Escolhas políticas

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A integração econômica e a interdependência entre as nações vêm crescendo de forma acelerada desde a Revolução Industrial, aumentando a produtividade das economias, aumentando a competição e a concorrência entre os Estados Nacionais, empresas e indivíduos, transformando trabalhadores servis em assalariados e contribuíram ativamente para impulsionar a urbanização e trazendo novos desafios, oportunidades e a necessidade de escolhas cotidianas, gerando conflitos, preocupações e desesperanças.

As escolhas políticas são fundamentais para construirmos novos instrumentos de acumulação, criando modelos econômicos e produtivos, angariando novos espaços de empregabilidades e criando as bases para o desenvolvimento econômico das nações, reduzindo as desigualdades e construindo novos estilos de vida e novas formas de consumo, alterando as estruturas familiares, os hábitos e a convivência nas comunidades.

O conceito de desenvolvimento ganha relevância na sociedade da época e os intelectuais ganham espaços para estimular debates e reflexões para a construção de novos formatos de desenvolvimento econômico e a melhora do bem-estar social da sociedade, abrindo espaço para o desenvolvimento da ciência e para a construção do conhecimento que, na contemporaneidade, ganha relevância e centralidade para a melhora social e econômica.

Nesta trajetória, percebemos a importância e a urgência das decisões políticas, a construção de lideranças conscientes e capacitadas, tanto política como tecnicamente, para vislumbrar novos horizontes para suas nações, buscando a construção de um modelo econômico que inclua todos os grupos sociais, reduzindo as desigualdades, estimulando os investimentos produtivos e a geração de emprego, impulsionando suas economias para melhorarmos as estruturas produtivas.

Os investimentos produtivos prescindem de estabilidade, previsibilidade e racionalidade, conceitos econômicos fundamentais para criar as bases para que os setores produtivos incorram em riscos em seus investimentos, estimulando o espírito animal, como destacou o economista britânico John Maynard Keynes ao descrever as emoções que influenciam o comportamento humano e podem ser medidos em termos de confiança do consumidor.

Ao analisar a economia brasileira nas últimas décadas, destacamos o baixo crescimento do produto interno bruto (PIB), vislumbramos dificuldades para a construção de novos espaços de crescimento econômico, neste cenário percebemos a ausência de estabilidade, de previsibilidade e de racionalidade na gestão econômica e a construção de instabilidades políticas, levando os recursos monetários e financeiros para investimentos improdutivos, que acabam reduzindo a capacidade produtiva, gerando empregos de baixa qualificação, gerando e estimulando uma redução da renda da população, diminuindo o mercado interno, postergando a recuperação consistente da economia e, contribuindo, para o aumento da desigualdade que assola a sociedade brasileira à décadas.

Vivemos numa sociedade internacional marcada por grandes incertezas e volatilidades, depois de uma pandemia que vitimou mais de 15 milhões de cidadãos na comunidade global, percebemos uma guerra que pode gerar mais transtornos humanitários, além de destruição da infraestrutura das nações, problemas de desabastecimento de produtos alimentares, energéticos e combustíveis, que eleva os preços e, neste ambiente, os fantasmas da inflação se espalham para todas as regiões da comunidade internacional.

Muitos analistas acreditam que temos problemas econômicos que degradam o ambiente dos negócios e postergam a recuperação da economia e o funcionamento salutar das estruturas econômicas e produtivas. Embora acreditemos que tenhamos problemas econômicos na sociedade brasileira contemporânea, as maiores dificuldades são políticas, com escolhas equivocadas e imediatistas, discussões ultrapassadas, ausência de projeto nacional, discursos fora da realidade, políticas sociais degradadas, gestão patrimonialista e instituições inoperantes, posturas populistas e sem visão de futuro. Neste ambiente, como reativar a economia, alavancar os investimentos produtivos e a geração de empregos se percebemos, cotidianamente, que vivemos numa verdadeira bagunça institucional?

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 27/07/2022.

É a favor do mérito, mas vive da herança, por Michael França.

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Não é fácil separar o que é fruto do esforço individual daquilo que foi trabalho de terceiros

Michael França, Ciclista, doutor em teoria econômica pela Universidade de São Paulo; foi pesquisador visitante na Universidade Columbia e é pesquisador do Insper.

Folha de São Paulo, 26/07/2022

A construção de um país mais justo e próspero passa pelo processo de diminuir o peso da origem familiar nos resultados alcançados pelos cidadãos e, ao mesmo tempo, empoderá-los para que maior proporção de suas conquistas seja de acordo com suas escolhas e esforços.

Esse não parece ser o caminho buscado pela sociedade brasileira ou, pelo menos, por parte de sua elite. A profunda desigualdade verificada no país confere a um conjunto de famílias vantagens que deturpam a competitividade e limitam o progresso.

Vários daqueles que nascem em famílias ricas não precisam fazer muito esforço para apenas reproduzir a posição social alcançada por seus pais. Em determinados casos, mesmo os mais medíocres precisariam de muito empenho para conseguir piorar consideravelmente seus padrões de vida.

Entretanto, crescer em uma família rica e usufruir do que o dinheiro pode comprar está fora do controle das pessoas. Isso faz parte da loteria do nascimento. Apesar disso, cabe aos mais afortunados escolher o grau de solidariedade que terá com aqueles que, por ordem do destino, nasceram em condições desfavoráveis.

Ao contrário do que alguns acreditam, parte da elite está preocupada em ajudar a criar condições mais justas para os cidadãos brasileiros. Contudo, não raramente, a concordância com políticas que podem transformar positivamente a sociedade vai até o ponto em que não comece a mexer com seus privilégios.

A transmissão de recursos dos pais para os descendentes é um exemplo disso. O Brasil é um dos países do mundo com uma das menores taxações da herança. Enquanto aqui a alíquota média não chega a 4%, na França é de 60%, e, no Japão, 55%. Essa profunda diferença nas alíquotas representa uma pequena ilustração do sequestro do sistema político brasileiro pelos mais ricos que moldam a forma como tributamos com o objetivo de atender a seus próprios interesses.

Além disso, é curioso ver aqueles que fervorosamente advogam a favor do mérito e, ao mesmo tempo, defenderem o privilégio e nada meritocrático recebimento de heranças. É difícil encontrar o esforço individual aqui, visto que essa poderosa parte da acumulação de capital dos filhos da elite vem, em certa medida, dos esforços dos seus pais, que, em muitos casos, também herdaram uma quantidade considerável de patrimônio de outras gerações.

O simples acidente do nascimento não deveria dar às pessoas o direito de automaticamente obter riquezas as quais elas não se esforçaram para formar. Enquanto muitos ricos vivem de propriedades herdadas e nunca precisarão trabalhar para sobreviver, milhões de brasileiros passam fome.

Mesmo que um filho da elite se esforce e ultrapasse os limites atingidos por seus pais, em muitos casos parte de suas conquistas não deixa de ser reflexo de uma acumulação de capital de gerações anteriores que lhe permitiu a ampliação do seu conjunto de oportunidades e privilégios.

Não há culpa em nascer em uma família rica, assim como os mais pobres não deveriam ser profundamente punidos por terem nascido em ambientes desestruturados. Contudo, existem responsabilidades individuais e coletivas que poucos parecem compreender em nossa sociedade.

E, no final, não raramente, a preocupação social no Brasil costuma ficar apenas no campo do discurso. No fundo, de forma consciente ou não, há um grande dilema moral interno aos filhos da elite, visto que a inércia do atual estado das coisas reproduz condições que tendem a sistematicamente favorecê-los.

Visibilidade da luta de mulheres negras não diminui violência que as atinge, diz historiadora

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Para Ynaê Lopes dos Santos, situação é paradoxal e faltam políticas públicas voltadas a essa população

Priscila Camazano – Folha de São Paulo, 25/07/2022

“Existem avanços significativos na questão da visibilidade das particularidades que constituem a vida da mulher negra, mas isso não diminui a violência que atinge essas mulheres”, afirma Ynaê Lopes dos Santos, autora do livro “Racismo Brasileiro: Uma história da Formação do País”, recém-lançado pela editora Todavia.

Em referência a 25 de julho, quando se celebra o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra e o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, a Folha conversou com a historiadora sobre racismo e as situações que atravessam a existência das negras.

Para Santos, houve um avanço na luta dessas mulheres, sobretudo em relação ao reconhecimento de que as demandas do feminismo branco não abarcam as questões das negras –que são múltiplas. No entanto, é uma situação paradoxal, pois as negras continuam no pior lugar da estrutura social, em uma confluência de violências da sociedade patriarcal, racista e misógina.

“Acho que uma das principais [demandas atuais], e que eu considero fundamental, é justamente a ampliação de mulheres negras em espaços de poder”, afirma.

Não é à toa que a líder quilombola do século 18 Tereza de Benguela foi escolhida para ser celebrada em 25 de julho. “Essa liderança está muito vinculada com a necessidade de pensarmos nas mulheres negras nesse espaço de decisão”, diz Santos.

Segundo ela, ter uma negra em cargo de liderança na política abre a possibilidade de transformações efetivas, pois a experiência dessas mulheres pode ajudar na criação de políticas públicas.
“Na minha opinião, é isso que falta para o Brasil, esse tipo de transformação efetiva, mas eu não acho que isso aconteça [em breve].”

Na conversa com a Folha, a historiadora falou também sobre o papel da mulher negra ao longo da história de formação do país e sobre a normalidade com que as negras são postas como subalternas.

Houve avanço na luta das mulheres negras? Eu acho que existem avanços significativos, sim, sobretudo na questão da visibilidade das particularidades que constituem a vida da mulher negra, de uma forma geral. Acho que o principal avanço foi este: da compreensão de que esse lugar criado pelo feminismo branco não abarca as questões que atravessam as mulheres negras. Na verdade, não abarcam as questões que atravessam quaisquer mulheres não brancas.

E essa percepção acabou também ampliando a visibilidade das múltiplas lutas que as mulheres negras travam. Agora, essa visibilidade não diminui a violência que atinge essas mulheres, infelizmente.

Acho que é uma situação um pouco paradoxal. Temos um aumento da visibilidade, um aumento inclusive do pertencimento. Isso fica muito evidente no Brasil pelo aumento no número de mulheres se autodeclarando negras, além de toda uma transformação estética, que fez com que até a indústria cosmética tivesse que se render a isso.
Mas, ao mesmo tempo, a mulher negra continua no pior lugar da estrutura social, sofrendo o atravessamento de violências da sociedade patriarcal, racista e misógina.

Quais são as principais demandas atuais das mulheres negras? Tem múltiplas demandas. Uma das principais, e que eu considero fundamental, é justamente a ampliação de mulheres negras em espaços de poder, como no Congresso e chefiando empresas.

O racismo se constitui a partir de um jogo de poder, que é determinado a partir do que foi construído como raça. E as mulheres negras acabaram ficando no pior lugar, então colocá-las no lugar de decisão eu acho que é a principal pauta.

Não no lugar do homem branco —acho também que precisamos tomar cuidado para não querer transformar a vítima em algoz—, mas colocar a mulher negra no lugar de decisão justamente para que, desse lugar, ela possa pensar o mundo a partir da sua experiência e ajudar na transformação.

A data de 25 de julho celebra também Tereza de Benguela, líder quilombola. O que representa a escolha dessa liderança para este dia? Essa liderança está muito vinculada com o que eu acabei de dizer, com essa necessidade de pensarmos nas mulheres negras nesse espaço de decisão.

Tereza de Benguela foi a principal liderança de um quilombo no que era a capitania de Mato Grosso, recém anexada à colônia. Uma história que de certa forma está vinculada ao movimento das bandeiras e também à descoberta do ouro e ao incremento do tráfico transatlântico para o Brasil e, consequentemente, ao aumento de fugas de escravizados e a criação de quilombos.

Então, ter uma mulher negra à frente [em 25 de julho], ao que tudo indica africana, é muito simbólico, porque ela justamente reforça essa necessidade de pensar a mulher negra nesse lugar que é historicamente negado a ela.

Conseguimos imaginar algumas concessões que são dadas às mulheres negras, mas elas são muito limitadas, haja vista o que foi feito com Marielle Franco (1979-2018). Quando se tem uma mulher que efetivamente está disputando o poder, temos o Estado, a sociedade, que assassina essa mulher —e não é a primeira vez que isso acontece.

Qual o papel da mulher negra ao longo da história de formação do Brasil? Essa pergunta é profunda. A mulher negra historicamente foi colocada em um lugar de subalternidade, muito vinculada ao mundo doméstico. Era a mulher que servia e cuidava da casa, que alimentava e amamentava os filhos dos seus senhores —isso durante a vigência da escravidão.

Depois da abolição, não temos mais essa condição, mas temos a manutenção de uma série de práticas e, sem sombra de dúvida, quem mais sofre com essa continuidade são as mulheres negras.

Há também muitas vezes o lugar de afeto, mas é o lugar de uma exploração atroz, de um não reconhecimento do trabalho, haja vista toda a polêmica em torno da aprovação da PEC das domésticas. É uma categoria em que a sua imensa maioria é ocupada por mulheres negras.

De certa maneira elas são mantenedoras da sociedade brasileira, são realmente a base da sociedade, porque essas mulheres que são absolutamente exploradas também são o arrimo das suas próprias famílias.

Em uma passagem do livro “Racismo Brasileiro”, você afirma que o racismo no Brasil é grande parte daquilo que consideramos normal. Que situações “normais” são essas que atravessam as mulheres negras? A exploração das mulheres negras no universo doméstico, por exemplo. Não achamos estranho ver babás negras vestidas de branco. Achamos normal
que a imensa maioria das mulheres negras estejam servindo sempre, trabalhando nessa condição.

Achamos normal o distanciamento da ideia do feminino com a mulher negra. A ideia do feminino que foi construída, sobretudo na virada do século 19 para o século 20, não abarca as mulheres negra. As descrições que são feitas sobre o que é a mulher não têm nada a ver com a experiência de mulheres negras.

O lugar de subalternidade no qual as negras estão é a normalidade. É isso, estamos acostumados a ver mulher negra sofrer.

Eu penso muito no caso da Mirtes [Renata Souza], mãe do Miguel [menino de 5 anos que morreu, em 2020, ao cair de um prédio de luxo no Recife enquanto estava aos cuidados da patroa da mãe]. Aquilo dificilmente teria acontecido se ela fosse uma mulher branca, e o Miguel, uma criança branca. A violência experimentada pelas mulheres negras que veem seus filhos serem assassinados também é normal.

O podcast A Mulher da Casa Abandonada fala sobre uma empregada doméstica negra que viveu 20 anos em situação de trabalho análogo à escravidão na casa de uma família brasileira que se mudou para os EUA. O que aconteceu ao longo da história do Brasil que permitiu que até hoje negras passem por situações assim? Ausência de políticas públicas que permitam que as mulheres negras, mas não só, tenham condições mínimas de trabalho.

Temos a manutenção das mulheres negras nesse lugar de subserviência, no universo do trabalho doméstico, o que faz com que até hoje tenhamos alguns casos de mulheres negras que vivem em situações análogas à escravidão.

Não fazer política pública é fazer política pública —e é essa a forma como o racismo opera muito no Brasil, que é diferente do que acontece nos EUA. Lá as políticas são segregacionistas, as coisas estão muito bem ditas. No Brasil, isso não acontece.

Em outros países, mulheres negras têm conquistado lugares de liderança na política, como, na Colômbia, com a vice-presidente Francia Márquez, e, nos EUA, com a vice-presidente Kamala Harris. No Brasil há chance de termos em breve uma liderança nesse sentido? Em breve é quanto tempo? Eu acho que em uma década, final de uma década talvez. Acho que antes disso, não.

Qual a importância de ter uma liderança negra? Desse tamanho, ocupando uma presidência ou vice-presidência?
Sim. Sendo uma pessoa progressista, porque pode acontecer de não, mas acho difícil, é a possibilidade de transformações efetivas.

Além da perspectiva da representatividade, que é muito importante, ela por si só não é suficiente para mudar a estrutura: tem que ser uma representatividade que tenha acesso à formação das políticas públicas.

Mulheres negras têm uma outra experiência, seriam outras trajetórias de vida pensando o país. É isso que falta para o Brasil, esse tipo de transformação efetiva.

O que as mulheres negras latinas-americanas e caribenhas têm em comum? Nossa ancestralidade africana, em primeiro lugar. Elas veem desse lugar que tem um quê de mito, mas tem uma estrutura tradicional cultural muito forte que é essa grande África.

E também uma condição que é, sem dúvida, atravessada pelo processo de escravização e violência sexual do período colonial.

Temos também essa ideia da mulher negra como a batalhadora, a que não sofre, a que aguenta o tranco. Também é fundamental começarmos a desconstruir isso. É fundamental recuperarmos a história de resistência e luta das mulheres negras, mas é preciso querer mais.

Ynaê Lopes dos Santos, 40
Doutora em história social pela USP (Universidade de São Paulo), é professora no Instituto de História da UFF (Universidade Federal Fluminense) e autora do livro “Racismo Brasileiro: Uma História da Formação do País” (Todavia)

Sem ciência não há futuro, por Márcia Castro

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O atual corte de verbas em pesquisa e em educação progressivamente afundará o Brasil na ignorância

Márcia Castro, Professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard

Folha de São Paulo, 25/07/2022

Imagine, por um minuto, sua vida sem os benefícios das descobertas científicas dos últimos dois séculos…

A importância da ciência passa despercebida. Mas não deveria.

A ciência é fundamental para a construção e manutenção de uma sociedade saudável e para o desenvolvimento de uma nação. Hoje desfrutamos de vidas mais longas e melhores do que nossos antepassados. No Brasil, a esperança de vida ao nascer era cerca de 30 anos em 1900 e a cada mil nascidos vivos em 1940, cerca de 200 morriam antes de completar um ano de idade. Avanços na medicina, saúde pública, comunicação, transporte e energia, dentre outros, mudaram esse cenário.

Historicamente, alguns casos ressaltam a importância da ciência na saúde pública.

Primeiro, o desafio da ausência da ciência, exemplificado pela mais letal pandemia da história, a peste bubônica, que se estendeu de 1347 a 1351. Àquela época, não se conhecia a forma de transmissão da doença. A ausência do conhecimento científico deu espaço para crenças de que a doença tinha origens sobrenaturais, que era uma punição divina, uma retribuição por pecados contra Deus, como ganância, blasfêmia, heresia e mundanismo. Cerca de um terço da população da Europa morreu nessa pandemia.

Em contraste, o suporte político e o investimento em pesquisa no Brasil no início do século 20 exemplificam a importância da ciência para o desenvolvimento e para uma sociedade mais justa. Carlos Chagas, por exemplo, foi pioneiro ao propor que a transmissão da malária era domiciliar e o primeiro a usar borrifação intradomiciliar como estratégia de controle vetorial. Hoje, as principais medidas de controle da malária no mundo são fruto dessa descoberta.

O mesmo Carlos Chagas descobriu a doença que carrega seu nome e, até hoje, é o único cientista no mundo que descreveu por completo o ciclo de uma doença infecciosa: o agente causador, o vetor de transmissão, os hospedeiros, as manifestações clínicas e a epidemiologia.

Expedições lideradas por Oswaldo Cruz, Carlos Chagas, Artur Neiva e Belisário Pena mudaram o curso da saúde pública ao expor o abandono do Brasil rural, com péssimas condições sanitárias e carência de assistência governamental.

O contexto rural foi considerado um problema econômico e social, cuja mitigação impulsionou o movimento sanitário e a criação de centros de profilaxia rural e do Departamento Nacional de Saúde Pública. Sem apoio político e investimento em ciência, nada disso teria sido possível.

A pandemia de Covid-19 é um exemplo do custo social de se ignorar a ciência. Ao contrário da pandemia de peste bubônica, o conhecimento foi gerado de forma rápida, mas foi ignorado por muitos governantes. Prevaleceram opiniões, e não a ciência. A pandemia de Covid-19 ocorreu em um cenário político que exemplifica como o desgoverno aniquila o conhecimento e a descoberta científica.

Como disse Hipócrates, considerado o pai da medicina, “Há, de fato, duas coisas: ciência e opinião; a primeira gera conhecimento; a última, ignorância”.

Sem ciência não há futuro. O atual corte de verbas em pesquisa e em educação progressivamente afundará o Brasil na ignorância com um custo social inadmissível. Que em outubro a ciência vença a opinião, e o Brasil escolha o caminho do conhecimento e não da ignorância.

Esta coluna foi escrita para a campanha #ciêncianaseleições, que celebra o Mês da Ciência. Em julho, colunistas refletem sobre o papel da ciência na reconstrução do Brasil.

Gastança como bandeira eleitoral, por Rolf Kuntz.

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Candidatos prometem eliminar ou reformar o teto de gastos, sem discutir questões fiscais mais importantes e sem cuidar da credibilidade.

Rolf Kuntz, O Estado de São Paulo – 24/07/2022

Pior que a saúva, a taxa de juros e o verbo no subjuntivo, o maior inimigo do povo brasileiro é o teto de gastos, a julgar pelas promessas dos mais vistosos candidatos à Presidência da República. Liberdade para gastar é uma grande bandeira comum. Não se discutem, no entanto, velhos e bem conhecidos problemas, como o engessamento das finanças federais. Mais de 90% das verbas orçamentárias são comprometidas com despesas obrigatórias. Mas ninguém fala em eliminar as vinculações, tornar o Orçamento mais flexível e usar o dinheiro público de modo mais eficiente.

Vinculação torna o dispêndio inevitável, mesmo sem planejamento, e escancara porteiras para corrupção e para malandragens. Se a Constituição manda gastar xis por cento em saúde, vamos cumprir a obrigação e comprar ambulâncias superfaturadas. Se é preciso destinar recursos à educação, que tal comprar um monte de computadores para uma escola onde faltam até banheiros? Nenhum dos dois exemplos é imaginário.

Criado em 2016, depois de uma enorme lambança fiscal e de uma dura recessão, o teto de gastos foi concebido para durar 20 anos, com uma reforma possível no meio do caminho. Sua principal função seria restabelecer, na rotina do poder público, o respeito à disciplina financeira. Limitar a variação do dispêndio à inflação do ano anterior seria parte do esforço de reconstrução. Seria uma forma de carimbar, na administração brasileira, a marca da seriedade na gestão de suas contas. Seriedade é diferente, nesse caso, de mero conservadorismo. Denota, além de outros predicados, credibilidade.

Credibilidade é fundamental para quem deve cuidar do Tesouro e, portanto, dos custos de seu financiamento. Comparem-se as condições do poder público brasileiro e as de governos da Zona do Euro, onde os Tesouros se financiam, facilmente, a taxas muito moderadas e até inferiores à inflação.

Na quinta-feira o Banco Central Europeu (BCE) anunciou um aumento dos juros básicos. A elevação – de 0,5 ponto porcentual – afetou imediatamente a remuneração dos títulos públicos. Papéis alemães de dez anos passaram a render 1,352% ao ano. Títulos franceses com igual vencimento passaram a pagar 1,928%. No caso dos italianos, a alta foi para 3,614%.

No Brasil, a taxa básica de juros, a Selic, está em 13,25%. No fim do ano deverá estar em 13,75%, talvez 14%, segundo projeções de economistas do setor financeiro. A mediana das estimativas para 2023 apontou 10,75%, segundo levantamento do Banco Central divulgado na segunda-feira passada. Em abril, 63,6% da dívida líquida do governo federal eram vinculados à Selic.

Os Tesouros europeus pagam a seus financiadores, normalmente, juros inferiores às taxas de inflação, mas oferecem segurança. Assemelham-se, nesse ponto, ao Tesouro dos Estados Unidos. Títulos públicos americanos atraem capitais de muitos outros mercados, incluído o Brasil. Confiabilidade é um valor muito importante, com potencial para atrair grandes volumes de recursos, mesmo quando os juros são baixos e até negativos em termos reais. A atração tende a aumentar quando a incerteza cresce em outros países.

Incerteza tem sido, no Brasil, um poderoso espantalho de capitais. O dólar supervalorizado reflete, com frequência, os sustos impostos ao mercado pelo presidente Jair Bolsonaro. Não há escassez de reservas cambiais nem desajuste importante nas contas externas, mas as cotações são instáveis.

A balança comercial continua superavitária, como há muitos anos, graças ao agronegócio e à mineração. Há um volume razoável de reservas e as transações correntes, mesmo deficitárias, permanecem seguras e administráveis. Surtos de insegurança, no entanto, são rotineiros, provocando saídas de capitais e fortes oscilações do câmbio. Ao mesmo tempo, o mercado impõe ao Tesouro custos mais altos, encarecendo a rolagem dos títulos públicos e amarrando parcelas maiores do Orçamento a despesas financeiras.

O pacote eleitoreiro recém-aprovado é mais um importante fator de insegurança, por seus efeitos imediatos e, principalmente, por seus desdobramentos no próximo ano. O presidente Bolsonaro e aliados do Centrão preparam um perigoso legado para quem ocupar o Palácio do Planalto em 2023.

A isso é preciso somar o risco político. O presidente atacou o sistema eleitoral e o Judiciário perante embaixadores estrangeiros. Ficou claro o perigo de repetição, no Brasil, da convulsão provocada por Donald Trump, quando tentou impedir a confirmação, pelo Congresso, da eleição de Joe Biden.

Não há como separar, na gestão de Bolsonaro, a incerteza fiscal, a irresponsabilidade econômica e a tensão política permanente. Um novo mandatário contribuirá, quase certamente, para algum apaziguamento e para a retomada de metas econômicas e sociais de médio e de longo prazos. Mas terá de enfrentar, de imediato, inflação e desarranjos fiscais legados pela atual administração. Credibilidade será essencial. Mas terá credibilidade suficiente quem chegar defendendo, como alguns candidatos, livre gastança, controle de juros e intromissão nos preços da Petrobras?

JORNALISTA

Bolsonaro é reação de elite que não precisou da lei para ser racista, diz historiadora.

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Em livro, Ynaê Lopes dos Santos explora a teia de relações entre a formação do Estado brasileiro e a opressão racial

Yasmin Santos – Folha de São Paulo, 23/07/2022

RIO DE JANEIRO

Vinte cinco de maio de 2020. George Floyd, um homem negro, é morto por um policial branco nos Estados Unidos. A imprensa brasileira recebe a notícia e repercute o crime como se a barbárie em Minneapolis fosse alheia a nós.

“Essa estranheza por boa parte da mídia me motivou a escrever”, diz Ynaê Lopes dos Santos, autora de “Racismo Brasileiro: Uma História da Formação do País”, publicado pela editora Todavia.

Segundo a professora do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense, mal parecia que uma semana antes João Hélio, de 14 anos, havia morrido numa ação da Polícia Militar em São Gonçalo, na Baixada Fluminense.

É bem verdade que a segregação racial jurídica americana contrasta com o histórico brasileiro, que nunca adotou leis abertamente segregacionistas. No entanto, o Brasil nunca o fez porque nunca foi necessário. É sob essa perspectiva que a historiadora constrói seu texto.

“O Estado criou uma sistematização de exclusões sem as precisar racializar, embora a racialização estivesse na base dessa estrutura”, afirma. “No mito de origem da história brasileira, é reconhecida a existência de três raças, mas também é determinado o lugar de cada uma delas.”

A professora faz referência à tese vencedora do concurso promovido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1844. Von Martins explicou a formação do país a partir de três rios, que representariam as três raças, o grande rio branco e seus dois afluentes, o negro e o indígena.

Bebendo dessa fonte, a pretensa harmonia entre a casa-grande e a senzala foi aprimorada por Gilberto Freyre na década de 1930 e esteve nas bases da política durante a ditadura do Estado Novo, entre 1937 e 1945.

O livro mostra que a história do racismo brasileiro é a própria história do Brasil —desde a colônia à República. “Somos uma sociedade que escolheu o racismo em todos os momentos agudos de nossa história política”, diz.

“Por mais que a escravidão tenha durado quase 400 anos, o racismo atual não é fruto só dela. Tivemos mais de 130 anos de uma experiência republicana abertamente racista”, argumenta. “Enquanto não tivermos um enfrentamento efetivo do racismo a nossa democracia vai estar sempre em perigo. A titubeação democrática é consequência do racismo que nos estrutura”.

A professora entende a guinada à extrema direita no Brasil como um regresso conservador, em resposta aos avanços conquistados pelas minorias desde a Constituição de 1988, como a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial e a adoção da Lei de Cotas. Santos, contudo, afirma que esse movimento não é único na história brasileira.
“No século 19, o regresso conservador reabriu o tráfico negreiro na ilegalidade [após a proibição de 1831]. Essa forma da elite brasileira de atuar, bem conservadora, está aí desde que o Brasil é Brasil”, afirma. “Agora, as coisas estão mais escrachadas e o que temos é isto, uma parte da elite que não quer mudanças.”

Um dos primeiros atos que um governo verdadeiramente democrático deveria fazer ao assumir o Palácio do Planalto no ano que vem seria, segundo a historiadora, restaurar a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, extinta em 2015 e incorporada ao Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. “A luta pela igualdade racial precisa estar no pilar de todos os ministérios”, afirma.

A professora celebra os dez anos da Lei de Cotas, mas diz que a política é insuficiente para combater o racismo. “É característico do Brasil ter, ao mesmo tempo, um número expressivo de jovens negros entrando na universidade e de jovens negros sendo mortos pela polícia”, diz.

Quando a mãe de um menino negro se preocupa se o filho está saindo de casa com um capuz —algo banal, mas que pode pôr o jovem sob suspeição da polícia—, significa que ela não é livre. Nem a mãe nem o filho são cidadãos plenos, diz a professora.

“Na sociedade em que vivemos hoje, neoliberal e individualista, não existe a possibilidade de pensar ações de transformação efetiva do ponto de vista racial”, afirma. “Propor uma mudança racial é propor uma mudança de sociedade.”

RACISMO BRASILEIRO: UMA HISTÓRIA DA FORMAÇÃO DO PAÍS

Ynaê Lopes dos Santos – Editora Todavia

Há risco real de autogolpe no Brasil, diz Levitsky.

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Marcela Villar e Hugo Barbosa, especiais para o Estadão

22 de julho de 2022

Steven Levitsky, autor do best-seller “Como as democracias morrem”. Foto: Jesika Theos/The New York Times
A menos de três meses das eleições e com a recente onda de ataques ao sistema eletrônico de votação, há no Brasil a possibilidade de acontecer um episódio semelhante à invasão ao Capitólio, em Washington, nos Estados Unidos, quando apoiadores do ex-presidente Donald Trump ocuparam o Congresso daquele país em janeiro de 2021, após o republicano não ser reeleito. O alerta é do cientista político americano Steven Levitsky, autor do best-seller ‘Como as democracias morrem’. “Bolsonaro parece ter se inspirado no 6 de janeiro”, avalia Levitsky ao Estadão.

De acordo com Levitsky, que também é professor de política em Harvard, construir uma grande coalizão, que envolva partidos de diferentes posicionamentos ideológicos, é fundamental para derrotar autoritários e evitar que a eleição brasileira seja subvertida. “A melhor maneira de fazer isso é por meio de uma ampla coalizão que inclua forças de esquerda, centro e direita”, analisa.

Confira a seguir a íntegra a entrevista concedida ao Estadão.

ESTADÃO: Como o senhor avalia o cenário atual do Brasil a poucos meses da eleição?
STEVEN LEVITSKY: É uma situação incerta, porque como a gente viu nos Estados Unidos, quando tem um presidente que não é comprometido com a democracia, há risco de crise. O presidente Bolsonaro pode se recusar a aceitar a derrota. Ele pode tentar subverter a eleição.

ESTADÃO: A democracia no Brasil está em risco? Existe a real chance de “autogolpe” ?
STEVEN LEVITSKY: Sim, claro. Sempre que você elege um presidente autoritário, a democracia está em risco. Vimos isso nos Estados Unidos, e o mesmo acontece no Brasil. Então, há uma chance real de um autogolpe. Não acho muito provável, e acho que se Bolsonaro tentasse provavelmente falharia (como Trump), mas o risco é real.

ESTADÃO: Na sua avaliação existe a possibilidade de acontecer um episódio semelhante à invasão do Capitólio no Brasil?
STEVEN LEVITSKY: Sim. Na verdade, Bolsonaro parece ter se inspirado em 6 de janeiro. Para ter sucesso onde Trump falhou, no entanto, ele precisaria de cooperação militar.

ESTADÃO: Assim como nos EUA, a integridade e segurança do sistema eleitoral brasileiro também estão sendo questionadas. Como as instituições podem proteger o sistema democrático contra esses ataques?
STEVEN LEVITSKY: O Brasil tem um sistema eleitoral muito bom, mais sofisticado e seguro que o dos Estados Unidos. Não há muito o que fazer quando alguém como Trump ou Bolsonaro tentam mentir descaradamente para enfraquecer a confiança no sistema. O mais importante é que os democratas no Brasil, de direita e de esquerda, defendam vigorosamente a democracia.

ESTADÃO: O quão importante é uma política de coalizão em casos em que a democracia está em risco? Por que acredita que a coalizão não funcionou aqui?
STEVEN LEVITSKY: A melhor maneira de derrotar uma figura ou partido autoritário é isolá-los, para derrotá-los politicamente, incluindo forças da esquerda, centro e direita. Não há garantia, mas há uma melhor chance de sucesso. Neste caso, o melhor caminho para assegurar que Bolsonaro não subverta a eleição ou acarrete uma crise como Trump fez é fazê-lo perder massivamente no primeiro turno. Isso pode acontecer se todas as forças políticas do Brasil se alinhassem contra ele. O motivo disso raramente acontecer, inclusive nos Estados Unidos, é que, infelizmente, a maioria dos políticos coloca seus interesses de curto prazo acima da defesa da democracia. Eles dizem que apoiam a democracia, mas não querem se sacrificar politicamente para defendê-la.

ESTADÃO: Na avaliação do senhor, as instituições no Brasil têm agido à altura com relação às ameaças à democracia?
STEVEN LEVITSKY: Eu diria que até agora as instituições do Brasil tiveram um desempenho muito bom. Não perfeito, é claro, mas até agora eles resistiram amplamente aos ataques de Bolsonaro. Uma instituição crítica, no entanto, continua sendo as forças armadas e o controle civil sobre ela. Isso enfraqueceu nos últimos anos, e a sobrevivência democrática do Brasil dependerá disso.

ESTADÃO: Como o senhor avalia o comportamento das Forças Armadas brasileiras neste ano eleitoral ?
STEVEN LEVITSKY: As forças armadas brasileiras entraram muito na política nos últimos anos – o julgamento de Lula foi um exemplo flagrante. E muitos oficiais estavam muito próximos do governo Bolsonaro. Mas até agora, o comando das Forças Armadas parece não cooperar com uma aventura autoritária liderada por Bolsonaro. Os generais mergulharam na política, o que é ruim, mas eles não parecem querer entrar de cabeça.

ESTADÃO: O senhor utiliza o termo ” jogo duro constitucional” para designar o uso das instituições como armas políticas contra oponentes. Para o senhor o Bolsonaro está utilizando as instituições dessa maneira ?
STEVEN LEVITSKY: Eu usaria o jogo duro constitucional para descrever alguns dos comportamentos da direita anti-PT antes de Bolsonaro chegar ao poder. Mais no caso da condenação de Lula. Toda a centro-direita no caso do impeachment de Dilma. Bolsonaro certamente empregou, ou tentou empregar, o jogo duro constitucional, mas na maioria das vezes ele não tem habilidade política ou alianças para realizá-lo com sucesso. Com Bolsonaro, me preocupo mais com o autoritarismo antiquado – coisas como golpes e violência. Não há nada de “constitucional” nisso.

ESTADÃO: Em “Como as democracias morrem” o senhor apresenta quatro indicadores para um comportamento autoritário. Em quais Bolsonaro se encaixa?
STEVEN LEVITSKY: Ele se encaixa em todos eles e tem se encaixado por vários anos. Ele tem abraçado abertamente um comportamento antidemocrático, tolerado violência e, cotidianamente, falhado em reconhecer a legitimidade de seus oponentes de esquerda. Assim como Trump, Bolsonaro é um fácil de reconhecer como autoritário. Ele não se esforça em esconder.

ESTADÃO: Qual a percepção da comunidade internacional em relação à instabilidade democrática e às eleições no Brasil?
STEVEN LEVITSKY: O Brasil é um grande país. Não sei se uma resposta internacional vai importar muito. Obviamente que é bom que Trump não esteja mais no poder nos Estados Unidos, então a administração de Biden iria se opor à aventura autoritária de Bolsonaro. Mas, a defesa da democracia brasileira está nas mãos dos brasileiros.

Precisamos de uma política de civilização, por Marco Aurélio Nogueira.

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Neste País carregado de possibilidades, estamos sem governo, há estímulos para a degeneração da convivência e se amontoam os problemas

Marco Aurélio Nogueira, O Estado de São Paulo – 23/07/2022

A nossa é uma época estranha. Todas as épocas talvez sejam assim: quem vive nelas sempre pode ter a sensação do inusitado, de algo que não se manifestou antes. Mas a nossa é paradoxal demais. Encanta e assusta. Confunde, perturba, excita. Parece vazia de esperança e otimismo, como se temêssemos o que nos aguarda à frente.

Há grandes margens de liberdade e autonomia. Podemos escolher como viver a vida. Mas não nos damos conta das orientações que, insidiosamente, valendo-se de algoritmos e estratégias mercadológicas, modulam e padronizam os comportamentos coletivos.

Misturam-se a isso a desinformação induzida e a atuação de líderes autoritários, que minam os valores democráticos e manipulam parcelas importantes da população. Há governantes que governam contra seu povo e outros que combatem o sistema eleitoral de seu próprio país, depois de terem dele se beneficiado.

Vivemos em redes. A cada dia, mais pessoas caem nelas. Redes são prisões ou estradas para a autonomia? Isolam-nos em bolhas e nos roubam do contato com o mundo exterior, alienando-nos? Ou são estratégias de sobrevivência, lugares de fuga de uma realidade sempre mais difícil de ser suportada e compreendida?

O que há de pernicioso e dispersivo nas redes pode ser contraposto ao que elas trazem de ativação de relacionamentos. Estar em redes é usufruir de contatos e oportunidades. É adquirir uma visibilidade que, bem dimensionada, nos retira da privacidade excessiva e da individualidade fechada. É poder trabalhar com maior agilidade e com menos deslocamentos. É poder interagir e dialogar.

O problema começa quando as redes trancam os indivíduos, os tornam dependentes delas, a ponto de romperem o contato com a realidade. Nesse ponto, as redes viram mecanismos de reforço da hiperpersonalização e do narcisismo. É ainda pior quando as redes se convertem em máquinas de compressão e modelagem de cabeças, o que ocorre quando “sistemas robóticos” são postos em ação para produzir fatos ou contaminar ambientes virtuais. A desinformação é veneno puro. Intoxica consciências e perturba a formação de decisões livres e críticas.

Hoje temos de responder a perguntas incômodas. Desejamos continuar a viver de modo tecnológico, digital, em redes?

Prosseguiremos aceitando o domínio do mercado? Continuaremos a assistir sem reação à destruição do planeta, ao aquecimento global, à crise climática? Como estamos assimilando as postulações identitárias e as lutas por reconhecimento? Temos à disposição um modelo alternativo de “boa vida” e “boa sociedade”? A democracia institucionalizada está nos ajudando? Estamos cooperando o suficiente?

As reflexões do pensador francês Edgar Morin nos ajudam a pensar. Morin acaba de completar 101 anos de idade. Uma bela idade para uma vida generosa e produtiva.

Em seu A via. Para o futuro da humanidade, de 2011, Morin reiterou a necessidade de pensarmos o mundo como “Unitas Multiplex”, unidade da multiplicidade e da diversidade humana. Seu universalismo concreto o levou a analisar a Terra-Pátria como uma “nave espacial” impulsionada por motores incontroláveis – a ciência, a técnica, a economia, o lucro –, que podem nos levar para futuros não desejáveis. Uma mudança de rota é nossa boia de salvação.

É onde estamos hoje: mudar ou sofrer, quem sabe perecer. Uma “política de civilização”, que também seja uma política de civilidade, é o caminho para resistirmos às catástrofes anunciadas, a corrosão da democracia, a violência, as epidemias virais, as guerras, a desigualdade, a fome, a emergência climática, o desemprego, as manifestações de ódio, as polarizações improdutivas. O descalabro é tão grande que parece faltar frestas por onde escapar.

Morin tem sido um crítico público da vida que se esparrama sem controle, um combatente contra a “crueldade do mundo”. Em 2020, apontou erros e acertos surgidos no modo como se enfrentou a pandemia. Agora, em 2022, repudiou a invasão russa da Ucrânia, propondo que se ponha em marcha uma “guerra contra a guerra”.

Sua hipótese é de que continuamos “à beira de um abismo, mergulhados na total incerteza do amanhã”. Enfrentamos problemas trágicos e perturbadores, com “múltiplas implicações entrelaçadas e outras tantas totalmente desconhecidas”. Mobilizar a indignação é preciso.

Morin nos ensina a “não ignorar as nossas ignorâncias” e a não perder a paixão pela diversidade e a esperança. Ele fala para os povos do mundo e, portanto, também fala conosco, brasileiros. Por aqui, neste país tão carregado de possibilidades, a crise é aguda. Somos afetados pelas “policrises” apontadas por Morin, mas temos a nossa versão particular delas, cujo agente principal é o próprio presidente da República. Estamos sem governo, há estímulos para a degeneração da convivência, problemas se amontoam sem solução.

Um bom momento para refletirmos sobre nossas opções, sobre decisões equivocadas, sobre arranjos políticos perversos. Um bom momento para dialogarmos com Edgar Morin.

PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UNESP

A Variante Bolsonaro, por Rodrigo Zeidan.

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Desastre do presidente vai muito além da inflação de milhões passando fome

Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Folha de São Paulo, 23/07/2022

Contrafactual. Essa é das palavras mais importantes em economia aplicada. A ideia é que os efeitos de políticas públicas são estimados pela diferença entre o que aconteceu e o que deveria ter acontecido, se não houvesse a intervenção a ser estudada.

No caso da pandemia no Brasil, os resultados são claros: o governo brasileiro foi um dos piores do mundo na luta contra a Covid. Dezenas de milhares de brasileiros morreram desnecessariamente. A lista de erros é quase infinita: gripezinhas, venda de curas milagrosas, “não vai ter segunda onda”, briga com governadores, defenestração de ministros, corrupção na compra de máscaras e respiradores, desincentivo a medidas de distanciamento social, reação ao auxílio emergencial, atraso na compra de vacinas, discursos negacionistas e muito mais.

E não faltam evidências científicas dos efeitos nefastos do governo. Ajzenman e coautores mostraram que a retórica anticientífica do presidente brasileiro enfraqueceu o distanciamento social no Brasil, algo ainda mais danoso quando a vacina estava para chegar. Esse resultado foi corroborado por Bursztyn e colegas, assim como Block Jr. e coautores.

O discurso do Ministério da Economia de que não iria ter segunda onda em novembro de 2020, quando as vacinas estavam para serem aprovadas, parece criminoso, assim como as 11 recusas do governo em fechar contratos de vacinas com os principais fabricantes mundiais. Quantas vidas teriam sido salvas pelos 70 milhões de doses da vacina da Pfizer que o governo deixou de comprar quando mais precisávamos?

A isso se soma o papel do populismo na disseminação do discurso anticientífico, como mostram Peci e outros. O resultado é inequívoco. Almeida e coautores estimam o efeito da retórica populista no comportamento dos brasileiros e encontram que, a cada ataque a medidas de distanciamento social, a taxa de transmissão do vírus aumentava. A cada avanço contra os governos estaduais, mais gente morria de Covid-19.

O Brasil não foi o único país do mundo a ter políticas de combate à pandemia recalcitrantes. Mas foi o único país a sofrer com a disseminação da variante Bolsonaro da Covid-19. Os autores mostram que a variante Bolsonaro dominou todas as outras durante 2021; parece que mais gente morreu por ela que pela delta e pela ômicron. Mais de 300 mil mortes poderiam ter sido evitadas por uma gestão feijão com arroz.

Bastaria um governo federal que coordenasse medidas de distanciamento social e vacinação em massa. Um governo minimamente competente, com preocupação com aumento nas taxas de transmissão, requerimento de máscaras, especialmente antes de as vacinas ficarem prontas, e comunicação efetiva não seria diferente do que teve a maioria dos outros países.

Entretanto, em cada estágio da pandemia, o governo brasileiro atuou contra a população. É esse o legado que deve estar na cabeça de cada brasileiro na eleição de outubro.

Não faltam estudos para corroborar o desastre do governo federal brasileiro na gestão da pandemia. O governo tenta comprar a eleição através de uma PEC Kamikaze, mas não podemos esquecer que o desastre do presidente vai muito além da inflação de dois dígitos e de milhões de brasileiros passando fome.

Realmente, o presidente não é coveiro. Se fosse, ia ter que trabalhar 24 horas por dia para enterrar os mortos pelas suas políticas incompetentes. E provavelmente só acabaria no século que vem.

Bill Gates traz boas ideias contra pandemias, mas confia demais no capitalismo

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No livro ‘Como Evitar a Próxima Pandemia’, bilionário diz que é preciso enfrentar desigualdade, mas não aborda suas causas

Thiago Bethônico – Folha de São Paulo, 23/07/2022

A pandemia de coronavírus ainda não acabou, mas, segundo Bill Gates, a humanidade tem condições de fazer dela a última da história. Para isso, é necessário investir pesado em detecção precoce, fortalecer os sistemas de saúde pelo mundo e gastar alguns bilhões de dólares numa espécie de “corpo de bombeiros”, que lidaria só com esse tema.
Os detalhes sobre esse plano estão em “Como Evitar a Próxima Pandemia”, livro mais recente do cofundador da
Microsoft, que chega ao Brasil pela Companhia das Letras.

Desta vez, Gates não se apresenta como um “ricaço cheio de opiniões”, como fez na introdução de “Como Evitar um Desastre Climático” —lançado há pouco mais de um ano. Até mesmo porque seu trabalho com pandemias é de longa data.
Desde quando se afastou da Microsoft, em 2008, o bilionário passou a atuar como filantropo na Fundação Bill e Melinda Gates. Um dos focos da organização é investir em soluções para a Aids, doença que já matou 36 milhões de pessoas pelo mundo.

Mas não é só isso. Em 2015, Gates apresentou um TED Talk dizendo que a humanidade não estava preparada para uma próxima pandemia. Menos de cinco anos depois, o novo coronavírus começou a se espalhar pelo mundo, causando mais de 6,3 milhões de mortes.

No livro, Gates diz que doenças infecciosas são uma espécie de obsessão para ele, a ponto de precisar se controlar para não falar sobre malária e vacinas durante eventos sociais.

Considerando o atual ponto de maturação tecnológica e a disponibilidade de recursos, ele defende que o mundo pode se livrar das pandemias para sempre —e o objetivo é aproveitar que a Covid-19 está fresca na memória das pessoas para botar o plano em ação.

“Surtos são inevitáveis, mas pandemias são opcionais.” A famosa frase do epidemiologista Larry Brilliant está no cerne do argumento de Gates. Segundo ele, as doenças vão continuar se disseminando entre os seres humanos, mas não precisam se tornar desastres.

Para que isso aconteça, governos, cientistas, empresas e indivíduos precisam construir um sistema que conterá surtos inevitáveis. A detecção precoce é o primeiro ponto.

O mundo precisa melhorar a vigilância de doenças, o que envolve investir em sistemas de saúde robustos —principalmente nos países menos desenvolvidos. Outras soluções envolvem encontrar novos tratamentos; desenvolver vacinas; e vencer a disparidade sanitária entre países ricos e pobres.

A lógica é que algumas respostas já estão à mão, mas empresas, governos e sociedade civil precisam ajudar a dispersá-las pelo planeta. Para as soluções que ainda precisam ser desenvolvidas, a questão é canalizar esforços e recursos, investindo, por exemplo, em pesquisas sobre sistemas de diagnóstico e tratamentos inovadores.

Contudo, no coração do plano de Gates está uma organização que funcionaria como um corpo de bombeiros das pandemias. A esse grupo ele deu o sugestivo nome de Germ (Mobilização e Resposta Epidemiológica Global, na sigla em inglês).

A função do Germ seria ficar atento a possíveis surtos, mas também ajudar na contenção, criar sistemas para compartilhar informações, padronizar as recomendações políticas e pressionar países para implantar as medidas necessárias.

O grupo trabalharia sob os auspícios da OMS (Organização Mundial da Saúde) e seria formado por cientistas, diplomatas, epidemiologistas, especialistas de dados e em modelagem computacional.

Nas estimativas de Gates, o Germ precisaria de 3.000 funcionários em tempo integral a um custo de US$ 1 bilhão por ano. A equipe também ficará responsável por outra etapa essencial: os treinamentos periódicos.

Para que o plano dê certo, Bill Gates deixa claro a importância de governos e pesquisadores nesse processo. Por diversas vezes, o bilionário reconhece que o setor privado é incapaz de resolver todos os problemas do mundo.

No entanto, ele não nega seu entusiasmo com o modelo. “Como fundador de uma bem-sucedida empresa de tecnologia, acredito muito no poder do setor privado para impulsionar a inovação”, escreve.

“Nem todas as pessoas gostam desse arranjo, mas o lucro costuma ser a força mais poderosa do mundo para criar produtos com rapidez”, acrescenta.

No livro, Gates usa a pandemia de coronavírus para apontar erros e sugerir soluções. A disparidade entre países pobres e ricos é um ponto central.

É de esperar que um bilionário que foi recompensado por um modelo econômico evite criticá-lo. Mas estranha que, ao abordar desigualdades expostas durante a pandemia, ele não dedique alguns parágrafos para explicar o que pode estar por trás desses problemas.

Vencer esse desafio, aliás, é condição para evitar futuras crises, ele diz. Contudo, pouco se fala sobre a raiz das discrepâncias.

O cofundador da Microsoft lembra, por exemplo, que a pandemia foi pior para negros, latinos e indígenas. Que países pobres receberam menos vacinas e remédios. Mas até onde a lógica de mercado e a “força poderosa do lucro” que ele tanto valoriza não contribuíram historicamente para que isso viesse a acontecer?

Como Gates não aborda as causas do problema que critica, fica a impressão de que o objetivo é correr eternamente atrás de um prejuízo. Segundo o livro, fundações e governos de países ricos têm que se comprometer com a destinação de recursos para os locais que mais precisam. Em nenhum momento, enfrentar a raiz da desigualdade entra no plano.

No fim das contas, mesmo reconhecendo que a iniciativa privada não resolve tudo, o bilionário confia em excesso na lógica capitalista e filantrópica. O livro não parece suspeitar que esse sistema —que fez Bill Gates e outros bilionários ficarem mais ricos durante a pandemia — também pode ajudar a manter as desigualdades que agravaram os resultados trágicos da Covid.

COMO EVITAR A PRÓXIMA PANDEMIA – Bill Gates – Companhia das Letras