A quase irrelevância da ONU, por Oded Grajew.

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Na prática, organização é dirigida pelos cinco países que têm poder de veto

Oded Grajew, Idealizador do Fórum Social Mundial, é presidente emérito do Instituto Ethos e conselheiro do programa Cidades Sustentáveis e da Rede Nossa São Paulo

Folha de São Paulo, 17/03/2022

No último dia 28 de fevereiro, reportagem publicada nesta Folha trazia o título: “Embora sem ações efetivas contra a guerra na Ucrânia, ONU ainda é relevante, dizem analistas”.
Será? A Organização das Nações Unidas foi criada em 1945, logo após a 2ª Guerra Mundial, para “preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, unir forças para manter a paz e a segurança internacionais e promover o progresso econômico e social de todos os povos” (trechos do preâmbulo da Carta da ONU).
Por que as Nações Unidas têm falhado tanto no cumprimento de sua missão? Vejamos.

Os órgãos principais da ONU são a Assembleia-Geral (AG), que reúne todos os países membros, e o Conselho de Segurança (CS), composto por 15 membros, dos quais 5 são permanentes: China, Reino Unido, França, Rússia e Estados Unidos. Cada um dos membros permanentes tem direito de vetar qualquer resolução do CS. Por ironia, os cinco países encarregados de manter a paz no mundo têm os maiores orçamentos militares e são os maiores fabricantes de armas do planeta.

O CS é, de longe, o órgão mais poderoso da ONU. É o conselho que recomenda à Assembleia-Geral admissão de novos membros e suspensão ou expulsão de integrantes. O secretário-geral da ONU é indicado pela AG mediante recomendação do CS.

Quando é de interesse de qualquer membro permanente do CS, até a Carta da ONU é desrespeitada. O artigo 27 do documento determina que, nas decisões do Conselho de Segurança, o país que estiver envolvido nas resoluções não poderia votar. A Rússia, contudo, votou contra a resolução que condenava sua invasão à Rússia e a derrubou por ter direito a veto.

As decisões que têm efeitos jurídicos e práticos cabem apenas ao CS. Na prática, a ONU é dirigida por cinco países onde cada um, por seu direito a veto, tem o poder de aprovar ou rejeitar qualquer ação ou medida proposta por outros países ou até pela maioria das nações. Tal governança paralisa e torna a ONU quase insignificante no cenário internacional.

Digo “quase” porque a ONU tem o potencial, por suas estruturas, conhecimentos acumulados e qualidade dos seus integrantes, de ser um ator relevante na governança global. Criou agências e instituições, elaborou propostas e convenções em muitas áreas. Tem um orçamento para 2022 de US$ 3,12 bilhões.

Entretanto seria necessário rever a sua Carta para torná-la uma organização democrática, ganhando legitimidade e legalidade para implementar suas decisões. Basta aplicar o artigo 109, que determina a instalação de uma grande conferência, para reexaminá-la. É uma grande oportunidade. Mesmo que as resoluções desta conferência (e qualquer mudança na Carta) tivessem, novamente, que ser aprovadas pelo CS, a força política das decisões barraria qualquer resistência às mudanças.

O mundo, mais do que nunca, precisa de uma ONU relevante, capaz de cumprir a sua missão, sua própria razão de existir.

O desmanche da Petrobras, e como pará-lo, por Antônio Martins.

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Um feixe de políticas esdrúxulas está desmembrando e inviabilizando a empresa pública que mais pode contribuir com a reconstrução do Brasil. O PPI, que fez os combustíveis dispararem, é a ponta de um iceberg. Vamos examiná-lo a fundo

Antonio Martins é editor de Outras Palavras

Outras Palavras – 15/03/2022

Talvez nada expresse tão bem o declínio da política institucional brasileira como a ausência de um debate real sobre os preços dos combustíveis e a Petrobras. As consequências do mega-aumento da última semana estão explodindo em toda parte. Em São Paulo, um botijão de gás chegava a ser vendido, no sábado, por R$ 150 – o que equivale a dois dias e sete horas de trabalho, dos que ganham salário mínimo. Quem foi a uma feira livre no fim de semana deu-se conta de que os preços subiram entre 10% e 20% e a relação entre a alta e a gasolina estava na boca de todos, nas barracas. Mas você não encontrará, nos jornais brasileiros ou na agenda de debates do Parlamento – nem agora, nem no momento de sua implantação — o mínimo sinal de um exame efetivo a respeito da política de Preço de Paridade de Importação, o PPI, que determina estes reajustes.

Ela está relacionada a outro assunto desaparecido: o desmonte da Petrobras. Vamos examiná-lo explorando a fundo quatro movimentos aparentemente esdrúxulos e fora de qualquer lógica, inclusive a empresarial e as “de mercado”.

São eles: a) os preços estratosféricos dos combustíveis; b) os lucros descomunais de nossa estatal petroleira; c) a transferência da quase totalidade destes lucros para os acionistas privados, especialmente fundos internacionais; d) como resultado final, a redução drástica dos investimentos da empresa e o abandono, por ela (na contramão do que fazem todas as suas congêneres), das atividades econômicas que podem garantir seu futuro. A essência do neoliberalismo, no plano político, é naturalizar as decisões, apresentando-as como “as únicas possíveis”. “Não há alternativas”, ensinou Margaret Thatcher. Nosso breve estudo tentará demonstrar o contrário.

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Adotado em outubro de 2016, quando Michel Temer governava e Brasil e Pedro Parente dirigia a Petrobras, (PPI – preço de paridade de importação – elevou os preços dos combustíveis entre 71,5% (botijão do gás de cozinha) e 73,67% (diesel), desde então1. Os índices são 2,3 vezes maiores que a alta da inflação no período (30,87%), medida pelo IBGE. Apesar desta enorme disparidade, o PPI parece ter se tornado uma espécie de vaca sagrada. Bolsonaro afirma não ter poderes para alterá-lo. Nenhum dos projetos em tramitação no Congresso, sobre preços de combustíveis, o questiona (o PL 1.472/2021, aprovado pelo Senado em 11/3, chega a incorporá-lo em lei. O economista Nelson Barbosa, visto pela mídia como voz influente entre os conselheiros econômicos de Lula, julga sua lógica correta.

Este aparente consenso baseia-se num conceito ilusório e num truque retórico. Afirma-se a existência de um “preço internacional dos combustíveis”. E sustenta-se que contrariá-lo significaria oferecer “subsídios” – ou seja, levar o conjunto da sociedade a pagar por produtos que, além de mais consumidos pelos mais ricos, contribuem para o colapso climático. Diante da elevação internacional das cotações de petróleo, na sequência da guerra na Ucrânia, o país deveria, ainda que contrariado, resignar-se.

Ocorre que “preço internacional dos combustíveis” é uma ficção. Há, é claro, um preço de mercado para as compras e vendas internacionais de petróleo bruto. Mas esta tabela demonstra que os preços internos dos derivados praticados por cada país têm enorme variação entre si. Ainda que excluídos Venezuela, Irã e Líbia (onde as cotações são irrisórias), a gasolina, por exemplo, oscila entre US$ 0,13 [R$ 0,63] por litro e US$ 2,831 [R$ 14,43]. Ou seja, a variação se dá numa escala de 1 para 23. É óbvio, portanto, que não existe nem sombra de um preço “natural” para os combustíveis.

Um exame mais atento da tabela permite enxergar, grosso modo, dois padrões. Os países que dependem do petróleo importado – em especial os localizados na Europa – cobram caro pelos derivados. É o caso, por exemplo, da Suécia (US$ 2,294 ou R$ 11,69, por litro da gasolina), Alemanha (US$ 2,183 ou R$ 11,13), Itália (US$ 2,116 ou R$ 10,79), França (US$ 2,095 ou R$ 10,68), ou Espanha (US$ 1,90 ou R$ 9,69). Os Estados Unidos, que produzem e consomem muito, estão numa espécie de meio-caminho (US$ 1,178, ou R$ 5,70). Vale notar que, em todos estes países, embora mais alto nominalmente, o preço do combustível é muito inferior ao brasileiro, se ponderado o poder aquisitivo de cada sociedade2.

Mas nos países que exportam ou são autossuficientes em petróleo, as cotações são totalmente distintas. É o caso de Angola (US$ 0,337 ou R$ 1,71), Rússia (US$ 0,373 ou R$ 1,90), Nigéria (US$ 0,40 ou R$ 2,04), Malásia (US$ 0,491 ou R$ 2,50 ) Iraque (US$ 0,514 ou R$ 2,62 ), ou Colômbia (US$ 0,624 ou R$ 3,18)3.

Em que grupo está o Brasil? A descoberta das jazidas do pré-sal produziu, a partir de 2013, um grande salto da produção – de 2 para 2,9 milhões de barris por dia, em apenas oito anos. Mas esta formação geológica, onde estão algumas das descobertas petrolíferas mais importantes das últimas duas décadas, pode conter, segundo estudos independentes, 176 bilhões de barris ou mais – o que colocaria o país na condição de dono da terceira maior reserva do mundo. Graças a ela, nos tornamos, a partir de 2014, importantes exportadores de petróleo: vendemos 1,3 milhão de barris por dia, em 2021.

E há duas condições especiais. A primeira é a abundância incomum do pré-sal, de onde vêm cerca de 70% do petróleo brasileiro. Um dos campos, o de Búzios, tornou-se o maior do mundo em águas profundas. Só dele foram extraídos 674 mil barris num único dia de junho de 2020 – mais que toda a produção da Índia, ou do Egito. A previsão é chegar, em alguns anos, a 2 milhões de barris de petróleo ultraleve, o de melhor qualidade.

A segunda condição é a excelência tecnológica e capacidade de inovação da Petrobrás, reconhecida por seguidos prêmios internacionais. Em Búzios, por exemplo, a extração teve de vencer uma lâmina d’água de 1.900 metros. Graças a estes dois fatores, o petróleo é retirado a preços extraordinariamente baixos: entre US$ 5 e US$ 6 por barril no pré-sal – contra mais de US$ 40 do petróleo extraído por fragmentação rochosa (fracking) nos Estados Unidos.

Com base nestes fatos, o vice-presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobras (Aepet), Felipe Coutinho, estimou, em novembro do ano passado, a gigantesca diferença entre os preços de produção do petróleo brasileiro e os impostos à sociedade pelo PPI. Coutinho notou que o preço médio de extração (lifiting) subia, após o acréscimo dos impostos e custos de frete, a US$ 20,16 o barril. Somando-se refino, chegava-se a, no máximo, US$ 27 o barril.

Sabendo que este equivale a 159 litros e que a cotação do dólar, à época, era semelhante à de hoje (R$ 5,10), chegava-se ao custo médio, nas refinarias da Petrobras, de R$ 0,90 por litro de derivado de petróleo. Com o aumento do último dia 10, a companhia passou a cobrar, dos distribuidores, R$ 3,86 pela gasolina e R$ 4,51 pelo diesel. Sua margem de ganho atingiu, respectivamente 328% e 401%.

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Fica claro, por estes números, como é absurda e interesseira a ideia de que é preciso subsidiar os combustíveis, para reduzir o preço final pago pela população. Basta anular o PPI e adotar uma política de preços que leve em conta fatores como o poder aquisitivo dos brasileiros, o controle da inflação, a necessidade de desestimular o transporte individual e transferir recursos para a transição energética e, obviamente, o justo lucro da Petrobras.

Os preços baixarão de modo expressivo, sem que a sociedade tenha de dispender, para isso, um único centavo.
Mas quais seriam, então, os objetivos do PPI? Ele expressaria um desejo sádico do ministro Paulo Guedes, de obrigar 14 milhões de famílias a voltar no tempo e a cozinhar com lenha? Ou de impor novas perdas a categorias já submetidas a trabalho exaustivo – como os motoristas de aplicativos e os caminhoneiros?

Nos próximos capítulos, veremos que não. O PPI é a ponta de lança de um conjunto de políticas aparentemente disparatadas – mas necessárias, em seu conjunto, para eliminar o caráter de empresa pública da Petrobras. O efeito mais imediato é desnacionalizar o refino de petróleo. Os preços abusivos estimulam, desde já, empresas estrangeiras a importar combustíveis (o que é totalmente desnecessário). Mais adiante, viabilizarão a venda das refinarias brasileiras, já alardeada pela direção da estatal e iniciada, com a venda da RLAN baiana ao fundo Mubadala Capital, do emirado de Abu Dhabi.

Os objetivos a longo prazo são ainda mais graves e também estão sendo executados. Se perder seu caráter de empresa pública – se continuar afastando-se de atividades essenciais à sociedade, como a petroquímica, a produção de fertilizantes, a distribuição de combustíveis, a pesquisa científica, o estímulo à indústria nacional ou a transição energética — a Petrobras perderá, mais que a viabilidade econômica, o sentido de existir. A descoberta do pré-sal terá sido, para a empresa, a maldição que a destruiu. E, como veremos à frente, o Brasil terá se privado das imensas possibilidades que a riqueza petroleira oferece para a reconstrução nacional.

Eliminar esta brecha – matando a Petrobras – é um objetivo que Jair Bolsonaro já explicitou. Para alcançá-lo, precisa de Paulo Guedes, da aristocracia financeira e… do PPI. Aqui está um calcanhar-de-Aquiles: a derrota do bolsonarismo pode salvar a Petrobras. Mas a defesa da empresa pública, do que ela foi e principalmente do que pode vir a ser, é parte essencial da disputa decisiva que o Brasil viverá este ano. A ela se dedica esta série de textos

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1 Em outubro de 2016, o botijão custava R$ 69,21; a gasolina, R$ 4,458 e o diesel, R$ 3,76. A Agência Nacional de Petróleo ainda não divulgou os valores médios dos combustíveis, no varejo, após o mega-aumento. Para o cálculo, utilizamos os valores anteriores, acrescidos dos percentuais de reajuste nas refinarias determinado em 10/3 pela Petrobras.
2 A rende per capita dos norte-americanos é 5,95 vezes maior que a dos brasileiros. A dos suecos, 5,27 vezes maior; a dos alemães, 4,49 vezes; a dos franceses, 3,91 vezes; a dos italianos, 3,25 vezes; e a dos espanhóis, 2,87 vezes.
3Há uma única exceção, entre os grandes exportadores: a Noruega, em que os derivados estão dentro do padrão europeu devido ao uso consciente – e maciço – da riqueza petrolífera para financiar a transição energética.

Riscos do conflito

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A situação da economia internacional se deteriora todos os dias, depois de dois anos de grandes incertezas e instabilidades geradas pela covid-19, que culminou em milhões de mortes em todas as regiões do mundo, percebemos que as destruições tendem a aumentar em decorrência de uma guerra com potencial devastador, com destruições familiares, desestruturações produtivas, falências de empresas e grandes conglomerados e o incremento das exclusões sociais, com impactos negativos para quase toda a comunidade internacional.

Neste ambiente macroeconômico percebemos pressões inflacionárias em todas as regiões do globo, geradas pela desestruturação das cadeias produtivas, falta de matérias primas dos setores industriais, elevação dos custos de produtos alimentares e aumento dos preços dos combustíveis, cujos impactos são generalizados, gerando queda na renda agregada dos trabalhadores, redução dos salários e levando a diminuição do consumo interno, postergando a recuperação econômica e criando um ambiente de instabilidades e incertezas.

O aumento dos preços dos combustíveis tende a impactar sobre todas as cadeias produtivas, elevando custos de produção, encarecendo os transportes e os fretes, reduzindo os ganhos dos trabalhadores, inviabilizando modelos de negócios e gerando instabilidades que tendem a elevar as taxas de juros, encarecendo o crédito, contraindo os investimentos produtivos, postergando as contratações e materializando um ambiente recessivo. Numa economia, como a brasileira, combalida pelos desequilíbrios recentes gerados pela pandemia e a incapacidade do governo de criar agendas consistentes, os impactos da guerra tendem a gerar cenários preocupantes com fortes custos sobre a sociedade que se materializam em mais desemprego, mais exclusão e maior degradação social.

O ambiente global está marcado por grandes incertezas, o incremento do conflito militar e as sanções econômicas impostas pelas economias ocidentais podem gerar mais constrangimentos para a economia russa, levando-os a se aproximarem dos chineses e abrindo espaço para a reestruturação da geopolítica internacional, abrindo espaço para outros modelos monetários e fragilizando algumas nações e redesenhando o cenário internacional. Estamos vivendo um momento de grandes instabilidades políticas, desafios econômicos e os riscos de conflitos nucleares não podem ser desprezados.

Além do incremento dos preços do petróleo, cujos valores estão crescendo de forma ascendente, os alimentos, os fertilizantes e os insumos que entram na confecção de produtos primários devem passar por momentos de instabilidades, isto acontece porque a região em conflito é forte produtor de commodities, gerando aumento dos custos, além da redução das ofertas e pressão sobre os preços, impactando os produtores e os consumidores, reduzindo a entrada de divisas e fragilizando os setores produtivos.

O mundo globalizado aproxima todos os agentes produtivos em grandes cadeias de produção, integrando as finanças, dinamizando o comércio exterior, uniformizando costumes e comportamentos e aproximando as comunicações, todas estas conquistas estão ligadas aos avanços tecnológicos, que integram as nações, aumentam a concorrência e expõem os setores produtivos a grande competição. Neste cenário, os novos desafios econômicos estão claros, exigindo maior planejamento, aumento substancial em investimentos em capital humano e repensar a inserção da economia globalizada.

A pandemia e a guerra estão mostrando as deficiências estruturais da sociedade brasileira, somos uma nação rica, dotada de grandes riquezas naturais com forte potencial de crescimento econômico e possibilidade de melhorarmos as condições de vida da população. Neste cenário, precisamos construir uma nação centrada em um projeto de país, com clareza e consistência, deixando de lado políticas eleitorais inconsistentes e com forte degradação fiscal, que aprofunda nosso subdesenvolvimento e mostra nossa indigência moral que reproduz a desigualdade e compactua com as mais variadas formas de exclusão social.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 16/03/2022.

Derrotar autoritários como Bolsonaro é prioridade, diz Steven Levitsky

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Autor que estuda fim da democracia defende coalizão ampla para oposição garantir vitória acachapante na eleição

Uirá Machado – Folha de São Paulo – 15/03/2022

Autor do celebrado “Como as Democracias Morrem”, o cientista político Steven Levitsky, 54, afirma que a presença de um líder autoritário no comando de países como Brasil ou Estados Unidos é uma situação emergencial e que removê-lo do poder deve ser a prioridade.

No caso do Brasil, segundo Levitsky, isso deve ser feito por meio de uma coalizão ampla, com partidos da esquerda à direita, para eliminar o risco de o presidente Jair Bolsonaro (PL) contestar o resultado e contar com o respaldo das Forças Armadas.

“A melhor maneira de garantir que os militares não fiquem tentados a embarcar numa aventura é por meio de uma derrota acachapante de Bolsonaro”, diz o professor da Universidade Harvard.
Para ele, os estragos causados por Bolsonaro nas instituições democráticas foram menores do que os provocados pelo ex-presidente Donald Trump. Mas não por um compromisso do brasileiro com a democracia, e sim por ter faltado a força necessária.

Enquanto Trump contou com o Partido Republicano, Bolsonaro passou a maior parte do governo sem legenda e sem base no Congresso, diz Levitsky.

A democracia sobreviveu em ambos os casos, pelo menos até agora, mas, para ele, isso não necessariamente significa sinal de vitalidade das instituições.

“Acho que às vezes nós botamos muita fé nas instituições. Tanto no Brasil como nos EUA, tivemos muita sorte de os autoritários que elegemos não terem construído maiorias como Rafael Correa [no Equador], Alberto Fujimori [no Peru], Vladimir Putin [na Rússia], Hugo Chávez [na Venezuela].”

No livro “Como as Democracias Morrem”, o sr. dizia não ter certeza de que a democracia americana sobreviveria a Trump. Ela sobreviveu. Foi uma surpresa? Bem, não. Os EUA têm um grande número de fatores que favorecem a sobrevivência democrática e dificultam a vida de um presidente autoritário. Temos uma oposição forte com instituições fortes, incluindo um Judiciário independente, uma mídia poderosa, o federalismo.

Mas é importante dizer que, após quatro anos de governo Trump, a democracia americana emerge muito, muito mais fraca do que antes. Ela não sobreviveu intacta. Estamos hoje numa situação mais precária do que estávamos quando o livro foi publicado, e a democracia americana está mais ameaçada.

Não seria possível argumentar que a reação institucional à invasão do Capitólio demarcou um limite claro e mostrou que a democracia não está em questão? A insurreição foi um sintoma da polarização extrema. Muitos países enfrentaram algum tipo de levante violento na história, e o fator relevante para o desfecho é a reação do sistema político, dos principais partidos.

Onde eles fazem uma defesa inequívoca da democracia, os perpetradores dos atos violentos tendem a ficar marginalizados e enfraquecidos. Foi o que aconteceu na Espanha em 1991 e na Argentina em 1987.

Mas onde os principais partidos políticos se omitem, toleram, perdoam, justificam ou até apoiam os que atacam as instituições, a democracia tende a se enfraquecer. Foi o que aconteceu na França em 1934.

Nos EUA, a resposta do Partido Republicano importa muito, e infelizmente não está parecendo boa.

O que se pode dizer do Brasil, onde pessoas que se manifestam contra a democracia recebem apoio do próprio presidente? Existem diversos paralelos entre o Brasil e os EUA. Bolsonaro parece que, de forma consciente, imitou Trump ao longo dos anos. Nós elegemos uma figura autoritária de direita em 2016, vocês fizeram o mesmo dois anos depois. Vivemos uma confusão, mas sobrevivemos e conseguimos removê-lo do poder, e tem uma boa chance de que os brasileiros façam o mesmo em 2022.

Mas também existem muitas diferenças. A principal é que Bolsonaro não tem um grande partido político por trás dele.

Ele conseguiu comprar apoio do centrão e de legendas pequenas de direita, mas não tem um partido bolsonarista verdadeiro e forte. Trump tinha 1 dos 2 maiores partidos dos EUA, o que o tornou muito mais perigoso.

Por outro lado, o controle do presidente do Brasil sobre os militares é maior do que nos EUA. Então existe a possibilidade de Bolsonaro mobilizar aliados militares de uma forma que Trump não conseguiu. Por enquanto, não parece que isso vá acontecer.

Quatro anos atrás, o sr. Disse em entrevista à Folha que era mais otimista sobre o futuro da democracia no Brasil do que muitos brasileiros. Continua otimista? Basicamente, sim. Mas, mesmo num cenário em que Lula vença, Bolsonaro não seja capaz de dar um golpe e um governo democrático se instaure, isso não vai ser a solução para os problemas do Brasil.

Isso elimina uma das maiores ameaças, mas um governo Lula teria muito trabalho a fazer para persuadir a maioria dos brasileiros de que o sistema funciona e de que a elite política pode atender as demandas da população.
Ou seja, se digo que estou otimista, não significa que o Brasil esteja a ponto de se tornar uma Suécia, mas eu acho que o regime democrático brasileiro vai sobreviver.

E quanto a um cenário em que Bolsonaro perca, não aceite o resultado e tenha o Exército a seu lado nessa contestação? Essa é a grande interrogação. Nos EUA, Trump não pôde contar com os militares, ao passo que, no Brasil, Bolsonaro talvez possa. A resposta a essa interrogação vai determinar o destino da democracia brasileira. Eu acho que há razões para acreditar que os militares vão se comportar como nos EUA.

Líderes militares no Brasil têm mostrado preocupação com a politização das tropas, houve renúncias no ano passado e eles não participaram da mobilização contra o Supremo Tribunal Federal. E, mais importante, militares em geral não intervêm na política se não tiverem um apoio social generalizado. Se Bolsonaro perder de maneira expressiva, ele vai estar muito isolado para atrair os militares.

Por isso sempre digo que Lula precisa construir uma coalizão muito grande. A melhor maneira de garantir que os militares não fiquem tentados a embarcar numa aventura é por meio de uma derrota acachapante de Bolsonaro.

Quando Bolsonaro era candidato, o sr. afirmou que ele pontuava em todos os quesitos como um líder autoritário. Essa análise mudou com ele como presidente? Não, mas é interessante notar que Bolsonaro atacou menos as instituições democráticas do que Trump. Trump controlou um partido grande, e isso lhe deu muito poder. O equivalente no Brasil seria ter uma base grande no Congresso, mas Bolsonaro ignorou isso na primeira metade do mandato.

Bolsonaro provocou danos inimagináveis à sociedade brasileira na saúde pública, na questão ambiental e em muitas outras áreas, mas ele não provocou tanto dano às instituições democráticas. Pelo menos não ainda. Mas não porque a gente tenha subestimado seus compromissos com a democracia, e sim porque ele tem sido um presidente muito fraco para causar grandes estragos.

A expressão “as instituições estão funcionando” se mostra acertada? Bem, as instituições funcionam até que elas deixem de funcionar. As instituições brasileiras são muito fortes. Elas estão entre as mais robustas da América Latina. Mas não é só que as instituições estejam funcionando. É que Bolsonaro, até agora, não teve a força necessária, ou talvez a habilidade necessária, para subordiná-las ou manipulá-las.

A sobrevivência da democracia não significa necessariamente que as instituições tenham funcionado. Acho que às vezes nós botamos muita fé nas instituições. Tanto no Brasil como nos EUA, tivemos muita sorte de os autoritários que elegemos não terem construído maiorias como Rafael Correa [Equador], Alberto Fujimori [Peru], Vladimir Putin [Rússia], Hugo Chávez [Venezuela].

Em seu livro, o sr. cita duas regras não escritas fundamentais para a democracia: a tolerância mútua [reconhecer a legitimidade dos adversários políticos] e a reserva institucional [comedimento no uso dos poderes]. Como zelar por essas normas quando o presidente é o primeiro a desrespeitá-las? Quando você tem um autoritário no poder em uma democracia presidencial como a brasileira ou a americana, você está em uma situação emergencial. Você está além de se preocupar com a erosão de regras não escritas. Você precisa se preocupar com a sobrevivência da própria democracia.

Então, antes de perguntar o que é possível fazer por essas normas, é preciso remover o presidente autoritário. Quando o presidente está violando essas duas regras de forma flagrante e reiterada, até que ele seja um ex-presidente, não há como restaurá-las.

Sempre que uma democracia conviver com uma força política expressiva que seja antidemocrática, discussões sobre normas de tolerância mútua precisam ir para o segundo plano até essa força ser isolada e derrotada.

O lugar onde essas normas não escritas podem ser reconstruídas é dentro de uma coalizão de oposição aos autoritários. Eu defendo a construção de uma coalizão da esquerda à direita contra as forças autoritárias tanto nos EUA como no Brasil.

Bolsonaro recentemente visitou Vladimir Putin, presidente da Rússia, e Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria, dois líderes autoritários. Isso sinaliza algo sobre o que o presidente brasileiro pretende fazer? É um sinal preocupante. Estamos num período de realinhamento no Ocidente e, dependendo de como a guerra na Europa evoluir, pode haver uma mudança geopolítica significativa. Vemos nas democracias ocidentais a ascensão de uma direita antiliberal que, cada vez mais, tem desafiado a ordem democrática.

Essa direita iliberal é transnacional. Seus líderes e ideólogos se falam, entram em contato com extremistas da América do Sul e do Leste Europeu. Tudo isso é assustador e diz muito sobre quão extremista o Bolsonaro é e sobre quão limitado é o seu comprometimento com as instituições democráticas liberais. Mas isso não nos diz quão bem-sucedido ele vai ser, porque nem Putin nem Orbán virão salvar Bolsonaro.

Em seu livro, o sr. dizia que uma crise poderia fortalecer líderes autoritários, mas a pandemia parece ter indicado o oposto para Trump e Bolsonaro. Houve casos em que alguns líderes se aproveitaram da crise para concentrar poder, como nas Filipinas, na Índia, na Hungria e em El Salvador, mas você está certo em relação a Trump e Bolsonaro. Essa crise de saúde pública não só não os beneficiou como parece tê-los prejudicado bastante.

Historicamente, crises econômicas, crises que tiram do governo a capacidade de entregar resultados para a população, elas tendem a enfraquecer tanto líderes democráticos como autoritários.

Nessa crise [da Covid], a melhor resposta provavelmente dependeria de aceitar o que dizem especialistas e dar poder a eles, mas Trump e Bolsonaro não admitem fazer isso. E o fato de eles terem recusado a expertise os levou a abdicar da possibilidade de concentrar poder e impor restrições, por exemplo.

Os dois tiveram uma das piores respostas do mundo. Nem todos os autocratas reagiram assim, mas o caso deles nos mostra que nem todas as crises têm o mesmo efeito em relação a líderes autoritários.

Muita coisa mudou desde que seu livro foi publicado e o sr. está escrevendo o próximo. Vai ser uma continuação? Vai ser um pouco mais concentrado nos EUA, embora também tenha uma dimensão comparativa. A questão principal é: por que partidos políticos tradicionais se viram contra a democracia? Nós argumentamos que, nos EUA, o desenvolvimento gradual de uma democracia multirracial nos últimos 50 anos provocou uma radicalização do Partido Republicano e o levou para um caminho autoritário.

Nós também olhamos para instituições contramajoritárias nos EUA. Os EUA têm uma enorme quantidade de instituições que minam a vontade da maioria. Então nós fazemos um apelo por uma reforma constitucional em direção a uma democracia mais democrática nos EUA.

Steven Levitsky, 54
Cientista político, mestre pela Universidade Stanford e doutor pela Universidade da Califórnia, Berkeley, é professor de governo na Universidade Harvard, onde também atua no Centro Weatherhead para Relações Internacionais e no Centro David Rockefeller para Estudos Latino Americanos. É autor, entre outras obras, de “Como as Democracias Morrem” (Zahar, 2018), escrito com Daniel Ziblatt.

Imprensa usa o horror das imagens de sofrimento na guerra das narrativas, por Pondé.

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A sensibilidade idiota das redes tomou conta do jornalismo profissional

Luiz Felipe Pondé, Escritor e ensaísta, autor de “Notas sobre a Esperança e o Desespero” e “Política no Cotidiano”. É doutor em filosofia pela USP.

Folha de São Paulo, 13/03/2022

Uma pena que a cobertura da guerra da Ucrânia esteja, em grande parte, entregue à sensibilidade de classe média. Os jornalistas mais choram do que pensam.

É verdade, claro, que há uma violência em curso: um país agredido por outro, muito mais forte. Vidas civis destruídas. Mas o que há para além de “Putin, assassino”?

O Ocidente achou que conflitos importantes não mais aconteceriam —só na periferia desgraçada do mundo—, assim como até 2020 também se acreditou —ao menos os incautos— que pandemias tampouco matariam milhões.
Monumentos com as cores da Ucrânia, cantar “Imagine” numa praça em Budapeste —num país que vive sob um ditador que, aliás, é parte da Otan—, tudo isso é a prova de que a sensibilidade idiota das redes tomou conta do jornalismo profissional.

Guerras nunca levaram em conta o sofrimento civil. A sensibilidade barata das redes sociais faz parecer que profissionais de Estado pensam como a classe média, postando crianças e grávidas sofrendo.

Na verdade, eles usam essa sensibilidade de classe média a favor deles quando ela tem valor estratégico. Usam o horror das imagens de sofrimento humano para onerar o inimigo na guerra das narrativas. A Rússia já perdeu a guerra no Instagram.

Um dos argumentos mais comuns utilizados por Putin é que o Ocidente mente sobre seus bons sentimentos morais. Quando a Otan invadiu o Afeganistão ou o Iraque, não se trouxe à tona a destruição causada a população civil daqueles países porque esta era de interesse dos Estados Unidos.

Quando os americanos patrocinaram massacres nas guerras durante a Guerra Fria, tampouco isso importou.

Mesmos as misérias das ditaduras latino-americanas a serviço dos EUA na Guerra Fria não levaram em conta sentimentos morais. A Coca-Cola boicota ditadores africanos?

No caso das investidas da Otan junto aos países que antes eram da esfera do império russo e depois da União Soviética, o argumento dos russos encontra alguma racionalidade geopolítica.

Quando em 2008, em Bucareste, a Otan convidou a Geórgia a fazer parte de seu clube, a Rússia invadiu a Geórgia.

Quando, já na segunda década do século 21, a Otan ensaiou levar a Ucrânia para o seu clube, Putin retomou a Criméia. Ele anunciava sua resposta à Otan já ali, naquele início de 2014.

Países como Hungria, Romênia, Estônia, Letônia, Lituânia, Polônia, quase todos na fronteira oeste russa, sempre um tanto porosa ao longo de séculos, todos fazem parte da Otan. A argumentação de Putin é que os EUA usaram o desmonte da União Soviética para cercar a Rússia e torná-la um player irrelevante na geopolítica europeia e mundial. Para os russos, isso foi uma demonstração da pouca importância que os EUA atribuíam à possibilidade da Rússia se reerguer da derrocada da URSS.

Nada disso justifica a agressão a Ucrânia do ponto de vista moral. Mas é este mesmo ponto de vista moral bradado pelo Ocidente como seu trunfo que os russos entendem como uma mentira estratégica. Tudo que os americanos querem é manter a Rússia na condição de uma potência enfraquecida, à deriva do poder americano.

Para Putin, é como se os russos pusessem armas e exércitos no México, no Canadá e em Cuba —como aliás fizeram em 1962, na baía do Porcos. Na época, a Otan tinha mísseis na Turquia e considerava isso “normal”. A Turquia, país bem duvidoso do ponto de vista dos “valores ocidentais”, fazia fronteira com a URSS, e esta era a razão dela ter sido alçada ao clube dos notáveis do Atlântico Norte —ainda que ela esteja no Mediterrâneo.

Veremos se o ataque frontal de empresas ocidentais e do sistema financeiro internacional à Rússia conseguirá conter a violência na Ucrânia. Há que ver se a tentativa de cancelamento de uma potência militar —para alguns, detentora do maior arsenal nuclear no mundo— e econômica como a Rússia não causará danos terríveis à economia global e forçará o Ocidente a reduzir seu tom. A conta do boicote a Rússia chegará.

Putin parece disposto a escalar a situação. Ousado como é —para alguns, um louco—, ele aposta que o fraco governo Biden não tem condição de ir tão longe quanto a Rússia nessa guerra de nervos.

A incultura internacional do bolsonarismo, por Guilherme Casarões.

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Há quem veja genialidade, mas é só incompetência

Guilherme Casarões, Cientista político e professor da FGV-Eaesp (Fundação Getulio Vargas – Escola de Administração de Empresas de São Paulo)

Folha de São Paulo, 13/03/2022

Li com interesse o artigo do deputado federal Marco Feliciano (PL-SP) nesta Folha (“O gênio estratégico de Bolsonaro”, 7/3). Trata-se, afinal, de uma rara defesa da errática política exterior do governo Jair Bolsonaro (PL). Chama a atenção o texto não ter sido escrito pelo chanceler. Ou pelo assessor internacional. Ou pelo ministro da Defesa. Mas que bom que alguém teve essa coragem.

O que, na superfície, parece uma discussão relativamente sóbria sobre política externa, não passa de um amontoado de ideias no melhor estilo bolsonarista: elogios ao chefe e críticas à imprensa embalados em palavras rebuscadas e temperados por teorias conspiratórias. Tudo para, no fim, fazer uma defesa sorrateira da invasão russa — e das reais predileções do presidente.

O mote central do artigo —de que nações se movem não por ideologias, mas por interesses— não está errado. Essa é a primeira lição de quem se envereda profissionalmente pelas relações internacionais. Não à toa diplomatas, acadêmicos e analistas se revoltam diariamente com a displicência do governo ao substituir considerações estratégicas, de longo prazo, pelos devaneios ideológicos de um populista e sua trupe.

Estamos diante do presidente que mais banalizou a política externa: antagonizou parceiros históricos por serem “comunistas” ou “globalistas”, fez campanha eleitoral para os colegas de extrema direita e retirou o país de todos os debates multilaterais relevantes a nosso povo. Isso para não dizer do negacionismo sanitário que nos envergonha diante do mundo.

É curioso o porta-voz do governo que fez do Brasil um pária internacional vir falar em interesse nacional como se sempre o tivesse defendido. Dá a sensação de que, às vésperas de uma eleição em que a derrota é quase certa, quisesse —mais uma vez— reescrever a história e adaptar a narrativa que anima a militância. Outro dia Jair Bolsonaro (PL) era o messias que levaria a paz para o Leste Europeu. Hoje, o presidente é o “gênio estratégico” que transita, habilidosamente, entre Washington, Pequim e Moscou.

Afirmações como essa desafiam a inteligência das pessoas. Não precisa ser íntimo do presidente para reconhecer seu desprezo pelo conteúdo e pela forma da diplomacia. Bolsonaro sempre falou o que lhe deu na telha, no tom virulento costumeiro com que se posiciona nas redes sociais ou no cercadinho do Alvorada.

E fico me perguntando se alguém da base governista realmente crê que os líderes das três maiores potências militares do mundo se deixam enganar pelas declarações vagas e ambíguas do mandatário brasileiro. É quase tão ingênuo quanto acreditar que as chancelarias estrangeiras já não estejam em compasso de espera para 2023, quando o próximo presidente tomará posse.

No afã de oferecer uma lição sobre realismo político, Feliciano, nosso chanceler de ocasião, se esquece do segundo mandamento das relações internacionais: na diplomacia, não há nada pior que a incerteza e a inconstância. Países querem saber o que esperar dos parceiros. No Brasil de hoje, nem o próprio governo sabe quem fala pela política externa. Há quem chame isso de genialidade. No fundo, é a mais pura incompetência.

Há quem veja genialidade, mas é só incompetência

Guilherme Casarões, Cientista político e professor da FGV-Eaesp (Fundação Getulio Vargas – Escola de Administração de Empresas de São Paulo)

A guerra na Ucrânia e a deriva da Europa, por Boaventura de Sousa Santos.

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Provocar Putin e incitá-lo a agir militarmente sempre foi o plano de Washington. Assim, poderia emparedar a Rússia frente à opinião pública e sabotar um entendimento eurasiático. União Europeia, sem liderança, caiu na armadilha…

Boaventura de Sousa Santos – OUTRAS PALAVRAS – 11/03/2022

Porque não soube tratar das causas de crise da Ucrânia, a Europa está condenada a tratar das suas consequências. A poeira da tragédia está longe de ter poisado, mas, mesmo assim, somos forçados a concluir que os líderes europeus não estavam nem estão à altura da situação que vivemos. Ficarão na história como as lideranças mais medíocres que a Europa teve desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Esmeram-se agora na ajuda humanitária, e o mérito do esforço não pode ser questionado. Mas fazem-no para salvar a face ante o escândalo maior deste tempo. Governam povos que nos últimos setenta anos mais se organizaram e manifestaram contra a guerra em qualquer parte do mundo onde ocorresse.

E não foram capazes de os defender da guerra que, pelo menos desde 2014, germinava dentro de casa. As democracias europeias acabam de provar que governam sem o povo. São muitas as razões que nos conduzem a esta conclusão.

Esta guerra estava a ser preparada há muito tempo tanto pela Rússia como pelos EUA. No caso da Rússia, é notória a acumulação de imensas reservas de ouro nos últimos anos e a prioridade dada à parceria estratégica com a China, nomeadamente no plano financeiro, com vista à fusão bancária e à criação de uma nova moeda internacional, e no plano de trocas comerciais onde são enormes as possibilidades de expansão com a Iniciativa do Cinturão e Rota por toda a Eurásia. Nas relações com os parceiros europeus, a Rússia revelou-se um parceiro credível, ao mesmo tempo que foi tornando claras as suas preocupações de segurança. Preocupações legítimas, se por um momento pensarmos que no mundo das superpotências não há bons nem maus, há interesses estratégicos que devem ser acomodados. Foi assim na crise dos mísseis de 1962 com a linha vermelha posta pelos EUA a não querer mísseis de médio alcance instalados a 70 km da sua fronteira. Não se pense que foi apenas a União Soviética a ceder. Os EUA também desistiram dos mísseis médio alcance que tinham na Turquia. Cedência recíproca, acomodação, acordo duradouro. Porque não foi possível o mesmo no caso da Ucrânia? Vejamos a preparação do lado dos EUA.

Confrontados com o declínio do domínio global que têm tido desde 1945, os EUA buscam consolidar zonas de influência a todo o custo, que garantam facilidades comerciais para as suas empresas e o acesso às matérias primas. O que escrevo a seguir pode ler-se em documentos oficiais e de think tanks pelo que se dispensam teorias da conspiração.

A política do regime change não visa criar democracias, apenas governos fiéis aos interesses dos EUA. Não foram estados democráticos que emergiram das sangrentas intervenções no Vietnã, Afeganistão, Iraque, Síria, Líbia. Não foi para promover democracia que incentivaram golpes que depuseram presidentes democraticamente eleitos em Honduras (2009), no Paraguai (2012), no Brasil (2016), na Bolívia (2019), para não falar do golpe de 2014 na Ucrânia. Desde há algum tempo, o rival principal é a China. No caso da Europa, a estratégia dos EUA tem dois pilares: provocar a Rússia e neutralizar a Europa (sobretudo a Alemanha). A Rand Corporation, conhecida organização de estudos estratégicos, publicou em 2019 um relatório elaborado a pedido do Pentágono, intitulado “Extending Russia”. Nele se analisa como provocar países de modo a que a provocação possa ser explorada pelos EUA. No que respeita à Rússia, lê-se: “Analisamos uma série de medidas não violentas capazes de explorar as reais vulnerabilidades e ansiedades da Rússia como meio de pressionar o exército e a economia da Rússia e o estatuto político do regime no país e no estrangeiro. Os passos que analisamos não teriam a defesa ou a dissuasão como objetivo principal, embora pudessem contribuir para ambas. Pelo contrário, tais passos são pensados como elementos de uma campanha concebida para desestabilizar o adversário, forçando a Rússia a competir em campos ou regiões onde os Estados Unidos têm vantagem competitiva, levando a Rússia a expandir-se militar ou economicamente, ou levando o regime a perder prestígio e influência nacional e/ou internacionalmente”.

É preciso saber mais para perceber o que se está a passar na Ucrânia? A Rússia provocada a expandir-se para depois ser criticada por fazê-lo. A expansão da OTAN para leste, contra o que tinha sido acordado com Gorbachev em 1990, foi a peça-chave inicial da provocação. A violação dos acordos Minsk foi outra peça. Note-se que a Rússia começou por não apoiar a reivindicação da independência de Donetsk e Lugansk depois do golpe de 2014. Preferiu uma forte autonomia dentro da Ucrânia, como está estabelecido nos acordos de Minsk. Estes acordos foram rasgados pela Ucrânia com o apoio dos EUA, não pela Rússia.

Quanto à Europa, o princípio é consolidar a condição de parceiro menor que não se aventure a perturbar a política das zonas de influência. A Europa tem de ser um parceiro fiável, mas não pode esperar reciprocidade. É por isso que a UE, para surpresa ignorante dos seus líderes, foi excluída do AUKUS, o tratado de segurança para a região do Índico e do Pacífico entre EUA, Austrália e Inglaterra. A estratégia do parceiro menor exige que se aprofunde a dependência europeia, não só no plano militar (já garantido pela OTAN) mas também no plano econômico, nomeadamente no plano energético. A política externa (e a democracia) dos EUA é dominada por três oligarquias (não há apenas oligarcas na Rússia e na Ucrânia): o complexo militar-industrial; o complexo do gás, petróleo e mineração; e o complexo bancário-imobiliário. Estes complexos têm lucros fabulosos graças às chamadas rendas de monopólio, situações privilegiadas de mercado que lhes permitam inflacionar os preços. Os objetivos destes complexos são manter o mundo em guerra e criar maior dependência dos fornecimentos de armas norte-americanos. A dependência energética da Europa em relação à Rússia era algo inaceitável. Do ponto de vista da Europa, não se tratava de dependência, tratava-se de racionalidade econômica e de diversidade de parceiros. Com a invasão da Ucrânia e as sanções, tudo se consumou como previsto, e a imediata valorização das cotações das ações dos três complexos tinham o champagne à sua espera. Uma Europa medíocre, ignorante e sem visão estratégica cai desamparada nas mãos destes complexos, que agora lhe vão falar dos preços a cobrar. A Europa empobrece e desestabiliza-se por não ter tido líderes à altura do momento. Ainda por cima, apressa-se a armar nazis. Nem se recorda de que, em dezembro de 2021, a Assembleia Geral da ONU aprovou, por proposta russa, uma resolução contra a “glorificação do nazismo, neonazismo e outras práticas que promovem racismo, xenofobia e intolerância”. Dois países votaram contra, EUA e Ucrânia!

As negociações de paz em curso são um equívoco. Não faz sentido serem entre a Rússia e a Ucrânia. Deviam ser entre a Rússia e EUA/OTAN/União Europeia. A crise dos misseis de 1962 foi resolvida entre a URSS e os EUA. Alguém se lembrou de chamar Fidel Castro para as negociações? É cruel ilusão pensar que haverá paz duradoura na Europa sem cedências do lado ocidental. A Ucrânia, cuja independência todos queremos, não deve entrar para a OTAN. A OTAN foi até agora necessária à Finlândia, à Suécia, à Suíça ou à Áustria para se sentirem seguras e se desenvolverem? De fato, a OTAN devia ter sido desmantelada logo que acabou o Pacto de Varsóvia. Só assim a UE poderia ter criado uma política e uma força militar de defesa que respondesse aos seus interesses, e não aos interesses dos EUA. Que ameaça havia para a segurança da Europa que justificasse as intervenções da OTAN na Sérvia, em 1999, no Afeganistão, em 2001, no Iraque, em 2004, na Líbia, em 2011? Depois de tudo isto, será possível continuar a considerar a OTAN uma organização defensiva?

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS
Doutorado em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale e Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.

China ajudará Rússia até o ponto que não atrapalhe negócios com os EUA, diz analista.

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Para Kishore Mahbubani, Brasil poderia participar mais da mediação de conflitos internacionais

Rafael Balago – Folha de São Paulo, 12/03/2022

O fortalecimento recente da relação entre China e Rússia tem um motivo em comum: conter a pressão dos EUA. No entanto, o apoio de Pequim à Moscou, em um momento em que a economia russa sofre sanções pesadas, deve ser limitado pelos interesses da própria China, como não perder acesso ao mercado americano, avalia Kishore Mahbubani, pesquisador sênior do Asian Research Institute.

“A China tem bancos que negociam apenas com yuans, sem conexão com dólares. Esses bancos não podem ser alvo de sanções dos EUA. Mas os chineses precisam ser cuidadosos para garantir que suas empresas não entrem em conflito com as sanções americanas”, avalia.

Mahbubani aponta que os chineses devem estar analisando de perto como as punições à Rússia estão sendo aplicadas, para pensar como se proteger de medidas similares no futuro. “A China acelerará seus esforços para reduzir a dependência do dólar e se tornar menos vulnerável às sanções dos EUA. Quanto mais você usa o dólar como arma, mais você cria incentivos para países se afastem dele.”

Ex-diplomata de Singapura que chefiou o Conselho de Segurança da ONU, Mahbunani, 73, é autor de vários livros sobre a geopolítica da Ásia. Seu título mais recente, “A China Venceu?” (ed. Intrínseca), foi lançado no Brasil em 2021.
Ele conversou com a Folha por vídeochamada, a partir de Singapura.

Como avalia a aproximação recente entre China e Rússia? Os dois países estão sob grande pressão dos EUA. Conforme a China se torna mais forte, é natural que os EUA tentem pará-la. É uma regra pétrea da geopolítica, há 2.000 anos.

No caso da Rússia, há uma relação muito difícil com os EUA, porque ela sente que os americanos estão expandindo a Otan em seu quintal. Os dois países têm seus próprios problemas com os EUA e podem tentar cooperar entre si.

Ao combinarem esforços, elas podem aumentar a pressão sobre os Estados Unidos. Assim, uma parceria forte entre as duas é compreensível. Mas é importante enfatizar que esta relação não é uma parceria de defesa como a Otan, onde há mecanismos automáticos de defesa mútua.

A parceria é forte conforme a convergência de interesses. A China ainda acredita na integridade territorial dos países, mas não é do interesse chinês ver o colapso da Rússia, porque, se isso acontecer, a China ficará sozinha para lidar com os EUA. Mas, ao mesmo tempo, é uma vantagem para a China que a Rússia desvie a atenção dos EUA, de certa forma.

Quão longe a China pode ir para ajudar a Rússia, em questões como lidar com as sanções, por exemplo? A China tem um comércio muito maior com os EUA do que com a Rússia. E o mercado americano é muito mais importante para a China do que o russo.

Assim, de um lado, acho que a China cumprirá as sanções onde for preciso, como nos bancos chineses que negociam com dólares. Se eles negociarem com bancos russos, poderão ser sancionados também. Ao mesmo tempo, a China tem bancos que negociam apenas com yuans, sem nenhuma conexão com dólares. Esses bancos não podem ser alvo de sanções dos EUA.

Eles não são obrigados pela leis internacionais a aplicar as sanções americanas contra a Rússia, porque são sanções bilaterais, não multilaterais. Mas os chineses precisam ser cuidadosos para garantir que suas empresas não entrem em conflito com as sanções americanas.

A China tem condições de permanecer neutra neste conflito? A China está tentando ter um papel de mediadora. É algo muito importante, porque há poucas partes hoje que podem falar com Rússia e Ucrânia e terem a confiança de ambas. A Índia pode ter um papel similar também.

O conflito pode mudar o equilíbrio de poder entre EUA e China no futuro? É muito cedo para dizer. Você pode ter um cenário em que a Rússia fracassar por completo e colapsa como resultado da invasão falha da Ucrânia. A União Soviética colapsou em parte por falhar na invasão do Afeganistão. Ou pode-se ter um cenário em que a Rússia vença e saia mais forte.

Apesar disso, uma coisa que podemos dizer é que a China está estudando, muito cuidadosamente, cada sanção aplicada pelos EUA à Rússia e indo para a próxima questão lógica: como a China responderia a uma sanção similar? Por exemplo, uma das sanções que geram mais dano é o congelamento de reservas do Banco Central russo no exterior. Isso nunca havia sido feito antes. E as reservas da China são muito, muito maiores do que as da Rússia.

Neste sentido, penso que a China acelerará seus esforços para reduzir a dependência do dólar em seu comércio internacional, para se tornar menos vulnerável às sanções dos EUA. Quanto mais você usa o dólar como arma, mais você cria incentivos para países se afastem dele. E se o dólar perder seu papel de moeda para reservas globais, os EUA perderão seu exorbitante privilégio e não serão mais capazes de viverem além de seus meios, como têm feito.

O que o Brasil e outros países podem fazer para tentar resolver esta crise? É importante que o resto do mundo fale mais claramente e explique para EUA e Europa que os esforços para expandir a Otan até a Ucrânia são muito imprudentes. Em teoria, obviamente, o povo da Ucrânia tem o direito soberano de decidir seu tipo de governo. Mas há realidades geopolíticas que precisam ser levadas em conta. A grande lição da Ucrânia é que, quando países como Rússia e China dizem de forma muito clara que há linhas vermelhas que não devem ser cruzadas, elas devem ser respeitadas se você quer prevenir uma guerra.

Faz falta no mundo hoje que países poderosos como Índia, Brasil e outros Brics tenham um papel de mediação. Eu apoio o esforço do Brasil para se tornar um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. E o melhor meio de o Brasil aprimorar sua campanha por isso é se envolver em grandes responsabilidades internacionais, como tentar prevenir um conflito como o da Ucrânia.

Um eventual sucesso da Rússia em tomar a Ucrânia pode estimular a China a tentar algo em relação a Taiwan? As situações são muito diferentes. A Ucrânia é um país independente, membro da ONU, e com soberania reconhecida pela maioria dos países. Taiwan não é reconhecido como um país soberano e independente pela maioria dos países. E muitos governos que estabeleceram relações diplomáticas com a China, como o Brasil, reconhecem que China e Taiwan pertencem ao mesmo país. Neste sentido, você não teria o mesmo impacto gerado pela invasão da Rússia na Ucrânia. Ao mesmo tempo, a China será muito cuidadosa e não começará uma guerra em Taiwan de modo imprudente, a menos que Taiwan resolva declarar independência.

E como vê a aproximação dos EUA com Austrália, Japão e Índia, com a formação do grupo Ouad? Isso pode incomodar a China? O Quad é um grupo muito estranho. Oficialmente, ele nega ser uma aliança de defesa contra a China. Diz ter outras metas, como compartilhar vacinas, mas ninguém duvida que é um clube desenhado para contrabalançar a China.

A questão é: é melhor tentar isso com três ou quatro países? Ou criar grupos multilaterais maiores, como a Asean [Associação de Nações do Sudeste Asiático] está tentando fazer? A Asean tem buscado incluir a China em grupos multilaterais, e a experiência mostra que, quando você inclui a China, fala com ela, tem mais chances de ter a China como um membro responsável do sistema global, em vez de tentar excluí-la ou isolá-la. É uma abordagem mais sábia.

É como o modelo da União Europeia, de aproximar os países para evitar conflitos entre eles. Sim, mas a Asean é uma organização regional muito mais fraca do que a UE, embora tenha tido mais sucesso em prevenir guerras e conflitos na região. Nos últimos 30 anos, vimos mais guerras na Europa e em seus arredores, como na ex-Iugoslávia, na Líbia e agora na Ucrânia.

A União Europeia tem sido muito boa em preservar a paz dentro de suas fronteiras, mas muito ruim em compartilhar essa paz com os vizinhos. Nisso a UE pode aprender lições com a gente. A Asean tem sido muito boa em criar e integrar os países e seus grandes vizinhos em estruturas mais cooperativas. Suas reuniões de Cúpula da Ásia Oriental incluem EUA, Rússia, China, Japão, Índia, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia. É uma melhor abordagem para o mundo se inspirar.

Kishore Mahbubani, 73
Nascido em Singapura, foi diplomata do país de 1971 a 2004 e ocupou postos nos EUA e na ONU, órgão no qual chegou a presidir o Conselho de Segurança. Depois, tornou-se professor da Universidade Nacional de Singapura e pesquisador do Asia Research Institute. Escreveu oito livros sobre relações internacionais, incluindo “A China Venceu?”.

A guerra é a economia por outros meios, por Raquel Varela.

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Raquel Varela – A Terra é redonda – 10/03/2022

O neoliberalismo é isto, Estado econômico máximo, garantido pelas dívidas “públicas”, Estado social mínimo para as pagar. E agora Estado militar

A entrada formal da OTAN nesta guerra implicaria o começo de uma terceira guerra mundial, em que não só não seriam salvos os ucranianos, como morreriam milhões de pessoas: uma catástrofe. Quem olha com desdém ou como ingénuos os internacionalistas que, como eu, se opõem a Vladimir Putin, à União Europeia e à OTAN, defendendo a solidariedade entre os povos, quem acha que a OTAN é uma solução, está, de fato, queira ou não, a defender uma chacina mundial.

Por isso devemos exigir que os nossos Estados não enviem tropas nem armamento nem decretem sanções – são atos de guerra que só levianamente e com total desconhecimento da história da Europa se podem apoiar.

O significado das sanções: empobrecimento geral dos trabalhadores no mundo

As sanções econômicas são uma arma de guerra que empobrece os povos. Abatem-se sobre todo o povo russo, ucraniano e europeu, penalizam as oposições na Rússia, castigam o povo ucraniano que aí vive – dois milhões; punem aqueles que na Europa lutam pela paz. Ajudarão, quiçá, a reforçar o nacionalismo grão-russo e a liderança de Vladimir Putin. O papel das sanções, bem como a anunciada venda de armas da União Europeia à Ucrânia têm um significado político central que pouco tem a ver com a ajuda humanitária ou a preocupação por parte da União Europeia com regimes autoritários, os apregoados “valores europeus” (que na Palestina, na Arábia Saudita, na Líbia, na Síria, na Polónia e na Hungria são metidos na gaveta e desaparecem amiúde dos media). As sanções são um sinal claro de que a União Europeia, dirigida pela Alemanha e sob a égide da OTAN, entrou indiretamente nesta guerra, e nós não fomos consultados.

A Rússia não é o Irã. Estima-se que as sanções impliquem uma contração de 11% do PIB na Rússia e de quase 1% no mundo, sendo que a massa de capitais ardidos acaba por ser maior a nível mundial – uma contração de 11% na Rússia é uma quebra de 150 mil milhões de dólares; de 1% no mundo são 750 mil milhões. O capital arde na fogueira da geoeconomia… Destroem empresas pequenas, aumenta a venda de armas; não há pão, sobram canhões. Uns choram, outros vendem lenços.

Esta contração implicou já que o preço do trigo subiu 50% e o barril de petróleo supera os 110 dólares. Num quadro de ausência de lutas do mundo do trabalho isto significa fome, devastadora nos países periféricos. E queda geral dos salários na Europa Ocidental.

As sanções não são boicotes organizados pelos trabalhadores da produção ou da cultura, e com alvos específicos. Como o seriam uma greve nas fábricas de armamento, ou se os estivadores ou os camionistas se recusassem a carregar armamento para a guerra, ou um grupo recusar-se a cantar na Rússia. Vieram atreladas ainda à censura, de jornalistas, de filmes e até de livros.

Guerra e economia ou economia de guerra

O capitalismo implica uma luta entre patrões e trabalhadores. Mesmo quando não se expressa em greves ou revoluções, exprime-se no dia a dia na luta pelos contratos, ou contra a exaustão laboral. Mas também implica uma luta entre empresas, corporações. E entre Estados que defendem as suas empresas. Ao contrário do que afirmavam os teóricos da globalização, os Estados não perderam força face a um panfletário “capital sem rosto”. Nesta competição doentia que arrasta toda a sociedade, impedindo a cooperação, os Estados são o instrumento fundamental quando a guerra passa a ser a economia por outros meios.

As sanções deixaram de fora 70% das exportações russas – petróleo, gás e combustíveis – de que depende a indústria alemã; são uma forma de expropriação dos bilionários russos (ontem eram “empresários” bons para investir, agora são “oligarcas” a expropriar). A suspensão do código Swift tem um efeito na Rússia – empurrá-la para fora da Europa (a Rússia é parte da Europa!) para uma aliança com a China –, o que encaixa com a visão expansionista da OTAN, que desenvolve no mar da China, com a Austrália, um cerco militar à China, semelhante ao que desenvolve na Europa de Leste com a expansão da OTAN. Os EUA acabaram de aprovar o maior orçamento militar da sua história (US $778 mil milhões), e só a duplicação do orçamento militar alemão anunciado (mais 50 mil milhões) coloca a Alemanha com mais investimento militar do que o orçamento militar russo total (60 mil milhões).

Ironia previsível da história: sob o governo mais “verde” da Alemanha anuncia-se na União Europeia a energia nuclear como verde (ficou claro agora que enquanto houver guerras a energia nuclear é uma ameaça à humanidade) e a remilitarização do país condutor da União Europeia. A restruturação produtiva (“transição verde”) “para fazer face
à crise de 2008, a ser levada até ao fim, implicaria a implosão dos direitos conseguidos pelos trabalhadores, do Estado social, a pretexto dos subsídios públicos às “energias limpas”, que – mesmo com externalização da parte suja para outros países – seriam insustentáveis. É neste quadro que, segundo vários pensadores alemães, surge a remilitarização da Alemanha – restruturação verde se possível, militar se necessário.

Uma Ucrânia entre os EUA, a União Europeia e a Rússia

A história é a chave da compreensão do mundo. Mas o segredo desta chave, desde a revolução industrial, é a teoria do valor-trabalho. A Ucrânia tem um governo neoliberal, com uma das populações mais pobres da Europa, onde se aplicaram as receitas do FMI (onde estão à mesma mesa EUA e Rússia). A Ucrânia perdeu 8 milhões de pessoas em dez anos para o exílio económico (emigrantes). Tem um PIB anêmico, porque é um país com 14% da população na agricultura, pequenos camponeses, e com a região industrial da bacia do Donbass em guerra civil, da qual fugiam investidores. A Ucrânia tem umas das terras mais produtivas do mundo (1/4 das terras negras do mundo), e, até 2020, era proibida a venda dessa propriedade, o que mudou então com Volodymyr Zelensky. Está em marcha um megaprocesso de venda e concentração de propriedade dessas terras superprodutivas.

A Ucrânia, que aprovou uma legislação que impõe o ucraniano como língua, num país bilíngue, também tem os seus “oligarcas” e o Governo é cúmplice da extrema direita – a Ucrânia é a base de treino militar europeu da extrema direita. Ao lado está a Polônia, cujo governo, apoiado pela extrema-direita, recebe agora o apoio militar da União Europeia e da OTAN, e que anunciou há dois meses a construção de um muro contra os refugiados. Pouco antes tinha-se aí realizado a conferência europeia da extrema direita.

Nada disto autoriza a conclusão de que a Rússia está em mera autodefesa ou a “desnazificar” a Ucrânia. A proteção dos russos de Donetsk e Lugantsk foi apenas uma desculpa perfeita e ansiada pelo Estado russo. Este vê-se a braços com a ameaça da sua própria desintegração e diminuição da sua área de influência. Acabou de esmagar, com a felicitação pública dos EUA, a revolta popular do Cazaquistão – no Ocidente chamaram-lhe “pacificação”. O Estado russo convive bem com a sua própria extrema direita, que em Moscou não é perseguida, ao contrário dos ativistas anti-guerra.

Não existe paz na guerra

Os impérios são antigos, mas o imperialismo é novo. Nasceu na época contemporânea em que o capitalismo passou de concorrencial a monopolista, no fim do século XIX, quando todos os espaços da Terra tinham sido conquistados e divididos – a partir da divisão colonial no congresso de Berlim de 1885 –, e tudo culminou na Primeira Guerra Mundial, que “ia acabar no Natal” e durou quatro anos. Até a Revolução Russa lhe ter posto termo. Imperialismo quer dizer que um capitalismo não pode sobreviver sem avançar sobre o outro.

Os que apoiam Putin, de um lado, ou a OTAN, de outro, vivem segundo o modelo da Guerra Fria, acreditam que revoluções são uma miragem ou contraproducentes, e que por isso a ameaça permanente da guerra seria condição para a paz. Ignoram que enquanto existirem impérios, dois, três, ou um, a guerra e o terror serão a realidade porque o imperialismo implica sempre, no quadro da concorrência, o expansionismo.

À crise de 2008, às medidas de gestão da pandemia e à ascensão da China junta-se uma crônica crise de superprodução (na Idade Média as crises eram de escassez, no capitalismo são de superprodução) que dura desde a década de 1970 e que foi sendo matizada com o brutal crescimento das dívidas públicas (o fim de Bretton Woods), os investimentos estatais nas empresas e a abertura do mercado chinês, que duplicou a força de trabalho à escala mundial. O neoliberalismo é isto, Estado econômico máximo, garantido pelas dívidas “públicas”, Estado social mínimo para as pagar. E agora Estado militar. Os liberais e a direita, que nunca saíram à rua por um direito trabalhista ou social, foram os primeiros a fazer rufar os tambores da guerra, pedindo a intervenção da OTAN.

Quando entre 2008 e 2012 estive, com vários colegas do mundo inteiro, em conferências de análise da crise (algumas na Alemanha), e dizíamos que a única forma de transformar o dinheiro impresso em 2008 em capital era com uma produção militar à escala de uma guerra mundial, éramos olhados como extraterrestres. A guerra e as revoluções aceleram a história – hoje estamos à beira de uma guerra mundial, e todos acham normal pronunciar-se a mais sórdida de todas as expressões: guerra mundial.

Erradicar a fome com uma economia planificada e dirigida às necessidades custaria ao mundo 45 mil milhões de dólares/ano, metade do que a Alemanha vai investir agora em armamento. Não foi Franklin D. Roosevelt que terminou com a crise de 1929. As taxas de desemprego de 1929 só foram revertidas na totalidade quando os EUA entraram na Segunda Guerra Mundial, em 1941. Foi a economia de guerra, ou seja, transformar desempregados em soldados, forças produtivas em fábricas de máquinas de destruição, que reverteu a crise de acumulação. Em 1937 o New Deal passou a War Deal, cortaram-se 800 milhões de dólares ao seguro social e aos trabalhos públicos, e aumentaram-se os gastos militares, que cresceram 400 milhões de dólares em 1939.

No meio desta imensa complexidade o essencial é isto. Nenhuma liberdade chegará na boleia de um tanque, russo, alemão ou americano. Foi assim em 1956 na Hungria, em 1968 em Praga, foi assim no Afeganistão e na Líbia, é assim na Palestina. É assim hoje na Ucrânia. Enquanto aceitarmos que os Estados são os únicos atores da história e não entrarem em cena as resistências populares e de trabalhadores, o que teremos é mais guerras. Os Estados são os responsáveis, não as populações.

*Raquel Varela, historiadora, é pesquisadora da Universidade Nova de Lisboa. Autora, entre outros livros, de Breve História da Europa (Bertrand).

The Economist: Por que o declínio da indústria é mais acentuado no Brasil

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Em muitos países, a indústria também perdeu participação e reduziu os postos de trabalho, mas no Brasil a mudança não foi acompanhada de ganho de produtividade

The Economist, O Estado de S. Paulo – 06/03/2022

O povo de São Bernardo do Campo uma cidade próxima a São Paulo, é chamado de “batateiro”, ou plantador de batata.

No entanto, eles são mais conhecidos pela sua indústria. Quase um século atrás eles fabricavam móveis. Na década de 1950, começaram a produzir carros. Logo, a região que inclui a cidade, conhecida como ABC pelas iniciais de seus maiores municípios, tornou-se a maior zona industrial da América Latina. Um trabalhador de lá, Luiz Inácio Lula da Silva, chegou ao topo do sindicato dos metalúrgicos e, mais tarde, ao topo da política brasileira.

Mas quando a Urban Systems, uma consultoria, elegeu a cidade como o melhor lugar do Brasil para fazer negócios na indústria no ano passado, muita gente se surpreendeu. Em 2013, o ABC tinha 190 mil postos de trabalho formais na indústria (que inclui manufatura e processamento). Em 2019, tinha 140 mil, ou quase um terço menos. Placas empoeiradas de “vende-se” marcam algumas das 127 áreas industriais ociosas que a pesquisadora Gisele Yamauchi contabilizou em São Bernardo. Em 2019, a montadora americana Ford disse que estava deixando São Bernardo depois de quase um século no Brasil. Em 2021, o setor industrial formal da cidade se manteve estável, com quase tantos empregos criados quanto perdidos. Mas a transição para uma economia de serviços é clara.

De fato, São Bernardo faz parte de uma tendência mais ampla no País. Na década de 1980, a indústria atingiu o pico de 34% de participação no PIB do Brasil. Em 2020 foi de apenas 11%.

Em outros países, a importância relativa da indústria também diminuiu. À medida que as fábricas se tornam mais eficientes, menos pessoas são necessárias para fabricar cada produto, e o emprego na indústria tende a cair mesmo com o aumento da produção. Mas o que é notável no Brasil é que o crescimento da produção também foi medíocre. Entre 1980 e 2017, o valor agregado da indústria em termos reais cresceu apenas 24%, em comparação com 69% na vizinha Argentina e 204% no mundo.

As indústrias de base científica do Brasil também perderam participação no PIB mais rapidamente do que o esperado.

Na década de 1980, o Brasil produzia 55% dos insumos farmacêuticos que utilizava. Em 2020, isso caiu para 5%.

Quando a pandemia de Covid-19 criou uma enorme demanda por vacinas, o Brasil foi pego de surpresa. A falta de materiais atrasou o lançamento do imunizante.

Abertura
À medida que o comércio global se liberalizou depois de 1990, o Brasil abriu o que havia sido uma economia ferozmente protegida. Mas apenas um pouco. O país continuou protegendo grande parte de sua indústria doméstica da concorrência estrangeira, diz Fabiano Colbano, do Banco Mundial. Sucessivos governos se concentraram em alimentar a demanda doméstica, em vez de aumentar a produtividade. As empresas falharam em se integrar nas cadeias de suprimentos globais. As tarifas de importação foram mantidas altas e a regulamentação continuou a incomodar.

O prefeito de São Bernardo tenta tornar a cidade um lugar mais fácil para fazer negócios. Durante a pandemia, ele cortou a burocracia, baixou impostos e construiu mais estradas. Ele assegurou promessas de investimento em logística e em outras áreas que favorecem a indústria no valor de US$ 1,75 bilhão para 2021 e 2022 (o orçamento da cidade para 2022 é de US$ 1,2 bilhão). Mas em outras partes do Brasil, a covid-19 acelerou a queda da indústria.

O aumento dos preços das commodities ajudou o Brasil a atingir um superávit comercial recorde. Mas isso mascara um déficit de US$ 53 bilhões (ou 3,3% do PIB) em bens manufaturados. De fato, a dependência de commodities, cujas exportações no Brasil equivalem a 8% do PIB, normalmente tende a acelerar o declínio da manufatura ao fortalecer a moeda local, o que torna as importações mais baratas. A China há muito prefere comprar matérias-primas brutas e processá-las em casa. Em 2009, a China importou produtos alimentícios primários do Brasil no valor de US$ 7 bilhões, em comparação com produtos alimentícios processados no valor de quase US$ 600 milhões. Em 2019, os números foram de US$ 23 bilhões e US$ 5 bilhões, respectivamente.

O Brasil não precisa necessariamente de um grande setor industrial para prosperar. Em São Bernardo, os chãos de fábricas foram transformados em shopping centers e muitos moradores encontraram empregos como operadores de telemarketing. Alguns economistas argumentam que o declínio da indústria deu ao Brasil uma oportunidade de aproveitar seus pontos fortes na agricultura e na produção de petróleo.

No entanto, outros sentem que esse otimismo é equivocado. “O Brasil é o pior exemplo de desindustrialização prematura do mundo”, argumenta Rafael Cagnin, da Iedi, uma associação do setor. Os trabalhadores mudaram para empregos de serviços de baixa qualificação, em vez de empregos de alta tecnologia e qualificados. Em média, sua produtividade e renda caíram, diz ele. Em São Bernardo, os maiores salários de todos os trabalhadores com carteira assinada permanecem na indústria automobilística. Os salários médios reais em São Bernardo têm diminuído a cada ano desde 2017, inclusive nele.

Uma crise econômica entre 2014 e 2016 deu um choque tão grande no Brasil que qualquer tentativa de separar os efeitos da política industrial é difícil. Mesmo antes da covid-19, o desemprego estava no nível mais alto em 50 anos, segundo o Banco Mundial.

O declínio industrial pode ter consequências políticas. Nos Estados Unidos, a perda de empregos na indústria do Meio-Oeste pode ter levado alguns eleitores a votar em Donald Trump em 2016. No Brasil, as eleições de 2018 foram dominadas pela corrupção e as consequências da recessão, mas um estudo de dois pesquisadores brasileiros descobriu que as áreas mais afetadas pela liberalização do comércio na década de 1990 eram as mais propensas a votar em Jair Bolsonaro, o presidente populista. Ele até ganhou no antigo reduto de Lula em São Bernardo.

A próxima eleição presidencial, em outubro, pode ser crucial para a indústria. Bolsonaro não fez do estímulo à indústria uma prioridade, embora no final de fevereiro tenha prometido um corte de impostos para produtos industriais. Lula, que provavelmente concorrerá contra ele, disse que, embora as commodities sejam importantes, o Brasil precisa “ser forte na indústria, na ciência e na tecnologia”. Os próximos meses provavelmente envolverão uma corrida para conquistar os corações e os votos de lugares como São Bernardo.

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