A crise da macroeconomia

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Por André Lara Resende | 08 de março de 2019 – Para o Valor Econômico

A crise da macroeconomia

A teoria macroeconômica está em crise. A realidade, sobretudo a partir da crise financeira de 2008 nos países desenvolvidos, mostrou-se flagrantemente incompatível com a teoria convencionalmente aceita. O arcabouço conceitual que sustenta as políticas macroeconômicas está prestes a ruir. O questionamento da ortodoxia começou com alguns focos de inconformismo na academia. Só depois de muita resistência e controvérsia, extravasou os limites das escolas. Embora ainda não tenha chegado ao Brasil, sempre a reboque, nos países desenvolvidos, sobretudo nos Estados Unidos, já está na política e na mídia.

A nova macroeconomia que começa a ser delineada é capaz de explicar fenômenos incompatíveis com o antigo paradigma. É o caso, por exemplo, da renitente inflação abaixo das metas nas economias avançadas, mesmo depois de um inusitado aumento da base monetária. Permite compreender como é possível que a economia japonesa carregue uma dívida pública acima de 200% do PIB, com juros próximos de zero, sem qualquer dificuldade para o seu refinanciamento. Ajuda a explicar o rápido crescimento da economia chinesa, liderado por um extraordinário nível de investimento público e com alto endividamento. Em relação à economia brasileira, dá uma resposta à pergunta que, há mais de duas décadas, causa perplexidade: como explicar que o país seja incapaz de crescer de forma sustentada e continue estagnado, sem ganhos de produtividade, há mais de três décadas?

Em artigo recente, “Consenso e Contrassenso: Dívida, Déficit e Previdência”, que circula como texto para discussão do Iepe/Casa das Garças (http://iepecdg.com.br/wp- content/uploads/2019/02/Consensoecontrasenso.docx…pdf), procuro ligar alguns pontos que podem vir a consolidar um novo paradigma macroeconômico. Como foi escrito com o objetivo de embasar a argumentação na literatura econômica, pode exigir do leitor conhecimentos específicos e ser mais técnico do que seria desejável. Por isso volto ao tema, de forma menos técnica, para dar ideia desse novo arcabouço macroeconômico e de suas implicações para a realidade brasileira. As conclusões são

surpreendentes, muitas vezes contraintuitivas, irão provocar controvérsia e correm risco de ser politicamente mal interpretadas.

Não tenho a intenção, nem seria possível, responder às inúmeras dúvidas e perguntas que irão, inevitavelmente, assolar o leitor. Ao fazer um resumo esquemático das teses que compõem as bases de um novo paradigma macroeconômico, pretendo apenas estimular o leitor a refletir e a procurar se informar sobre a verdadeira revolução que está em curso na macroeconomia. É da mais alta relevância para compreender as razões da estagnação da economia brasileira. Na literatura econômica fala-se numa armadilha da renda média, constituída por forças que impediriam, uma vez superado o subdesenvolvimento, que se chegue finalmente ao Primeiro Mundo. Há razões para crer que não se trata de uma armadilha objetiva, mas sim conceitual.

Pilares de um novo paradigma

O primeiro pilar do novo paradigma macroeconômico, a sua pedra angular, é a compreensão de que moeda fiduciária contemporânea é essencialmente uma unidade de conta. Assim como o litro é uma unidade de volume, a moeda é uma unidade de valor. O valor total da moeda na economia é o placar da riqueza nacional. Como todo placar, a moeda acompanha a evolução da atividade econômica e da riqueza. No jargão da economia, diz-se que a moeda é endógena, criada e destruída à medida que a atividade econômica e a riqueza financeira se expandem ou se contraem. A moeda é essencialmente uma unidade de referência para a contabilização de ativos e passivos. Sua expansão ou contração é consequência, e não causa, do nível da atividade econômica. Esta é a tese que defendo no meu livro “Juros, Moeda e Ortodoxia”, de 2017.

Moeda e impostos são indissociáveis. A moeda é um título de dívida do Estado que serve para cancelar dívidas tributárias. Como todos os agentes na economia têm ativos e passivos com o Estado, a moeda se transforma na unidade de contabilização de todos os demais ativos e passivos na economia. A aceitação da moeda decorre do fato de que ela pode ser usada para quitar impostos.

O segundo pilar é um corolário do primeiro: dado que a moeda é uma unidade de conta, um índice oficial de ativos e passivos, o governo que a emite não tem restrição financeira. O Estado nacional que controla a sua moeda não tem necessidade de levantar fundos para se financiar, pois ao efetuar pagamentos, automática e obrigatoriamente, cria moeda, assim como ao receber pagamentos, também de maneira automática e obrigatória, destrói moeda. Como não precisa respeitar uma restrição financeira, a única razão macroeconômica para o governo cobrar impostos é reduzir a despesa do setor privado e abrir espaço para os seus gastos, sem pressionar a capacidade de oferta da economia. O governo não tem restrição financeira, mas é obrigado a respeitar a restrição da realidade, sob pena de pressionar a capacidade instalada, provocar desequilíbrios internos e externos e criar pressões inflacionárias.

O terceiro pilar é a constatação de que o Banco Central fixa a taxa de juros básica da economia, que determina o custo da dívida pública. Desde os anos 1990, sabe-se que os bancos centrais não controlam a quantidade de moeda, nenhum dos chamados “agregados monetários”, mas sim a taxa de juros. O principal instrumento de que dispõe o Banco Central para o controle da demanda agregada é a taxa básica de juros.

O quarto pilar é a constatação de que uma taxa de juros da dívida inferior à taxa de crescimento da economia tem duas implicações importantes. A primeira é que a relação dívida/PIB irá decrescer a partir do momento em que o déficit primário – aquele que exclui os juros da dívida – for eliminado, sem necessidade de qualquer aumento da carga tributária. Portanto, se a taxa de juros, controlada pelo Banco Central, for fixada sempre abaixo da taxa de crescimento, a dívida pública irá decrescer, sem custo fiscal, a partir do momento em que o déficit primário for eliminado. Este é um resultado trivial e mais robusto do que parece, pois independe do nível atingido pela relação dívida/PIB, da magnitude dos déficits e da extensão do período em que há déficits. A segunda implicação, tecnicamente mais sofisticada, é que será possível aumentar o bem-estar de todos em relação ao equilíbrio competitivo através do endividamento público. Em termos técnicos, diz-se que o equilíbrio competitivo não é eficiente no sentido de Pareto.

Sobre esses quatro pilares, acrescenta-se o que foi aprendido sobre a inflação nas últimas três décadas. Ao contrário do que se acreditou por muito tempo, a moeda não provoca inflação. Inflação é essencialmente questão de expectativas, porque expectativas de inflação provocam inflação. As expectativas se formam das maneiras mais diversas, dependem das circunstâncias, e os economistas não têm ideias precisas sobre como são formadas. A pressão excessiva da demanda agregada sobre a capacidade instalada cria expectativas de inflação, mas não é condição necessária para a existência de expectativas inflacionárias. Alguns preços, como salários, câmbio e taxas de juros, funcionam como sinalizadores para a formação das expectativas. Se o banco central tiver credibilidade, as metas anunciadas para a inflação também serão um sinalizador importante. Uma vez ancoradas, as expectativas são muito estáveis. A inflação tende a ficar onde sempre esteve. Por isso é tão difícil, como sempre se soube, reduzir uma inflação que está acima da desejada. Depois da grande crise financeira de 2008, ficou claro que é igualmente difícil elevar uma inflação abaixo da desejada.

Novas ideias, antigas raízes

Embora grande parte das teses do novo paradigma contradigam o consenso econômico- financeiro, elas não são novas. Têm raízes em ideias esquecidas, submersas pela força das ideias estabelecidas e insistentemente repetidas. A tese de que a moeda é essencialmente uma unidade de conta, cuja aceitação deriva da possibilidade de usá-la para pagar impostos, é de 1905. Foi originalmente formulada pelo economista alemão Georg F. Knapp, no livro “The State Theory of Money”. Ficou conhecida como “cartalismo” e foi retomada recentemente pelos proponentes da chamada moderna teoria monetária, MMT em inglês.

Já a tese de que o governo que emite a sua própria moeda não tem restrição financeira, portanto não precisa equilibrar receitas e despesas, é de 1943. Seu autor, Abba Lerner, foi um economista que, como Clarice Lispector, nasceu na Bessarábia, estudou na Inglaterra e deu contribuições de grande relevância para os mais diversos campos da teoria econômica. No ensaio “Functional Finance and the Federal Debt”, Lerner enuncia os princípios que devem guiar o governo no desenho da política fiscal. Segundo ele, os déficits fiscais podem e devem sempre ser usados para garantir o pleno emprego e estimular o crescimento.

A primeira prescrição de Lerner, a sua “primeira lei das finanças funcionais”, é macroeconômica: o governo deve sempre usar a política fiscal para manter a economia no pleno emprego e estimular o crescimento. A única preocupação em relação à aplicação dessa prescrição deve ser com os limites da capacidade de oferta da economia, que não podem ser ultrapassados, sob pena de provocar desequilíbrios internos e externos e criar pressões inflacionárias. A segunda prescrição, ou a segunda “lei das finanças funcionais”, é microeconômica: os impostos e os gastos do governo devem ser avaliados segundo uma análise objetiva de custos e benefícios, nunca sob o prisma financeiro.

Todo banqueiro central com alguma experiência prática na condução da política monetária sabe que o banco central controla efetivamente a taxa de juros básica da economia. Os mais atualizados sabem ainda que, desde que não haja pressão sobre a capacidade de oferta, é possível criar qualquer quantidade de moeda remunerada sem provocar inflação. Trata-se de um poder tão extraordinário, que convém a todos, para evitar pressões políticas espúrias, continuar a sustentar a ficção de que o banco central deve controlar, e que efetivamente controla, a quantidade de moeda.

Já o fato de que o governo – que emite a sua própria moeda – não está submetido a qualquer restrição financeira, é bem menos compreendido. Talvez porque seja profundamente contraintuitivo, dado que todo e qualquer outro agente, as empresas, as famílias, os governos estaduais e municipais, estão obrigados a respeitar o equilíbrio entre receitas e despesas, sob pena de se tornar inadimplentes.

Quando se compreende a proposição que a moeda é um índice da riqueza na economia, que sua expansão não provoca inflação e o seu corolário, que governo que a emite não tem restrição financeira, há uma mudança de Gestalt.

A compreensão da lógica da especificidade dos governos que emitem sua moeda provoca uma sensação de epifania, que subverte todo o raciocínio macroeconômico convencional. Toda mudança de percepção que desconstrói princípios estabelecidos é inicialmente perturbadora, mas uma vez incorporada, abre as portas para o avanço do conhecimento. Como observou o Prêmio Nobel de Física, gênio inconteste, Richard Feynman, num artigo de 1955, “O Valor da Ciência”, o conhecimento pode tanto ser a chave do paraíso, como a dos portões do inferno. É fundamental que essa mudança de percepção seja corretamente interpretada para a formulação de políticas. Assim como Ivan Karamazov concluiu que se Deus não existe, tudo é permitido, de forma menos angustiada e mais afoita, não faltarão políticos para concluir que se o governo não tem restrição financeira, tudo é permitido.

Do ponto de vista macroeconômico, se o governo gastar mais do que retira da economia via impostos, estará aumentando a demanda agregada. Quando a economia estiver perto do pleno emprego, corre o risco de causar desequilíbrios e provocar pressões inflacionárias. Do ponto de vista microeconômico, a política fiscal tem impactos alocativos e redistributivos importantes. Embora o governo não esteja sempre obrigado a equilibrar receitas e despesas, a composição de suas despesas e de suas receitas, a forma como o governo conduz a política fiscal, é da mais alta importância para o bom funcionamento da economia e o bem-estar da sociedade. A preocupação dos formuladores de políticas públicas não deve ser o de viabilizar o financiamento dos gastos, mas sim a qualidade, tanto das despesas como das receitas do governo. A

decisão de como tributar e gastar não deve levar em consideração o equilíbrio entre receitas e despesas, mas sim o objetivo de aumentar a produtividade e equidade. Por isso, é fundamental não confundir a inexistência de restrição financeira com a supressão da noção de custo de oportunidade. O governo continua obrigado a avaliar custos e benefícios microeconômicos de seus gastos. Um governo que equilibra o seu orçamento, mas gasta mal e tributa muito, é incomparavelmente mais prejudicial do que um governo deficitário, mas que gasta bem e tributa de forma eficiente e equânime, sobretudo quando a economia está aquém do pleno emprego.

É possível argumentar que seria melhor não desmontar a ficção de que os gastos públicos são financiados pelos impostos, pelo “o seu, o meu, o nosso dinheiro”, para criar uma resistência da sociedade às pressões espúrias por gastos públicos. Afinal, pressões políticas, populistas e demagógicas, por mais gastos nunca hão de faltar. O problema é que quando se adota um raciocínio torto, ainda que com a melhor das intenções, chega-se a conclusões necessariamente equivocadas.

Uma armadilha brasileira

Desde o início dos anos 1990, a taxa real de juros foi sempre muito superior à taxa de crescimento da economia. Só entre 2007 e 2014 a taxa real de juros ficou apenas ligeiramente acima da taxa de crescimento. A partir de 2015, quando a economia entrou na mais grave recessão de sua história, com queda acumulada em três anos de quase 10% da renda per capita, a taxa real de juros voltou a ser muito mais alta do que a taxa de crescimento. A economia cresceu apenas 1,1% ao ano em 2017 e 2018. Hoje, com a renda per capita ainda 5% abaixo do nível de 2014, com o desemprego acima de 12% e grande capacidade ociosa, a taxa real de juros ainda é mais do dobro da taxa de crescimento. Como não poderia deixar de ser, a relação dívida/PIB tem crescido e se aproxima de níveis considerados insustentáveis pelo consenso macro-financeiro.

O diagnóstico não depende do arcabouço macroeconômico adotado, é claro e irrefutável: as contas públicas estão em desequilíbrio crescente e a relação dívida/PIB vai continuar a crescer e superar os 100% em poucos anos. Já o desenho das políticas a serem adotadas para sair da situação em que nos encontramos é completamente diferente caso se adote a visão macroeconômica convencional ou um novo paradigma. O velho consenso exige o corte a despesas, a venda de ativos estatais, a reforma da Previdência e o aumento dos impostos, para reverter o déficit público e estabilizar a relação dívida/PIB. É o roteiro do governo Bolsonaro sob a liderança do ministro Paulo Guedes. A partir de um novo paradigma, compreende-se que o equívoco vem de longe.

A inflação brasileira tem origem na pressão excessiva sobre a capacidade instalada, durante as três décadas de 1950 a 1980 de esforço desenvolvimentista. Foi agravada pelo choque do petróleo na primeira metade da década de 1970, quando adquiriu uma dinâmica própria, alimentada pela indexação e pelas expectativas desancoradas. Altas taxas de inflação crônica têm uma forte inércia, não podem ser revertidas apenas através do controle da demanda agregada, com objetivo de provocar desemprego e capacidade ociosa. Para quebrar a inércia é preciso um mecanismo de coordenação das expectativas. No Plano Real, esse mecanismo foi a URV, uma unidade de conta sem existência física, corrigida diariamente pela inflação corrente. A URV foi uma unidade de conta oficial virtual, com poder aquisitivo estável, uma moeda plena na acepção Cartalista, que viabilizou estabilização da inflação brasileira. Quando a URV foi

introduzida, a economia não crescia, havia desemprego e capacidade ociosa. A causa da inflação não era mais o gasto público nem o excesso de demanda. Quando se compreende que o governo emissor não tem restrição financeira, fica claro que não havia necessidade de equilibrar as contas públicas para garantir a estabilidade da moeda. A criação do Fundo de Estabilização Social e posteriormente a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, apenas satisfizeram as exigências do consenso macroeconômico e financeiro da época.

Como se acreditava na necessidade de equilíbrio financeiro do governo, para garantir a consolidação da estabilização, a carga tributária foi sistematicamente elevada. Chegou a 36% da renda, comparável às das mais altas entre as economias desenvolvidas. Durante os governos do PT, opção demagógica pelo aumento dos gastos com pessoal e por grandes obras, turbinadas pela corrupção e sem qualquer avaliação de custo e benefícios, combinada com a ortodoxia do Banco Central, aprofundou o desequilíbrio das contas públicas. O quadro foi agravado pela rápida queda do crescimento demográfico e do aumento da expectativa de vida, que tornou a Previdência crescentemente deficitária.

Uma vez feita a transição da URV para o Real, teria sido necessário manter uma âncora coordenadora das expectativas. Retrospectivamente, o correto teria sido adotar um regime de metas inflacionárias, para balizar as expectativas, que só veio a ser adotado no segundo governo FHC. A opção à época foi por dispensar um mecanismo coordenador das expectativas e confiar nas políticas monetária e fiscal contracionistas. Optou-se por combinar uma política de altíssimas taxas de juros com a austeridade fiscal. O resultado foram mais de duas décadas de crescimento desprezível, colapso dos investimentos públicos, uma infraestrutura subdimensionada e anacrônica, Estados e municípios estrangulados, incapazes de prover os serviços básicos de segurança, saneamento, saúde e educação. Mas como não vale a pena chorar sobre o leite derramado, passemos a políticas a serem adotadas para sair da armadilha em que nos encontramos, com base no novo arcabouço conceitual macroeconômico.

Reformas voltadas para o futuro

Comecemos pela questão que ocupa as manchetes, a reforma da Previdência. Sim, é preciso uma reforma da Previdência, não porque ela seja deficitária, mas porque ela é corporativista e injusta e porque o aumento da expectativa de vida exige a revisão da idade mínima. O déficit do sistema previdenciário, como todo déficit público, não precisa ser eliminado se a taxa de juros for inferior à taxa de crescimento. Como estamos com alto desemprego, significativamente abaixo da plena utilização da capacidade instalada e com expectativas de inflação ancoradas, o objetivo primordial das “reformas” deve ser estimular o investimento e a produtividade.

Em paralelo à reforma da Previdência, deve-se fazer uma profunda reforma fiscal segundo os preceitos das finanças funcionais de Abba Lerner. O objetivo da reforma tributária não deve ser maximizar a arrecadação, mas sim o de simplificar, desburocratizar, reduzir o custo de cumprir as obrigações tributárias, para estimular os investimentos e facilitar a inciativa privada. Enquanto não houver pressão excessiva sobre a oferta e sinais de desequilíbrio externo, a carga tributária deve ser significativamente menor.

A taxa básica de juros deveria ser reduzida, acompanhada do anúncio de que, a partir de agora, seria sempre fixada abaixo da taxa nominal de crescimento da renda. Simultaneamente, deveria-se promover a modernização do sistema monetário, substituindo as LFTs e as chamadas Operações Compromissadas, que hoje representam metade da dívida pública, por depósitos remunerados no Banco Central. Adicionalmente, seria dado acesso direto ao público, não apenas aos bancos comerciais, às reservas remuneradas no Banco Central. A modernização do sistema, com redução de custos e grandes ganhos de eficiência no sistema de pagamentos, passaria ainda pela criação de uma moeda digital do Banco Central, que abriria o caminho para um governo digital e desburocratizado.

Para garantir a eficiência dos investimentos e o ganho de produtividade, deveria-se promover uma abertura comercial programada para integrar definitivamente a economia brasileira na economia mundial. O prazo de transição para a completa abertura comercial deveria ser pré-anunciado e de no máximo cinco anos.

Por fim, mas não menos importante, seria fundamental criar mecanismos eficientes, idealmente através da contratação de agências privadas independentes, para avaliação de custos e benefícios dos gastos públicos em todas as esferas do setor público. A política fiscal é da mais alta relevância para o bom funcionamento da economia e para o bem-estar da sociedade. Compreender que o governo não tem restrição financeira não implica compactuar com um Estado inchado, ineficiente e patrimonialista, que perde de vista os interesses do país. Ao contrário, redobra a responsabilidade e a exigência de mecanismos de controle e avaliação sobre a qualidade, os custos e os benefícios, dos serviços e dos investimentos públicos.

Estas linhas gerais de políticas, sugeridas pelo novo paradigma macroeconômico, correm o risco de desagradar a gregos e troianos. Não se encaixam, nem no populismo estatista da esquerda, nem no dogmatismo fiscalista da direita. Como observou, de maneira premonitória, Abba Lerner, em seu ensaio de 1943, os princípios das Finanças Funcionais são igualmente aplicáveis numa sociedade comunista, como numa sociedade fascista, como numa sociedade capitalista democrática. A diferença é que se os defensores do capitalismo democrático não os compreenderem e adotarem, não terão chance contra aqueles que vieram a adotá-los. No primeiro ensaio de “Juros, Moeda e Ortodoxia”, sustento que, durante o século XX, o liberalismo econômico perdeu a batalha pelos corações e pelas mentes dos brasileiros. Embora a história tenha mostrado que seus defensores, desde Eugênio Gudin, estavam certos sobre os riscos do capitalismo de Estado, do corporativismo, do patrimonialismo e do fechamento da economia à competição, foram derrotados porque adotaram um dogmatismo monetário quantitativista equivocado. Tentaram combater a inflação promovendo um aperto da liquidez. O resultado foi sempre o mesmo: recessão, desemprego e crise bancária. Expulsos do comando da economia pela reação da sociedade, seus defensores recolhiam-se para lamentar a demagogia dos políticos e a irracionalidade da população. Quase sete décadas depois de Gudin, os liberais voltam a comandar a economia. O apego a um fiscalismo dogmático e a um quantitativismo anacrônico pode levá-los, mais uma vez, a voltar para casa mais cedo do que se imagina.

André Lara Resende é economista

 

Acordo EUA-China e o agro brasileiro – Marcos Jank

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 Brasil pode ser atingido em soja, milho, algodão, etanol e todas as carnes

O encontro entre Jair Bolsonaro e Donald Trump no dia 19 se dará às vésperas da conclusão de um acordo histórico entre os EUA e a China que pode ser altamente disruptivo para o agronegócio mundial, afetando principalmente o Brasil.

O acordo pode representar o fim de uma era em que o comércio se expandia baseado essencialmente na competitividade dos países, sem grande esforço.

Ele traz novos elementos para a equação: pressionados por imenso déficit comercial de US$ 420 bilhões, os EUA deram início a uma guerra mercantilista com a China impondo elevadas tarifas sobre US$ 250 bilhões em importações.

O gigante asiático retrucou impondo tarifas sobre US$ 110 bilhões dos EUA, o que atingiu em cheio a soja americana. A disputa trouxe US$ 8 bilhões adicionais às nossas exportações de soja para a China, levando os incautos a inclusive “comemorar” a guerra comercial.

Tudo indica que os EUA vão forçar a China a ampliar as suas compras de produtos agropecuários americanos em absurdos US$ 30 bilhões anuais, que, na melhor das hipóteses, se somariam aos US$ 14 bilhões que foram adquiridos em 2018.

Previsões mais sombrias dizem que as importações chinesas vindas dos EUA poderiam ultrapassar US$ 50 bilhões anuais, se somadas ao valor de 2017, que foi de US$ 22 bilhões.

Acreditamos que as exportações mundiais de soja voltarão ao seu curso normal pré-2017, com os chineses se beneficiando plenamente da alternância das safras americana (EUA) e sul-americana (Brasil e Argentina), que ocorrem em diferentes momentos do ano. Essa complementariedade garante estabilidade de oferta e menor risco para a China.

Ocorre, porém, que, para chegar aos US$ 30 bilhões adicionais, a China teria de oferecer acesso privilegiado aos EUA em outros produtos.

Dois casos com forte impacto sobre o Brasil são o milho e o algodão. O consumo de milho da China é gigante (280 milhões de toneladas), porém as suas importações têm sido muito reduzidas —apenas 3,5 milhões de toneladas em 2018.

Os EUA pressionarão a China a importar muito mais milho, flexibilizando o seu regime restritivo de cotas de importação e facilitando o ingresso de milho transgênico.

Outros produtos americanos que seriam beneficiados pelo acordo são o etanol de milho, o DDG (subproduto da produção de etanol usado em alimentação animal) e as carnes.

No caso do etanol, a importação viria da obrigatoriedade de mistura de 10% de etanol na gasolina da China (E10), que foi mandatada no passado, mas jamais cumprida.

Estimamos que, entre produtos e subprodutos de milho, etanol e algodão, a China poderia ampliar suas importações dos EUA em mais de US$ 10 bilhões adicionais por ano.

Nas carnes, se a China retirar as restrições técnicas e sanitárias que foram impostas aos americanos nos últimos anos, certamente seremos prejudicados em todas as proteínas animais —aves, suínos e bovinos—, com destaque para as perdas de mercado em pés e coxas de frango.

A China certamente tem meios para atender à forte pressão dos EUA, ampliando o acesso de soja e de outros produtos agropecuários.

Resta saber se isso será feito à luz das regras da OMC, se ela vai “forçar a barra” na flexibilização das barreiras técnicas e sanitárias e se usará a sua estrutura estatal (estoques estratégicos e empresas públicas) para operacionalizar o acordo.

Enfim, se esse acordo se concretizar, poderemos estar entrando numa era de “comércio administrado” caso a caso, sob a égide de interesses geopolíticos, que pode reduzir o nosso acesso à China, ao Brics e a outros mercados emergentes. Aí sim estaríamos entregando a nossa alma.

Esta coluna foi escrita em parceria com André Soares, senior fellow do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais)

Marcos Sawaya Jank

Especialista em questões globais do agronegócio, trabalha em Singapura. É livre-docente em engenharia agronômica pela USP.

 

 

A banalização do mal e a desumanização do indivíduo

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Escrevo num momento de reflexão sobre os rumos da sociedade mundial, somente nesta semana a sociedade internacional se assustou com dois eventos que trouxeram perplexidade, medos e desesperanças, os eventos inexplicáveis protagonizados por dois adolescentes que invadiram uma escola estadual e mataram oito pessoas e as atrocidades cometidas na Nova Zelândia, onde um atirador matou mais de quarenta pessoas com requintes de violência e traços acelerados de insanidade, diante disso, todos estão se perguntando para onde a sociedade internacional está caminhando e quais os motivos que levam cidadãos considerados normais a cometeram uma crueldade como esta?

Nos momentos iniciais destas atrocidades, os indivíduos buscam explicações, teorias e respostas variadas dos motivos que levaram os indivíduos a cometerem crimes tão violentos, destruindo sonhos, degradando famílias e destilando ódio, rancor e ressentimentos por todos os poros da sociedade, gerando nuvens de medo, desesperança e instabilidades.

Muitas questões são aventadas por especialistas, todos dotados de teorias e grandes instrumentos científicos para opinar e dar suas opiniões, cercados por uma mídia sedenta por respostas e por uma sociedade atônita por explicações mais bem estruturadas e convincentes, que possam trazer um pouquinho mais de esperança e confiança para a coletividade.

Estamos inseridos em uma sociedade que se transforma com grande rapidez, as mudanças tecnológicas deixaram as fábricas e as organizações empresariais e estão, cada dia de forma mais intensa, adentrando nossas casas e residências, exigindo dos trabalhadores uma ampla capacidade de adaptação, capacitação e qualificação constantes, tudo isto exige dos indivíduos uma centralidade maior do mundo do trabalho em nossas vidas contemporâneas, diminuindo o tempo que passamos com nossas famílias, nossos filhos, amantes e conosco mesmo, o trabalho nos consome mais do que queremos e mais, ao nos consumir diuturnamente, passa a nos transformar intimamente.

Anteriormente, as famílias se subdividiam, os homens saíam de casa para o trabalho cotidiano e as mulheres eram responsáveis pelas atividades do lar e pela educação dos filhos, desta forma a figura da família estava sempre presente na vida dos filhos, gerando proximidade, intimidade, responsabilidade e segurança, estas características estão ausentes na família contemporânea, gerando desequilíbrios e desestruturas.

O mundo do trabalho exige dos indivíduos uma constante transformação, sob pena de exclusão e dificuldades de inserção neste mercado que, cotidianamente, se transforma, gerando desafios que os indivíduos não estão mais em condição de suportar, tudo isso leva o cidadão a desequilíbrios generalizados, medos incessantes e transtornos psicológicos, emocionais e espirituais em escalas até então jamais vistas e imaginadas.

Além das mudanças constantes na sociedade contemporânea, este mundo do trabalho exige dos trabalhadores uma guerra constante, palavras como metas, produtividade, empreendedorismo, bônus, competição, lucro e competitividade, são constantes no vocabulário do mundo da gestão, levando os indivíduos a uma interiorização destes conceitos no ideário de cada trabalhador, busca-se uma racionalidade, uma maximização de lucros e uma minimização de custos que coloca o trabalhador na berlinda, dando-lhe uma centralidade na produção e na prestação de serviços e, ao mesmo tempo, retirando-lhe uma forte capacidade de participação mais intensa nas decisões.

Nesta sociedade, percebemos uma crise do indivíduo, os relacionamentos não mais se sustentam, os enamorados se afastam uns dos outros, o medo do fracasso e da frustração leva o indivíduo a se distanciar da realidade e, muitas vezes, levando-o a construir mundos paralelos para dar vazão a insegurança, criando perfis falsos e acessando mercados obscuros nas redes sociais para dar vazão a uma intolerância crescente.

Nesta sociedade encontramos uma grande competição entre todos, Estados competem uns com os outros, empresas se digladiam por mais mercados, lucros e rentabilidade, trabalhadores se encontram perdidos e perplexos com as cobranças que se avolumem cotidianamente, obrigando-os a se adaptarem a estas transformações frenéticas e alucinantes, neste clima de constante competição estamos cada vez mais estressados, cansados e desesperançados, muitos se rendem a depressão que aflige mais de 300 milhões de pessoas no mundo, enquanto outros optam pelo suicídio, acreditando com isto, que estão se escondendo dos duros embates da vida contemporânea.

A desagregação das famílias está associada ao excesso de cobranças na sociedade, às transformações do mercado de trabalho, que obrigam os pais a se ausentarem de suas casas para buscar o alimento necessário para a reprodução dos seus entes queridos, nesta nova sociedade marcada pela crescente introdução de máquinas e tecnologias, além de sua formação inicial, faz-se fundamental uma atualização constante, obrigando os trabalhadores a se ausentarem de suas casas ou a se fechar em seus escritórios, deixando filhos e familiares sem os contatos essenciais para a construção contínua da personalidade e da segurança de seus filhos, amados e dependentes.

Com a ausência dos genitores, os filhos passam a ser educados pela escola e pela televisão, que tem importância central na sociedade, mas não dispõem dos aparatos necessários para auxiliar na construção da personalidade de crianças e adolescentes, com isso, estes últimos passam a atrair pessoas com interesses negativos diversos, desde drogas, álcool e prostituição, dificultando uma possível melhoria num futuro imediato.

As causas destas dificuldades estão na busca constante pelo prazer, pelo gozo farto e pelas responsabilidades mínimas, sexo, drogas, álcool e dinheiro nos trazem um prazer imediato e nos leva a um precipício, o hedonismo nos seduz e esconde as nossas responsabilidades enquanto pais, cônjuges e profissionais, quando acordamos deste pesadelo nos assustamos com nossas escolhas individuais e nos amedrontamos diante da vida.

O mundo do trabalho exige cada vez mais dos trabalhadores, nos lares mais abastados os problemas estão na complexidade das atividades imateriais, enquanto nos lares mais desprovidos de recursos financeiros, os trabalhadores passam grande parte seu tempo em condução, com isso, estar próximo de filhos e familiares é um luxo incomensurável, gerando sempre insatisfação e consciência intranquila, medos e preocupações.

Nestas mudanças do mundo da gestão, as empresas trocam mão de obra por tecnologia, levando os trabalhadores a uma situação de constante instabilidades e medos de serem substituídos por máquinas, na atualidade o medo aumenta porque esta troca está atingindo trabalhadores mais qualificados e em cargos de diretoria e supervisão, que sofrem a concorrência com a inteligência artificial, obrigando-os a novas capacitações e constantes atualizações, tudo isso leva as famílias a um distanciamento crescente, uma desumanização ascensional e uma perda das funções sociais dos pais, gerando um caos generalizados na sociedade e uma perda de referências positivas no cotidiano das crianças e adolescentes.

Somos vítimas de uma sociedade centrada no lucro e na acumulação financeira, enterramos nossas vidas na loucura da competição desenfreada do mundo moderno e nos esquecemos dos compromissos familiares anteriores, neste ambiente, algumas famílias desistem de ter filhos e buscam uma vida que lhes garanta uma maior acumulação financeira e orçamentária, garantindo-lhes, nos momentos de senilidade, bolsos cheios de recursos, propriedades e tesouros monetários e corações marcados por parcos sentimentos de solidariedade e uma grande porção de solidão e desesperança.

A legitimação desta sociedade está nas vitrines das lojas e nas televisões de alta resolução, nos prazeres dos desfiles nos shoppings, no espetáculo da tecnologia, nos avanços das comunicações e nas facilidades dos smartphones que nos conectam com um mundo de sonho e fantasia, onde não existe espaço para tristezas, onde as postagens são sempre de pessoas alegres e bem sucedidas e as homenagens são feitas, na grande maioria, aqueles que menos fizeram para a coletividade, mas que mais apareceram para a mídia e para a coletividade.

A busca constante por lucros está matando o ser humano, enterrando os sentimentos mais nobres, isolando os indivíduos, degradando a natureza e condenando as pessoas a uma perda constante de sua sensibilidade social, os dramas no mundo não mais nos assustam, os medos das pessoas não mais nos levam a empatia e a perspectivas de uma melhora, esta está diretamente ligada as mudanças que devem ser conduzidas e empreendidas por cada indivíduo em sua intimidade, o mundo só muda quando o ser humano se transforma, esta transformação é urgente e necessária, se não a fizermos, em pouco tempo, estaremos novamente discutindo questões importantes, mas interpretando os fatos de forma equivocada e fugindo de discussões mais relevantes e fundamentais.

Os massacres assistidos quase ao vivo nesta semana mexeram com todos os indivíduos, uns se sensibilizam mais enquanto outros pouco se sintonizaram com a dor alheia, nesta busca por explicações das razões e dos motivos que levaram pessoas descritas como normais a adotarem atitudes irracionais, tentemos encontrar explicações nas escolhas que estamos fazendo nos últimos anos, deixemos de lado este excesso de tecnologias e as substituamos por mais diálogo, conversas e proximidade, substituamos presentes e mercadorias caras por mais limites, direitos e deveres,  assumamos a responsabilidade que cabe a cada um de nós e voltemos a mostrar a importância das crenças e dos valores morais, se não aprendermos com mais uma destas monstruosidades, muito brevemente estaremos conversando sobre os mesmos crimes e as mesmas violências, sempre buscando responsáveis e nos eximindo de nossas culpas.

Todos os seres humanos devem ser vistos como um misto de bem e de mal, nenhum indivíduo é dotado apenas de coisas boas e edificantes, aumentar nossas virtudes e reduzir nossas indigências nos levam a sinais claros de progressos visível e fundamental, este crescimento está centrado em valores e sentimentos melhores que demandam um incremento da educação, não uma educação que se concentre apenas em instrumentos cognitivos de compreensão do mundo, mas em uma educação que além destes instrumentos cognitivos nos auxilia na construção de valores maiores e mais sólidos, somente esta educação capacita o ser humano para a compreensão da vida e da sociedade e o aproxima dos valores que sustentam uma obra maior e mais consistente.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Os impactos da financeirização sobre o sujeito

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IHU – Junho 2010.

A financeirização é uma forma de biopoder, teoriza o economista Andrea Fumagalli. A autonomia pessoal é hoje muito mais limitada do que há três décadas, e a individualidade foi suplantada pelo individualismo: a alienação física tende a converter-se em cerebral

“No paradigma atual do capitalismo cognitivo, os mercados financeiros, longe de serem o local de rendimento parasitário improdutivo, são o motor da economia”, reflete o economista italiano Andrea Fumagalli, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ele, a crise financeira é, também, uma crise de desenvolvimento capitalista, e a crise da governança não é apenas técnica, mas também política. Outro nexo entre a financeirização como forma de biopoder é a crescente privatização dos serviços de saúde, que “aumentou a governança biopolítica das instituições econômicas sobre o corpo humano, tanto do ponto de vista físico quanto do mental”. Segundo Fumagalli, em nossos dias a “alienação do corpo tende a tornar-se cerebral”. O impacto da financeirização sobre o sujeito é, ao mesmo tempo, um impacto de chantagem e medo, mas também de um consenso: chantagem de uma necessidade em um contexto de trabalho cada vez mais individualizado e precário. Paradoxalmente, continua, a autonomia pessoal é muito mais limitada hoje do que há 30 anos: “A divisão entre o tempo de trabalho e o tempo de não trabalho poderia ser traduzida também na separação entre coerção e liberdade potencial. Uma vez terminado o horário de trabalho, a disciplina do trabalho acabava em favor de outras estruturas disciplinares”. Resulta que atualmente a autonomia individual é limitada e reprimida, em plena “era da ideologia do indivíduo livre”. Em lugar da individualidade, reifica-se o individualismo.

Doutor em Economia Política, Andrea Fumagalli é professor no Departamento de Economia Política e Método Quantitativo da Faculdade de Economia e Comércio da Università di Pavia, Itália. Dentre seus vários livros publicados, citamos: Il lavoro. Nuovo e vecchio sfruttamento (Milão: Punto Rosso, 2006) e Crisi dell’economia globale. Mercati finanziari, lotte sociali e nuovi scenari politici (Verona: Ombre corte, 2009).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Por que considera a financeirização como uma forma de biopoder?

Andrea Fumagalli – No paradigma atual do capitalismo cognitivo, os mercados financeiros, longe de serem o local de rendimento parasitário improdutivo, são o motor da economia. Eles representam o lugar onde valoriza-se, ao mesmo tempo, a produtividade intangível e cognitiva e executa-se a privatização dos serviços sociais. Canalizando de modo forçado parte crescente da renda do trabalho (pensões e indenizações, além de renda que, por intermédio do estado social, traduzem-se nas instituições de proteção da saúde e da educação pública), substituíram o Estado como segurador social. Desse ponto de vista, representam a privatização da esfera reprodutiva da vida. Exercitam, portanto, o biopoder. Os mercados financeiros, assim, assumem o lugar do antigo estado de bem-estar keynesiano e levam a cabo as formas indiretas de redistribuição do capital para o trabalho, gerenciando de modo direto e distorcido as quotas crescentes de rendimento do trabalho que ali são canalizadas de forma mais ou menos forçada. Enquanto isso, as grandes instituições financeiras multinacionais são hoje organizações que valorizam “indiretamente” a acumulação da produção mundial, assim como no paradigma fordista os lucros das grandes multinacionais manufatureiras foram o espelho das relações de força entre o capital industrial e o trabalho assalariado.

Os mercados financeiros — por meio dos índices de mercado — representam, em resumo, um tipo de multiplicador real da economia, e neles condensam-se todas as expectativas dos grandes operadores econômicos. Não é por acaso que, na década passada, os bancos centrais fizeram depender as escolhas de política monetária (taxas de juro e a oferta de moeda corrente), em função do objetivo de estabilizar a dinâmica dos mercados financeiros, com a esperança — totalmente ilusória — de limitar as oscilações e a volatilidade. Além disso, com o advento do capitalismo cognitivo, o processo de exploração perde a unidade de medida quantitativa ligada à produção industrial. Tal medida foi, de alguma forma, definida pelo conteúdo do trabalho necessário para a produção de mercadorias, medida pela tangibilidade da produção própria e pelo tempo necessário para a produção.

Com o advento do capitalismo cognitivo, a valorização tende a engajar-se nas várias formas de trabalho, que tragam as horas de trabalho efetivamente autorizadas para coincidir sempre mais com o tempo de vida. Hoje, o valor do trabalho na base da acumulação capitalista é também o valor do conhecimento, dos afetos e dos relacionamentos, do imaginário e do simbólico. O êxito dessas transformações biopolíticas é a crise da medida tradicional do valor-trabalho e, com ela, a crise da forma-lucro. Uma possível solução “capitalista” era medir a exploração da cooperação social e do intelecto geral por intermédio da dinâmica dos valores de mercado. O lucro transforma-se assim em renda, e os mercados financeiros tornam-se o lugar da determinação do valor-trabalho, o que se transforma em valor-finança que não é outro senão a expressão subjetiva da expectativa dos lucros futuros realizados pelos mercados financeiros que acumulam, desse modo, um rendimento. É esse o biopoder das finanças contemporâneas.

IHU On-Line – Em que sentido a crise das finanças é crise de governança financeira do biopoder atual?

Andrea Fumagalli – A crise de governança socioeconômica com base no papel dos mercados financeiros tem duas origens. A primeira diz respeito ao fato de que a atual crise financeira marca o fim da ilusão de que o financiamento pode constituir uma medida de trabalho, pelo menos no contexto atual de fracasso da governança cognitiva do capitalismo contemporâneo. Assim, a crise financeira é também uma crise do desenvolvimento capitalista.

A segunda está na instabilidade estrutural do capitalismo atual, o que não pode ser sanado com ações corretivas de natureza reformista. Na presença de ganhos de capital, os mercados financeiros desempenham no sistema econômico o mesmo papel que, no contexto fordista, desempenhava o multiplicador keynesiano (ativado por gastos deficitários). No entanto — ao contrário do multiplicador keynesiano tradicional — isso leva a uma redistribuição destorcida de renda. Para que tal multiplicador seja operativo (> 1), é necessário que a base financeira (ou seja, a extensão dos mercados financeiros) esteja constantemente aumentando e que os ganhos de capital acumulados sejam, em média, superiores à perda do salário mediano (que, a partir de 1975 em diante, foi de aproximadamente vinte por cento). Por outro lado, a polarização das rendas aumenta o risco de insolvência das dívidas que estão na base do crescimento da mesma base financeira e reduz o salário médio. Aqui, então, abre-se a primeira contradição que faz com que a governança socioeconômica dos mercados financeiros, por intermédio da distribuição dos ganhos de capital, possa ser sustentada ao longo do tempo.

Endividamento crescente

A crise da governança não é apenas uma crise “técnica”, mas é também, e sobretudo, uma crise “política”. A condição para que os mercados financeiros possam apoiar as fases de expansão e de crescimento real seria o aumento constante da base financeira. Em outras palavras, é necessário que a quota de riqueza mundial canalizada para os mesmos mercados financeiros cresça constantemente. Isso implica um contínuo aumento da relação entre débito e crédito ou por meio do aumento do número de pessoas endividadas (grau de extensão dos mercados financeiros) ou por meio da construção de novos instrumentos financeiros que se alimentam do comércio financeiro já existente (o grau de intensidade mercados financeiros). Os produtos derivados são um exemplo clássico dessa segunda modalidade de expansão dos mesmos mercados financeiros. Sejam quais forem os fatores considerados, a expansão dos mercados financeiros é acompanhada necessariamente ou pelo aumento do endividamento ou pelo aumento da atividade especulativa e dos riscos envolvidos. Trata-se de uma dinâmica intrínseca ao papel dos mercados financeiros como a pedra angular do capitalismo cognitivo.

Falar sobre a especulação excessiva para a ganância dos gestores ou dos bancos não tem absolutamente nenhum sentido e só pode servir somente para desviar a atenção das verdadeiras causas estruturais dessa crise. O resultado final é, necessariamente, a insustentabilidade de um endividamento crescente, especialmente quando começa a ficar endividada parte da população com maior risco de insolvência: exatamente aqueles estratos sociais que, devido à precariedade dos processos de trabalho, não estão em condições de desfrutar daquele “efeito riqueza” que a participação nos ganhos do mercado de ações permitia aos estratos sociais mais abastados.

Nó contraditório

A crise de inadimplência no crédito imobiliário tem, assim, a sua origem em uma das contradições do capitalismo cognitivo contemporâneo: a natureza irreconciliável de uma distribuição desigual de renda com a necessidade de alargar-se a base financeira para continuar a desenvolver o processo de acumulação. Esse nó contraditório não é outro senão o vir à luz de uma irredutibilidade (superávit) da vida de boa parte dos atores sociais para subsunção (eles são fragmentados em singularidade ou definíveis nos segmentos de classe). Um superávit que hoje se expressa em uma multiplicidade de comportamentos: das formas de infidelidade às hierarquias corporativas, à presença de comunidades que se opõem à governança territorial, ao êxodo individual e grupal dos ditames de vida impostos pelas convenções sociais vigentes, até ao desenvolvimento de formas de auto-organização no mundo do trabalho e da revolta aberta contra novos e velhas formas de exploração nas favelas das megalópolis do Sul do mundo, nas metrópoles ocidentais, nas áreas de maior industrialização recente no sudeste da Ásia como na América do Sul. Um excedente que pode ser encontrado, declarando em uníssono, nos quatro cantos do planeta, que não está disponível para pagar por essa crise. A instabilidade incurável do capitalismo contemporâneo é também o resultado desse excedente.

IHU On-Line – Quais são os efeitos dessa crise em termos econômicos e subjetivos?

Andrea Fumagalli – Os efeitos da crise podem ser analisados em diferentes níveis: o macroeconômico e o macrorregional, ou seja, do ponto de vista dos efeitos sobre as hierarquias econômicas mundiais e o nível mais microeconômico e subjetivo relativo aos efeitos sobre a vida dos seres humanos.

Nível macroeconômico

A capacidade dos mercados financeiros para criar “valor” está relacionada ao desenvolvimento de “convenções” (bolhas especulativas), capazes de criar expectativas tendencialmente homogêneas que empurram os principais operadores financeiros a apoiarem determinados tipos de atividade financeira. Na década de 1990, era a Economia da Internet; nos anos 2000, a atração veio do desenvolvimento de mercados asiáticos (com a China entrando na OMC em dezembro de 2001) e da propriedade imobiliária. Os efeitos devastadores do colapso da bolha imobiliária, em 2008, exigiam uma forte intervenção do estado para tapar as lacunas da balança abertas nas grandes instituições bancárias, de seguros e financeiras. O Estado desenvolveu assim o papel de emprestador de última instância, e, consequentemente, a fundo perdido e sem qualquer estímulo ao pedido. É a recessão atual e a forte introdução de liquidez pública, mais que o excesso de despesas públicas, a principal causa do déficit/PIB. Em um cenário similar, estão os países mais dependentes da dinâmica econômica internacional a serem os mais penalizados, ou seja, os países que desempenham o papel de subfornecedores, sem poderem influenciar a trajetória tecnológica dominante. A área do Mediterrâneo está entre eles.

A especulação financeira pretende, assim, desenvolver uma nova convenção, que podemos definir como “Acordo do bem-estar”, em que o objeto dessa mesma especulação é diretamente a prosperidade (o bios) dos indivíduos. Dos acordos de tipo setorial à alta intensidade cognitiva (economia de internet), passando pelas convenções relacionadas ao desenvolvimento de áreas territoriais globais, chega-se, assim, a acordos que têm como objeto as condições de vida e de trabalho dos seres humanos. O biopoder das finanças confirma-se penetrante e cada vez mais direta. A crise europeia e as dificuldades dos EUA e do Japão evidenciam a capacidade de manutenção econômica demonstrada pelos países do Leste da Ásia e da América Latina (e, em primeiro lugar, do Brasil). A crise atual, portanto, põe em discussão a questão da hegemonia financeira dos EUA e a centralidade dos mercados de ações anglo-saxões no processo de financiamento. A saída dessa crise, necessariamente, marcará um deslocamento do centro de gravidade financeiro para o Leste e em parte para o Sul (América). Já, em nível produtivo e de controle dos escambos comerciais, ou seja, em nível real, os processos de globalização cada vez mais evidenciaram uma mudança do centro produtivo para o leste e para o sul do mundo. Desse ponto de vista, a atual crise financeira pôs fim a um tipo de anomalia que tinha caracterizado a primeira fase da expansão do capitalismo cognitivo: o deslocamento da centralidade tecnológica e do trabalho cognitivo para Índia e para a China, na presença da manutenção da hegemonia financeira no Ocidente. Quando o desenvolvimento dos países orientais (China e Índia), do Brasil e África do Sul era ainda impulsionado pelos processos de terceirização e subcontratação laboral no estrangeiro ditadas pelas grandes corporações ocidentais, não era possível identificar uma distonia espacial entre as duas principais variáveis de controle do capitalismo cognitivo: o controle da moeda-finança, por um lado, e o controle da tecnologia de outro. A atual crise financeira pôs fim à tal distonia espacial.
O primado tecnológico e o financeiro tendem desde então a se articular também em nível geoeconômico. Resulta que o capitalismo cognitivo, como um paradigma de acúmulo bioeconômico, torna-se hegemônico até na China, na Índia e no Sul do mundo. Isso não significa, seja dito claramente, que eles tenham deixado de ter importantes diferenças também radicais entre as diferentes áreas e os diferentes tempos por meio dos quais se distendem os processos capitalistas de valorização e por meio dos quais se rearticula continuamente a composição de trabalho controlado e explorado pelo capital.Também não é possível, então, estabelecer uma série de conceitos passepartout que são igualmente aplicáveis em Nairóbi, em Nova Iorque e em Xangai. O ponto é, especialmente, que o próprio sentido das diferenças radicais entre as localidades, as regiões e os continentes deve ser recomprimido dentro da rede heterogênea de sistemas de produção, de temporalidade e experiências subjetivas do trabalho, que constituem o capitalismo cognitivo.

Nível subjetivo e microeconômico

Os principais efeitos microeconômicos preocupam-se com a dinâmica do mercado de trabalho. As crises econômicas raramente produzem processos de transformações sociais, especialmente rebeliões. E frequentemente são utilizadas como uma gazua para iniciar o processo de reestruturação, também nos contextos em que não seriam justificadas. O resultado final, na verdade, é um aumento da insegurança, habitualmente justificada pela necessidade de combater o desemprego crescente. Se, depois de tudo isso, vêm unidas a políticas econômicas fiscais recessivas (como está acontecendo na Europa), ao agravamento das condições de trabalho e renda, também se adicionam o desmantelamento dos serviços sociais e a privatização da vida. Aqui estão as principais tendências:
• Uma vez terminada a fase decadente e recessiva do PIB, na atual fase de estagnação, o mercado de trabalho torna-se ainda mais flexível.
• Nesse contexto, a crise evidencia o grau e a intensidade da insegurança.
• Favorece-se relativamente a inserção de trabalhadores jovens (que são mais baratos e mais fáceis de serem demitidos) para substituir os de mais de quarenta anos com contratos de trabalho estáveis. Aumenta-se assim o problema dos acima de quarenta sem trabalho.
• Acentua-se o processo de terceirização, o que facilita ainda mais o processo de insegurança. Além disso, a quota de contratos atípicos aumenta também na indústria. A precariedade é condição comum, mesmo que prevaleça no setor de serviços.
• É penalizado o emprego das mulheres e interrompe-se o processo de feminização do trabalho.
• Não admira que o trabalho migrante venha ulteriormente penalizado, por meio da expulsão do mercado de trabalho.
• Em conclusão, o trabalhador e a trabalhadora migrantes são diretamente dispensados; o trabalhador e a trabalhadora indígenas, primeiro, são tornados inseguros e só sucessiva e eventualmente demitidos.

IHU On-Line – Como podemos compreender a alienação e as doenças enquanto efeitos dessa financeirização e biopoder?

Andrea Fumagalli – Nos últimos vinte anos, o processo de mercantilização da vida (da bios) deu passos gigantescos não só do ponto de vista tecnológico (por exemplo, o desenvolvimento da genética e da biotecnologia), mas também no que respeita à subsunção das atividades culturais, criativas e ambientais. O processo de “remodelação” interessou às estruturas espaço-urbanísticas das grandes cidades, modificando de modo estrutural a relação centro/periferia. A atividade cultural que é relacional; tornou-se uma fonte de valorização. A condição feminina e a atividade de reprodução tornaram-se paradigmas da condição econômica e precária da pós-modernidade. Tal processo teve repercussões graves para a saúde do gênero humano.

A crescente privatização dos serviços de saúde aumentou a governança biopolítica das instituições econômicas sobre o corpo humano, tanto do ponto de vista físico quanto do mental. Em termos de corpo físico, está se ampliando no mundo uma divisão social e geográfica entre os que têm acesso à medicação e ao tratamento, e os que não o têm. A instituição pública não é mais uma garantia da saúde pública, assim como tinha evoluído na Europa tecnocrática do século passado no sentido foucaltiano. Da mesma forma, o desenvolvimento da divisão cognitiva do trabalho, graças aos processos de desmantelamento da educação e da sua privatização, determina novas segmentações sociais com base na possibilidade de acesso aos diferentes níveis de ensino, muitas vezes em detrimento do desenvolvimento de uma abordagem cultural crítica e sistêmica.
Hoje, a alienação do corpo tende a tornar-se cerebral. Reduziu-se a separação entre as atividades manuais (o braço) e a atividade intelectual (o cérebro), entre o processo de trabalho e o produto do trabalho, mas cada vez mais, uma vez que o cérebro se tornou máquina, desenvolveu-se uma alienação cerebral, totalmente interna ao próprio processo de trabalho e à vida humana. A alienação cerebral produzida de maneira sofisticada por causa do controle social é o instrumento de domínio do biopoder atual.

IHU On-Line – Como esse biopoder e financeirização impactam na constituição do sujeito e sua autonomia?

Andrea Fumagalli – O impacto da financeirização sobre o sujeito é, ao mesmo tempo, um impacto de chantagem e medo, mas também de um consenso: chantagem de uma necessidade em um contexto de trabalho cada vez mais individualizado e precário (também do ponto de vista existencial), o consenso do imaginário estereotipado veiculado pelo sistema de informação e de comunicação simbólico (considera-se o papel dos meios de comunicação como o Facebook e a internet, bem como o processo de atribuição de marca do consumo). A autonomia pessoal é hoje, de longe, muito mais limitada do que há trinta anos, nos dias de trabalho na fábrica. A divisão entre o tempo de trabalho e o tempo de não trabalho poderia ser traduzida (não automaticamente) também na separação entre coerção e liberdade potencial. Uma vez terminado o horário de trabalho, a disciplina do trabalho (principalmente no corpo físico) acabava em favor de outras estruturas disciplinares (família, gênero, escolaridade, raça etc.), embora menos difundidas sobre a mente humana a respeito das formas de controle e condicionamento social que hoje parecem prevalecer, quando as faculdades cognitivas são os principais fatores produtivos.
A autonomia individual resulta muito limitada e reprimida. È paradoxal que, na era da ideologia do indivíduo livre, o que vem reprimido é a individualidade em favor do individualismo. E sabemos bem que, entre a individualidade entendida como expressão potencial dos seus próprios talentos criativos e humanos e o individualismo como comportamento oportunista e egoísta, há uma grande diferença. Hoje, a negação da individualidade (e da sua autonomia) é expressa exatamente com a exaltação do individualismo.

 

A ética do mercado financeiro internacional é o lucro

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IHU – Outubro de 2008.

Para o professor Gilberto Dupas, a persistir essa crise no nível em que está, temos de esquecer realmente o patamar de crescimento de 5% pelo menos por um ano ou talvez mais.

Os fatores principais de preocupação em relação à renda e à demanda brasileira em função da crise financeira internacional, sob o olhar do professor Gilberto Dupas, é a “diminuição da demanda externa de commodities, que afetam nossos volumes de exportação e, ao mesmo tempo, uma diminuição do crescimento da demanda interna em função de um menor crescimento do próprio país”. Na entrevista que concedeu por telefone à IHU On-Line, Dupas alerta para o fato de que continuamos praticando, no Brasil, as maiores taxas de juros do mercado internacional. “Então, evidentemente que a diminuição da taxa de juros seria uma condição essencial, que não foi alcançada, para estarmos num período de maior estabilidade do crescimento”.

Gilberto Dupas é professor visitante da Universidade de Paris II e da Universidade Nacional de Córdoba e membro da Comissão de Ética da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e do Conselho Nacional de Avaliação do Ensino Superior (CONAES). Entre seus livros mais recentes publicados, citamos O mito do progresso (São Paulo: UNESP, 2006) e Espaços para o crescimento sustentado da economia brasileira (São Paulo: UNESP, 2007).

IHU On-Line – Com a melhora na renda dos brasileiros, aumentou o consumo também. O que muda e como esse cenário se transforma a partir da crise financeira internacional?

Gilberto Dupas – Nós passamos, na economia brasileira, por uma fase interessante, que foi disparada pela explosão das exportações de commodities neste século, a partir do grande aumento da demanda chinesa. Nesta fase, num primeiro tempo, a renda foi alimentada pelas exportações. Num segundo momento, que é esse onde estávamos um pouco antes da crise, vários outros fatores alimentaram a renda; não só o crescimento do emprego, como o crescimento da demanda interna, especialmente em alguns setores, como construção civil, além do fator de previdência e aposentadoria. Então, estávamos num momento da economia brasileira, crescendo mais de 5% ao ano, em que se associavam aos ganhos motivados pela exportação fatores endógenos, que significavam a expansão do mercado interno, que permitia esse crescimento. Precisamos lembrar, também, que, ao mesmo tempo em que crescia a renda, também crescia o endividamento de médio e longo prazo. A estabilidade relativa da inflação tinha permitido, ainda que com taxas de juro muito altas, recordes no mundo, com o Selic a 14%, que a expansão do prazo de financiamento, tanto de bens de consumo duráveis como de residências, proporcionasse um significativo aumento do endividamento, comprometendo, portanto, a renda futura do brasileiro. Evidentemente que já havia sinais de preocupação, embora pequenos, porque, como o prazo do endividamento aumentou e essas dívidas eram sustentadas por uma taxa de juros muito alta, imaginava-se que poderia haver na frente um ciclo de inadimplência por conta destes prazos longos de financiamento. Este era o quadro antes da crise internacional que tínhamos aqui no Brasil.

Depois da crise

Agora, podemos dizer que crise internacional afeta, fundamentalmente, duas coisas. Primeiro: a capacidade do Brasil de manter níveis de exportação da mesma magnitude em dólar que mantinha anteriormente, em função da queda da economia mundial. E, em segundo lugar, é preciso reconhecer que os efeitos desta queda da economia mundial caem sobre a própria renda interna, considerando que, se o país vier a crescer menos no ano que vem (já se fala em números da ordem de 2 a 3%), evidentemente a expansão da renda deve acompanhar essa diminuição do crescimento. Esses são os fatores principais de preocupação do lado da renda e da demanda: uma diminuição da demanda externa de commodities, o que afeta nossos volumes de exportação e, ao mesmo tempo, uma diminuição do crescimento da demanda interna em função de um menor crescimento do próprio país.

IHU On-Line – Com a crise financeira internacional, como fica a questão dos empréstimos e financiamentos bancários?

Gilberto Dupas – Isso depende, justamente, deste quadro de projeção da renda futura do brasileiro. Houve uma sensível melhora nas rendas, especialmente das classes baixas. Uma parte muito significativa dos pobres foi incorporada à chamada classe média baixa.  Então, isso significou a possibilidade de uma classe social, que basicamente consumia poucos bens de consumo duráveis, entrar numa fase nova, que foi a que nós vimos até então. Vamos nos lembrar que financiamento é basicamente comprometimento das rendas futuras. E, portanto, as rendas futuras caindo, a lógica será de tomar novos empréstimos e diminuir o pagamento dos empréstimos em curso. Isso pode afetar o consumo. Outro fator preocupante também se refere à questão da casa própria. Especialmente nas classes de renda baixa, mas, em geral, o que tem predominado agora é não só o emprego formal, mas também o emprego flexível. E isso faz com que o tempo de permanência no emprego, na mesma atividade, encurte, o que significa também que os deslocamentos do local de trabalho devem ser mais intensos. Se a liquidez no mercado de imóveis estiver muito boa, o sujeito que comprou um imóvel e seu emprego passou para um lugar distante, pode vender esse imóvel e passar para a frente. Se, por acaso, a liquidez imobiliária estiver baixa, num momento de maior contração, e a sua condição de pagar as prestações de casa própria diminuírem, nós teremos provavelmente um imóvel abandonado, com dificuldades de liquidez. Então, esses são os fatores principais que podem afetar a questão dos empréstimos. Não nos esquecendo nunca que continuamos praticando as maiores taxas de juros do mercado internacional. Então, evidentemente que a diminuição da taxa de juros seria uma condição essencial, que não foi alcançada, para estarmos num período de maior estabilidade do crescimento. Pelo contrário, do jeito que as coisas caminham hoje, com o dólar neste novo patamar, e com a nossa dependência muito grande de importações (dado que acabamos nos acostumando em exportar commodities e importar tecnologia), significa um encarecimento muito grande das importações. Isso pode ter pressões inflacionárias e a tendência normal de um Banco Central ortodoxo como o nosso é reagir ao aumento de pressão de preços com aumento de juros ainda mais. O que pode tornar complicada não só a questão da inadimplência, mas também a própria condição de crescimento a níveis em que estávamos antes. O que quer dizer que, em última análise, a persistir essa crise no nível em que está, precisamos esquecer realmente o patamar de crescimento de 5% pelo menos por um ano ou talvez mais.

IHU On-Line – Considerando o capitalismo neste mundo globalizado, quais os maiores riscos para a economia nacional da crise financeira que abala principalmente os Estados Unidos?

Gilberto Dupas – Em primeiro lugar, essa crise nos pega e pega a maioria dos países da América Latina também numa posição de reservas bastante forte. É absolutamente inédito na história brasileira a reserva de mais de 200 bilhões de dólares. Isso pode nos dar, num primeiro momento, uma certa sensação de conforto. Mas precisamos imaginar que essas reservas têm como correspondentes, do outro lado, um estoque muito grande de capital especulativo, de capital flutuante internacional, ou de brasileiros do exterior que reaplicam aqui, que se movem com grande velocidade nos momentos de crise. Vimos agora, nestes dias, o impacto disso não só na bolsa de valores, como também no crédito de curto prazo. Estima-se que esse capital volátil deve atingir em torno de 280 bilhões e é possível que nesta crise tenham saído uns 30 bilhões. Isso quer dizer que há muito capital volátil ainda a sair. E se nós tivermos uma crise de grandes proporções, que junte uma recessão internacional com a diminuição das exportações do Brasil e com o aumento da taxa do dólar, nós poderemos ter sinais de crise de contas correntes, que já estão por aí. Isso pode significar que essas reservas, na pior das hipóteses, possam ser consumidas com grande rapidez, o que não só acenderia um sinal amarelo sobre a questão da dívida externa, mas também da dívida interna brasileira. Isso é tudo o que nós gostaríamos que não acontecesse.

IHU On-Line – Quais as principais repercussões no mundo inteiro da reprovação inicial do pacote bilionário de Bush para salvar os bancos americanos? Como entra aqui a discussão sobre a tensão entre público e privado, considerando o uso do dinheiro do Estado para recuperar instituições privadas como os bancos?

Gilberto Dupas – Tem se falado muito em Keynes nesses últimos tempos. Vocês mesmos estão nessa edição da revista preocupados com isso. Isso tem muito a ver, porque Keynes trabalhou com essa idéia da diferença entre especulador e investidor, caracterizando o mercado financeiro fundamentalmente como volátil, do ponto de vista do especulador, e a atividade produtiva como sendo o mercado do investidor. Keynes dizia que os mercados financeiros favorecem o investimento e sustentam a demanda agregada, na medida em que diminuem o risco do investidor de assumir posições ilíquidas. Porque, no caso, por exemplo, do mercado de ações, o investidor, quando investe num mercado estável, sabe que se essa companhia tiver uma rentabilidade menor do que a de uma bolsa estável, ele pode sempre vender suas ações em bolsa e poder fazer sua liquidez. O que quer dizer, nesse caso, que o mercado financeiro para ele poderia ser até um mercado bastante positivo com relação à dinâmica capitalista. Só que Keynes lembra que o investidor incorpora a idéia de que ele pode sempre sair da sua posição de ações e daí, citando o clássico, “o que vale para todos individualmente, mas que não vale para nenhum enquanto conjunto”. O que quer dizer o seguinte: se vem uma crise de grandes proporções e o mercado financeiro perde liquidez e trava, como o que vimos, acontece o que tipicamente chamamos de “comportamento de manada”; se todos querem sair ao mesmo tempo, ninguém pode sair. Foi o que vimos recentemente com relação às ações dos bancos americanos, que tiveram uma queda muito grande e que, portanto, viraram pó. Keynes estabelece claramente um perfil para a atividade de especulação, que diz ser uma atividade que consiste em prever a psicologia do mercado. E que “os especuladores podem não causar dano quando são apenas bolhas num fluxo constante de empreendimento, mas a situação torna-se séria quando o empreendimento de converte em bolhas num turbilhão especulativo”. É exatamente o que nós temos aqui agora. Basicamente, o mercado especulativo no mercado financeiro se transformou num jogo de pôquer.

IHU On-Line – Que previsões podemos fazer para o crescimento econômico brasileiro, tendo em vista o desfavorável cenário financeiro internacional?

Gilberto Dupas – Tudo indica que esta fase de crescimento de mais de 5% no Brasil deve refluir para níveis em torno de 3%, se tudo estiver mais ou menos bem no ano que vem. As repercussões mais profundas da crise sobre os bancos brasileiros, por exemplo, é muito provável que sejam bastante pequenas, porque não só os bancos brasileiros não entraram como os bancos americanos, de maneira tão intensa nesse mercado especulativo de segundo e terceiro nível, mas porque também o Brasil tem fundamentos razoáveis agora para não estar tão atingido por essa crise. Mas estará atingido, sem dúvida, e, evidentemente, o quadro só se tornará mais grave se tivermos efetivamente uma erosão rápida das nossas reservas por conta de uma crise de conta corrente, envolvendo a diminuição das exportações e a dificuldade de diminuir as importações, além de pressões inflacionárias por conta do preço dessas importações no consumo interno, e algum sinal de preocupação com relação à dívida interna realimentada à taxa de juros muito alta. Se a crise internacional for grande o suficiente para que contamine dessa forma o quadro brasileiro, aí poderíamos ter cenários mais preocupantes no Brasil.

IHU On-Line – Como o capitalismo e o mercado liberal podem enfrentar o “mal financeiro” constituído? Podemos vislumbrar possíveis transformações na estrutura do capitalismo?

Gilberto Dupas – Essa é uma questão muito relevante e difícil. De um lado, podemos dizer que a história do capitalismo é a história das suas crises. Capitalismo sem crise não é capitalismo. Fazendo uma retrospectiva histórica, lembramos que o capitalismo se tornou o sistema dominante depois da derrocada dos regimes socialistas reais e, sendo dominante, se viu desobrigado a trazer efetivamente o que prometia, que era o bem-estar geral, da inclusão de populações maiores. Pelo contrário, o que vemos é um aumento da população pobre no mundo. O que fez diminuir o número de pobres nesses últimos 20 anos foi o crescimento da China, que se deu aplicando regras contrárias aos princípios liberais. No entanto, não há nenhum sistema alternativo que podemos propor quando criticamos o capitalismo. Mas temos de fazer essa crítica, esperando que o capitalismo possa se reformar. Quais são as chances de uma reforma no sistema capitalista? É muito complicado, porque o risco e a capacidade do empreendedor de buscar oportunidades de maximização do lucro onde quer que elas estejam e passando por cima de valores de natureza social e política só pode ser controlado com Estados fortes e com instituições reguladoras internacionais fortes, que possam definir as regras, que limitem o tamanho das “garras” do capitalismo, de tal forma que as empresas possam exercer sua atividade de maximização do lucro sem danos sociais muito intensos. Estamos vendo o sintoma de que as instituições financeiras internacionais não funcionam mais neste nível do capitalismo globalizado, operando com grande velocidade e transferência de fluxos em tempos reais em mercados especulativos. A grande pergunta é: o capitalismo quer ser regulado? E a segunda pergunta é: o capitalismo pode ser regulado por instituições reguladoras internacionais?

IHU On-Line – Qual a ética predominante no sistema financeiro internacional, que nos permite entender as origens e os rumos da atual crise?

Gilberto Dupas – A ética do mercado financeiro internacional e a ética do capitalismo é o lucro. Este é o grande problema. Portanto, a sociedade precisa criar a sua ética para definir limites para essa mola fundamental da lógica capitalista. Este é o grande dilema: a sociedade civil, através do exercício da política, das suas entidades políticas, tem de buscar uma ética que procure definir regulações que permitam ao capitalismo exercer a sua dinâmica de tal modo que a “fúria” do empreendedor não bata de frente com as necessidades da sociedade e com os princípios éticos mais fundamentais da promoção do ser humano, da inclusão social mínima, da proteção contra a fome, do emprego mínimo decente. Vamos ver se a ética da sociedade pode combinar com a ética do lucro.

 

O cinismo da argumentação econômico-financeirista

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IHU – Março de 2015.

Para o professor Ladislau Dowbor vivemos um momento dramático em que as soluções às crises afetam as populações mais pobres

Ao focar os desequilíbrios e contradições das soluções financeiristas para a atual crise econômica, o professor Ladislau Dowbor argumenta que atingir os grandes eixos de despesa do Estado só agrava a situação das populações mais miseráveis. “O Estado tem um papel de redistribuição dos recursos e da redução das desigualdades, então quando se reduzem os gastos apenas do lado do governo, se está, em grande parte, atingindo os recursos que dizem respeito à parte mais pobre da sociedade”, sustenta, em entrevista por telefone à IHU On-Line. “É natural que a ideia de restringir as reformas ao reajuste fiscal seja amplamente apoiada pelas elites”, complementa.

Em seu sentido mais amplo, a crise que vivenciamos é uma crise do humanismo, como atesta Dowbor. “O momento é dramático porque está todo mundo querendo consumir mais. Toda a mídia, todo o sistema de informação que é financiado por empresas produtoras quer que a gente consuma mais. Esse negócio está, simplesmente, gerando um efeito catastrófico: temos o aquecimento global, a liquidação da cobertura florestal do planeta, a liquidação dos mares, e por aí vai”, explica. “Nós temos uma área de miséria, baseada nos 4 bilhões da base da pirâmide social, quase dois terços da população, chamada ‘educadamente’ pelo Banco Mundial como ‘as pessoas que não têm acesso aos benefícios da globalização’, são os pobres do planeta”, sustenta.

Há contradições prementes na sociedade brasileira, como o fato de existir televisão em mais de 97% dos domicílios, mas não ter saneamento básico em 40%. Ocorre que, na opinião do pesquisador, testemunhamos, atualmente, um novo tipo de pobre. “Nós temos uma pressão imensa do que se convencionou chamar de ‘elite’, mas é uma elite extremamente retrógrada reagindo de maneira visceral, muito mais com o fígado que com a cabeça, ao fato que os pobres estão levantando a cabeça, estão frequentando aeroportos, estão começando a participar da vida social. Então a parte das elites e grande parte da classe média alta acha isso escandaloso”, provoca.

Ladislau Dowbor é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e da Universidade Metodista de São Paulo – UMESP. Além disso, é consultor de diversas agências das Nações Unidas.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Para compreendermos melhor a questão de fundo da economia brasileira, gostaria que o senhor explicasse as diferenças entre “reajuste financeiro” e “reajuste fiscal”…

Ladislau Dowbor – O ciclo de recursos monetários e financeiros na economia é basicamente o mesmo. Quando falamos em reajuste fiscal a tendência é focar nos desequilíbrios das contas de governo. Quando falamos em ajustes financeiros engloba o ajuste fiscal, mas é mais amplo. A parte da fiscalidade, que se cobra via imposto e que se orça para os gastos, verifica o equilíbrio do montante para as contas públicas. Já o equilíbrio financeiro vai incluir as dinâmicas de toda a movimentação privada de recursos através dos bancos, dos crediários, por meio dos sistemas privados, ou seja, o conceito é mais amplo.

IHU On-Line – De que forma o reajuste fiscal está mais alinhado à perspectiva política do que à econômica?

Ladislau Dowbor – Quando se focam os desequilíbrios na conta pública e entra uma visão política de que o Estado é quem deve reduzir os seus gastos, isso vai atingir os grandes eixos de despesa do Estado que são, em particular, as áreas sociais como saúde e educação; vai atingir as infraestruturas; e vai atingir as áreas de transferência de recursos dos diversos setores sociais que podem ser tanto a previdência quanto o Bolsa Família, além dos diversos programas deste tipo. O Estado tem um papel de redistribuição dos recursos e da redução das desigualdades, então quando se reduzem os gastos apenas do lado do governo, se está, em grande parte, atingindo os recursos que dizem respeito à parte mais pobre da sociedade. É natural que a ideia de restringir as reformas ao reajuste fiscal seja amplamente apoiada pelas elites.

IHU On-Line – Uma das alternativas à questão econômica apresentada pelo atual governo, por meio do Ministério da Fazenda, é de que é preciso cortar gastos e continuar elevando os juros. Mas como resolver a contradição posta nesta solução? Que setores são beneficiados por essa dinâmica e quais são os mais prejudicados?

Ladislau Dowbor – Quando se fala em cortar gastos, um certo reajuste fiscal pode ser até interessante na medida em que ele conduza a um certo enxugamento da máquina (estatal) e a uma busca de maior eficiência do uso dos recursos. Fazer isso periodicamente nos governos e nos países, em si, não é mal, mas não reduzindo estruturalmente a participação do governo na sociedade. Quanto aos juros, há uma confusão que é feita por praticamente todos os meios de comunicação. Há, por um lado, uma taxa sobre a dívida pública que agora é de 12,75%. Há outra, ao tomador final (os consumidores), que pagamos no crediário, no cartão de crédito, nos bancos, para a pessoa física e jurídica e sobre estas devemos pensar separadamente. Essa parte dos juros deve ser dividida em separado.

Os juros que consistem na Taxa Selic, os juros sobre a dívida pública, são basicamente a taxa que o governo vai pegar dos nossos impostos para transferir os juros para quem aplica na dívida pública, essencialmente os bancos, o mercado financeiro, os intermediários. Isto é, quando eu tenho minha poupança, o banco pega o meu dinheiro e vai aplicar em títulos da dívida pública que vão pagar a 12,75% e somente o banco vai receber esses juros. É uma transferência de dinheiro público para os bancos. A grande justificativa é que isso é necessário para combater a inflação. É um argumento falacioso, porque esse juro não é utilizado no comércio, nas empresas e coisas do gênero. Na verdade é uma pressão dos grandes intermediários financeiros para que o governo transfira mais dinheiro de nossos impostos para os bancos. Isso não contempla só os bancos, mas também diversos grupos de seguradoras.

Quando observamos as variações dos juros sobre a dívida pública — a Taxa Selic era de 7,5% — é por pressão dos bancos que querem voltar a ter estas transferências do governo sem precisar produzir. É uma pressão essencialmente política e a inflação é utilizada como argumento de justificação. Portanto, “não” se estariam aumentando os juros sobre a dívida pública para engordar os bancos, mas sim para proteger os bancos; no Brasil tudo se faz para as elites e não para o bem-estar da população. Por outro lado, ao observarmos a taxa de juros da Selic, percebemos que não houve mudança na taxa de juros comerciais, que são absolutamente escorchantes. Na realidade não se está modificando a dinâmica da inflação.

IHU On-Line – Como a capacidade de compra da maior parte da população foi “drenada” pelos bancos e de que forma isso impacta no processo de redistribuição de renda e crescimento do país?

Ladislau Dowbor – Na última década foi feito um imenso esforço de trazer para dentro do mercado cerca de 40 milhões de pessoas, foram gerados cerca de 20 milhões de empregos formais e tivemos um avanço imenso. Por exemplo, em 1991 a expectativa de vida do brasileiro era de 65 anos e, atualmente, é de 75 anos. Nas duas últimas décadas o brasileiro passou a viver em média dez anos a mais, isto é, ele tem dez anos a mais para reclamar. Há avanços significativos na interiorização do desenvolvimento. Em 1991, 85% dos municípios brasileiros — existem 5.575 cidades — estavam em termos de Indicador de Desenvolvimento Humano – IDH em um nível muito baixo, abaixo de 0.50. Em 2010, apenas 32 municípios, portanto, 0,6%, estavam nesse nível catastrófico. Fazendo uma relação desses avanços com a capacidade de compra da sociedade, gerou um momento de forte avanço do sistema econômico. O sistema financeiro, por sua vez, com suas diversas ferramentas, se adaptou rapidamente e começou a sugar esses recursos que aumentaram na base da sociedade.

Por exemplo, as pessoas que veem a oportunidade de comprar uma geladeira obviamente têm dificuldades de pagar à vista, então vai ter um crediário que vai apresentar ao cliente uma prestação que cabe no bolso, sabendo que de modo geral as pessoas não têm ideia do cálculo financeiro e o do imposto. A Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contábeis – Anefac apresenta uma média de juros dos artigos do comércio de 104%. A pessoa vai comprar sua geladeira ou seu fogão, que são bens de necessidade básica, mas paga o dobro do que outra pessoa que paga à vista. Então na realidade se está drenando a capacidade de compra, pois como se paga o dobro, no âmbito geral, a pessoa somente poderá gastar a metade de seu rendimento, porque se endivida muito, mas não compra muito; se diz que a prestação cabe no bolso, mas tem que caber no bolso durante 24 meses.

Agora somamos o que as pessoas compram com cartão. O que se paga no cartão a crédito, em geral, os bancos vão reter 5% do valor das compras, no débito é cerca de 2% a 3%. De qualquer forma, sempre que se comprar com o cartão os bancos vão drenar entre 2% e 5% do valor da compra. Se somarmos toda a massa de compras com cartão que a população faz dá uma conta gigantesca de recursos. Para exemplificar, sobre todas as movimentações em que incidia a antiga CPMF , que na época era de 0,31%, eram gerados, segundo a revista Veja, R$ 40 bilhões por ano. Atualmente, somente no cartão, sem entrar no rotativo, já se está pagando um valor, pois a loja recebe dos bancos com os 5% já descontados. Então imagine a compra sobre a base daquilo que fica no rotativo, ou seja, quando as pessoas não têm dinheiro suficiente para pagar no cartão. No meu caso, a PUC me paga pelo Santander cujo rotativo é de 633,21%. Isto é, uma coisa absolutamente abominável, um suicídio financeiro, mas isso é tratado como uma coisa normal.

É interessante fazer uma comparação. Fui ver o Media Markt , uma rede europeia parecida com as Casas Bahia, ou esses outros similares, e eles cobram 1,05% ao mês. Assim uma compra de R$ 600 em 18 meses vai resultar, ao final, em um gasto de R$ 699. Eu fiz um estudo em uma loja de Joinville, em Santa Catarina, de uma televisão de R$ 690 e o custo final dela será de mais de R$ 1,4 mil. Então se somar os crediários, o cartão de crédito simples pagando na modalidade de crédito e os rotativos, a população tem a capacidade de compra sugada pelos intermediários financeiros, que não produzem nada.

Ainda tem a modalidade de crédito para a pessoa física. O governo criou um sistema de crédito consignado com a modalidade de juros entre 25% e 30%, o que é escorchante. Esse tipo de crédito, na Europa, está na faixa de 4% a 5% ao ano. No geral a pessoa física que vai pedir um crédito no banco vai pagar cerca de 100%. Portanto, a metade da capacidade de compra vai para o banco. O crédito à pessoa jurídica, que está na base de 40% a 50%, torna inviável criar uma empresa e pagar esse tipo de juro. O resultado que se tem com esses diversos elementos é, de um lado, a redução drástica da capacidade de compra da população e, com isso, o efeito de dinamização da economia, através da compra, esfria; de outra parte, isso impacta o empresário produtor que está recebendo muito pouco por seu produto, porque o grosso do lucro está sendo sugado pelo intermediário financeiro. Se o produtor recebe pouco e a população está perdendo a possibilidade de compra pelo grau de endividamento, há um duplo esfriamento da economia seja pela capacidade de investimento por meio da produção, seja pela capacidade de compra do cidadão.

Como a Taxa Selic é extremamente elevada e o governo cede para o intermediário financeiro cerca de R$ 250 bilhões a R$ 300 bilhões dos nossos impostos, em vez de aplicar isso em infraestrutura, saúde, educação e semelhantes, há uma esfriamento da economia por parte da capacidade de investimento do Estado. Chamo isso de “Triângulo das Bermudas” porque você está travando a demanda, os investimentos e as políticas sociais do governo. Na realidade o exercício que eu fiz — é o mesmo que fiz para muitos países das Nações Unidas — é o do ciclo financeiro completo. Então, para fechar esse circuito analisamos os intermediários financeiros, que se enchem de dinheiro tanto pela taxa Selic quanto pelas diversas modalidades de crédito, e percebemos que eles não só não reaplicam esse dinheiro na economia como jogam o dinheiro para fora em paraísos fiscais e, portanto, deixam de pagar impostos.

Se o banco pegasse nossas finanças e aplicasse em uma empresa que fabrica sapatos seria ótimo. Vai gerar lucro para o empresário, parte desse lucro ele vai devolver com o pagamento dos juros e o sistema circula de maneira adequada. O problema é que aqui se formou um cartel de bancos que trava o efeito dinamizador dos nossos recursos que coloca a economia em funcionamento e não há economia que sobreviva a um sistema como este.

IHU On-Line – Por que, apesar de institucionalmente o Estado afirmar que tem uma política tributária progressiva, na prática ela se torna regressiva? De que forma essa dinâmica corrobora a tese de Piketty  sobre a desigualdade, desta vez com dados do Brasil?

Ladislau Dowbor – O paralelo com o Piketty é interessante porque ele mostra, nos estados em que ele analisa, particularmente os Estados Unidos e os países desenvolvidos, que as grandes fortunas estão se formando por aplicações financeiras e funcionam sem estímulo ao desenvolvimento. Piketty mostra a desigualdade, sobretudo no 0,1% das gigantescas fortunas que se formam.

Nós tivemos agora, em Davos, no Fórum Econômico Mundial, o estudo da Universidade de Oxford mostrando que no planeta 85 famílias têm mais patrimônio acumulado que a metade mais pobre da população mundial, ou seja, 3,5 bilhões de pessoas. Essa concentração de renda e patrimônio em nível planetário tem sua representação no Brasil. Essa diferença vem de onde? Esse dinheiro tem que ser tirado do bolso de milhões de pessoas que estão pagando no cartão de crédito, no crediário, nas diversas formas de dívida.

O que Piketty estava mostrando nos seus estudos é como isso tem impacto nos países em desenvolvimento. Um banco como o Santander, um gigante mundial, 25% a 30% dos seus lucros ele tira do Brasil. Na realidade, nós pagamos o desenvolvimento do sistema financeiro internacional. Há um conjunto de estudos que se desenvolveram em nível mundial, por exemplo, Tax Justice Network , nos Estados Unidos; os estudos sobre as transferências ilegais, chamado Global Financial Integrity

No caso brasileiro cerca de R$ 7 bilhões são transferidos ilegalmente através de um mecanismo chamado de missing voicing, que é fraude sobre fatura, onde se sobrefatura ou subfatura as ações internacionais para fazer transferência para fora do país. Se alguém transfere para fora do país R$ 100 milhões e o Produto Interno Bruto – PIB do Brasil é de R$ 5 bilhões, cerca de 2% da riqueza que deveria somar à economia interna são transferidos para o exterior. Nosso crescimento já estaria, por exemplo, em torno dos 3%.

Há outros mecanismos que, com a crise financeira mundial, também estão sendo estudados para outros continentes. O Kofi Annan , que foi secretário geral da Organização das Nações Unidas – ONU considera que esse sistema de missing voicing puxa da renda da África do Sul cerca de 40 milhões de dólares por ano. De certa maneira, o exercício que eu fiz é a dimensão brasileira de um serviço de financeirização nacional que drena os recursos da parte mais pobre da população e fica difícil para os empresários investirem naquilo que chamamos de economia real, o que significa dificuldade de aumentar os salários e que gera a redução da pulsão da economia produtiva por meio da drenagem do capital financeiro.

IHU On-Line – O capitalismo financeirista ficou velho demais para nossas sociedades tecnocientíficas? Que alternativas poderíamos vislumbrar em um novo horizonte?

Ladislau Dowbor – Quando observamos o que acontece em diversos lugares, há coisas interessantes. Por exemplo, a Alemanha se protegeu razoavelmente, apesar das dificuldades, e o crescimento deles foi praticamente zero ano passado, pelo fato de que as poupanças não estão alocadas em bancos, mas em caixas municipais de poupança e isso vai financiar pequenos investimentos locais, que geram emprego e rendimento à população da região. Na Polônia, que segundo o The Economist foi o país que melhor escapou da crise financeira mundial, existem cerca de 472 bancos cooperativos. Então não se drena a capacidade econômica, senão, usa-se o dinheiro das pessoas para desenvolver projetos produtivos para as diversas regiões. O desafio principal é que os nossos recursos que estão sendo drenados para a financeirização voltem para o sistema produtivo, voltem a pagar os impostos para pagar as políticas sociais de modo que as gerações futuras possam se desenvolver.

IHU On-Line – Estamos sempre à beira de uma “crise financeira mundial”, em que os Estados devem sempre manter a austeridade para “salvar” a economia. Que lições a Islândia tem a oferecer para o mundo? Como o senhor avalia a realização de um plebiscito no Brasil sobre a dívida pública?

Ladislau Dowbor – Há uma série de alternativas. Nos Estados Unidos há o trabalho da senadora Hazel Henderson  nas propostas de expansão dos bancos públicos. Há a opção da Islândia que foi nacionalizar os bancos para gerar controle sobre os sistemas especulativos. Há iniciativas de se criar um sistema entre as nações de comunicação de evasão para enfrentar os paraísos fiscais e enfrentar o tipo de organização surrealista que se vê através do HSBC. Este banco, em suas contas suíças, ajuda a fazer evasão fiscal e só de brasileiros são aproximadamente 8.600 contas de fortunas catalogadas nesses dados que saíram agora. Há uma dimensão de alternativas em determinadas nações de travar o sistema especulativo e há as iniciativas internacionais de obrigar os grandes grupos financeiros a informar sobre os fluxos; além disso, nesses principais centros de regulação, promover um avanço de se criar um arcabouço jurídico, que nos Estados Unidos se chama Lei Dodd-Frank , mas que está sofrendo imensa resistência por parte dos grupos financeiros. Está se tentando uma regulação semelhante na Europa, pelo Banco Central Europeu.

Eu acrescentaria um quarto eixo que é interessante. Em inúmeros lugares as pessoas estão saindo dos bancos. Por exemplo, nos Estados Unidos há um sistema peer-to-peer em que as pessoas repassam recursos diretamente a quem precisa um empréstimo sem passar por nenhum banco, trata-se de uma desintermediação do sistema financeiro. Se pegarmos o Banco Palmas , em Fortaleza, eles criaram a própria moeda e pegaram o Banco Comunitário de Desenvolvimento que ajuda a financiar os pequenos projetos sem pagar os juros escorchantes do cartão de crédito e coisas do gênero.

Atualmente uma pesquisa da Universidade de São Paulo – USP mostrou a existência de 103 bancos comunitários no Brasil e temos algumas dezenas de municípios que já imprimem moeda própria e facilitam o desenvolvimento local. Em Imperatriz, no Maranhão, 90% do que se encontra nas prateleiras do mercado vêm do Sudeste. Isso é um absurdo, pois faz os produtos viajarem por quase dois mil quilômetros gastando estradas, gastando diesel, gastando caminhão, em vez de estimular a produção local e o autoconsumo, que gera emprego, gera produção mais barata, gera produtos sem tantos conservantes, etc. Então, na realidade, todo o sistema de especulação financeira tem de voltar a ser um sistema que ajude a desenvolver a economia real e não a aumentar fortunas privadas de grandes magnatas das finanças.

No Brasil, os bancos chamam de “investimento” o que é aplicação financeira. Nos Estados Unidos não existe a palavra de aplicação financeira, eles chamam tudo de investiment. Essa distinção é muito importante para termos mais pessoas entendendo o processo. Outra dinâmica que dificulta o entendimento é que no Brasil, para confundir, os grandes grupos apresentam o juro mensal. Isso é treta, porque o juro tem que ser calculado ao ano, porque as pessoas pensam que um juro mensal de 2% é menos se comparado ao juro anual de 6%, que é três vezes maior, mas não é. Eu tive um aluno que trabalhava nessas redes e ele dizia “professor, aqui (no Brasil), vender a prazo é muito fácil, pois ninguém entende de matemática financeira”. Quando se apresenta um juro de 2% a uma pessoa, ela pensa “isso é uma merreca, uma bobagem”, mas não é. O fato de apresentar juros ao mês é uma coisa escandalosa, porque tira a capacidade das pessoas de entenderem que tipo de negócio está sendo feito. Se colocam na negociação “você vai pagar 100% de juros” a pessoa entende que a metade do investimento que é feito vai para o intermediário financeiro e a outra metade é para comprar o produto.

A Akatu  teve uma iniciativa interessante criando e publicando uma cartilha em defesa dos consumidores que querem comprar legitimamente sua geladeira ou equipamentos eletrodomésticos básicos. Isso ocorreu, sobretudo, porque os intermediários financeiros descobriram esse dinheiro picado e distribuído entre milhões de pessoas e o sistema financeiro de juros permite a eles sugarem e com isso esterilizarem o imenso esforço de distribuição de renda feito no país.

IHU On-Line – Em que medida a crise civilizacional que vivenciamos não pode ser reduzida às questões política e econômica? Estamos diante de uma crise do humanismo?

Ladislau Dowbor – Esse é uma dimensão mais ampla. Ela se conecta com a primeira, mas na verdade é mais complexa. Nós temos 7,2 bilhões de habitantes. Só para as pessoas entenderem o que isso significa, pensemos quando nasceu o meu pai, em 1900, éramos 1,5 bilhão, atualmente somos 7,2 bilhões, repito. O aumento é dramático, está todo mundo querendo consumir mais. Toda a mídia, todo o sistema de informação que é financiado por empresas produtoras quer que a gente consuma mais. Esse negócio está, simplesmente, gerando um efeito catastrófico: temos o aquecimento global, a liquidação da cobertura florestal do planeta, a liquidação dos mares, e por aí vai. O WWF  publicou há dois meses um relatório sobre a destruição da vida dos vertebrados no planeta. Nós perdemos, entre 1970 e 2010, 52% da vida de vertebrados do planeta. Ou seja, nós estamos destruindo a vida em um ritmo absolutamente avassalador. Isso é irrefutável, os dados estão aí.

De um lado estamos destruindo o planeta em função da ganância de grupos que querem ganhar cada vez mais e mais; os americanos dizem “greed is good”, “a ganância é boa”. O segundo elemento dessa crise civilizacional é que estão deixando o planeta para aproximadamente um terço da população mundial, que são os grandes privilegiados, sobretudo o 1% que está no topo da pirâmide, ilustrada nas 85 famílias que têm um patrimônio acumulado maior que o da metade da população. Isso tem efeitos práticos, como o 1,3 bilhão de pessoas sem acesso à luz elétrica; pense que todas as crianças nessas casas não podem estudar decentemente, não têm acesso à informática e aos sistemas modernos. Está se preparando uma nova geração de desigualdade. Há 2 bilhões de pessoas que não têm acesso à água limpa e sabemos que a água contaminada é o principal vetor de doenças, o que gera mais gastos. Temos, segundo o Banco Mundial, 1,3 bilhão de pessoas que vivem com menos de 1,25 dólar por dia. Nós temos uma área de miséria, baseada nos 4 bilhões da base da pirâmide social, quase dois terços da população, chamada “educadamente” pelo Banco Mundial como “as pessoas que não têm acesso aos benefícios da globalização”, são os pobres do planeta.

Esse lado social está implodindo o planeta de outra forma. As explosões não são só nos países árabes, há movimentos de marginalizados por toda a parte, porque vivenciamos uma situação muito espantosa. Encontraremos, por exemplo, dados de que há televisão em 97% dos domicílios brasileiros, mas, no caso do saneamento básico, temos cerca de 40% das residências sem esse serviço. O problema é que as pessoas sabem, por meio da televisão, que podem ter direito à educação decente para os filhos, a uma saúde decente, isto é, não são mais pobres como antigamente de cabeça baixa e analfabetos completos. As pessoas agora querem exigir seus direitos. Então se esse planeta, pela parte das elites, não acordar e começar a realmente utilizar o volume gigantesco de recursos parados em paraísos fiscais ou nos sistemas especulativos e reinventar isso para financiar o desenvolvimento efetivo dos países para reforçar a inclusão produtiva, o desenvolvimento vai para o brejo.

IHU On-Line – Que Brasil teremos nos próximos quatro anos?

Ladislau Dowbor – Nós temos uma pressão imensa do que se convencionou chamar de “elite”, mas é uma elite extremamente retrógrada reagindo de maneira visceral, muito mais com o fígado que com a cabeça ao fato que os pobres estão levantando a cabeça, frequentando aeroportos, estão começando a participar da vida social. Então a parte das elites e grande parte da classe média alta acha isso escandaloso. Esse tipo de reação emocional não é só aqui, em 1964 vimos as madames que saíram na “Marcha da família com Deus” e coisas do gênero. Vimos as tentativas que foram feitas na véspera do suicídio de Vargas  tentando uma dinâmica de que tudo é corrupto e que temos que derrubar o Vargas. Nós temos hoje uma elite política golpista, na minha compreensão, que quer um certo retrocesso. Quando olhamos as manifestações de Junho de 2013 percebemos ali, misturado, gente que quer fazer pressão política por mudança só que com sinais contraditórios, onde tem uma parte, a da direita, querendo garantir seus privilégios, mas também há pessoas que, legitimamente, estão dizendo que devemos ir muito mais além, mais Prouni , mais extensão dos sistemas de formação profissional, mais investimento social, mais tecnologia para a agricultura familiar e por aí vai. Na verdade eu me colocaria na posição de quem quer que o Brasil volte a avançar.

O problema é que a pressão por parte do sistema financeiro trava o desenvolvimento. Então vejamos, a Europa baixou a cabeça, transferiu trilhões de dólares para os bancos, assim como os Estados Unidos fizeram para salvar seus bancos. O desafio é muito grande, mas essencialmente político, de uma classe conservadora de privilegiados que vêm mantendo um elitismo de Estado. Superamos a escravidão, e isso nem faz tanto tempo assim, conseguimos que a mulher tivesse direito ao voto — e estamos começando a ampliar os direitos das mulheres —, conseguimos eliminar do mundo o coronelismo. Quando olhamos em termos históricos tivemos avanços significativos, estamos em um mundo com muitas democracias. Entretanto, vamos sentir por toda parte a reação contra as democracias. Os ataques dos Estados Unidos à Venezuela por conta do petróleo; os ataques da direita na Bolívia, no Equador, na Argentina e outros.

De certa maneira o Brasil não é uma ilha. Em um clima de insegurança geral e especulação financeira a nossa grande vantagem é de ser um país que tem 200 milhões de consumidores. Nós temos uma base interna econômica muito forte e podemos depender menos de todo o sistema internacional e precisamos incluir de maneira decente muitíssima gente que somente começou a consumir um pouquinho. Então, o horizonte interno de preencher um espaço econômico gera uma capacidade fundamental, mas isso não ocorre diminuindo o investimento público, reduzindo os salários, pelo contrário, isso se faz gerando a capacidade de compra que permita dinamizar o conjunto. Junto com a África Subsaariana, temos a maior reserva de terras agrícolas do planeta e temos água. Com a expansão da população mundial há uma demanda muito forte por produtos agrícolas, que não é só alimento, mas também ração animal, biocombustível e fibras.

Sobre a crítica de o Brasil estar se reprimarizando, isso é uma grande bobagem. Se observarmos o setor da agricultura moderna, ele não tem nada a ver com o setor primário. O sistema de gestão do solo é extremamente sofisticado, inclusive demais, pois considero que há um processo químico exagerado. O Brasil não necessariamente vai encontrar o seu caminho somente por meio da indústria. Na realidade, com a necessidade de inclusão de uma imensa faixa da população que cria um horizonte de expansão interno, que não nos torna reféns da economia internacional, nos deixa em situação de um imenso potencial de fornecimento das necessidades básicas que o planeta demanda. Para o mercado interno se desenvolve um conjunto de áreas de bens e serviços diversificados e para fora se aproveitam as nossas vantagens em comparação com outros países. A América Latina é oca economicamente.

 

 

A “mão invisível” do mercado não funciona sem a “mão visível” do Estado

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Fernando Ferrari Filho destaca que em situações de crises de demanda efetiva, políticas fi scal e monetária contra-cíclicas e políticas de renda são imprescindíveis para mitigar os problemas de desemprego

Conforme análise do economista Fernando Ferrari Filho, “em um mundo globalizado e financeirizado, de livre mobilidade de capitais, a crise do sub-prime é a expressão mais clara e contundente de como a demanda por riqueza financeira e especulativa acaba gerando crises econômicas”. Com certeza, continua ele, “Keynes e os pós-keynesianos são as referências para entendermos os turbulentos dias atuais”. Na entrevista que concedeu por e-mail para a IHU On-Line, Fernando Ferrari afirma que “a crise de liquidez financeira dos Estados Unidos sem dúvida alguma afeta o lado real da economia norte-americana, ocasionando deflação dos ativos e recessão, e desencadeia um efeito contágio na economia mundial, principalmente na economia européia, especialmente a região do Euro, e a economia asiática”.

Fernando Ferrari Filho é graduado em Economia, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), mestre em Economia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), doutor em Economia, pela Universidade de São Paulo (USP), e pós-doutor pela University of Tennessee System (1996). Atualmente, é professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ele publicou, nos Cadernos IHU Idéias nº 37 o artigo: As concepções teórico-analíticas e as proposições de política econômica de Keynes. O texto está disponível para download em www.unisinos.br/ihu

IHU On-Line – Em que sentido as teorias de Keynes podem ser úteis no sentido de compreender a crise financeira internacional? Keynes contribui para vislumbrarmos alguma saída ou alternativa?

Fernando Ferrari Filho – A origem da crise do subprime está relacionada às perdas causada pelo crescente default dos empréstimos das hipotecas de subprime, grande parte delas “securitizadas” e distribuídas a investidores do mercado global. O agravamento da referida crise, por sua vez, passa pelo aumento da fragilidade financeira produzida por um lento e não percebido processo de erosão das margens de segurança de firmas e bancos, visto que os agentes apresentam posturas especulativas, que resultam em práticas de empréstimos de alto risco. Pois bem, sabendo que a teoria keynesiana explica os motivos pelos quais economias monetárias/capitalistas são inerentemente instáveis – sinteticamente, em um contexto de incerteza aguçada em relação aos resultados econômicos esperados em um futuro próximo e diante de um ambiente institucional desfavorável às tomadas de decisões, os agentes econômicos postergam decisão de gastos (consumo e investimento) e preferem liquidez (manutenção da riqueza na forma monetária) –, logo, em um mundo globalizado e “financeirizado” e de livre mobilidade de capitais, a crise do subprime é a expressão mais clara e contundente de como a demanda por riqueza financeira e especulativa (“securitizada” e “coberta”) acaba gerando crises econômicas. Com certeza, Keynes e os pós-keynesianos, dentre os quais H. Minsky, são as referências para entendermos os turbulentos dias atuais.

IHU On-Line – O senhor acredita que a crise financeira internacional em efeito dominó pode provocar mudanças no capitalismo?

Fernando Ferrari Filho – A crise do subprime e, por conseguinte, a crise de liquidez financeira dos Estados Unidos, sem dúvida alguma afeta o lado real da economia norte-americana, ocasionando deflação dos ativos e recessão, e desencadeia um efeito contágio na economia mundial, principalmente na economia européia, especialmente a região do Euro, e a economia asiática.

IHU On-Line – Segundo Keynes, o que é necessário para assegurar a estabilidade econômica e a harmonia social?

Fernando Ferrari Filho – Em situações de crises de demanda efetiva, políticas fiscal e monetária contra-cíclicas e políticas de renda são imprescindíveis para mitigar os problemas de desemprego. Essa, sem dúvida, é a principal mensagem do capítulo 24 da The general of employment, interest and money, de J. M. Keynes.

IHU On-Line – Qual a contribuição do Estado para a sobrevivência do capitalismo? Como o senhor avalia, nesse sentido, a postura do presidente Bush e do presidente Lula?

Fernando Ferrari Filho – A “mão invisível” do mercado não funciona sem a “mão visível” do Estado. Em outras palavras, pelo fato de os mercados terem, inerentemente, falhas de coordenação, a intervenção do Estado, visando criar um ambiente institucional favorável à realização de investimentos privados e expandindo a demanda efetiva, é imprescindível. Sem dúvida alguma, a discussão internacional atual não está centrada na questão terrorista, mas, sim, na crise financeira mundial, no fracasso da Rodada de Doha e na perspectiva da recessão mundial, entre outros temas econômicos. Nesse sentido, o discurso de Lula da Silva foi muito mais relevante do que o de G. W. Bush.

IHU On-Line – Podemos imaginar no contexto atual a proposta de Keynes de um capitalismo administrado, em que as disfunções do mercado fossem supridas pela intervenção do Estado?

Fernando Ferrari Filho – As crises cambiais e financeiras dos últimos anos, tais como as cambiais dos países emergentes ao longo dos anos 1990 e início dos anos 2000 e a recente crise norte-americana, mostram que a reestruturação do sistema monetário internacional está na ordem do dia. Nesse particular, mais uma vez, o legado de Keynes é de fundamental importância para se pensar a referida reestruturação. Uma proposta de reestruturação do sistema monetário internacional, tendo como base as idéias de Keynes, passa, pelo menos, por quatro pontos: (1) criação de um international market maker, emissor de uma moeda de conversibilidade, capaz de assegurar a liquidez necessária à expansão da demanda efetiva mundial; (2) controle dos fluxos de capitais de curto prazo (especulativos); (3) mecanismos de reciprocidade de ajustamento de balanço de pagamentos; e (4) taxas de câmbio administradas. Em outras palavras, a reestruturação do sistema monetário internacional precisa ser arquitetada de forma tal que o referido sistema não fique à mercê do livre mercado e, principalmente, da hegemonia econômico-financeira de determinado país.

IHU On-Line – Como Keynes veria o chamado “livre mercado”?

Fernando Ferrari Filho – Com ceticismo. Keynes, a partir, dos anos 1920, passa a ser bastante crítico do capitalismo à la laissez-faire. Por exemplo, em um artigo intitulado “The end of laissez-faire”, Keynes já argumentava que “o capitalismo, relativamente, administrado poderia ser mais eficiente”.

IHU On-Line – Podemos perceber algo das proposições de Keynes na política econômica do governo Lula?

Fernando Ferrari Filho – Em termos do tripé da política macroeconômica, qual seja, regime de metas de inflação, metas de superávit fiscal e flexibilidade cambial com livre mobilidade de capitais, política que vem sendo implementada no país desde 1999 e que foi endossada pelo governo Lula da Silva, não há similaridade entre a referida política e as proposições de Keynes. Todavia, se levarmos em consideração os programas de natureza social, tais como Bolsa Família e o Programa de Aceleração do Crescimento, pode-se dizer que esses programas procuram distribuir renda e criar um ambiente institucional favorável à realização dos investimentos privados, respectivamente.

IHU On-Line – Como entender, principalmente no contexto econômico atual, a afirmação de Keynes de que, em uma economia monetária, a moeda nunca é neutra?

Fernando Ferrari Filho – Em um mundo no qual o futuro é incerto e desconhecido, os indivíduos preferem reter moeda e, por conseguinte, suas decisões de gasto, sejam de consumo, sejam de investimento, são postergadas. Em outras palavras, a retenção de moeda, por parte dos indivíduos, se constitui em uma forma de segurança contra a incerteza em relação aos seus planos de transações e produção. Por que moeda? Porque moeda é o ativo líquido par excellence.

IHU On-Line – Quais as principais mudanças na economia introduzidas pela revolução teórica de Keynes e que permanecem com força até os dias atuais?

Fernando Ferrari Filho – As principais contribuições da teoria keynesiana são o “princípio da demanda efetiva” e a “teoria monetária da produção”. As duas contribuições ajudam a explicar porque as economias capitalistas não convergem para o pleno emprego e, mais ainda, são sujeitas a recorrentes instabilidades. O principal legado em termos de política econômica e que é válido nos dias de hoje? Estado e mercado são duas instituições complementares. Há uma sinergia entre ambas as instituições. A intervenção do Estado, seja em termos, eventualmente, de atividade produtiva e de políticas públicas, seja no sentido de criar mecanismos que propiciem um ambiente institucional favorável às tomadas de decisões dos indivíduos, constitui-se na solução para as crises de demanda efetiva e de desemprego.

 

 

Heranças coloniais e inserção econômica internacional

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Um dos grandes desafios para a economia de um país gigantesco como o Brasil, é como se inserir na economia internacional, numa sociedade que passa por grandes e rápidas transformações, se posicionar no novo modelo econômico e produtivo global é um imenso desafio, sem esta inserção o país estará condenado a uma mediocridade perpétua, relegando sua autonomia e soberania para outros países e outras nações, perdendo uma grande oportunidade de levar o país a alçar altos voos e melhorar as condições de vida da população.

Se olharmos para a história econômica brasileira, perceberemos que o país já se inseriu na lógica global em alguns momentos de sua trajetória, principalmente quando ainda era uma colônia de Portugal e nos caracterizávamos como uma economia agroexportadora, baseada em produtos primários de baixo valor agregado, voltado ao mercado externo e marcada por ciclos de monoculturas que se alteravam com constância, sem uma maior profissionalização e marcado por um grande amadorismo na gestão.

Como destacou o economista Celso Furtado no monumental Formação Econômica do Brasil, nossa nação durante muitos séculos foi descrita como uma economia baseada em ciclos econômicos que se alternavam, inicialmente com o pau-brasil, depois a cana de açúcar, os metais preciosos e o ciclo cafeeiro, todos estes ciclos contribuíram para que a metrópole extraísse uma ampla gama de recursos da colônia, mantendo esta última empobrecida e não melhorando de forma estrutural a riqueza de Portugal, estes recursos serviram apenas para satisfazer os luxos e os confortos de uma elite degradada.

Nestes ciclos encontramos uma estrutura centrada na extração e posterior embarque de produtos para a metrópole, com isso, as mercadorias daqui extraídas não colaboraram para melhorar as condições sociais da população, eram riquezas que foram transportadas para Portugal e este se utilizou dos recursos advindos desta venda para a aquisição de produtos e mercadorias industrializadas da Inglaterra, sem visão estratégia os portugueses perderam a oportunidade de construir uma estrutura produtiva moderna e dinâmica.

O Brasil estava inserido no comércio global, os portugueses carregavam seus navios com mercadorias advindas do Oriente Médio, principalmente temperos, frutos do mar, tecidos, lãs, dentre outros. Estes produtos eram trocados com as colônias portuguesas da África por escravos e levados ao Brasil, onde estes últimos eram deixados e os navios eram novamente carregados com produtos extraídos da colônia, principalmente cana de açúcar, pau-brasil e metais preciosos, o Brasil desde seu nascimento estava inserido no comércio internacional como uma colônia produtora de produtos primários e de baixo valor agregado.

Neste período de grande exploração, os portugueses não conseguiram introduzir um novo modelo econômico e produtivo, embora tenham extraído grandes fortunas e imensas riquezas do “comércio” com o Brasil, uma pequena parte destes recursos foi diretamente investido na economia portuguesa, como o país não tinha as perspectivas imediatas de desenvolver sua indústria ou outros setores estratégicos, continuou sua dependência de outros países na região, principalmente sua ampla dependência dos ingleses, na época a maior economia do mundo e dona da hegemonia no comércio internacional, país com inúmeras colônias, grande capacidade de empreender e ótima localização geográfica

A colonização brasileira teve início com a descoberta do país, em 1500, e terminou com a independência, fato este ocorrido em 1822, nestes mais de trezentos anos, a economia do país esteve sempre atrelada a uma economia mais estruturada, depois da colonização nossa dependência econômica passou para a Inglaterra, na época a grande pioneira da Revolução Industrial, momento central da história da humanidade que trouxe um salto tecnológico e produtivo em escala internacional e contribuiu para o crescimento da migração das pessoas do campo para as cidades e para um incremento de produtividade.

A colonização brasileira foi descrita como uma colonização de exploração, o que nos diferenciou da colonização dos Estados Unidos, cuja modelo foi chamada de povoamento, enquanto as riquezas da colônia portuguesas eram nítidas e bastante evidentes, na colônia inglesa, as montanhas e os territórios inóspitos, contribuíram para que os Estados Unidos fossem pouco explorados pelos descobridores, algo diferente aconteceu com o Brasil, que desde seus primórdios se caracterizou como uma economia explorada e muito mal gerida pela metrópole, com heranças negativas que se perpetuaram no tempo e ainda hoje podem ser vistas como características intrínsecas ao país.

Os portugueses legaram ao Brasil, um modelo muito burocratizado e marcado por traços fortes de intervencionismo e corrupção, as decisões deviam ser sempre tomadas e autorizadas pelo imperador, o que fazia com que tais decisões demorassem muitos meses, obrigando os investimentos e os empreendimentos a se perpetuarem durante muitos anos. Nos Estados Unidos encontramos uma situação bastante diferente, com um modelo mais descentralizado e dinâmico, as decisões eram sempre mais rápidas e dinâmicas, marcadas por um espírito mais acelerado, empreendedor e bastante flexível.

A base da economia colonial estava assentava na mão de obra escrava, com isso, o Brasil vai ficar muito distante da introdução de um mercado consumidor de massas, com grande parte do trabalho centrada na escravidão, o sistema capitalista nacional apresentava severas limitações, sem emprego e renda o sistema ficava inviabilizado na sua essência.

A escravidão também foi central para a construção de uma sociedade excludente, como uma grande parcela desta sociedade estava ausente desta estrutura de emprego, salário, renda e consumo, construímos um modelo onde a renda e a riqueza se concentrou na mão de poucos e a pobreza era uma característica geral e marcante, esta herança se mantem até os dias atuais fazendo do Brasil um dos países mais desiguais do mundo.

Dos quatro grandes ciclos econômicos vividos pelo país no período da colonização, o que mais contribuiu para o crescimento do país foi o ciclo do café, iniciado na metade do século XVIII, este ciclo teve seu maior progresso no século XIX, quando impulsionou a economia do país e contribuiu para que o processo de desenvolvimento adentrasse ao interior do país, inicialmente na região do norte fluminense, região de Campos dos Goytacazes e Vassoura e, posteriormente, na região do noroeste paulista, principalmente no entorno de Bauru, onde se desenvolveu imensamente, contribuindo para o crescimento do país e o fortalecimento do capitalismo nacional, além de impulsionar o crescimento das ferrovias que transformaram a região e abriram caminho para um forte ciclo de crescimento e desenvolvimento da região.

No século XIX, o país visualiza um embate na cultura cafeeira, que denota claramente como era a estrutura produtiva do país, de um lado o Brasil arcaico, escravista, marcado por baixa produtividade e com apoio político como instrumento de controle das varáveis econômicas e, de outro, um Brasil mais moderno, a favor de trabalhadores livres e adepto de investimentos variados para diversificar a produção e diminuir a dependência dos produtos primários de baixo valor agregado, neste embate  o Brasil moderno se sai melhor mas, quando toma o poder, percebe-se que o chamado de moderno não é tão moderno assim, com o poder nas mãos passa a adotar políticas tradicionais e conservadoras, mantendo o poder político para extrair do Estado Nacional as mais variadas benesses.

Ao analisarmos a sociedade brasileira percebemos que esta é uma das grandes características do Brasil, o moderno se une ao arcaico e constroem juntos um novo modelo de gestão, não existe uma ruptura com a sociedade tradicional e a construção de uma nova organização social, com isto estamos sempre presos a interesses e teorias antigas e ultrapassadas, enquanto o mundo avança o país se ressente de mais modernidade, uma modernidade verdadeira e dinâmica, mas o que vemos é uma modernidade conservadora.

Os ciclos anteriores foram pródigos em extrair grandes somas de riquezas do país e levá-las para o exterior, alimentando uma casta portuguesa cheia de interesses imediatistas, muito dinheiro, muita riqueza e nenhum projeto de desenvolvimento, o resultado desta política foi um incremento na importações de produtos ingleses que, com estes recursos, angariaram grandes somas de recursos para financiar o seu desenvolvimento industrial, se tornando o berço da civilização industrial e a economia dominante do mundo até o começo do século XX.

A ausência de uma estratégia de desenvolvimento para Portugal foi transplantada para o Brasil que, durante muitos anos depois da independência, se caracterizou por disputas predatórias entres grupos variados, principalmente entre setores da economia agrícola e, posteriormente, depois da Revolução de 1930, quando se confrontaram os agroexportadores e defensores de um Brasil agrícola e, de outro, um Brasil industrializado, que via na indústria uma estratégia central de desenvolvimento e de melhoria nas condições sociais da população, na sua maioria marcada pela pobreza extrema e pela marginalidade, tão bem retratados na obra Os bestializados de José Murilo de Carvalho.

A inserção do país na economia global, no período colonial, trazia alguns constrangimentos para a economia brasileira, de um lado, os produtos agrícolas tinham seus preços definidos pelo mercado externo, os demandantes tinham grande poder sobre a definição dos preços destes produtos. De outro, os produtos importados por países como o Brasil, na sua maioria mercadorias industrializadas, tinham seus preços definidos pelo produtor, com esta estrutura de preços do comércio internacional, percebíamos que a economia global privilegiava os países dotados de um maior desenvolvimento industrial em detrimento dos países agrícolas, o que inviabilizava uma estratégia de planejamento estratégico e perpetuava o poder e a dominação dos países ricos e industrializados.

O Brasil foi um dos últimos países a acabar com a escravidão, postergamos o máximo possível em colocar um ponto final nesta situação degradante, mesmo sofrendo a pressão dos ingleses, que viam na escravidão um entrave ao desenvolvimento do capitalismo no Brasil, ainda conseguimos manter uma estrutura escravocrata durante muitas décadas, desta forma percebemos uma herança de exploração, sofrimentos, altos custos e baixa produtividade, todas estas características que dão ao Brasil uma sociedade dividida entre exploradores e exploradas, com salários baixos e pouco dinamismo econômico.

As nossas escolhas sempre foram truncadas, nossas chamadas revoluções carecem de transformações estruturais, nossas leis sempre foram burladas de acordo com interesses de grupos poderosos e forças escusas e nossos sonhos sempre foram deixados de lado, desde sempre somos o país do futuro, nosso passado foi marcado por grandes exploração e desigualdade, fomos fundamentais para financiar grandes revoluções em outros países e regiões, impulsionamos com estas riquezas solos e regiões distantes mas, ainda não conseguimos encontrar um caminho para nosso próprio desenvolvimento, nossa elite se satisfaz com o desenvolvimento de outras regiões e evita contribuir para o desenvolvimento local, algo que só as teorias da psicanálise podem nos explicar convincentemente.

A estrutura agroexportadora perdeu força no Brasil com a crise de 1929, neste momento os nossos maiores compradores reduziram imensamente a compra de produtos brasileiros em decorrência da depressão em curso nos Estados Unidos e que se espalhou para toda a economia internacional. Com estoques elevados e preços em queda, o governo foi obrigado a interferir no mercado para evitar a quebra da economia cafeeira, neste momento os estoques de café são incinerados e os preços voltam ao ponto de equilíbrio, mas a economia cafeeira entra em colapso e abre espaço para novos grupos políticos, econômicos e sociais, tudo isso culmina na chamada Revolução de 30 e na ascensão de Getúlio Vargas ao poder, inicia-se o processo de industrialização brasileira.

O Estado sempre foi o local das grandes lutas políticas no Brasil, desde a independência até a Revolução de 30, o grande detentor dos poderes estatais eram os cafeicultores, que se utilizaram de seu poder para criar leis e construir políticas para satisfazer seus interesses econômicos e financeiros. Com a ascensão dos industriais a partir de Getúlio Vargas, percebemos uma outra elite dominando as estruturas do Estado e se utilizando deste poder para demarcar suas políticas e interesses, o Brasil rural perde espaço para um país mais urbano, novas formas de trabalho e instrumentos de estímulo ao setor produtivo, determinando os interesses do setor industrial.

O Estado brasileiro sempre defendeu os interesses dos grupos que o comanda, os setores mais fragilizados e depauperados são relegados ao esquecimento, sendo entregues a estes setores apenas as migalhas do capitalismo e os pequenos benesses do capital.

No começo do século XXI o Brasil se depara com desafios diferentes, a industrialização não trouxe os ganhos prometidos e o grande agente econômico é o setor do agronegócio, o país hoje pode ser descrito como um dos maiores exportadores de produtos agrícolas, para muitos especialistas temos um potencial para sermos o celeiro do mundo, temos clima e terra em abundância e solos e regiões ainda inexplorados, temos tecnologias de pontas construídas pelas empresas em parcerias com universidades e centros de pesquisas públicas e privadas, somos um dos maiores responsáveis pelos saltos de produtividade no campo e temos espaços de sobra para assumir esta liderança, o que nos falta é uma estratégia centrada em interesses maiores, estratégias que coloquem no centro os desejos e os anseios da sociedade brasileira, o fim da desigualdade e da pobreza, sem isto o país vai continuar sendo descrito como o país do futuro, um futuro sempre distante e que nunca chega.

 

 

 

 

 

 

 

O desafio dos bons empregos

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Dani Rodrik – Valor Econômico – 11/02/2019

No mundo inteiro, atualmente, o principal desafio para conquistar a prosperidade econômica inclusiva é a criação de números suficientes de “bons empregos”. Sem emprego produtivo e confiável para a vasta maioria da população em idade ativa de um país, ou o crescimento da economia continua fugaz ou seus benefícios acabam concentrados em uma minoria insignificante. A escassez de bons empregos também solapa a confiança nas elites políticas, o que alimenta a reação adversa autoritária e nativista que afeta muitos países atualmente.

A definição de um bom emprego depende, evidentemente, do nível de desenvolvimento econômico do país em questão. É, normalmente, um cargo estável no setor formal que vem acompanhado de salvaguardas trabalhistas essenciais, como condições de trabalho seguras, direitos de barganha coletivos e regulamentações contra demissões arbitrárias. Isso possibilita, no mínimo, manter um estilo de vida de classe média, de acordo com os padrões do país em questão, com renda suficiente para moradia, alimentação, transportes, educação e outros gastos da família, além de alguma poupança. Como argumenta há muito tempo Zeynep Ton, do MIT, as estratégias de “bons empregos” podem ser tão lucrativas para as empresas quanto o são para os trabalhadores.

Mas o problema mais profundo é o de caráter estrutural. Tanto países desenvolvidos quanto em desenvolvimento sofrem hoje de uma crescente incompatibilidade entre a estrutura da produção e a estrutura da população em idade ativa. A produção está se tornando cada vez mais intensiva em qualificação, enquanto o grosso da força de trabalho continua de baixa qualificação. Isso gera uma disparidade entre os tipos de empregos e os tipos de trabalhadores disponíveis.

A tecnologia e a globalização conspiraram para ampliar essa discrepância, com a automação e a digitalização cada vez maiores da indústria e dos serviços. Embora as novas tecnologias pudessem ter beneficiado trabalhadores de baixas qualificações, em princípio, na prática o avanço tecnológico foi, em grande medida, de substituição de mão de obra. Além disso, o comércio e os fluxos de investimento internacionais, e as cadeias de valor mundiais, em especial, homogeneizaram as técnicas de produção no mundo inteiro, tornando muito difícil para países mais pobres competir nos mercados mundiais sem adotar técnicas intensivas em qualificações e em capital semelhantes às utilizadas nas economias avançadas.

O resultado disso é a intensificação do dualismo econômico. Toda economia do mundo de hoje é dividida entre um segmento avançado, geralmente mundialmente integrado, que emprega uma parcela minoritária da população em idade ativa, e um segmento de baixa produtividade que absorve o grosso dessa população, muitas vezes a baixos salários e sob condições precárias.

Há apenas três maneiras de reduzir a incompatibilidade entre a estrutura dos setores produtivos e a da população em idade ativa. A primeira estratégia, e a que concentra o grosso da atenção das políticas públicas, é o investimento em qualificações e em educação. Se a maioria dos trabalhadores adquirirem a capacitação e as qualificações exigidas pelas tecnologias avançadas, o dualismo acabará se desfazendo, com a expansão dos setores de alta produtividade em detrimento dos demais.

Toda economia do mundo hoje é dividida entre um segmento avançado, mundialmente integrado, que emprega parcela minoritária da população em idade ativa, e um segmento de baixa produtividade que absorve o grosso dessa população, muitas vezes a baixos salários.

Essas políticas voltadas para o capital humano são importantes, mas seus efeitos serão sentidos no futuro. Elas são pouco operantes no enfrentamento das realidades presentes do mercado de trabalho. Não é possível transformar a população em idade ativa da noite para o dia. Além disso, sempre há ao risco real de que a tecnologia avance mais rapidamente do que a capacidade da sociedade de educar os recém-ingressos em sua população em idade ativa.

Uma segunda estratégia é convencer empresas bem-sucedidas a empregar mais trabalhadores pouco qualificados. Em países em que as diferenças de qualificações não são enormes, os governos podem (e devem) convencer suas empresas de sucesso a aumentar o nível de emprego – ou diretamente ou por meio de seus fornecedores locais. Os governos dos países desenvolvidos também têm um papel a desempenhar para mudar a natureza da inovação tecnológica. Frequentemente, eles subsidiam tecnologias substitutivas de mão de obra, capital intensivas, em vez de conduzir a inovação para direções socialmente mais benéficas, voltadas para aumentar, em vez de substituir, o contingente de trabalhadores menos qualificados.

Essas políticas pouco tendem a fazer muita diferença em países em desenvolvimento. Para eles, o principal obstáculo continuará a ser o fato de que as tecnologias já adotadas dão espaço insuficiente à substituição de fatores: usar mão de obra menos qualificada em vez de profissionais qualificados ou capital físico. Os exigentes padrões de qualidade necessários para abastecer as cadeias de valor mundiais não podem ser atendidos facilmente pela substituição de máquinas por mão de obra manual. É por isso que a produção mundialmente integrada, mesmo nos países mais abundantes em mão de obra, como a Índia ou a Etiópia, recorre a métodos relativamente intensivos em utilização de capital.

Isso coloca um largo segmento de economias em desenvolvimento – desde países de renda média, como o México e a África do Sul até países de baixa renda, como a Etiópia – diante de um enigma. A solução padrão de melhorar as instituições educacionais não rende benefícios de curto prazo, enquanto os setores mais avançados da economia são incapazes de absorver a superoferta de trabalhadores de baixa qualificação.

A resolução desse problema pode exigir uma terceira estratégia, que é a que capta o menor grau de atenção: impulsionar uma faixa intermediária de atividades de baixa qualificação intensivas em uso de mão de obra. O turismo e a agricultura não tradicional são os principais exemplos desses setores que absorvem mão de obra. O emprego público (em construção e prestação de serviços), há muito desprezado pelos especialistas em desenvolvimento, é outra área que pode exigir atenção.

A política governamental, tanto nos países desenvolvidos quanto nos em desenvolvimento, está, com muita frequência, preocupada em impulsionar as tecnologias mais avançadas e em promover as empresas mais produtivas. Mas a incapacidade de gerar empregos bons, de classe média, tem custos sociais e políticos muito altos. Reduzir esses custos exige um foco diferente, voltado especificamente para o tipo de emprego alinhado com a composição de qualificações dominante na economia em questão. (Tradução de Rachel Warszawski).

Dani Rodrik, professor de economia política internacional da Faculdade de Governo John F. Kennedy, da Universidade de Harvard, é autor de “Straight Talk on Trade: Ideas for a Sane World Economy”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O resultado disso é Há apenas três maneiras de reduzir a incompatibilidade entre a estrutura dos setores produtivos e a da população em idade ativa. A primeira estratégia, e a que concentra o grosso da atenção das políticas públicas, é o investimento em qualificações e em educação. Se a maioria dos trabalhadores adquirirem a capacitação e as qualificações exigidas pelas tecnologias avançadas, o dualismo acabará se desfazendo, com a expansão dos setores de alta produtividade em detrimento dos demais. Toda economia do mundo hoje é dividida entre um segmento avançado, mundialmente integrado, que emprega parcela minoritária da população em idade ativa, e um segmento de baixa produtividade que absorve o grosso dessa população, muitas vezes a baixos salários Essas políticas voltadas para o capital humano são importantes, mas seus efeitos serão sentidos no futuro. Elas são pouco operantes no enfrentamento das realidades presentes do mercado de trabalho. Não é possível transformar a população em idade ativa da noite para o dia. Além disso, sempre há ao risco real de que a tecnologia avance mais rapidamente do que a capacidade da sociedade de educar os recém-ingressos em sua população em idade ativa. Uma segunda estratégia é convencer empresas bem-sucedidas a empregar mais trabalhadores pouco qualificados. Em países em que as diferenças de qualificações não são enormes, os governos podem (e devem) convencer suas empresas de sucesso a aumentar o nível de emprego – ou diretamente ou por meio de seus fornecedores locais. Os governos dos países desenvolvidos também têm um papel a desempenhar para mudar a natureza da inovação tecnológica. Frequentemente, eles subsidiam tecnologias substitutivas de mão de obra, capital intensivas, em vez de conduzir a inovação para direções socialmente mais benéficas, voltadas para aumentar, em vez de substituir, o contingente de trabalhadores menos qualificados. Essas políticas pouco tendem a fazer muita diferença em países em desenvolvimento. Para eles, o principal obstáculo continuará a ser o fato de que as tecnologias já adotadas dão espaço insuficiente à substituição de fatores: usar mão de obra menos qualificada em vez de profissionais qualificados ou capital físico. Os exigentes padrões de qualidade necessários para abastecer as cadeias de valor mundiais não podem ser atendidos facilmente pela substituição de máquinas por mão de obra manual. É por isso que a produção mundialmente integrada, mesmo nos países mais abundantes em mão de obra, como a Índia ou a Etiópia, recorre a métodos relativamente intensivos em utilização de capital. Isso coloca um largo segmento de economias em desenvolvimento – desde países de renda média, como o México e a África do Sul até países de baixa renda, como a Etiópia – diante de um enigma. A solução padrão de melhorar as instituições educacionais não rende benefícios de curto prazo, enquanto os setores mais avançados da economia são incapazes de absorver a superoferta de trabalhadores de baixa qualificação. A resolução desse problema pode exigir uma terceira estratégia, que é a que capta o menor grau de atenção: impulsionar uma faixa intermediária de atividades de baixa qualificação intensivas em uso de mão de obra. O turismo e a agricultura não tradicional são os principais exemplos desses setores que absorvem mão de obra. O emprego público (em construção e prestação de serviços), há muito desprezado pelos especialistas em desenvolvimento, é outra área que pode exigir atenção. A política governamental, tanto nos países desenvolvidos quanto nos em desenvolvimento, está, com muita frequência, preocupada em impulsionar as tecnologias mais avançadas e em promover as empresas mais produtivas. Mas a incapacidade de gerar empregos bons, de classe média, tem custos sociais e políticos muito altos. Reduzir esses custos exige um foco diferente, voltado especificamente para o tipo de emprego alinhado com a composição de qualificações dominante na economia em questão. (Tradução de Rachel Warszawski)

Dani Rodrik, professor de economia política internacional da Faculdade de Governo John F. Kennedy, da Universidade de Harvard, é autor de “Straight Talk on Trade: Ideas for a Sane World Economy”.

Desigualdade, Políticas Sociais e crescimento econômico: uma análise de duas experiências exitosas de combate à exclusão social no Brasil contemporâneo.

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Artigo escrito com o intuito de contribuir para a discussão da desigualdade recente no Brasil e no mundo, destacando os avanços na sociedade brasileira e analisando dois programas exitosos de políticas públicas.

Sociedade da vigilância em rede

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Ricardo Abramovay – Revista Quatro Cinco Um: a revista dos livros – 08/03/2019

Três livros ainda inéditos no Brasil expõem o desencanto de pensadores com as promessas da inteligência artificial

A vigilância tornou-se a marca característica das sociedades contemporâneas ao final da segunda década do milênio. Não se trata de perseguição política, de arapongas ou de bisbilhotice, e sim de algo muito mais profundo, pervasivo e impactante: a vigilância se converteu em parte decisiva da nossa sociabilidade, ou seja, da maneira como nos relacionamos uns com os outros e com as coisas. E assim é porque a vigilância ocupa o epicentro do modelo de negócios das mais importantes empresas da economia contemporânea, ou seja, as de maior valor, de maior presença em nossa vida cotidiana, que concentram o cerne da inovação tecnológica e espalham pelo conjunto da sociedade o uso de dispositivos conectados ao ecossistema corporativo que lideram. O Estado não é seu principal vetor, embora tenha participado (às vezes ativamente, às vezes por omissão) em sua emergência.

“Compartilhamento” é a forma adocicada de sua apresentação pública. Os 510 mil comentários e as 136 mil fotos postadas no Facebook por minuto, as 40 mil buscas no Google por segundo (1,2 trilhão em 2018) ou os 60 milhões de fotos que sobem ao Instagram todos os dias nos perfis de seus 500 milhões de usuários diários são a matéria-prima da mais importante inovação tecnológica do século 21: a inteligência artificial.

O que caracteriza a vigilância não é só o sistema de captação de dados embutidos em nossos computadores, celulares e em todas as dimensões de nossa vida — quando fazemos compras, quando nos deslocamos de carro ou de transporte coletivo, e também os momentos em que estamos dentro de casa ou no trabalho. Tão importante quanto a captação desses dados é a capacidade daqueles que os usam de fazer inferências a respeito do nosso comportamento, abrindo caminho para que nos conheçam melhor e possam aplicar modelos às nossas atitudes com o objetivo de prever o que faremos.

O que foi caracterizado, há vinte anos, por Manuel Castells, em sua clássica trilogia, como a “sociedade da informação em rede”, converteu-se na “sociedade da vigilância em rede, que integra um conjunto de sensores embutidos não só nos dispositivos que identificamos como produtores de dados (computadores e celulares), mas também em equipamentos que se integram de maneira imperceptível para nós, com o objetivo não só de conhecer o nosso comportamento, mas, sobretudo, de interferir em nossa conduta como consumidores e cidadãos. A computação não é mais uma atividade específica: ela se tornou ubíqua.

Churchill dizia: ‘Moldamos os nossos prédios e depois eles nos moldam’. Isso se aplica às tecnologias que marcam as mudanças sociais, em qualquer época

É verdade que novas tecnologias têm sempre o impressionante poder de modificar a sociabilidade humana. Como mostra Robert Gordon  em The Rise and Fall of American Growth [ascensão e queda do crescimento americano], a água encanada, a coleta de lixo, a eletricidade, o telefone, o rádio, a TV, o automóvel, o transporte de massas, os antibióticos e o raio X mudaram completamente a sociabilidade e a própria subjetividade dos habitantes dos países que puderam adotar essas transformações de forma generalizada, no início do século 20. Winston Churchill dizia: “Moldamos os nossos prédios e depois eles nos moldam”. É claro que isso se aplica às tecnologias que marcam as mais importantes mudanças sociais, em qualquer época. Elas sempre nos moldam de alguma forma, assim como os prédios de Churchill.

Mas a capacidade de nos moldar vinda das tecnologias contemporâneas, sobretudo da inteligência artificial, é inédita. Por mais que o automóvel, o elevador, os túneis e os viadutos alterem a nossa percepção sobre o espaço, as distâncias e os territórios, eles estão fora de nós, diferentemente dos dispositivos digitais, que não apenas colocam a vigilância no nosso bolso, no nosso corpo, na nossa casa, no nosso carro e nas ruas, mas usam-na para prever e, cada vez mais, determinar o que fazemos. São tecnologias que interferem de maneira direta e voluntária em nossa mente.

Três livros recentes, ainda não publicados no Brasil, estudam algumas das mais importantes dimensões desse fenômeno: a moldagem dos comportamentos humanos, a orientação da política na era da vigilância em rede e o lugar histórico da vigilância na evolução do próprio capitalismo.

Arquitetura do comportamento

Não existe em português uma boa tradução para o verbo que dá título ao livro de Brett Frischmann (da Villanova University e de Stanford) e Evan Selinger (do Rochester Institute of Tecnology), Re-Engineering HumanityEngineering, em inglês, aproxima-se de um conjunto que inclui construir, influenciar, moldar, manipular e fazer. “Re-engenheirar” a humanidade não é simplesmente um meio de ampliar as vendas, com base nas informações coletadas sobre as preferências das pessoas oferecendo-lhes, nas palavras de Mark Zuckerberg, anúncios que lhes sejam relevantes. Na verdade, as informações permanentemente coletadas e analisadas por algoritmos, cujo funcionamento nos é completamente opaco, permitem que nossa conduta seja previsível e, justamente por isso, abrem caminho a uma interferência em nosso cotidiano que é inédita e atinge todas as esferas da vida social.

Em 2014, por exemplo, a Amazon patenteou um sistema que permite antecipar o que os clientes querem comprar, antes mesmo que eles próprios o saibam. A mágica está nas informações reunidas sobre cada um de nós e na análise que delas é feita. Essa é uma das explicações para a compra pela Amazon, em fevereiro de 2019, da Eero, uma start up que amplia o alcance das conexões de wi-fi e elimina os pontos cegos (ou surdos) no interior das residências. Boa notícia, salvo, como lembra matéria do Financial Times, o fato de que o dispositivo terá o condão de ampliar a quantidade e a variedade de dados domésticos que a Amazon recebe sobre os usuários da inovação, fortalecendo assim sua capacidade preditiva sobre o nosso comportamento e somando-se às informações já hoje fornecidas pelo robô doméstico Alexa, do qual já foram vendidos nada menos que 100 milhões de unidades. Somando-se Alexa, Siri (da Apple) ou Google Assistant, um quarto dos domicílios norte-americanos possui hoje um smart speaker. A eles podem-se acrescentar outros dispositivos de vigilância como as tvs inteligentes da Samsung, que não só respondem a comandos de voz, mas registram e armazenam as informações derivadas de conversas no local onde o aparelho se encontra. Ou, então, equipamentos capazes de informar a quem está em casa sobre o estado de espírito de um membro da família que vem chegando da rua.

A Amazon patenteou um sistema que antecipa o que os clientes querem comprar, antes que eles o saibam

Da mesma forma que o gps vai subtraindo das pessoas a capacidade de se localizar, serão cada vez mais frequentes os dispositivos voltados a substituir a nossa percepção, a nossa intuição e a nossa empatia por informações que orientam o nosso comportamento. A atenção moral e o cuidado com o outro são superados pelos resultados matematicamente certeiros da mineração de dados. Reduzem-se os custos de transação nas relações pessoais, mas essa redução, ao mesmo tempo, abre caminho para que a compreensão do outro seja terceirizada para as máquinas. As trocas pessoais são “re-engenheiradas”.

Em última análise, o caminho tomado pelas tecnologias digitais está desafiando a ideia-chave do Iluminismo de que somos indivíduos autônomos e responsáveis por nossas decisões. Claro que essas capacidades humanas são aprendidas e desenvolvidas na vida social. O problema é que as bases para uma formação individual voltada ao exercício da liberdade podem ser solapadas por dispositivos que, sob o pretexto de ampliar nossa mente, de operar como próteses cognitivas, acabam inibindo o nosso maior bem comum, que é a capacidade autônoma de conviver com os outros.

A conclusão é que um dos mais importantes desafios do século 21 está na liberdade de nos desconectarmos e de nos tornarmos independentes do poder, embutido nos dispositivos em que estamos imersos, de determinar quem somos e como nos relacionamos.

Engenheiros filósofos

Os impactos políticos das tecnologias de vigilância são estudados pelo advogado britânico Jamie Susskind, ex-assessor de Tony Blair e do senador Edward Kennedy, em Future Politics. Sua tese central é que as leis, nas sociedades contemporâneas, serão executadas (enforced) e estarão cada vez mais embutidas nos dispositivos digitais que usamos. É o veículo autônomo (e não seu condutor) que vai submeter-se aos limites de velocidade e à regulamentação para estacionar. O tema já havia sido estudado, desde 1999, nos trabalhos do advogado e ativista norte-americano Lawrence Lessig, que o sintetizou na fórmula “code is law”. Os programas digitais terão a força de determinar a nossa conduta.

Se, durante o século 20, se tratava de saber em que medida a nossa vida era determinada pelo Estado, pelo mercado e pela sociedade civil, agora a questão (que norteia o livro de Susskind) é outra: em que medida a nossa vida será determinada por poderosos sistemas digitais e em que termos esse poder será exercido.

A dominação — a capacidade de fazer os outros agirem segundo a vontade do dominador, na célebre definição de Max Weber — cada vez mais estará em códigos a partir dos quais nossos equipamentos trarão a instrução sobre o que podemos e o que não podemos fazer. No lugar das regulamentações escritas virão as prescrições programadas. A força, até aqui concentrada numa esfera pública (o Estado), vai se transferindo para a esfera privada, controlada pelos gigantes das tecnologias digitais. Assim, os que controlam essas tecnologias terão crescente poder sobre a vida social e, portanto, sobre o futuro da democracia e da liberdade.

Nos processos legislativos democráticos, as leis mudam com base em discussões públicas, orientadas por representantes eleitos, por mais que haja falhas nessa representação. No mundo da vida digital, a mudança é adaptativa, e, mesmo quando responde a pressões sociais (como a decisão do WhatsApp de reduzir para cinco o número de destinatários de mensagens encaminhadas simultaneamente), ela não passa por um debate público.

Mais que isso: a tradição liberal na política sempre exaltou o caráter experimental dos processos legislativos. Tanto Karl Popper quanto Friedrich Hayek sustentavam a impossibilidade de conhecer a vida social na sua totalidade e a importância do erro e de suas correções como expressões das virtudes da democracia. Ninguém poderia ter certeza de que possuía a solução correta para determinado problema, e por isso o debate democrático deveria ocupar o centro da vida política. A principal consequência política da nossa dependência dos dispositivos digitais é que eles abrem caminho a soluções políticas resultantes daquilo que pontificam os algoritmos e não dos representantes políticos.

Os algoritmos vão se tornando cada vez mais misteriosos conforme ganham autonomia no processo de aprendizagem das máquinas

A nossa própria percepção do mundo é cada vez mais controlada pelos sistemas digitais que filtram a maneira como nos informamos. Os mediadores humanos são substituídos por sistemas automatizados. Daí resulta, para Susskind, uma fragmentação social que bloqueia o próprio debate público. Contrariamente à expectativa inicial de seus pioneiros e de seus mais importantes teóricos, o alargamento esperado da nossa capacidade comunicativa e da variedade de informações que formam a nossa cultura política converteu-se nas bolhas de repetição e redundância a que o escrutínio minucioso e personalizado dos algoritmos nos submete. Tanto mais que os algoritmos, além de propriedade privada, vão se tornando eles mesmos cada vez mais misteriosos, conforme ganham autonomia no processo de aprendizagem das máquinas.

A opacidade das decisões tomadas pelos algoritmos chegou a tal ponto que a Darpa (a agência militar norte-americana onde nasceu a internet) criou um programa (Explainable Artificial Intelligence) para que os pesquisadores tentem entender as decisões resultantes dos processos autônomos de aprendizagem de máquinas.  Pois é essa autonomia (das máquinas, não nossa!) que está desempenhando e vai desempenhar um papel cada vez mais importante na regulação das nossas atividades, ou seja, na política.

A mais importante conclusão de Susskind, inspirada por Tim Berners Lee, inventor da World Wide Web, é que o mundo precisa com urgência de “engenheiros filósofos”. Não se trata de uma opção tecnocrática que concentre ainda mais poder em alguns sábios, e sim da urgência de que o desenvolvimento tecnológico esteja organicamente vinculado a opções éticas não só sobre os impactos, mas também sobre o próprio sentido dos aparatos digitais em que nossa vida está mergulhada. E isso só se faz com amplo debate público.

Capitalismo de vigilância

Publicado em janeiro, The Age of Surveillance Capitalism [A era do capitalismo de vigilância], de Shoshana Zuboff — psicóloga e uma das primeiras mulheres a conquistar uma cátedra na escola de negócios de Harvard —, já foi comparado à Primavera silenciosa de Rachel Carson e até ao Capital de Marx. O evidente exagero deve-se à ambição de suas setecentas páginas. Zuboff procura nada menos que os fundamentos teóricos capazes de explicar a nova modalidade de capitalismo trazida pelos gigantes digitais e cuja essência pode ser assim resumida: se no capitalismo do século 20 o controle dos meios de produção era a base para a extração do trabalho humano em que se apoiam os ganhos empresariais, hoje os lucros corporativos provêm de um conjunto amplo e generalizado de meios de modificação do nosso comportamento.

Não é mais o trabalho, e sim a experiência humana, em todas as suas dimensões, que é apropriada e transformada em dados para servir de base para uma interferência cada vez maior na nossa vida. A marca central das sociedades contemporâneas (o que já havia sido antecipado de forma pioneira pela obra de André Gorz, que, infelizmente, Zuboff nem sequer menciona) não é mais a exploração do trabalho, e sim aquilo que Jürgen Habermas chamou de colonização do mundo da vida, ou seja, a transformação de nossas relações pessoais, de nossa intimidade, de nossa interação, em base para a acumulação capitalista por meio justamente da vigilância. No lugar de “modo de produção”, surgem dispositivos que criam “modos de modificação de comportamento”. O excedente econômico torna-se, assim, comportamental, e os ativos que permitem a extração desse excedente são ativos de vigilância, em que é fundamental o sistema ubíquo de computação que a internet das coisas está ampliando com velocidade estonteante.

Mas a vigilância está longe de ser um fenômeno fundamentalmente econômico. Psicóloga de formação, Zuboff conheceu pessoalmente B. F. Skinner durante sua graduação. Skinner concebia a liberdade humana como uma completa ilusão, derivada apenas da nossa ignorância. Caso tivéssemos instrumentos capazes de obter e analisar os dados em função dos quais agimos, veríamos, sustentava Skinner, que as nossas ações são sempre condicionadas a estímulos, incentivos, punições ou aos contextos que produzem esses estímulos. Assim, para Skinner, a liberdade e os valores básicos que o Iluminismo (sobretudo Kant) expressou na ideia de autonomia humana são fruto da nossa ignorância, e não virtudes que deveríamos exaltar. Essas ideias, publicadas por Skinner em Além da liberdade e da dignidade (1971), estão, mostra Zuboff, na raiz do capitalismo de vigilância.

Em nossa época, o excedente econômico torna-se comportamental, e os ativos que permitem a extração desse excedente são ativos de vigilância 

É claro que estas linhas não fazem justiça à riqueza de dados e de explicações sobre essa obra, que já está marcando tão fortemente o debate sobre o significado histórico da revolução digital e de sua modalidade presente, que Zuboff denomina capitalismo de vigilância. Chama a atenção a escassez de menções a movimentos de resistência às práticas dos gigantes digitais contemporâneos. Da mesma forma, há uma hesitação no livro entre a ideia de que o que está em questão é o capitalismo (e não as tecnologias) e a ausência total de qualquer menção àquilo que poderia ser uma abordagem não capitalista do uso dos dispositivos digitais na vida social. Nada disso, porém, tira o imenso valor do livro.

Na verdade, os três livros aqui comentados exprimem o desencanto do pensamento contemporâneo com relação a dispositivos que vinte anos atrás prometiam abrir portas para a emancipação social. Mas, em comum, as três obras levantam a bandeira da liberdade e da autonomia humanas contra um sistema que, em nome da eficiência, reduz a nossa iniciativa, a nossa capacidade de ação independente e ameaça a nossa dignidade.

Frischmann, Brett; Selinger, Evan
Re-Engineering Humanity  Cambridge University Press • 430 pp • R$ a definir

Susskind, Jamie
Future Politics Oxford University Press • 544 pp • R$ a definir

Zuboff, Shoshana
The Age of Surveillance Capitalism PublicAffairs • 704 pp • R$ a definer

https://www.quatrocincoum.com.br/br/resenhas/economia/sociedade-da-vigilancia-em-rede

Economia do baixo crescimento e das Instabilidades crescentes

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Depois de um período de recessão marcado por baixíssimo crescimento econômico, aumento no desemprego, redução na renda e nos salários e queda vertiginosa nos investimentos, as perspectivas para este ano são menos empolgantes, depois de um momento de êxtase nos mercados financeiros, com queda no dólar e recorde na Bolsa, o Brasil vive um período de incertezas e inseguranças no campo econômico.

Nos primeiros sessenta dias do novo governo percebemos um misto de imaturidade política, amadorismo crescente e um falatório generalizado, um governo novo com vícios antigos e conhecidos, alguns falam demais, emitem opinião sobre tudo e todos, enquanto outros falam de menos, com isso, percebemos na sociedade e no mercado financeiro uma grande apreensão, sem mudanças sólidas o país não tem chances de superar este crescimento medíocre e insuficiente.

Depois de uma década de forte crescimento, o país se depara, a partir de 2014, com graves problemas econômicos e políticos, o lado fiscal da economia se ressente de um maior equilíbrio, os déficits crescem de forma acelerada, os gastos públicos são reduzidos e a economia perde seu motor mais importante, com isso, o país amarga uma de suas maiores recessões, em 2015 o PIB caiu 3,9%, em 2016 outro tombo de 3,6%, em 2017 algum crescimento, modestos 1,1%, neste momento a economia sai da recessão e as perspectivas para o ano seguinte passam a ser melhores, uns acreditando em quase 3%, outros defendendo números mais modestos, na casa do 2%, depois dos doze meses percebemos um crescimento ridículo na casa dos 1,1%, repetindo valores do ano anterior e aumentando as incertezas sobre a economia e as perspectivas para o sistema produtivo.

O Brasil vive um período de grandes transformações, depois de um aumento das intervenções estatais e de gastos públicos que incrementaram o crescimento econômico mas, ao mesmo tempo, degradaram as finanças públicas e abriram espaço para uma recessão sem precedentes, obrigando os governantes a adotarem políticas mais efetivas no controle dos gastos públicos, com isso, a economia literalmente entrou em um sinal de baixo crescimento e a recuperação está se mostrando cada vez mais complexa, exigindo novos esforços de uma população depauperada pelas crises constantes.

Se olharmos para os indicadores macroeconômicos, perceberemos que o país apresenta um superávit nas contas externas e uma grande quantidade de reservas em moeda estrangeira, os preços internos estão controlados e a taxa de juros se encontra em números reduzidos se comparado com períodos anteriores, de outro lado encontramos uma situação fiscal degradada com déficits acima dos 100 bilhões de reais e um desemprego na casa dos 12% da população, inviabilizando investimentos e melhores resultados no futuro.

A inflação baixa e controlada está mais atrelada ao baixo consumo e a recessão do que a outros instrumentos de política monetária, a população se encontra endividada, as empresas de análise de crédito estimam em mais de 60 milhões de brasileiros inadimplentes, os empresários estão com estoques altos e as vendas estão em compasso de espera, com isso, os investimentos estão sendo postergados para momentos melhores e mais consistentes, sem consumo e sem investimentos a economia não anda e a situação do país se agrava, gerando incertezas e instabilidades crescentes.

A situação econômica exige um forte choque de confiança e de credibilidade, cabe aos agentes econômicos mostrar a sociedade novos caminhos para o crescimento, para que isso aconteça algumas medidas importantes precisam de tomadas, controlar os gastos do Estado é fundamental para melhorar as perspectivas fiscais e abrir espaço para novos investimentos governamentais, gerando novos empregos, melhorando a renda e estimulando o sistema econômico. Controlar os gastos é uma medida crucial, mas insuficiente para melhorar o universo fiscal do Estado, uma política mais estrutural exige uma consistente reforma previdenciária, que seja implementada para produzir uma economia no médio e no curto prazos, reduzindo os privilégios e melhorando as condições de alguns grupos vulneráveis da sociedade brasileira, uma reforma tributária que aumente a quantidade de pessoas que pagam impostos, um forte combate a sonegação e a evasão fiscal, e uma maior tributação sobre setores mais abastados, inclusive reduzindo isenções de inúmeros setores econômicos, dentre eles o agronegócio e o financeiro, segundo especialistas, o Brasil vem, nos últimos anos, deixando de arrecadar mais de 4% do produto interno Bruto, algo em torno de 250 bilhões de reais, com estes recursos os déficits nas contas públicos não existiriam e o país poderia melhorar rapidamente sua condição macroeconômica.

Destacamos ainda, como fundamental para a melhora das instituições do país a reforma política e eleitoral, como se governa uma sociedade com uma gama tão ampla de partidos políticos como temos na atualidade no Brasil? Uma grande parte destas agremiações foram criadas por grupos políticos minoritários que se utilizem destas estruturas para abocanhar os fundos partidários, com prestação de contas inexistentes e desvios generosos para políticos e expoentes de destaque na organização político-partidária.

Outro ponto importante que deve ser privilegiado pelo novo governo é referente ao sistema bancário e financeiro, os bancos são detentores de grandes lucro, mesmo com uma economia em forte recessão, faz-se fundamental aumentar a competição no sistema estimulando e regulando as fintechs, incrementando a inserção da população no sistema financeiro, acelerando reformas microeconômicas, aumentando o acesso ao crédito, reduzindo as taxas de juros de forma consistente e melhorando o ambiente de negócios. Uma política forte na diminuição da burocracia é fundamental para o crescimento dos investimentos públicos e privados, nos últimos anos foram sendo criadas instituições estatais que atuam de forma exagerada na fiscalização e regulação, ministérios, agências reguladoras, cada uma disputando poder e buscando uma maior influência nos negócios, isso sem falar no aparelhamento políticos destas organizações, instrumentos importantes tecnicamente acabaram se tornando espaços degenerados e disputados por grupos políticos como forma de mostrar poder e influência sobre a sociedade.

No cenário internacional, faz-se necessário uma observação mais consistente da economia global, depois da crise de 2008, os governos atuaram fortemente no sentido de injetar bilhões e bilhões de dólares e euros nos mercados domésticos, os países conseguiram melhorar suas performances mas não conseguiram gerar crescimentos mais sólidos, diante disso, os governos dos países desenvolvidos estão, novamente, aumentando os incentivos para seus setores produtivos, como se vê na China, Estados Unidos, Japão e Europa, incrementando suas dívidas e empurrando a resolução do problema para um futuro muito próximo, neste ambiente de protecionismo e nacionalismo, onde os governos estão protegendo empresas e setores temos que tomar cuidado com um discurso liberal, por mais que concordemos com grande parte deste discurso, faz-se fundamental observar os cenários externos, privatização e redução do papel do Estado é fundamental, apenas precisamos entender se este é o momento correto para a alienação deste patrimônio.

Estamos vivendo um período muito conturbado na economia mundial, o protagonismo asiático no cenário internacional, conquistado nas últimas décadas tem levado países desenvolvidos a adotarem políticas para reduzir a perda de espaço de suas empresas para as empresas asiáticas, estas políticas, claramente protecionistas, estão aumentando as divergências e os conflitos comerciais, reduzindo os acordos e as trocas entre nações, ao Brasil cabe uma política mais moderada, nosso comércio com a China se tornou muito relevante e precisa ser conservado em bases sólidas e consistentes, além disso, precisamos abrir novos mercados para nossos produtos, a redução da burocracia é fundamental e a melhora da competitividade dos nossos produtos uma condição primordial, para que isto aconteça, o país precisa se abrir para o comércio internacional como é o desejo do novo Ministro da Economia, Paulo Guedes, o fundamental é encontrar a melhor forma de fazer e exigindo sempre contrapartidas palpáveis dos nossos parceiros comerciais, menos ideologia e mais pragmatismo.

O discurso liberal é bem encantador e sedutor, a redução da intervenção do Estado na economia depois do malogro petista agrada a classe média e os grupos empresariais formadores de opinião, o grande problema desta visão, ou limitação, é que muitos setores precisam fortemente dos incentivos e subsídios estatais para a sua sobrevivência, sem estes muitas empresas sucumbiriam a competição com grupos transnacionais externos, o que percebemos deste discurso é de defesa de mais competição e maior concorrência mas, nas entrelinhas percebemos dos grupos nacionais, que seus privilégios e subsídios devem ser mantidos e, se possível, ampliados e melhorados.

Neste ambiente de controle dos gastos públicos e austeridade fiscal, muitos grupos econômicos precisam se conscientizar da importância de uma política econômica mais racional, percebendo com isso, que muitas das antigas tradições econômicas precisam ser alteradas, os subsídios fiscais que sempre foram dados pelo governo brasileiro precisam ser repensados a luz de um momento de escassez, estudar as políticas de subsídios e compreender seus resultados, consertando os erros cometidos anteriormente e mantendo as políticas exitosas e, além disso, privilegiando os mais eficientes, esta deve ser a tônica desta nova empreitada econômica, mais concorrência e menos protecionismo.

Depois de um começo de governo avassalador, o mercado passou a se preocupar mais com os rumos da economia neste novo governo, se na agenda econômica percebemos uma maior clareza, embora o ritmo ainda esteja bastante lento, no front político percebemos muitas dissonâncias, falas desnecessárias e discursos inflamados, tudo como se estivéssemos, ainda, em um ambiente de embate eleitoral, percebemos autoridades com discursos detonando os partidos políticos, a classe política e os grupos sociais, muitos destes grupos são fundamentais para a aprovação de reformas importantes para o êxito deste governo, descer do palanque eleitoral, moderar o discurso político, construir maiorias sólidas e consistentes, deveriam ser as prioridades centrais do novo governo, acreditamos que não se governa democraticamente um país como o Brasil detonando a classe política e contra os adversários, o regime democrático nos estimula a lidar com o contraditório, esta postura imatura tende a levar o governo a acumular derrotas e reduzir as perspectivas positivas da sociedade para o futuro e, sem mudanças nas expectativas, dificilmente teremos a transformação que almejamos para o país.

Novas tecnologias alterando o mundo do trabalho, incertezas generalizadas no cenário econômico nacional, endividamento elevado da população, guerras comerciais, aumento do nacionalismo e do protecionismo, crescimento da intolerância e do sectarismo e um ambiente conflagrado nas redes sociais, todas estas situações fomentam um clima de grandes medos e desesperanças para a economia brasileira, diante disso, o que nos resta é acreditar que os grupos responsáveis pela gestão do Estado consigam transformar sonhos em esperanças e os medos em perspectivas mais promissoras, todos devemos acreditar, embora estejamos dominados por um certo ceticismo, a esperança deve sempre prevalecer, embora não tenha votado neste grupo político, o caos e a degradação não nos interesse, este clima apenas nos trará destruição e desigualdades.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Trabalhos, resgates e assistências no mundo espiritual

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A grande maioria das pessoas acredita que a morte é o fim de todos os laços que unem os seres humanos a vida, desconhecem a existência de um mundo espiritual e acreditam que quando a morte chegar, entrarão em compasso de espera para o grande julgamento, o juízo final, onde os bons serão admitidos no mundo dos justos enquanto os ruins serão condenados ao fogo intenso do purgatório, como nos foi ensinado, a colheita é livre e a semeadura é obrigatória.

            Nesta teoria, ao morrermos esperaremos o fim dos tempos para o verdadeiro julgamento, neste momento o sono nos dominará por completo e seremos condenados a uma posição de passividade total, onde aguardaremos durante muitos anos, décadas, séculos ou milênios. Quando imaginamos aqueles indivíduos que povoaram a Terra a muitos séculos e se encontram nas fileiras do sono eterno aguardando o juízo final nos perguntamos, quanto tempo mais aguardaremos a justiça divina para o julgamento final?

A Doutrina Espírita nos traz uma nova forma de compreender a vida, nos mostra que a morte não existe e que o mundo espiritual é o local de vivência onde os espíritos realmente se entrelaçam em prol de seu crescimento e desenvolvimento, neste local a vida transcorre naturalmente, nele acordamos dos períodos vividos no mundo material, nele compreendemos realidades que muitas vezes não queremos enxergar e nele nos percebemos quanto espíritos imortais, o Espiritismo nos descortina uma vida até então desconhecida para uma grande parte da humanidade, com ele não podemos mais alegar ignorância nem desconhecimento das Leis de Deus.

O trabalho é uma benção divina, no mundo material temos que agradecer a oportunidade de, com ele, angariar recursos para suprir nossas necessidades materiais, adquirir alimentos e vestuários, além de dispêndios com lazer e diversão. No mundo espiritual, o trabalho deve ser visto como uma forma sublime de crescimento espiritual e moral, quando chegamos do mundo material envolto em desajustes e desequilíbrios, necessitamos deste trabalho para nos equilibrar e compreender mais claramente as necessidades e equívocos cometidos em vidas anteriores.

O Espiritismo nos mostra a existência de cidades e colônias no mundo espiritual, nelas vivem inúmeras pessoas, estes espaços são dotados de regras, de governantes, de casas e conjuntos habitacionais, pavilhões de estudo e de reflexão, além de departamentos variados, todos visando o comprometimento de cada um de seus moradores nas atividades cotidianos, na organização e no desenvolvimento individual e coletivo.

No livro Nosso Lar, o espírito André Luiz nos mostra claramente como se dá a vida em uma colônia espiritual, as ruas, as avenidas, a organização, as regras e a função de cada um de seus moradores, o funcionamento do bônus hora, remuneração dada a todos os trabalhadores que se dedicam em prol da comunidade, neste local não existe espaço para o chamado jeitinho brasileiro, a palavra meritocracia se mostra na sua essência, tudo se dá de acordo com o merecimento individual de cada morador.

Nas cidades espirituais encontramos dirigentes que se caracterizam por sua liderança técnica, sua competência e, principalmente, por sua alta envergadura ética e moral, onde seu cargo está diretamente atrelado a anos de trabalho ininterruptos na causa, passando por inúmeras áreas da colônia angariando admiração, respeito e merecimento.

As moradias são garantidas a todos aqueles que se desdobram no auxílio no bem, a entrega efetiva nos trabalhos da colônia lhes garante recursos amoedados – os bônus horas – que são trocados por residências nas colônias que são utilizadas para abrigar a todos os seus familiares, garantindo um certo conforto aos que trabalham e se dedicam ao bem coletivo.

Encontramos trabalhadores nas mais variadas áreas e setores no mundo espiritual, nos atendimentos emergenciais de espíritos que chegam debilitados depois de resgates em cidades espirituais de baixo teor vibratório, em enfermarias e em hospitais de tratamentos que atendem irmãos que se recuperam de intervenções cirúrgicas feitas para remover danos nos períspiritos contaminados por energias negativas e desequilibradas.

Muitos irmãos no plano material se utilizam de frases de efeito quando pessoas desencarnam, dentre elas destacamos, o irmão passou desta para uma melhor, embora esta frase seja muito utilizada no mundo material, a doutrina espírita nos mostra que as coisas não funcionam desta forma na maioria das vezes, muitos irmãos, com o desencarne vão para planos muito piores, mais agressivos e centrados no mal, no rancor e no ressentimento, tudo isto está diretamente ligado aos valores e aos sentimentos que pululam no coração de cada pessoa, ninguém se transforma com a morte, ninguém se melhora com o desencarne, a morte serve como um instrumento para nos desnudar, se somos bons, dotados de bons sentimentos, cultivamos o hábito da oração e nos mantemos equilibrados espiritualmente, o desencarne servirá como um alento para o espírito que, com certeza, vai se encontrar em uma situação melhor e mais desenvolvida, lembremos sempre da lei de ação e reação, pois ela nos ajuda a compreender melhor a sociedade e, principalmente, as Leis eternas e imutáveis de Deus.

Outro ponto importante que devemos destacar, é o papel desempenhado pelos espíritos que atuam em regiões umbralinas, são espíritos iluminados e destemidos que se embrenham em regiões tenebrosas e assustadoras para resgatar irmãos sofredores que, depois de muito tempo sofrendo e sendo molestados por espíritos ora renitentes no mal e na vingança, oram e pedem socorro para Deus, neste momento estes irmãos se endereçam para os resgates, um exemplo destes trabalhadores foi retratado no livro Memórias de um suicida, psicografado por Yvonne Pereira e ditado pelo escritor português Camilo Castelo Branco, nesta obra destacamos o trabalho abnegado da Legião dos Servos de Maria, trabalhadores incansáveis que se dedicam ao resgate de irmãos em condições deploráveis, muitos deles vivendo nestas condições durante muitos séculos.

A imersão nestas regiões exige destes espíritos um alto teor de equilíbrio, constante refúgio na oração, treinamentos constantes e grande confiança no poder de Deus, somente espíritos dotados destas habilidades e conscientes da importância do auxílio como instrumento de depuração conseguem vencer estes desafios e auxiliar os irmãos que se descuidaram dos mais sinceros ensinamentos deixados pela passagem de Jesus Cristo.

Nos resgates, nossos irmãos missionários são testados diretamente, ao mergulhar nos escaninhos do Umbral se deparam com estupradores, prostitutas, assassinos contumazes, pedófilos, além de corruptos de todas as naturezas, estes irmãos que ora mourejam no mal, no rancor e no ressentimento, exalam uma energia degradante, marcadas por teores intensos de negatividades, são espíritos que se comprazem com estas energias e usam seu poder de persuasão e hipnose para converter os trabalhadores mais incautos, diante disso, estes irmãos são preparados para os combater mais terríveis e violentos, mergulham no fundo do poço, resgatam irmãos agredidos e violentados e se equilibram mostrando a importância dos ideais eternos da espiritualidade maior.

Nos variados resgates nos deparamos com histórias variadas, nestas experiências percebemos que todos, inicialmente, se dizem vítimas de algozes terríveis e violentos, justificam suas desditas a vingança de irmãos que lhes orquestraram maldades e agressividades, esquecem deliberadamente que nas rodas da vida não existem vítimas, somos todos algozes uns dos outros, se na experiência anterior cometemos equívocos contra algum desafeto e nesta somos por ele perturbado, se não perdoarmos e nos desvencilharmos deste irmão, vamos carregar durante muitos séculos sentimentos de vingança, sendo tragados pelos caminhos mais nebulosos do mundo espiritual inferior e pior, tendo ao nosso lado um obsessor que nos agride e é por nós agredido.

O trabalho é constante no mundo espiritual, aqueles que acreditarem que, ao morrer, vão descansar ou entrar em um momento de hibernação até a chegada do juízo final, podem esquecer estas teorias e se acostumar com a certeza de que o trabalho é uma lei universal e todos trabalhamos e trabalharemos sempre, encarnados e desencarnados.

O livro Nosso Lar nos trouxe grandes informações sobre a vida no mundo espiritual, nesta obra percebemos claramente que os espíritos estudam constantemente, nos relatos da obra, percebemos que muitos espíritos estudam todos os dias, leem obras de grande conteúdo moral e científica para se preparar para mais uma aventura na carne, estes irmãos estão sendo preparados para uma breve reencarnação, estudam línguas, informática, genética, química, matemática. Filosofia, sociologia, dentre outras áreas e ciências, objetivando um maior avanço em suas encarnações, como percebemos o planejamento caracteriza o mundo espiritual, visando um maior êxito e sucesso nas novas oportunidades no corpo material.

A literatura nos mostra claramente que todos nós já fomos resgatados nos mundos espirituais inferiores, se olharmos para dentro de cada um de nós, vamos nos deparar com um alto teor de degradação, somos um pouco de cada coisa ruim que encontramos no mundo, nossas inúmeras experiências no mundo material cunharam pessoas melhores, sem dúvida, hoje somos melhores que nas vidas anteriores mas, mesmo assim, estamos longe dos ideais dos missionários descritos nas obras de Emmanuel, ainda vamos chegar a uma situação intermediária, mas para isso temos que nos dedicar intensamente, expulsando os males e a intolerância que ainda mourejam em nossos espíritos.

Somos espíritos em constante aperfeiçoamento, o trabalho e a assistência espiritual é uma constante em nosso processo evolutivo, o desencarne nada mais é que a passagem de um mundo material para o imaterial, nesta passagem não existe mudanças de valores e comportamentos, o desencarne não impulsiona a evolução, o trabalho constante nos auxilia imensamente neste crescimento espiritual, como na obra Missionários da Luz, psicografia de Francisco Cândido Xavier, a transformação de Segismundo nos leva a compreender a importância deste crescimento ascensional, depois de graves desequilíbrios na experiência anterior, marcados por assassinatos e suicídios, com o desencarne, a conscientização e o trabalho incessante no bem, no auxílio aos mais desvalidos e na intransigência nos ideais do bem, a recompensa surge de forma verdadeira e imediata, o trabalho é uma das fontes mais seguras e serenas para o progresso espiritual, entendamos esta lei e nos conscientizemos de que fora do trabalho não existe salvação.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Libertação

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O livro Libertação, de André Luiz e Francisco Cândido Xavier, da coleção A vida no mundo espiritual, nos leva a cidade dos gregorianos para acompanhar um resgate emocionante, nesta aventura vamos conhecer muitas histórias envolventes e entender um pouco mais do trabalhos dos amigos espirituais, uma obra envolvente.

 

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Morte e o morrer:  medos, tabus e os dilemas da humanidade

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Um dos maiores medos do homem e da civilização humana está associado à morte, todos sabemos que estamos condenados a perecer mas, constantemente, ficamos apavorados e amedrontados com a chegada deste momento que gera tanto desespero nos indivíduos e nas coletividades, levando muitos indivíduos a desequilíbrios intensos e frenéticos.

Desde os primórdios da humanidade, o ser humano vem se debatendo com a possibilidade da morte, tribos indígenas e culturas orientais constroem verdadeiros rituais para homenagear seus mortos e fazer com que estejam todos vivos na mente e no imaginário da sociedade, mesmo assim a morte causa repulsa e desespero em muitos indivíduos, somos racionais e nos julgamos modernos, mas ainda temos medo daquilo que pretensamente não conhecemos, digo pretensamente porque, segundo o conhecimento espírita, nascemos e morremos muitas vezes.

As religiões apresentam visões diferentes da morte, umas acreditam que o indivíduo quando morre passa a viver ao lado de Deus, outros acreditam que vamos mergulhar em um sono intenso, acordando apenas no dia do juízo final, neste momento seremos julgados por nossos atos na vida física, se formos absolvidos ganharemos o reino do céu agora, se formos condenados seremos expurgados para os locais de desesperança, rancor e desequilíbrios.

A doutrina espírita apresenta uma visão muito particular sobre a morte, para os espíritas a morte não existe, somos espíritos e estagiamos no corpo material como um instrumento de depuração e crescimento, nascemos e morremos inúmeras vezes para nos melhorarmos como seres humanos, desenvolvermos nosso desprendimento e nossos valores mais íntimos e pessoais, a vida no corpo material funciona como uma grande escola de aprendizados e ensinamentos onde aprendemos os verdadeiros sentidos da palavra amor.

Muitos questionam o porque não nos lembramos de nossas existências anteriores, se tivéssemos a possibilidade de lembrar as nossas vidas pregressas, poderíamos evoluir de uma forma mais rápida, argumentam estes indivíduos. A doutrina dos espíritos estimula o livre pensamento e aceita bem estas colocações mas acredita que, dentre os motivos de não lembrarmos de nossas vidas anteriores, é que não saberíamos como reagir a descobertas intimas e pessoais assustadoras, se vivemos inúmeras vezes e nestas experiências acumulamos muitos afetos, amores e sentimentos nobres, em contrapartida, acumulamos ainda, inúmeros desafetos, desamores e sentimentos menores, nas vivências passamos por muitas coisas e a lembrança efetiva poderia nos gerar graves constrangimentos morais, físicos e psicológicos.

Para o espiritismo as vivências são oportunidades sublimes de crescimento e de melhorias comportamentais e para o desenvolvimento de sentimentos e pensamentos mais avançados, deixando de lado uma vida marcada por desejos e buscas materiais e hedonistas e sua substituição por sentimentos e vivências mais intensas e estimulantes, com crescimento e desenvolvimento espiritual, nossa passagem pelo mundo espiritual tem este objetivo, crescer e se melhorar continuamente, afinal, esta é a lei de Deus, a lei natural que rege a sociedade e todos estamos naturalmente sujeitos a ela.

Vivemos em uma sociedade muito materializada, os valores do dinheiro e do poder material domina as mentes e os corações incautos, estamos nas afastando de Deus e as religiões tradicionais estão se deixando conduzir por interesses mesquinhos e, cada vez mais, marcados pelo materialismo, o dinheiro como meio está se tornando um fim para muitas sociedades e os excessos estão surgindo de forma acelerada, neste ambiente estamos tendo que conviver com um forte crescimento tecnológico em consonância com graves desajustes íntimos dos indivíduos, depressão, ansiedade, transtornos generalizados e suicídio são males modernos que estão afetando a todos os indivíduos e coletividades.

Neste mundo dominado pelo prazer material, pelo imediatismo e pelo hedonismo, somos impulsionados a gozar a vida todos os momentos, nos despindo do futuro e nos entregando ao gozo imediato, quando desencarnamos e percebemos que ainda nos encontramos vivos, somos acometidos de uma grande frustração, os momentos perdidos em farras e em prazeres sensoriais passam a nos cobrar a ausência de obras edificantes, quando acordamos estamos em situação de desespero e desesperança, marcados pelo medo e pela intensa decepção.

Outro ponto importante para se destacar, grande parte daqueles espíritos que desencarnam, desconhecem a sua nova situação, percebem algumas mudanças em suas vidas mais relutam em aceitar que desencarnaram, acreditam ou querem acreditar que o mal estar é algo temporário, com isso geram constrangimentos intensos em seus familiares e postergam esclarecimentos que são cruciais para sua nova condição de vida.

A morte é uma grande incógnita para a sociedade mundial e para o indivíduo particularmente, todos ouvimos desde pequenos que a morte é certa, a hora é que é incerta.   Esta frase representa uma grande verdade, sabemos que um determinado momento iremos passar para um outro mundo, este conhecimento nos parece inscrito no interior de cada um de nós, são informações que estão inseridas em nosso corpo espiritual e levamos para todo sempre.

Muitos acreditam que quando o indivíduo morre, ele parte desta vida para uma melhor, apesar de ser uma frase repetida exaustivamente pela sociedade e muitos acreditarem, os espíritas acreditam que existe uma inconsistência muito forte neste pensamento, muitos ao desencarnarem partem desta vida para locais muito piores, assustadores e infelizes, marcados por dores intensas, gemidos ensurdecedores e um cheiro insuportável, para muitos se trata do inferno agora, para os espíritas, o local é conhecido como umbral, local este imortalizado na obra clássica de André Luiz, Nosso lar.

            Existem vários equívocos sobre a morte que foram construídos pela sociedade desde seus primórdios, dentre elas,  que a morte torna a pessoa mais sábia, incrementa seus conhecimentos e as exime de seus erros ou equívocos anteriores, diante disso, todos que partem para o mundo espiritual devem ser lembrados com carinho e com atenção, os familiares e amigos daqueles que “partiram” devem orar constantemente e guardar sempre um respeito e um pensamento positivo de sua memória, como forma de auxiliá-lo em sua nova condição de vida e em seu aprimoramento espiritual.

Muitos fazem inúmeros pedidos para seus familiares e amigos desencarnados, pedem ajuda para superar momentos de dificuldades e estão, constantemente, solicitando a presença do desencarnado, estas atitudes geram severos constrangimentos no recém desencarnado, criando neste graves desequilíbrios e desajustes. Muitos desencarnados, ou ouvirem os pedidos e os choros de seus colegas ou familiares desencarnados entram em desespero querendo auxiliar, muitos deixam suas colônias e retornam ao mundo material com o intuito de amparar, infelizmente nesta atitude acabam causando maiores desequilíbrios e constrangimento aos colegas encarnados, gerando processos constantes de desequilíbrios mútuos e obsessões severas.

            Para muitos a morte assusta porque leva o indivíduo a um local desconhecido, com o conhecimento espírita a sociedade passou a conhecer melhor o significado da morte, destacando a vida no mundo espiritual, as vivências do espírito, as atividades desenvolvidas e os sentimentos que os dominam, deixando claro a existência de um verdadeiro espaço de interdependência entre os indivíduos encarnados e desencarnados, todos convivendo lado a lado, sofrendo as dores e gozando os prazeres da convivência compartilhada.

A Doutrina Espírita nos descortina a existência da morte, somos espíritos estagiando em corpos materiais, reencarnamos lado a lado para progredirmos coletivamente, nesta convivência nos encontramos debaixo dos mesmos lares como familiares, recebemos como filhos desafetos de outras existências físicas e nos embrenhamos em relacionamentos com pessoas conhecidas de muitas existências como forma de nos depurarmos de desajustes e desequilíbrios anteriores, onde ofendemos e fomos ofendidos, onde agredimos e fomos agredidos, onde matamos e fomos mortos, num espiral incrível regido pela espiritualidade maior em busca de um progresso que será alcançado por todos, indistintamente.

Ao desencarnar nos deparamos com nossas virtudes e nossos equívocos, quando acordamos no mundo espiritual vamos perceber como foi nossa existência no corpo físico, se formos para locais ermos, mal cheirosos e violentos, pode ter certeza que sua construção na matéria foi deficiente agora, se ao acordar pudermos nos enxergar em locais mais sublimes, acompanhados por pessoas mais equilibradas e serenas, nossos passagem no mundo da matéria foi exitosa e os frutos destes merecidos êxitos serão colhidos intensamente.

Na coleção  A vida no mundo espiritual, ditada pelo espírito André Luiz ao médium Francisco Cândido Xavier, os espíritos nos mostram que quando retornam ao mundo espiritual se entregam ao trabalho estimulador, servir aos irmãos mais necessitados, estudar as leis da natureza e se entregar ao conhecimento libertador auxilia e abre espaço para um crescimento continuado e edificante, para aqueles que se veem na ociosidade no mundo espiritual, o pós morte pode ser algo frustrante e decepcionante.

O crescimento deve ser visto como um esforço pessoal e individual, todos podemos e devemos crescer e nos desenvolver, nos melhorarmos como espírito, agregarmos conhecimento e buscarmos uma evolução constante, para isso somos auxiliados por missionários espirituais, irmãos dedicados que se entregam ao melhoramento contínuo. Um exemplo sempre presente nas obras iluminadas da doutrina espírita, é o caso de Segismundo, contida no livro Missionários da Luz, da lavra de André Luiz em parceria com o médium Francisco Cândido Xavier, depois de muitos desequilíbrios e desajustes na vida anterior, onde cometeu as mais severas insanidades, no mundo espiritual, depois de muitas dificuldades, tomou consciência de seus desajustes mais intensos, trabalhou intensamente, se dedicando de corpo e de alma para o auxílio dos irmãos sofredores e, com isso, conseguiu angariar virtudes e inúmeros créditos para uma verdadeira transformação moral e espiritual, que possamos acompanhar a experiência deste espírito abençoado e iluminado.

Numa sociedade marcada por intensa violência, como a que vivemos na atualidade, muitos irmãos estão retornando ao mundo espiritual em condições difíceis, exigindo dos trabalhadores da imortalidade uma vigília constante na sociedade, estes trabalhadores se desdobram no processo de orientação e auxílio para os recém chegados, amparando e auxiliando neste momento que, embora acreditem ser inéditos, são momentos vividos por todos os indivíduos inúmeras vezes nas mais variadas existências que todos experienciamos.

A morte é um momento doloroso para muitos, ainda mais quando somos separados daqueles que amamos intensamente, nestas separações somos tentados a bradar contra Deus, a xingar e a ofender, como se desta forma pudéssemos colocar pra fora nossa ira e nosso ressentimento, embora muitas vezes não entendamos os verdadeiros motivos da separação, a verdadeira fé nos leva a acreditar nos desígnios divinos, nestes momentos passamos a compreender que, na verdade, somos muito pequenos e insignificantes, conhecemos muito pouco da vida e estamos no mundo para crescer e as perdas são instrumentos importantes para compreender a justiça divina.

Diante do exposto acima, percebemos que a morte não mais existe como acreditamos, a doutrina codificada por Allan Kardec nos auxilia na compreensão dos verdadeiros ideais do mundo e da sociedade, mesmo assim sabemos que, com nossa insignificância e pequenez, temos muitas experiências para viver neste mundo e muitas perdas para computar em nossa trajetória de crescimento e de melhoramento espiritual.

 

Adriano Calsone, autor do livro Madame Kardec

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Adriano Calsoni

Olá Adriano, desde já agradecemos pela atenção e presteza em nos responder a algumas perguntas a respeito do livro espírita “Madame Kardec” que foi recentemente lançado.

Agradeço muitíssimo a confiança em nosso livro Madame Kardec, ciente de que estamos apresentando, aos leitores do Clube do Livro Letra Espírita, uma literatura genuinamente espírita e de qualidade.

A seguir algumas perguntas formuladas por nossa equipe com base nas curiosidades dos nossos leitores sobre a obra literária em comento.

Quando você tornou-se espírita e como descobriu o dom de escrever livros? Por que optou por escrever obras espíritas?

Me tornei espiritista nos anos 2000, na época da faculdade. Foi uma situação bastante inusitada, pois “desafiei” os espíritos a me transmitirem uma comunicação mediúnica na biblioteca da universidade. Daí, eu apanhei uma caneta e um pedaço de papel e me concentrei com muito ceticismo para um transe mediúnico – sem saber ao certo o que estava fazendo. Foi quando a minha mão direita (involuntariamente) começou a se movimentar e a escrever um pensamento muito diferente do meu. O acontecimento mecânico me chocou por horas. Ao sair da universidade, passei numa papelaria e comprei telas e tintas, e o ato se repetiu com muito mais intensidade. Em casa, logo me chamaram de médium e fui orientado a procurar a Federação Espírita do Estado de São Paulo. Permaneci nessa Instituição por quatro anos, fazendo os cursos de evangelização e de educação mediúnica. Minha chegada no Espiritismo foi assim: um misto de curiosidade com desafio.

Não enxergo, necessariamente, o ato de escrever livros como um dom. Vejo mais como uma paixão pela literatura espírita de qualidade, reforçada por uma entrega desinteressada em prol da Doutrina-Luz. É o que venho fazendo e é o que vem funcionando, sem pretensão alguma, em nome da verdade mais próxima da verdade.

A opção por escrever obras espíritas surgiu em 2002, quando senti a necessidade de se pesquisar sobre a pintura mediúnica que vinha exercendo à época, pois eu tinha muitas dúvidas sobre essa mediunidade. Foi aí que surgiu o nosso primeiro livro, Pintura Mediúnica – A visão espírita em ampla pesquisa (Mythos Books), coletânea espírita que nos facilitou o acesso à participação na primeira pesquisa científica mundial sobre pintura mediúnica e neuroimagem, que aconteceu em 2013, na Universidade de Aachen, na Alemanha.

Qual foi a sua principal motivação para escrever o livro “Madame Kardec” e o que pretende transmitir ao leitor?

A principal motivação surgiu ao constatarmos que a biografia de Amélie-Gabrielle Boudet estava completamente apagada dos anais do Espiritismo mundial, e que os espíritas haviam se esquecido da importância que a esposa de Allan Kardec exerceu na Doutrina Espírita, seja como espírita empreendedora, seja como a continuadora do legado espírita deixado pelo seu marido. Por meio de nossas pesquisas, fomos descobrindo que desapareceram (propositalmente) com a história de Amélie, ou seja, ocultaram a sua biografia num descaso sem tamanho. Tudo por conta dos interesses escusos de um grupo de “amigos” de Allan Kardec, os que se sentiram incomodados com as muitas iniciativas espíritas de Amélie. Em verdade: quiseram riscá-la do mapa do Espiritismo, mas não conseguiram…

O que pretendemos transmitir ao leitor, por meio da obra Madame Kardec é, justamente, a relevante militância da mulher mais importante do Espiritismo francês do século 19. Madame Kardec, como empreendedora inteligente, soube conduzir o legado espírita de maneira exemplar, cuidando da imagem póstuma de Allan Kardec e preservando as dez obras fundamentais do Espiritismo, principalmente contra as deturpações em seus originais, que se tornaram uma sorrateira ameaça.

Talvez, o principal destaque do trabalho discreto de Amélie está na defesa de nossa Doutrina. Ele teve que enfrentar os muitos “reformadores” sincréticos de plantão, que desejavam imiscuir teorias e sistemas esdrúxulos na água potável do Espiritismo. Muitas dessas enxertias
atentavam contra os preceitos espíritas, como fora o caso dos conceitos roustenistas e teosóficos (ambos aceitam, por exemplo, a retrogradação dos espíritos por meio da metempsicose), concepções que surgiram com a pretensão de “atualizar” a Doutrina ou mesmo “modernizar” Allan Kardec. Um aspecto contraditório nisso tudo foi que os próprios “espíritas” franceses consentiram essas aproximações difamatórias, o que ocasionou um fenômeno irreversível de cisão que, infelizmente, vem se repetindo nos dias de hoje, dentro do sincrético Movimento Espírita Brasileiro. Enfim, o passado espírita se repete…

Como foi realizada a elaboração e o desenvolvimento da obra? Houve orientações da Espiritualidade? Em caso afirmativo, poderia nos contar como ocorreram?

Madame Kardec é um trabalho de pesquisa espírita, não se trata de romance ou obra de ficção. Procuramos compor uma leitura leve e agradável, indo direto aos assuntos, sem rodeiros. O livro levou cinco anos para ficar pronto, haja vista a enorme dificuldade que encontramos para localizar, no Brasil e no exterior, fontes primárias e secundárias (inéditas) sobre a esposa do mestre. Tudo foi muito difícil, pois os historiadores espíritas do passado nos fizeram o grande favor de estilhaçar a biografia de Amélie, tendo nós, na atualidade, que juntar esses cacos biográficos, a fim de preservarmos a história que quase se apagou e o trabalho espírita de nossa biografada.

No decorrer das pesquisas, descobrimos a existência de Madame Berthe Fropo, mulher forte que fora amiga íntima de Amélie, e que a ajudou na manutenção da coerência doutrinária depois da morte de Allan Kardec. Durante a escrita da nossa obra, pressentimos, por diversas vezes, a aproximação do Espírito Fropo, nos sugerindo orientações sobre os caminhos literários que a biografia de Madame Kardec podia tomar. Inclusive, é da valente Fropo a belíssima mensagem espiritual que abre a nossa obra, psicografada pela médium Sandra Carneiro, de Atibaia-SP.

Mensalmente são lançadas dezenas de obras espíritas, mas poucas alcançam tanta repercussão como “Madame Kardec” está tendo nas redes sociais. Você esperava tamanha repercussão?

Acredito que a nossa obra vem ganhando tal repercussão por conta do ineditismo da pesquisa biográfica sobre Madame Kardec, como também pelo trabalho editorial realizado pela Vivaluz Editora Espírita. Eles produzem livros espíritas como obras de arte, com projetos gráficos impecáveis, como deveria ser toda obra espírita, pois os nossos leitores merecem um produto de alta qualidade.

O nosso trabalho alcança popularidade porque há nele muitas verdades, revelando uma Madame Kardec em sua plenitude. A obra não engana os seus leitores com distorções historiográficas, muito menos maquia os fatos espíritas do passado, já que é dever de todo historiador não ser conivente com falsários e exploradores que se passam (até hoje) por “benfeitores” do Espiritismo francês. Enfim, o livro deposita valores espíritas em quem realmente os merece: Madame Kardec, Berthe Fropo e Gabriel Delanne são exemplos de espíritas merecedores desses valores, principalmente pela vigilância redobrada na coerência doutrinária – em respeito ao legado espírita que Allan Kardec nos deixou.

Madame Kardec é considerada uma das figuras femininas mais importantes para a história do Espiritismo que em modo geral sempre teve homens como grandes expositores. Como você vê a relevância da mulher à frente da Divulgação Doutrinária?

Vejo como atos de conquista e persistência femininas. Hoje, nos encontramos num cenário muito diferente, onde a mulher espírita tem liberdade e voz ativa, é escritora respeitada, conferencista competente, dirigente eficiente e até vice-presidente de instituições espíritas respeitadas, como é o caso atual da Federação Espírita Brasileira. Sou otimista em acreditar que, em menos de uma década, uma mulher assumirá a presidência da FEB, posição secular que até hoje foi absorvida apenas por homens. Tempos atrás, essa presença feminina em cargos importantes no meio espírita nacional ou internacional era muito subjetiva e, no Espiritismo francês do século 19, pouco provável, também por conta dos preconceitos de gênero.

Fizemos um levantamento para descobrir quantas mulheres espíritas francesas frequentaram a antiga Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, presidida por Kardec nos idos de 1860. Descobrimos que não passavam de meia dúzia. Na década de 1880, esse número subiu para uma dúzia de militantes, diante de centenas de sócios homens, muitos desses, machistas e com ideias preconcebidas sobre como deveria se comportar a mulher na sociedade francesa.

Amélie-Gabrielle Boudet foi rara exceção entre as mulheres espíritas francesas, sempre respeitada pelo marido Allan Kardec, que compreendia muitíssimo bem a sua importância. Isso deixou de acontecer quando Kardec desencarnou, depois de março de 1869. Viúva Kardec, acabrunhada, passou a ser extremamente desrespeitada por aqueles mesmos “amigos” íntimos do mestre, sendo, inclusive, assediada moralmente pelo seu mandatário, o senhor Pierre-Gaëtan Leymarie, que foi o braço direito do mestre. Leymarie, como teósofo e roustenista convicto, sentiu-se “o sucessor de Kardec” sem o ser, o que o levou a subestimar as iniciativas espíritas da idosa viúva, a ponto de ignorá-la completamente como a responsável pela Revista Espírita, pela Livraria Espírita e demais ações que criou e desempenhou, onde seguia como a detentora do legado kardeciano. Infelizmente, encontramos algumas citações de fontes confiáveis sobre o assédio moral praticado por esse sincretista, o que levou a lúcida Amélie a um rápido adoecimento, como relatamos minuciosamente em nosso livro. Inclusive, as tristes circunstâncias da morte de nossa biografada têm muitíssima relação com essa montanha de descaso e assédio moral.

Como você vê o Movimento Espírita Brasileiro na atualidade com a expansão da literatura espírita?

A literatura genuinamente espírita sempre será o maior patrimônio da nossa cultura espírita. O que vemos hoje, no Movimento Espírita Brasileiro, é uma enxurrada de literatices se passando por espírita. São as abusivas pseudo-literaturas espíritas de baixíssima qualidade, até mesmo como literatura espiritualista.

Há um compromisso importante que o leitor espírita, ou simpatizante da literatura espírita, deve assumir como confrade consciencioso: ler de tudo que pousar em suas mãos, mas prezando sempre a qualidade doutrinária em Kardec. Isso equivale a dizer que as obras que contradizerem os preceitos espíritas devem ser compreendidas como literaturas não espíritas, e que essas não deveriam ser vendidas em livrarias espíritas, não deveriam ser aceitas em bibliotecas espíritas ou mesmo em feiras do livro espírita. Neste sentido também, sempre haverá a necessidade de seleção editorial rigorosa por parte dos dirigentes e/ou responsáveis por departamentos vitais nas casas espíritas. O que vem acontecendo ultimamente é uma verdadeira inversão de valores: obras não espíritas se passando por espíritas e sendo aceitas no Espiritismo sem critério algum. Isso incorre numa incoerência coletiva: a de estarmos sendo coniventes com esses rasos literatismos, permitindo a adoção e a prática de seus conceitos ou sistemas que impugnam o que já foi estabelecido como preceito espírita pelos espíritos superiores nas obras fundamentais da Doutrina Espírita.

Por fim, não façamos do incorruptível Espiritismo caricatura grosseira, permitindo a infiltração dos caracteres maléficos dessas literatices oportunistas.

 

Grupos religiosos promovem revanche teológica no país.

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Roberto Romano – Folha de São Paulo, Ilustríssima, 24 de fevereiro de 2019.

[RESUMO] Firmada pela Constituição de 1891, separação de Estado e igreja no Brasil passou por retrocessos desde então e permanece sob ataque de grupos que pretendem impor a religião à vida pública, diz autor.

Nos tratos entre poder civil e mando religioso, a grande tese da Igreja Romana foi expressa por Leão 13 na encíclica “Immortale Dei”: “A Igreja e o Estado devem ser unidos um ao outro como alma e corpo, que constituem no homem um todo natural”. A doutrina vem de longe, mas foi sintetizada por Roberto Belarmino, com a proposta de uma “soberania espiritual indireta” do papa sobre o Estado secular. Se o dirigente político deixa a fé, surgem ameaças à saúde coletiva.

Ao mover sua imprensa e para censurar os jornais não católicos, o clero brasileiro gastou recursos de propaganda contra os maçons (algo que já vinha do Império), liberais, espíritas, anarquistas e todos os que poderiam pôr em dúvida a “soberania espiritual” do Sumo Pontífice. O protestantismo foi particularmente visado. Na Revista Eclesiástica Brasileira, na Revista Vozes ou em pasquins diocesanos, os protestantes eram descritos como o grande malefício.

Um livro virulento do padre Soares d’Azevedo comparava o protestantismo à peste, ao anarquismo e a outras “doenças” sociais. Quem no Brasil adere à reforma, diz o sacerdote, só pode ser espião imperialista —no caso, dos EUA. A invasão protestante ameaçaria a integridade do Estado, visto que as instituições nacionais tinham como essência e origem o catolicismo. Apenas os católicos seriam patriotas, somente eles garantiriam a soberania nacional.

O mesmo ataque foi retribuído, contra os católicos, pelos defensores do laicismo: o Vaticano seria uma potência estrangeira capaz de ameaçar nosso Estado soberano. Note-se a mudança nas cores da paleta: no século 20 ser católico era prova de patriotismo. Hoje, na visão de grupos do governo Bolsonaro, a Igreja Romana põe em perigo a segurança e a soberania do Estado. Mudaram os personagens, o problema continua: agora os evangélicos imaginam que suas congregações e o poder estatal formam um só corpo.

Acusam-se os católicos de lesa-pátria, sobretudo com o próximo sínodo sobre a Amazônia, congresso de bispos a ser realizado em outubro, em Roma. O general Augusto Heleno queixou-se de que o encontro seria “interferência em assunto interno” do Brasil, o que evidencia nova crise entre Estado e Igreja. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, o governo brasileiro monitora com preocupação a ação do clero e pediria ajuda à Itália para travar a exploração de temas da Igreja que considera ligados à esquerda.

Depois Heleno negou plano de espionar membros da igreja, mas reafirmou sua preocupação, uma vez que alguns dos temas do Congresso, segundo ele, “são de interesse da segurança nacional”. “Quem cuida da Amazônia brasileira é o Brasil”, afirmou. Espionar clérigos, de fato, não é uma tarefa digna da sociedade civil ou do Estado. E, no campo diplomático, pedir auxílio da Itália para pressionar o Vaticano é ignorar a natureza do adversário.

Num gesto cesaropapista, setores oficiais postulam a participação, no sínodo, de autoridades civis. Todos esses programas e teses, que tentam expulsar da vida pública religiões concorrentes, levam à única conclusão racional: o Estado não pode ser o corpo de uma crença no sagrado; deve permanecer neutro para escapar da destruição que devastou a Europa moderna nas guerras de religião.

O que significa um Estado laico? Examinemos a tese política que recusa qualquer religião como fonte do poder público. Ao contrário do vocábulo “demos”, “laós” (povo) não tem etimologia confiável, mas o nome surge na prosa e poesia gregas. Em Homero pode significar “gente, súditos, cidadãos, assembleia”. Como não há na Grécia distinção forte entre clero e fiéis, apenas no Egito são diretamente opostos o laós e o sacerdote.

No aristocrata autor da “Ilíada”, o nome se aproxima do pejorativo. Em Platão indica um aglomerado humano. As pessoas no teatro e na assembleia integravam o laós. No cristianismo primitivo o termo representa os fiéis opostos aos pagãos.

A Igreja assumiu várias doutrinas filosóficas para refletir sobre o Cristo e a vida coletiva. Alguns padres seguiram o estoicismo, outros o neoplatonismo. Neste último o representante máximo foi Santo Agostinho, cuja importância sofreu a concorrência do misterioso Dionísio, o Areopagita. No livro dos Atos mencionam-se discursos do apóstolo Paulo em Atenas. Aquelas falas teriam sido assumidas por Dionísio.

Apenas como curiosidade, com ele havia uma crente cujo nome era Damaris…. Soa atual no Brasil, apesar de a letra “i” ter sumido em favor do “e”.

Por volta de 840, os escritos de Dionísio foram traduzidos por João Escoto Erígena e usados como autoridade na Idade Média. Neles, o conceito fundamental é o de hierarquia. O termo reúne “hieros” (sagrado) e “arché” (princípio, poder, início). O que é uma hierarquia? Resposta: “Um sistema de patamares com respeito ao conhecimento e à eficácia”. Até hoje a Igreja segue os parâmetros definidos por Dionísio nos campos do saber e da realidade.

Ao dizermos algo a respeito de Deus, sabemos que dele jorra uma luz espalhada pelos seres. Quanto mais próximo do ser divino, mais brilhante e digna a criatura. Há na ordem cósmica e humana uma escada para cima (superior) e outra para baixo. Aos seus degraus chamamos hierarquia.

Cada ente, natural ou humano, recebe sua luz de outro, mais elevado, e a transmite ao inferior. O mundo terreno reflete o celeste, os anjos são “espelhos espirituais do abismo divino”, disse o teólogo Paul Tillich. Jacques Maritain, filósofo importante da Igreja no século 20, publicou um livro célebre cujo título é totalmente dionisíaco: “Distinguir para Unir, os Graus do Saber”.

Cosmos e saber são hierarquizados, assim como a estrutura da Igreja e dos poderes políticos. A diferença entre superiores e inferiores não pode ser abolida. Tentar sua igualização é destruir a ordem divina. No mais alto posto situa-se o clero. Abaixo, os reis e nobres. E no plano mais baixo estão os leigos, o povo, o laós. Tal sistema nega a igualdade política. A Igreja Católica exibe na sua forma de governo e pensamento semelhante imaginário.

É impossível quebrar a escala hierárquica, dos anjos aos homens. À pergunta “se Deus fez todas as coisas, por que não as fez iguais?”, Agostinho apresenta uma fórmula: “Non essent omnia, si essent aequalia”. Cada coisa ocupa um lugar diferente na ordem dos seres. A igualdade seria oposta à natureza, ao mundo social e político. Daí surge a tese da soberania eclesiástica na Idade Média —e depois a da soberania pontifícia indireta, após a Reforma Protestante.

Com Lutero e Calvino temos uma inversão do pensamento ordenado por Dionísio. Quando os reformadores negam a autoridade eclesiástica, bem como a existência de intermediários entre o mundo finito e o além, abrem a via para instaurar uma sociedade laica e um Estado idem. Evidentemente, tal mudança não ocorre de imediato. Nos “heréticos” restam traços do poder clerical e da hierarquia na vida humana.

Quando seus discípulos se insurgem, exigindo igualdade política, Lutero defende os príncipes e amaldiçoa os líderes da Revolução Camponesa, sobretudo Thomas Münzer. Apesar de tudo, na reforma, o poder laico firma-se de modo perene. A Igreja é a união do povo comum, os leigos, e dispensa hierarcas religiosos. Logo dispensará os hierarcas políticos. Todos os reacionários do século 19, de Joseph de Maistre a Donoso Cortés, identificam a gênese da “fatal democracia” em Lutero.

No movimento luterano —e depois, calvinista—, fortaleceu-se a luta pela igualdade e a busca do poder laico sem guantes clericais. Não por acaso, o coletivo que mais contribuiu para o reforço do sistema parlamentar e da república inglesa ostenta o nome de Os Niveladores (Levellers). No mesmo passo, Francis Bacon defende a ciência e o ensino com base no método, não em fórmulas metafísicas. Exemplo dado por ele: para desenhar um círculo perfeito é preciso raro gênio. Com o compasso, todos cometem a proeza.

A democratização trazida pelo método segue para as hostes políticas puritanas e civis. A genialidade e o milagre, bases do aristocratismo hierárquico, deixam a cena em prol do trabalho científico disciplinado. O mundo perde o encanto e se transforma em algo prosaico, sem hierarquias sagradas.

As Luzes continuam as lutas da reforma e da ciência. Desde então, o saber se transforma na política cujas bases é a laicidade plena, afastando o religioso. Kant, um filósofo que segue a reforma, proclama: “Nosso tempo é o tempo da crítica, à qual tudo deve se submeter. A religião, por sua santidade, a legislação, por sua majestade, desejam dela fugir. Mas então elas suscitam uma justa suspeita e não podem desejar o respeito sincero que a razão concede apenas ao que pode ser sustentado em livre e público exame”.

No poder e na ciência laicos não existe “magister dixit” (porque o mestre falou). Quem diz hierarquia religiosa diz ocultamento ou censura, como no “Index Librorum Prohibitorum” (índice dos livros proibidos). Daquele volume para a totalitária fogueira de livros o passo é curto. A vida laica repele todo ato censor ou tutela sobre coletivos e indivíduos. Nenhuma autoridade recebe o mando do ser divino, mas do povo.

É a tese avançada pelo francês Diderot, assumida na Constituição dos Estados Unidos da América: “Nous, le peuple”… “We, the people” (nós, o povo). O Estado laico, ou do povo, triunfa e, com ele, a democracia. É abolida no espaço público a figura da hierarquia divina. Todos são iguais. Contra semelhante atitude, nos séculos 19 e 20, a Santa Sé se une aos movimentos baseados na hierarquia do mando, com Mussolini, Hitler e outros.

Logo após 1500, o Brasil conhece a contrarreforma, reação aos movimentos protestantes. Adeptos da nova religião aqui estiveram, sobretudo franceses e holandeses. Mostraram posição mais etnocêntrica do que os jesuítas. Intolerantes para com as crenças indígenas, afirmavam serem as danças e cantos das tribos, bem como seus costumes, obra do Diabo.

Com a expulsão dos invasores (como se os portugueses não tivessem invadido o território…), o catolicismo retoma a hegemonia. Nos séculos seguintes, tal preponderância sofre sob o padroado, o acordo entre Estado e Vaticano cujo modelo herdamos de Portugal. O poder laico do rei controla a Igreja, dá-lhe pouca liberdade. Várias medidas estatais reduzem o poder de fogo eclesiástico. No final do Império, a “soberania espiritual” era só um desejo do clero ultramontano.

Na República, são claras duas políticas contrárias à presença religiosa no ordenamento coletivo. Os seguidores de Auguste Comte, embora com forte número de militares, almejam um poder civil: “Se, no regime democrático (…), é condenada a preponderância de qualquer classe, muito maior condenação deve haver para o predomínio da espada, que tem sempre mais fáceis e melhores meios de executar abusos e prepotências”, afirmou Benjamin Constant em 1877.

Os positivistas adotam a separação de Igreja e Estado e proclamam que o segundo não deve “apoiar com a força do poder o ensino de qualquer doutrina”. Como diz João Cruz Costa, o programa positivista lançou “as bases de uma política racional para o Brasil”, a despeito de recuos táticos (com o voto positivista foi mantida a proibição do divórcio).

Entre os liberais a predominância da Igreja foi entendida como “imperialismo católico”. O Vaticano, pensavam, seria um Estado com agências no Brasil, o que traria óbices para o país soberano. O mais forte argumento liberal encontra-se na tese, como vimos acima fundamentada, de que o ensino da Igreja pregava a desigualdade civil.

Radicalizando, Saldanha Marinho denuncia o poder eclesiástico “por sua campanha infernal contra a civilização”. O programa se firmou como laico para garantir ao Estado o monopólio da imposição legal. “Medida indispensável de progresso e até de segurança pública a decretação do divórcio perpétuo da Roma eclesiástica do Brasil político” (Saldanha Marinho, citado por Maria Stella Bresciani).

Na Constituição de 1891, a primeira da República, surgem os pontos defendidos por positivistas e liberais. Na Carta se firmou a laicidade do Estado. A partir daí, vicissitudes nacionais definiram avanços e retrocessos no trato entre religião e vida pública.

Sob Getúlio Vargas ocorreu um retorno aos privilégios eclesiásticos em detrimento da laicidade, apesar dos elos getulistas com as raízes positivistas. Foi a hora em que a Igreja moveu massas humanas para garantir leis favoráveis às suas exigências. Seguindo a retomada do vínculo entre poder civil e religioso (cujos resultados marcantes foram o Tratado de Latrão com Mussolini e a Concordata com Hitler), a Igreja “consagrou” o Brasil ao Sagrado Coração de Jesus, marca da “soberania espiritual” católica. O símbolo de tal consagração é o Cristo Redentor no Rio de Janeiro.

No regime militar de 1964, a Igreja Católica, via CNBB, aprova os atos institucionais, incluindo o de número 5. Fora a minoria de bispos, padres, freiras e leigos, ela apoia o Executivo. Naquele momento, as seitas neopentecostais aumentam seu número e a quantidade de fiéis. Os protestantes, antes minoritários e perseguidos, expandem suas hostes.

Embalada desde Vargas pelas benesses do Estado, a Igreja não percebeu, sobretudo no pontificado de João Paulo 2º —personagem presente em escândalos como o Irã-Contras, apoiador de Pinochet e outros regimes absolutistas—, a concorrência que ameaçava sua hegemonia.

Hoje lideranças católicas, unidas a igrejas e movimentos evangélicos, pretendem dar ao Estado e à sociedade formas legais contra o laicismo. Os evangélicos substituem o catolicismo, agora se imaginam a nova alma do corpo estatal.

O presidente eleito deu a senha: somos um Estado cristão, não laico. Assim, o religioso retoma suas pretensões políticas sob a diretriz de seitas que não seguem com justeza a reforma, não valorizam o traço civil dos assuntos estatais. Por enquanto, notemos, os pastores são obrigados a dividir espaço com os militares de tradição católica e laica.

Assistimos à revanche do campo teológico-político contra os princípios democráticos da Reforma Protestante, do liberalismo e do programa positivista que exigiam a separação de Igreja e Estado. Os sinais de imposição religiosa nos campi e nas escolas brasileiras são evidentes, com ataques à teoria da evolução e com a defesa do criacionismo.

Mais grave é a guerra contra os direitos humanos, sobretudo os da mulher e das minorias. A acreditar nas declarações de representantes religiosos acerca de como deve ser o Estado brasileiro, à mulher se reservam os famosos três C vigentes no período mais negro da história ocidental: casa, cozinha, crianças.
Estado laico é sinônimo de poder democrático, do povo. Se ocorrer a sua morte e se forem restaurados os hierarcas (de qualquer religião), a democracia será definitivamente banida. O futuro dirá.

Roberto Romano, professor de ética e política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, é autor de “Razão de Estado e Outros Estados da Razão” (ed. Perspectiva), entre outros.

 

Bancada religiosa e baixo número de filhos desafiam Estado laico

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 LUIZ FELIPE PONDÉ Folha de São Paulo, Ilustríssima, 24 de fevereiro de 2019.

[RESUMO] Escritor identifica na atividade legislativa e na baixa taxa de natalidade verificada entre defensores do secularismo os desafios mais importantes para a manutenção do Estado laico.

O Brasil corre o risco de deixar de ser um Estado laico? E pior: passaria a ser um Estado teocrático? E pior ainda: seria o Deus brega da classe média que tomaria conta do país? Sim, porque até entre os deuses há diferenças de classes. Se for um Deus chique que combine com vinho branco gelado no verão e incenso, está valendo. Mas, se for um Deus brega de “crente”, “tô fora”. Seria essa afirmação um preconceito?

Estado laico e sociedade secular, conceitos afins, são realidades históricas; logo, podem deixar de existir, pelo menos em teoria. Tudo que é histórico é, de alguma forma, efêmero. As angústias pela fundamentação absoluta da moral brotam dessa agonia com o transitório, o relativo e o efêmero. Por isso, a questão de se o Brasil (ou qualquer outro Estado) corre o risco de deixar de ser laico pode ser sempre levantada.

A máxima de Bolsonaro, “Deus acima de todos”, é uma ameaça velada ao Estado laico no Brasil ou é pura retórica? Na democracia tudo é retórica e, por isso, tudo é para valer, já que não existe nada fora da retórica. Não acho que Bolsonaro esteja “brincando” quando fala isso, mas não acho que ele vá pegar ninguém pelo braço e jogar dentro da igreja ou proibir o ensino de Darwin (e se tentar proibir o de Marx ou qualquer outro autor, vamos berrar) nas escolas.

Pelo contrário: acho que ele fala isso porque grande parte do povo brasileiro pensa assim, mas não no sentido de abrir mão do Estado laico ou da sociedade secular; pensa assim como quem se lembra de uma antiga cantiga de ninar familiar —se bem que hoje, como não existem quase mães e avós, essa comparação que fiz pode ser incompreensível. Você não entendeu o que Estado laico e sociedade secular têm a ver com o assunto de mães e avós em extinção? Têm muito, espere um pouco e verá.

Enfim, Bolsonaro fala “Deus acima de todos” da mesma forma que pode falar “bandido bom é bandido preso” ou “vou acabar com a corrupção”. Dizer “Deus acima de todos” acalma muitas almas. Outras se acalmam com #EleNão, outras com “namastê”, outras com Viagra.

Há gradientes entre uma sociedade secular e seu irmão gêmeo, o Estado laico, e seu oposto teocrático —e o Brasil está bem longe deste oposto. Há, no entanto, nuances, e o vetor pode pender mais para um lado ou para o outro.

Um teste possível para ver se um Estado deixou, de fato, de ser laico não é se há crucifixo nas paredes ou se na Constituição daquele país se evoca Deus, mas sim se um juiz aceita o depoimento de um pastor dizendo que fulano matou a mulher porque ouviu vozes do Diabo mandando que a matasse. E a partir disso declara que fulano foi vítima de manipulação espiritual maligna.

Por outro lado, se um Estado proíbe o aborto em nome da crença de que “a vida pertence a Deus”, está dando uma atenuada na sua condição de laicidade. Entre esses dois polos, já vemos o gradiente em ação.

O chamado Estado laico (separação de religião e Estado) é fruto histórico das guerras religiosas na Europa entre católicos e protestantes. A defesa de um Estado “sem religião” decorreu do esgotamento espiritual, físico, econômico, social, político e psicológico causado por essas guerras.

O filósofo romeno Emil Cioran dizia que sua busca na vida era “tornar-se virtuoso pelo cansaço”. Essa máxima aplica-se bem ao caso. O Estado laico não foi buscado como meta —chegou como resultado do cansaço das guerras religiosas na Europa. A discussão sobre o conceito vai nascendo como fruto dessa constatação.

Os acordos conhecidos como Paz de Vestfália —que não existiu como tratado único— são identificados como a data fundante (1648), de modo simbólico, do Estado moderno, e, consequentemente, do nascimento do Estado laico. Por quê? Porque as guerras entre católicos e protestantes deram empate.

Homens, mulheres, crianças, estradas, casas, cavalos, cidades, riquezas, tudo destruído e ninguém vencia ninguém. Como consequência, decidiu-se que ninguém poderia interferir no território de outro príncipe a fim de se meter na religião ali vigente.

Para quem conhece um pouco a história, a vitória simbólica foi do protestantismo, pois este já nasceu submetido ao poder secular (não religioso, isto é, poder sobre o tempo histórico), enquanto os católicos combatiam a favor de uma Igreja Católica que sempre viveu às turras com o poder secular, caso este não aceitasse a ingerência “divina” do papa e seu clero.

Por isso os protestantes cultos, quando indagados se o movimento evangélico gostaria de destruir o Estado laico, respondem com a seguinte pergunta: “Você acha que queremos destruir nossa própria invenção?”.

Um Estado sem religião é bom para todos, porque a opinião religiosa das pessoas pode mudar —e quem mandava pode passar a vítima dos novos mandantes. A neutralidade religiosa garante a vida saudável das próprias religiões. É isso o que significa ser um religioso moderno. Religiosos ignorantes querem que o Estado se mele com religiões.

O filósofo Charles Taylor, no seu monumental “Uma Era Secular”, ensina que o processo de secularização da sociedade foi longo. Iniciado no século 15, passou pelas guerras religiosas, pelos avanços da burguesia comercial urbana e acabou por se organizar ao redor de dois vetores essenciais, que são, por si próprios, externos à política, ainda que a tenham impactado, levando a Europa à experiência laica e secular. Taylor fala de duas condições básicas de possibilidade do surgimento do Estado laico e da sociedade secular.

A primeira condição é o sucesso da técnica causado pelo avanço do método científico, baseado na experimentação empírica, a partir da “matematização” da natureza. Isso significou uma relativização, ainda que “inconsciente”, da necessidade das práticas religiosas cotidianas para resolução de problemas relacionados à saúde e ao sofrimento físico em geral.

A melhoria das condições materiais de vida, impactando as condições psicológicas e sociais, levaram a população europeia a experimentar um recuo na dependência da crença.

A segunda condição é o surgimento da organização do Estado moderno e de Direito. A melhoria da operação do Estado na lida com a organização da vida social, que dependeu do avanço técnico e científico, também implicou um recuo prático da dependência das expectativas religiosas como solução para os problemas do dia do dia no que tange a condições materiais urbanas, resolução de conflitos jurídicos, avanços na racionalização econômica —enfim, tudo que causa uma redução no sofrimento em escala social e política.

Segundo Taylor, mesmo o ateísmo orgânico —aquele ao qual a pessoa chega sem esforço de pensamento, mas por desinteresse prático numa vida religiosa— é fruto desse processo. Muitas pessoas mantiveram suas crenças, ainda que de modo atenuado.

A pergunta que deve ser feita: quem optaria pela mágica ou pela oração antes de buscar o antibiótico ou o juiz? Isso não significa que muitas pessoas não busquem ajuda de xamãs, como o ex-famoso João de Deus, mas o fato é que o médico e o juiz são os arquétipos do processo bem-sucedido de combate ao sofrimento levado a cabo pela condição laica e secular.

Agora perguntemos, os brasileiros estariam dispostos a abrir mão do médico e do juiz em favor da mágica e da oração naquilo que de fato impacta o sofrimento e a morte, por conta de uma frase de Bolsonaro ou de sua eleição? Não creio. Mas há risco de atenuação do gradiente de nuances em favor de uma religiosidade mais prática? Sim, há algum risco. Apontaria dois deles, maiores em termos de processo.

O primeiro é o uso do Legislativo para atingir hábitos e costumes. Se uma bancada religiosa prática se tornar significativa, pode haver algum risco.

No entanto, o histórico do movimento evangélico no Brasil tem sido de pragmatismo político beirando o fisiologismo (mesmo o PT, que posa de defensor do Estado laico e da sociedade secular, foi parceiro de atores políticos evangélicos) e de liberalismo popular periférico, melhorando mesmo as condições de vida de populações abaixo da classe média que perderam a “fé na política”. Talvez essas camadas a tenham recuperado na última eleição, mas isso leva tempo.

Outro impacto, também lento no seu efeito, contra o experimento laico e secular, e que não é apenas traço do Brasil —e nisso ele é mais sério, de certa forma—, é aquele ligado a mães e avós, que citei acima. Eric Kaufmann, demógrafo das religiões, publicou em 2010 um estudo comparativo, e provocativo, da fertilidade feminina entre mulheres seculares e mulheres de adesão religiosa estrita no Ocidente (em português comum, “religiosas praticantes”).

Em “Shall the Religious Inherit the Earth?” (os religiosos herdarão a Terra?), ele mostra como o experimento laico e secular pode ser duramente afetado nos próximos 50 a 100 anos pelo fato de que “os seculares têm ótimas ideias, mas os religiosos têm mais bebês”.

Os seculares defendem o darwinismo, mas quem o pratica são os religiosos, segundo Kaufmann, porque o darwinismo é, no limite, uma teoria demográfica: quem tem mais prole está mais bem adaptado —e se impõe. Resultado: a sociedade secular e o Estado laico podem sofrer sérias baixas, simplesmente, pelo fato de que os seculares preferem cachorros, um filho só (quando muito), bikes e mídia social.

À medida que as mulheres optam por papéis sociais que não a maternidade, “bebês seculares” deixam de nascer. A Europa agoniza de pânico diante desse risco. A solução é “atacar” os muitos jovens que vivem em famílias de adesão estrita e “convertê-los” à vida secular. O ciclo, porém, tende a se repetir. Cachorros e bikes não sustentarão o Estado laico nem a sociedade secular.

Luiz Felipe Pondé, colunista da Folha, escritor e ensaísta, é autor de “Os Dez Mandamentos (+ Um)” e “Marketing Existencial”, ambos da Três Estrelas. É doutor em filosofia pela USP.

 

 

Só a retomada salva o País

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José Luís Oreiro – Valor Econômico, 22 de fevereiro de 2019.

A sociedade brasileira passa por uma profunda crise econômica, política e social desde 2013. As manifestações de 2013 foram o evento catalizador de um processo de crescente descrédito na classe política e, posteriormente, de outras instituições da República.

A insatisfação de parte expressiva da população com a performance dos políticos, em particular, e do Estado, em geral, foi incrementada pelos efeitos deletérios da recessão iniciada no segundo trimestre de 2014 – que foi detonada por um colapso do investimento do setor privado, que se contraiu por três trimestres consecutivos, a taxa de 10% por trimestre. Isso resultou de um processo de “profit squeeze”, ou seja, queda das margens de lucro e da taxa de retorno sobre o capital próprio das empresas não financeiras, a qual se tornou na mais duradoura e profunda crise econômica do Brasil nos últimos 30 anos. No auge da crise, mais de 14 milhões de brasileiros estavam desempregados e o PIB apresentou retração superior a 8% em termos reais, com destruição de riqueza de R$ 600 bilhões.

A recessão acelerou o desequilíbrio fiscal da União e dos entes subnacionais, muitos dos quais passaram a enfrentar dificuldades crescentes para manter o pagamento dos servidores em dia. A deterioração crescente do resultado primário da União a partir de 2014 gerou um crescimento acelerado da dívida pública como proporção do PIB, colocando o endividamento da União em trajetória claramente insustentável. A perda de espaço fiscal decorrente desses desdobramentos impediu a realização de uma política fiscal anticíclica justamente no momento em que a mesma era mais necessária. Pelo contrário, a política fiscal executada em 2015 foi francamente contracionista, amplificando assim os efeitos da recessão iniciada em 2014.

Outro fator que amplificou os efeitos recessivos do colapso do investimento privado foi a elevação da taxa básica de juros promovida pelo Banco Central em 2015, na tentativa de debelar os efeitos de segunda ordem que o aumento das tarifas dos públicas e dos combustíveis poderiam ter sobre a dinâmica da taxa de inflação.

O desemprego crescente aguçou a percepção de que a crise brasileira era o resultado da corrupção generalizada dentro do Estado, tal como estava sendo revelado ao público pela Lava-Jato. Essa percepção acabou por gerar um sentimento difuso de “ódio” à classe política, principalmente aos políticos diretamente ligados ao PT.

O imenso apoio popular ao impeachment da presidente Dilma Rousseff foi a demonstração clara de que, na cabeça do cidadão mediano, a crise era resultado direto da corrupção dirigida e organizada pelo PT e seus aliados. Nesse contexto, uma ampla parcela da população acreditava que o afastamento do PT do poder, pelo impeachment, cujas bases jurídicas eram duvidosas, seria uma condição necessária, quando não suficiente, para o fim da corrupção e para a retomada do crescimento econômico.

Os primeiros meses do governo Michel Temer pareciam apontar para uma retomada robusta do crescimento no início de 2017, ainda que poucas pessoas acreditassem na vontade do governo de combater a corrupção.

O governo Temer apresentou à sociedade brasileira uma narrativa essencialmente ortodoxa das causas da crise de 2014 a 2016. O problema fundamental era o desequilíbrio fiscal estrutural, resultado do “contrato social” estabelecido pela Constituição de 1988. Segundo economistas ligados ao governo, a Constituição havia produzido um conjunto de benefícios sociais para os mais pobres e de privilégios para os funcionários públicos que impunham um ritmo para o crescimento dos gastos públicos (entre 5 a 6% ao ano em termos reais) que era muito superior à capacidade de crescimento da economia.

Durante um certo período foi possível acomodar esse aumento dos gastos com o aumento da carga tributária. Contudo, a partir de 2011, a receita passou a crescer mais ou menos em linha com o PIB de tal forma que a deterioração do resultado primário da União tornou-se inevitável. Essa deterioração teria sido “mascarada” pelas “pedaladas fiscais” e outros artifícios de “contabilidade criativa”; mas, a partir de 2014, ficou impossível encobrir a verdade nua e crua de que o governo não era mais capaz de gerar superávits primários e que, portanto, a dívida pública entraria em trajetória explosiva. O desequilíbrio fiscal crescente acabou por gerar perda de confiança dos empresários no governo, o que se refletiu em elevação do prêmio de risco país, desvalorização da taxa de câmbio, queda dos preços das ações e elevação dos juros futuros. Esse quadro levou a uma queda dos gastos de investimento e de consumo, fazendo com que o país entrasse na pior recessão dos últimos 30 anos.

Face a essa narrativa, a solução para a crise era muito clara: o governo precisava fazer um ajuste fiscal estrutural, cujo foco deveria ser a redução do ritmo de crescimento das despesas. Para tanto, foi desenhada uma estratégia em duas etapas. Na primeira, o governo enviou para o Congresso uma PEC criando um teto de gastos para o governo federal. Esse teto não seria a solução do problema fiscal, mas apenas uma espécie de mecanismo que explicitaria o conflito distributivo existente dentro do orçamento. A ideia era congelar os gastos primários da União em termos reais por dez anos, ao final dos quais poderia ser modificado o indexador dos gastos públicos, que havia sido definido como a variação do IPCA no período inicial de vigência do teto.

O problema é que todos os itens das despesas obrigatórias (aposentadorias, pensões, salários do funcionalismo público, gastos com saúde e educação) apresentaram nos últimos 20 anos uma taxa de crescimento muito acima da variação do IPCA. Dessa forma, se nada fosse feito para reduzir o ritmo de crescimento desses gastos, o cumprimento da regra do teto obrigaria a administração federal a reduzir progressivamente os gastos discricionários, que incluem gastos com o investimento em infraestrutura, com o reaparelhamento das Forças Armadas e com a manutenção de instalações do governo federal.

Como é impossível manter o funcionamento da máquina pública federal sem a realização de um valor mínimo de gastos discricionários, segue-se que a ameaça de “shutdown” obrigaria o Congresso a realizar aquilo que foi denominado de “a mãe de todas as reformas”, a reforma da Previdência. Uma vez aprovada uma “boa” reforma, o desequilíbrio fiscal estrutural seria eliminado, e o teto dos gastos poderia, eventualmente, ser abolido. Nessas condições, o Brasil poderia retomar o crescimento em bases sustentáveis, pois se produziria uma “contração fiscal expansionista”, ou seja, o ajuste das contas públicas levaria automaticamente a um aumento do investimento e do consumo do setor privado.

A PEC do teto dos gastos foi aprovada no final de 2016 e tudo apontava para a aprovação de uma reforma da Previdência em 2017. As condições financeiras da economia brasileira (risco país, taxa de câmbio, juros futuros e índice Bovespa) apresentavam nítidos sinais de melhora no primeiro trimestre de 2017. A melhoria das condições financeiras ocorrida a partir do segundo semestre de 2016 permitiu ao BC iniciar um processo “lento, gradual e seguro” de redução da taxa de juros, o qual deveria, em algum momento, estimular o crescimento.

Mas no meio do caminho havia uma pedra, e essa pedra foi o escândalo da gravação das conversas, por assim dizer, pouco republicanas, entre o presidente da República e Joesley Batista, da JBS. A divulgação desses áudios produziu uma crise política de proporções gigantescas, obrigando o presidente a gastar todo o seu capital político e otras cositas más na tentativa de angariar apoio político para o seu governo e impedir um novo processo de impeachment. No fim do ano de 2017 já estava claro que a reforma da Previdência não teria condições políticas de ser aprovada durante o governo Temer.

Surpreendentemente os mercados financeiros não desabaram com o adiamento da reforma da Previdência. Índices de condições financeiras continuaram relativamente bem-comportados ao longo do segundo semestre de 2017 e no primeiro trimestre de 2018. Apesar disso, o crescimento foi decepcionante em 2017. O PIB apresentou expansão de 1,1% em termos reais, após dois anos de queda acentuada. No fim de 2017, a economia ainda se encontrava 6% abaixo do nível observado em 2013. E o pior, o desemprego superava 13 milhões de pessoas. A produção industrial encontrava-se ao nível de 2004, recuo de mais de 10 anos.

O ano de 2018 se inicia com grandes expectativas de aceleração do crescimento. O ministro da Fazenda esperava um crescimento entre 2,5% a 3%. Se essas expectativas se confirmassem, a taxa de desemprego poderia fechar o ano em torno de 10% da força de trabalho, gerando um saldo de 2 a 3 milhões de novos empregos. Nesse cenário róseo, o candidato à Presidência da República que encarnasse a continuidade da política econômica do governo Temer seria praticamente imbatível nas eleições de outubro.

Mas o otimismo de Henrique Meirelles mostrou-se sem fundamento. No primeiro semestre de 2018 a atividade mostrava sinais de recuperação muito lenta, embora a grande recessão tivesse oficialmente terminado no fim de 2016. A implantação do teto dos gastos pode ter até ancorado as expectativas dos agentes do mercado financeiro, contribuindo assim para a relativa estabilidade dos índices de condições financeiras; contudo, o seu cumprimento estava impondo redução sem precedentes, nos últimos 15 anos, dos gastos com investimento público.

A contração do investimento público – justamente o componente da despesa primária que possui o maior efeito multiplicador – atuou como mecanismo de desestímulo à demanda agregada, numa economia que estava operando com nível absurdamente elevado, para seus padrões históricos, de ociosidade da capacidade produtiva. A greve dos caminhoneiros, a crise econômica na Turquia e Argentina e a indefinição do quadro eleitoral contribuíram para aumentar a incerteza reinante entre agentes econômicos, que se expressou numa deterioração significativa do índice de condições financeiras ao longo do segundo semestre de 2018. Como resultado desses desdobramentos, o ritmo de recuperação da atividade econômica desacelerou e a economia deve ter fechado o ano passado com um crescimento em torno de 1%.

O quadro econômico desolador combinado com a constatação de que a corrupção na máquina pública não estava restrita ao PT levou uma ampla parcela da população a acreditar que os problemas só seriam resolvidos por um outsider da política tradicional. A maioria dos eleitores identificou em Jair Bolsonaro a pessoa que encarnava o anti-establishment.

Mas será que o governo Bolsonaro poderá atender ao desejo de mudança, ou melhor, será que o novo governo poderá recolocar o Brasil na trajetória de desenvolvimento?

Bolsonaro, influenciado pelo czar da economia, Paulo Guedes, parece acreditar que a reforma da Previdência, combinada com um programa ambicioso de privatizações, irá fazer o país sair daquilo que o próprio Guedes chamou de “armadilha de baixo crescimento”. Não é a primeira vez que se propõe uma ampla agenda de privatizações como solução para os problemas nacionais. Essa agenda foi extensamente adotada nos governos Collor e FHC.

A taxa média de crescimento no período 1990-2002 foi inferior a 2,5%, mesmo se expurgarmos os dois primeiros anos do governo Collor, quando a economia entrou em recessão devido ao “confisco das poupanças”. Também não é a primeira vez que se diz que um ajuste fiscal é fundamental para a retomada do desenvolvimento. Ajustes fiscais foram feitos em 1994-1995; 1999-2000, 2003-2004, 2011, 2015, 2016-2018. Nesses casos, apenas um deles, o período 2003-2004, foi seguido por um período de aceleração significativa e razoavelmente duradoura do crescimento. Nesse caso, a contração fiscal se mostrou expansionista devido ao espetacular aumento das exportações de manufaturados ocorrida no período 2002-2004, decorrente da enorme desvalorização da taxa de câmbio ocorrida em 2002. Em todos os demais casos, ou não houve aceleração do crescimento, ou a aceleração foi pequena e curta ou ocorreu queda do nível de atividade econômica. Em suma, o ajuste fiscal pode ser necessário para evitar um desastre, mas não é nem de perto condição suficiente para a retomada do crescimento.

Esta requer o atendimento de duas condições. No curto prazo é necessária expansão da demanda agregada para que se possa eliminar a ociosidade na capacidade produtiva e para dar emprego digno a mais de 12 milhões de brasileiros. Essa expansão da demanda agregada não poderá vir do investimento, devido à enorme ociosidade da capacidade produtiva e nem do consumo das famílias, devido ao nível elevado de desemprego. O desequilíbrio fiscal também impede uma expansão significativa do investimento público.

A expansão da demanda agregada só pode advir de um forte crescimento das exportações, principalmente das exportações de produtos manufaturados, o que requer taxa real de câmbio estável e competitiva. No médio e longo prazos, contudo, o crescimento só será sustentável se for acompanhado por aumento da produtividade. Ao contrário do que pregam economistas liberais que acham que a produtividade é uma característica embutida nos trabalhadores por intermédio da educação, a boa teoria econômica e a experiência internacional mostram que a produtividade é uma variável cujo comportamento é regido por uma série de fatores, sendo a educação apenas um entre vários.

A produtividade é afetada pela quantidade e a diversificação do conhecimento técnico e científico que está embutido nas pessoas (capital humano), nas máquinas e equipamentos (capital físico), na capacidade das pessoas em se conectarem e assim trocar informações (capital social). Dessa forma, aquilo que uma economia produz e exporta revela a sofisticação ou complexidade das suas capacitações produtivas. A estrutura produtiva importa para o crescimento econômico.

Tendo em vista esse entendimento sobre as causas da produtividade, a retomada do desenvolvimento exige que o Brasil reinicie o processo de “catching-up” industrial e tecnológico interrompido na década de 1980. Um elemento essencial dessa retomada será a reindustrialização, ou seja, o crescimento da participação do valor adicionado da indústria no PIB e do emprego industrial no emprego total. Esse processo irá demandar uma mudança no regime macroeconômico, de forma a manter a taxa de câmbio em níveis competitivos internacionalmente, a exemplo do que foi adotado, de forma bem-sucedida, nos países do Leste Asiático; como também a adoção de uma política industrial que permita aumentar a complexidade tecnológica da pauta de exportações do Brasil. A exemplo do que é feito nos Estados Unidos, Japão, China, e países da Europa Ocidental, o desenvolvimento de um complexo industrial militar no Brasil, puxado por gastos necessários para o reaparelhamento das Forças Armadas, atualmente em grau acentuado de sucateamento, pode ser um dos eixos dessa política.

Se o governo Bolsonaro não trilhar esse caminho e insistir apenas na agenda privatização-reforma da Previdência, então a economia continuará trilhando trajetória de baixo crescimento, provavelmente em torno de 2% ao ano. Esse ritmo será insuficiente para gerar empregos na quantidade suficiente para absorver a enorme massa de desempregados, bem como os brasileiros que ingressam todos os anos no mercado de trabalho. A força de trabalho cresce atualmente 1% ao ano, o que significa que, para manter a taxa de desemprego estável ao longo do tempo, é necessário criar, pelo menos, 1 milhão de postos de trabalho por ano. Considerando crescimento da produtividade de 1% ao ano (o que destrói postos de trabalho na velocidade de 1 milhão de empregos por ano) no cenário no qual não ocorre a mudança estrutural descrita, uma taxa de crescimento de 2% ao ano irá criar postos de trabalho apenas na magnitude necessária para manter o desemprego indefinidamente acima de 10 % da força de trabalho.

Dada a pequena duração do seguro-desemprego e a baixa densidade da rede de proteção social, é pouco provável que a permanência da taxa de desemprego em patamares tão elevados por um período tão longo de tempo seja social e politicamente sustentável. Nesse cenário a desordem social poderá aumentar rapidamente. Além disso, o crescimento econômico anêmico irá agudizar a crise fiscal dos Estados, podendo, inclusive, fortalecer movimentos separatistas no Sul, haja vista que, para parte significativa da população desses Estados, a sua crise fiscal resulta do fato de que (sic) “o Sul tem que sustentar os vagabundos do Nordeste com o Bolsa Família”.

O exemplo recente da tentativa de secessão na Catalunha – resultado dos efeitos da crise econômica de 2008-2012 – mostra que o risco de movimento separatista no Brasil não pode ser subestimado. Daqui se segue, portanto, que ou o governo Bolsonaro coloca o Brasil na rota do desenvolvimento econômico – o que implica em mudança estrutural e catching-up com respeito aos países ricos – ou o clima de insatisfação social reinante culmine numa crescente desordem, podendo levar, no limite, à guerra civil.

José Luis Oreiro é professor associado do Departamento de Economia da Universidade de Brasília, Pesquisador Nível IB do CNPq

 

A técnica na sofisticada marcha da humanidade em direção ao precipício

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Modelo de desenvolvimento conduz a sacrifício da vida e destruição da natureza, escreve autor

Márcio Seligmann-Silva – Folha de São Paulo – Ilustríssima 17 de fevereiro de 2019.

[RESUMO] Antigo meio para garantir a sobrevivência da humanidade, a técnica, argumenta o autor, acoplou-se a um modelo de desenvolvimento que passou a ter por fim o sacrifício da vida e a destruição da natureza.

De certo modo, a história da técnica se confunde com a história da humanidade. Tornamo-nos humanos na medida em que nos separamos da natureza: ao menos esse é o nosso mito originário “ocidental”. Prometeu presenteou a humanidade com o fogo, ou seja, com o saber técnico, e foi castigado por isso. Zeus não o perdoou por tornar os humanos inteligentes como os deuses.

Já em outro veio poderoso dessa tradição, no Antigo Testamento, quando, no Gênesis, Deus nos expulsou do Paraíso, condenou-nos ao trabalho duro e a suar para podermos garantir o nosso sustento. Segundo o relato, Ele nos deu vestes, os primeiros produtos de uma técnica ainda divina. O homem trabalhador é o homem que vai depender cada vez mais de técnicas.

Por outro lado, é notório que desde o início do século 19, com a Revolução Industrial, a técnica sofreu uma abrupta mudança em sua natureza. De meio de garantir a sobrevivência humana na face da Terra, ela foi acoplada a um projeto capitalista que em pouco tempo —200 anos diante dos mais de 5 bilhões de anos da Terra e de dezenas de milênios de existência do que podemos chamar de humanidade— transformou o planeta a tal ponto que ele não só está irreconhecível, como à beira de um colapso.

Desde seu nascimento, essa técnica moderna dividiu as opiniões entre entusiastas e críticos. Dentre estes últimos, havia tanto uma corrente conservadora como uma de tendência transformadora, que percebia na técnica capitalista apenas uma perversão dos verdadeiros e revolucionários potenciais da técnica.

Na primeira categoria, Goethe, em 1825, ou seja, de dentro de uma Alemanha ainda fragmentada em pequenos Estados e predominantemente agrícola, queixava-se em carta a seu amigo Zelter: “Riqueza e rapidez, eis o que o mundo admira e o que todo o mundo quer. Ferrovias, correio expresso, navios a vapor, e todas as possíveis facilidades de comunicação são as coisas que o mundo culto deseja a fim de se sofisticar e assim permanecer na mediocridade”. Incrível a atualidade dessas palavras, de quase 200 atrás.

No final de sua obra máxima, o “Fausto”, Goethe imagina justamente esse moderno homem empreendedor, desapropriando e atropelando os mais frágeis economicamente para abrir terreno para a agricultura, conquistando terras à água por meio de um dique. Ele não deixa, porém, de destacar o tema da arrogância dessa empreitada e do seu risco: “Cá dentro é um paraíso a terra nossa;/ Que suba lá fora a maré furiosa/ E se, violenta, tentar abrir brecha,/ Em comum esforço acorre o povo e a fecha”.

O capitalismo e sua técnica já eram vistos pelo velho Goethe, portanto, como ambíguos portadores de belas invenções e de altos riscos. Represas estavam na origem da riqueza e do terror. Também aqui encontramos uma macabra contemporaneidade. Diques e represas são marcos decisivos na história da técnica, símbolos da domesticação da natureza e de sua força.

Pouco mais de um século depois, Walter Benjamin, que admirava e citava essas passagens de Goethe mencionadas aqui, lapidou a máxima nas suas famosas teses “Sobre o Conceito da História”, de 1939: “Nunca houve um documento da cultura que não fosse simultaneamente um documento da barbárie”.

Não há, portanto, nenhum motivo para que nos surpreendamos diante das catástrofes tecnológicas: elas fazem parte do programa e, devido à rápida velocidade do avanço da técnica predatória, devem ser cada vez mais aniquiladoras e frequentes. A menos, é claro, que a humanidade —ou aqueles que decidem por ela— desperte para a necessidade de puxar um freio nesse percurso em direção ao abismo.

Para Benjamin, essa técnica moderna, que denominou de “primeira técnica”, tem como fim o sacrifício da vida, a destruição, o controle e a dominação da natureza que leva à sua asfixia. A vanguarda dessa técnica, não por acaso, é a indústria armamentista. Ela leva a uma política da morte, tanatopolítica, à nossa autoaniquilação. Nas palavras de Benjamin: “Para que falar de progresso a um mundo que afunda na rigidez cadavérica? (…) Deve-se fundar o conceito de progresso na ideia da catástrofe”.

Nessa mencionada linhagem de crítica positiva, ele sonhou com uma “segunda técnica”, emancipadora, calcada em um jogo com a natureza e que nos libertaria das penas do trabalho. Em sua visão, a fotografia e o cinema seriam os exemplos principais: duas técnicas que alargam o nosso campo de ação, nos empoderam, ao invés de destruírem as naturezas interna (tornando o homem alienado) e externa (acabando com a nossa “casa”): “A técnica não é dominação da natureza: é dominação da relação entre natureza e humanidade”.

Benjamin criticou o conceito utilitarista da social-democracia de um Josef Dietzgen, que via no trabalho apenas um meio de conquista e submissão da natureza: “Já estão visíveis, nessa concepção, os traços tecnocráticos que mais tarde vão aflorar no fascismo”.

Ou seja, essa concepção capitalista (e mesmo a social-democrata) do trabalho associa-se à “primeira técnica” e tem a sua figura máxima no fascismo. Esse raciocínio de Benjamin também se revela acurado e profético. Como anotou em 1948 Robert Antelme, que lutou na resistência à ocupação nazista na França: “Quando o pobre torna-se proletário, o rico torna-se SS”.

Aparentemente, a marcha incontornável da humanidade em direção ao precipício (em regimes capitalistas puros, nos de capitalismo de Estado e nos que tentaram, de modo infeliz, a ditadura dos partidos comunistas) não pode ser alterada sem um levante de uma população que, lamentavelmente, parece cada vez mais fascinada pelo mundo da técnica e dos gadgets.

Como no mito dos lemingues que se suicidam no mar, nossa espécie supostamente racional faria algo semelhante por meios mais “sofisticados”. Benjamin, novamente, criticando o modelo de progresso incorporado inclusive pelo marxismo, anotou: “Marx afirma que as revoluções são as locomotivas da história do mundo. Mas talvez isso seja totalmente diferente. Talvez as revoluções sejam o freio de emergência da humanidade que viaja neste trem”. Se não soubermos responder ao Kairós, ao tempo oportuno, para ceder a esse reflexo de puxar o freio, poderá ser tarde demais.

A chamada “força do mercado”, esse “quarto poder” que efetivamente manda e desmanda no mundo, está calcada nesse modelo de técnica predadora sem o qual as indústrias (e suas ações no mercado) não existiriam. O capitalismo se alimenta da Terra, mas desconsidera que esta mesma Terra é finita e está sendo exaurida.

O filósofo Hans Jonas dedicou os últimos anos de sua longa vida (1903-1993) à construção de uma nova ética da responsabilidade à altura desses desafios contemporâneos. Ele afirmava que “não temos o direito de hipotecar a existência das gerações futuras por conta de nosso comodismo” e propôs uma virada.

Ao invés de construir um modelo calcado no presente, com o objetivo do viver bem e da felicidade conectados ao aqui e agora, estabeleceu o desafio de construir uma ética do futuro: da destruição da casa-Terra, ele deduz o imperativo de salvar essa morada para garantir a possibilidade de vida futura.

Em vez de apostar no modelo liberal do progresso infinito a qualquer custo ou de acreditar na promessa revolucionária que traria de um golpe o “paraíso sobre a Terra”, ele aposta em um “summum bonum” moderado, modesto, o único possível para a nossa sobrevivência. Fala de um “princípio de moderação”, reconhecendo que a conta deveria ser paga pelos que mais possuem.

Hoje, podemos dizer que esse futuro que ele desenhava, ou seja, esse tempo já sem muito tempo de sobrevida, tornou-se o nosso tempo. Sua “heurística do medo” —a saber, uma pedagogia da humanidade que se transformaria a partir do confronto com a visão medonha de seu fim muito próximo— soa ainda poderosa, mas um tanto inocente, mesmo reconhecendo que suas ideias influenciaram protocolos como o Acordo de Paris, de 2015.

Observando a sequência de crimes socioambientais, parece que essa heurística não está rendendo frutos. Não aprendemos com as catástrofes, e isso nos levará, caso não alteremos nosso curso, à catástrofe final. Ou seja, a emoção do medo do Armagedom está sendo vencida pela razão instrumental e sua promessa (distópica) de transformar a natureza em mercadoria.

A questão é: quem vai estar aqui para consumir quando apenas 50 bilionários tiverem a mesma riqueza que 6 bilhões de habitantes da Terra e, pior, quando a Terra estiver chapinhando no cafarnaum a que nos leva esse modelo de progresso?

Diretora da Oxfam Internacional, Winnie Byanyima tem repetido que os 26 bilionários mais ricos do mundo possuem o mesmo que os 3,8 bilhões de habitantes mais pobres dessa bola azul. A entropia ecológica e a social caminham de mãos dadas e devem ser combatidas juntas.

Um lamentável e terrível exemplo da situação em que nos encontramos em termos dessa submissão a um determinado modelo liberal associado a uma técnica espoliadora e destrutiva é justamente o que acaba de ocorrer com o rompimento da barragem da empresa Vale em Brumadinho (MG).

Apenas a arrogância fáustica, a hybris que cega, o sentimento de onipotência pode justificar que essa barragem (como tantas outras) tenha sido construída logo acima de uma área urbana e das instalações dos funcionários da empresa. Novamente a situação de risco associada a esse tipo de tecnologia ficou exposta. Os alarmes que não soaram reproduzem o silêncio da humanidade diante das repetidas manifestações da violência da técnica.

O cerne do capitalismo é o lucro e isso explica, nesse caso e em outros, tudo de modo simples e direto. O crime de Brumadinho deve ultrapassar 300 vítimas fatais diretas, fora a destruição de toda uma região habitada também por pescadores, ribeirinhos e indígenas pataxó que dependiam diretamente do rio Paraopeba para a sua sobrevivência. Se pensarmos nos inúmeros atingidos, apenas no Brasil, por barragens (de mineradoras e de hidroelétricas), fica claro que não se trata apenas de uma questão de “barragem a montante”.

O caso dos índios juruna da Volta Grande do Xingu é paradigmático: essa população que vivia (apesar das pressões do agronegócio e da proximidade da rodovia Transamazônica) em harmonia com o seu meio e de modo feliz viu o seu rio —fonte de sua vida, água, alimentos, transporte, rituais, lazer etc.— baixar a um nível que a transformou, da noite para o dia, em uma população empobrecida e dependente de ajuda.

Detalhe: a queda do nível do rio foi decorrência da instalação e do funcionamento, desde 2015, a poucos quilômetros de sua aldeia, da hidrelétrica de Belo Monte, a terceira maior do mundo.

Esse fato possibilitou que uma mineradora canadense, a gigante Belo Sun, tente agora implementar na mesma região o que será a maior mineração de ouro a céu aberto do Brasil, com direito a uma barragem de rejeito ao lado do rio Xingu. Sintomaticamente, uma grande operação técnica abre caminho para outra.

O ISA (Instituto Socioambiental) tem alertado em muitas ocasiões que, das 63 espécies endêmicas de peixes conhecidas da bacia do rio Xingu, 26 podem ser encontradas apenas na Volta Grande. Com apenas 20% da vazão, elas e uma riqueza de animais e plantas incalculável estão sob risco, para não dizer condenadas à extinção.

O atual modelo de política deste governo, aplicado aos indígenas, implica uma continuidade da ideologia colonial que via no Brasil e na sua população autóctone mera fonte de obtenção de riqueza: a terra é reduzida à categoria de commodity e os habitantes são reduzidos a trabalho escravo ou mal remunerado e (eventualmente) a consumidores de produtos baratos.

A negação da diferença, a anulação do “outro”, a ideia de que “o índio quer vir para a cidade, quer trabalhar e ter seu carro” significam uma continuação do genocídio indígena.

Durante a ditadura militar (1964-1985), esse mesmo tipo de ideologia era propagada. A partir da Doutrina de Segurança Nacional, baseada na ideia de integridade do território e do povo e de proteção contra as ameaças e agressões —base que, portanto, influencia bastante o governo hoje—, a população indígena era vista como “estrangeira” que deveria ou ser forçada a abandonar a sua cultura (produzindo o etnicídio) ou ser exterminada (perpetrando o genocídio).

A princípio, concebia-se a região amazônica como deserta de pessoas, ou seja, negava-se a existência de uma pungente e riquíssima cultura plural, milenar e exemplar. O Estatuto do Índio (lei nº 6.001/1973) permitiu a exploração de madeira em terras indígenas bem como a remoção de suas populações para liberar áreas para a mineração ou outras obras públicas.

Vários e abalizados estudos mostram que as terras indígenas são as mais capazes de preservar a natureza. Essa preservação vai no sentido oposto ao da entropia a que leva nosso atual modelo econômico-tecnológico. Os indígenas são, como mostrou recentemente a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha em um artigo na revista piauí (“Povos da megadiversidade”), portadores da diversidade que está no cerne do seu mundo.

No Brasil existem 305 etnias que falam ao todo 274 línguas —que país no mundo possui riqueza cultural igual? São responsáveis pelas “terras pretas”, locais de fantástica fertilidade, herança de milênios de práticas técnicas indígenas, e pela agrodiversidade, sem a qual não pode haver segurança alimentar, deixando a humanidade à mercê de pragas e da fome.

Cito a antropóloga: “No Alto Rio Negro há mais de cem variedades de mandioca; nos caiapós, 56 variedades de batata-doce; nos canelas, 52 de favas; nos kawaiwetes, 27 de amendoim; nos wajãpis, 17 de algodão; nos baniuas, 78 de pimento”. Já o agronegócio com suas monoculturas, como se sabe, via “primeira técnica”, tende a reduzir a biodiversidade a um mínimo.

Voltando ao modelo da “segunda técnica”, podemos dizer que também as técnicas indígenas são lúdicas e visam não uma dominação da natureza, mas um jogar com ela. Na cosmovisão indígena não existe esse traçado entre natureza e cultura, mas, antes, uma série de transformações e mutações que conectam deuses, humanos, animais, vegetais e minerais. Não há espaço em seu panteão para um deus Prometeu da técnica na forma de profeta do deus capital.

A artista mineira Lais Myrrha transmitiu essa ideia de modo muito delicado e preciso em seu trabalho “Dois Pesos e Duas Medidas”, que ocupava o vão central da Bienal de São Paulo de 2016. Essa obra consiste em dois enormes pilares em forma de totens: um construído com material presente nas construções indígenas (barro, palha, cipó, madeira) e outro com técnica “ocidental” de alvenaria (tijolo, cimento, ferragens, PVC, vidro).

O título é importantíssimo, como costuma acontecer em obras conceituais: por que desprezamos a tecnologia indígena, que dura já milênios e nunca destruiu de modo irreversível um centímetro da Terra, e, por outro lado, veneramos a nossa técnica prometeica ocidental, que em 200 anos praticamente asfixiou a Terra, mudou seu clima e instaurou uma nova era geológica, o Antropoceno?

Hans Jonas notou que o sonho da civilização, ou seja, de domesticação da natureza, nascera do medo dessa mesma natureza e da ideia de sua conquista como um ato heroico. Hoje as coisas estão invertidas. Nós somos o perigo para a natureza. As marés que nos destroem (de água ou de lama) são respostas dessa natureza ferida.

Como escreve Jonas: “A euforia do sonho fáustico se dissipou e nós despertamos sob a luz diurna e fria do medo”. A resposta a esse medo, no entanto, não deve ser o pânico, mas a ativação de uma nova ética que inclui pela primeira vez a natureza e não se limita a ser apenas intersubjetiva.

Afinal, o ser humano é, antes de mais nada, capaz de responder pelos seus atos. Se somos essencialmente seres capazes de assumir responsabilidade, aparentemente uma parte de nossa humanidade está sendo negada quando crimes socioambientais —ou seja, contra a população e a natureza— como esses ocorridos no Brasil são assimilados sem que ninguém seja responsabilizado.

Temos que reestabelecer a lei da multiplicidade que até hoje garantiu a reprodução da vida sobre a Terra. Os perigos da (primeira) técnica não podem ser ocultados sob a luz brilhante do fascínio por suas conquistas.

Entenda-se: não se trata de uma cruzada obscurantista contra a técnica, muito menos contra as ciências, muito pelo contrário. A própria ciência de ponta aporta os dados incontornáveis quanto à necessidade de mudarmos de rumo. Temos poder demais, não de menos —e, por outro lado, também temos a liberdade de escolher um novo rumo. Ou pelo menos: temos a liberdade de poder lutar por essa liberdade.

A responsabilidade não poderia existir sem o “a priori” da liberdade. O poder tecnológico pode ser transformado em potência que nos permitirá frear nossa “locomotiva”, evitando outras Bhopal, Chernobyl, Fukushima, Samarco, Vale, o césio 137 em Goiânia, o derrame de óleo do Exxon Valdez, o aquecimento global etc.

No entanto, a dificuldade da ética do futuro, proposta por Hans Jonas, é que a compaixão se dá com relação aos que estão próximos. O filósofo afirma: “A caridade começa em casa”. Exigir compaixão para com os pósteros demanda um nível de abstração e de altruísmo raros. Daí ser mais efetiva uma heurística do medo voltada para os perigos do presente e que inscreva a história das nossas catástrofes, em oposição a uma falsa história triunfal autocomplacente.

Um amigo e contemporâneo de Hans Jonas, Günther Anders (o primeiro marido de Hannah Arendt e primo de Walter Benjamin), pensou de modo claro essa necessidade de termos diante dos olhos as catástrofes do passado e do presente, como meio de uma educação moral da humanidade.

Ele afirmava que é necessário, seguindo-se um imperativo da memória, dar-se uma “nota de eternidade” a cada choque. Anders tinha consciência de que vivemos em um estado de emergência no que tange a nosso (des)equilíbrio ecológico, que exige atitudes firmes.

Concluo citando as generosas palavras que compõem o último trecho do poderoso relato que Davi Kopenawa fez ao antropólogo Bruce Albert, publicado no livro que precisamente leva o título de “A Queda do Céu – Palavras de um Xamã Yanomami”: “Os xapiri [espíritos] se esforçam para defender os brancos tanto quanto a nós. Se o sol escurecer e a terra ficar toda alagada, eles não vão poder mais ficar empoleirados em seus prédios nem correr no peito do céu sentados em seus aviões! Se Omoari, o ser do tempo seco, se instalar de vez perto deles, eles só terão fios de água para beber e assim vão morrer de sede. É bem possível que isso aconteça mesmo! No entanto, os xapiri continuam lutando com valentia para nos defender a todos, por mais numerosos que sejamos. Fazem isso porque os humanos lhes parecem sós e desamparados. Nós somos mortais e essa fraqueza lhes causa pesar”.

Ao invés da autoimagem arrogante do “homo faber” prometeico e poderoso, que levou a um modelo de desenvolvimento que privilegia a poucos e destrói o chão em que vivemos, essa figura de nossa fragilidade me parece muito mais empoderadora para enfrentarmos os enormes desafios que temos diante de nós.

Ela poderá estar na base de um “princípio de moderação” que seria capaz de nos garantir uma maior sobrevivência sobre esta esfera azul e, sobretudo, um “viver em comum” mais ético.

Márcio Seligmann-Silva é professor titular de teoria literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp.