Emergência alimentar, por Nathalie Beghin.

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Responsável pela alimentação básica, agricultura familiar deve ser valorizada

Nathalie Beghin, Economista e coordenadora da assessoria política do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) e ex-conselheira do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional)

Folha de São Paulo, 13/04/2022

Na última semana de março, o Datafolha revelou resultados assustadores de uma pesquisa que perguntou à população brasileira se achava que a comida dentro de casa era considerada suficiente para os seus moradores.

Como é possível que, em uma das economias mais ricas do mundo, uma em cada quatro pessoas responda que a alimentação domiciliar está muito aquém do necessário? E mais: entre os mais pobres, 35% avaliaram que não há comida suficiente. A pesquisa também explicitou as enormes desigualdades regionais, pois é no Nordeste que a situação de insegurança alimentar e nutricional é pior. Urge a implementação de medidas emergenciais.

Sim, o país voltou a esse grave e conhecido quadro, de onde havia saído, em 2014 (poucos anos atrás), do Mapa da Fome das Nações Unidas.

As causas que explicam a deterioração do quadro alimentar e nutricional no Brasil são muitas. Temos um modelo agroalimentar que, infelizmente, pouco valoriza a agricultura familiar, principal responsável por nossa alimentação básica. As energias estão direcionadas para a agropecuária de grande porte, voltada à exportação. Assim, cresce a produção de soja e milho em detrimento da de arroz, feijão e mandioca, entre outras. Os trabalhadores do campo são expulsos de suas propriedades, engrossando as periferias empobrecidas das cidades, com enormes dificuldades para se alimentar.

A crise econômica que caracteriza o Brasil dos últimos anos e que se agravou em decorrência da pandemia de Covid-19 jogou milhões de pessoas no desemprego e na precariedade. A renda insuficiente dificulta e, em muitos casos, impossibilita a compra de alimentos. O levantamento do Datafolha revela que, entre os desempregados, 38% disseram que não tiveram comida suficiente.

Outro fator agravante é o da inflação e, especificamente, da inflação alimentar, que penaliza os empobrecidos. Os preços dos alimentos subiram mais de 20% desde o início da pandemia. O efeito da elevação dos preços é mais severo sobre os mais pobres. De acordo com o IBGE, os gastos com alimentação representam cerca de 20% da renda dos brasileiros. Se analisado entre as famílias que vivem com 1 a 5 salários mínimos, o peso da alimentação chega a um quarto de seus rendimentos. Dai que a combinação da queda da renda com o aumento dos preços dos alimentos resulta em falta de comida dentro de casa.

Uma causa relevante do significativo aumento da fome no Brasil está fortemente relacionada ao desmonte da institucionalidade federal da segurança alimentar e nutricional operado pelas gestões Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL), associada a uma política fiscal contracionista implementada desde 2016 por meio, especialmente, do teto de gastos.

O abandono de uma atuação intersetorial e sistêmica, assim como a extinção das instâncias de participação social, impediu a identificação dos principais problemas alimentares e das demandas da sociedade; o enfraquecimento de mecanismos de regulação do mercado dificultou o controle da inflação, particularmente a alta de preços dos alimentos; a desarticulação de estratégias de fortalecimento da agricultura familiar, principal responsável pela alimentação básica da população brasileira, contribuiu para a inflação de alimentos e para a carestia; os programas de aquisição e de distribuição de alimentos, como o Programa das Cisternas, o Programa de Alimentação Escolar e o Programa de Aquisição de Alimentos foram enfraquecidos —desse modo, pouco mitigaram o problema da fome.

Essa situação agrava as desigualdades raciais, pois é a população negra a mais afetada pela fome. Agrava também as desigualdades regionais, pois como vimos o Nordeste é o mais penalizado. E piora as desigualdades geracionais: de acordo com o Unicef, 61% das crianças e dos adolescentes vivem na pobreza, sendo, portanto, mais impactados pela carestia alimentar.

A fome tem pressa, não pode esperar. Urge implementar desde já uma ação emergencial de combate à fome. Urge, ainda, retomar a política nacional de segurança alimentar e nutricional para enfrentar as causas estruturais da fome no Brasil.

Movimentos geopolíticos

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Vivemos momentos de grandes transformações na sociedade contemporânea, a pandemia está gerando novos paradigmas econômicos e geopolíticos, novos desafios e oportunidades, além de abrir espaços para novos modelos produtivos. O mundo do trabalho vive mudanças avassaladoras, os relacionamentos estão em constante movimento e os indivíduos seguem atônitos e marcados por fortes desesperanças, gerando ansiedades, instabilidades financeiras e incertezas sociais, além do crescimento dos desequilíbrios emocionais, afetivos e espirituais. O cenário descrito não se restringe a países como o Brasil, vivemos movimentos globais que impactam sobre todas as nações, organizações e indivíduos.

A globalização ganhou espaço na agenda dos governos nacionais desde o período posterior a segunda guerra mundial, difundindo e uniformizando os modelos econômicos e produtivos, impondo estruturas de consumo e definindo o comportamento dos indivíduos e comunidades, tendo a moeda norte-americana, o dólar, como o instrumento monetário internacional, garantindo ganhos extraordinários para seu emissor. Neste instante, percebemos que os modelos construídos anteriormente vêm perdendo espaço na geopolítica mundial, os Estados Unidos perderam força econômica e dinamismo produtivo, além de vivermos num período de grandes conflitos geopolíticos e confrontos militares que tendem a se perpetuar por algumas décadas e que devem redefinir as estruturas de poder com impactos generalizados para todas as regiões, reconfigurando o conceito de autonomia e soberania.

Neste momento, os países que conseguirem construir estratégias mais consistentes tendem a ganhar espaço na comunidade internacional. No caso brasileiro, precisamos capacitar e desenvolver políticas públicas que estimulem as potencialidades mais evidentes da comunidade e construindo um forte planejamento estratégico em setores imprescindíveis para a sociedade, fortalecendo setores nacionais que mostrem potenciais de concorrência e angariando aumentos constantes de produtividade e de eficiência, além de estimularmos a construção de um mercado interno consistente e diversificado, que garanta dinamismo econômico, fortalecendo a empregabilidade da população, incremento da renda agregada, consolidando salários e garantindo recursos para satisfazer as necessidades materiais, reduzindo a pobreza generalizada que crassa na sociedade nacional.

As mudanças geopolíticas em curso na sociedade mundial podem abrir novas oportunidades para as nações que se prepararem para os novos cenários que estão sendo redesenhados na contemporaneidade. As nações que conseguirem diversificar as estruturas produtivas, reduzindo as fragilidades econômicas, buscando a autossuficiência interna em setores estratégicos e criando espaços para desenvolvimentos regionais.

Está nascendo na sociedade global um novo paradigma de produção, que tende a valorizar os parceiros regionais, a cultura local deve ser estimulada, os laços históricos devem ser consolidados e as rivalidades devem ser deixadas de lado, em prol de uma construção mais consistente e equilibrada, sob pena de perdermos mais uma oportunidade de construirmos uma sociedade menos desigual e mais equilibrada.

A ascensão das economias asiáticas nos traz novas oportunidades e, ao mesmo tempo, novos desafios, que exigem consensos internos para participarmos num ambiente marcado pela alta concorrência e pela forte competição, deixando de lado futilidades, mesquinharias e interesses políticos imediatos que caracterizam o nosso subdesenvolvimento. O sucesso dos países asiáticos demonstra o papel central e fundamental dos Estados Nacionais na construção de um projeto nacional, garantindo mercados internos dinâmicos e consolidados que garantam demandas internas e estimulem os investimentos produtivos, ao mesmo tempo, criando estratégias macroeconômicas que reduzam as taxas de juros e garantam preços reduzidos de insumos fundamentais para o crescimento da economia.

A experiência internacional nos mostra que a construção de um mercado interno é fundamental para o desenvolvimento de uma nação, mostrando que o que estimula o crescimento dos investimentos produtivos é a perspectiva de retorno financeiro e ganhos adicionais. Novamente, estamos no caminho equivocado.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 13/04/2022.

Piketty: “é preciso lutar mais pela igualdade”

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No rastro do lançamento de seu novo livro, pensador francês provoca: “o neoliberalismo está no fim”. Ele prossegue: ou a esquerda tira as consequências deste fato ou, como no século passado, os fascistas o farão

OUTRAS PALAVRAS – 06/04/2022

George Eaton é editor-chefe de “New Statesman”.

Thomas Piketty não é um pensador conhecido pelo otimismo. Sua obra mais notável, O capital no século XXI (2013) alertou que o mundo estava regredindo para uma era de “capitalismo patrimonial” na qual enormes desigualdades de riqueza são mantidas através de gerações.

Mas o novo livro do economista francês, A Brief History of Equality [Uma breve história da igualdade, publicado originalmente em francês e lançado agora em inglês], adota uma perspectiva radicalmente diferente. Ele argumenta que tem havido, desde o final do século XVIII, um “movimento histórico em direção à igualdade” – e que é provável que esta tendência continue.

Será que Piketty escreveu o livro porque teme que a esquerda tenha se tornado muito negativa? “Vai além dela; acho que todos estamos obrigados a ser mais propositivos”, disse ele quando falamos por vídeo-chamada. “Se você olhar para as evidências históricas que recolhi, o que verá é que, a longo prazo, há um movimento em direção a mais igualdade política, mais igualdade social e mais igualdade econômica”.

Ele referia-se “ao fim da escravidão, à emergência do sufrágio universal masculino e ao aumento dos direitos dos trabalhadores”. O processo continuou no século XX com a descolonização, a Previdência Social, com a tributação progressiva e o sufrágio feminino, e prossegue hoje com movimentos como o #MeToo e o “Black Lives Matter”.

A intenção de Piketty não é minimizar o aumento da desigualdade de renda e riqueza que definiu a era da supremacia do mercado, muito menos sugerir que vivemos no melhor dos mundos possíveis. Ao contrário, ele quer que “façamos um balanço de todas essas melhorias para pensar nos próximos passos possíveis”.

Uma motivação secundária para o livro foi seu desejo de “escrever algo mais curto” do que suas duas obras anteriores (O capital no século XXI tem 696 páginas; sua sequência, Capital e Ideologia, tem 1150). “Havia tanta gente me dizendo: ‘Por que você não escreve algo mais curto que eu possa compartilhar com amigos e familiares?

Durante alguns anos, achei que precisava escrever uma síntese que fosse direto ao ponto principal”.

A vez anterior em que entrevistei Piketty foi no início de fevereiro de 2020, antes da pandemia de covid-19 redesenhar o mundo econômico. Será que ele acredita que a era neoliberal está definitivamente terminada? “Já estava perto do fim após a crise financeira de 2008, mas, sim, a pandemia confirmou à sua maneira que a era do neoliberalismo, que começou nos anos 80, está em grande parte terminada”.

“A grande questão”, acrescentou ele, citando Donald Trump, o Brexit e a ascensão de nacionalistas autocráticos como Vladimir Putin, Jair Bolsonaro e Narendra Modi, é “se o fim do neoliberalismo é o começo do neonacionalismo”.
Na Europa, a pandemia foi agora eclipsada pela guerra na Ucrânia, e Piketty não está impressionado com a resposta econômica do Ocidente. “Nesta fase, tudo o que reclamamos sobre sanções e oligarcas está próximo de um pensamento ilusório. Seria preciso um movimento de transparência em relação à propriedade de bens, o que não está acontecendo.

Se queremos ser sérios quanto às sanções, não são apenas algumas centenas de pessoas; há cerca de 20 mil russos que possuem mais de 10 milhões de euros e cerca de 50 mil com mais de 5 milhões de euros”.

“Construímos um sistema legal que dá enorme proteção aos indivíduos de alta riqueza, de onde quer que venham – Rússia, China ou Ocidente – e muito pouca… às pessoas normais”. Enquanto tivermos esse sistema, será muito difícil convencer a opinião russa, ou internacional, de que somos sérios quando falamos de justiça econômica e democracia”.

A guerra na Ucrânia intensificou a crise dos padrões de vida no Reino Unido e na Europa e elevou ainda mais as contas de energia em boa parte do mundo. Piketty acredita que será necessária uma intervenção dramática do Estado, do tipo da que foi vista durante a pandemia?

“É claro que se não mudarmos completamente nossa abordagem da política climática, teremos movimentos de coletes amarelos por toda parte”, advertiu ele, referindo-se aos manifestantes franceses que sacudiram a presidência de Emmanuel Macron. Ele ressalta que as emissões de carbono per capita dos 50% mais pobres do mundo estão de acordo com as metas de 2030. “O problema é que… os primeiros 1% emitem entre 70 e 75 toneladas” – trinta vezes o limite per capita para limitar o aquecimento global a 1,5°C.

Piketty nasceu em 1971 no subúrbio parisiense de Clichy, filho de pais de esquerda, que foram membros do partido trotskista Lutte Ouvrière. Seu filho, entretanto, nunca se identificou com a esquerda revolucionária. (Uma visita à União Soviética em 1991 o convenceu dos méritos de uma economia com mercado). Ao contrário, ele é um reformista radical cujas propostas políticas, tais como alíquotas de imposto sobre renda e propriedade de até 90%, e um teto de 10% para o poder de voto dos acionistas, não visam humanizar o capitalismo, mas sim forjar o que ele chama de “socialismo participativo”.

Piketty, que completou seu doutorado em redistribuição de riqueza aos 22 anos na London School of Economics, atuou em 2007 como assessor econômico da Ségolène Royal, que era a candidata presidencial francesa do Partido Socialista.

Hoje, ele atribui a reeleição antecipada de Emmanuel Macron à maneira como covid-19 “congelou a discussão política” na França e permitiu ao liberal Macron “parecer um presidente mais social”.

Em Capital e Ideologia, Piketty traçou a ascensão da “esquerda brâmane” (a elite educada/cultural, que mudou a
esquerda nas últimas décadas) e da “direita mercante” (a elite rica). O sucesso político de Macron, ele pensa, foi unir os dois grupos.

Piketty despertou a atenção política no Reino Unido pela primeira vez quando apareceu no parlamento em 2014 e se encontrou com o então líder trabalhista, Ed Miliband. Mais tarde ele se juntou ao comitê consultivo econômico de Jeremy Corbyn, em setembro de 2015, mas deixou-o junho de 2016, alegando falta de tempo e preocupações com a “fraca campanha dos trabalhistas” durante o referendo sobre a permanência na União Europeia. Qual é a sua avaliação sobre Brexit agora?

“Penso que a longo prazo será um fracasso para o Reino Unido, mas também é um fracasso para a União Europeia. Em meu país, e em muitos países europeus, as pessoas olhavam para Brexit e diziam: ‘Oh, esses estúpidos nacionalistas britânicos, não há nada que possamos fazer a respeito deles’ – um pouco como os democratas norte-americanos, para os quais não há nada que se possa fazer a respeito dos racistas brancos que votam em Trump. Mas eu acho que esta é a maneira errada de olhar para o problema.”

“A forma como organizamos as relações econômicas, a concorrência dentro da Europa e em especial a globalização, tem sido benéfica principalmente para as pessoas com o mais alto capital humano e o mais alto capital financeiro. Se não encontrarmos uma maneira de mudar isso, teremos outros Brexits em algum momento”.

Sua mensagem para o Partido Trabalhista inglês, agora dirigido por Keir Starmer, é semelhante: “Se vocês não mudarem sua plataforma econômica e social para convencer os eleitores da classe trabalhadora de que oferecem algo melhor do propõem os nacionalistas e os antiimigrantes, não vai funcionar”.

Embora Piketty tenha poucas palavras de elogio a qualquer governo, ele permanece, talvez paradoxalmente, otimista. “O neonacionalismo e o recuo identitário são sempre mais fáceis; eles proporcionam linhas de atração e estratégias de mobilização muito mais simples. Mas no final, isso não vai resolver os problemas que temos diante de nós: desigualdade, aquecimento global, migração. No final, teremos que continuar o movimento em direção à igualdade, porque é o que permitirá resolvê-los”.

Livro revela atuação da ditadura brasileira no golpe contra Allende

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Enquanto lia ‘O Brasil contra a Democracia’, o ronco dos gorilas ecoava de Brasília, ocupada pela xepa do regime militar

Karla Monteiro, Jornalista e escritora, publicou os livros “Karmatopia: Uma Viagem à Índia”, “Sob Pressão: A Rotina de Guerra de um Médico Brasileiro” (com Marcio Maranhão) e “Samuel Wainer: O Homem que Estava Lá”

Folha de São Paulo, 12/04/2022

No capítulo 13, intitulado 11 de setembro de 1973, meu queixo tremeu: o La Moneda sob intenso bombardeiro, Salvador Allende entrincheirado, a opção pelo suicídio. Quando já não mais podia resistir, o presidente do Chile, eleito democraticamente no pleito de 1970, apoia o maxilar na ponta do cano da AK-47 que Fidel Castro lhe presenteara e aperta o gatilho.

Nas últimas três semanas, mergulhei neste livro espetacular: “O Brasil contra a Democracia”, do jornalista Roberto Simon. Enquanto eu devorava as quase 500 páginas, de Brasília, a capital ocupada pela xepa do regime militar, chegavam-me roncos dos gorilas, celebrando o 31 de março. Aliás, os gorilas não merecem a associação. Mas era assim que os fardados traidores da democracia eram chamados no tempo retratado na obra.

Muito bem-documentado e muito bem-escrito, o livro de Simon nos planta na América do Sul das quarteladas, costurando com maestria a trama que conecta a ditadura brasileira a Washington, com Brasil e Estados Unidos atuando em paralelo para desestabilizar o Chile de Salvador Allende. Não satisfeita em aniquilar a liberdade em território nacional, a gorilada se esforçava para exportar barbárie para todo o Cone Sul.

A imagem cristalizada do Brasil cordeiro dos Estados Unidos tomba. Como nos demonstra o autor, o presidente Médici tinha suas próprias motivações. Além das questões de ideologia e geopolítica, o Chile dos anos 1970 era um ninho de “subversivos” brasileiros.

Entre esses, nomes notórios, como Darcy Ribeiro, Almino Afonso, José Serra, Carlos Minc. Para estender os tentáculos da repressão, tornava-se urgente golpear a “Cuba do Pacífico”.

A CIA NO CHILE
Por sua vez, o republicano Richard Nixon também encontrava-se incomodado com a ascensão de um socialista ao governo do Chile. A documentação que Simon amealhou nos arquivos americanos é riquíssima. Nas conversas de Nixon com seus assessores, a trama que, anos antes, derrubara Jango no Brasil, surge em frases casuais.

Por exemplo: “Walters é agressivo, criativo, impiedoso e teve muito a ver com o que aconteceu no Brasil em 1964”, comenta orgulhoso o presidente dos Estados Unidos, falando de Vernon Walters, adido militar na embaixada no Rio à época do golpe.

Em 1971, ao visitar a Casa Branca, Médici contou a Nixon que estava em contato com militares chilenos para apear Allende e previu que este desfecho não tardaria. De pronto, o presidente americano, atolado até o pescoço no Vietnã, ofereceu “dinheiro ou outra ajuda discreta”.

Antes mesmo de Allende ser eleito, na verdade, Henry Kissinger, conselheiro de Segurança Nacional e eminência parda da política externa do governo Richard Nixon, já havia decidido o destino de Allende. Na sua avaliação, os Estados Unidos não deveriam “ficar parados e ver um país virar comunista por causa da irresponsabilidade do seu próprio povo”.

“Nixon acreditava que, do México para baixo, apenas ditaduras eram realmente confiáveis e boas para os Estados Unidos. Regimes civis davam dores de cabeça”, escreveu o autor.

A IMPRENSA
Curiosas duas passagens de “O Brasil contra a Democracia” sobre o papel da imprensa brasileira nesta história. Em junho de 1973, na primeira tentativa de derrubar Allende, um cinegrafista argentino filmara a própria morte. Na cena encontrada no rolo de filmes, o militar aparecia apontando a pistola na direção da câmera, até apertar o gatilho.

Com as imagens correndo o mundo, o Globo resolveu dar uma forcinha aos golpistas, publicando uma entrevista em que um jornalista chileno atribuía o assassinato a allendistas. O diário de Roberto Marinho, notório apoiador da ditadura brasileira, só se esqueceu de avisar aos leitores que o jornalista em questão era partidário do Patria y Libertad, o mais notório grupo de extrema direita do Chile.

Na mão oposta, no dia seguinte ao famigerado 11 de setembro, o Jornal do Brasil saiu com uma capa histórica.

Proibido pela censura de dar manchete para o ocorrido no Chile, o saudoso Alberto Dines, então diretor de Redação, soltou uma edição sem manchete alguma. Pela primeira vez, uma primeira página sem título ganhava as bancas.

A obra de Roberto Simon é fundamental, inquietante, triste. Nos anos 1960-1970, a democracia brasileira fora a primeira a escorrer pelo ralo das conspirações que engolfavam a convulsionada América do Sul no auge da Guerra Fria.

Exatos 58 anos depois, o Brasil está de novo na vanguarda, sob ameaças abjetas dos gorilas aboletados no governo de Jair Bolsonaro, eleito após um longo e tenebroso processo de desestabilização. Fico imaginando o que os pesquisadores encontrarão nos arquivos daqui a meio século.

Gabriel Boric que se segure!

Renovar a frota rodoviária: como não fazer política pública, por Marcos Mendes.

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Proposta motivada por interesses privados, sem avaliação de impacto ou transparência

Marcos Mendes, Pesquisador associado do Insper, é autor de ‘Por que É Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil?’

Folha de São Paulo, 09/04/2022

A Medida Provisória 1.112/22 criou o Programa de Aumento da Produtividade da Frota Rodoviária no País – Renovar, anunciado como incentivo à substituição de caminhões antigos por novos.

São muitos os benefícios sugeridos pela Exposição de Motivos da MP: Redução dos custos de fretes, dos acidentes e mortes nas rodovias e da emissão de poluentes. Haveria, também, aumento da eficiência e produtividade no setor de transportes, menor gasto do governo com assistência médica a feridos no trânsito.

Melhorariam as condições de trabalho dos caminhoneiros e cairiam os seus custos de manutenção. Haveria estímulo à indústria de reciclagem e geração de emprego. Até queda da inflação é colocada na lista dos benefícios.

Ainda segundo a Exposição de Motivos, não haveria custo fiscal relevante, porque a principal fonte de financiamento viria das empresas exploradoras de petróleo. Nos seus contratos de exploração de óleo e gás, há a obrigação de investir em pesquisa e inovação. A MP estabelece que recursos aplicados no Programa Renovar contarão no cumprimento da obrigação.

Muitos benefícios e poucos custos! Há motivos para desconfiar.

Não foi apresentado estudo para mensurar os benefícios acima listados. A Exposição de Motivos mostra números não diretamente relacionados a uma simulação do impacto da retirada de caminhões antigos de circulação. Por exemplo, cita estudo do IPEA, segundo o qual “os custos dos acidentes de trânsito em estradas federais (…) são estimados em R$ 12,8 bilhões/ano”. Mas esses se referem a todos os acidentes, e não àqueles gerados por falha mecânica em caminhões velhos.

Muitos outros dados genéricos, de fontes diversas, são empilhados no texto. Fica claro que não se fez o dever de casa de estimar ex-ante o impacto efetivo do programa.

Não são respondidas perguntas básicas. Qual o custo total do projeto? Quais os benefícios que se deixará de obter, ao diminuir investimentos em pesquisa e inovação, substituindo-os pelo financiamento ao Programa (que não representa nem pesquisa nem inovação)? Há experiências internacionais de sucesso que sejam adaptáveis ao contexto brasileiro? Haveria efeitos colaterais adversos como, por exemplo, incentivo a um meio de transporte poluente e ineficiente? Subsidiar é mais eficiente que fiscalizar e retirar das estradas caminhões sem condições de uso? A baixa renda dos caminhoneiros vem de caminhões velhos ou de excesso de caminhões no mercado?

Como a adesão das petroleiras é voluntária, pode não haver recursos suficientes para financiar o programa (a menos que se empurre para a Petrobrás, o que seria mais uma tentativa de intervenção indevida). Por isso, já foi deixada uma porta aberta para entrar mais recursos públicos no jogo.

A MP nomeou como coordenadora do Programa a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI). Trata-se de uma instituição de direito privado, não sujeita a regras orçamentárias, porém financiada por dotações do orçamento federal. Triangulações de verbas entre a ABDI, empresas estatais ou bancos públicos viabilizariam o financiamento com dribles nas regras fiscais.

Mas o problema central é que a MP não limita o programa a caminhões velhos. Ela define como “bem elegível” todo “veículo ou equipamento sobre rodas, motorizado ou não, ou máquina autopropulsionada, que atenda aos critérios de elegibilidade do Renovar”. Um decreto pode ampliar o programa para todo tipo de veículo.

Há décadas a indústria automobilística faz lobby por subsídios à renovação da frota. No Governo Temer, tentou-se emplacar um “Programa de Sustentação Veicular”, que tinha “foco na pegada de carbono para um carro verde” e visava a substituição de até 1 milhão de automóveis por ano.

Será que não haveria outras prioridades ambientais, como a contenção do desmatamento, com maior impacto, e que não subsidiaria grandes empresas e consumidores de alta renda?

Vale lembrar que quando se deu crédito subsidiado do BNDES para a compra de caminhões, a título de renovar a frota e gerar todos os benefícios agora novamente elencados, o resultado foi muito lucro para vendedores de caminhões e um excesso de oferta de fretes, que desembocou na greve dos caminhoneiros.

Mais uma vez, desenha-se uma política pública para atender interesses privados, buscando-se uma narrativa para apresentá-la como de interesse público

Autora de ‘Como a China escapou da terapia de choque’ descreve como Pequim tomou direção oposta à da Rússia pós-soviética

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Em entrevista ao GLOBO, economista Isabella Weber diz que não existe um ‘modelo chinês’ a ser transplantado, mas que outros países podem tirar lições da experiência da potência asiática

André Duchiade

O Globo – 18/07/2021

Na década de 1980, um dos grandes debates entre os líderes chineses que sucederam Mao Tsé-tung era como reformar a economia e gerar crescimento. A China deveria adotar uma terapia de choque que destruísse o funcionamento da economia socialista, ou poderia usar mecanismos da economia planificada para assim criar um mercado?

Como essa discussão se desenrolou e conduziu a uma política diferente da seguida pelas ex-repúblicas soviéticas e o Leste Europeu é o tema de um dos livros mais comentados no campo da economia deste ano: “How China Escaped Shock Therapy” (“Como a China escapou da terapia de choque”).

Sua autora, a professora de Economia Isabella Weber, da Universidade de Massachusetts em Amherst, ainda se surpreende com o sucesso de sua obra de estreia, uma das indicações de leitura do Financial Times. Em entrevista ao GLOBO, ela fala sobre a economia chinesa ontem e hoje, e sobre o que Pequim aprendeu com o Brasil.

No livro, várias vezes a senhora afirma que o caminho seguido pela China não era inevitável. Qual foi a principal diferença da transição chinesa para uma economia de mercado em comparação a outros países socialistas?

A comparação com a Rússia, que seguiu uma política de terapia de choque, é o que mais chama a atenção. As circunstâncias políticas eram muito diferentes entre os países, claro, mas as políticas econômicas foram drasticamente distintas. Após a implementação da terapia de choque, a Rússia passou por um período de recessão mais prolongado do que os EUA na década de 1930. Isso também desencadeou em uma crise social muito profunda. Em contraste, na China, embora também tenha havido tensões sociais e desigualdades, em vez de uma recessão profunda e hiperinflação, houve um crescimento muito rápido, descrito como sem precedentes em ritmo e escala na História moderna. E, no lugar da hiperinflação, houve uma estabilidade geral de preços.

O que era a terapia de choque, exatamente?

Trata-se de um pacote de políticas específico, que deveria ser composto por quatro elementos: primeiro, a liberalização de preços o mais rápido possível, combinada com a austeridade macroeconômica. A liberalização dos preços deveria provocar um choque no sistema e levá-lo a um novo estágio. A austeridade macroeconômica, por sua vez, visava estabilizar o nível geral de preços. Essas medidas deveriam ser seguidas por privatizações e liberalização comercial. O elemento de choque, de fato, era a liberalização de preços da noite para o dia, o chamado Big Bang. A terapia de choque é uma doutrina de transição, que assume que a economia está mudando de equilíbrio.

Por que a China buscou um caminho diferente?
A China escapou da terapia de choque antes que ela fosse adotada na Europa Oriental ou na Rússia, antes de suas consequências serem conhecidas. Por que não a adotaram? Por terem à disposição uma abordagem alternativa para a reforma, o chamado sistema de duas vias. Este sistema se desenvolveu a partir das reformas agrícolas e depois foi transferido para a economia industrial urbana. Em vez de dar um choque no sistema, o governo chinês manteve relações de comando que eram características da economia planificada. Ao lado disso, permitiu também que as unidades produzissem acima do planejado, para o mercado. À medida que começaram a produzir para o mercado, as próprias unidades de produção mudaram a sua lógica de operação.

As duas abordagens, a chinesa e a de choque, tiveram algum papel nos resultados políticos posteriores?
Sim. Na Rússia, o desmonte do Estado comunista era considerado uma condição indispensável para a adoção da terapia de choque. Portanto, não é que a terapia de choque tenha ocasionado a transição política, e sim que transição política provocou a terapia de choque. Já os chineses chegaram perto de adotar a mesma doutrina, mas, sempre que quase o fizeram, recuaram. Em última análise, o compromisso com a estabilidade social e política e com o monopólio de poder do Partido Comunista era tão forte que parecia perigoso demais. Isso aconteceu porque o Partido Comunista continuava no poder, e sua liderança ainda era influenciada por pessoas que eram da primeira geração revolucionária. A primazia do Estado comunista era fundamental.

Podemos especular sobre quais teriam sido seus efeitos?
Não é inconcebível que a terapia de choque na China tivesse desencadeado um caos econômico tão dramático que poderia ter induzido uma transição política. É uma questão aberta o que teria acontecido politicamente, mas poderia ter havido consequências políticas de alcance muito amplo.

A senhora também discute como os reformistas buscam inspiração em outros lugares, inclusive com o Brasil…

No final dos anos 1980, o problema da inflação começou a ser bastante grave na China. Discutia-se muito se seria possível alcançar a industrialização sem inflação, ou se ela poderia ser administrada. As experiências latino-americanas se tornaram assim muito relevantes para Pequim. Na época, o milagre brasileiro já estava há muito encerrado, mas as conquistas da industrialização ainda estavam aí. Então, quando a delegação chinesa visitou o Brasil, impressionou-se muito, com a modernidade de Brasília, com o número de carros, os padrões de vida e assim por diante. Portanto, a China estava olhando para o Brasil em termos de seu nível de desenvolvimento. Ao mesmo tempo, tentou aprender com a experiência inflacionária brasileira para evitar algumas das dificuldades.

E quais foram os aprendizados?
Há uma grande controvérsia de quais foram exatamente as implicações dessas aulas brasileiras. Alguns dizem que uma delegação voltou do Brasil em 1988 e disse que a inflação é inevitável no processo de desenvolvimento, e, portanto, não deveriam se preocupar muito com isso. Mas, a meu ver, voltaram do Brasil e disseram: sim, eles disseram que a inflação é inevitável. Mas isso não quer dizer que não temos que nos preocupar com isso, e, sim que devemos administrá-la com muito cuidado.

Em suas palestras e entrevistas, a senhora jamais afirma que a China ofereça uma alternativa real de modelo econômico. Por quê?

O modelo da China foi desenvolvido de uma forma gradual, sempre levando as circunstâncias históricas específicas locais extremamente a sério, e introduzindo lições de outros países a partir de reflexões sobre quais eram as condições nesses outros países. Portanto, se levarmos essa lógica a sério, não acho que podemos agora pegar o modelo chinês como um todo e apenas transplantá-lo para outro contexto. Mas isso não significa que não haja lições da experiência de desenvolvimento chinesa que possam ser adaptadas.

E que lições seriam essas?
Uma grande lição no contexto do declínio do neoliberalismo é, claro, um papel muito mais ativista do Estado, que envolve a participação do Estado em mercados específicos, o que é totalmente contra a lógica da economia neoliberal, onde você quer ter preços livres e ajustáveis. No caso das recentes iniciativas de investimento público nos Estados Unidos, penso que haja pessoas estudando cuidadosamente a prática chinesa, e, em seguida, tirando suas próprias lições, como os próprios chineses fizeram. Por outro lado, o rápido aumento do sucesso econômico da China ajudou a legitimar a política industrial, o investimento público e um papel mais ativista do Estado dentro dos EUA.

Quais especificidades do período que a senhora estudou permitiram ao governo se mobilizar durante a pandemia?
Passou-se muito tempo entre os anos 1980 e 2020. Mas um elemento-chave que veio junto com a não adoção da terapia de choque é que o Estado manteve um envolvimento bastante direto nos chamados patamares de comando da Economia, ele continua a ter um forte envolvimento nos principais setores econômicos. O Estado também continua na parte crucial do abastecimento de alimentos, e, em particular, de grãos, com políticas que são notavelmente semelhantes a algumas políticas tradicionais chinesas. Existem enormes reservas estatais e um sistema comercial estatal, que participam do mercado sempre que há fortes flutuações de alimentos básicos. Isso permitiu o tipo de enorme quarentena que o Estado chinês impôs nas primeiras semanas da pandemia, quando era importante ter um sistema de abastecimento de alimentos que permitisse às pessoas ficarem em casa.

Quais perigos a senhora entende haver nesse contexto de extrema rivalidade entre Estados Unidos e China?
Essa enorme tensão geopolítica é provavelmente o maior risco atual não só para a economia chinesa, mas para o mundo como um todo. Há enormes desafios que só podem ser enfrentados pelas maiores economias do mundo em colaboração, como percebemos na pandemia, e também é o caso da mudança do clima. Em vez disso, há uma competição cada vez mais acirrada, que parece ser suspensa para cooperação em raríssimos casos. Vejo esse como o maior desafio mesmo para a economia chinesa.

E quais outros desafios você identifica?
A reorientação da economia chinesa para um modelo mais voltado para a demanda doméstica, o que, é claro, assumiu uma nova urgência no contexto de tensões crescentes em torno da guerra comercial. Outro grande desafio é a contínua dependência tecnológica em áreas-chave, como semicondutores. Além disso, há, claro, todo o desafio de como reestruturar a economia para um modelo mais verde e mais sustentável. E isso tem implicações mundiais, pois, como sabemos, a China tem sido a oficina do mundo, e tem feito todos os negócios sujos para o resto do mundo.

Os desafios da educação pós-pandemia, por Mozart Neves Ramos.

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Escola deve transformar base conteudista em aprendizados essenciais

Mozart Neves Ramos, Membro do Conselho da Mind Lab e titular da Cátedra Sérgio Henrique Ferreira de Estudos Avançados da USP (Ribeirão Preto); ex-secretário da Educação de Pernambuco

Folha de São Paulo, 10/04/2022

Desde o fechamento das escolas em razão da pandemia de Covid-19, há dois anos, e à medida que o número de casos da doença crescia país afora, toda a comunidade escolar passou por inúmeros percalços. Reflexos disso são sentidos até hoje, mesmo com a vacinação avançada, inclusive entre crianças, e as aulas presenciais retomadas em todas as regiões do Brasil.

Consenso entre especialistas, a demora em reabrir as escolas comprometeu ainda mais a qualidade do ensino. O relatório “Resposta Educacional à Pandemia de Covid-19 no Brasil”, conduzido pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), mostrou que as escolas brasileiras passaram cerca de 279 dias fechadas no primeiro ano de pandemia.

Esse cenário provocou um grande retrocesso educacional aferido pelos níveis de proficiência escolar nas redes públicas e privadas. Os resultados recentes do Saresp (Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo) revelaram que um estudante da rede estadual paulista terminou o ensino médio em 2021 com uma defasagem de quase seis anos em matemática e, em língua portuguesa, quatro.

O que mais preocupa é que estamos falando da primeira rede escolar a oferecer atividades de ensino remoto e uma das primeiras a retomar as aulas presenciais. Ainda assim podemos ver grandes perdas em todas as etapas escolares.

As primeiras avaliações também mostram que o impacto foi mais acentuado nas crianças em fase de alfabetização ou concluindo o último ano do ensino fundamental. Ainda de acordo com os dados do Saresp, as crianças concluintes desta etapa tiveram um retrocesso em matemática equivalente aos resultados de 2013. Para se ter uma ideia mais tangível, 61,6% dos estudantes do quinto ano não sabem resolver uma simples questão de subtração como esta: “uma construtora encomendou 10 mil parafusos a uma loja, que possuía apenas 3.825 em estoque. Quantos itens são necessários para completar a encomenda?”. Em língua portuguesa, a situação é igualmente grave. Um aluno do quinto ano em 2021 apresenta uma proficiência de um estudante do terceiro. Se isto ocorre em São Paulo, é ainda mais preocupante quando nos deparamos com o restante do país.

Ainda em 2020, segundo o Censo Escolar, 2.449 municípios não tiveram nenhuma aula ao vivo. E apenas 417 cidades tiveram estrutura suficiente para oferecer aulas online de maneira satisfatória. O censo mostrou também que a internet está disponível em 89,4% das escolas da rede federal, 74,1% nas da rede estadual e em apenas 39,8% nas municipais. Para além desses problemas estruturais, ficou nítida também a defasagem de habilidades socioemocionais de alunos e professores, já que o convívio entre pares sempre foi importante para cultivarmos respeito e empatia.

Por outro lado, entendo que o cenário pós-pandemia pode ser também uma janela de oportunidade para mudar nossa maneira de ensinar e aprender. É hora de inovar com base em dados e evidências. É necessário que a escola passe por uma metamorfose, que transforme sua base conteudista em aprendizados essenciais para a vida atual e futura dos estudantes, que os prepare de maneira autônoma para fazer escolhas em seus projetos de vida. Para isso, temos a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) como uma bússola efetiva, que vai nos orientar quanto às demandas reais dos alunos.

Se ficarmos presos ao retrovisor, o desastre será inevitável. Mas, se tivermos a coragem de olhar para onde aponta o farol e fazer as mudanças necessárias, talvez a educação brasileira tenha chances. Para isso, devemos buscar o que este país tem de melhor, pois sou daqueles que entendem que o Brasil pode aprender com o Brasil. Precisamos de líderes educacionais, capazes de romper com o atual status quo —e isso, infelizmente, está nos faltando.

São as entranhas brasileiras, por Jânio de Freitas.

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Demonstrações que Bolsonaro deveria ser investigado com rigor não cessam

Jânio de Freitas, Jornalista.

Folha de São Paulo, 10/04/2022

Nenhum presidente legítimo, desde o fim da ditadura de Getúlio em 1945 —e passando sem respirar sobre a ditadura militar – deu tantos motivos para ser investigado com rigor, exonerado por impeachment e processado, nem contou com tamanha proteção e tolerância a seus indícios criminais, quanto Jair Bolsonaro. Também na história entre o nascer da República e o da era getulista inexiste algo semelhante à atualidade. Não há polícia, não há Judiciário, não há Congresso, não há Ministério Público, não há lei que submeta Bolsonaro ao devido.

As demonstrações não cessam. Dão a medida da degradação que as instituições, o sistema operativo do país e a sociedade em geral, sem jamais terem chegado a padrões aceitáveis, sofrem nos últimos anos. E aceitam, apesar de muitos momentos dessa queda serem vergonhosos para tudo e todos no país.

Nessa devastação, Bolsonaro infiltrou dois guarda-costas no Supremo Tribunal Federal. Um deles, André Mendonça, que se passa por cristão, na pressa de sua tarefa não respeita nem a vida. Ainda ao início do julgamento, no STF, do pacotaço relativo aos indígenas, Mendonça já iniciou seu empenho em salvá-lo da necessária derrubada.

São projetos destinados a trazer a etapa definitiva ao histórico extermínio dos indígenas. O pedido de vista com que Mendonça interrompeu o julgamento inicial, “para estudar melhor” a questão, é a primeira parte da técnica que impede a decisão do tribunal. Como o STF deixou de exigir prazo para os seus alegados estudiosos, daí resultando paralisações de dezenas de anos, isso tem significado especial no caso anti-indígena: o governo argumentará, para as situações de exploração criminosa de terras indígenas, que a questão está sub judice. E milicianos do garimpo, desmatadores, contrabandistas e fazendeiros invasores continuarão a exterminar os povos originários desta terra.

Muito pouco se fala desse julgamento. Tanto faz, no país sem vitalidade e sem moral para defender-se, exangue e comatoso. Em outro exemplo de indecência vergonhosa, nada aconteceu à Advocacia-Geral da União por sua defesa a uma das mais comprometedoras omissões de Bolsonaro. Aquela em que, avisado por um deputado federal e um servidor público de canalhices financeiras com vacinas no Ministério da Saúde, nem ao menos avisou a polícia. “Denunciar atos ilegais à Polícia Federal não faz parte dos deveres do presidente da República”, é a defesa.

A folha corrida da AGU é imprópria para leitura. Mas, com toda certeza, não contém algo mais descarado e idiota do que a defesa da preservação criminosa de Bolsonaro a saqueadores dos cofres públicos. Era provável que a denúncia nada produzisse, sendo o bando integrado pela máfia de pastores, ex-PMs da milícia e outros marginais, todos do bolsonarismo. Nem por isso o descaso geral com esse assunto se justifica. Como também fora esquecido, não à toa, o fuzilamento de Adriano da Nóbrega, o capitão miliciano ligado a Bolsonaro e família, a Fabrício Queiroz, às “rachadinhas” e funcionários fantasmas de Flávio, de Carlos e do próprio Bolsonaro. E ligado a informações, inclusive, sobre a morte de Marielle Franco.

Silêncio até que o repórter Ítalo Nogueira trouxesse agora, na Folha, duas revelações: a irmã de Adriano disse, em telefonema gravado, que ele soube de uma conversa no Planalto para assassiná-lo. Trecho que a Polícia Civil do Rio escondeu do relatório de suas, vá lá, investigações. O Ministério Público e o Judiciário estaduais e o Superior Tribunal de Justiça não ficam em melhor posição, nesse caso, do que a polícia. São partes, no episódio de implicações gravíssimas, de uma cumplicidade que mereceria, ela mesma, inquérito e processo criminais. O STJ determinou até a anulação das provas no inquérito das “rachadinhas”, que, entre outros indícios, incluía Adriano da Nóbrega.

Desdobrados nas suas entranhas, os casos aí citados revelariam mais sobre o Brasil nestes tempos militares de Bolsonaro do que tudo o mais já dito a respeito. Mas não se vislumbra quem ou que instituição os estriparia.

O sono dos motoristas de aplicativo, por Juliano Spyer.

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Quem tem contas chegando e filhos para alimentar ou tem insônia na cama, ou dorme no volante de exaustão

Juliano Spyer, Antropólogo, pesquisador do Cecons/UFRJ, autor de Povo de Deus (Geração 2020) e criador do Observatório Evangélico.

Folha de São Paulo, 09/04/2022

Um anônimo dividiu os holofotes na semana passada com a bofetada de Will Smith em Chris Rock durante a premiação do Oscar. Kaique Reis é o motorista que admitiu corajosamente ter cochilado no volante e, assim, causado a batida envolvendo o ex-BBB Rodrigo Mussi.

O acidente me dá a oportunidade de compartilhar algumas conclusões sobre a condição desses trabalhadores. Escrevo como antropólogo que estuda desigualdade no Brasil e que, por vício profissional, há muitos anos entrevista informalmente –para passar o tempo durante os traslados– motoristas de aplicativo. Aqui estão os itens mais importantes:

1. Antes da pandemia, muitos motoristas expressavam sua gratidão pela oportunidade aberta pelos aplicativos de transporte, que, para eles, representavam uma fonte de renda quando outras não estavam disponíveis, e também algo para fazer diferente de ficar em casa flertando com a depressão. Alguns motoristas, os mais pobres, pediram demissão de seus trabalhos CLT apostando nas vantagens do empreendedorismo para ampliar seus rendimentos pelo próprio esforço. Hoje o mesmo trabalho é comparado recorrentemente a uma forma de exploração a que a pessoa se submete pela ausência de outros meios de sustento.

2. Antes da pandemia e agora, os motoristas explicam que esse trabalho só é rentável quando a pessoa dedica a ele muitas horas por dia e muitos dias por semana. A vantagem financeira vem da multiplicação do baixo rendimento por corrida pelas muitas corridas –em torno de 30– feitas ao longo do dia.

3. Nos últimos anos, a crise econômica, os aumentos do preço dos combustíveis, a pandemia, que reduziu muito a circulação de pessoas nas cidades, as taxas altas pagas aos aplicativos e reajustes de preço praticados inferiores à inflação corroeram a renda desses motoristas.

4. Por causa dessas condições, uma parte dessa força de trabalho abandonou a atividade, reduzindo a disponibilidade do serviço, enquanto outras aprendem “hacks” em tutoriais na internet para selecionar as corridas que pagam melhor ou circular apenas nas áreas mais lucrativas da cidade.

5. Como outros tantos brasileiros pobres e/ou precarizados, muitos motoristas de aplicativo fizeram malabarismos com empréstimos e cartões de crédito durante a pandemia para sobreviver, assumindo o ônus de ficar com o nome sujo na praça. Pois os carros usados nesse serviço devem ser relativamente novos, os motoristas sem outras alternativas de renda, com o nome sujo e endividados, recorrem a serviços de locação.

Você mesmo pode averiguar isso perguntando a motoristas nas próximas vezes que utilizar esse serviço.

Em resumo, o motorista hoje entra no carro para trabalhar em dívida, tendo que cobrir o custo da gasolina e do carro, e só para quando ultrapassa esse valor e alcança uma meta de rendimento. Geralmente o tempo de expediente mínimo é de 12 horas dirigindo.

Não sei detalhes sobre o caso de Kaique Reis, o motorista que levava o ex-BBB Mussi. Mas, tendo como referência o panorama apresentado acima, a responsabilidade por acidentes nesses casos parecem ter menos a ver com escolhas individuais do que com as exigências de uma rotina desumana de trabalho. O motorista tem a alternativa de ficar com insônia pensando nas dívidas na cama ou dirigir até a exaustão para tentar quitá-las.

Uma solução fácil aqui seria responsabilizar as empresas de aplicativos, seguindo uma argumentação da luta de classes e da exploração do trabalho. Mas esses motoristas provavelmente estariam ainda mais vulneráveis sem essa chance para se manterem ativos em um contexto de crise acentuada pela desaceleração econômica que a pandemia produziu.

Conversei com motoristas de aplicativo sobre o caso. Eles reconhecem que, racionalmente, é responsabilidade de quem dirige saber quando precisa descansar. Ao mesmo tempo, entendem e se identificam com os prováveis dilemas do colega, que é o mesmo deles: estar desempregado e precisar trabalhar.

Eles sentem pelo provável destino de Kaique: porque ele levava um passageiro famoso, por ter admitido candidamente seu erro em frente a câmeras de TV e pela publicidade ruim que o acidente causou, ele deve retornar ao anonimato responsabilizado pela dívida pelo carro destruído e desligado do aplicativo, portanto, sem ter seu ganha pão.

Até quantos anos uma pessoa pode viver? por Drauzio Varella.

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Para que mais indivíduos cruzem a faixa dos cem anos, serão necessárias soluções para doenças como câncer e Alzheimer

Drauzio Varella, Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

Folha de São Paulo, 06/04/2022

Ao morrer, em 1997, a francesa Jeanne Calment tinha 122 anos e cinco meses. É considerada a pessoa mais longeva de quantas viveu. Sua competidora mais próxima foi Sarah Knauss que morreu em 1999, com 119 anos.

No início do século 20, a expectativa média de vida nos países mais ricos da Europa mal chegava aos 40 anos. Quando o século acabou estava perto dos 80. O mesmo fenômeno se repetirá na passagem para 2100?

Em 1825, o demógrafo britânico Benjamin Gompertz enunciou a “lei da mortalidade”, segundo a qual ao redor dos 30 anos de idade o risco de morrer começa a aumentar de forma exponencial, até um horizonte em que o risco final alcança 100%.

O limite de duração da existência humana divide os pesquisadores em dois grupos: os que julgam estarmos nas imediações do teto e os que defendem não haver evidências de que exista essa limitação.

Em janeiro deste ano, a Nature trouxe uma discussão sobre esse tema. Tomo a liberdade de resumir a opinião de alguns especialistas ouvidos pela revista.

Um estudo conduzido entre italianos com 105 anos ou mais pelo grupo de Elizabetta Barbi, da Universidade Sapienza, de Roma, mostrou que a curva de Gompertz atinge um platô nessa idade, isto é, para de aumentar exponencialmente.

Embora estável, a taxa de mortalidade a partir dos 105 é alta: 50% a cada ano que passa.

Você, leitor otimista, pode interpretar esse dado com boa vontade. Se a cada ano morrem 50%, a outra metade sobrevive sem que seja possível estabelecer um limite claro para a duração da vida.

Uma análise matemática de Caleb Finch, da Southern California University, calculou que esse limite seria de 120 anos. A estimativa é compatível com o recorde estabelecido por Jeanne Calment.

Progressos capazes de estender a expectativa média de vida da população aumentam as chances de alguns privilegiados alcançarem idades extremas. A mortalidade infantil e os acidentes, por exemplo, impedem que uma pessoa com genética favorável complete cem anos.

A expectativa média de vida na Suécia e no Japão tem aumentado três meses por ano, desde 1840. Esse aumento persistirá? A julgar pelos dados obtidos no Reino Unido e nos Estados Unidos, não, já que neles a expectativa média cresceu pouco nos últimos dez anos. Foi encurtada pelas mortes prematuras por abuso de álcool, drogas ilícitas, suicídios, obesidade e transtornos psiquiátricos.

Em 2020, a ONU estimou em 573 mil os centenários do mundo. Esse número é 20 vezes maior do que o de 50 anos atrás.

Em 1946, as 30 pessoas mais longevas do mundo tinham em média 99 anos. Em 2016, essa média atingiu os 109 anos.

Continuará a crescer nesse ritmo?

É provável que não. Hoje, os que ultrapassam cem anos chegam a tal idade em maior número e em melhores condições de saúde. Mas nesse grupo a expectativa de vida remanescente tem se mantido a mesma nos últimos 80 anos.

Você, leitora inconformada, poderá argumentar: se a expectativa média de vida duplicou no decorrer do século passado, por que não poderei viver 150 anos?

Vamos deixar claro dois conceitos. A expectativa média de vida se refere à média de anos vividos por determinada população. Essa expectativa no Brasil, em 1940, não passava de 45 anos, enquanto em 2019 atingia 76, ganho obtido às custas da redução da mortalidade infantil e das mortes na infância e na juventude —graças às vacinas, ao soro caseiro, aos antibióticos, as melhores condições de higiene e à assistência médica.

A longevidade só leva em conta o grupo que viveu mais tempo em determinado grupo populacional.

Considere o caso das mulheres japonesas. É a maior expectativa média de vida na Terra: 87 anos. Como esse número se refere à média, o número das que passam dos cem anos é maior do que o de brasileiras ou de moçambicanas, mas isso não impede que uma moçambicana quebre o recorde mundial de longevidade.

Mesmo que não exista um limite fisiológico formal para a duração da vida, cruzar as fronteiras atuais da longevidade vai requerer grandes avanços nas ciências médicas.

Não se tratará apenas de reduzir a mortalidade infantil e evitar as mortes precoces, mas de encontrar soluções para doenças cardiovasculares, reumatológicas, câncer, diabetes e ainda ter que lidar com degenerações neurológicas, como a doença de Alzheimer.

Você quer viver muito, não quer? Eu também, mas não a qualquer preço.