Auto-obsessão: quando somos os nossos próprios algozes.

A Doutrina dos Espíritos nos trouxe grandes instrumentos de reflexão e melhorias íntimas, mostrando-nos os equívocos que cometendo e nos auxiliando na construção de uma estrada mais consistente e estruturada para alcançarmos nosso progresso interior, somos frutos de nossas escolhas e de nossas experiências, nestas caminhadas caímos e nos levantamos sempre em busca de um progresso que, mesmo nos parecendo distante, será alcançado por todos num determinado momento, uns mais rapidamente enquanto outros demandarão mais tempo, mas todos vamos encontrá-lo.

O Espiritismo nos trouxe informações preciosas da vida e da existência de um mundo depois da morte física, mostrou-nos ainda, que a morte não existe e que estamos, neste mundo e no outro, num grande processo evolutivo, a evolução não dá saltos, quando deixamos o mundo material não nos tornamos melhores e mais conscientes, alguns espíritos mais conscientes e maduros até conseguem enxergar mais nitidamente, mas a grande maioria dos indivíduos mourejam na obscuridade e na ignorância.

A Doutrina dos espíritos nos revelou ainda, a existência de obsessores e perseguições espirituais, entidades que muitas vezes se deixam dominar pelos rancores e ressentimentos, cultivando sentimentos inferiores e os deixando se transformar em ódio, diante destes sentimentos, muitas entidades perseguem outros irmãos, buscando vinganças e revanches, deixando que estes sentimentos menores os transformem em vingadores dominados pela maldade. As lições codificadas por Allan Kardec, que se manifestaram através de O Livro dos Espíritos, foram importantes para acabar com as crenças católicas de demônio e de exorcismo, além de condenar muitas das técnicas e dos tratamentos dos hospitais psiquiátricos, que se utilizavam de choques e de violência para reprimir uma suposta loucura dos indivíduos, gerando dores e aumentando as angústias internas.

Com as informações trazidas e com o crescimento de seus adeptos, surgem casas espíritas, seminários, congressos e locais onde as teses espíritas passam a ser discutidas e prosperando rapidamente, autores importantes e intelectuais renomados abraçam as causas doutrinários, dentre eles podemos destacar vultos da intelectualidade européia, desde Camille Flamarion, León Denis, Ernesto Bozzano, Charles Richet, entre outros nomes de destaque.

Um dos temas mais fascinantes da doutrina espírita é a questão da obsessão, o fenômeno sempre esteve muito presente nas sociedades, incomodando e gerando constrangimentos variados para as famílias, desde a de nobres e abastados industriais da época até de trabalhadores mal remunerados e pessoas que viviam na indigência social e econômica. Neste ambiente, as teses que defendiam técnicas de exorcismo eram as mais comuns, embora agressivas e marcadas por certo exibicionismo, davam um grande poder aos membros da Igreja católica e se mostravam frágeis e insuficientes para resolver as questões ligadas as obsessões.

A nova doutrina trazia formas diferentes de lidar com esta questão, entendia o processo de forma diferente e via uma ausência de loucura, mas uma perseguição espiritual, onde o espírito ora obsessor buscava ressarcir suas perdas com o encarnado, cobrando-lhe aquilo que acreditava ser seu de direito ou queria impingir no obsidiado dores e moléstias para se vingar de atitudes e gestos cometidos anteriormente, tudo isto gerava graves constrangimentos ao perseguido e aos seus familiares que estavam intimamente ligados.

A Doutrina dos Espíritos nos mostra que as entidades, perseguidor e perseguido são, na verdade, indivíduos que possuem vínculos sólidos e antigos, estes vínculos tem as suas origens em experiências anteriores, muitos deles estão interligados a muitos anos, décadas ou até mesmo séculos, nestes períodos estes espíritos cultivaram alguns conflitos, confrontos ou brigas que acabaram gerando desequilíbrios na relação, sendo cobrados nesta experiência física.

A nova profilaxia estava centrada na conversa e no esclarecimento do obsessor, muitos deles não são maus ou violentos, apenas estão dominados pela busca constante de vingança, esta visão acaba com a ideia de que, nesta relação, existem mocinhos e bandidos, a doutrina espírita nos mostra que somos todos culpados por erros cometidos anteriormente, o obsessor que hoje se coloca como vítima pode ter sido, em outras oportunidades, o grande algoz, o responsável pelo crime ou pelos deslizes cometidos, mesmo assim, este espírito prefere cobrar de outros a assumir suas responsabilidades de equívocos anteriores.

A Doutrina dos Espíritos nos mostra claramente que não existem vítimas, por mais que nos emocionemos com as dores e as dificuldades dos outros indivíduos, todos somos algozes, todos cometemos erros e equívocos variados e devemos responder por estas nossas atitudes. Mesmo nos emocionando com as dores alheias, devemos reconhecer que temos um passado marcado por desequilíbrios, cometemos os mais intensos desatinos e devemos compreender que as leis são educativas e não punitivas, as dificuldades servem para nos elevar e nos fazer crescer e não para nos maltratar e nos humilhar, gerando mais constrangimentos e desequilíbrios.

Dentre os vários tipos de obsessão, destacamos a auto-obsessão, que acontecem aos milhares na sociedade, todos passamos por situações parecidas, quantas vezes nós ficamos remoendo coisas antigas, pensamentos e situações vividas a muitos anos, situações que nos trouxeram momentos de prazer e alegria, mas que já ficaram para trás e deveria ter sido superadas, se continuamos a remoer esta situação é porque alguma coisa ficou mal resolvida na nossa história, remoer esta situação apenas nos fará mal e tende a gerar graves desequilíbrios interiores, gerando constrangimentos e ressentimentos.

Quando falamos e refletimos sobre a auto-obsessão, estamos desviando o olhar do obsessor/exterior e concentrando no indivíduo/interior, sendo o indivíduo o grande obsessor de si mesmo, aquele que precisa, urgentemente, compreender seus ingredientes, tais quais: culpa, remorso, causas diversas a fim de que possa superar o problema, superando os momentos difíceis e construindo cenários e perspectivas mais saudáveis.

A culpa e os remorsos podem gerar nos indivíduos graves desajustes, que quando não são resolvidos por completo podem ocasionar graves desequilíbrios emocionais e espirituais, levando muitos indivíduos a uma auto-obsessão que pode gerar uma sabotagem completa, criando ressentimentos, rancores e mágoas intermináveis.

Muitas pessoas viveram relacionamentos intensos, marcados por uma paixão alucinante, esta situação ainda não foi superada para um dos envolvidos e este a remove com constância, revive uma situação que a muito não mais existe, faz planos e inventa situações não vividas, mas imaginadas e, com isso, sua mente e seu pensamento plasmam imagens e prazeres constantes. O resultado imediato desta situação é que o indivíduo cria um processo obsessivo e o cultiva no cotidiano, gerando graves desequilíbrios que podem levá-lo a loucura e a insanidade, com graves constrangimentos para o espírito imortal.

A auto-obsessão é fenômeno muito mais comum do que as pessoas imaginam, na contemporaneidade muitos indivíduos sonham com situações que dificilmente se tornarão uma realidade num futuro próximo, muitos se veem em situação de desfrute financeiro e material muito além de suas posses, se estes pensamentos crescerem e sair do controle dos indivíduos, podem se tornar fonte de graves desajustes emocionais, levando-os a terapias em clínicas de psicologia ou, em casos mais intensos, em clínicas psiquiátricas.

Os seres humanos tem sido orientados desde os tenros anos de vida e olhar para o ambiente externo, crescemos e nos desenvolvemos, iniciamos nossas atividades profissionais, nos relacionamos e depois casamos, constituímos famílias e nos envolvemos tão intensamente com as atividades do cotidiano e nos esquecemos de olhar para nosso íntimo, diante disso, não aprendemos a lidar com nossos sentimentos, nossos desejos e vontades muitas vezes estão descontrolados e quando paramos para refletir estamos envolvidos em uma teia de desequilíbrio que pouco sabemos como lidar e compreender, diante disso, faz-se fundamental seguirmos a máxima de Sócrates quando nos disse Conheça-te a si mesmo.

            Acrescentamos ainda, que numa sociedade marcada pela concorrência crescente entre os agentes econômicos, onde as pessoas se entregam, cada vez mais, ao trabalho profissional e a sobrevivência material, deixando de lado valores mais íntimos, sentimentos mais internos e emoções mais aceleradas, acreditando que estas dores e sentimentos internos serão preenchidos com bens e valores materiais, ledo engano destes indivíduos e desta sociedade, que observa atônita um crescimento acelerado no suicídio, na depressão, na ansiedade e nos transtornos emocionais e espirituais.

Sem se conhecer, sem refletir sobre seu papel no mundo e sem buscar um equilíbrio emocional e espiritual, o indivíduo tende a se deixar levar por vontades e desejos hedonistas, prazeres imediatos e gozos abundantes, nesta trilha os prazeres materiais são imensos, mas os vazios existenciais criados pela ausência de uma espiritualização são cada vez maiores, deixando um grande hiato nos valores do indivíduo.

O tema obsessão sempre esteve na berlinda na literatura espírita, muitas são as obras que analisam a temática e nos trazem grandes ensinamentos sobre questão, tão complexa e empolgante, o tema auto-obsessão, embora fundamental, ainda é estudado com menor ênfase, alguns autores de destaque, como Yvonne do Amaral Pereira e André Luiz, além de obras relevantes de Suely Caldas Schubert e Divaldo Pereira Franco, refletiram fortemente sobre a auto-obsessão, nos trazendo importantes contribuições para a sociedade e desnudando um tema que está presente muito fortemente no cotidiano das pessoas, gerando graves constrangimentos individuais e traumas generalizados para todos os entes queridos e familiares.

Quando, nos trabalhos mediúnicos, nos deparamos com a obsessão e temos a oportunidade de conversar com o obsessor, encontramos dramas e histórias marcadas por ressentimentos e angústias constantes, nesta situação encontramos situação que remetem a outras encarnações que estão vivas na mente do espírito ora agressor. Ao analisar os casos de auto-obsessão, percebemos a ausência de agentes exteriores, todo o processo acontece intimamente, o obsessor é a mesma pessoa do obsidiado, nestes casos, as soluções são deveras complexas e, muitas vezes demoradas, isto porque envolve dramas da alma, conflitos internos e profundos e dores que perpassam a encarnação presente e tem suas raízes na parte mais íntima do ser humano, se encontram nas profundezas da alma, num local onde o adentrar só é permitido àquele que, além de conhecer a senha e possuir as chaves, seja dotado de sentimentos nobres, puros  e mais conscientes, a reflexão íntima e a oração são fundamentais, mas a reforma íntima e a atitude no bem fazem a diferença e auxilia no crescimento e na consolidação do progresso e no rechaço de pensamentos negativos e sentimentos inferiores.

Muitas pessoas buscam informações sobre o que foram em encarnações anteriores, se assustam quando ficam sabendo e, muitas delas, se desesperam, criando situações negativas e altamente perturbadoras. O medo dos erros cometidos no passado gera no indivíduo grande desesperança com relação ao futuro, preocupações inexistentes podem aparecer depois de descobertas de equívocos em vidas anteriores, sem equilíbrio e consciência desenvolvidos, a descoberta pode gerar graves transtornos e auto-obsessão, somos todos marcados por graves desequilíbrios, os erros anteriores não podem ser reparados, mas as melhoras individuais devem ser construídas no futuro e isto só será possível com trabalho, oração e muita disciplina, com estas três atitudes nenhuma obsessão ou auto-obsessão se perpetuará por muito tempo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

‘Os Bolsonaros têm relações com a esgotosfera do crime’, diz Padilha

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Em segunda temporada da série ‘O Mecanismo’, diretor volta a atacar corrupção sistêmica no país 

Ivan Finotti – Folha de São Paulo, 10 de maio de 2019.

Em 16 de abril, o cineasta José Padilha escreveu um artigo na Folha no qual reconhecia “o erro” que cometeu. Referia-se a Sergio Moro, que, segundo o diretor, perdeu a independência política, “finge não saber o que é milícia e hoje trabalha para a família Bolsonaro.

Essa nova visão do ministro da Justiça e Segurança Pública não afetou o juiz Paulo Rigo, personagem da série “O Mecanismo” inspirado em Sergio Moro. “Estou contando uma história na qual, quando aconteceu, Moro tinha coisas positivas, independente de possíveis mudanças posteriores”, diz Padilha, criador da série.

A estreia da segunda temporada acontece nesta sexta (10), e Padilha se diz preparado para as críticas: “Sou antipetista, antipeessedebista e antipeemedebista. Mas só me criticam por ser antipetista. Acho que a Dilma sofreu um golpe, mas sempre achei que o PT roubou. E essas coisas são compatíveis, sim”.

​Leia abaixo os melhores trechos da entrevista que aconteceu na terça (7).

Você disse que não pensou em mudar a representação do juiz Sérgio Moro na segunda temporada de “O Mecanismo”. Mas haverá uma terceira, quarta, quinta temporada para mostrar isso? O que você planejou?

Eu não estou fazendo uma série sobre o Sergio Moro. Estou fazendo uma série sobre o mecanismo, que ele é real e opera independente do partido político. Serra foi denunciado, Temer foi preso, Lula está na cadeia. O mecanismo não tem ideologia, ele é a forma pela qual a política se estruturou no Brasil desde o primeiro governo democrático. Agora, eu não sei quem mais é o Moro. Eu vejo duas possibilidades: ele não olhou direito onde estava entrando e, como o Fernando Henrique, é muito vaidoso. Não se deu ao trabalho de olhar o histórico dos Bolsonaros. Os bolsonaros tem ralações com a esgotosfera do crime organizado carioca. Ele é de Curitiba, talvez não saiba. A outra possibilidade é que ele sabia o que estava fazendo e ele fez. Aí o Moro é totalmente diferente de quem eu pensei que ele fosse.

Mas há uma terceira temporada planejada?

A gente não pode falar sobre isso. O Netflix me proíbe. Eu estou censurado, como se fosse o Toffoli [risos]. Mas é uma questão econômica. A nossa série é muito mais cara do que todas as outras séries do Netflix no Brasil. Então temos que olhar o resultado versus o custo.

Quanto custa cada episódio?

Eu não posso te dizer…

E a abertura dessa temporada, que mostra políticos como FHC, Lula, Temer e muitos outros enquanto toca a canção “se gritar pega ladrão, não fica um, meu irmão”?

 
Essa é a abertura que eu tinha proposto para a primeira temporada. Mas tinha aquele pensamento com a série: “será que a gente vai ser processado por alguém? Por todos?”. Aí resolvemos fazer uma abertura inócua, que foi ao ar na primeira temporada. E então começou a ser todo mundo preso, acusado, e não houve processos contra nós. Aí eu quis de novo usar a abertura e dessa vez deu certo.

 

Será que justamente essa nova abertura não vai dar processo?

Não sei. Estou mostrando a história do Brasil, do presidencialismo democrático. Eu me dei ao trabalho de separar o refrão de forma que quando diz “se gritar pega ladrão, não fica um, meu irmão” só aparecem imagens de quem foi condenado. No resto da música aparecem os outros.

Os atores que representam políticos reais usam outro nome na série. Lula é Gino, Sérgio Moro é Paulo Rigo e por aí vai. Você pediu a eles que se inspirassem nos personagens ou, ao contrário, que não se inspirassem?

Não precisei fazer isso, foi automático. Esses atores são todos faixa preta, não tem nenhum de primeira viagem. Não precisei falar nada.

No final de “Tropa de Elite” (2010) tem aquela fala em Brasília…

“Quem diria que a milícia iria parar em Brasília?” Fui uma bola de cristal desgraçada, mas eu nunca imaginei que isso fosse acontecer. Mas aconteceu. Na verdade, estava falando de deputados eleitos com votos de milícia. Não estava falando do Jair e do Flávio Bolsonaro, mas aconteceu.

Você acha que a transformação do capitão Nascimento em um herói contribuiu para tornar a direita menos envergonhada de se assumir?

No “Ônibus 174” (2002), eu mostro como o estado produz criminosos violentos na figura do Sandro Nascimento [ex-menino de rua que sequestrou o ônibus]. Aí eu quis fazer o outro lado da moeda, como o Estado forma policiais violentos.

O “Tropa de Elite” (2007), certo?

Sim. Aí eu vou dar o mesmo nome para o personagem, Nascimento. Ao fazer seu sucessor, porque ele vai ter um filho e não quer morrer, ele vai fazer um cara igual a ele. Vai pegar um cara legal e transformar nele.

Para mim, é claro que o Nascimento é um cara que tortura, eu mostro ele torturando. Para meu espanto, um número razoável de brasileiros achou aquilo ótimo. Mais ou menos o que o Scorsese disse quando viu seu “Taxi Driver” no cinema: “Caralho, os caras estão aplaudindo o cara!”. Me disseram mesmo isso: “Tem muita gente de direita que saiu do armário por causa desse filme e agora a gente está vendo eles”.

O jornalista viajou a convite da Netflix

Por que é tão difícil fazer reformas no Brasil?

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País tem características que dificultam mudanças

Marcos Mendes – Folha de São Paulo, 05 de maio de 2019.

Para voltar a crescer e diminuir a desigualdade de renda, o Brasil precisa fazer um conjunto amplo de reformas. Previdência, tributos, mercado de crédito, ambiente de negócios, segurança jurídica, abertura comercial, privatização, políticas sociais e educação.

Não é fácil fazer reformas em nenhum lugar do mundo. Reformar significa tirar privilégios de alguns grupos, que obviamente resistem. Os custos são concentrados em poucos, e os benefícios são difusos. Os prejudicados se organizam e resistem, enquanto os beneficiários muitas vezes nem sequer sabem que estão ganhando com aquela medida.

Reformas também provocam incerteza: ainda que todos saibam que o país ficará melhor no futuro, cada indivíduo enfrenta a incerteza de qual será a sua situação particular após a reforma. Afinal, empregos menos eficientes tendem a ser destruídos e outros são criados, requerendo novas habilidades. Muitas pessoas temem não se adaptar à nova realidade, em especial os mais velhos.

Os resultados das reformas também demoram a aparecer. No Chile, por exemplo, em 1985, dez anos após o início das reformas, a renda per capita ainda era a mesma de 1969. Somente nos anos 1990 a renda começou a subir de forma consistente.

No Chile, a renda per capita demorou 15 anos para refletir os efeitos das reformas

Na Nova Zelândia, uma reforma radical, que transformou o país em uma das sociedades mais prósperas do mundo, gerou, inicialmente, uma taxa de desemprego de 14%, que só voltou ao padrão pré-reforma depois de dez anos.

A Nova Zelândia, antes de sentir os efeitos positivos da reforma, sofreu com a alta na taxa de desemprego

O calendário das eleições é mais curto que o prazo para o efeito das reformas. O próximo pleito acontece antes de as reformas elevarem a popularidade do governante reformista.

Apesar dessas dificuldades, ao longo dos últimos 50 anos, muitos países fizeram reformas abrangentes. Estudando essas experiências, podemos observar características desses países que ajudaram a quebrar resistências. Infelizmente, o Brasil não possui nenhuma dessas características “facilitadoras” de reformas.

Em primeiro lugar, é mais fácil reformar economias de países pequenos. Estes não têm mercado interno significativo e precisam se abrir para o mundo. Com economia aberta, são mais vulneráveis a oscilações da economia internacional e, por isso, precisam manter a macroeconomia saudável. Para atrair capitais externos, precisam de uma Justiça rápida e segura.

Além disso, têm uma elite menos numerosa, o que diminui o custo de transação para realizar acordos. Também têm governo unitário, não sofrendo os conflitos e bloqueios gerados nos sistemas federativos. Singapura, Malta, Hong Kong, Estônia, Nova Zelândia e Irlanda seriam exemplos nesse grupo.

O Brasil, grande, fechado e com uma Federação conflituosa, está longe desse perfil.

Outra característica importante está na transição de ditaduras para democracias. Países que fizeram reformas econômicas antes da abertura política geraram uma economia dinâmica, capaz de elevar a renda, ampliar a classe média, criar ambiente de mercado estável e consolidar o liberalismo econômico, conduzindo a mais investimentos e crescimento. Com o tempo, a melhoria das condições de vida induz a transição para regime democrático, como ocorreu na Coreia do Sul, no Chile, na Malásia e na Indonésia, por exemplo.

Por outro lado, redemocratizar antes de reformar a economia pode levar ao populismo e a mecanismos de apropriação de renda por grupos de interesse.

Em uma economia fechada e estatizada, há grande espaço para a inscrição de privilégios e políticas inconsistentes na legislação. Esse parece ter sido o caso de Brasil, Argentina e Filipinas. Fazer reformas nesses países é muito mais difícil agora, pois significa desmontar benefícios a grupos organizados, cristalizados na Constituição e nas leis.

Também facilitam as reformas os sistemas político-eleitorais que induzem a geração de maioria no Legislativo, dando maior governabilidade ao Poder Executivo.

No Reino Unido, por exemplo, as eleições para o Parlamento seguem o modelo distrital, com voto majoritário, que induz a disputa entre dois grandes partidos, com o vencedor quase sempre sendo majoritário no Legislativo e, portanto, capaz de aprovar reformas sem precisar contar com o apoio de outros partidos.

Além disso, é mais fácil fazer reformas em Parlamentos unicamerais, onde uma medida não precisa passar pelo referendo de Câmara e Senado. Também facilita o fato de cada um dos três Poderes ter claramente delimitado o seu raio de ação, não havendo espaço para o Judiciário interferir em decisões do Legislativo.

Mais uma vez o Brasil não tem tais características. Nosso sistema eleitoral gera grande fragmentação partidária no Parlamento, temos sistema bicameral e frequente judicialização das decisões legislativas e das políticas públicas.

A literatura também mostra que sociedades mais coesas são mais capazes de gerar os acordos sociais necessários para realizar reformas. Essas são sociedades em que a classe média tem uma parcela grande da renda (e, portanto, a desigualdade geral é baixa) e na qual há baixo grau de violência.

Em geral, são sociedades em que as pessoas têm padrões de vida similares, não temem agressões físicas ou aos seus direitos. Por isso têm maior confiança umas nas outras e nas instituições públicas.

Confiança é essencial para o sucesso de reformas. Afinal, estas nada mais são que um acordo em que todos fazem sacrifícios no curto prazo com vistas a ter um futuro melhor. Se há baixa coesão e desconfiança, cada grupo de interesse tentará empurrar os custos da reforma para o outro, e a negociação emperra ou a reforma tem seus custos colocados nas costas dos mais fracos.

No Brasil, a falta de confiança é um fator que emperra reformas

O grau de coesão social no Brasil é extremamente baixo. No eixo horizontal, temos a participação da classe média na renda (percentual da renda total que vai para os 60% dos indivíduos no centro da distribuição de renda). Somente África do Sul, Namíbia, Zimbábue, Moçambique e Guiné-Bissau têm classe média “mais magra” que a brasileira, ficando mais à esquerda no gráfico.

No eixo vertical temos um índice de violência e confiança mútua. Nesse quesito, o Brasil só supera Camarões e Costa do Marfim. E fica um pouco abaixo de Quênia, El Salvador e Libéria.

A localização do país na parte inferior esquerda do gráfico é uma imagem clara da nossa baixa coesão social. Somos inequivocamente um país desigual, violento, em que as pessoas não confiam umas nas outras. No canto superior direito do gráfico estão os países mais coesos.

A importância da coesão social como fator de estabilidade tem ficado clara nos recentes episódios de radicalização política vividos em diversos países. O encolhimento da participação da classe média na renda tem gerado desconforto com a representação política tradicional, e novos partidos extremistas têm ganhado espaço em vários países. Há crescente fragmentação partidária, levando a governos minoritários, como na Espanha e na Itália.

O brexit surgiu de movimento de descontentamento de uma classe trabalhadora ameaçada pela abertura comercial. Donald Trump e sua política externa mercantilista têm origem semelhante.

No Brasil, o baixo consenso social alimenta um ambiente antirreformas por uma combinação de populismo, conflito distributivo em torno de rendas intermediadas pelo Estado, fragmentação política e protecionismo comercial e regulatório.

Não obstante todas essas dificuldades “estruturais” para fazer reformas no Brasil, sempre surgem algumas janelas de oportunidade. Em geral, elas são criadas por crises, que evidenciam a necessidade de mudanças e enfraquecem a defesa de interesses corporativos específicos.

Também abre espaço para reformas o “efeito lua de mel”, que existe nos primeiros meses de gestão de um governante recém-eleito.

Desde os anos 1980, o Brasil aproveitou essas situações para fazer reformas. Assim, por exemplo, a crise de balanço de pagamentos de 1982-83 gerou reformas fiscais e monetárias. A hiperinflação criou condições para o sucesso do Plano Real.

O efeito lua de mel no governo Collor permitiu um movimento de abertura comercial, e nos governos FHC e Lula viabilizaram-se duas reformas da Previdência.

Da crise de balanço de pagamentos de 1998 vieram o sistema de metas de inflação, o câmbio flutuante e o regime de metas fiscais.

Porém, recentemente o Brasil andou na direção contrária. De 2005 a 2015 vivemos um período de reversão de reformas. A crise política do mensalão levou à expansão do gasto público como forma de sustentar politicamente o governo. Uma expansão no preço internacional de commodities deu impulso ao crescimento e criou a ilusão de que os desequilíbrios fiscais estruturais estavam resolvidos.

Relaxou-se o equilíbrio fiscal e praticou-se política pública na direção oposta das reformas de que o país necessita: aumentou a interferência estatal nas decisões privadas, a exploração do petróleo foi praticamente reestatizada, houve generalizada interferência do governo nos preços de energia e combustíveis, proteção setorial e fechamento da economia, grande desperdício de recursos públicos e privados em investimentos inviáveis.

A crise daí decorrente abriu nova oportunidade de reformas, e o governo Temer avançou nessa agenda, criando um teto de gastos, fazendo reformas relevantes no mercado de crédito, revertendo a estatização do setor de petróleo, retomando o controle dos gastos públicos e as privatizações e concessões, desmontando equivocadas políticas de créditos subsidiadas.

Porém, as reformas necessárias ainda são muitas. O que fazer para continuar avançando?

Em primeiro lugar, temos de reconhecer que, no ambiente adverso em que vivemos, elas levarão décadas para se concretizar. A Nova Zelândia, que fez reformas radicais em tempo recorde, com condições políticas e institucionais favoráveis, consumiu dez anos. Na Austrália foram 20 anos. No Brasil será muito mais.

As reformas serão um tema presente por muitas décadas. Não é uma corrida de 100 m, em que se faz reforma durante um mandato e o país passa a crescer aceleradamente. É uma maratona, que requer persistência. Se não for possível aprovar reforma ampla hoje, aprove-se algo mais restrito, mas na direção correta, e retome-se mais adiante.

Não podemos desperdiçar oportunidades: as propostas de reforma precisam estar prontas, na prateleira. Se a condição política para uma reforma ficar difícil, muda-se a agenda e parte-se para outra. Foi o que ocorreu no governo Temer, quando a reforma da Previdência se inviabilizou e, rapidamente, a agenda mudou para a reforma do mercado de crédito.

Mais importante que não perder oportunidades é não dar espaço para retrocessos. O Brasil não pode ter outro período nefasto de contrarreformas como o do passado recente.

Para que as reformas ganhem crescente apoio social, é preciso que elas sejam capazes de reduzir a desigualdade e ampliar a classe média.

Felizmente temos espaço para isso. O Estado brasileiro é concentrador de renda, e as reformas podem fazer o país mais igualitário, gerando clima favorável a novas rodadas de modernização. O desenho das diversas reformas sempre precisará ter essa preocupação redistributiva e de criação de empregos para os mais pobres.

Como esse processo de redistribuição e aumento de coesão é lento, é essencial uma convincente política de comunicação, para já no curto prazo induzir a cooperação e apoio.

É preciso olhar, também, a dimensão da violência e da baixa confiança. Já passou da hora de o Brasil ter um plano sério e consistente de redução da violência, que deve ser conduzido simultaneamente às reformas econômicas.

Em relação à confiança, é preciso investir em sistemas eletrônicos de certificação e garantias nos negócios, em agilização e maior previsibilidade da Justiça. A digitalização dos serviços públicos aumenta a confiança no governo e o controle a fraudes nos programas sociais.

O combate à corrupção, tão demandado pela sociedade, precisa ser usado como argumento a favor da reforma. Privatizar reduz espaço para o uso corrupto de empresas públicas. Também reduzem a corrupção: o fortalecimento das agências regulatórias, a melhoria da governança dos fundos de pensão das estatais ou o aperfeiçoamento e transparência das contas públicas.

No âmbito do Legislativo, dada a alta resistência política às reformas, deve-se preferir sempre a tramitação mais curta, para diminuir as chances de uma crise política paralisar o processo, como ocorreu com a reforma da Previdência no governo Temer. Uma vitória parcial em um tema abre a agenda para que se trate de outra reforma.

As relações entre os três Poderes precisam evoluir, para que haja clara delimitação das fronteiras dos poderes de decisão, para evitar tanto a judicialização da política quanto a politização do Judiciário.

Na arena política, a experiência de reformas econômicas bem-sucedidas na Austrália, na Índia, na Coreia e na Nova Zelândia indicam que um ingrediente essencial é a liderança do processo pelo presidente da República (ou primeiro-ministro). A terceirização da responsabilidade enfraquece e mutila as reformas.

Também é preciso reconhecer que formar governo de coalizão não é crime. Em qualquer lugar do mundo onde o Parlamento é importante na aprovação de reformas, um Poder Executivo minoritário compartilha o poder para poder ter maioria e aprovar seus projetos.

Se há atos criminosos por parte de algum ministro indicado por partido aliado, demite-se o ministro, entrega-se o caso à Justiça, e o partido responsável por aquele ministro indica substituto.

O atual momento de crise e de lua de mel é propício para reformas. Mas não há automatismos, e o ambiente continua hostil. Será preciso muita arte e habilidade política para que não se perca essa oportunidade histórica para avançar em direção a um país mais rico e civilizado.

Marcos Mendes

Doutor em economia pela USP, consultor legislativo do Senado e ex-chefe da assessoria econômica do ministro da Fazenda (2016-2018)

 

Alimentos industrializados estão acabando com culturas locais, diz médico

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Um dos mais relevantes pesquisadores brasileiros, Carlos Monteiro critica malefícios da indústria e dos ultraprocessados

Gabriel Alves – Folha de São Paulo 04 demais de 2019

SÃO PAULO 

Se alguma vez você ouviu que deve evitar os alimentos ultraprocessados pelo bem da sua saúde, agradeça ao médico Carlos Augusto Monteiro.

Cunhado por ele, o termo ultraprocessado se refere a alimentos que são feitos essencialmente a partir de matéria-prima barata (farinha, óleo e açúcar, por exemplo) e aditivos que dão cor, sabor, textura e outras características para tornar o alimento mais atraente. Macarrão instantâneo, salgadinhos e refrigerantes fazem parte da lista.

Monteiro, que é professor titular da USP e um dos mais relevantes pesquisadores brasileiros segundo o relatório Highly Cited Researchers, da consultoria Clarivate Analytics, afirma que o mundo está se alimentando de uma forma cada vez mais padronizada e, por isso, a cultura gastronômica está de perdendo. Obesidade, diabetes, hipertensão, câncer e outras doenças associadas ao consumo de alimentos de baixa qualidade nutricional estão aumentando.

E, para ele, a indústria que produz os ultraprocessados tem culpa no cartório.

Apesar de o consumo desses alimentos ter aumentado nas últimas décadas no Brasil, seu nível não se compara ao de países como EUA e Inglaterra, onde mais da metade das calorias diárias ingeridas vem de alimentos processados. Mas ainda há tempo de reverter a tendência no Brasil, diz o professor.

“Em outros países as pessoas não cozinham, têm só um micro-ondas e geladeira em casa. Tudo é pronto, o café é instantâneo. Aqui as pessoas se sentam à mesa para comer. A gente ainda não passou do limite em que recuperar a alimentação tradicional significa voltar a ter um fogão em casa”.

Monteiro participa de discussões na ONU, coordenou a elaboração do “Guia alimentar para a população brasileira” e idealizou o Vigitel, sistema que, por meio de contato telefônico, estima os fatores de risco para doenças crônicas presentes no Brasil. Aos 71 anos, apesar do cenário desfavorável que descreve, ele se diz otimista.

“A nossa relação com a comida é algo bonito, intangível, e está mais perto da que franceses e italianos têm do que a dos americanos. Talvez isso explique o sucesso dos programas de culinária.”

Processamento de alimentos
Nos anos 1980 e 1990, o alimento sai do campo para as fábricas. Da soja, tira-se o óleo, do milho e do trigo, o carboidrato; da cana, o açúcar.

Os alimentos ultraprocessados são feitos juntando um ou mais desses elementos com muita tecnologia e aditivos cosméticos, como corantes, saborizantes, texturizantes.

Hoje já são mais de 2000 aditivos aprovados. Eles permitem que você pegue farinha de trigo e açúcar, coloque uma gota de um saborizante de amêndoa e crie um biscoito que parece ter usado 10% de amêndoas na receita. O lucro é enorme.

Uma fábrica dos EUA pode comprar soja do Brasil, milho do México e açúcar da Jamaica pelo preço mais barato, juntar tudo numa fábrica de alta tecnologia usando esses aditivos e produzir uma linha de produtos de baixíssimo custo e que competem com o que chamamos de alimento de verdade, que não passou por uma reengenharia.

O DNA do queijo é o leite; do pão, o trigo. E no alimento ultraprocessado? Você não sabe. Você olha na lista de ingredientes e não consegue nem entender o que tem ali. Milhares de produtos processados são lançados a cada ano: refrigerantes, snacks, doces, miojo, maionese, caldo de carne.

Riscos à saúde
Se você coloca no seu organismo todo dia 15 ou 20 moléculas estranhas, a chance de todas serem ruins para a saúde é pequena, mas a chance de pelo menos uma criar problemas é grande.  Quem contrata os testes de segurança para liberar os aditivos é a própria indústria.

Ela usa modelos experimentais para saber se esses aditivos causam câncer em algumas semanas ou meses, mas há muitas outras doenças que eles podem gerar. Existe uma preocupação toxicológica. Imagina se eles estão avaliando inflamação crônica? Não há segurança nessa questão.

Gigantismo das indústrias
Em vez de dez indústrias, deveria haver 10 mil e uma lei antitruste — a partir de um número determinado de funcionários, a empresa teria de se dividir ou vender uma parte. Antes não havia esse oligopólio. Um problema desse gigantismo é que essas grandes empresas compram até a ONU.

A ONU é subfinanciada, não há recursos suficientes para as atividades. Quando vão fazer um encontro com especialistas, uma empresa paga por tudo, aluga o local. Isso põe em risco a independência.

No futuro os problemas causados pela indústria de alimentos, como aqueles causados pelo aquecimento global, vão ficar mais evidentes. A economia vai sofrer. Essas dez empresas ganham dinheiro, mas e o restante?

Empresas de seguro saúde podem se tornar inviáveis. Outros setores que não lucram com alimentos estão pagando a conta.

Financiamento de pesquisas
A indústria de alimentos não está preocupada em financiar a pesquisa, mas em cooptar o pesquisador. Isso é péssimo.

O fato de existir uma Fapesp aqui no estado de São Paulo, o CNPq, a Finep, e o Ministério da Saúde, que financiam pesquisas, permite que meu grupo de pesquisa [que tem cerca 30 pessoas] tenha só dinheiro público, o que é uma coisa impagável. A gente não existiria sem esse apoio.

Não temos tido tanta dificuldade para obter financiamento. O difícil é obter recursos humanos. Diferentemente das universidades estrangeiras, aqui ou a pessoa é o professor —vitalício— ou estudante.

Não há posições intermediárias, não se pode contratar uma pessoa para atuar num projeto específico, por dois, três anos, nem com dinheiro da Fapesp.

Ricos X pobres
A teoria que formulamos é que os grandes problemas da alimentação no Brasil e em outros lugares do mundo estão ligados ao consumo de muito açúcar, muito sódio, muita gordura saturada, muita gordura trans, pouca proteína, pouca fibra, poucas vitaminas e minerais. E isso está relacionado à quantidade de ultraprocessados que as pessoas consomem.

Hoje, pessoas ricas se alimentam pior do que as mais pobres do ponto de vista do risco de adquirir doenças crônicas. Curiosamente, no Brasil os produtos ultraprocessados ainda são caros. O agricultor ganha muito pouco, vende barato na feira. Em países como os EUA é tudo mais caro.

As pessoas acham que uma pessoa é gorda porque ela come muita fritura e muito doce feito em casa.

Mas quando você olha as estatísticas, essas pessoas não estão comprando mais óleo, mais açúcar… O que entrou no lugar? Biscoito, guloseimas em geral, salgadinhos, refrigerantes, bebidas lácteas, miojo.

Quantidades
Muita gente se convenceu de que o alimento ultraprocessado não é bom, mas acha que não há muito o que fazer e que temos que nos acostumar. Isso implica em aumentar as cadeiras dos aviões e achar remédios melhores para diabetes, como se fosse um novo padrão. Seria algo semelhante à adaptação às mudanças climáticas que já estão por aí.

A ideia não é fazer as pessoas voltarem a plantar seu próprio alimento. A discussão de política pública não é essa. Na América Latina, o consumo de ultraprocessados não é tão alto. Se a pessoa almoça e janta comida de verdade, a ingestão de ultraprocessados não passa de 20%. Mas se ela troca o almoço por fast food e come uma lasanha congelada no jantar, esse valor passa de 50%.

Aqui a gente ainda está no refrigerante, no salgadinho um dia ou no outro. Nos EUA, quase não se acha quem coma menos de 30%.

Marketing da indústria
As multinacionais sabem que é preciso destruir a cultura alimentar para vender o produto deles. E fazem bons truques de marketing. As misturas para bolos, por exemplo, pedem para colocar ovo, um copo de leite… Não precisaria, mas assim a pessoa tem a sensação de que está realmente fazendo o bolo.

A pessoa diz que é mais prático, que não tem que lavar louça… O cara começa a enunciar o que está ganhando, mas se esquece de que alimentação não é como escolher a gasolina do carro pelo preço e pela rapidez do serviço. Alimentação é muito mais do que isso.

OUTRO LADO

Para João Dornellas, presidente executivo da Abia (Associação Brasileira de Indústria de Alimentos), que congrega gigantes como Nestlé, Pepsico, Ambev, Coca-Cola, Unilever, entre outras, não há respaldo científico para a classificação de um alimento como ultraprocessado.

“Um mesmo tipo de alimento pode ser produzido de diferentes formas, assim como variam as receitas culinárias. É possível fazer um salgadinho em casa, do tipo batata chips, com os mesmos ingredientes que a feita pela indústria: batata, óleo e sal. Por que a industrializada seria “ultraprocessada” e a caseira não?

Os aditivos alimentares, explica, são aprovados pelo JECFA, um comitê conjunto da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO).

“Nos primórdios da civilização, os caçadores já salgavam a carne para que ela durasse mais. É o mesmo sódio que hoje é usado pela indústria para diminuir a umidade, que propicia a proliferação de bactérias”, diz Dornellas.

“Os aditivos evoluíram para atender a processos produtivos muito mais complexos, mas isso não os transforma em ingredientes nocivos. Pelo contrário: continuam sendo sistematicamente testados e utilizados para cumprir funções tecnológicas desejadas, tais como conservantes, estabilizantes, gelificantes, espessantes e fermentos químicos.”

Com relação ao aumento de obesidade e de outras doenças crônicas, Dornellas diz que a indústria se vê como parte da solução do problema “no que diz respeito ao papel dos alimentos para a promoção da saúde”. Além de fornecer alimentos de qualidade e saudáveis, diz ele, a indústria está informando melhor os consumidores para que eles consigam de forma consciente equilibrar a dieta de acordo com os alimentos disponíveis.

Entre as iniciativas está a redução de teores de gorduras trans, sódio e açucares em alimentos industrializados. Algumas das vantagens de alimentos processados, diz ele, são a praticidade e a possibilidade de fortificá-los com vitaminas das quais a população necessita ou enriquecê-los com fibras e proteína. Também é possível permitir a adequação a dietas especiais, como as sem lactose ou glúten.

“O alimento industrializado não tem o objetivo de substituir a alimentação tradicional porque faz parte dela. Muitos pratos da culinária brasileira incluem, em sua preparação, ingredientes industrializados. Não só no Brasil, mas no mundo inteiro, comer bem é comer de tudo. As comidas tradicionais ou típicas continuam na mesa dos brasileiros. Isso é uma das riquezas do Brasil, que a indústria reconhece e valoriza”, diz.

Para ele, enxergar a indústria como inimiga da população é um equívoco. O setor emprega 1,6 milhão de pessoas no país e processa quase 60% de tudo que é produzido no campo no país.

 

“Convergência de crises explica deterioração venezuelana” Entrevista com Carolina Pedroso

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Núcleo de Estudos e Análises Internacionais – Marcel Artioli – 02 de maio de 2019

A situação política na Venezuela conheceu forte inflexão nos últimos dias, com uma nova investida da oposição contra o governo de Nicolás Maduro. O autoproclamado presidente Juan Guaidó convocou a população para uma ação destinada a forçar Maduro à renúncia. Houve choques nas ruas, que causaram 1 morto, 95 feridos e 119 pessoas detidas. A tensão cresceu, turbinada por ameaças de golpe de Estado e intervenção militar de outros países. O chefe da diplomacia russa, Serguei Lavrov, informou ao seu homólogo norte-americano Mike Pompeo que a “interferência dos EUA nos assuntos internos da Venezuela” seria uma violação do direito internacional e pediu diálogo a todas as partes.

Maduro resiste, com o apoio das Forças Armadas. A oposição continua a marcar protestos em todo o país. As ruas estão convulsionadas. Ainda parece distante uma saída negociada para a crise, que se arrasta há meses.

Para analisar os desdobramentos complexos que envolvem a crise venezuelana, o NEAI (Núcleo de Estudos e Análises Internacionais) ouviu a especialista Carolina Silva Pedroso, professora de Relações Internacionais da Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP) e doutora em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (UNESP/Unicamp/PUC-SP). 

Marcel Artioli|NEAI: O que está acontecendo na Venezuela?

Carolina Pedroso: A Venezuela vive hoje uma disputa acirrada pelo controle do petróleo, isso porque desde os anos 1970 esse bem é nacionalizado e está fortemente concentrado no Estado. O grupo que estava no poder antes de Chávez, por exemplo, foi responsável por graves escândalos de corrupção envolvendo essa relação promíscua entre Estado e setor petroleiro. Quando Chávez surgiu na cena nacional, uma de suas ações como governante foi justamente retomar o controle cidadão sobre esse recurso. Com a reprodução do chavismo, esse novo bloco no poder caiu na mesma tentação do anterior e também se apossou desse bem [Essa semana saíram várias denúncias de contas no exterior rastreadas pelos Estados Unidos por parte da cúpula chavista que indicam desvios bilionários de dinheiro]. Com isso, é possível verificar o quanto o petróleo é um elemento-chave para se compreender o que está acontecendo.

Ademais da disputa de poder/controle do petróleo, que é o que define a crise política, há uma crise econômica que, por sua vez, desencadeou uma crise social, ambas também relacionadas ao “ouro negro”.

A crise econômica tem suas origens mais remotas nos anos de 1930 a 1940, quando a economia venezuelana se tornou altamente dependente do petróleo, o que fez com que os outros setores produtivos atrofiassem [sobretudo a agricultura – o que pode explicar a situação atual de falta completa de soberania alimentar, ou seja, o país é incapaz de produzir alimentos para o consumo interno e depende inteiramente das importações]. Essa condição é chamada na economia de “Doença Holandesa”.

As condições para a crise atual estão dadas há décadas, o que faz com que todos os governos que vieram a partir de então, especialmente os do Pacto de Punto Fijo (1958-1998), que precederam o chavismo e promoveram um revezamento de dois partidos no poder durante 40 anos, sejam responsáveis pela incapacidade e/ou falta de vontade política de investir em outros aparatos produtivos que não ligados ao setor petroleiro.

A primeira mostra da gravidade da crise econômica atual veio na década de 1980, quando, após o choque do petróleo (de 1973) e a consequente bonança que o país viveu, a crise da dívida externa fez com que a miséria e a inflação se tornassem uma realidade dura e difícil de ser superada.

Isso fez com que o Punto Fijo caíssse em 1998, sendo sucedido pelo chavismo. A promessa de Chávez era reverter a crise social decorrente da crise econômica dos anos 1980, o que, num primeiro momento, foi possível graças a um novo boom do petróleo nos anos 2000. Portanto, é nítido como a flutuação do preço do petróleo determina se o país viverá um período de prosperidade (preços em alta) ou de crise (preços em baixa).

Assim como lá atrás, quando o preço começa a cair em 2013 e despenca em 2015, os benefícios sociais da era Chávez passaram a “derreter” e a crise social que vemos hoje ganha corpo.

Em suma, o que está acontecendo na Venezuela é uma convergência de, pelo menos, três crises: política (pela disputa do controle do petróleo), econômica (relacionada com a estrutura econômica) e social (decorrente da deterioração econômica), que combinadas levam a uma situação de crise migratória.

Marcel Artioli|NEAI: O que está em jogo para o povo venezuelano?  E para o Brasil e a América Latina?

Carolina Pedroso: Para o povo venezuelano, o que está em jogo é sua própria sobrevivência, de maneira mais literal, por conta da deterioração das condições de vida, e mais “simbólica”, porque o “projeto” alternativo [aspas porque ele não é exatamente um projeto bem estruturado] envolve um “entreguismo” dos recursos naturais às forças externas, sobretudo os Estados Unidos de Trump. Quer dizer, se ficar o bicho come e se correr o bicho pega.

Maduro tem sido incapaz de resolver os problemas diários, seja porque não tem competência para isso, seja porque tem lidado com uma situação de restrição externa cada vez mais estranguladora [vide as sanções internacionais]. Por outro lado, em quase duas décadas de chavismo a oposição não foi capaz de consolidar uma base sólida e unificada; seu projeto de país passa basicamente pela entrega do recurso petroleiro para empresas privadas.

Para a América Latina, a crise da Venezuela pode abrir uma situação muito perigosa para a estabilidade regional, porque estamos vivenciando não só uma crise política aguda, que é permeada por graves violações aos Direitos Humanos, mas principalmente por conta do peso geopolítico da Venezuela, que detém as maiores reservas de petróleo do mundo.

Ainda que sejam regiões diferentes e com suas devidas peculiaridades, hoje a América Latina pode estar correndo o risco de se tornar para as potências mundiais (entenda-se aqui sobretudo as que compõem o Conselho de Segurança da ONU com cadeira permanente) o que o Oriente Médio vem sendo nas últimas décadas, em termos de conflitos de interesses geopolíticos, disfarçados de defesa de soberania e Direitos Humanos.

Um dos riscos é que a situação venezuelana descambe para algo semelhante ao que ocorreu na Síria, em termos de guerra civil patrocinada por forças estrangeiras, ou o cenário da Líbia, em que uma convulsão interna levou a uma intervenção militar estrangeira, cujos resultados são ainda mais penosos do que os que haviam antes.

Em resumo, para a América Latina, a crise da Venezuela envolve a possibilidade de nos tornarmos uma região instável no sistema internacional, que desperta o anseio de intervenção por parte das potências mundiais.

Mais especificamente para o Brasil, a crise na Venezuela é um péssimo negócio, inclusive em termos comerciais, pois tínhamos um superávit comercial bastante acentuado na época em que o país vizinho viveu o boom petroleiro, além do que a situação de instabilidade tem repercussões diretas, como a vinda de imigrantes para uma das nossas regiões mais carentes, o norte do país. Isso acaba expondo a nossa incapacidade não só de assisti-los, mas de prover o básico para aquela população local, fazendo com que os venezuelanos se tornem um “bode expiatório”, estimulando um sentimento de xenofobia que não condiz com as nossas origens multiétnicas.

Marcel Artioli|NEAI: Qual a extensão da disputa geopolítica e geoeconômica na crise venezuelana?

Carolina Pedroso: É enorme! Temos que considerar a importância do petróleo venezuelano para a economia norte-americana, pois logisticamente é muito mais interessante importar do país caribenho do que do Oriente Médio. Com isso o lobby do setor energético norte-americano é enorme para que as sanções não atinjam o coração desse comércio bilateral [oque explica porque mesmo em momentos de maior tensão entre Venezuela e Estados Unidos o comércio petroleiro seguiu fluindo, o que só começou a mudar um pouco mais recentemente com Trump]. Porque se temos essa questão de um lado, do outro há também o lobby latino, especialmente na Flórida, que tem ganhado cada vez mais espaço junto ao governo de Trump e que há anos deseja que haja uma intervenção militar estrangeira na Venezuela, para tirar Chávez e agora Maduro do poder. Ou seja, são interesses conflitantes, uma vez que a comunidade venezuelano-americana, em conluio com os cubano-americanos, tem pressionado sistematicamente o Congresso e o Executivo nos Estados Unidos para que aumentem as sanções econômicas e comerciais – o que envolve, portanto, a compra de petróleo venezuelano. Além disso, estimulam o desejo de parte dos Republicanos e dos Democratas em intervir na Venezuela, sob a justificativa de retomar a democracia.

Marcel Artioli|NEAI: E quanto aos demais países?

Além dos Estados Unidos, outras peças importantes nesse xadrez geopolítico são China, Rússia e, em menor medida, Turquia e Índia. Os dois primeiros têm uma relevância óbvia por conta da presença no Conselho de Segurança e porque são parceiros comerciais de peso da Venezuela. A China pagou por mais de 30 anos de petróleo adiantado e quer ter a certeza de que essa compra não vai virar “água”, então ainda não confia na oposição para garantir esses acordos firmados durante o chavismo. Contudo, o pragmatismo chinês, a depender de como as negociações com a oposição estão sendo orientadas, pode fazer com que esse país mude de posição, ainda que isso traga prejuízos para a sua defesa da “não ingerência em assuntos internos”.

A Rússia, por sua vez, é a principal fornecedora de material bélico para a Venezuela, especialmente a partir de 2006, quando os Estados Unidos de Bush impuseram uma sanção comercial nesse setor ao governo venezuelano. Desde então, eles se tornaram parceiros estratégicos e tem realizado exercícios militares em conjunto no Caribe, até como forma de dissuasão de uma possível intervenção americana.

Já a Turquia tem aparecido mais recentemente não só por compor o que se chama de eixo “iliberal” (junto com a Rússia), em oposição aos Estados Unidos na arena internacional, mas também por conta da compra de ouro venezuelano para sua indústria de joias. A Índia, por sua vez, tem se tornado outra importante compradora do petróleo venezuelano, no afã que a Venezuela tem por diminuir a alta dependência que do comércio com os Estados Unidos

Marcel Artioli|NEAI: Por que Maduro perdeu as condições de governabilidade e governança? Qual o peso e o papel das Forças Armadas?

Carolina Pedroso: Maduro talvez nunca tenha tido condições de governar, porque era inexperiente em cargos como esse [sua experiência mais longeva no chavismo tinha sido como chanceler, o que, por sinal, foi bem sucedido à época] e assumiu o poder em um momento conturbado. Ele foi eleito um mês depois da morte de Chávez, do qual era vice na eleição vencida em dezembro de 2012, e se tornou o candidato natural, porém contestado internamente pelo chavismo. Isso porque havia outro nome cogitado para assumir o lugar de Chávez, que era Diosdado Cabello. Diferentemente de Maduro, que tem origens no sindicalismo civil, Cabello foi militar, é altamente nacionalista e truculento no trato com os opositores, foi presidente do parlamento por muitos anos e, portanto, é mais experiente no que tange às negociações políticas internas. Paralelamente à ascensão de Maduro, a economia já dava mostras de debilidade, fazendo com que ele tivesse um duplo desafio: convencer o chavismo de que era capaz da tarefa que lhe fora conferida, apesar da nítida falta de carisma que foi essencial para a permanência de Chávez no poder, e ainda lidar com uma situação econômica cada vez mais alarmante. Mesmo sem um projeto definido, a oposição fez o que melhor soube desenvolver no decorrer do chavismo, que foram ações de boicote e pressão nas ruas. Isso nos leva a 2014, quando os primeiros protestos contra ele tiveram lugar, e foram caracterizados por uma ampla participação popular e por ter expressões mais ou menos pacíficas. Isto é, alguns protestos realmente foram pacíficos e tiveram uma repressão policial desproporcional, porém outros foram bastante violentos e tiveram, portanto,uma resposta à altura. É daí que surgem as primeiras prisões políticas [ou prisões de políticos, se preferir] e os primeiros relatos de torturas nas prisões. Nesse período, Cabello passou a comandar a inteligência da polícia, a SEBIN, e diante da pressão popular deixou a rixa com o Maduro de lado, pois houve o entendimento de que era preciso uma reunificação do chavismo para lidar com uma oposição cada vez mais disposta a atos desestabilizadores.

Por ser militar, Cabello tem mais entrada nas Forças Armadas, que historicamente é o fiel da balança no poder venezuelano. Minha interpretação é que Maduro está refém dessas forças que hoje são lideradas por Cabello [tanto que hoje foi ele quem convocou a população para expressar seu apoio ao regime em frente ao palácio presidencial].

As forças militares ganharam um poder político sem igual durante o madurismo. Nem com Chávez ocuparam tantos postos e cargos estratégicos. Na minha visão, talvez justamente pela sua origem civil (diferente de Chávez e Cabello), Maduro tenha tido que ceder no sentido de colocar os militares para exercer não só as funções que lhe são tradicionais, como o controle das fronteiras [por onde passam muitos produtos contrabandeados, como gasolina, alimentos e remédios], mas também a distribuição de comida e outros bens de primeira necessidade. Isso faz com que os militares tenham acesso privilegiado a tudo aquilo que a população custa a conseguir. Há muitos indícios [até agora, nenhuma prova concreta] de que eles estejam envolvidos também em atividades ilícitas, sobretudo com o tráfico de drogas, armas e pessoas.

Digamos que, para sobreviver politicamente, Maduro depende das Forças Armadas, que hoje são vistas como extremamente corruptas.

Mas, além disso, há outro fator: no primeiro momento de boom petroleiro, nos anos 1970, os militares passaram a ter uma formação muito forte em Ciências Humanas e Sociais [isso porque sobrava tanto dinheiro que o governo investiu em bolsas de estudo no exterior e eles buscavam os cursos “mais fáceis”, que garantissem a aprovação e que não tivessem que devolver o dinheiro ao governo].

Com isso, a Venezuela passou a ter uma estrutura militar bem diferenciada na América Latina, com muitos militares com títulos de mestres e doutores em História, Ciência Política, etc. O pensamento mais crítico, presente nas Ciências Sociais, fez com que boa parte deles tenha total aversão aos Estados Unidos e à possibilidade de entrega dos bens naturais do país aos estrangeiros, o que parece explicar a lealdade da alta cúpula a Maduro, não por estarem contentes com o governo dele, mas por entenderem que sem ele seria pior.

Marcel Artioli|NEAI: Como a crise poderá ser solucionada? Eleições? Guerra Civil? Intervenções? Negociação?

Carolina Pedroso: Todas essas possibilidades estão na mesa, porém me parece que a saída mais sensata, ainda que seja a menos provável, seria pela via do diálogo mediado por atores externos, como as Nações Unidas, o Vaticano e/ou entidades civis, que encaminhem as negociações para uma saída pactuada de ambos os lados, envolvendo uma eleição livre e democrática de novos representantes em todas as esferas possíveis. Embora esse tipo de diálogo já tenha sido tentado anteriormente, a falta de acompanhamento dos compromissos assumidos (que foram sistematicamente desrespeitados pelos dois lados) fez com que as tentativas anteriores fracassassem. Ademais, elas também não envolveram a oposição como um todo, que é composta por distintos setores sociais e políticos, motivo pelo qual sua fragmentação tem sido um empecilho tanto para o objetivo de chegar ao poder, quanto para as negociações com o governo.

Por ora, o cenário que se vislumbra é mais sombrio. Além das questões geopolíticas e dos entraves internos ao diálogo, a falta de uma estrutura regional considerada “neutra”, no sentido de promover uma negociação em um ambiente confiável para todos os lados, explica também as dificuldades para que surja uma saída pacífica e pactuada. Não à toa a debacle venezuelana coincide com o ocaso da UNASUL, plataforma que poderia ter servido a esse propósito se não tivesse sido debilitada a partir do segundo mandato de Dilma Rousseff, até chegar a sua praticamente extinção sob Bolsonaro.

Inflação, Câmbio e concentração de renda na sociedade brasileira

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             Durante muitas décadas a inflação teve um papel devastador na sociedade brasileira, chegando a mais de 2000% ao ano, gerando impactos econômicos, sociais e políticos, concentrando renda e condenando milhões de brasileiros a uma condição de indignidade crescente, pobreza e exclusão social e contribuindo para o surgimento de um grupo considerável de novos ricos e milionários, cujos recursos eram multiplicados num curto período de tempo.

Podemos definir o processo inflacionário como o aumento generalizado de preços na economia, este desequilíbrio de preços acaba gerando graves desajustes nas economias quando percebemos seu crescimento, abalando a credibilidade da economia, concentrando renda e fazendo uma política de Robin Hood às avessas, tirando dos pobres e repassando para os ricos, neste processo, os pobres se degradam mais e os ricos se veem cada vez mais ricos e poderosos.

Os pobres são os mais afetados pelo processo inflacionário, isto acontece porque estes trabalhadores não tem acesso a contas indexadas, seus recursos não possuem seguros em aplicações financeiras, sua renda não consegue se defender do processo inflacionário, com isso, seus recursos são corroídos cotidianamente pelo descontrole de preços, mesmo aqueles que possuem contas em bancos e, teoricamente, teriam instrumentos de defesa contra a corrosão monetária, não possuem informações sobre estes instrumentos de defesa e acabam sucumbindo a perdas consideráveis de suas rendas, sem informação os instrumentos perdem a importância e a efetividade.

Se analisarmos as raízes do processo inflacionário brasileiro, vamos descobrir suas origens no descontrole fiscal e financeiro do Estado Nacional, este desequilíbrio se mostrou mais efetivo no período de industrialização, entre os anos 1930 e 1990, quando o governo tomou a frente deste processo industrializante e construiu as bases da indústria nacional, investindo somas consideráveis de recursos, mobilizando mão de obra, infraestrutura, matéria prima, criando instituições e conseguiu transformar a economia do país, neste período saímos de uma estrutura fortemente centrada na produção agrícola, para uma economia centrada na produção de produtos industrializados, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), em 1980 o Brasil tinha a indústria mais sofisticada dos países em desenvolvimento, mostrando que a estratégia adotada, apesar dos riscos, apresentou um resultado fortemente favorável, nestes trinta anos, o crescimento per capita do país ficou na casa dos 4,5%, um número extraordinário, que garantiu ao país um local no panteão das economias industrializadas. Em contrapartida, depois de 1980, o crescimento do produto interno bruto per capita caiu para algo em torno de 0,9% ao ano, levando a economia brasileira a um processo nítido e bastante evidente de estagnação.

Todos estes investimentos exigiram grandes somas do governo federal, que recorreu a instrumentos clássicos de financiamento, desde os recursos oriundos dos impostos, taxas e contribuições, até a atração de investimentos nacionais e estrangeiros, não sendo suficientes estes recursos, o governo se utilizou da emissão monetária, que ao depreciar a moeda garantia ao Estado Nacional somas consideráreis de recursos mas, desequilibrava o sistema de preço, gerava inflação e hipotecava o país no longo prazo.

Devemos entender a inflação como um conflito distributivo entre grupos que se digladiavam em prol de mais ganhos do orçamento, deste conflito alguns apresentam um poder político e instrumentos econômicos maiores e mais sólidos, garantindo benesses e lucros mais consistentes para seus grupos políticos, em contrapartida, os grupos perdedores desta contenda, perdem partes consideráveis destes recursos, tendo que se contentar com o seu quinhão.

Depois de décadas de crescimento econômico, que colocou o país em uma posição de destaque no cenário internacional, na década de 80, o país se viu em uma situação de graves desequilíbrios financeiros e monetários, inflação desequilibrada e dívida externa crescente, levando o país a uma década de baixo crescimento econômico, período conhecido como década perdida.

            Com a redemocratização, o país passa a buscar instrumentos de estabilização monetária, os altos índices inflacionários e o desequilíbrio no sistema de preços relativos levam a economia a uma década de estagnação, neste momento, o governo inicia o Plano Cruzado, uma política de estabilização centrada no congelamento dos preços, na emissão monetária para honrar a dívida interna, na troca de moedas e na redução da taxa de juros visando um choque de oferta e um aumento no nível de emprego. Estas medidas serviram para aguçar, na sociedade, a urgência de se combater a inflação, condição sine qua non para que o país voltasse a crescer e galgasse uma posição de destaque na comunidade internacional.

Com a incapacidade do plano em conter os desequilíbrios inflacionários, outros planos econômicos foram construídos e arquitetados pelo governo federal, Plano Bresser, Plano Verão, Plano Collor, sendo que, todos eles fracassaram em seu intento maior, até que, em 1994, o governo cria o exitoso Plano Real, cujo sucesso catapultou o Ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, para o cargo de Presidente da República, e abriu espaço para a abertura de uma agenda econômica que se concentrava na austeridade e em políticas pró-mercado, a esquerda brasileira as chamava de política neoliberal, enquanto a direita as via como muito esquerdista, criticando-as constantemente.

Embora exitoso no combate a inflação, o Plano Real trouxe efeitos colaterais bastante negativos e generalizados, o mais deletério para a economia brasileira no médio e no longo prazo foi a política cambial, neste momento o governo valoriza a moeda nacional visando um aumento da oferta interna de produtos e, com isso, aumentando a competição e garantindo uma redução nos preços e na inflação. Câmbio valorizado auxilia no combate a inflação, mas, ao mesmo tempo, reduz as exportações e compromete um dos setores mais dinâmicos e importantes para a economia do país, o setor exportador, que vê seus rendimentos se reduzirem de forma acelerada, levando-o a colocar seus produtos no mercado interno, gerando uma maior oferta interna e contribuindo para uma redução nos preços.

De outro lado, a política de estabilização gera impactos negativos no setor externo da economia e na balança comercial, obrigando o governo a adotar uma política agressiva de juros elevados que aumentaram a divída interna pública e comprometeram a capacidade de pagamento do setor público, obrigando-o a contenções constantes nos gastos públicos e levando a economia a constantes recessões e desequilíbrios estruturais.

Numa economia fortemente dependente do Estado, todas as vezes que este diminui seus investimentos e seus gastos, os impactos são imensos, preocupantes e generalizados, levando muitos setores a verem seus recursos serem contingenciados, principalmente em áreas sociais, como saúde, educação e segurança pública, cujos indicadores destas áreas se degradaram rapidamente, incrementando uma piora na desigualdade e na exclusão social.

O discurso do governo era de implementação de políticas de estímulo a concorrência e a competição, a adoção de um discurso de abertura econômica e de privatização levou os investidores internacionais a fazerem boas previsões para o Brasil, como o estrategista Jim O’Neil, da Goldman Sachs, que colocou o país no bloco dos grandes, promissores e futuros países desenvolvidos, junto com a Rússia, a China e a Índia, os chamados BRICs.

De outro lado, as condições sociais não eram tão favoráveis, o desemprego crescia de forma acelerada em decorrência da quebra e da reestruturação de empresas nacionais, que não aguentaram a concorrência com similares internacionais, umas acabaram sendo vendidas para grupos estrangeiros e outras iniciaram um forte processo de reestruturação, reduzindo mão de obra e investindo fortemente em máquinas e tecnologias, visando um incremento da produtividade e uma redução dos custos relativos.

Neste ambiente de incremento no desemprego e câmbio valorizado, a inflação se reduz rapidamente, o plano contribuiu para reduzir os preços e estabilizar a economia, mas gerou graves consequências para toda estrutura produtiva, a industrialização se acentuou e a pauta de exportações do país caminha a passos acelerados para uma hegemonia dos produtos agrícolas, piorando os termos de troca da economia brasileira e condenando o país a uma condição de subserviência na sociedade internacional, dominado pelos grandes conglomerados de tecnologia.

O câmbio valorizado, embora tenha contribuído diretamente para a redução do desequilíbrio inflacionário, trouxe graves constrangimentos para a economia brasileira, incrementou as importações e desestimulou as exportações, o país passou a acumular graves desequilíbrios no balanço comercial e, posteriormente, estes desequilíbrios se disseminaram para todo o balanço de pagamentos, levando o país a pedir recursos do Fundo Monetário Internacional (FMI) para evitar uma situação de possível insolvência do país. A entrada de recursos oriundos do organismo internacional impediu uma possível bancarrota do país, mas acarretou graves constrangimentos para o governo, gerando dificuldades políticas no curto prazo, levando a perda de legitimidade e dificuldades perante a opinião pública.

Delfim Neto definiu o Plano Real como uma pequena jóia, extremamente exitoso no combate a inflação, um plano econômico tecnicamente brilhante que ficou incompleto, faltando um ajuste fiscal mais sólido e consistente, que leve a economia a encontrar seu equilíbrio fiscal e financeiro, sem este equilíbrio macroeconômico muitos problemas voltaram num curto período de tempo.

O Brasil precisa vencer suas ineficiências fiscais, de tempo em tempo o país se volta com problemas de desajustes em suas contas, na atualidade nos encontramos em situação perigosa, onde a Reforma da Previdência é vista como a panaceia do desequilíbrio financeiro do Estado Brasileiro, se resolver as questões fiscais, dificilmente conseguiremos galgar posições saudáveis no longo prazo.

A inflação sempre foi um grande problema para a economia brasileira, no período de alta inflacionária os bancos ganharam grandes somas de recursos com o desequilíbrio dos preços, levando muitos deles a deixar de lado seu papel como intermediador de recursos monetários, seu papel central na economia, e se especializando no ganho com a inflação, levando-os a acumular grandes somas sem fazer os esforços necessários e com riscos reduzidos. Com a queda imediata da inflação, muitas das instituições financeiras que se especializaram no floating inflacionário, deixaram de ganhar com os recursos gerados via inflação e foram obrigadas a competir no mercado, como perderam esta expertise foram facilmente superadas pelas instituições mais eficientes, perderam mercados e foram vendidas para instituições estrangeiras ou fundidas com instituições nacionais maiores, neste momento o setor bancário inicia um processo forte de concentração bancária, onde as mais eficientes adquirem as instituições mais atrasadas e ineficientes.

A inflação é um dos grandes preços da economia, junto com a taxa de câmbio e a taxa de juros, se estes indicadores estiverem em equilíbrio e em consonância com a teoria econômica, o país tem grandes chances de acelerar seu crescimento econômico, nos últimos quarenta anos, o Brasil apresentou graves desajustes nestes preço e, com isso, perdemos grandes oportunidades de desenvolvimento econômico e nos distanciamos dos grupos mais desenvolvidos, encontrar este equilíbrio é uma condição sine qua non para atingirmos o tão esperado desenvolvimento econômico, com melhoria na produtividade e um crescimento no bem-esta social para todos os grupos e camadas da população.

Vencer a inflação foi um grande desafio para a sociedade brasileira, nesta trajetória o país conviveu com ciclos inflacionários crônicos de mais de 2000% ao ano, um desatino macroeconômico que impactou sobre todo o planejamento do país e até sobre o conceito de longo e de curto prazo, levando a população a se concentrar em políticas imediatistas. Nestas condições de desequilíbrios estruturais, a inflação contribuiu, de forma decisiva, para uma intensa desagregação social e uma concentração de renda que colocou o Brasil nas últimas colocações em indicadores sociais, consolidando uma elite predatória, uma classe média medíocre e despolitizada e uma classe pobre subalterna e submissa.

Yascha Mounk: ‘Temo que possa ser o início de uma era populista’

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Cientista político analisa o fenômeno político em novo livro e diz que discurso de Jair Bolsonaro é ‘preocupante’

Entrevista com

Yascha Mounk, cientista político alemão e autor do livro ‘O Povo Contra a Democracia’

Paulo Beraldo e Vitor Marques, O Estado de S.Paulo

28 de abril de 2019

O cientista político e professor da Universidade Johns Hopkins (EUA) Yascha Mounk afirma, em entrevista ao Estado, que o mundo vive hoje uma onda de ascensão de populistas e que “teme” que esse movimento não seja passageiro. Autor do recém-lançado O Povo contra a Democracia (Companhia das Letras), Mounk, que é alemão, alerta que hoje as quatro maiores democracias do mundo são governadas por populistas. Para ele, essa ascensão se baseia em três motivos: descontentamento com a estagnação econômica, medo e incertezas em relação ao futuro e o uso de redes sociais. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Como o sr. definiria populismo e quais as diferenças entre populismo de esquerda e de direita?

O que todos eles dizem é que a única razão real pela qual temos problemas é porque os líderes políticos são corruptos e eu, o populista, represento as pessoas verdadeiras, “o povo de verdade”. Então, o que precisamos para resolver os problemas é que eu assuma o poder e coloque ordem em tudo. Esse elemento é interessante: eles clamam por serem os únicos que representam de verdade as pessoas. Os populistas, seja Jair Bolsonaro ou Hugo Chávez, atacam a liberdade de imprensa, as instituições independentes como as Cortes e tentam mostrar que a oposição é composta por traidores.

Em relação às diferenças, em geral, os de direita dizem que vão obter crescimento econômico com práticas liberais na economia e reduzindo o tamanho do Estado. Já os de esquerda falam que vão cortar privilégios das grandes empresas. Também há diferenças nos grupos de “inimigos específicos” que eles imaginam. Isso varia de país para país.

No prefácio da edição brasileira de seu livro O Povo contra a Democracia, o senhor afirma que Jair Bolsonaro é uma ameaça à democracia. Por quê?

Quando você olha para Jair Bolsonaro, o discurso claramente combina com o de pessoas como Recep Erdogan, da Turquia, ou Viktor Orban, da Hungria. Ele desacredita as instituições democráticas, glorifica um passado de ditadura militar e não aceita como legítimo quem o critica. Isso é muito preocupante. Mas uma boa notícia é que ele não tem o controle total do governo. Ele não tem maioria no Congresso e isso pode reduzir seu poder de uma maneira significativa.

A ascensão do populismo pode perdurar por mais de uma década e se transformar em uma era populista?

Temo que possa ser o início de uma era populista. Primeiro porque os populistas não são mais periféricos. Eles talvez sejam a força política mais dominante no mundo hoje. Quando as pessoas percebem que as promessas (dos populistas) são falsas, que (eles) são tão corruptos ou mais corruptos que os políticos que vieram antes deles, muitas vezes não voltamos a (eleger) um político mais moderado. As pessoas colocam sua esperança na segunda, na terceira geração de populistas.

Por que populistas de direita têm obtido mais vitórias nas urnas do que populistas de esquerda?

Na Europa existe uma divisão real dos países. Há países em que a principal preocupação é a economia ou a imigração. Na Suécia ou na Alemanha, onde a economia está muito bem e a imigração é um problema, a direita é mais forte. Depende da experiência particular desses países e dos medos que as pessoas têm.

O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente Jair Bolsonaro, viajou à Europa e se encontrou com líderes de extrema-direita. O senhor vê algum tipo de aproximação entre a direita mundial?

Há definitivamente a ascensão internacional de nacionalistas e populistas da extrema-direita. Eles desdenham de certos grupos minoritários, têm certa impaciência com normas democráticas e instituições e se tornam bastante efetivos ao ajudar uns aos outros e atacar governos de oposição. Mas agora muitos deles (da extrema-direita) estão no governo.

As quatro grandes democracias do mundo (em termos de população) – Índia, Indonésia, Brasil e Estados Unidos – são governadas por populistas. Nos próximos anos, veremos até que ponto eles poderão cooperar quando tiverem de tomar decisões reais, quando o interesse de uma nação possa entrar em conflito com o interesse de outra.

No livro, ao analisar a ascensão de líderes autoritários, o senhor também cita as redes sociais como parte desse processo. Qual o impacto que as redes sociais têm na eleição de populistas?

A mídia social desempenha um papel muito grande. É o que permite a disseminação de vozes radicais, porque os jornais não funcionam mais como mediadores. As mídias sociais também tornaram mais fácil para que partidos e candidatos extremistas encontrem um grande público, se organizem e realizem campanhas políticas. Ao mesmo tempo, tudo isso apenas mobiliza a raiva existente. Por que essa raiva é tão eficaz? Por que é tão profunda? Porque há medos reais, medos de mudanças culturais e frustração econômica.

Redes sociais também disseminam notícias falsas. Como combatê-las sem que sejam tomadas decisões que imponham a censura?

Em muitos países existem tentativas de censura no momento. Isso é um grande erro. Eu não confio em nenhum conjunto específico de indivíduos ou instituições para tomar uma decisão de permitir o que eu sou capaz de ouvir ou não. As pessoas estão mais dispostas a ouvir as teorias da conspiração, mais dispostas a culpar fora do que está errado.

Elas acham que as coisas não estão indo muito bem e então alguém está conspirando contra elas. Uma das coisas que precisamos fazer é mostrar que o sistema tem interesses de trabalhar para elas e mostrar que o futuro será melhor que o passado.

Como a oposição deveria reagir para enfrentar os populistas no poder?

Há algumas coisas que os partidários da democracia liberal têm de fazer para salvar os valores mais fundamentais. A primeira é construir uma ampla coalizão para se opor às pessoas que tentam atacar a democracia liberal. Eles devem proteger um sistema que celebre as diferenças e lutar por seus próprios ideais políticos. A segunda ação é enfrentar qualquer tentativa de concentrar o poder nas mãos de líderes populistas, defender a liberdade de imprensa e garantir que eles (populistas) não possam expandir o Poder Executivo.

Em terceiro, devem formular uma visão de como o país seria se esses partidos estivessem liderando e não Bolsonaro. Para isso, é preciso se reinventar e garantir que as pessoas possam acreditar que a oposição não será corrupta como os governos predecessores.

 

Autoridade do STF depende, em última instância, só dele

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Cortes constitucionais estão sob forte ataque em diversas partes do mundo

Oscar Vilhena Vieira

As cortes constitucionais estão sob forte ataque em muitas partes do mundo. Até mesmo tribunais internacionais, criados a partir da ação voluntária dos Estados, têm sido ameaçados nos últimos tempos.

A ascensão de forças populistas e autocráticas, de direita ou esquerda, toma tribunais dispostos a garantir direitos e a institucionalidade constitucional como alvos preferenciais, tal como ocorreu na Rússia de Putin, África do Sul de Zuma, Venezuela de Chaves, Colômbia de Uribe, Hungria de Orbán ou Turquia de Erdogan.

Assim, a sugestão de que basta um cabo e um soldado para fechar o Supremo Tribunal Federal, feita por um filho de Bolsonaro, os inúmeros pedidos de impeachment de membros do Tribunal já protocolados no Senado, além de uma sórdida campanha nas redes sociais contra distintos ministros, não chegam a surpreender.

É da natureza do pensamento autocrático se insurgir contra os limites traçados pelo Estado de Direito, assim como em relação às instituições responsáveis pela sua defesa. Não é mera coincidência que tanto Vargas, em 1931, quanto os militares, em 1969, suspenderam as garantias da magistratura e determinaram a aposentadoria compulsória de ministros do Supremo Tribunal Federal do calibre de Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva.

Embora os ataques mais torpes ao Supremo Tribunal Federal possam ser compreendidos como parte do processo de regressão democrática em que imergimos nos últimos anos, é essencial que se busque compreender os fatores institucionais e dinâmicas específicas do caso brasileiro, que deixaram nossa Suprema Corte numa posição de enorme vulnerabilidade.

Do lado institucional, a fragilidade do Supremo decorre, paradoxalmente, dos “tremendos poderes”, tomando emprestado o termo de João Mangabeira, que recebeu da Constituição de 1988.

Dada a ampla desconfiança entre os atores políticos e corporativos que marcou nosso processo de transição, a estratégia que prevaleceu durante a Constituinte foi a de entrincheirar o máximo de direitos, interesses, prerrogativas e privilégios no corpo da Constituição. Ao Supremo Tribunal Federal foi delegado o papel de zelar pelo cumprimento dos compromissos assumidos na Constituição.

Para cumprir essa função de grande guardião do pacto de 1988 foram ampliadas a suas atribuições e fortalecidas as suas prerrogativas. A ele foram conferidas a função de tribunal de recursal de última instância, responsável por decidir centenas de milhares de casos todos os anos sobre os mais distintos assuntos.

Como tudo se tornou matéria constitucional, todo conflito passou a ter o potencial de chegar ao Supremo. O tribunal também recebeu a função de corte constitucional, podendo ser acionado por partidos, governadores, confederações sindicais toda vez que vissem seus interesses derrotados na arena política, tendo, inclusive o poder de anular emendas à Constituição.

Dessa forma passou, na prática, a agir como uma casa revisora do sistema político, podendo eventualmente proferir a última palavra em temas de máxima importância nos campos político, econômico e moral.

Por fim, o Supremo recebeu a função de tribunal de primeira instância para julgar atos políticos e administrativos das mais altas autoridades do país e a responsabilidade de julgar criminalmente a classe política, com assento no Congresso Nacional e na explanada. Dada a alta taxa de criminalidade de nossa classe política, isso se demonstrou uma tarefa espinhosíssima.

Dessa forma, é importante dizer que o Supremo não usurpou poderes políticos. Foram os próprios políticos, desconfiados de sua incapacidade de coordenar suas disputas no campo democrático, que delegaram ao tribunal esse papel “supremocrático”.

O tribunal, no entanto, não deve ficar isento de responsabilidade pelo infortúnio que agora vive. Com o passar dos anos, diversos membros do tribunal foram assumindo uma postura mais ativista, ou seja, passaram a tomar decisões cada vez mais descoladas do texto legal, se afastando da função propriamente jurisdicional (ordenada) para assumir um papel político (ordenador).

No mesmo sentido, por intermédio da doutrina jurisdição objetiva, muitos ministros passaram a decidir sobre questões que não estavam colocadas nos processos, exercendo pro-ativamente uma atividade política.

Essa função ficou reforçada pela capacidade dos ministros de escolher o que querem e quando querem julgar um determinado caso. Dadas a enorme quantidade de casos e a falta de critério ou transparência na formação da agenda do tribunal, os ministros passaram a ter um grande controle sobre a agenda política nacional.

Há um componente, no entanto, que vem contribuindo de forma decisiva para ampliar o esgarçamento da autoridade da corte, que está associado à apropriação de sua jurisdição pelos ministros.

Esse fenômeno começou a chamar a atenção dos analistas em meados dos anos 2000. Na última década houve um crescimento significativo das decisões monocráticas, o que levou Diego Argules e Leandro Ribeiro a forjar o conceito de “ministrocracia”. Esse fenômeno não apenas potencializa a insegurança jurídica como também politiza a jurisdição constitucional e aumenta a vulnerabilidade do tribunal e de cada um de seus membros.

É neste contexto que o imbróglio criado pelos ministros Dias Toffoli e Alexandre de Morais deve ser analisado. Enquanto determinados setores afetados pela Lava Jato atacam alas do Supremo, grupos hostis ao constitucionalismo democrático estabelecido em 1988, com seu largo programa de progressismo moral e social, buscam destruir sua autoridade para avançar os seus objetivos.

É por isso que os ataques vêm de todos os lados, ora contra ministros que tomam decisões progressistas no campo moral, ora contra ministros que tomam decisões garantistas no campo penal. No caso do inquérito aberto pelo presidente do tribunal para apurar os ataques à corte nas redes sociais, as críticas foram quase unânimes.

Certamente o Supremo Tribunal Federal não será capaz de reestabelecer o equilíbrio do sistema político que emergiu numa nefasta e interminável batalha de poderes nos últimos tempos. Nem é essa a sua função. Ao Supremo, no entanto, cabe o relevantíssimo papel de garantir a Constituição e, assim, dar sua parcela de contribuição para a saúde de nossa democracia.

Por maiores que sejam seus problemas, o Supremo ainda pode desempenhar um papel fundamental para que nosso sistema político readquira sua capacidade de coordenar os seus conflitos e disputas dentro do campo democrático, sem colocar em risco os direitos dos grupos mais vulneráveis.

Para isso é necessário que reforce a sua colegialidade e assuma uma postura cada vez mais técnica, discreta e arraigadamente apegada ao que foi estabelecido pela lei. É importante lembrar que a autoridade do Supremo depende, em última instância, apenas dele.

Oscar Vilhena Vieira é professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP; autor de “A Batalha dos Poderes”

Proposta de esvaziamento das humanas é equivocada e fere a Constituição Federal

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Proposta de esvaziamento das humanas é equivocada e fere a Constituição Federal

Universidades brasileiras têm autonomia didática garantida e regulamentada por lei de 1996

Sabine Righetti Nina Stocco Ranieri

SÃO PAULO

A proposta de redução de investimentos do MEC em sociologia e em filosofia para priorizar áreas como engenharias e veterinária mostra, de novo, que o governo parece desconhecer as leis e a realidade do ensino superior brasileiro.

As universidades brasileiras têm autonomia didática garantida pela Constituição de 1988 e regulamentada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1996. De acordo com o marco legal, a decisão sobre criação, expansão, modificação e extinção de cursos de graduação no Brasil é prerrogativa exclusiva das universidades.

Isso significa que legalmente não cabe ao MEC decidir quais graduações devem receber mais ou menos recursos e nem o que deve ser extinto. Isso já havia sido discutido em 2018 no caso da oferta de uma disciplina sobre o “golpe de 2016” na UnB.

O governo erra se a proposta de esvaziar sociologia e filosofia for, de fato, redução de custos. Esses cursos têm operação relativamente barata se comparados às ciências da saúde, por exemplo, que muitas vezes têm laboratórios requintados e equipamentos importados que podem valer alguns milhões.

Sociologia e filosofia precisam de bons professores, salas de aula e bibliotecas.

Se acha que as humanas têm mais gente do que o país precisa, o governo também está equivocado. De acordo com dados do próprio MEC, apenas 0,6% dos ingressantes no ensino superior se matricularam em sociologia ou filosofia em 2017. Foram pouco mais de 10 mil alunos entrando nessas duas carreiras naquele ano —cursos de direito receberam 215,6 mil novos alunos no mesmo ano.

A quantidade de alunos em filosofia e em sociologia é tão baixa no Brasil que, neste ano, os dois cursos ficarão de fora da avaliação de carreiras do RUF – Ranking Universitário Folha. O RUF olha para as 40 carreiras com maior demanda no país de acordo com dados do último Censo da Educação Superior disponível (no caso, de 2017). Moda e zootecnia passaram sociologia e filosofia em número de ingressantes e, por isso, entrarão na avaliação no RUF 2019.

A LDB exige o ensino de filosofia e sociologia na educação básica. Sem os cursos das universidades públicas, como preencher os cargos de professor nas escolas? Além disso, fixar o número de vagas em qualquer curso, de acordo com a capacidade institucional e as exigências do seu meio, também é prerrogativa da autonomia universitária.

O Brasil tem problemas sociais gravíssimos. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de pessoas mortas de forma violenta no país é semelhante ao de regiões em guerra. No caso das mulheres, a situação é mais grave.

Como a Folha mostrou recentemente, ao menos 119 mulheres foram mortas no Brasil em janeiro deste ano por causa de seu gênero —o que é chamado de feminicídio. Há uma média de 164 casos de estupros por dia no país. Somos o país que mais mata a população LGBT no mundo, de acordo com a ONG Transgender Europe (TGEU).

São justamente os sociólogos e profissionais de áreas correlatas que precisam estudar, entender e propor soluções para esses fenômenos –e as universidades públicas não podem deixar de responder a essas necessidades sociais. Erra o governo ao achar que essas áreas não geram “retorno imediato ao contribuinte”, como afirmou Jair Bolsonaro (PSL) em redes sociais.

O governo pode priorizar áreas em políticas públicas específicas. Caso do Ciências sem Fronteiras, programa de intercâmbio carro-chefe da gestão Dilma Rousseff (PT) —tão criticada pelo atual governo. O programa enviou de 2011 a 2017 cerca de 100 mil alunos de graduação e pós-graduação para universidades estrangeiras em áreas sobretudo de engenharias e ciências da saúde. As humanas ficaram de fora.

O governo não pode, no entanto, anunciar intervenções nas universidades que, além de inconstitucionais e ilegais, não têm embasamento em dados, em estudos e nenhuma proposta clara.

Cabe ao MEC assegurar, anualmente, recursos para a manutenção e o desenvolvimento das instituições de educação superior federais, como determina a lei, sem qualquer condicionamento. E, no mínimo, manter diálogo com as universidades —o que não vem fazendo.

Sabine é pesquisadora-docente da Unicamp e coordenadora acadêmica do RUF; Nina é coordenadora da Cátedra Unesco de direito à Educação da FDUSP

Ilona Szabó: “A direita fala em renovação para chegar ao autoritarismo”

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A especialista em segurança pública fala em razão e empatia para lidar com o ódio e a polarização da sociedade 

“Num momento de discurso da aniquilação do inimigo”, em que prevalece “a lógica de quem pensa diferente precisa ser calado”, a cientista política e especialista em segurança pública, Ilona Szabó, propõe “muita inteligência emocional e racional” e “um diálogo franco com a restante da sociedade civil”, para romper a polarização e o ódio nas redes sociais. “Se a gente recuar em todos os espaços de participação, ganha a parte autoritária”, diz.

Alvo de ataques e difamações há quinze anos por encabeçar discussões sobre temas que dividem a sociedade – como regulação de armas de fogo, a reforma da política de drogas e modernização da polícia –, Ilona foi secretária-executiva da Comissão Latinoamericana sobre Drogas e Democracia e também da Comissão Global de Políticas sobre Drogas. Em 2011, fundou o Instituto Igarapé, organização que elabora pesquisas e propõe políticas sobre segurança, justiça e desenvolvimento.

A mais recente onda de ataques contra a cientista política se deu em fevereiro deste ano durante a campanha #IlonaNão, promovida pela direita contra a sua nomeação como suplente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, a convite do ministro da Justiça Sérgio Moro. A hashtag alcançou os Trending Topics do Twitter e resultou na exoneração de Ilona apenas dois dias após a nomeação. À imprensa, o presidente Jair Bolsonaro justificou que a posição da pesquisadora sobre a legalização do aborto e outros temas são “incompatíveis com o governo”.

O episódio trouxe consequências: Ilona diz estar se sentindo insegura, evitando dar entrevistas ou falar publicamente sobre temas polêmicos. “Estou me sentindo tolhida. Pela primeira vez [no Instituto Igarapé] estamos fazendo uma autocensura para evitar riscos. Eu trabalho com esses temas há 15 anos e eu nunca pensei que a gente pudesse enfrentar esse tipo de risco.”

Em entrevista à Pública, Ilona Szabó também falou sobre o pacote anticrime proposto por Sérgio Moro e a escalada da violência policial, que para ela está ligada a atitudes do presidente Bolsonaro e de seus seguidores, e criticou a proposta do ministro Moro pelo fim da punição de policiais que matam “em legítima defesa”. “Você jamais pode dar autorização para que a polícia, força de segurança, qualquer cidadão, exceda o uso da violência. Isso é cruzamento de linha total. A gente está escolhendo se vai viver numa democracia ou num estado autoritário onde a próxima vítima pode ser você.”

Agência Pública: Quais foram as consequências da campanha #IlonaNão?

Ilona Szabó: Num momento de um discurso de aniquilação do inimigo, onde se trabalha com a lógica de que quem pensa diferente precisa ser calado, isso deixa a gente bastante vulnerável principalmente porque eu trabalho com a formação de opinião pública. Tem eu, a minha equipe, majoritariamente de mulheres, numa exposição pública muito grande. E a gente começou a se sentir mais insegura. Não tem problema discordar, o problema é quando entra desonestidade no debate. Ataque, mentira, difamação. Essa é a linha [que separa] com quem eu aceito debater em público ou não.

Infelizmente, a gente sabe que a violência, quando incitada, é muito difícil fazer a gestão de risco se ela irá vazar ou não para a vida real. É a primeira vez que a gente está pensando sobre isso de verdade no Instituto Igarapé. É uma crescente – estou deixando de dar entrevista sobre alguns temas, não estou me sentindo segura para falar. É escolher o tipo de briga que a gente compra ou não porque estamos sem capacidade de análise de risco, e não somos só nós – temos conversado com outras organizações da sociedade civil.

Antes tínhamos um cenário mais claro da institucionalidade que protegia a liberdade de expressão, a gente poder ter opinião [diferente] e ainda sentar à mesa. A gente nunca atacou as pessoas que pensavam diferente de nós, sempre conseguimos ser críticos construtivos e sentar com pessoas que pensam diferente. Essa questão está mais difícil agora, bem mais difícil, e isso traz muitos desafios ao nosso trabalho. Eu não posso dizer com quem eu encontro, com quem não encontro, tudo pode gerar uma crise. E não posso falar na imprensa sobre alguns assuntos. Estou me sentindo tolhida. Estamos fazendo uma autocensura para evitar maior exposição a riscos que a gente não está conseguindo medir. Eu trabalho com esses temas há 15 anos e nunca pensei que a gente pudesse enfrentar esse tipo de risco.

AP: O que virou a chave para que os ataques contra você atingissem essa proporção?

IS: O que acontece no Brasil, e a gente demorou para ver porque infelizmente estamos numa bolha, é que existe uma arquitetura de grupos bastante radicais que têm essa ideia não-democrática de aniquilar o outro. Não digo fazer alguma coisa física, mas nas redes sociais eles querem calar, não deixar que aquela opinião ganhe destaque ou seja discutida. Isso não é de hoje, mas o que potencializou nas eleições foi que essa máquina invisível do uso de robôs e outras táticas, foi impulsionada pelas redes fortalecidas com o processo eleitoral. A eleição é a consequência disso.

Meses depois da eleição ainda vemos essa ideia de que ou você apoia ou você é contra, e quem está contra precisa ser aniquilado porque está a favor dessa maluca conspiração comunista-globalista-nacionalista-tudo mais “ista” que todos nós estamos tentando descobrir o que significa.

AP: Quais outros ataques você sofreu ao longo da sua trajetória?

IS: Sofro linchamento virtual há muito tempo; há 15 anos eu falo sobre controle de armas e há 15 anos eu sofro ataques. Mas no final de 2017 e começo de 2018 teve um pico e foi o primeiro grande ataque que eu sofri, por conta do meu envolvimento com movimentos cívicos e de renovação política como o Movimento Agora!, do qual sou co-fundadora. Foi uma série de vídeos do MBL [Movimento Brasil Livre] dentro da temática controle de armas com uma retórica “globalista-comunista-braço do George Soros-quer liberar droga-quer defender bandido”. Esse grupo pegou a bandeira de uma turma pró-armas e começou a bater também em outras questões na arena da renovação política.

Os vídeos foram para canais com milhões de usuários, para o WhatsApp, e circulavam nessas redes que a gente depois viu serem multiplicadas ao longo da campanha presidencial. Chegaram às redes de policiais militares, de pessoas que estavam já construindo o que a gente viu nas eleições, e explodiram em perfis do Facebook, inclusive em perfis de autoridades. Aqui eu tenho que ter muito cuidado porque essa prática não acontece mais e por orientação jurídica eu resolvi não processar, mas os ataques vinham de membros do Ministério Público também. Pessoas que são pagas com o nosso dinheiro postavam as mesmas coisas que esse grupo [MBL] postava. Pegavam meus artigos e falavam barbaridades, chamavam o Instituto Igarapé de “Instituto Igarapó”.

AP: Dentro do Igarapé, quais foram as consequências dos ataques do MBL?

IS: Posso dizer com todas as letras que me causou um monte de problemas. Para o Igarapé foi muito difícil, eu nunca fui filiada a nenhum partido e as pessoas achavam que de fato eu estava planejando isso. Nossa missão é avançar políticas públicas baseadas em evidências para reduzir violência letal, no Brasil e no mundo. Eu tenho como mandato fazer pontes, tentar dialogar com quem pensa diferente, criar agendas mínimas. Poucas organizações da sociedade civil têm uma estratégia como a nossa. Quando usam isso para dizer que o Igarapé não é neutro, que está servindo a esse ou outro governo, me traz problemas, como se tivessem agendas escondidas no trabalho que a gente sempre fez. Eu tive que fazer uma mega redução de danos. O impacto maior foi no Rio de Janeiro, onde a gente estava começando a construir parcerias maiores com as lideranças políticas.

AP: Foi o MBL que começou a campanha difamatória pela sua exoneração?

IS: Tanto esses grupos de pró-armas quanto o MBL estiveram envolvidos no episódio #IlonaNão, mas se juntaram a uma rede muito mais poderosa: a máquina dos apoiadores do governo. O grupo pró-armas tem um nicho muito fiel e muito barulhento, mas ele não é gigante nas redes. Teve muita interação orgânica, mas também muito robô. Eu estava em Brasília quando começou a campanha no Twitter. Vi o post quando saí do avião, um amigo mandou. Estou acostumada a ler esse tipo de coisa, mas eu nem imaginava a dimensão que ia tomar.

AP: Alguns desses grupos que foram contra a sua nomeação e participaram da campanha difamatória contra você se auto-intitulam “anti-establishment”. Ao mesmo tempo, criticam vozes como a sua, que participam desse movimento por renovação política. É um paradoxo?

IS: Eu defendo um movimento por renovação política com base no estado democrático de direito. Essas pessoas estão usando o conceito da renovação política para caminhar para o autoritarismo. Infelizmente o nome foi apropriado. Para mim está muito clara essa diferença, entre grupos democráticos e grupos não-democráticos. A “nova política” não é o que a gente está vendo, não no sentido democrático. A pluralidade, a diversidade, o diálogo, a construção, a negociação que faz parte do jogo político – desde que aberta, transparente e baseada no interesse público –, tudo isso está muito ligado aos princípios da democracia. Esses grupos que são minoritários não têm esses mesmos princípios. Não são pela renovação política, até porque as práticas políticas que vêm sendo usadas não tem nada de novas, são práticas ultrapassadas, que enfraquecem a democracia.

AP: Quando o governo retirou sua nomeação ele foi conivente com os ataques que você sofreu?

IS: Sinceramente, o Ministério da Justiça ainda é um lugar que dá para divergir e conversar. Eles não foram desonestos comigo. Porém, a base de apoiadores do núcleo do presidente não tolerou alguém com ideias diferentes tendo algum tipo de voz, mesmo que não tivesse voto, pois não era um conselho deliberativo, apenas consultivo, voluntário. É essa base que quer aniquilar a diferença, mas ela não é o governo como um todo. Isso precisa ficar claro, até porque querem que você veja dessa forma porque isso acaba jogando um lado contra o outro e acredito que, na democracia, você precisa achar esses pontos de contato, e mesmo nessa situação eles existem. Eu continuo nesse diálogo com pessoas que estão dispostas a dialogar sobre agendas comuns, mesmo com divergências dentro desse governo.

AP: Há essa abertura, mas na prática parece não haver abertura, tanto é que você foi exonerada por pensar diferente.

IS: O governo não é uníssono, tem grupos disputando poder e influência. E alguns deles são contrários à aniquilação do inimigo, são grupos que podem pensar diferente mas que respeitam o jogo democrático. Outros, não. O fato de que um dos núcleos do governo, o núcleo com mais poder pois está ligado ao presidente, não aceita que eu esteja em uma posição formal, não quer dizer que os outros núcleos tenham se fechado. Eu tive diálogos com outros núcleos desse governo, há 15 anos eu dialogo com o Ministério da Justiça. Não vou deixar de falar, caso haja real disposição ao diálogo, o que não quer dizer que eu tenha capacidade de dialogar com o núcleo do presidente. Eu espero que eles mudem de opinião ao longo do mandato porque nenhum governo se sustenta dessa forma, não numa democracia. E a gente vai lutar para que esse país continue democrático. Eles precisam dialogar com a sociedade civil porque eles vão ter muitas questões que precisam de apoio da opinião pública.

AP: Como o terceiro setor poderá fazer a diferença dentro desse contexto em que há resistência ao diálogo?

IS: Na segurança pública há algumas organizações como o Instituto Igarapé que estão em um diálogo construtivo com essa parte do governo federal, que é uma parte mais técnica, digamos assim. Não somos os únicos, tem o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Instituto Sou da Paz, vamos juntos nesse diálogo. Estivemos há pouco tempo em uma reunião em Brasília onde discutimos indicadores, dados, sistema nacional de informação sobre segurança pública.

Quando você vai para o que de fato importa, que é como a gente vai melhorar a qualidade de entrega da segurança pública, existem organizações e acadêmicos que, independente de em quem votaram ou deixaram de votar, estão dispostos a sentar juntos e contribuir. O núcleo do Ministério da Justiça não está necessariamente ligado ao núcleo ideológico do presidente, no sentido de não querer dialogar.

AP: E como é ser mulher e com um olhar progressista atuando na segurança pública, à frente de um instituto, no Rio de Janeiro?

S: Óbvio que tem dificuldades, mas a gente conseguiu se colocar. Eu formei muitas equipes com mulheres que se tornaram referência em seus temas, que se provaram profissionais extremamente qualificadas. É importante formar uma rede de apoio, porque temos a obrigação de trazer outras conosco. A gente é muito mais cobrada, tem que estar mais preparada, a gente não vai ser, na maioria dos casos, ouvidas, então temos que nos colocar. E quando você tem argumentos técnicos, sabe o que está falando, facilita o jogo. Eu sou ouvida, mas ninguém me oferece a palavra, eu tomo a palavra. Eu protagonizei e presenciei a atitude de mulheres que mudaram o curso de diversas decisões, e é um olhar mais completo, faz toda diferença ter mulheres à mesa quando estamos falando de vida ou morte.

AP: Especialistas e pesquisas apontam que o caminho para a redução da violência está em pautas majoritariamente defendidas por progressistas, como encarcerar menos e educar mais, descriminalizar as drogas. Por que essas medidas não pegam?

IS: Como lado positivo do episódio da minha exoneração, teve muita gente que parou para olhar as pautas que o Instituto Igarapé trabalha. Eu não defendo pauta que não esteja embasada. As pessoas dizem que eu trabalho com temas polêmicos. Eu trabalho com temas difíceis para a sociedade, mas que para mim não tem absolutamente nada de polêmico, porque eu posso defender de A a Z o que eu estou falando aqui com o melhor embasamento científico que existe.

Quando você vai nas pesquisas – e a pesquisa do Datafolha pegou propostas super técnicas, como excludente de ilicitude, e disse, na prática, o que isso significa –, as pessoas são contra. A maioria das pessoas é contra que todo mundo tenha uma arma e possa andar armado, as pessoas são contra que um policial possa matar sem ser julgado, contra que um cidadão possa se exceder por medo, isso é uma excelente notícia. A população precisa de informação.

Eu me preocupo com a questão do linchamento virtual porque a incitação do ódio tem implicações práticas. Por isso o momento é tão delicado, mas é um momento em que as pessoas estão buscando um contraponto, onde a minoria vocal parece que detém a opinião pública, mas não é bem assim.

Com a criminalização dos movimentos sociais, com toda essa difamação e tentativa de tirar importância de participação social, a gente pode, se deixarmos, virar um país da não-verdade, onde as narrativas oficiais não são baseadas em fatos. Porém, eu acredito que estamos em um momento de disputar essas narrativas, a gente ainda tem uma imprensa capaz de disseminar, que ainda tem eco nas redes sociais, e tem muita gente que já acordou para o fato de que ninguém ganha com bangue-bangue, que o policial não pode fazer o que quiser sem cumprir a lei.

AP: Qual seria a saída, o diálogo?

IS: Eu não sou ingênua. Há partes do governo que não estão abertas ao diálogo. Quando não há essa abertura, o papel da sociedade precisa ser fiscalizar, monitorar, disseminar, colocar na imprensa, fazer pressão nacional, internacional. Nós não podemos aceitar retrocessos, decisões baseada em ideologia. O que estou dizendo é que há alguns espaços de interlocução e eles são preciosos. Na divergência a gente consegue construir as convergências. Aliados em uma pauta não são aliados em outra pauta. É assim mesmo quando você trabalha com temas que a sociedade vê como polêmicos.

Também é preciso uma grande discussão sobre as redes sociais. Hoje não é possível vencer um debate nas redes sociais porque nós não vamos usar das mesmas ferramentas que são usadas pelos polos. E não é só o polo da extrema direita; a difamação está mais forte do lado da extrema direita mas já foi usada pela extrema esquerda. Os dois polos usam ferramentas que não permitem que as pessoas que estão tentando de fato levar informações honestas, ganhem o debate. Isso é uma discussão muito de fundo sobre o papel das redes sociais e que eu, de fato, acho que estão impactando as instituições democráticas mundo afora. É um debate profundo que precisa ser feito com essas empresas na mesa.

AP: Um dos pontos mais polêmicos do pacote anticrime é sobre legítima defesa, que especialistas defendem ser “carta branca” para o policial matar. Essa já é uma questão na segurança pública. Com o pacote, vai piorar?

IS: Não tenho dúvida, o discurso já começou. Quando a gente olha para as mortes por policiais, é assustador o aumento. De 2017 para 2018 é 18% de aumento, alguns estados como Pará, Rio de Janeiro, Minas Gerais, aumentos muito expressivos. Pará chega a 64%; Rio e Ceará, 36%. Algumas das estratégias que foram colocadas e que acabam dando uma trégua nas mortes violentas no geral, elas trazem, com esse discurso da incitação à violência, efeitos colaterais, como maior uso da violência pela polícia. Se você não tem autoridades que coíbam isso e, pelo contrário, incentivam, é uma tragédia.

A gente precisa cobrar dos governantes, sejam nacionais, sejam estaduais, que isso seja freado. Já está muito claro com as ocorrências que estão surgindo, como os indícios de execução no morro do Fallet, no Rio de Janeiro; depois o caso do músico Evaldo Rosa, que é um absurdo. É inexplicável o que aconteceu a não ser que você de fato pense no contexto. Que outra explicação você tem para o fato de que militares treinados desobedeceram totalmente as regras de abordagem, de uso da força, e acharam que podiam, na dúvida, atirar, sendo que o procedimento é: na dúvida, nunca atire. Há um impacto tenebroso do discurso de incitação à violência, da aceitação da violência policial, na prática. Coloca todo mundo em risco, pessoas comuns, pessoas que cometeram crimes, policiais. Essa medida [do pacote anticrime] é uma das mais graves. Você jamais pode dar autorização para que a polícia, força de segurança, qualquer cidadão, exceda o uso da violência. Isso é cruzamento de linha total. A gente está escolhendo se vai viver numa democracia ou num estado autoritário onde a próxima vítima pode ser você.

Eu não diria que o pacote não presta como um todo. Há medidas que são boas, como as que ajudam a investigação policial e a desvendar crimes violentos. Mas precisamos de debates amplos envolvendo toda a cadeia de segurança pública para poder formar uma opinião.

AP: Figuras como Jair Bolsonaro têm como bandeira principal a segurança pública, mas defendem medidas como facilitar a posse de armas e o encarceramento, que pesquisas e especialistas apontam não ser caminho mais eficaz. Na sua análise, por que existe essa contradição

IS: A maneira como as pessoas pró-armas, que defendem o porte mesmo, isto é, o direito de andar armado, ter armas de calibre restrito, essa é uma posição ideológica, não está baseada em fatos, pelo contrário. Ela é uma posição que tem sido usada no Brasil e mundo afora, em especial no Estados Unidos, para inflamar certas ideologias políticas. São temas que podem ser usados para fortalecer e manipular massas eleitorais.

Se você for olhar para o que certo perfil de homem defende, é uma questão cultural, estamos trabalhando com questões de masculinidade, certamente é muito mais profundo que não respeitar direitos humanos. Até porque, na cabeça de quem segue essas ideologias, eles são os guardiões das famílias, da tradição da propriedade. É muito mais complexo. Se a gente não tiver uma escuta do que eles estão falando, não tem como trazer para uma posição mais razoável.

O que eu posso dizer a partir da minha experiência, do que eu já conversei e converso com muita gente, é que quando você consegue uma conexão pessoal, é muito possível uma mudança para uma posição muito mais moderada. Já tive inúmeras situações onde eu mudei a posição das pessoas em relação a esse tema.
Quem propaga essas ideias, no campo político-ideológico, faz isso porque está mexendo com o medo das pessoas. A gente tem que entender isso e conversar com as pessoas para que elas entendam que isso é uma manipulação e há maneiras muito mais eficazes e responsáveis de estar direcionando o medo. Se a gente não quiser acentuar essa maluquice da polarização, o exercício da empatia e do diálogo é fundamental para virar o jogo.

AP: Imagino que seja difícil o exercício da empatia quando os ataques são muitos, como é o seu caso.

IS: Quando você entende que algumas pessoas estão sendo manipuladas e se coloca numa posição de escuta, o que é muito difícil, é transformador. Você entende que dá para mudar, há pontos de sinergia mesmo com essas pessoas. Ao serem confrontadas de uma maneira não agressiva, elas baixam a guarda. É possível desmontar essa maluquice.

Eu não sou a Madre Teresa, é difícil. Mas tenho aprendido muito com essa tentativa de entender e de dialogar. Faz parte do nosso processo de aprendizado também, porque nós, especialistas, ativistas, achamos que somos donos da razão. A gente pode ter boas informações mas o mundo se move por outras motivações. Temos problemas muito complexos e estamos trabalhando contra forças que não são democráticas e a gente tem que usar de uma inteligência emocional e racional absolutamente diferente do que fez até hoje. Se a gente achar que é nós contra eles, está todo mundo lascado. Os polos não são a maioria. Se a gente não trabalhar as divergências, vai ganhar a gritaria, e a gritaria não traz nada de bom para o que a gente quer construir. Está nas nossas mãos essa decisão.

ATUALIZAÇÃO às 19h20 de 23.04.2019 – A assessoria de comunicação de Ilona Szabó esclarece que, na entrevista à Agência Pública, quis referir-se à extrema direita, e não à direita como acabou declarando na conversa com a repórter Nyle Ferrari e que motivou o título “A direita está falando em renovação política para chegar ao autoritarismo”. Segundo Ilona, tanto a pressão contra a sua nomeação como suplente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, quanto os radicalismos identificados especialmente nas redes sociais vêm da extrema direita – como no passado já esteve presente na extrema esquerda. Ilona Szabó e o Instituto Igarapé têm se preocupado em dialogar com a esquerda e com a direita justamente para evitar a polarização e a radicalização promovidas por esses extremos que levam ao autoritarismo.

 

Allan Kardec, o Espiritismo e o mundo dos espíritos

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Em meados do século XIX, a sociedade parisiense foi chacoalhada com as informações trazidas pelo pedagogo francês Hippolyte Leon Denizard Rivail, cujas teses descortinavam o mundo material e trouxeram novos instrumentos de análise, denunciando o materialismo e abrindo novos espaços para o progresso da sociedade global, o teor da novas teorias eram tão transformadoras que o intelectual francês passou a assinar suas obras com um pseudônimo, Allan Kardec, surgia neste momento O livro dos Espíritos, publicado em 1857, cujas questões debatidas se pareciam muito mais com um tratado religioso, moral, ético e científico, uma verdadeira obra multidisciplinar, versando profundamente sobre temas variados.

O século em questão apresentou grandes descobertas científicas e tecnológicas que auxiliaram no progresso da sociedade mundial, muitas das grandes inovações que estão, na atualidade, impulsionando a economia global, tiveram início naquele momento, dentre elas destacamos as descobertas do evolucionismo de Charles Darwin, os debates sobre o capitalismo como modelo dominante e excludente, estimuladas por Karl Marx e Friederich Engels, as revoluções geradas pela energia elétrica, ferrovias, o telefone e o telégrafo, além de outras grandes teorias e pensamentos sociais que impactaram sobre a coletividade.

Neste século, a Igreja ainda detinha poderes na sociedade europeia, embora seu poder estivesse restrito a algumas regiões do continente, dentre estas destacamos a península Ibérica, Portugal e Espanha, países muito afetados pelo poderio da religião católica, que ainda controlava muitas áreas e setores, dominando ainda as obras e os livros que eram publicados nestes países, influenciando tudo que os fiéis liam e pensavam, uma verdadeira política de alienação.

A Igreja detinha poderes especiais nestas regiões da Europa, materializados no chamado Santo Ofício, todos os livros de cunho religioso que, por ventura, fossem publicados na região deveriam passar pelo crivo da Igreja Católica, diante destas exigências a instituição impunha censura a algumas obras que achasse que estavam em desacordos com os seus princípios. Em 1861, num episódio que recebeu o nome de Auto da fé de Barcelona, cerca de 300 obras espíritas, de autoria de Allan Kardec e de outros correligionários, foram confiscadas pelo bispo de Barcelona e queimadas ao ar livre, sem que tenha havido qualquer ressarcimento aos credores. Apesar dos prejuízos financeiros, o atentado acabou por despertar ainda mais interesse do povo da região pela Doutrina Espírita, além de inflamar a já crescente revolta popular contra o absolutismo da Igreja Católica.

As pesquisas do pedagogo francês tiveram início em 1854, quando tomou contato com os fenômenos das mesas girantes, um fenômeno até então inexplicável, onde as pessoas rodeavam as mesas e faziam perguntas que eram prontamente respondidas pelos espíritos, uma situação que levou as elites francesas a grande agitação e movimentou a sociedade da época, gerando curiosidades, medos e interesses variados, atraindo pessoas de várias cortes da Europa. Analisando os fenômenos com grande atenção e reflexão crítica, percebe que os acontecimentos eram deveras complexo e necessitava de grandes estudos, lançando assim as bases para aquilo que viria a ser conhecido como a Doutrina dos Espíritos, unindo a religião, a ciência e a filosofia.

O pedagogo francês nasceu em 1804 e começou seus estudos e contribuições para a codificação apenas em 1854, ou seja, mais de cinco décadas depois de seu nascimento, isto só aconteceu porque neste período os ventos da inquisição e a força da Santa Sé ainda eram fortes e violentos na região, somente com o enfraquecimento destes ventos é que foi possível o surgimento de novas ideias religiosas. Neste instante Hippolyte Leon Denizard Rivail, posteriormente Allan Kardec, inicia seu apostolado como codificador e grande difusor do pensamento espírita, faz-se importante deixar claro que as contribuições do pedagogo foram fundamentais, mas a Doutrina Espírita não é obra de um único homem, a Doutrina é obra de um conjunto de espíritos de alta luminosidade que trouxeram ao mundo a chamada Terceira Revelação prometida por Jesus Cristo.

Num período de quinze anos, 1854/1869, o pedagogo francês se transformou no maior estudioso destes fenômenos sobrenaturais, buscando informações variadas, lendo e pesquisando todos estes movimentos e escrevendo tratados e livros que foram comercializados em todas as regiões do mundo, nascia neste momento, pelas mãos de Allan Kardec, uma nova religião, descrita também como uma ciência e uma filosofia, o Espiritismo, que surge para nos mostrar que existiam muitas coisas invisíveis ao olho dos seres humanos, mas presente de forma inerente nos olhos do espírito.

O escolhido para a missão apresentava características especiais, suas credenciais eram volumosas, seus estudos e pesquisas na área da educação, influenciado pelo pensador suíço Johann Heinrich Pestalozzi lhe garantiram instrumentos teóricos e analíticos para compreender as mudanças em curso na sociedade, no mundo da educação e do conhecimento e conduzir a sociedade neste novo momento histórico, onde o mundo material não mais se tornaria um imenso mistério e, aos poucos, seria descortinado de forma simples, intensa e com grande capacidade analítica e de reflexão.

As obras de Allan Kardec, inicialmente O Livro dos Espíritos (1857), O livro dos Médiuns (1861), O Evangelho Segundo o Espiritismo (1864), Céu e Inferno (1865),  e A Gênese (1868), além destas, destacamos ainda a fundação da Revista Espírita (1868), que nos mostraram que a vida não se encerra na matéria, que todos nós somos irmãos e somos interdependentes, que a morte não existe e que a verdadeira vida se dá no mundo espiritual, a matéria pode ser descrita como um momento de reencontro e progresso conjunto, onde recebemos de acordo com as nossas escolhas individuais, se passamos por dificuldades, é porque plantamos equívocos em vidas anteriores e, nesta encarnação, expiamos os nossos erros e equívocos, todos caminhamos para o progresso, a Doutrina dos Espíritos é progressista, este progredir pode demorar mais ou menos tempo, isto depende de cada indivíduo, uma doutrina que defende a verdadeira meritocracia.

Os ensinamentos trazidos pela doutrina dos espíritos impactaram diretamente em variados setores da sociedade, mexeram com as estruturas de poder e influenciaram decisões, hábitos e comportamentos, levaram indivíduos a se conscientizarem das suas dificuldades e passaram a ver a ciência como uma aliada da religião, restabelecendo uma parceria que tinha sido desfeita pela dominação mantida pela Igreja, que via na ciência um empecilho para seu intenso domínio, alienação mental e controle social.

Ao descortinar uma nova sociedade e mostrar que a morte, sempre tão temida pelas sociedades, não existe, que morrer é, na verdade, uma passagem para um outro mundo, o mundo dos espíritos, uma sociedade nova se abre para os indivíduos. O espiritismo traz uma visão de que Deus é um ser soberanamente justo e bom, que não nos pune por nossos erros e equívocos, quando erramos passamos por um processo de educação, as dificuldades devem ser vistas de forma diferente, não como punição divina, mas como um processo de autoeducação.

Hippolyte Leon Denizard Rivail se impessoalizou para codificar a Doutrina dos Espíritos, abandonou seu nome e adotou um pseudônimo, Allan Kardec, que era um de seus nomes em encarnações anteriores, quando viveu na pele de um druida, na região da Gália, adotou um pseudônimo como forma de se desvencilhar de suas ideias anteriores, mesmo assim, como grande intelectual francês, metódico, disciplinado, respeitado e competente educador, trouxe à nova revelação um caráter de maior credibilidade, respeitabilidade e confiabilidade, angariando para o movimento adeptos respeitados e estudiosos conscientes das novas ideias como instrumento de renovação da sociedade, não apenas a europeia, mas toda a sociedade mundial.

Além das obras e dos artigos que escreveu, Allan Kardec divulgou a Doutrina Espírita por todas as regiões da Europa, fez conferências e seminários em inúmeras salas e salões, participou de debates e entrevistas para jornais e revistas, além destas atividades, e da fundação da primeira casa espírita, o codificador foi o responsável pela primeira livraria espírita e pela primeira revista dedicada inteiramente ao movimento espírita (inaugurada em 1858), seu pioneirismo e exemplo de seriedade e dedicação a causa trouxe para o espiritismo um grande número de adeptos e apoiadores, que mesmo com seu desencarne trouxeram bons frutos que se espalharam para a sociedade mundial, principalmente para o Brasil, atualmente a nação que mais abraçou o movimento espírita, o que motivou o livro clássico de Humberto de Campos, intitulado: Brasil: coração do mundo, pátria do evangelho, que destaca o papel fundamental da nação brasileira neste instante de renovação e de grandes transformações da sociedade mundial.

            O movimento espírita tem em Allan Kardec seu grande divulgador, suas ideias estão apoiadas nas contribuições trazidas pelo espírito da verdade e por um grande contingente de espíritos que participaram da codificação, entidades altamente avançadas nas mais variadas áreas e setores que, ao serem indagados por Kardec, descortinaram assuntos variados e de grande importância para a sociedade, pensamentos estes baseados nos ensinamentos de Jesus Cristo, o maior espírito que passou pelo planeta Terra, considerado pelo movimento espírita o Governador do Planeta Terra, suas contribuições foram tamanhas que a sociedade se dividiu entre o antes e o depois de Jesus Cristo, com isso, percebemos que a Doutrina dos Espíritos tem na religião uma de suas bases mais consistentes, aliando ainda a Ciência e a Filosofia, mas como nos diz o doutor Inácio Ferreira, a base da doutrina está e sempre estará em Jesus Cristo.

Com sua morte precoce, Allan Kardec recebeu bela homenagem e foi seguido por intelectuais de respeito que abraçaram a Doutrina dos Espíritos e deram prosseguimento a suas obras, dentre seus seguidores mais conhecidos, podemos citar Leon Denis, Gabriel Delanne, Arthur Conan Doyle, Camille Flamarion, Cesare Lombroso, entre outros. Todas estas personalidades se destacaram em suas áreas de atuação, todos eram intelectuais e pensadores, além de cientistas que viam no Espiritismo uma doutrina afeita as descobertas científicas, como sempre destacou Kardec: “…Se o Espiritismo disser uma coisa e a Ciência disser outra, fique com a Ciência”.

            Ao contrário de outras crenças e filosofias religiosas, a Doutrina Espírita não cultua santos e personalidades, sabe que todos temos qualidades e defeitos, respeitamos as pessoas, suas ideias e pensamentos, diante disso, percebemos a importância de Allan Kardec para o espiritismo e para a humanidade de uma forma geral, defendemos seu legado, sua história, suas contribuições e todas as informações preciosas que nos trouxe, mas sem cultos exteriores e práticas de canonização como outras o fazem constantemente.

As revelações trazidas em O livro dos Espíritos mostravam uma realidade diferente daquela defendida pela religião dominante, destacava a existência de um Deus amoroso, analisava o sofrimento por uma ótica diferente, defendia a inexistência do céu e do inferno e mostrava claramente a importância das leituras e dos estudos constantes, instrumentos de crescimento e desenvolvimento do ser humano.

Ao matar a morte e defender abertamente a existência do mundo espiritual e a continuidade da vida, a Doutrina mostra a importância do ser bom, do fazer o bem, da oração e do pensamento positivo, somente tendo consciência da importância da vida e do viver é que os seres humanos poderão ter consciência de que tudo que existe no mundo, desde as coisas mais simples as mais complexas, nasceram de um único ser, o Deus todo poderoso que criou o homem a sua imagem e semelhança.

A Doutrina dos Espíritos nos mostra a importância da reencarnação, sem ela temos dificuldades de compreender a bondade de Deus, sem ela temos grande dificuldade de entender a noção e a importância do conceito de meritocracia, se o mundo acaba com a morte do corpo físico, como podemos ser julgados se muitos nascem na bonança e no progresso material e emocional, enquanto outros nascem na miséria e na indigência.

Allan Kardec nos mostra que o verdadeiro homem novo é aquele que está sintonizado nas mudanças do mundo, aquele que busca se analisar constantemente e compreender suas limitações e potencialidades e, constantemente busca sua evolução, pois existem muitas moradas na casa de meu pai e todos temos consciência disso.

No momento de seu sepultamento, os discursos emocionados e as honrarias eram constantes, dentre elas, destacamos a do colega, admirador e astrônomo francês Camille Flamarion, que proferiu um longo discurso, ontem enfatizou: “Voltaste a esse mundo donde viemos e colhes o fruto de teus estudos terrestres. Aos nossos pés dorme o teu envoltório, extinguiu-te o teu cérebro, fecharam-se-te os olhos para não mais se abrirem, não mais ouvida será a sua palavra… Sabemos que todos havemos de mergulhar nesse mesmo último sono, de volver a essa mesma inércia, a esse mesmo pó. Mas, não é nesse envoltório que pomos a nossa glória e a nossa esperança. Tomba o corpo, a alma permanece e retorna ao espaço. Encontrar-nos-emos num mundo melhor e no céu imenso onde usaremos das nossas mais preciosas faculdades, onde continuaremos os estudos para cujo desenvolvimento a Terra é teatro por demais acanhado. (…) Até à vista, meu caro Allan Kardec, até a vista!”

“Os desafios do meio ambiente são urgentes” diz André Trigueiro.

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Concedida em 14 de novembro de 2015

André Trigueiro, autor do livro Espiritismo e Ecologia (FEB), em entrevista para o site O Reformador, considera que a Lei de Conservação de O Livro dos Espíritos é um tratado de sustentabilidade.

Reformador: Como surgiu seu interesse em relacionar Espiritismo e Ecologia?

Trigueiro: Sou espírita, jornalista interessado em sustentabilidade há pelo menos 20 anos, e tenho uma pós-graduação em Gestão Ambiental pela COPPE/UFRJ. A combinação desses fatores me precipitou na direção dessa linha de investigação. O livro – já na terceira edição – não esgota o assunto, mas deixa clara a razão pela qual nós espíritas devemos ter atenção redobrada nesta encarnação para com os limites do planeta que generosamente nos acolhe. A situação é difícil e a Humanidade é a responsável direta pela crise ambiental sem precedentes que experimentamos no momento. A educação para a sustentabilidade encerra princípios éticos e morais que são caros à Doutrina Espírita. Devo dizer que me incomodava muito uma certa distância que várias casas espíritas mantinham do tema “meio ambiente”, como se a exaltação dos valores espirituais nos eximisse de responsabilidade para com o que acontece aqui e agora em nossa casa planetária. Mas isso está mudando.

Reformador: Que destaque daria, em obras de Kardec, com relação ao tema?

Trigueiro: Bem entendida, a posição assumida pelo Espiritismo em favor da vida – condenando o aborto, a eutanásia e o suicídio alcança também a dimensão planetária na condenação do ecocídio, ou seja, a capacidade de a Humanidade realizar escolhas que reduzem nossas possibilidades de existência nesse plano. Todo o capítulo de O Livro dos Espíritos que versa sobre a Lei de Conservação é um tratado de sustentabilidade. Quando a Doutrina estabelece a diferença entre o que é necessário e o que é supérfluo, e nos orienta em relação ao uso inteligente dos recursos naturais (“A Terra produziria sempre o necessário, se o homem soubesse contentar-se com o necessário”) há sinergia absoluta em relação aos modernos relatórios da ONU que condenam os atuais meios de produção e de consumo. Outro tema que me interessa muito é a influência de nossos sentimentos e pensamentos na qualidade da psicosfera terrena. Temos o poder de influenciar coletivamente a Natureza, através da qualidade e da intensidade de nossas vibrações. A Doutrina Espírita também reconhece o trabalho dos elementais, seres encarregados de proteger a Natureza e sustentar seus processos cíclicos. Outra informação valiosa remete à identificação visceral que temos com a Terra: somos feitos dos mesmos elementos que constituem o planeta, e isso vale para o corpo material ou o perispírito. “Do pó viestes para o pó voltareis” [Gênesis, 3:19] não é poesia bíblica, é Ciência. E o que acontece com a terra, o ar e a água, portanto, fora de nós, reverbera dentro de nós. Estamos todos conectados.

Reformador: Você relaciona eventuais desrespeitos ao meio ambiente às alterações climáticas?

Trigueiro: O livro de nossa autoria traz informações atualizadas sobre a maior crise ambiental da História da Humanidade e como somos responsáveis por isso. Na verdade, somos parte do problema e devemos ser parte da solução. A crise climática é a mais preocupante e demanda soluções urgentes. Mas nossas atenções devem estar voltadas também para a destruição
sistemática da biodiversidade, a produção monumental de lixo, a escassez de recursos hídricos, a transgenia irresponsável, o consumismo desvairado, o crescimento desordenado das cidades e outros problemas que fazem parte do nosso tempo e exigem respostas de nossa parte ainda nesta existência. O espírita está sendo convocado à ação aqui e agora. A maior nação espírita do planeta está situada no único país com nome de árvore, que concentra o maior estoque de água doce (superficial de rio ou subterrânea), a maior quantidade de solo fértil, o maior número de espécies conhecidas e catalogadas. Mera coincidência?

Reformador: Como os espíritas têm reagido ao seu livro e em eventos que participa?

Trigueiro: Percebo enorme receptividade e acolhimento aos assuntos do livro. Tenho recebido muitas manifestações (especialmente em mensagens endereçadas pela Internet) de espíritas que usam o livro para palestras, trabalhos em mocidades, ou para orientar mudanças estruturais nas rotinas da própria instituição. É particularmente interessante a reação das pessoas à forma como abordamos a questão do consumo de carne. Se for verdade que o consumo de carne na alimentação é condizente com o nível evolutivo em que muitos de nós nos encontramos, também é verdade que isso não deve justificar o uso de métodos cruéis, dolorosos, que impõem sofrimento desnecessário aos nossos irmãos menos evoluídos da Criação. O Brasil é o maior produtor de proteína animal do mundo e muitos espíritas se surpreendem com o circo dos horrores que se esconde por detrás dessa indústria. Como eventuais consumidores de carne, devemos zelar pelo bem-estar animal e pelo que se convencionou chamar de “abate humanitário” (o nome é esquisito, mas é assim mesmo).

Reformador: Que ações recomendaria aos espíritas?

Trigueiro: Precisamos fazer agora tudo o que esteja ao nosso alcance em favor do uso responsável e ético dos recursos naturais não renováveis do planeta. Muitos espíritas se acomodam pelo fato de o mundo de regeneração estar a caminho. Supõem que não haja o que fazer em relação ao planeta, pois que o destino do orbe já está selado. Convém recordar as explicações de Santo Agostinho, em O Evangelho segundo o Espiritismo, sobre as diferentes categorias de mundos habitados. Ao explicar o que é o mundo de regeneração, Santo Agostinho confirma a condição de orbe mais evoluído ética e moralmente, entretanto, não há qualquer menção às qualidades ambientais deste mundo. Ou seja, podemos deduzir que os suprimentos de água limpa, solo fértil, ar puro, biodiversidade e as condições climáticas serão definidos a partir das escolhas que realizarmos agora, e que se persistirmos em não nos modificarmos nesta encarnação (hábitos, comportamentos, estilos de vida e padrões de consumo), poderemos determinar uma situação curiosa num futuro próximo: o planeta cuja vibração se eleva para hospedar uma humanidade mais evoluída ética e moralmente seria o mesmo destroçado ambientalmente. Não merecemos isso. Podemos reduzir drasticamente este risco se fizermos o dever de casa já. Sabendo usar, não vai faltar.

Reformador: A criança também poderia ser precocemente educada nesse sentido?

Trigueiro: A criança deve ser educada para lidar com os desafios do mundo em que vive. Uma escola pública ou privada que ignore o senso de urgência que deve reger um projeto pedagógico comprometido com a sustentabilidade, é uma escola que não merece ser chamada de “instituição de ensino”. O mundo mudou muito nas últimas décadas. As escolas e universidades que não estiverem minimamente antenadas com esse novo tempo, não poderão formar cidadãos capacitados para enfrentar o que vem por aí. Convém buscar informação e entender o contexto civilizatório em que estamos inexoravelmente imersos.

Reformador: Uma mensagem ao leitor de Reformador.

Trigueiro: Que o mundo será um dia um lugar melhor e mais justo, não há dúvida alguma. A grande questão ainda sem resposta é: haverá tempo para que esse mundo melhor e mais justo seja também um mundo ambientalmente sadio e agradável? Depende de nós. Qual a sua escolha?

 

 

 

 

Entrevista com André Trigueiro

Concedida em 14 de novembro de 2015

André Trigueiro, autor do livro Espiritismo e Ecologia (FEB), em entrevista para o site O Reformador, considera que a Lei de Conservação de O Livro dos Espíritos é um tratado de sustentabilidade.

Reformador: Como surgiu seu interesse em relacionar Espiritismo e Ecologia?

Trigueiro: Sou espírita, jornalista interessado em sustentabilidade há pelo menos 20 anos, e tenho uma pós-graduação em Gestão Ambiental pela COPPE/UFRJ. A combinação desses fatores me precipitou na direção dessa linha de investigação. O livro – já na terceira edição – não esgota o assunto, mas deixa clara a razão pela qual nós espíritas devemos ter atenção redobrada nesta encarnação para com os limites do planeta que generosamente nos acolhe. A situação é difícil e a Humanidade é a responsável direta pela crise ambiental sem precedentes que experimentamos no momento. A educação para a sustentabilidade encerra princípios éticos e morais que são caros à Doutrina Espírita. Devo dizer que me incomodava muito uma certa distância que várias casas espíritas mantinham do tema “meio ambiente”, como se a exaltação dos valores espirituais nos eximisse de responsabilidade para com o que acontece aqui e agora em nossa casa planetária. Mas isso está mudando.

 

Reformador: Que destaque daria, em obras de Kardec, com relação ao tema?

Trigueiro: Bem entendida, a posição assumida pelo Espiritismo em favor da vida – condenando o aborto, a eutanásia e o suicídio alcança também a dimensão planetária na condenação do ecocídio, ou seja, a capacidade de a Humanidade realizar escolhas que reduzem nossas possibilidades de existência nesse plano. Todo o capítulo de O Livro dos Espíritos que versa sobre a Lei de Conservação é um tratado de sustentabilidade. Quando a Doutrina estabelece a diferença entre o que é necessário e o que é supérfluo, e nos orienta em relação ao uso inteligente dos recursos naturais (“A Terra produziria sempre o necessário, se o homem soubesse contentar-se com o necessário”) há sinergia absoluta em relação aos modernos relatórios da ONU que condenam os atuais meios de produção e de consumo. Outro tema que me interessa muito é a influência de nossos sentimentos e pensamentos na qualidade da psicosfera terrena. Temos o poder de influenciar coletivamente a Natureza, através da qualidade e da intensidade de nossas vibrações. A Doutrina Espírita também reconhece o trabalho dos elementais, seres encarregados de proteger a Natureza e sustentar seus processos cíclicos. Outra informação valiosa remete à identificação visceral que temos com a Terra: somos feitos dos mesmos elementos que constituem o planeta, e isso vale para o corpo material ou o perispírito. “Do pó viestes para o pó voltareis” [Gênesis, 3:19] não é poesia bíblica, é Ciência. E o que acontece com a terra, o ar e a água, portanto, fora de nós, reverbera dentro de nós. Estamos todos conectados.

Reformador: Você relaciona eventuais desrespeitos ao meio ambiente às alterações climáticas?

Trigueiro: O livro de nossa autoria traz informações atualizadas sobre a maior crise ambiental da História da Humanidade e como somos responsáveis por isso. Na verdade, somos parte do problema e devemos ser parte da solução. A crise climática é a mais preocupante e demanda soluções urgentes. Mas nossas atenções devem estar voltadas também para a destruição
sistemática da biodiversidade, a produção monumental de lixo, a escassez de recursos hídricos, a transgenia irresponsável, o consumismo desvairado, o crescimento desordenado das cidades e outros problemas que fazem parte do nosso tempo e exigem respostas de nossa parte ainda nesta existência. O espírita está sendo convocado à ação aqui e agora. A maior nação espírita do planeta está situada no único país com nome de árvore, que concentra o maior estoque de água doce (superficial de rio ou subterrânea), a maior quantidade de solo fértil, o maior número de espécies conhecidas e catalogadas. Mera coincidência?

Reformador: Como os espíritas têm reagido ao seu livro e em eventos que participa?

Trigueiro: Percebo enorme receptividade e acolhimento aos assuntos do livro. Tenho recebido muitas manifestações (especialmente em mensagens endereçadas pela Internet) de espíritas que usam o livro para palestras, trabalhos em mocidades, ou para orientar mudanças estruturais nas rotinas da própria instituição. É particularmente interessante a reação das pessoas à forma como abordamos a questão do consumo de carne. Se for verdade que o consumo de carne na alimentação é condizente com o nível evolutivo em que muitos de nós nos encontramos, também é verdade que isso não deve justificar o uso de métodos cruéis, dolorosos, que impõem sofrimento desnecessário aos nossos irmãos menos evoluídos da Criação. O Brasil é o maior produtor de proteína animal do mundo e muitos espíritas se surpreendem com o circo dos horrores que se esconde por detrás dessa indústria. Como eventuais consumidores de carne, devemos zelar pelo bem-estar animal e pelo que se convencionou chamar de “abate humanitário” (o nome é esquisito, mas é assim mesmo).

Reformador: Que ações recomendaria aos espíritas?

Trigueiro: Precisamos fazer agora tudo o que esteja ao nosso alcance em favor do uso responsável e ético dos recursos naturais não renováveis do planeta. Muitos espíritas se acomodam pelo fato de o mundo de regeneração estar a caminho. Supõem que não haja o que fazer em relação ao planeta, pois que o destino do orbe já está selado. Convém recordar as explicações de Santo Agostinho, em O Evangelho segundo o Espiritismo, sobre as diferentes categorias de mundos habitados. Ao explicar o que é o mundo de regeneração, Santo Agostinho confirma a condição de orbe mais evoluído ética e moralmente, entretanto, não há qualquer menção às qualidades ambientais deste mundo. Ou seja, podemos deduzir que os suprimentos de água limpa, solo fértil, ar puro, biodiversidade e as condições climáticas serão definidos a partir das escolhas que realizarmos agora, e que se persistirmos em não nos modificarmos nesta encarnação (hábitos, comportamentos, estilos de vida e padrões de consumo), poderemos determinar uma situação curiosa num futuro próximo: o planeta cuja vibração se eleva para hospedar uma humanidade mais evoluída ética e moralmente seria o mesmo destroçado ambientalmente. Não merecemos isso. Podemos reduzir drasticamente este risco se fizermos o dever de casa já. Sabendo usar, não vai faltar.

Reformador: A criança também poderia ser precocemente educada nesse sentido?

Trigueiro: A criança deve ser educada para lidar com os desafios do mundo em que vive. Uma escola pública ou privada que ignore o senso de urgência que deve reger um projeto pedagógico comprometido com a sustentabilidade, é uma escola que não merece ser chamada de “instituição de ensino”. O mundo mudou muito nas últimas décadas. As escolas e universidades que não estiverem minimamente antenadas com esse novo tempo, não poderão formar cidadãos capacitados para enfrentar o que vem por aí. Convém buscar informação e entender o contexto civilizatório em que estamos inexoravelmente imersos.

Reformador: Uma mensagem ao leitor de Reformador.

Trigueiro: Que o mundo será um dia um lugar melhor e mais justo, não há dúvida alguma. A grande questão ainda sem resposta é: haverá tempo para que esse mundo melhor e mais justo seja também um mundo ambientalmente sadio e agradável? Depende de nós. Qual a sua escolha?

 

Entrevista com André Trigueiro

Concedida em 14 de novembro de 2015

André Trigueiro, autor do livro Espiritismo e Ecologia (FEB), em entrevista para o site O Reformador, considera que a Lei de Conservação de O Livro dos Espíritos é um tratado de sustentabilidade.

Reformador: Como surgiu seu interesse em relacionar Espiritismo e Ecologia?

Trigueiro: Sou espírita, jornalista interessado em sustentabilidade há pelo menos 20 anos, e tenho uma pós-graduação em Gestão Ambiental pela COPPE/UFRJ. A combinação desses fatores me precipitou na direção dessa linha de investigação. O livro – já na terceira edição – não esgota o assunto, mas deixa clara a razão pela qual nós espíritas devemos ter atenção redobrada nesta encarnação para com os limites do planeta que generosamente nos acolhe. A situação é difícil e a Humanidade é a responsável direta pela crise ambiental sem precedentes que experimentamos no momento. A educação para a sustentabilidade encerra princípios éticos e morais que são caros à Doutrina Espírita. Devo dizer que me incomodava muito uma certa distância que várias casas espíritas mantinham do tema “meio ambiente”, como se a exaltação dos valores espirituais nos eximisse de responsabilidade para com o que acontece aqui e agora em nossa casa planetária. Mas isso está mudando.

 

Reformador: Que destaque daria, em obras de Kardec, com relação ao tema?

Trigueiro: Bem entendida, a posição assumida pelo Espiritismo em favor da vida – condenando o aborto, a eutanásia e o suicídio alcança também a dimensão planetária na condenação do ecocídio, ou seja, a capacidade de a Humanidade realizar escolhas que reduzem nossas possibilidades de existência nesse plano. Todo o capítulo de O Livro dos Espíritos que versa sobre a Lei de Conservação é um tratado de sustentabilidade. Quando a Doutrina estabelece a diferença entre o que é necessário e o que é supérfluo, e nos orienta em relação ao uso inteligente dos recursos naturais (“A Terra produziria sempre o necessário, se o homem soubesse contentar-se com o necessário”) há sinergia absoluta em relação aos modernos relatórios da ONU que condenam os atuais meios de produção e de consumo. Outro tema que me interessa muito é a influência de nossos sentimentos e pensamentos na qualidade da psicosfera terrena. Temos o poder de influenciar coletivamente a Natureza, através da qualidade e da intensidade de nossas vibrações. A Doutrina Espírita também reconhece o trabalho dos elementais, seres encarregados de proteger a Natureza e sustentar seus processos cíclicos. Outra informação valiosa remete à identificação visceral que temos com a Terra: somos feitos dos mesmos elementos que constituem o planeta, e isso vale para o corpo material ou o perispírito. “Do pó viestes para o pó voltareis” [Gênesis, 3:19] não é poesia bíblica, é Ciência. E o que acontece com a terra, o ar e a água, portanto, fora de nós, reverbera dentro de nós. Estamos todos conectados.

Reformador: Você relaciona eventuais desrespeitos ao meio ambiente às alterações climáticas?

Trigueiro: O livro de nossa autoria traz informações atualizadas sobre a maior crise ambiental da História da Humanidade e como somos responsáveis por isso. Na verdade, somos parte do problema e devemos ser parte da solução. A crise climática é a mais preocupante e demanda soluções urgentes. Mas nossas atenções devem estar voltadas também para a destruição
sistemática da biodiversidade, a produção monumental de lixo, a escassez de recursos hídricos, a transgenia irresponsável, o consumismo desvairado, o crescimento desordenado das cidades e outros problemas que fazem parte do nosso tempo e exigem respostas de nossa parte ainda nesta existência. O espírita está sendo convocado à ação aqui e agora. A maior nação espírita do planeta está situada no único país com nome de árvore, que concentra o maior estoque de água doce (superficial de rio ou subterrânea), a maior quantidade de solo fértil, o maior número de espécies conhecidas e catalogadas. Mera coincidência?

Reformador: Como os espíritas têm reagido ao seu livro e em eventos que participa?

Trigueiro: Percebo enorme receptividade e acolhimento aos assuntos do livro. Tenho recebido muitas manifestações (especialmente em mensagens endereçadas pela Internet) de espíritas que usam o livro para palestras, trabalhos em mocidades, ou para orientar mudanças estruturais nas rotinas da própria instituição. É particularmente interessante a reação das pessoas à forma como abordamos a questão do consumo de carne. Se for verdade que o consumo de carne na alimentação é condizente com o nível evolutivo em que muitos de nós nos encontramos, também é verdade que isso não deve justificar o uso de métodos cruéis, dolorosos, que impõem sofrimento desnecessário aos nossos irmãos menos evoluídos da Criação. O Brasil é o maior produtor de proteína animal do mundo e muitos espíritas se surpreendem com o circo dos horrores que se esconde por detrás dessa indústria. Como eventuais consumidores de carne, devemos zelar pelo bem-estar animal e pelo que se convencionou chamar de “abate humanitário” (o nome é esquisito, mas é assim mesmo).

Reformador: Que ações recomendaria aos espíritas?

Trigueiro: Precisamos fazer agora tudo o que esteja ao nosso alcance em favor do uso responsável e ético dos recursos naturais não renováveis do planeta. Muitos espíritas se acomodam pelo fato de o mundo de regeneração estar a caminho. Supõem que não haja o que fazer em relação ao planeta, pois que o destino do orbe já está selado. Convém recordar as explicações de Santo Agostinho, em O Evangelho segundo o Espiritismo, sobre as diferentes categorias de mundos habitados. Ao explicar o que é o mundo de regeneração, Santo Agostinho confirma a condição de orbe mais evoluído ética e moralmente, entretanto, não há qualquer menção às qualidades ambientais deste mundo. Ou seja, podemos deduzir que os suprimentos de água limpa, solo fértil, ar puro, biodiversidade e as condições climáticas serão definidos a partir das escolhas que realizarmos agora, e que se persistirmos em não nos modificarmos nesta encarnação (hábitos, comportamentos, estilos de vida e padrões de consumo), poderemos determinar uma situação curiosa num futuro próximo: o planeta cuja vibração se eleva para hospedar uma humanidade mais evoluída ética e moralmente seria o mesmo destroçado ambientalmente. Não merecemos isso. Podemos reduzir drasticamente este risco se fizermos o dever de casa já. Sabendo usar, não vai faltar.

Reformador: A criança também poderia ser precocemente educada nesse sentido?

Trigueiro: A criança deve ser educada para lidar com os desafios do mundo em que vive. Uma escola pública ou privada que ignore o senso de urgência que deve reger um projeto pedagógico comprometido com a sustentabilidade, é uma escola que não merece ser chamada de “instituição de ensino”. O mundo mudou muito nas últimas décadas. As escolas e universidades que não estiverem minimamente antenadas com esse novo tempo, não poderão formar cidadãos capacitados para enfrentar o que vem por aí. Convém buscar informação e entender o contexto civilizatório em que estamos inexoravelmente imersos.

Reformador: Uma mensagem ao leitor de Reformador.

Trigueiro: Que o mundo será um dia um lugar melhor e mais justo, não há dúvida alguma. A grande questão ainda sem resposta é: haverá tempo para que esse mundo melhor e mais justo seja também um mundo ambientalmente sadio e agradável? Depende de nós. Qual a sua escolha?

Quarenta anos de baixo crescimento e desigualdades crescentes

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A economia brasileira vive um momento de grande inquietação, marcado por um período de baixo crescimento do produto interno bruto e um incremento da desigualdade e da pobreza, depois de anos de fortes perspectivas positivas, onde o Brasil era descrito como uma sociedade com alto potencial de desenvolvimento e maior presença na sociedade global, atualmente somos uma economia inexpressiva, perdemos espaços duramente conquistados anteriormente e com retrocessos marcantes em vários setores econômicos e produtivos.

O Brasil apresentou uma taxa de crescimento per capita de 4,5% ao ano, de 1950 a 1980, uma taxa extraordinária, se compararmos com os tristes 0,9% ao ano desde então, percebemos uma piora considerável na situação econômica e social do país, criando momento de desequilíbrios e constrangimentos crescentes. O país que se destacou na economia internacional no período posterior a segunda guerra mundial, se caracterizando como o segundo país em crescimento econômico, perdendo apenas para o Japão, perdeu de forma considerável seu motor de crescimento, jogando a economia num período de baixo crescimento, piora nas condições sociais e aumento na degradação da infraestrutura.

O Fundo Monetário Internacional compara o crescimento do Brasil com o dos demais países em desenvolvimento e com os países ricos: no período 1980-2018 “o crescimento do PIB per capita brasileiro foi de 0,9% ao ano, em média, enquanto as outras economias emergentes e as em desenvolvimento cresceram 3% e as economias desenvolvidas apresentaram crescimento de 1,7%”.

Depois de décadas de forte crescimento econômico e forte potencial de desenvolvimento, o país entrou em um ciclo de baixo crescimento e uma piora considerável nos indicadores sociais, com uma redução substancial na classe média, uma forte desindustrialização, uma piora nas condições de vida das cidades e uma situação política degradante e com forte potencial de devastação.

Enquanto, na década de 80, apresentávamos um produto interno bruto per capita duas vezes superior ao da Coréia do Sul, na atualidade o país asiático apresenta um PIB per capita duas vezes maior que o nosso, diante disso, percebemos que nossa sociedade adotou uma postura diferente dos sul coreanos e ficamos para trás na corrida do desenvolvimento econômico, somos um país de renda média sem perspectivas de ascensão para uma economia de alta renda, enquanto os sul coreanos avançaram rapidamente para a posição privilegiada de uma economia desenvolvida.

Nos anos 70/80, o Brasil aprofundou seu modelo de substituição de importação, mesmo depois dos fortes choques do petróleo e dos juros internacionais, que levaram a crise da dívida e a queda do crescimento, fechamos nossa economia, privilegiamos alguns setores mais influentes politicamente e criamos as reservas de mercado para nosso setor industrial, fortemente subsidiado e marcado por grandes e vultosas políticas protecionistas, acreditando que desta forma conseguiríamos alcançar um sucesso maior na corrida do desenvolvimento econômico   e na melhoria das condições de vida das camadas mais necessitadas.

Neste mesmo momento, os sul coreanos adotaram uma política diferente, optaram por uma abertura econômica planejada, fortes investimentos em tecnologias, redução dos subsídios, prudência fiscal, depreciação da moeda para incrementar as exportações e uma reorientação na estratégia de crescimento, que passou de industrialização baseada na substituição das importações à industrialização baseada na exportação de manufaturados, com isso, os asiáticos passaram a ganhar espaços preciosos no comércio internacional, atraindo novos investimentos produtivos e investindo fortemente em capital humano, alcançando melhorias consideráveis para sua população.

Depois de anos de forte crescimento econômico, percebemos grandes conglomerados sul coreanos concorrendo em setores de alta tecnologia e automóveis, com as empresas Samsung, LG, Hyundai e Kia, quatro grandes empresas que concorrem em mercados internacionais de ponta, contrastando com a inexistência de empresas brasileiras nestes setores, as que temos apresentam-se como empresas produtoras de produtos primários, como a Petrobrás e a Vale.

Enquanto o país asiático aumentou fortemente os investimentos em educação, transformando-a em sua prioridade central, revendo políticas ultrapassadas, melhorando a formação dos professores, aumentando a atratividade da carreira docente, introduzindo instrumentos de avaliação e aproximando as escolas e universidades das empresas, com isso, impulsionaram as pesquisas científicas e melhoraram os ambientes de aprendizados, o resultado foi uma forte melhoria no sistema educacional e um avanço nas avaliações internacionais, colocando os alunos do país nas melhores colocações do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA), realizado a cada três anos pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

O modelo de substituição de importação gerou crescimento em muitos países e regiões, o Brasil foi um exemplo exitoso deste crescimento acelerado no período 1950-1980, depois deste período esbarrou nas limitações do mercado interno, um mercado fortemente marcado pela concentração de renda e oligopolizado, que impedem economias de escala e a especialização, essenciais para a manutenção do crescimento. Alguns países transformaram seu modelo, saindo da substituição de importação e passando para um enfoque maior nas exportações, com redução de tarifas de importação e taxas de câmbio apreciada e com mais estabilidade, sem grandes flutuações. Depois passaram a impulsionar o crescimento baseado no mercado doméstico, depreciando a moeda e ganhando mercados internacionais e no desenvolvimento tecnológico, como fizeram Coréia do Sul, Japão e China.

O Brasil seguiu um caminho diferente dos sul coreanos, ao invés de iniciar um novo modelo de industrialização, optou por aprofundar o modelo construído anteriormente, lançando, nos anos 70, a segunda fase do programa de substituição de importações, baseados em bens de capitais, energias e insumos industriais, aumentando as barreiras às importações, mantendo a moeda apreciada e introduzindo políticas fiscais fortemente expansionistas, que resultaram numa piora da situação econômica e na perda do dinamismo produtivo, com graves desequilíbrios sociais e políticos, lembremos que, nesta época vivíamos em um país autoritário governado por militares, baseado num regime iniciado com o golpe de 1964, cuja discussão política inexistia.

Com relação ao Brasil, percebemos uma considerável piora nas condições econômicas do país depois de 1980, diante disso, economistas independentes e organizações internacionais passaram a discutir a situação brasileira, de uma economia marcada por forte crescimento econômico no período 1950-1980, que colocou o país na vanguarda, com grandes perspectivas de desenvolvimento econômico e pretensões hegemônicas, como este crescimento não se efetivou, o  país se transformou em uma economia periférica envolta em variados problemas econômicos e conflitos políticos e sociais, afastando-nos do crescimento econômico almejado e, principalmente, do desenvolvimento, sonho tão alentado em períodos anteriores.

O Fundo Monetário Internacional (FMI), lançou um livro recentemente intitulado “Brazil: boom, bust, and the Road to Recovery” com uma análise de economistas da instituição e acadêmicos brasileiros, nesta publicação, o Fundo propõe uma série de iniciativas de politica econômica, divididas entre aquelas voltadas para o equilíbrio de curto prazo (aperfeiçoar o tripé macroeconômico de 1999, incluindo a autonomia formal do Banco Central, aprofundar a consolidação fiscal, algo que requer a aprovação da reforma da Previdência), além de medidas de longo prazo, como melhorar a competitividade da economia brasileira, simplificar o sistema tributário, aumentar a eficiência do mercado de crédito, reformar o mercado de trabalho, promover a abertura da economia brasileira, combater a corrupção e melhorar a infraestrutura, redução da burocracia, todas estas medidas são vistas como medidas liberais que darão impulso ao sistema econômico e produtivo.

As medidas liberais, ou neoliberais, são bastante atrativas e, vistas de uma forma geral, tendem a convencer os incautos muito rapidamente, algumas delas se caracterizam por uma grande transformação na economia e, nesta transformação, graves desequilíbrios em indicadores sociais, aumento da pobreza e incremento da desigualdade. Estes impactos negativos acontecem porque grande parte dos setores econômicos e produtivos apresentam grandes dificuldades para competir no mercado externo, sobrevivem graças a incentivos e subsídios governamentais crescentes, para isso se utilizam de suas políticas de fortes lobbies, garantindo os benefícios e transferindo aos consumidores nacionais produtos com preços elevados e de menor qualidade quando comparados a similares internacionais.

Como destaca Bresser Pereira, considerado por muitos economistas liberais como um jurássico: “A solução liberal é impensável; falta ao liberalismo econômico a ideia de nação e a capacidade de combinar de forma equilibrada a coordenação econômica do mercado (insubstituível quando este é competitivo) e a do Estado, imprescindível para os setores não competitivos e para os cinco preços macroeconômicos que o mercado não tem capacidade de coordenar. A solução desenvolvimentista é uma alternativa, mas desde que não seja desfigurada pelo populismo fiscal ou por pura incompetência”.

O Brasil não conseguiu garantir um amplo crescimento de sua produtividade, manteve durante muitos anos o modelo de substituição de importação, além de insistir neste modelo quando outros países o tinha abandonado, não investiu a contento na educação e capacitação de sua mão de obra, fechou sua economia e adotou políticas com reserva de mercado para setores ineficientes e de baixa produtividade, além disso adotou uma política de câmbio apreciado para controlar a inflação galopante herdada dos governos militares e, com isso, gerou graves constrangimentos ao setor industrial, que chegou a representar 28% do produto interno bruto e, na atualidade, está na casa dos 11%, um setor importante que sempre gerou bons empregos e potencial de crescimento tecnológico, com esta política cambial os empregos foram gerados em outras economias.

Outro ponto fundamental nesta equação da perda de importância da economia brasileira na economia global, foi a ausência da abertura econômica, o país protegeu de forma excessiva sua estrutura produtiva levando-a a ineficiência, vide como exemplo a indústria automobilística e a indústria dos computadores, setores fortemente protegidos e com baixa capacidade de competição no mercado internacional, ao contrário dos congêneres sul coreanos. Estes setores são importantes para a economia mundial, em ambos o Brasil apresentou bons potenciais de competitividade em décadas anteriores, mas, infelizmente ao se fechar e adotar políticas protecionistas, condenou-os a uma reserva de mercado atrasada e fortemente corporativista, os resultados estão mais nítidos nos dias atuais, sem concorrência nossa economia não vai conseguir ganhar mercado, não estamos defendendo uma abertura acelerada, mas uma política compactuada com os setores, uma redução das alíquotas em 4 ou 5 anos, acompanhada por uma depreciação compensatória, investimentos maciços em infraestrutura e controle dos monopólios no setor de serviços.

Esta abertura econômica pactuada e planejada com os setores produtivos deve priorizar novos acordos comerciais, impulsionando acordos além dos estabelecidos no âmbito do Mercosul, que em anos anteriores vem sendo desprestigiado devido as crises dos países membros, buscar novos acordos e definir um interesse mais efetivo para os mercados externos tende a costurar novos espaços para nossos produtos e para nossos setores econômicos e produtivos, gerando mais empregos e uma maior atração de moedas conversíveis.

A economia brasileira pode ser descrita como uma economia muito fechada, a razão de comércio exterior sobre o produto interno bruto está próxima da 25%, enquanto economias emergentes grandes e dinâmicas, como a China e a Índia, apresentam razões próximas a 40%, mesmo defendendo uma abertura econômica, faz-se necessário um gradualismo, um planejamento e a construção de uma agenda clara de competitividade, sem isto, a abertura tende a gerar constrangimentos maiores e desnecessários.

A temática fiscal é de suma importância para entendermos nosso atraso econômico, como nos explicou o economista britânico J. M. Keynes, a estabilidade macroeconômica requer austeridade fiscal durante expansões econômicas, e expansão fiscal em períodos de contração ou estagnação, nesta questão percebemos que o Brasil adotou um caminho oposto, adotamos políticas fiscais expansionistas quando não eram necessárias e austeridade quando a expansão era necessária, esta austeridade vem sendo adotada desde 2015 e os resultados não estão sendo nada positivos para a estrutura econômica e produtiva.

A direita liberal, que sempre se declarou mais racional e dominada pela razão econômica, na atualidade reflete apenas os interesses dos rentistas e financistas e os interesses estrangeiros, isto nos ajuda a compreender os ganhos astronômicos dos bancos e setores financeiros em uma sociedade destruída pelo baixo crescimento econômico e pelo incremento do desemprego. Já as esquerdas, que sempre defenderam, ou acreditaram defender, que se guiavam pela justiça, mas justiça sem desenvolvimento econômico é a perpetuação da miséria dos pobres e a emigração dos filhos da classe média educada para onde haja emprego.

O Brasil apresenta inúmeros problemas descritos por muitos teóricos e intelectuais como problemas econômicos, nossa economia apresenta algumas limitações, a superação destes problemas e constrangimentos só se efetivará com a construção de um projeto nacional que inclua todos os setores da sociedade, sem este projeto nos aproximaremos de uma fala clara e precisa do nosso maior economista, Celso Furtado, na despretensiosa obra O longo Amanhecer “em nenhum momento de nossa história foi tão grande a distância entre o que somos e o que esperávamos ser”.

O livro descrito acima, “Brazil: boom, bust, and the Road to Recovery publicado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), nos traz inúmeras contribuições para a superação do atraso econômico brasileiro posterior aos anos 1980, nele encontramos várias lições para fazer com que o Brasil volte a crescer de forma acelerada, saber estas lições são fundamentais e relevantes para o futuro da economia brasileira, mas insuficientes, também são necessários uma liderança forte e um compromisso inabalável, ancorados em um senso de responsabilidade e parceria entre todos os grupos interessados (stakeholders)”. Este nos parece um grande problema no momento, os governantes atuais carecem de envergadura para compreender, de forma clara, os grandes desafios a que foram ungidos, sem este reconhecimento estaremos condenados a mais alguns anos ou décadas de baixo crescimento e de piora nos indicadores sociais.

40 anos de quase-estagnação

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Qualquer solução depende de mudança das elites 

Luiz Carlos Bresser-Pereira

De repente, meus colegas economistas descobriram o que eu gritava indignado há tempo: a economia brasileira está quase-estagnada desde 1981. Em 2001, falei em 20 anos de quase-estagnação; em 2007, quando o Cristo Redentor foi transformado em um foguete espacial, publiquei o livro “Macroeconomia da Estagnação”. Nos anos seguintes, os títulos de alguns dos meus trabalhos começavam com uma contagem progressiva: “Brazil’s 34 years… 35 years… 36 years old quasi-stagnation”.

Neste mês, talvez porque o FMI publicou um livro reconhecendo o problema (“Brazil: Boom, Bust, and the Road to Recovery”), leio no jornal Valor Econômico três artigos de competentes economistas brasileiros, Carlos Luque, Simão Silber e Roberto Zagha, da USP (5.abr), Castelar Pinheiro, da FGV (5.abr), e Mário Mesquita, economista-chefe do Itaú-Unibanco (4.abr), assinalando nosso triste fracasso econômico.

O título mais significativo é o de Mesquita: “Os 40 miseráveis e o FMI”. Mas, leitores, não é o FMI o culpado. A melhor coisa do livro é a definição da quase-estagnação. Eu sempre comparo a taxa de crescimento per capita do Brasil de 4,5% ao ano, de 1950 a 1980, uma taxa extraordinária, com os tristes 0,9% ao ano desde então. O FMI compara o crescimento do Brasil com o dos demais países em desenvolvimento e com os países ricos: nesse período “o crescimento do PIB per capita de 0,9% ao ano, em média, compara-se mal com os 3% das outras economias emergentes e em desenvolvimento e o 1,7% das economias desenvolvidas” (pág. 4).

Como isso pôde acontecer? A explicação de economia política pode ser resumida em uma frase: os trabalhadores, os capitalistas rentistas e a alta burocracia pública preocupam-se apenas com seu consumo imediato: os trabalhadores priorizam o aumento dos salários e veem na expansão da despesa pública o caminho para o desenvolvimento; os rentistas, representados pela ortodoxia liberal, justificam seus juros altos com o fantasma da inflação e veem no corte da despesa pública, inclusive o investimento público, a solução de todos os males; a alta burocracia pública, corporativista, que se legitima pela luta contra a corrupção, ignora o problema do desenvolvimento. Em outras palavras, o Brasil foi dominado nestes 40 anos pelo populismo fiscal (déficits públicos) do primeiro grupo, pelo populismo cambial (crescimento com “poupança externa” ou déficits em conta-corrente) do segundo, e pelo corporativismo do terceiro.

A preferência pelo consumo imediato, que reduz a acumulação de capital e o crescimento, transparece na simples comparação de 2016-2017 com 1976-1978: o investimento público no país caiu brutalmente, de 9,5% para 2,1% do PIB, queda esta não compensada pelo setor privado, que continuou investindo 15% do PIB. Boa parte da queda do investimento público pode ser explicada pelos juros pagos pelo Estado aos rentistas, que subiram de 2,2% para 6,3% do PIB.

Há solução para essa quase-estagnação velha de 40 anos? A solução liberal é impensável; falta ao liberalismo econômico a ideia de nação e a capacidade de combinar de forma equilibrada a coordenação econômica do mercado (insubstituível quando este é competitivo) e a do Estado, imprescindível para os setores não competitivos e para os cinco preços macroeconômicos que o mercado não tem capacidade de coordenar. A solução desenvolvimentista é uma alternativa, mas desde que não seja desfigurada pelo populismo fiscal ou por pura incompetência.

Qualquer solução depende de uma mudança profunda na forma de pensar das elites econômicas, políticas e intelectuais brasileiras. Entre os anos 1930 e os anos 1980, elas foram predominantemente desenvolvimentistas; desde 1990, liberais.

A direita liberal supõe guiar-se pela razão, mas hoje reflete apenas os interesses de rentistas e financistas e os interesses estrangeiros; a esquerda acredita guiar-se pela justiça, mas justiça sem desenvolvimento econômico é a perpetuação da miséria dos pobres e a emigração dos filhos da classe média educada para onde haja emprego.

Luiz Carlos Bresser-Pereira

Professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (1987, governo Sarney), da Administração e da Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (1995-1998 e 1999, governo FHC)

 

Considerações espíritas sobre o obsidiado: vítima ou algoz?

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A Doutrina Espírita nos foi trazida ao mundo pelos espíritos por intermédio do intelectual francês Allan Kardec, com estas revelações a sociedade mundial tomou contato com uma nova realidade, neste momento se descortina o mundo espiritual, nos mostrando que estagiamos no mundo material, mas a verdadeira vida se dá no mundo espiritual, estas descobertas de caráter revolucionário geraram constrangimentos para muitos e esclarecimentos para outros, as novidades assustavam e geravam preocupações para todos os indivíduos.

O espiritismo nos mostrou casos chocantes de obsessão e de possessão, mostrando ao mundo uma realidade nova e muito mais complexa, os obsessores eram vistos como espíritos maldosos e violentos pela sociedade da época, que escolhiam as suas vítimas aleatoriamente e se compraziam das dores destes obsidiados, vítimas de espíritos atrasados e dotados de sentimentos inferiores, esta visão se mostrou limitada com as ideias e os pensamentos inaugurados pelo movimento espírita, nesta doutrina se descobriu que, no mundo, não existem vilões e nem mocinhos, personagens dos contos de fadas infantis, embora muitos irmãos sofredores se dizem esquecidos e vítimas de perseguições, se colocando como vítimas da maldade alheia, não existem vítimas, somos todos algozes.

Numa conversa com algumas pessoas que vivem momentos de obsessão, a grande maioria se diz vítima de espíritos cruéis, irmãos agressivos que os querem ver mortos e enterrados, para conseguir seu intento, usam de todos os instrumentos de controle e de dominação, levando muitos irmãos ao suicídio, alguns levam os obsidiados a se agredirem fisicamente , com variadas formas de mutilação, além de estimular doenças e comportamentos agressivos, agredindo e maltratando suas vítimas, seus familiares e amigos ou pessoas próximas que queiram auxiliar, enxergando nestas atitudes uma forma de se vingar de desequilíbrios e agressividades de outras encarnações.

Neste ambiente de vinganças e de agressividades entre desencarnados e encarnados, percebemos um laço forte entre estes irmãos, muitos se manifestam nas seções mediúnicas e bradam destruição e constrangimentos aos seus perseguidos, falam alto e tentam intimidar os doutrinadores, querendo mostrar poder e controle da situação, usam termos mais agressivos e, em muitos casos, palavras e expressões deselegantes.

Os espíritos obsidiados não devem ser vistos como vítimas, não existem vítimas, se neste momento estão sendo obsidiados, e Deus autoriza todo este processo, é porque em algum momento cometeram equívocos que justificam esta situação, a justificativa para estas perseguições, muitas vezes, não pode ser encontrada nesta vida atual, mas em outras encarnações, quando em convivência com o atual obsessor cometeu algum abuso que gerou este ressentimento que ora está sendo cobrado de forma veemente, gerando graves constrangimentos e criando laços de rancor que podem perdurar por muitos séculos, tendo casos de obsessão que duram mais de trezentos ou quatrocentos anos, período longo marcado por dores, rancores e intensos ressentimentos.

Joana de Angelis nos mostra que, para o obsidiado, a obsessão é uma prisão interior, uma cela pessoal, onde a grande maioria das pessoas se mantém sem lutar por libertação, acomodada aos vícios, centralizada nos erros. O Espiritismo veio para nos auxiliar a sair desta cela que impomos a nós mesmos, por ignorância e pelas dificuldades que temos de encarar de frente nossas dificuldades e limitações, com seus ensinamentos que consolam, mas, sobretudo, nos libertam e nos auxilia em nosso crescimento moral e espiritual.

A Doutrina Espírita nos mostra que a nossa vida não se restringe a atual vida, somos espíritos imortais e estagiamos no mundo físico a mais de 40 mil anos, como nos mostrou André Luiz, em Nosso Lar, desde então, estamos sujeitos a um processo contínuo de experiências físicas e, com estas, crescemos e evoluímos até nos tornarmos espíritos puros, estas andanças são complexas, mas nos levam a uma visível melhora individual e a uma sociedade mais consistente e renovada.

A obsessão deve ser compreendida como alguma influenciação que os encarnados sofrem dos irmãos que passaram para o mundo espiritual, os desencarnados, num estágio mais elevado o obsessor passa a controlar, de forma tão precisa e violenta que o obsidiado passa a se comportar da forma que o obsessor deseja, levando-o a fazer escolher e definir estratégias, o controle total do obsessor pode levar o obsidiado ao suicídio, neste momento percebemos que de uma simples obsessão, a situação passou para um caso de possessão.

Todos nós fomos ou ainda somos obsidiados, é importante destacarmos esta questão de forma clara e direta, estamos todos obsidiados ou sujeitos a sermos obsidiados e, como nos mostrou Suely Caldas Schubert, no livro Obsessão e Desobsessão: “Desde que não conseguimos a nossa liberdade, desde que ainda não temos a nossa carta de alforria para a eternidade, desde que caminhamos sob o guante de pesadas aflições que nos falam de um passado culposo e que ressumam sombras ao nosso redor… é porque, em realidade, ainda somos prisioneiros de nós mesmos, tendo como carcereiros aqueles a quem devemos”.

O obsidiado deve ser visto como um companheiro de vidas anteriores, muitos deles atuaram em falcatruas ou em trambiques visando lucros fáceis e recursos amoedados, são espíritos bastante próximos, muitos casos nos mostram claramente sentimentos fortes de amor e de admiração, encobertos pelo ressentimento e pela dominação do rancor, das mágoas e da vingança.

Todos estes sentimentos foram construídos ao longo do tempo, muitas parcerias foram consolidadas em experiências anteriores, muitos acordos foram rompidos e muitos prejuízos materiais foram efetivados, gerando uma perseguição intensa e um sentimento forte de revanchismo, levando estes irmãos inconscientes a uma dura realidade da vida, com dores, mágoas e lágrimas escorrendo de seus corpos físico e espiritual.

Muitos desencontros são gerados nos relacionamentos amorosos, muitas conquistas levam a dores, mágoas e ressentimentos, promessas descumpridas, casamentos desfeitos, namoros arruinados e corações partidos, sentimentos antes próximos dos amores terrestres são transformados em agressividades e violências mundanas que muitos irmãos levam por séculos e séculos cravadas no íntimo, são dores que incomodam severamente os corações incautos, que se entregam ao rancor e, com isso, evitam uma reflexão mais íntima e sincera das suas dificuldades emocionais e espirituais.

O obsidiado deve ser visto como um irmão que precisa de auxílio, e mais, deve ser compreendido como uma pessoa que está nos auxiliando muito mais do que imaginamos, afinal, todos os desequilíbrios que este irmão nos mostra são desajustes que temos e que cultivamos, muitos deles durante muitos anos e, até mesmo, séculos. Quando recebemos estes irmãos, mesmo sabendo que eles momentaneamente querem o nosso mal, temos a oportunidade de refletir sobre a nossa conduta ou os nossos comportamentos e hábitos, isto porque, quando nos visita, busca na nossa intimidade situações que precisamos evoluir, sem esta transformação não conseguiremos nos melhorar e galgar novos espaços, mais sólidos e consistentes, nesta nova experiência no mundo material.

No livro Nosso Lar, André Luiz nos mostra uma situação familiar que ilustra de forma precisa esta questão, num determinado momento sua mãe, um espírito de grande desprendimento e evolução espiritual se compromete a reencarnar e, novamente, contrair núpcias com seu pai, mesmo sabendo que este acumulou inúmeros casos e relacionamentos extraconjugais e dentre eles, manteve durante alguns anos duas mulheres que, ao desencarnar o perseguiam obsessivamente, lhe causando graves desequilíbrios emocionais e a permanência em regiões nebulosas por muitos anos, mesmo sabendo de tudo isto, sua mãe aceitou receber estas irmãs como suas filhas numa próxima encarnação, doando seu ventre para que estas nascessem e seus sentimentos para que estas irmãs crescessem e se desenvolvessem, um belo exemplo de evolução, desprendimento e abnegação.

A nossa reflexão íntima nos ajuda a compreender aonde este irmão, ora obsessor, está atuando, uns atuam na sexualidade e nos desejos sexuais, outros se concentram nas questões financeiras e monetárias, outros ainda se comprazem em desequilibrar nossos relacionamentos, incentivando o uso de drogas e o consumo excessivo de bebidas, além de ver outros obsessores buscando desequilibrar as questões profissionais e de saúde. Somos seres em constante evolução e apresentamos desequilíbrios em algumas destas áreas, normalmente em muitas delas, uns são mais propensos a desajustes numa das áreas, enquanto outros apresentam desequilíbrios em outras, mas todos apresentamos estas fragilidades e precisamos vencer tais desequilíbrios, sob pena de nos vermos envoltos em processos obsessivos severos e violentos, com grandes traumas e comprometimentos.

Estas dificuldades todos os indivíduos trazemos transcritos em nossa períspirito, estão inscritas desde muitas encarnações, em alguns momentos evoluímos em uma das áreas e deixamos outras de lado, a evolução, diante disso, demanda tempo, perseverança e muitos esforços, lutar contra nossas dificuldades nos auxilia a encontrar um progresso mais próximo e mais consistente.

Somos os nossos maiores obsessores, estamos constantemente cultivando pensamentos negativos e inferiores, agindo de forma diferente dos valores que aprendemos em nossas experiências cotidianas, somos os nossos maiores algozes e estamos, constantemente, culpando aqueles que momentaneamente querem o nosso mal, precisamos evoluir para que tenhamos maturidade para encarar as realidades da vida de frente, sem esta maturidade emocional e espiritual vamos continuar repisando nossos problemas, criando traumas, angariando inimigos e levando-os para as próximas existências.

Amores mundanos e conquistas centradas em promessas e constrangimentos, podem levar sentimentos sólidos a se transformar em rancores e ressentimentos agressivos, obsessores se julgam vítimas de relacionamentos frustrados e de conquistas vis, prometem vingança e desperdiçam muitos anos ou décadas de suas vidas com perseguição, muitos destes casos são amores mal resolvidos e sentimentos ainda latentes, que unem dois irmãos que conseguiram transformar sentimentos nobres em agressividades, esta obsessão pode levar ambos a desequilíbrios generalizados e até, em casos extremos, a possessão, situação onde o obsessor controla o obsidiado por completo, comandando seus pensamentos, sentimentos, comportamentos e suas atitudes.

Muitas vezes prometemos casamento, relacionamentos sérios ou compromissos futuros para um irmão ou irmã desequilibrados, sabemos que não vamos efetivar esta promessa mas, mesmo assim, a utilizamos para angariar benefícios físicos, financeiros ou sexuais, esta promessa gera uma proximidade entre os dois indivíduos, com o encerramento do relacionamento um destes irmãos não se conforma e passa a perseguir seu eterno amante, em muitos casos vira uma verdadeira paranoia, esta perseguição começa no mundo material e, muitas vezes, continua durante muitos séculos no mundo dos espíritos, gerando dores, mágoas e tentativas variadas de vingança.

Muitos abortos feitos por pessoas imaturas e inconsequentes podem gerar graves processos obsessivos, obsessões agressivas e violentas, se o indivíduo abortado se sentir inferiorizado e, com isso, acumular sentimentos de vingança e ressentimento, a perseguição pode se transformar em um instrumento concreto de destruição, gerando rancores e ressentimentos que podem perdurar por anos, décadas e até séculos, acumulando dores, lágrimas e ranger de dentes que poderiam ser, facilmente, evitados através do perdão verdadeiro.

A Doutrina Espírita nos mostra que somos responsáveis por todos aqueles que cativamos e conquistamos, se nos aproveitarmos de alguém seremos condenados a ressarcir este irmão, todas as promessas que fazemos devem ser efetivadas e quando as fazemos com interesses duvidosos teremos que arcar com as consequências de nossos atos, muitos enxergam isto como uma punição, mas devemos ver não como uma punição de Deus, mas, como um processo de educação do espírito imortal.

A transformação moral, a vivência no bem, a opção pela oração constante, o cultivo dos reais valores da vida aos poucos anulará os condicionamentos para a dor, favorecendo a harmonização interior, que é, sem dúvida, fator de melhor saúde física e espiritual. A Doutrina dos Espíritos nos auxilia para que possamos amenizar as nossas dores mais íntimas, não só pela compreensão de suas causas, mas também por intermédio de todo bem que possamos fazer, diante disso e, com estes esclarecimentos, mais fácil se torna para o ser humano a caminhada, mesmo sabendo que a estrada é esburacada, a certeza da presente de Deus em nossos corações nos dá o alento necessário para alcançar nossa evolução e nosso progresso, transformando a caminha em luzes para nossa evolução moral e espiritual.

 

 

Corrupção, crise econômica e degradação social

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A sociedade brasileira está envolta em casos assustadores de corrupção, ineficiência e desmandos com o dinheiro público, num país marcado por tanta pobreza e indignidade, os desperdícios aumentam a pobreza e a degradação social e condena uma parte considerável da população a uma miséria crônica e vergonhosa, apesar de sermos a oitava economia do mundo, estamos nas últimas colocações do ranking quando analisamos questões sociais.

A corrupção sempre foi vista como algo estrutural nesta sociedade, segundo cálculos recentes da transparência internacional, instituição de grande respeitabilidade global que analisa esta questão, desvia-se entre 3 e 5% do produto interno bruto (PIB), recursos estes que poderiam minorar as dores e a degradação das condições de vida de milhões de cidadãos que vivem e se reproduzem nas piores condições sociais possíveis e imagináveis.

Ao analisar este fenômeno da corrupção, percebemos inúmeras vertentes de análise, uma que remonta a história do país um comportamento eminentemente corrupto, onde os portugueses construíram em terras locais uma sociedade baseada em compadrio, clientelismo e patrimonialismo, onde os detentores dos poderes econômicos da metrópole, reproduziam na colônia os instrumentos de controle que eram fontes de poder e manutenção do status quo, nesta sociedade, marcada pelo conservadorismo e pela forte influência do catolicismo, os donos do poder mantinham inúmeros privilégios enquanto os cidadãos normais se limitavam a direitos e benefícios sociais e políticos limitados.

Muitos acreditam que a corrupção que vivenciamos internamente tem suas raízes na colonização de Portugal, com isso, deixam de assumir as responsabilidades da população brasileira, afinal, os portugueses foram embora do Brasil a quase duzentos anos, nestes quase dois séculos de independência o país já deveria ter assumido as suas responsabilidades e tomado as rédeas de seu desenvolvimento econômico, social e político, culpar outros países denota claramente a imaturidade que domina uma parte da elite nacional.

Outro ponto importante para se destacar quando debatemos a corrupção é em relação as críticas feitas por boa parte da população aos homens públicos, vendo neles os verdadeiros exemplos da corrupção e da ineficiência do Estado e das políticas públicas, esta nos parece uma tese incompleta para a compreensão do problema em sua essência, muitos preferem colocar a culpa em outros, atribuir a terceiro os motivos do fracasso da sociedade brasileira, com isso se esquecem da responsabilidade de cada pessoa, se esquecem dos comportamentos corruptos e das atitudes inconsequentes de todos os dias na vivência em comunidade, quando passam no sinal vermelho, quando dirigem acima da velocidade permitida, quando cortam fila ou fingem situações para passar na frente de outras pessoas, quando corrompem o guarda ou fazem propostas indecorosas para conseguir benefícios ou prazeres imediatos, ou seja, nestas situações mostramo-nos intimamente, nos desnudamos e deixamos nítido que, se tivéssemos a oportunidade ou o poder, agiríamos da forma como os políticos agem na sociedade e que nós tanto o criticamos.

A corrupção está presente nos lares da população, desde os anos 70 nos comprazemos com a ideia de que devemos tirar proveito de tudo, de que somos adoradores da Lei de Gerson, o chamado jeitinho brasileiro nos acompanha desde os primórdios do nosso íntimo, somos e nos deliciamos com nossa capacidade de tirar vantagem de tudo. Neste ambiente marcado pela corrupção e pela cidadania reduzida, nos lembramos das palavras e das reflexões do grande jurista Rui Barbosa: “De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto”.

A corrupção corrói as estruturas da sociedade, gerando graves desequilíbrios nas estruturas econômicas, sociais e políticas, propala, para toda a sociedade, nacional e internacional, a certeza de que, como disse Charles De Gaulle, grande estadista francês em visita ao país nos anos 60: “O Brasil não é um país sério”. Mesmo rechaçando as palavras do político francês, todos os brasileiros sabemos, na intimidade, que o Brasil precisa passar por um banho de civilização, estamos diante de graves problemas econômicos, políticos e sociais, sem resolver estas questões de cunho moral, dificilmente daremos o salto tão almejado desenvolvimento econômico.

A corrupção perpassa variados grupos sociais, de um lado encontramos um Estado altamente ineficiente, cujos investimentos geram os mais desagradáveis retornos da sociedade global, precisamos caminhar muito em governança, reduzir os desequilíbrios e desperdícios que corroem a renda e geram um rastro de medo, insegurança e incertezas.

A corrupção se associa intimamente com o Estado, no Brasil temos um governo gigantesco, seus investimentos e gastos influenciam imensamente todos os setores econômicos e produtivos, reduzir a atuação governamental em setores marcados pela ineficiência e pelos desperdícios e concentrar sua atuação em setores com menores condições, tanto com relação ao pessoal quanto ao financeiro, garantindo políticas públicas consistentes para que todos os grupos tenham acesso a uma educação inclusiva e de qualidade, que garanta a todos os grupos sociais condições de competir no mercado de trabalho competitivo e altamente individualista.

Destacamos ainda, que devemos rechaçar a tese de que o Estado é corrupto e ineficiente, enquanto os mercados e a iniciativa privada são sempre virtuosos e competentes, Estados e Mercados são agentes centrais para o desenvolvimento do país, se estudarmos a história do desenvolvimento dos países avançados perceberemos que todos eles, no início da industrialização, contaram com o apoio e a participação de políticas industriais ativas lideradas pelos seus respectivos governos, como nos mostrou o esclarecedor livro O Estado Empreendedor, da economista italiana Mariana Mazzucato.

A coordenação entre Estado e Mercado deve ser centrada na transparência, no compartilhamento de decisões e na construção de estratégias claras e consistentes, sem o planejamento conjunto, ainda mais num momento de constante instabilidades e inseguranças, o desenvolvimento econômico e produtivo pode não se efetivar da melhor forma possível, com graves problemas para a coletividade.

Vivemos no Brasil uma situação exemplar, extraordinário e paradoxal, sempre nos caracterizamos como uma sociedade que via a política como um espaço de corrupção e ineficiência, neste mundo a parte os políticos eram o retrato mais nítido e evidente do atraso, os outros setores eram competentes e capacitados, acreditamos nisso durante muitos anos até acordarmos e percebermos que não éramos tão virtuosos como acreditávamos, que os políticos e os homens públicos eram eleitos com os nossos votos, nós os elegíamos mesmo vendo neles um exemplo de ineficiência, despreparo e corrupção.

Outro ponto central para se destacar nesta sociedade é o papel central da educação, além de ser um instrumento fundamental para a melhoria da competitividade e da economia de um país, a educação deve ser vista como um instrumento extremamente relevante para construir cidadãos capacitados e conscientes, não apenas consumidores, ou seja, indivíduos que acreditam que todas as relações sociais dentro de uma coletividade deve ser estruturada dentro das relações comerciais e financeiras, deixando de lado o papel da política como um instrumento de intercâmbio e melhorias sociais e coletivas.

A corrupção é um cancro que degrada toda a coletividade, desvia os recursos que deveriam ser investidos na melhoria das condições sociais e econômicas, gerando mais e melhores empregos e capacitando os trabalhadores para os desafios do mundo globalizado, a corrupção denigre a política e os homens públicos criando e disseminando a máxima “políticos são todos iguais”, com isso, contribui para a perpetuação das condições de iniquidade e desajustes e impulsionando a visão deletéria de que devemos ser, cada vez mais, individualistas, pensarmos primeiro em nossos mais imediatos interesses e depois, muito depois, pensarmos nos interesses de nossa coletividade.

O Brasil precisa combater efetivamente as causas da corrupção, para que isso seja feito, faz-se necessário a construção de estratégias consistentes que abarquem todos os poderes da República, a corrupção que assusta a coletividade está encravada em todos os poderes não apenas o executivo e o legislativo, como muitos querem passar a impressão, a corrupção está gangrenando dentro do judiciário e dentro do ministério público, a corrupção está dentro do mercado financeiro, dos grandes bancos, das corretoras e de outros agentes independentes, a corrupção se alastrou por todas as instituições do Estado Nacional, combater a corrupção é bradar que se está fazendo uma ampla limpeza no país, sem se aprofundar nas entranhas do judiciário e do sistema financeiro, os resultados serão sempre limitados e limitadores.

Depois de vários escândalos nos últimos vinte anos, vamos nos restringir a este período histórico, desde os anões do orçamento, a compra de votos para a reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso, o mensalão, o petróleo e agora a Lava Jato, muitos inquéritos foram abertos, muitos escândalos foram revelados e muita podridão nos foi mostrada em cadeia de rádio e de televisão, mesmo diante destes escândalos, muitos políticos e empresários foram presos, humilhados e suas imagens foram destruídas mas, neste período poucos foram efetivamente condenados e muitos deles, através de delações premiadas já estão em liberdade, sendo que alguns voltaram a delinquir.

A corrupção se manifesta de forma diferente na sociedade contemporânea, a pior forma de corrupção é a corrupção do caráter, a corrupção da moral, esta forma está em ampla ascensão na sociedade, pessoas que conhecem a situação social, intelectuais e homens públicos que se vendem em troca de recursos amoedados, garantindo uma vida de prazer, dinheiro, bens e hedonismo, pesquisadores que vendem descobertas científicas que degradam a vida de milhões de pessoas, destroem as bases da sociedade, se esquecendo dos graves impactos e consequências de suas decisões, com isso, percebemos uma sociedade em alta ebulição, marcadas por crises e desequilíbrios crescentes.

A discussão sobre a corrupção é uma conversa muito mais complexa do que as pessoas imaginam, conversar sobre este tema é refletir sobre as desigualdades que reinam na sociedade, falar sobre corrupção é conversar sobre as formas de educação que estão sendo vendidas nas escolas e nas universidades, falar sobre a corrupção é adentrar na discussão de como as empresas e os empregadores tratam seus funcionários ou como exigem os gestores, os colaboradores, esta discussão é muito pouco comentada na sociedade, esta discussão não interessa apenas aos donos do poder e, sendo assim, esta discussão não aparece nos jornais, nas revistas e nos sites de notícias, aparecem apenas na mente e nos lábios dos professores que ousam pensar e refletir, ou seja, uma pequena e ínfima minoria.

Quando escrevi a minha tese de doutorado, o assunto escolhido foi a corrupção e os custos econômicos para a coletividade, naquela época nos deparamos com as investigações relacionadas ao mensalão, concomitantemente estudava o começo dos anos 90, quando o governo Fernando Collor de Mello sofreu impeachment e foi acusado de corrupção generalizada, nesta época lia os artigos de teóricos e políticos importantes, todos revoltados com a situação de corrupção do país, para minha surpresa, anos depois, estes mesmos que gritavam e bradavam contra a corrupção, estavam no centro das investigações justamente por corrupção e desvios de recursos públicos, neste momento me vinha a mente de forma veemente uma fala do teórico alemão, tão criticado no Brasil contemporâneo Karl Marx: A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa.

 

 

 

 

 

Quem deu o golpe, e contra quem?

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JESSÉ SOUZA

24/04/2016 – Folha de São Paulo

(RESUMO) Para o autor, decisão da Câmara a favor do processo de impeachment da presidente Dilma ameaça a democracia. Em texto que retoma ideias já expostas aqui e em seu livro mais recente, diz que esta crise, como outras, contou com a manipulação, mediada pela imprensa, da classe média pela “elite de dinheiro”.

O golpe foi contra a democracia como princípio de organização da vida social. Esse foi um golpe comandado pela ínfima elite do dinheiro que nos domina sem ruptura importante desde nosso passado escravocrata.

O ponto de inflexão da história recente do Brasil contra a herança escravocrata foi a revolução comandada por contraelites subordinadas que se uniram em 1930.

A visão pessoal de Getúlio Vargas transformou o que poderia ter sido um mero conflito interno de elites em disputa em uma possibilidade de reinvenção nacional.

O sonho era a transformação do Brasil em potência industrial com forte mercado interno e classe trabalhadora protegida, com capacidade de consumo. Nossa elite do dinheiro jamais sequer “compreendeu” esse sonho, posto que “afetivamente” nunca sentiu compromisso com os destinos do país.

Desde então o Brasil é palco de uma disputa entre esses dois projetos: o sonho de um país grande e pujante para a maioria; e a realidade de uma elite da rapina que quer drenar o trabalho de todos e saquear as riquezas do país para o bolso de meia dúzia.

A elite do dinheiro manda pelo simples fato de poder “comprar” todas as outras elites.

É essa elite, cujo símbolo maior é a bela avenida Paulista, que compra a elite intelectual de modo a construir, com o prestígio da ciência, a lorota da corrupção apenas do Estado, tornando invisível a corrupção legal e ilegal do mercado que ela domina; que compra a política via financiamento privado de eleições; e que compra a imprensa e as redes de TV, cujos próprios donos fazem parte da mesma elite da rapina.

De acordo com a conjuntura histórica, sempre que o Executivo está nas mãos do inimigo, imprensa e Congresso, comprados pelo dinheiro, se aliam a um quarto elemento que é o que suja as mãos de fato no golpe: as Forças Armadas antes, e o complexo jurídico-policial do Estado hoje em dia.

A história do Brasil desde 1930 é um movimento pendular entre esses dois polos. Getúlio caiu, como o desafeto histórico maior desta elite, por um conluio entre Congresso comprado, imprensa manipuladora e Forças Armadas que se imaginavam pairar acima dos conflitos sociais.

O suicídio do presidente adia em dez anos o golpe formal, que acontece em 1964 pela mesma articulação de interesses. O curioso, no entanto, é que dentro das Forças Armadas existia a mesma polarização que existia na sociedade.

INFRAESTRUTURA

O nacionalismo autoritário das Forças Armadas articula, por meio do 2º PND (Plano Nacional de Desenvolvimento) do presidente Geisel, uma versão ambiciosa do sonho getulista: investimento maciço em infraestrutura e setores-chave da vanguarda tecnológica com a disseminação de universidades e centros de pesquisa em todo o país.

Ainda que o capital privado fosse muito bem-vindo, a condução do projeto de longo prazo era do Estado. Foi o bastante para que os jornais se lançassem em uma batalha ideológica contra a “república socialista do Brasil” e os empresários descobrissem, de uma hora para outra, sua inabalável “vocação democrática”.

O processo de redemocratização comandado pela elite do dinheiro tem tal pano de fundo. As Diretas-Já, na verdade, espelham a volta da rapina de curto prazo e uma nova derrota do sonho de um “Brasil grande”.

Aqui já poderia ter ocorrido a conscientização de que a rapina selvagem é o fio condutor, e que a forma autoritária ou democrática que ela assume é mera conveniência. Mas o processo de aprendizado foi abortado. O público ficou sem saber por que o golpe tinha ocorrido e, depois, por que ele havia sido criticado. Criou-se uma anistia do “esquecimento” no mesmo sentido da queima dos papéis da escravidão por Rui Barbosa: para que jamais saibamos quem somos e a quem obedecemos.

Com o governo FHC, essa elite da rapina de curto prazo se insere, enfim, não apenas no mercado mas também, com todas as mãos, no Estado e no Executivo.

A festa da privatização para o bolso da meia dúzia de sempre, da riqueza acumulada pela sociedade durante gerações, se deu a céu aberto. A maior eficiência dos serviços, prometida à sociedade e alardeada pela imprensa, sempre solícita e sócia de todo saque, se deixa esperar até hoje.

Como uma imprensa a serviço do saque e do dinheiro não pode fazer todo mundo de tolo durante todo o tempo, e como ainda existem sonhos que o dinheiro não pode comprar, o Executivo mudou de mãos em 2002.

O novo governo tentou o mesmo projeto desenvolvimentista anterior, de apoio à indústria e à inteligência nacional. Mas seu crime maior foi a ascensão dos setores populares via, antes de tudo, a valorização real do salário mínimo.

Os mais pobres passaram a ocupar espaços antes exclusivos às classes do privilégio.

Parte da classe média sofria profundo incômodo diante dessa nova proximidade em shopping centers e aeroportos, mas “pegava mal” expressar o descontentamento em público. Pior, a classe média temia que essa classe ascendente pudesse vir a disputar os seus privilégios e os seus empregos.

O discurso da “corrupção seletiva” manipulado pela mídia permite que se enfrente agora o medo mais mesquinho com um discurso moralizador e uma atitude de pretenso “campeão da moralidade”. O que antes se dizia a boca pequena entre amigos agora pode ser dito com a camisa do Brasil e empunhando a bandeira nacional. Está criada a “base popular”, produto da mídia servil à elite da rapina.

A luta contra os juros desencadeada pela presidente Dilma em 2012 reedita a eterna crença da esquerda nacionalista brasileira na existência de uma “boa burguesia”, ou seja, a fração industrial supostamente interessada em um projeto de longo prazo de fortalecimento do mercado interno.

Mas todas as frações da elite já mamam na mesma teta dos juros altos que permite transferir recursos de todas as classes para o bolso dos endinheirados de modo invisível, funcionando como uma “taxa” que encarece todos os preços e transfere parte de tudo o que é produzido para os rentistas –inclusive da classe média feita de tola pela imprensa comprada.

Quando em abril de 2013 as taxas de juros voltam a subir, a elite está armada e unida contra a presidente. As “jornadas de junho” daquele ano vêm bem a calhar e, por força de bem urdida campanha midiática, transformam protestos localizados em uma recém-formada coalizão entre a elite endinheirada e a classe média “campeã da moralidade e da decência” contra o projeto inclusivo e desenvolvimentista da esquerda.

Como os votos dos pobres recém-incluídos são mais numerosos, no entanto, perde-se a campanha de 2014. Mas a aliança entre endinheirados e moralistas de ocasião se mantém e se fortalece com um novo aliado: o aparato jurídico-policial do Estado.

Construído pela Constituição de 1988 para funcionar como controle recíproco das atividades investigativas e jurisdicionais, todo esse aparato passa por mudanças expressivas desde então. Altos salários e demanda crescente por privilégios de todo tipo associados ao “sentimento de casta” que os concursos dirigidos aos filhos das classes do privilégio ensejam transformam esses aparelhos que tudo controlam, mas não são controlados por ninguém, em verdadeiros “partidos corporativos” lutando por interesses próprios dentro do aparelho de Estado.

A manipulação da “corrupção seletiva” pela imprensa é o discurso ideal para travestir, também aqui, os mais mesquinhos interesses corporativos em suposto “bem comum”. O troféu de “campeão da moralidade pública” passa a ser disputado por todas as corporações e se estabelece um conluio entre elas e a imprensa, que os vazamentos seletivos cuidadosamente orquestrados comprovam tão bem.

Esse é o elemento novo do velho golpe surrado de sempre. Ainda que o golpe tenha se dado no circo do Congresso em uma palhaçada denunciada por toda a imprensa internacional, sem o trabalho prévio dos justiceiros da “justiça seletiva” ele não teria acontecido.

O Estado policial a cargo da “casta jurídica” já está sendo testado há meses e deve assumir o papel de perseguir, com base na mesma “seletividade midiática”, o princípio: para os inimigos a lei, e para os amigos a “grande pizza”.

A “pizza” para os amigos já está em todos os jornais e acontece à luz do dia. O acirramento da criminalização da esquerda é o próximo passo. Esse é o maior perigo. Muita injustiça será cometida em nome da Justiça.

Mas existe também a oportunidade. Nem toda classe média é o aprendiz de fascista que transforma seu medo irracional em ódio contra os mais fracos, travestindo-o de “coragem cívica”.

Ainda que nossa classe média esteja longe de ser refletida e inteligente como ela se imagina, quem quer que tenha escapado do bombardeio diário de veneno midiático com dois neurônios intactos não deixará de estranhar o mundo que ajudou a criar: um mundo comandado por um sindicato de ladrões na política, uma justiça de “justiceiros” que os protege, uma elite de vampiros e uma sociedade condenada à miséria material e à pobreza espiritual. Esse golpe precisa ser compreendido por todos. Ele é o espelho do que nos tornamos.

JESSÉ SOUZA, 56, autor de “A Tolice da Inteligência Brasileira” (Leya), presidente do Ipea, é professor titular de ciência política da UFF e foi professor convidado na Universidade de Bremen.

Escravidão, e não corrupção, define sociedade brasileira, diz Jessé Souza

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RESUMO Autor argumenta que a visão do brasileiro como vira-lata, pré-moderno, emotivo e corrupto decorre de uma leitura liberal, conservadora e equivocada de nosso passado. Para ele, é preciso reinterpretar a história do Brasil tomando a escravidão como o elemento definitivo que nos marca como sociedade até hoje.

Quem sintetizou a interpretação dominante do Brasil, que todos aprendemos nas escolas e nas universidades, foi Gilberto Freyre (1900-87). É a ideia de que viemos de Portugal e que de lá herdamos um jeito específico de ser. Para o autor de “Casa-Grande e Senzala” e para seguidores como Darcy Ribeiro (1922-97), essa herança era positiva ou, pelo menos, ambígua.

Sérgio Buarque de Holanda (1902-82), outro filho de Freyre, reinterpreta a ideia como pura negatividade em registro liberal. Cria, assim, o brasileiro como vira-lata, pré-moderno, emotivo e corrupto. Tal visão prevaleceu, e quase todos a seguem, de Raymundo Faoro (1925-2003), Fernando Henrique Cardoso e Roberto DaMatta a Deltan Dallagnol e Sergio Moro.

Essa é a única interpretação totalizante da sociedade brasileira que existe até hoje.

A “esquerda”, entendida como a perspectiva que contempla os interesses da maioria da sociedade, jamais construiu alternativa a essa leitura liberal e conservadora. Existem contribuições tópicas geniais, mas elas esclarecem fragmentos da realidade social, não a sua totalidade, permitindo que, por seus poros e lacunas, penetre a explicação dominante.

A ausência de interpretação própria fez com que a esquerda sempre fosse dominada pelo discurso do adversário. Reescrever essa história é a ambição de meu novo livro, “A Elite do Atraso – Da Escravidão à Lava Jato” [Leya, 240 págs., R$ 44,90]. O fio condutor é a ideia de que a escravidão nos marca como sociedade até hoje —e não a suposta herança de corrupção, como se convencionou sustentar.

Para Faoro, por exemplo, a história do Brasil é a história da corrupção transplantada de Portugal e aqui exercida pela elite do Estado. Nessa narrativa, senhores e escravos raramente aparecem e nunca têm o papel principal.

Essa abordagem seria apenas ridícula se não fosse trágica. Faoro imagina a semente da corrupção já no século 14, em Portugal, quando não havia nem sequer a concepção de soberania popular, que é parteira da noção moderna de bem público. É como ver um filme sobre a Roma antiga cheio de cenas românticas que foram inventadas no século 18. Não obstante, o país inteiro acredita nessa bobagem.

ESCRAVIDÃO

Os adeptos dessa interpretação dominante parecem não se dar conta de que, em uma sociedade, cada indivíduo é criado pela ação diária de instituições concretas, como a família, a escola, o mundo do trabalho.

No Brasil Colônia, a instituição que influenciava todas as outras era a escravidão (que não existia em Portugal, a não ser de modo tópico). Tanto que a (não) família do escravo daquele período sobrevive até hoje, com poucas mudanças, na (não) família das classes excluídas: monoparental, sem construir os papéis familiares mais básicos, refletindo o desprezo e o abandono que existiam em relação ao escravo.

Também no mundo do trabalho a continuidade impressiona. A “ralé de novos escravos”, mais de um terço da população, é explorada pela classe média e pela elite do mesmo modo que o escravo doméstico: pelo uso de sua energia muscular em funções indignas, cansativas e com remuneração abjeta.

Em outras palavras, os estratos de cima roubam o tempo dos de baixo e o investem em atividades rentáveis, ampliando seu próprio capital social e cultural (com cursos de idiomas e pós-graduação, por exemplo) e condenando a outra classe à reprodução de sua miséria.

A classe que chamo provocativamente de ralé é uma continuação direta dos escravos. Ela é hoje em grande parte mestiça, mas não deixa de ser destinatária da superexploração, do ódio e do desprezo que se reservavam ao escravo negro. O assassinato indiscriminado de pobres é atualmente uma política pública informal de todas as grandes cidades brasileiras.

A nossa elite econômica também é uma continuidade perfeita da elite escravagista. Ambas se caracterizam pela rapinagem de curto prazo. Antes, o planejamento era dificultado pela impossibilidade de calcular os fatores de produção. Hoje, como o recente golpe comprova, ainda predomina o “quero o meu agora”, mesmo que a custo do futuro de todos.

É importante destacar essa diferença. Em outros países, as elites também ficam com a melhor fatia do bolo do presente, mas além disso planejam o bolo do futuro. Por aqui, a elite dedica-se apenas ao saque da população via juros ou à pilhagem das riquezas naturais.

INTERMEDIÁRIAS

Historicamente, a polarização entre senhores e escravos em nossa sociedade permaneceu até o alvorecer do século 20, quando surgiram dois novos estratos por força do capitalismo industrial: a classe trabalhadora e a classe média.

Em relação aos trabalhadores, a violência e o engodo sempre foram o tratamento dominante. Com a classe média, porém, a elite se viu contraposta a um desafio novo.

A classe média não é necessariamente conservadora. Tampouco é homogênea. O tenentismo, conhecido como nosso primeiro movimento político de classe média, na década de 1920, já revelava essas características, pois abrigava múltiplas posições ideológicas.

A elite paulistana, tendo perdido o poder político em 1930, precisava fazer com que a heterodoxia rebelde da classe média apontasse para uma única direção, agora em conformidade com os interesses das camadas mais abastadas. Como naquele momento os endinheirados de São Paulo não controlavam o Estado, o caminho foi dominar a esfera pública e usá-la como arma.

O que estava em jogo era a captura intelectual e simbólica da classe média letrada pela elite do dinheiro, para a formação da aliança de classe dominante que marcaria o Brasil dali em diante.

O acesso ao poder simbólico exige a construção de “fábricas de opiniões”: a grande imprensa, as grandes editoras e livrarias, para “convencer” seu público na direção que os proprietários queriam, sob a máscara da “liberdade de imprensa” e de opinião.

A imprensa, todavia, só distribui informação e opinião. Ela não cria conteúdo. A produção de conteúdo é monopólio de especialistas treinados: os intelectuais. A elite paulistana, então, constrói a USP, destinando-a a ser uma espécie de gigantesco “think tank” do liberalismo conservador brasileiro, de onde saem as duas ideias centrais dessa vertente: as noções de patrimonialismo e de populismo.

LAVA JATO

Enquanto conceito, o patrimonialismo procede a uma inversão do poder social real, localizando-o no Estado, não no mercado. Abre-se espaço, assim, para a estigmatização do Estado e da política sempre que se contraponham aos interesses da elite econômica. Nesse esquema, a classe média cooptada escandaliza-se apenas com a corrupção política dos partidos ligados às classes populares.

A noção de populismo, por sua vez, sempre associada a políticas de interesse dos mais pobres, serve para mitigar a importância da soberania popular como critério fundamental de uma sociedade democrática —afinal, como os pobres (“coitadinhos!”) não têm consciência política, a soberania popular sempre pode ser posta em questão.

É impressionante a proliferação dessa ideia na esfera pública a partir da sua “respeitabilidade científica” e, depois, pelo aparato legitimador midiático, que o repercute todos os dias de modos variados.

As noções de patrimonialismo e de populismo, distribuídas em pílulas pelo veneno midiático diariamente, são as ideias-guia que permitem à elite arregimentar a classe média como sua tropa de choque.

Essas noções legitimam a aliança antipopular construída no Brasil do século 20 para preservar o privilégio real: o acesso ao capital econômico por parte da elite e o monopólio do capital cultural valorizado para a classe média. É esse pacto que permite a união dos 20% de privilegiados contra os 80% de excluídos.

A atual farsa da Lava Jato é apenas a máscara nova de um jogo velho que completa cem anos.

Em conluio com a grande mídia, não se atacou apenas a ideia de soberania popular, pela estigmatização seletiva da política e de empresas supostamente ligadas ao PT —o saque real, obra dos oligopólios e da intermediação financeira, que capturam o Estado para seus fins, ficou invisível como sempre. Destruiu-se também, com protagonismo da Rede Globo nesse particular, a validade do próprio princípio da igualdade social entre nós.

O ataque seletivo ao PT, de 2013 a 2016, teve o sentido de transformar a luta por inclusão social e maior igualdade em mero instrumento para um fim espúrio: a suposta pilhagem do Estado.

Desqualificada enquanto fim em si mesma, a demanda pela igualdade se torna suspeita e inadequada para expressar o legítimo ressentimento e a raiva que os excluídos sentem, mas que agora não podem mais expressar politicamente.

Assim, abriu-se caminho para quem surfa na destruição dos discursos de justiça social e de valores democráticos —Jair Bolsonaro como ameaça real é filho do casamento entre a Lava Jato e a Rede Globo.

O pacto antipopular das classes alta e média não significa apenas manter o abandono e a exclusão da maioria da população, eternizando a herança da escravidão. Significa também capturar o poder de reflexão autônoma da própria classe média (assim como da sociedade em geral), que é um recurso social escasso e literalmente impagável.

JESSÉ SOUZA, 57, doutor em sociologia pela Universidade de Heidelberg (Alemanha), é autor de “A Tolice da Inteligência Brasileira” e “A Radiografia do Golpe” (Leya), além de professor de sociologia da UFABC.

Horizonte da elite não é sociedade justa, é economia pujante

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Para as classes altas, tudo é aceitável, se a locomotiva seguir acelerada

A elite social brasileira é branca, educada e cosmopolita. E assim é desde que o país começou. É também violenta, embora se veja como generosa para com subalternos, todos negros, mas “como se fossem da família”. Não são.

Nem na vida ganham acesso às relações abridoras de portas nem na morte herdam patrimônio. A próxima geração segue onde estava a antecedente, numa estrutura social secular, com os mesmos sobrenomes usufruindo a vista da cobertura, enquanto os sem nome limpam cozinhas e latrinas.

Ao contrário do que pregam a adversários, é raro que membros da elite façam autocrítica de erros políticos, como a eleição de Fernando Collor. Muito menos reconhecem seu papel ativo na reprodução intergeracional da desigualdade. Alguns dos seus, os “bem intencionados”, atuam nas franjas, com iniciativas para premiar o “talento” de alguns humildes, como Carlinhos Brown, que foi da favela ao estrelato.

Esta fresta para o alto não altera os mecanismos de distribuição de recursos e acessos. Mas é o suficiente para os cidadãos de bem, reconfortados pelo argumento liberal de que oportunidades individuais bastam para corrigir problemas estruturais.

É que o horizonte desta elite não é uma sociedade justa, é uma economia pujante. Para obter a segunda, abre mão da primeira. Nunca titubeou em pagar o preço, fosse a escravidão, regimes de trabalho avizinhados ou ditaduras, como a que o presidente comemorou. Tudo aceitável, se a locomotiva seguir acelerada.

Essa gente de bem pensa em si como o vagão que puxa o trem, que carrega o fardo do país e pena o alto custo trabalhista de mão de obra sem qualificação. São empreendedores incansáveis, prejudicados pelo povo caro e ignorante —que reclama de barriga cheia, pois muitos pesam, disse o presidente, várias arrobas.

O raciocínio do “Custo Brasil” omite que as mazelas nacionais sucessivas resultaram de decisões políticas tomadas pelos que estão no alto, enquanto o sacrifício é sempre exigido dos de baixo. Assim foi na reforma trabalhista, assim se anuncia na previdenciária e a tributária não avançará imposto sobre grandes fortunas e transmissão intergeracional de riquezas.

E, convenhamos, não se exige de quem adentra essa elite o refinamento da antiga aristocracia. Veja-se o novo ministro da Educação: é branco, tem diploma superior e renda que garantem moradia em andar alto da pirâmide nacional. E, no entanto, emite juízos explicáveis apenas pela ignorância.

Já havia o precedente do “nazismo de esquerda” mas rotular banqueiro de comunistas compete à altura. Nenhuma destas pérolas ministeriais espanta, considerando a língua presidencial. Mas choca que parcela tão gorda do topo social siga firme no apoio à obscurantista, autoritária e até aqui ineficiente “nova política”.

Apoio registrado no último Datafolha capaz de os banqueiros que o ministro menciona estarem entre os 36% de homens com diploma superior e os 41% com renda acima de dez salários mínimos que acham “ótima” a administração mitológica.

A aprovação (ótimo/bom) é ampla entre os que vivem bem: 47% dos profissionais liberais, 57% dos empresários e 71% dos rentistas, como se dizia antigamente. Os bem postos na vida estão satisfeitos com o governo.

Mesmo com critério exigente, a alegria não se desmancha: 46% do empresariado e 44% dos que vivem de renda dão nota 8 ou mais para a administração bolsonarista. Parte dos eleitores do mito é impenitente e está infenso a três meses de barbaridades. Mas nem todo votante de conveniência, o antipetista, repudia: 54% dos que se declaram PSDBistas seguem achando tudo ótimo. É que se a reforma da Previdência passar, os tuítes ensandecidos do Palácio do Planalto serão perdoados, porque o país —ou parte dele— usufruirá das bênçãos do mercado.

A maioria destes cidadãos de bem apoia também embalada por outra promessa, a da reforma penal.
É preciso mais que comprar armas para se defender de meliantes. Precisa encarcerá-los antes que atinjam a idade adulta. Claro, alguns escaparão de celas de extermínio precoce, e poucos talentosos serão escolhidos, como Brown, para cantar no Lollapalooza.

Aos remanescentes, resta a prontidão das forças da ordem, a postos para abater suspeitos. Suspeitos naturalmente negros, como muitos dos executores, como negros eram tantos capitães do mato.

Estão a serviço, mas tampouco serão admitidos às fortificações medievais onde a gente de bem dorme tranquila. Não se pode acordá-la com choro de órfãos, mães e viúvas, nem com o ruído de 80 tiros.

Angela Alonso

Professora de sociologia da USP, preside o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. É autora de “Flores, Votos e Balas”.

 

Por que o Brasil de Olavo e Bolsonaro vê em Paulo Freire um inimigo

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Biógrafo analisa hostilidade contra o educador, em alta nos últimos anos

Sérgio Haddad Folha de São Paulo – Ilustríssima – 14/04/2019.

[resumo] Biógrafo de Paulo Freire analisa como o principal educador brasileiro, autor de método de alfabetização que estimula alunos a refletirem sobre sua realidade, passou a ser visto como inimigo público e responsabilizado por maus resultados educacionais do país.

Em 29 de maio de 1994, em longa entrevista publicada no caderno “Mais”, da Folha, Paulo Freire comentou as razões de seu método não ter erradicado o analfabetismo no Brasil.

“Em tese, o analfabetismo poderia ter sido erradicado com ou sem Paulo Freire. O que faltou foi decisão política. A sociedade brasileira é profundamente autoritária e elitista. Nos anos 60 fui considerado um inimigo de Deus e da pátria, um bandido terrível. Pois bem, hoje eu já não seria mais considerado inimigo de Deus. Você veja o que é a história. Hoje diriam apenas que sou um saudosista das esquerdas. O discurso da classe dominante mudou, mas ela continua não concordando, de jeito nenhum, que as massas populares se tornem lúcidas”, afirmou na ocasião.

Passados 25 anos, Paulo Freire voltou a ser alvo de ataques nas redes sociais e nos discursos políticos, consequência da nova onda conservadora que assola o país.

Parece ser essa a sina do mais importante educador brasileiro (1921-1997). Cinco décadas atrás, Freire foi preso e exilado pelos militares após o golpe de 1964. Ele desenvolvia na época um programa nacional de alfabetização que seria implantado por João Goulart, inspirado em projeto que desenvolveu no Rio Grande do Norte com cerca de 400 jovens e adultos.

A experiência na cidade de Angicos ganhou notoriedade internacional por se propor a concluir em 40 horas o processo de alfabetização e a formar cidadãos mais conscientes de seus direitos e dispostos a defendê-los de maneira democrática.

O método partia de palavras selecionadas entre as questões existenciais dos alunos, fazendo com que se alfabetizassem dialogando acerca de suas condições de vida, trabalho, saúde, educação e lazer, por exemplo. Unia, portanto, educação com cultura, ao tomar as experiências dos alunos e seus conhecimentos como parte integrante do ato de educar.

Os golpistas de 64 intuíram que o programa, ganhando dimensão nacional, poderia desestabilizar poderes constituídos ao capacitar, no curto prazo, grande quantidade de pessoas para o voto, então vedado aos analfabetos, permitindo que setores populares influíssem de maneira mais consciente em seus destinos. Seria necessário, portanto, banir e deslegitimar o método e seu autor.

Em 18 de outubro de 1964, alguns dias depois de Paulo Freire ter partido para o exílio, o tenente-coronel Hélio Ibiapina Lima —um dos 377 agentes do Estado apontados pelo relatório da Comissão Nacional da Verdade por violar direitos humanos e cometer crimes durante o regime militar— divulgou o texto final do inquérito que comandou, acusando Paulo Freire de ser “um dos maiores responsáveis pela subversão imediata dos menos favorecidos”.

“Sua atuação no campo da alfabetização de adultos nada mais é que uma extraordinária tarefa marxista de politização das mesmas”, escreveu. Para Ibiapina Lima, Freire não teria criado método algum e sua fama viria da propaganda feita pelos agentes do Partido Comunista da União Soviética. “É um cripto-comunista encapuçado sob a forma de alfabetizador”, informava o relatório.

Na apresentação ao livro de Freire “Educação como Prática da Liberdade”, Francisco Weffort, ministro da Cultura no governo FHC, assim analisou os fatos ocorridos no Brasil: “Nestes últimos anos, o fantasma do comunismo, que as classes dominantes agitam contra qualquer governo democrático da América Latina, teria alcançado feições reais aos olhos dos reacionários na presença política das classes populares… Todos sabiam da formação católica do seu inspirador e do seu objetivo básico: efetivar uma aspiração nacional apregoada, desde 1920, por todos os grupos políticos, a alfabetização do povo brasileiro e a ampliação democrática da participação popular… Preferiram acusar Paulo Freire por ideias que não professa a atacar esse movimento de democratização cultural, pois percebiam nele o gérmen da derrota”.

E acrescentaria: “Se a tomada de consciência abre caminho à expressão das insatisfações sociais, é porque estas são componentes reais de uma situação de opressão”.

Exilado por 15 anos —tendo passado por Bolívia, Chile, EUA e Suíça—, Freire regressaria ao Brasil em 1980, reconhecido internacionalmente como um dos mais importantes educadores do mundo. Havia percorrido diversos países a convite de universidades, igrejas, grupos de base, movimentos sociais e governos. Nos últimos dez anos de seu exílio, trabalhando no Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra, totalizaria cerca de 150 viagens a mais de 30 países.

No seu retorno, começaria a dar aulas na PUC de São Paulo e na Unicamp. Em fins de 1988 seria convidado pela prefeita eleita de São Paulo Luiza Erundina para ser secretário municipal da Educação. As eleições daquele ano marcariam o início da ascensão dos governos de oposição aos grupos que se mantinham no poder desde o golpe militar, com o PT governando vários municípios, posteriormente estados, e, finalmente, assumindo a Presidência da República, nas eleições de Lula e Dilma.

Frente às inúmeras pressões das quais era alvo, Paulo Freire não completou sua gestão como secretário, passando o cargo ao professor Mário Sérgio Cortella, chefe de gabinete, em 1991. Suas orientações, no entanto, foram mantidas até o final da gestão, e acabariam por influenciar outros municípios e governos estaduais no campo da democratização da gestão e das inovações pedagógicas.

Em 1º de maio de 1997, com a saúde fragilizada, Paulo Freire daria entrada no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, para uma angioplastia, mas complicações na reabilitação o levariam à morte no dia seguinte.
Paulo Freire seria agraciado em vida e in memoriam com 48 títulos de doutor honoris causa por diversas universidades no Brasil e no exterior. Instituições de ensino de várias partes do mundo o convidaram para tê-lo no corpo docente. Foi presidente honorário de pelo menos 13 organizações internacionais.

Diversos outros títulos, homenagens e prêmios lhe seriam concedidos ao longo da vida e depois da morte: mais de 350 escolas no Brasil e no exterior receberiam seu nome, assim como diretórios e centros acadêmicos, grêmios estudantis, teatros, bibliotecas, centros de pesquisa, cátedras, ruas, avenidas, praças, monumentos e espaços de movimentos sociais e sindicais.

Em 1995, seria indicado ao Prêmio Nobel da Paz. Em 13 de abril de 2012, foi declarado patrono da educação brasileira por iniciativa da agora deputada federal Luiza Erundina (então no PSB, hoje no Psol).

Seus livros se espalharam pelo mundo. “Pedagogia do Oprimido” ganhou tradução em mais de 20 idiomas. Estudo de junho de 2016 do professor Elliott Green, da London School of Economics, afirma que essa era a terceira obra mais citada em trabalhos da área de humanas em todo o mundo, à frente de trabalhos de pensadores como Michel Foucault e Karl Marx. É também o único título brasileiro a aparecer na lista dos cem livros mais requisitados por universidades de língua inglesa. Em dezembro de 2018, a Revue Internationale d’Éducation de Sèvres, publicação francesa de prestígio, apontou Freire como um dos principais educadores da humanidade.

A despeito de tão vasto reconhecimento, Freire vem sendo reiteradamente desqualificado no debate público brasileiro desde a recente ascensão de setores conservadores.

Na onda intolerante que se formou no país após 2015, a partir da crise do governo Dilma Rousseff (PT), grupos foram às ruas com propostas antidemocráticas, homofóbicas, racistas e machistas. Era comum encontrar nas manifestações frases do tipo “Chega de doutrinação marxista, basta de Paulo Freire!”.

Com a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições do ano passado, as críticas ao educador e ao seu pensamento ganharam reforço contundente, estimuladas pelo escritor Olavo de Carvalho, de quem o presidente é seguidor. Durante a campanha eleitoral, em palestra para empresários no Espírito Santo, o então candidato Bolsonaro afirmou: “A educação brasileira está afundando. Temos que debater a ideologia de gênero e a escola sem partido. Entrar com um lança-chamas no MEC para tirar o Paulo Freire de lá”. E complementou: “Eles defendem que tem que ter senso crítico. Vai lá no Japão, vai ver se eles estão preocupados com o pensamento crítico”.

Em seu discurso de posse, o novo ministro da Educação, Abraham Weintraub, insistiu: “Se o Brasil tem uma filosofia de educação tão boa, Paulo Freire é uma unanimidade, por que a gente tem resultados tão ruins comparativamente a outros países? A gente gasta em patamares do PIB igual aos países ricos”.

A tentativa de banir Freire das escolas angariou forte apoio nas redes sociais desde a campanha. Grupos atacam a qualidade literária dos textos e da pedagogia de Freire, acusando-a de proselitismo político em favor do comunismo; responsabilizam o educador pela piora na qualidade do ensino, argumentando que, quanto mais é estudado e lido nas universidades, mais a educação anda para trás; afirmam que seus escritos estão ultrapassados, que o lugar de fazer política é nos partidos, não nas escolas.

Não há base empírica que comprove essas afirmações. Freire nunca foi comunista, ainda é mais lido nas universidades do exterior do que nas brasileiras, nunca pregou uma educação partidária nas escolas. Do mesmo modo, a crítica à qualidade literária de seus livros não se sustenta. Tais opiniões são proferidas por setores atrasados, que desrespeitam a pluralidade de ideias, sem compromisso com os ideais democráticos de liberdade de opinião. Não reconhecem no educador, tendo lido ou não as suas obras, concordando ou não com o seu pensamento, um interlocutor consagrado e respeitado.

Um dos principais adversários das ideias de Paulo Freire, o movimento Escola Sem Partido se propõe a coibir a doutrinação ideológica nas escolas. Estabeleceu como estratégia política aprovar leis para vigiar as ações de professores nas escolas, produzindo um clima de perseguição política e denuncismo. Em nome de uma inexistente neutralidade, omissos em relação aos verdadeiros dilemas da educação brasileira, tentam desqualificar Freire.

Uma proposta legislativa patrocinada pelo movimento obteve as assinaturas necessárias para que o Senado discutisse retirar o título de patrono da educação brasileira de Freire. Depois de uma intensa batalha, a demanda não foi aprovada.

Freire acreditava no diálogo como método de apreensão do conhecimento e aumento da consciência cidadã. Defendia que os educandos fossem ouvidos, que exprimissem as suas ideias como exercício democrático e de construção de autonomia, de preparação para a vida. Propunha o diálogo efetivo, crítico, respeitoso, sem que o professor abrisse mão de sua responsabilidade como educador no preparo das aulas e no domínio dos conteúdos.

Era contra a educação de uma via só, em que o professor dita aulas e o aluno escuta; em que o primeiro sabe e o segundo, não; em que um é sujeito e o outro, objeto. Para ele, todos tinham o que aportar neste processo de diálogo, assim como todos aprendiam em qualquer processo educativo: “Não há docência sem discência”, afirmaria.

Freire foi criticado também em setores progressistas por ser idealista, por sua linguagem com ênfase no masculino nos primeiros trabalhos, por ser contra o aborto, por desconsiderar os conteúdos nos processos educativos, pela insuficiência do seu método. Nunca foi unanimidade nos corredores das universidades, e nem esperava por isso.

Coerente com o que escrevia e pensava, procurou tratar seus interlocutores e críticos, fossem eles de qualquer espectro, com igual respeito. Aprendia com os diálogos, os debates e as polêmicas nos quais se envolvia, refazendo muitas das suas posições. Olhava a educação como um produto da sociedade, reflexo de projetos políticos em disputa, naturais em qualquer sociedade democrática que aposta no debate de ideias para constituição do seu futuro.

Não acreditava em uma educação neutra, verdade reconhecida há anos pela sociologia da educação, mais uma vez constatada na gestão do ex-ministro da Educação de Bolsonaro Ricardo Vélez Rodríguez. Indicado por Olavo de Carvalho, tentou impor comportamentos e valores para toda a rede de ensino, com propostas de obrigar os alunos a cantarem o hino nacional, controlar as provas do Enem, alterar os livros didáticos para negar que tenha havido golpe militar em 1964, numa clara tentativa de reescrever a história aos moldes do seu grupo político.

Demitido antes de completar cem dias no cargo, Velez apresentava claro apetite para a guerra cultural, mas se mostrava totalmente inoperante para os problemas reais da sua pasta.

O novo ministro, Weintraub, economista com mestrado em administração, atuou por mais de 20 anos no mercado financeiro. A exemplo de Vélez, nunca exerceu cargo de gestor público em educação. É também um seguidor de Olavo de Carvalho e, aparentemente, não deixará de lado o discurso de combate ideológico. Weintraub é mais um que enxerga comunistas em todas as partes, dominando as universidades, os meios de comunicação e, inclusive, setores do mercado.

Em sentido oposto, Paulo Freire, como cristão comprometido com os mais pobres e discriminados, bebeu de diversas teorias para realizar pedagogicamente valores que tinham como fundamento uma profunda crença na capacidade de o ser humano se educar para ser partícipe na construção de um mundo melhor, de acordo com os seus interesses.

Em seu percurso intelectual, não se ateve a uma corrente de pensamento, tendo sido muitas vezes criticado por isso. Escolhia, dentre as diversas teorias, aquelas que melhor ajudassem a realizar o seu compromisso ético de cristão ao lado dos oprimidos, inclusive o marxismo. Em diálogo com Myles Horton, educador norte-americano, no livro “O Caminho se Faz Caminhando”, reafirmaria sua postura: “Minhas reuniões com Marx nunca me sugeriram que parasse de ter reuniões com Cristo”.

Quando perguntado, Freire não se recusava comentar de forma crítica os abusos do regime comunista. Na mesma entrevista citada no início deste artigo, afirmou que o fim do comunismo no Leste Europeu havia representado uma queda necessária não do socialismo, mas de sua “moldura autoritária, reacionária, discricionária, stalinista”.

Freire deixou um texto inacabado, interrompido pela sua morte, posteriormente publicado por Nita, sua segunda esposa, em “Pedagogia da Indignação”. Nele, comentava o assassinato do índio pataxó Galdino Jesus dos Santos, queimado vivo por cinco jovens em Brasília. “Tocaram fogo no corpo do índio como quem queima uma nulidade. Um trapo imprestável”, escreveu. Refletindo sobre quem seriam os jovens, indagou que exemplos, testemunhos e ética os levariam a essa “estranha brincadeira” de matar gente. “Qual a posição do pobre, do mendigo, do negro, da mulher, do camponês, do operário, do índio neste pensar?”

Diante do ocorrido, proclamaria o dever de qualquer pessoa que educa de lutar pelos princípios éticos mais fundamentais. Concluiria afirmando que, “se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”.

Em “Política e Educação Popular”, um dos mais importantes trabalhos sobre Freire, o professor Celso Beisiegel afirma que o seu compromisso do educador com os oprimidos estaria levando a um estreitamento das possibilidades de utilização das suas práticas pedagógicas —referia-se ao tempo dos governos autoritários instalados na América Latina nos anos 1960 e 1970. Beisiegel questionava se o educador não estaria se aproximando da realização daquela imagem do “ser proibido de ser”, concluindo: “Não seria inaceitável dizer que Paulo Freire veio se aproximando da realização da figura do educador proibido de educar”.

Não é muito distante do que está ocorrendo hoje no Brasil.

Sérgio Haddad é doutor em educação pela USP, pesquisador da Ação Educativa e professor da Universidade de Caxias do Sul. Prepara biografia de Paulo Freire a ser lançada pela Editora Todavia.