Fala de Bolsonaro a embaixadores foi farsa que envergonha o Brasil em escala global, por Hussein Kalout.

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Encontro solapou o que restava de dignidade internacional ao país

Hussein Kalout, Cientista político, professor de relações internacionais e pesquisador na Universidade Harvard; ex-secretário especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2017-2018, governo Temer) e ex-colunista da Folha

Folha de São Paulo, 22/07/2022

Há quatro anos o Brasil vive uma era psicodélica nutrida por uma pseudorrevelação social, política e econômica, comandada por uma trupe de revolucionários de araque. Da tal “economia liberal” à “nova política”, passando pelo “combate à corrupção” ao “fim da mamata”, o governo do presidente Jair Bolsonaro conseguiu tornar a mentira, a destruição e o vexame, em escala global, suas indeléveis marcas.

Entorpecido de ódio e medo, o presidente, em ato sem precedente na história, juntou o corpo diplomático estrangeiro na última segunda (18), no Palácio da Alvorada, para simplesmente achacar a República, as instituições e a Constituição, na tentativa de explicar o inexplicável: denunciar como fraudulento o processo eleitoral que o elegeu.

Reduzido ao patamar de uma republiqueta, o Brasil viveu na cerimônia do Alvorada uma das piores farsas de sua política internacional. Ao invés de utilizar o encontro para explicar como pretende, caso seja reeleito, equacionar a crise econômica, combater a inflação, gerar emprego, eliminar a fome, Bolsonaro usou as instalações presidenciais para desossar a reputação global de seu combalido governo e, de quebra, o que resta de dignidade internacional ao Estado brasileiro.

Obcecado com suas infindáveis teorias conspiratórias, o presidente não fala de pobreza, desigualdade, proteção dos trabalhadores ou dos vulneráveis. Afinal, ele quer mais um mandato para governar para quê e para quem?

Em um país de miseráveis, de famintos e de gente sofrida e desesperançada, Bolsonaro quer mais quatro anos para cuidar de quem nunca cuidou ou com quem nunca se importou? O fato é, caro leitor, que o comandante-em-chefe da nação nunca gostou de pobre e de igualdade de direitos; sempre zombou dos fracos, das minorias e dos necessitados.

E o mercado? Bom, os senhores da Casa Grande já precificam, entre uma calada da noite e outra, a derrota do “mito” antes do desembarque final do Titanic bolsonarista. Pular fora do navio se torna, cada vez mais, uma questão de tempo e oportunidade —e, para muitos, de sobrevivência.

O dinheiro não admite o triunfo da irracionalidade, da instabilidade e da imprevisibilidade. A regra de ouro que rege o interesse do capital edifica-se, primordialmente, sobre a tríade: estabilidade, previsibilidade e credibilidade —e isso o atual governante não consegue auferir.

Já o Itamaraty, abandonado ao relento, teve que cuidar de um triste circo, uma farsa diplomática inédita, digna de fazer o Hino Nacional tremer de vergonha.

Consternados e perplexos com o que viam e ouviam, embaixadores estrangeiros tiveram a inteligência e o bom senso aviltados. A farsa ficou constrita a conjecturação de teorias conspiratórias infundadas e desprovidas de provas críveis acerca do processo eleitoral do país, consagrado mundialmente por sua transparência e lisura. Não tardou e logo alguns países reagiram contra o golpismo presidencial.

Vale sublinhar que o Brasil nunca teve um déficit tão vigoroso na representação das chefias de missões diplomáticas em Brasília. Países importantes do entrono regional, como Argentina, Bolívia e Chile, estão sem embaixadores na capital federal.

China e EUA, as duas superpotências mundiais, seguem sendo representadas por seus respectivos encarregados de negócios, o que revela a irrelevância do governo. E isso para não mencionar que algumas embaixadas europeias estão às moscas.

Perdidos em sua própria incompetência e desespero, os agentes do governo já não inspiram integridade ou respeito à legalidade. O nível de desprestígio do Brasil atingiu o seu ápice. A diplomacia mundial aguarda em compasso de espera o fim do pesadelo brasileiro.

Faltam cerca de 70 tortuosos dias para decretar a decomposição final dessa distopia, no pleito eleitoral mais importante de nossa história.

Porém, infelizmente, muito estrago ainda está porvir. O certo é que o governo da “bozobanania” não poupará o Brasil e os brasileiros de mais e mais vergonha internacional.

O Brasil e seus inimigos, por Silvio Almeida.

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O presidente não quer dar o golpe; ele é o golpe

Silvio Almeida, Advogado, professor visitante da Universidade de Columbia, em Nova York, e presidente do Instituto Luiz Gama.

Folha de São Paulo, 22/07/2022

Por mais terrível que possa soar, por mais contraditório que pareça e por todas as consequências que traga, é preciso reconhecer que o presidente da República é um inimigo do povo brasileiro. Certamente alguém dirá —e com razão— que ele não está sozinho, que ele é apenas um lacaio de grupos empresariais e de militares que nunca aceitaram o fim da ditadura, mas o presidente da República é hoje a face mais visível do pior do Brasil.

Não que o Brasil já tenha sido um paraíso ou que algum dia o povo brasileiro tenha sido tratado pelo Estado com carinho e dignidade. Entretanto, é difícil pensar em outros momentos de tamanha indecência e descaramento, mesmo em um país cuja história é marcada de uma ponta a outra pela violência e pela desigualdade.

O governo de Jair Bolsonaro é a encarnação mais viva e apodrecida do que tenho chamado de “tendências estruturais da formação social brasileira”, a saber: o autoritarismo, a dependência econômica e o racismo. Estas “tendências” são forças constitutivas da vida nacional, que se manifestam mesmo diante de arranjos político-institucionais republicanos e democráticos, tal como o conferido pela Constituição de 1988.

Em outras palavras: mesmo quando o Brasil não estava tomado pela absoluta indigência política, jamais deixou de ser autoritário, racista e dependente. A diferença é que este governo, além de não fazer oposição a tais tendências, muito pelo contrário, trabalha ativa e orgulhosamente pelo aprofundamento do autoritarismo, pela disseminação do racismo e pela destruição de toda e qualquer possibilidade de soberania econômica. É um governo de antibrasileiros, racistas e entreguistas.

A esta altura do jogo, está evidente que Bolsonaro não apenas quer dar um golpe de Estado, mas que ele é o próprio golpe. Ele é o golpe nosso de cada dia. Sua sobrevivência política e a de seu grupo dependem do golpe e de golpes sucessivos.

Ele é a “vitória dos derrotados” pelo fim da ditadura e pela demissão de Sylvio Frota; ele é a bomba do Riocentro que explode todos os dias em nosso colo; ele é o grito dos grandes corruptos contra a corrupção, e que só tem por objetivo minar a confiança do povo na política; ele é a personificação da fome, da doença, do desemprego e da desigualdade que muitos cinicamente desejam para o país, tal como revelou o empresário que o apoio e que teria lhe apresentado sua cara-metade, o ministro da Economia.

Por estes motivos, o presidente e sua turma não podem se dar ao luxo de perder as eleições. A questão aqui não é ganhar, porque “ganhar” significa, talvez mais do que “perder”, submeter-se às regras do jogo constitucional, e isso ele nunca quis e não vai querer. Só o golpe, a fraude, a farsa, o caos e a violência sem limites interessam.

Ele não aceitará outra coisa que não seja sua permanência no poder, pois se for derrotado poderá (e deveria) ser processado criminalmente, e o bando de autoritários, corruptos e arautos da miséria que o acompanha deixá-lo-á na estrada, abandonado, assim como o próprio costuma fazer com muitos de seus antigos aliados.

Mas repetir à exaustão que Bolsonaro quer dar um golpe e nada fazer para impedi-lo só serve para naturalizar a presença de um golpista na cabeça do poder do Estado, além de plantar as sementes para que em alguns meses as pessoas assistam bestializadas a uma possível invasão do TSE ou do STF, como se fosse um seriado de TV.

Desse modo, tudo o que acontecer daqui para a frente e, especialmente, se custar sangue derramado por estes golpistas, será não apenas responsabilidade do golpista-em-chefe instalado na Presidência, mas também de todos aqueles que tendo o dever político e até jurídico de fazer algo para impedir que ele tenha sucesso, gostosamente, se omitem.

O aquecimento global pode escancarar as portas para novas pandemias, por E. Kallás.

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Muitos germes serão deslocados, franqueando a entrada de uma nova era de doenças transmissíveis

Esper Kallas, Médico infectologista, é professor titular do departamento de moléstias infecciosas e parasitárias da Faculdade de Medicina da USP e pesquisador na mesma universidade.

Folha de São Paulo – 20/07/2022

As consequências do aumento na temperatura do planeta são comumente exemplificadas com imagens de queimadas, derretimento de imensas placas polares e ondas gigantescas engolindo regiões costeiras e praias.

Há, porém, outras ameaças contidas nesse fenômeno. Alterações de temperatura levam à profunda desestabilização dos ecossistemas. As mudanças no comportamento de animais e germes podem acarretar aumento no risco de novos “saltos” de uma espécie para outra. Embora sejam eventos recorrentes, algumas vezes um germe pode encontrar condições ideais para seu alastramento levando a epidemia ou pandemia.

Exemplo desta ocorrência remonta ao ano de 536 d.C., após a erupção do vulcão Krakatoa. A temperatura da Terra caiu abruptamente devido à presença da fumaça densa que se espalhou pela atmosfera, diminuindo a penetração da luz solar.

Isto causou a mudança no comportamento de roedores que, à procura de alimentos, ampliaram seu raio de deslocamento, entrando em contato próximo com a população humana. Junto com os roedores vieram carrapatos contaminados pela Yersinia pestis, agente causador da peste negra. Em 541 d.C., a doença já havia matado ao menos um quarto da população do Império Bizantino.

Embora o que ocorreu no século 6 tenha sido um evento radical, com esfriamento da Terra pelo bloqueio da luz solar por 18 meses, as alterações resultantes do atual aquecimento global nos impõem uma séria reflexão sobre o tema.

Análise realizada por cientistas de vários países, publicada nos últimos dias, ajuda a compreender o problema. Embora já se saiba que há milhares de germes capazes de infectar humanos, a grande maioria habita silenciosamente animais selvagens, que têm pouco contato atual com as pessoas.

Carlson e seus colegas, em artigo publicado na revista científica Nature Climate Change, constroem um mapa que leva em conta a rede de interação entre mamíferos e vírus, nas diversas regiões do planeta. As análises projetam que os locais com mais probabilidade para que ocorram estes saltos de vírus entre diferentes espécies estão concentrados em regiões de clima tropical, onde há maior diversidade de espécies e grande proximidade com populações densas.

O Brasil, particularmente por suas extensas áreas de clima quente e com grande biodiversidade, é parte integrante do que muitos pesquisadores apelidaram de hot spots, ou seja, locais que apresentam condições mais propícias para que os saltos aconteçam.

Tais observações reafirmam o quanto é fundamental que o país dedique atenção prioritária ao tema. Especialmente pelo enorme contingente de mudanças que vêm ocorrendo nas regiões de florestas brasileiras nos últimos anos, bem como no Pantanal, no cerrado e na caatinga.

Dados recentes brasileiros, que registram a perda de área de floresta equivalente à extensão do estado do Rio de Janeiro, apontam para aumento na probabilidade de encontro entre vírus que andam silentes em espécies selvagens com os humanos.

É possível que a humanidade já tenha entrado na era das pandemias. Novas doenças estão se tornando mais comuns e colocarão à prova nossa capacidade de preparação e reação.

O sinal amarelo foi aceso há duas décadas. A humanidade está cada vez mais vulnerável. Torna-se imprescindível a discussão sobre emissão de gases de efeito estufa, aumento de temperatura e outras mudanças radicais que temos causado ao planeta, com o efeito que pode ter para as doenças infecciosas. É hora de lidar com o sinal vermelho.

Inadimplência

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A sociedade brasileira vive um momento de grandes instabilidades políticas e sociais, marcada pela degradação econômica, pelo incremento dos preços, redução da renda dos trabalhadores, altos índices de desemprego, números elevados de inadimplência, fome e violência crescentes, além do incremento de indivíduos vivendo ou sobrevivendo nas ruas, num momento de crescimento da desesperança, degradação do meio ambiente e perspectivas preocupantes de recuperação econômica que impedem os investimentos produtivos, a geração de empregos decentes, aumentando os conflitos políticos e as violências que se espalham na sociedade.

Neste cenário de incertezas crescentes na sociedade brasileira, percebemos o crescimento da inadimplência que limita o crescimento econômico, atingindo mais de 66 milhões de indivíduos, dados levantados pela Serasa, perfazendo mais de 30% da população e limitando a recuperação da economia. Os indicadores levantados pela agência de classificação de risco mostram que a recuperação da economia e a busca crescente pelo crescimento sustentável da economia brasileira estão cada vez mais distantes, exigindo uma política pública concatenada com os setores privados, direcionada para melhorar o ambiente de negócio, com estímulo dos investimentos produtivos, taxa de câmbio estável, redução das taxas de juros, tributação progressiva, geração de emprego e incremento da renda agregada. Sem resolver estes imbróglios que persistem no ambiente econômico o sonho do desenvolvimento econômico tende a se transformar em uma utopia impossível de ser alcançada.

Desde 2015, os indicadores econômicos se degradaram de forma acelerada, os investimentos se retraíram, o desemprego cresceu, a renda da classe trabalhadora piorou, elevando a inadimplência, os despejos aumentaram e a quantidade de pessoas vivendo nas ruas cresceram, aumentando a violência urbana, neste ambiente, percebemos uma inação crescente do Estado Nacional, piorando os indicadores econômicos e sociais, exigindo uma atuação crescente das autoridades com políticas públicas consistentes, estimulando empregos dignos e decentes, fortalecendo o mercado interno e reduzindo o contingente de desfavorecidos que chafurdam neste ambiente de degradação e que conhecem do Estado Nacional, apenas, os seus braços de repressão e se esquecem dos braços mais consistentes da educação, da saúde, da cultura e das políticas sociais que constroem mais espaço da cidadania, muito mais do que dos consumidores.

A inadimplência que vitima mais de trinta por cento da população brasileira impede a movimentação dos instrumentos econômicos e produtivos, deixando de lado um contingente de indivíduos que poderiam impulsionar novos negócios, novos empregos e movimentar a economia, aumentando a arrecadação de tributos e garantindo novos espaços de acumulação e geração de renda e riquezas. Todos os países que alcançaram o chamado desenvolvimento econômico, inicialmente, conseguiram inserir todos os grupos sociais mais vulneráveis no mercado de consumo de massa, garantindo renda digna e salários decentes para participarem deste mercado, movimentando a economia, garantindo a ascensão social, universalizando o ensino, acabando com a fome e a exclusão social, desta forma, estas nações foram definidas como países desenvolvidos.

Diante deste ambiente degradante e de desesperanças, onde os desafios são elevados e os recursos financeiros são limitados, exigindo ações mais ousadas e incisivas, os setores políticos deveriam se juntar para reconstruírem as estruturas produtivas e econômicas, garantindo que os setores mais vulneráveis da sociedade recebam maiores recursos, reduzindo os repasses para os grupos mais abastados da comunidade que, historicamente, se caracterizam por serem achacadores dos recursos públicos, garantindo o controle do Estado Nacional e garantindo seus prepostos em cargos mais influentes, impedindo transformações estruturais, garantindo uma estrutura tributária que lhes garantam benefícios crescentes e milenares, deslocando suas sobras monetárias e cultivando suas imagens de beneméritos, de líderes e de empreendedores.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Brasileira, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário de Região, Caderno Economia, 20/07/2022.

‘Não existe empreendedorismo, mas gestão da sobrevivência’, diz pesquisadora

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IHU – 27 de fevereiro de 2019

Incentivar o ‘espírito empreendedor’ do trabalhador é um meio para tornar legal a precarização do trabalho, aponta Fundação Perseu Abramo.

A reportagem é de Felipe Mascari, publicada por Rede Brasil Atual – RBA, 26-02-2019.

Jornadas longas, péssimas condições de trabalho, pouquíssimos direitos assegurados e insegurança sobre o futuro. Essas são as dificuldades apontadas por trabalhadores informais, que vivem sob a ótica do “incentivo empreendedor”.

Para pesquisadoras da Fundação Perseu Abramo (FPA), o termo “empreendedorismo” deveria ser substituído por “gestão da sobrevivência”.

O incentivo para que o trabalhador se torne “empreendedor” é um meio para formalizar a precarização do trabalho, aponta um estudo publicado pela FPA, que ouviu manicures, domésticas, motoboys, ambulantes, costureiras e trabalhadores do setor de construção civil.

A cientista social e coordenadora executiva da pesquisa, Léa Marques, explica que a precariedade do mercado se relaciona a diversos aspectos, como a “uberização” do emprego, a incapacidade de organização coletiva e os efeitos da reforma trabalhista.

“Esse discurso do tal empreendedorismo é mais uma forma da precarização do trabalho. Isso se dá para os trabalhadores das periferias, que estão longe dos centros comerciais e precisam lidar com o mercado de trabalho sem nenhum direito. Esse discurso do empreendedor é para que o Estado não tenha responsabilidade sobre políticas públicas de emprego e renda”, explica à RBA.

Já a socióloga e supervisora da pesquisa, Ludmila Costhek Abílio, lamenta que nos períodos de crise, a informalidade se torne a única opção para o trabalhador. “Nós vimos, por meio das entrevistas, que há uma ‘uberização’ do trabalho. São novas formas de organização da informalidade e que atingem diversas ocupações. É preciso desconstruir o discurso do empreendedorismo, de quem alcançaria o sucesso sozinho.”
Formal em um dia, informal no outro

A pesquisa da Fundação Perseu Abramo aponta que o trabalhador vive num trânsito constante entre o trabalho formal, informal e outras atividades remuneradas.

De acordo com Ludmila, o estudo mostra que o mercado formal e o informal são dois campos estáticos. “As pessoas fazem um monte de coisa ao mesmo tempo para garantir a sobrevivência. O motoboy usa o trabalho dele para ser sacoleiro também, a costureira abre um brechó na casa dela. São várias formas de garantir a própria sobrevivência”, pontua.

Outro aspecto levantado pela pesquisa é de que a figura do Microempreendedor Individual (MEI) funciona mais como veículo de informalização do que de formalização do trabalho. “As manicures e os motoboys viraram MEI. Estão formalizando a informalidade. O mercado se apropriou dessa brecha para precarizar mais o trabalho”, critica Ludmila.

Novas formas de organização

A Perseu Abramo também identificou que, com o aumento do trabalho informal, os trabalhadores, desamparados pela lei trabalhista, criaram suas formas de organização coletiva. Entretanto, não são todas as categorias que conseguem e as que alcançam têm dificuldade de mobilização.

Os motoboys, por exemplo, possuem formas de organização ativas por meio das redes sociais. “Mas vimos categorias que têm dificuldade de organizar, como as manicures e empregadas domésticas, porque estão em espaços privados”, conta a supervisora da pesquisa.

Por outro lado, Léa explica que é preciso entender como funcionam as novas relações de trabalho, já que a informalidade estimula o individualismo, sendo que as dificuldades devem ser enfrentadas coletivamente para serem superadas.

“Tem motoboy relatando (na pesquisa) que houve uma manifestação contra a empresa do aplicativo e ele foi, mas como recebe por dia, não ganhou nada na ocasião. Quando teve a segunda manifestação, não foi e ganhou o dobro do valor, porque todos estavam paralisados. Há uma organização, mas é difícil colocar em prática”, afirma Marques. “Os trabalhadores estão conectados, mas é difícil se organizar quando nada está garantido”, acrescenta Costhek.

O estudo também mostra que os trabalhadores não buscam se formalizar com medo de perder a renda e por conta da precarização do mercado formal. Porém, eles admitem querer os direitos previstos da CLT.

A cientista social acredita que o momento pede uma nova forma de articulação dos sindicatos para que representem os trabalhadores informais. “Isso mostra uma necessidade de os sindicatos criarem esse debate para incluir os informais nas suas formas de atuação”, diz Léa.

Com dólar fortalecido, moedas tendem a desvalorizar em todo o mundo, A. C. Pastore.

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Taxas de juros e risco global faz investidores olharem para Tesouro americano com mais expectativa

Afonso Celso Pastore – O Estado de São Paulo, 17/07/2022

Desde abril de 2021, o dólar vem se fortalecendo. No início, o movimento ocorreu devido à expectativa de que o Fed faria apenas uma pequena elevação da taxa de juros, e se acentuou quando, finalmente, a autoridade monetária reconheceu que a demanda superaquecida exigia aumento maior.

O fortalecimento do dólar pulverizou a previsão de que, com as sanções impostas pelos Estados Unidos à Rússia, o dólar rapidamente deixaria de ser moeda reserva. Pelo menos por enquanto, o que ocorre é o oposto. O aumento do risco global leva os investidores a sair dos ativos de maior risco, derrubando as Bolsas ao redor do mundo e elevando a demanda pelo ativo sem risco – os títulos do Tesouro dos EUA. A busca pela qualidade leva ao aumento da demanda por treasuries, o que reduz suas taxas de juros, impedindo que estas reflitam corretamente a expectativa de aumento da taxa dos fed funds.

Como um dólar mais forte significa moedas mais depreciadas de todos os demais países, estes terão de combater inflações ainda mais altas. A consequência é um aperto adicional das condições financeiras ao redor do mundo, o que acentua a desaceleração do crescimento mundial.

Finalmente, com preços denominados em dólares, transações financiadas e liquidadas em dólares, os preços de commodities caem com o fortalecimento do dólar. É isso que indica a elevada correlação negativa entre o dollar index e o índice CRB de commodities. O celebrado “superciclo de commodities”, entre 2002 e 2008, não veio apenas do crescimento do PIB da China, mas também da enorme e longa valorização do dólar.

Quais são as consequências para o Brasil? A mais recente depreciação do real, que o levou de R$ 4,60/US$ em abril para R$ 5,40/US$ na última semana, se deve apenas em parte ao fortalecimento do dólar. A depreciação acumulada nos dois últimos meses só não supera a de países em crise e vem ocorrendo com o aumento das cotações do CDS brasileiro de 10 anos, que já atingiu 400 pontos e que reflete o aumento dos riscos fiscais.

Resultados fiscais dependem das receitas tributárias. Somente tivemos resultados fiscais melhores em 2021 e 2022 em virtude de um aumento de receitas, que foi maior nos Estados do que na União, devido à sua maior sensibilidade aos preços do petróleo e das commodities em geral. Se estiver correto na minha avaliação, assistiremos em 2023 a uma piora no desempenho das receitas, limitando o espaço para os gastos. Não é um quadro animador para quem se preocupa com os riscos fiscais e seus efeitos.

Como educar para a democracia? por Renata Cafardo.

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Pesquisa recente demonstrou que é preciso ensinar cidadania na escola.

Renata Cafardo – O Estado de São Paulo, 17/07/2022

Parece chover no molhado, mas é preciso repetir que a educação que um país oferece às suas crianças e jovens tem muito a ver com esses tempos difíceis que vivemos. Crimes com motivação política, intolerância, desvalorização da democracia e dos direitos humanos, estupro até durante o parto.

Pesquisa recente do projeto Demos (Democratic Efficacy and the Varieties of Populism in Europe), que reúne professores de universidades europeias, analisou currículos de 14 países e demonstrou que é preciso ensinar cidadania na escola. O estudo sugere que deva haver um número mínimo de horas, até numa disciplina específica, para o tema.

Nessas aulas, os estudantes discutem processos políticos, conceitos da democracia e aprendem sobre sua participação na sociedade civil. Entre os países pesquisados estão Bélgica, Finlândia, França e Estônia, cujo desempenho dos alunos é o melhor do mundo no Pisa, a prova da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
O resultado dessa educação cívica são jovens com mais interesse por política, menos propensos a ideias populistas e com fortes valores de equidade, tolerância e autonomia.

O mesmo grupo analisou 18 países e também concluiu que o clima na escola é essencial para desenvolver atitudes democráticas. Para isso, a educação precisa ocorrer em ambientes onde as crianças sentem que são acolhidas e que fazem parte do grupo, onde a competição não é o principal e, sim, a cooperação. Quando há bullying e discriminação, o resultado é o oposto.

As escolas brasileiras têm muitas deficiências básicas, mas na educação é preciso atacar em muitas frentes para que haja resultado. Elas devem ensinar a ler e a escrever, mas também formar cidadãos. Não teremos um país melhor se acharmos que a criança pode sair da escola com o mínimo.

E é só mínimo, ou talvez nem isso, que haverá se for confirmado o corte de R$ 26 bilhões para a educação, decorrente da redução do ICMS para combustíveis. Ele é o imposto que sustenta as escolas públicas. Vem da arrecadação do ICMS o dinheiro para o Fundeb, o fundo de financiamento da educação, e o investimento constitucional de 25% feito por Estados e municípios.

Jair Bolsonaro diz que ajuda os pobres ao aumentar o Auxílio Brasil, mas tira da educação. Ele vetou a possibilidade, que estava na lei, de compensação aos Estados e municípios dessas perdas. Uma população que tivesse aprendido na escola o que é um populista e como se faz política pública na democracia não cairia nesse engodo.

Escolas devem ensinar a ler e a escrever, mas também precisam formar cidadãos

A razão da desigualdade, por Juarez Guimarães

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Por JUAREZ GUIMARÃES

A Terra é redonda – 16/07/2022

Não pode ser livre a pessoa submetida a uma desigualdade estrutural que a torna dependente, serva ou mesmo escrava

Em O crescimento da Escola de economia de Chicago e o nascimento do neoliberalismo, Hob van Horn e Philip Mirowski, documentam o papel protagonista de Friedrich Hayek na formação da principal matriz neoliberal estadunidense. E citam uma interessante observação do embaixador britânico nos EUA de março de 1945: “Wall Street olha para Friedrich Hayek como a mais rica mina de ouro jamais descoberta e estão mercadejando seus pontos de vista por toda parte”. A citação vale pela intuição de que os financistas estavam encontrando então e, depois, cada vez mais, uma nova razão liberal agressivamente formulada para atacar todos os que lutavam por justiça e reformas sociais. E para legitimar ostensivamente a concentração da riqueza, dos lucros e da renda.

Desde John Stuart Mill no século XIX, a desigualdade social gerada e multiplicada pelo mercado capitalista havia sido objeto de problematização e crítica. Uma teoria da justiça, de John Rawls, de 1972, talvez a mais influente obra da inteligência liberal da última metade do século XX, hoje deveria ser vista como um grito derradeiro de um liberalismo que se queria, em seus próprios termos, igualitário. Porque o argumento neoliberal radical contra a justiça social foi claramente e cada vez mais dominante nas democracias ocidentais e na própria apartação crescente entre o centro e as periferias do capitalismo.

Em Análise da crítica hayekiana da justiça social, tese defendida em 2019 na Universidade de Louvain, Simon Lefebvre sistematiza os principais argumentos que sustentariam este conceito de uma liberdade desigualitária. Para este novo argumento, até mesmo a liberal proposição de uma “igualação das oportunidades” dos indivíduos no mercado seria contestada.

O primeiro argumento de Friedrich Hayek contra a justiça social é da ordem da linguagem e da possibilidade do conhecimento. Falar em nome da “justiça social” seria um abuso da linguagem pois existem diferentes noções sobre este tema. Como só pode se estabelecer sentido à ação individual, não cabe falar em interesse público, em vontade geral e, muito menos, em justiça social.

Este abuso da linguagem procurava legitimar intervenções arbitrárias do Estado que visariam uma justiça distributivista por sobre as regras vigentes do mercado. Friedrich Hayek formula aqui uma razão estritamente comutativa: cada um deve receber o que deu em troca, segundo as regras de mercado. O injusto seria decidir contra os resultados alcançados no interior destas regras.

Até mesmo o mérito, difícil de ser consensuado em uma sociedade pluralista, não deveria servir de base para uma ideia residual de justiça social. Hayek vale-se aqui de uma metáfora futebolística: um time jogou melhor do que o outro, mas, ao final, por alguma razão ou fruto da sorte, outro foi o vitorioso. Segundo as regras do jogo, este resultado contingente é justo.

Mas o argumento final de Friedrich Hayek é de caráter moral. O apelo à justiça social seria proveniente de um ressentimento ou inveja, revelaria uma “moral dos fracos”. Aquele que ganha, segundo as regras do mercado, é quem merece o mérito.

Por esta nova linguagem do liberalismo dominante, os bilionários são os vencedores. Não cabe culpa, vergonha ou modéstia na exibição do seu triunfo. E devem, sem parcimônia, exibir seus troféus de luxo e riqueza publicamente, mesmo em uma sociedade de miseráveis.

Cinco linhas de ataque
Este ataque frontal à própria noção civilizatória de justiça social, legitimaria cinco mudanças fundamentais que estão na base do crescimento exponencial da desigualdade social, racista e patriarcal nas sociedades nas quais vivemos.

A primeira delas é na própria ordem fiscal: passou-se da cultura do imposto progressivo para a corrida competitiva das isenções fiscais favoráveis aos capitalistas. O próprio imposto passou a ser execrado, conferindo- se amplo trânsito à fuga dos capitais para os mal-chamados ” paraísos fiscais”.

A segunda foi a desestruturação dos orçamentos do Estado do Bem-Estar Social através da implementação de novos parâmetros legais e até constitucionais de uma compressão permanente de seus gastos. Não se pode falar rigorosamente da busca de equilíbrio orçamentário, mas de uma financeirização do orçamento, a sua funcionalidade para o pagamento das dívidas financeiras.

A terceira linha de ataque foi aos sindicatos de trabalhadores e à própria noção de emprego formal e dos direitos do trabalho. A cultura neoliberal constituiu toda uma ciência, toda uma estratégia de uma “guerra de saturação” ao mundo do trabalho.

A quarta linha de confronto neoliberal, em geral muito pouco conhecida, mas de efeitos devastadores, foi orientada a desconstituir as chamadas teorias do desenvolvimento dos países com passado colonial ou ainda semi-colonial. Uma nova cultura do colonialismo foi, assim, formada em pleno final do século XX para o século XXI.

Por fim, esta nova razão da desigualdade conformou uma nova tradição de ser mais livre em um mundo cada vez mais desigual. A noção de concorrência veio substituir no centro a ideia de solidariedade que sustentava as políticas que buscavam maior justiça social.

A “mina de ouro” de Friedrich Hayek, afinal, revelou-se mais profunda e mais rica exatamente porque inspirou uma nova era da razão da desigualdade.

Liberdade igualitária
Em Rousseau e Marx: a liberdade igualitária (1982), Galvano Della Volpe procurou responder ao desafio de pensar, na tradição socialista, a questão das relações entre liberdade e igualdade. Buscava um caminho diferente do lugar comum de um certo marxismo que, diante da apologia liberal da liberdade, posicionava-se unilateralmente em defesa da igualdade. Questionado sobre a desigualdade crescente nas sociedades contemporâneas, um neoliberal argumentaria que é a favor da liberdade e que a desigualdade é resultante inevitável da competição no interior das regras de mercado.

A luta pela hegemonia dos socialistas contra a ordem neoliberal passa centralmente pela demonstração de que a desigualdade estrutural de classe, de gênero ou racialista impede a liberdade. Não pode ser livre a pessoa submetida a uma desigualdade estrutural que a torna dependente, serva ou mesmo escrava.

*Juarez Guimarães é professor de ciência política na UFMG. Autor, entre outros livros, de Democracia e marxismo: Crítica à razão liberal (Xamã).

Um olhar da geração de 2013 sobre o Brasil de hoje, por Antônio Martins

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Rodrigo Nunes, um pensador ligado aos movimentos que sacudiram o país há nove anos, vê, em meio ao capitalismo financeiro em crise e à ameaça fascista, uma brecha. Mas opina: para aproveitá-la, esquerda precisa abandonar seu identitarismo e se abrir à “radicalidade programática”

Antônio Martins, editor de Outras Palavras

Resgate – 28/06/2022

1. Vivemos a vertigem da queda de um velho mundo – e os monstros de hoje emergem porque ainda não a compreendemos. A saída encontrada pelo capitalismo para a crise de 2008 – concentrar ainda mais a riqueza, proteger os cassinos financeiros que provocaram o colapso, punir as sociedades com políticas de corte dos direitos sociais (“austeridade”) – reduziram a política a um jogo de dados viciados. Mas embora tenha ficado claro para a sociedade, o fenômeno não foi capaz de tirar de seus lugares nem os partidos de centro, nem a esquerda institucional. Esta ausência de respostas, esta tentativa de praticar um “realismo” que se deslocava cada vez mais do novo real, abriu espaço para o declínio ainda mais acelerado da confiança na política, o ressentimento e… a extrema direita. Na Europa e EUA, os partidos de esquerda bloquearam o ascenso de políticos (como Jeremy Corbyn e Bernie Sanders) que poderiam dialogar com o desencanto das maiorias. No Brasil, o PT voltou as costas para os movimentos sociais que, em 2013, propunham ampliar o que até entrão parecia ser seu programa: mais Estado de bem-estar social, mais controle público sobre os mercados, mais direito à cidade e redistribuição de riquezas.

2. Mas, passada quase uma década, os “novos movimentos” que pareciam tão autoconfiantes em 2013, expressam também seus limites e insuficiência. Rodrigo é autor de outro livro [Nem horizontal, nem vertical, a ser lançado em breve no Brasil] em que expõe um dos traços desta insuficiência: a aposta absoluta na horizontalidade, na negação da forma partido, na emergência das questões comportamentais como centro da política). Elas acabaram se convertendo num dogma, tanto quando, segundo ele, eram os dogmas verticalistas do “socialismo real” do século XX. O insucesso da Primavera Árabe, dos Indignados, do Occupy Wall Street, do 2013 brasileiro e de outros movimentos semelhantes são um sinal deste limite. O livro traz, como nota provocativa, um vaticínio: 2011 [ano da Primavera Árabe e do Occupy] pode estar para 1968 como 1989 [queda do muro de Berlim] esteve para 1917… Rodrigo diz que escreveu o livro na esperança de que seja possível superar este impasse.

3. Agora, as condições se degradaram em diversos aspectos. Os sinais da crise climática são evidentes. A sombra do fascismo, que não fazia parte da paisagem política, espalhou-se pelo Ocidente. O Brasil, que vive há quatro anos sob este espectro, tem em Lula uma chance rara e complexa. O arco de alianças articulado pelo candidato do PT reúne boa parte das forças que foram incapazes de se mover do velho realismo. No entanto, há a consciência de que é impossível prosseguir na mesma rota.

4. Na hipótese – a mais favorável, e hoje muito possível – de uma vitória de Lula, como evitar um repeteco que nos conduza a um novo 2016? A volta ao passado é impossível. Rodrigo sugere o caminho da “radicalização programática”, que se opõe, segundo ele, à “radicalização identitária” da esquerda. Esta significaria limitar-se a cultivar as ideias, lemas, símbolos do passado. Já a “radicalização programática” implica admitir que, em meio à crise civilizatória, “as surpresas não cansam de se repetir” e, por isso, também a esquerda pode tentar o que há algum tempo parecia impossível. “O que é irrealista hoje: propor a transição energética, ou a redistribuição da riqueza social, ou pensar que o mundo pode continuar a evitá-las”, pergunta Rodrigo. Ao mesmo tempo, lembra ele, “cresce, em todo o mundo, a consciência de que o mercado é incapaz de oferecer as soluções de que a humanidade necessita quase em desespero”. Abre-se novamente, portanto, espaço para a política.

5. “Viveremos tempos interessantes”, finaliza Rodrigo, lembrando um mote chinês. Temos o direito de tentar. Nossos esforços podem ser vãos. Mas tudo dará errado, quase certamente, se não dialogarmos com as novas realidades e buscarmos novas respostas para elas…

Criptomoedas estão quebrando; onde estavam os reguladores? por Paul Krugman.

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Indústria teve um sucesso espetacular ao criar imagem de vanguardista e respeitável

Paul Krugman, Prêmio Nobel de Economia, colunista do jornal The New York Times.

Folha de São Paulo, 13/07/2022

Quando o Federal Reserve [banco central dos Estados Unidos] fala, usa uma linguagem própria, o “Fedspeak”. Uma frase concisa ou uma metáfora impressionante pode facilmente se transformar em manchete, causando grandes movimentos no mercado e uma reação pública.

Por isso, a linguagem técnica seca e os eufemismos geralmente são a forma escolhida. Dada essa realidade, a franqueza de um discurso recente sobre a regulamentação das criptomoedas feito por Lael Brainard, vice-presidente do Fed, é quase chocante. É verdade que Brainard não foi tão longe quanto Jim Chanos, o famoso vendedor a descoberto que chamou a criptomoeda de “lixão predatório”. Mas ela chegou perto.

O primeiro título de seus comentários foi “Distinguindo inovação responsável de evasão regulatória”, e ela sugeriu enfaticamente que grande parte do universo criptográfico é impulsionado pela última. A banca tradicional é regulamentada por uma razão; a criptomoeda, ao contornar esses regulamentos, disse ela, criou um ambiente sujeito a pânicos bancários, sem mencionar “roubos, invasões e ataques por resgate”, além de “lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo”.

Fora isso, está tudo bem.

O fato é que a maior parte da litania de Brainard já é óbvia há algum tempo para observadores independentes. Então, por que só agora estamos ouvindo pedidos sérios de regulamentação?

As criptomoedas existem desde 2009 e, durante todo esse tempo, nunca tiveram um papel importante nas transações do mundo real – a tentativa muito badalada de El Salvador de tornar o bitcoin sua moeda nacional foi um desastre.

Então, como as criptomoedas chegaram a valer quase US$ 3 trilhões (R$ 16,1 trilhões) em seu pico? (Dois terços desse valor já desapareceram.) Por que nada foi feito para conter as “stablecoins”, que supostamente estavam atreladas ao dólar americano, mas claramente sujeitas a todos os riscos de bancos não regulamentados, e agora passam por uma série de colapsos que lembram a onda de falências de bancos que ajudaram a tornar grande a Grande Depressão?

Minha resposta é que, embora a indústria de criptomoedas nunca tenha conseguido criar produtos que sejam muito usados na economia real, ela teve um sucesso espetacular no próprio marketing, ao criar uma imagem de vanguardista e respeitável. Fez isso, particularmente, cultivando pessoas e instituições importantes.

Não estou falando aqui sobre a adoção da criptomoeda por libertários e tipos “Faça a América Grande de Novo”, nem estou falando sobre episódios embaraçosos como aquele anúncio de criptomoeda estrelado por Matt Damon. O que me impressiona mais é até que ponto as criptomoedas ganharam reputação de respeitabilidade por meio da associação com instituições e indivíduos destacados.

Suponha, por exemplo, que você use um aplicativo de pagamentos digitais como o Venmo, que demonstrou amplamente sua utilidade em transações do mundo real (você pode até usá-lo para comprar produtos em barracas de frutas na calçada).

Bem, se você for à página inicial do Venmo, encontrará um convite para usar o aplicativo para “começar sua criptojornada”; no próprio aplicativo, uma guia “Cripto” aparece logo após “Início” e “Cartões”. Certamente, então, a criptomoeda deve ser um negócio sério.

Suponha que você queira aprender sobre criptomoedas. Muitas universidades famosas oferecem programas, normalmente cursos por assinatura online.

Suponha que você queira saber quem assessora os principais players da indústria de criptomoedas. Bem, o conselho do Digital Currency Group, um dos maiores atores, inclui um copresidente do conselho administrativo da Brookings Institution e um ex-secretário do Tesouro como consultor.

Dada essa aura de aprovação geral, quantas pessoas estariam dispostas a acreditar que o imperador digital estava nu? Mais precisamente, quantas estariam dispostas a aceitar uma contenção regulatória?

Por que essas instituições e pessoas tradicionais estavam dando cobertura ao que é, como Brainard deixou claro, uma indústria altamente duvidosa? Não acredito que tenha havido alguma corrupção (ao contrário do que acontece no próprio setor de criptomoedas, que é inundado por fraudadores).

Na verdade, sei por experiência própria que alguém pode ganhar dinheiro fazendo o que parece ser um trabalho honesto e só mais tarde descobrir que as pessoas que assinaram o cheque eram golpistas.

Ainda assim, claramente houve e há recompensas financeiras envolvidas. Não sei quanto a Venmo ganha com pessoas que compram e vendem criptomoedas em sua plataforma, mas certamente não está oferecendo o serviço por pura boa vontade. Se você quiser fazer, por exemplo, o curso de blockchain online do MIT, custará US$ 3.500.

A meu ver, a criptomoeda evoluiu para uma espécie de golpe da pirâmide pós-moderno. A indústria atraiu investidores com uma combinação de tecnoblablá e disparates libertários; ela usou parte desse fluxo de caixa para comprar a
ilusão de respeitabilidade, o que atraiu ainda mais investidores. E durante algum tempo, mesmo com a multiplicação dos riscos, tornou-se, de fato, grande demais para ser regulamentada.

Uma maneira de ler o discurso de Brainard é que ela estava dizendo que o crash das criptomoedas oferece uma oportunidade –um momento em que uma regulamentação efetiva se tornou politicamente possível. E ela nos exorta a aproveitar esse momento, antes que a criptomoeda deixe de ser um mero cassino e se torne uma ameaça à estabilidade financeira.

É um conselho muito bom. Espero que o Fed e outros formuladores de políticas o aceitem.