não estamos tendo ainda esse conjunto virtuoso por parte de quem deveria.

A que o sr. atribui a lentidão na tomada de decisão de alguns presidentes, como Bolsonaro, Donald Trump e López Obrador, e como vê o desprezo pela ciência?

A ciência, de modo geral, não é infalível. É preciso submeter intenções, processos e resultados à análise crítica dos pares e, inclusive, admitir ser desmentido, advertido ou ultrapassado, sem que soe como ofensa ou desacato. Nem todas as pessoas têm permeabilidade intelectual para tais requisitos, e, por isso, costumam menosprezar e subestimar a validação que ultrapasse a opinião vulgar. 

Como o senhor vê esse suposto dilema entre salvar vidas e salvar a economia?
Relegar qualquer um dos polos à penumbra será funesto. Não há pessoas vivas sem economia operante e não há economia sem pessoas salvas. O crucial agora é discernir quais procedimentos são prioritários. 

Nos últimos dias, vimos panelaços contra o presidente e também carreatas a favor do fim do isolamento social. A crise desperta essa ideia de separação – e não só a da solidariedade? 

A crise não inaugura personalidades oportunistas e dissimuladas. A crise apenas as revela e alicerça naquilo que já eram capazes de ser e fazer, independentemente de a crise existir.  

Que influência as redes sociais têm nessa polarização?

Toda polarização inútil neste instante dificulta e delonga alternativas de solução e torna-se aliada poderosa do vírus. Assim, urge avaliar se devemos mesmo empregar nosso escasso tempo em fomentar um viés deletério nas redes sociais, que podem e são frequentemente colaborativas.  

Como essa crise pode afetar as relações entre pessoas? 

Estivemos e ainda estamos colocando à prova nossa sensibilidade de convivência e tendo de manejar com mais habilidade a idiossincrasia e os melindres individuais. Em outras palavras, o necessário e compulsório isolamento social nos remeteu para um nicho familiar que não permite tanto o famoso “vou sair para esfriar a cabeça” ou o, agora arriscado, “não estou nem aí com você”. Entendo que o núcleo familiar terá um número maior de sinergias e fissuras. Se a segunda vencer, o vírus carregará mais esse dano.  

O que de positivo pode ser tirado do distanciamento social?

Alguma reclusão, sem que implique em solidão, é bastante benéfica, pois possibilita um uso mais liberado e seletivo do tempo disponível. Neste instante, o distanciamento servirá também para múltiplas ações que o cotidiano atribulado não permite com intensidade, desde convivências até reorganizações dos espaços e coisas. Além, claro, da dedicação ao ócio recreativo. 

O senhor tem 66 anos, faz parte do grupo de risco para o vírus, e dá aula, palestras, escreve livros. Que cuidados tem tomado?

Desde o dia 16 de março estou em reclusão organizada, tendo saído de carro por algumas horas em dias distantes, sem contato inseguro com outras pessoas, para duas tarefas imprescindíveis e salvaguardadas. Afinal, embora me saiba mortal, quero adiar essa ocasião no limite máximo da minha saudabilidade e consciência livre.  

O que a pandemia pode nos ensinar sob a ótica da filosofia?

Que a nossa eventual e iludida soberba como espécie encontra mais guarida no campo do nosso desejo do que naquilo que a natureza é capaz de erigir. 

‘Temos governos que não acreditam na ciência’, diz Joseph Stiglitz.

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Para economista, crise causada pelo coronavírus explicita a postura desastrosa de líderes como Trump e Bolsonaro

Entrevista com
Joseph Stiglitz, ganhador do Prêmio Nobel de Economia

Breno Pires, Estadão, 05/04/2020.

O economista Joseph Stiglitz avalia que líderes que emergiram da negação da política mostram-se, nesta pandemia do coronavírus, oportunistas e focados em seus projetos eleitorais, com posturas hesitantes que trarão consequências desastrosas. Prêmio Nobel de Economia em 2001, ele critica a atuação do americano Donald Trump e do brasileiro Jair Bolsonaro para defender um novo contrato entre o mercado, o Estado e a sociedade civil. Em entrevista ao Estado, o professor da Universidade Columbia afirma que a atual crise destaca a importância de um equilíbrio da economia e da ciência, que precisa pautar os governos. “É notável a rapidez com que conseguimos analisar o vírus e descobrir de onde ele veio, desenvolvendo o teste. E toda a ciência é baseada em apoio governamental”, observa. “No Brasil e nos Estados Unidos, temos governos que não acreditam em ciência e estamos vendo as consequências.” As avaliações de Stiglitz também serão detalhadas num livro que o economista lançará, em setembro, no Brasil: People, Power and Profit (Pessoas, Poder e Lucro, numa tradução literal – ainda não tem título em português). 

Existe um dilema entre salvar a economia e salvar vidas?
O fato é que, se você não salvar as pessoas, a economia será devastada. Pessoas não irão ao restaurante, ficarão nervosas quanto a ir ao trabalho, não irão voar por aí, haverá medo no ar. Basicamente, a economia se encaminhará para a paralisia se não pararmos a pandemia. Por isso, é uma boa decisão colocar a prioridade nas pessoas e controlar a pandemia. Fizemos isso nos EUA depois de pressão dos democratas e para criar as condições para ressuscitar a economia quando a pandemia estiver sob controle. Mas ainda há buracos. 

O sr. costuma afirmar que a economia capturou a política. É possível que líderes que emergiram da negação da política, como Trump e Bolsonaro, de alguma forma tenham terminado sendo representantes ideais das grandes corporações?

Em primeiro lugar, pessoas como Trump são interessadas na sua própria reeleição, no seu próprio poder, e isso torna difícil descobrir o que de fato apoiam. Não apoiam nada. Não há um princípio conservador. Não há princípios. Trump ganhou apoio da grande indústria, então, não surpreende que ela esteja no topo da sua agenda. A primeira resposta dele foi o corte de impostos para corporações, apesar de não ter nada a ver com a crise. Devemos enxergar o que eles têm feito não como algo baseado em um conjunto de princípios ideológicos coerentes, mas como um oportunista tentando lidar com a situação. No começo ele pensou que poderia apenas negar, dizer que está tudo bem. A razão de o avanço da doença estar tão grave é porque não fizemos nada por muito tempo. 

Qual é a consequência desse comportamento de Trump em relação às políticas para conter o coronavírus?

As consequências, francamente, são desastrosas. E seriam piores se não fosse o fato de termos uma burocracia tão dedicada. Instituições como o nosso Centro para Controle de Doenças, que são muito profissionais, e médicos, que de alguma maneira nos salvaram. Também fomos salvos pela intervenção de governadores, mas eles não podem resolver o problema da oferta, da falta de máscaras, de equipamento de proteção e de ventiladores. E a falta de testes – de responsabilidade do governo federal, que não faz seu papel. Faltou fazermos testes por semanas a fio e o resultado, francamente, é que existe sangue nas mãos de Trump. As pessoas estão morrendo porá sua causa de inação.

O sr. inclui Jair Bolsonaro na mesma posição que Trump?

Não tenho seguido os detalhes do que está acontecendo no Brasil, mas penso que o País poderia estar em situação pior se não tivesse uma burocracia dedicada, médicos dedicados. 

Nesse ponto, o sr. vê semelhança entre o Brasil e EUA?

Nós temos sido salvos pelas nossas instituições. 
No Brasil, o presidente se colocou contra orientações do próprio Ministério da Saúde, foi a uma manifestação de rua e criticou fechamento de escolas e templos.
Essas ações são custosas em muitos aspectos. De uma maneira mais ampla, é muito difícil para indivíduos manter distância, pessoas querem interagir, então é essencial dizer às pessoas que é perigoso se aproximar de outras pessoas para impedir a propagação da doença. É para isso que precisamos de liderança. E nós não temos essa liderança (nos EUA). E vocês (no Brasil) têm uma liderança ainda pior. 

Qual a importância do financiamento estatal de despesas nesse momento?

Crucial. A única forma de evitar o colapso do sistema é o dinheiro governamental. Para conter a pandemia, a saúde é o mais importante e isso tem de ser priorizado em termos de orçamento. A grande diferença em relação aos mercados emergentes é que nos EUA não nos perguntamos se podemos bancar isso.

Ampliamos o déficit de US$ 1 trilhão, 5% do produto interno bruto, em US$ 2 trilhões, 15%. Podemos explodir o orçamento sem nos importarmos com isso. A maioria dos países em desenvolvimento não pode. 

E quanto isso atrapalha a tomada de medidas emergenciais pelo Brasil?

Bastante. E certamente exige uma “repriorização”, pelo menos temporária. Talvez exija um corte temporário em parte das pensões, com uma renda mais alta. Um aumento temporário nos impostos de pessoas com maior renda. Vai ser necessário estabelecer novas prioridades pelo menos neste ano e provavelmente para os próximos dois anos. O Brasil e outros países vão sofrer restrições orçamentárias, então precisam levantar dinheiro. A comunidade internacional deveria fornecer mais apoio a países em desenvolvimento e aos mercados emergentes. 

O sr. vai lançar seu próximo livro em setembro no Brasil. O que o País, que tem vivido instabilidade na política e na economia ao longo da década, pode aprender com seu livro?

Primeiro, deixe-me tentar fazer uma conexão entre o que vai acontecer e o livro. Isso é relevante para o Brasil, é relevante para os EUA. O livro apresenta dois pontos muito relevantes: que precisamos de um novo contrato social, um novo equilíbrio entre o mercado, o Estado e a sociedade civil. Nós nos voltamos para o governo quando temos uma crise. O mercado não avaliou adequadamente os riscos, não lidou adequadamente com os riscos de uma pandemia, com o risco de mudanças climáticas, todos os riscos sociais. Isso destaca o papel central do governo em nosso bem-estar. E, quando temos escassez, como temos nos EUA, de máscaras, ventiladores e testes, é um fracasso do mercado. Precisamos da intervenção do governo e, quando ele não intervém, nós sofremos. A realidade é que confiamos demais no setor privado e, em países como os EUA, onde o governo não funcionou, estamos vendo as taxas de mortes. Em países como a Coreia do Sul, onde o governo fez seu trabalho, a pandemia foi controlada rapidamente. Isso mostra o papel crítico do governo. A segunda parte é o papel da ciência. É notável a rapidez com que conseguimos analisar o vírus e descobrir de onde ele veio, desenvolvendo o teste. E toda a ciência é baseada em apoio governamental. Esse é outro exemplo da importância do governo. E no Brasil e nos EUA, temos governos que não acreditam em ciência. E nós vemos as consequências. 

O sr. afirma que o conceito de capitalismo progressista que defende é mais importante que nunca para o bem-estar dos povos?

Sim. O mundo do século XXI é um em que o governo terá de assumir um papel maior do que no passado – a razão pela qual eu defendo um capitalismo progressista. Quero enfatizar que os mercados ainda serão importantes. Mas não podem ser os mercados irrestritos do neoliberalismo. A desigualdade cresceu. E é por isso que nossa política ficou tão feia. O Brasil tem os mesmos problemas. Vocês progrediram na redução da desigualdade, fornecendo educação, em governos de centro-esquerda e de centro-direita, com (Fernando Henrique) Cardoso e Lula. Mostraram que poderiam crescer com prosperidade compartilhada e diminuir a desigualdade. Mas Bolsonaro está indo na direção oposta e isso significa que a proteção do meio ambiente será pior, e você estará exposto a mais doenças, e a educação será prejudicada. O futuro do Brasil está sendo colocado em risco. Eu escrevi minha mensagem em parte em resposta ao dano que Trump está causando aos EUA. Precisamos dessa visão como uma alternativa à destruição de Trump à nossa democracia, economia e sociedade. Mas essas mensagens são ainda mais relevantes para o caso do Brasil.