A reforma revolucionária de Biden, por Nelson Barbosa.

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Se proposta tiver sucesso, acabará o festival de planejamento tributário nos EUA

Nelson Barbosa – Folha de São Paulo, 02/04/2021

O governo Biden mais uma vez mostrou o caminho para sair da crise, confirmando o que vários economistas heterodoxos vêm dizendo, há décadas, nos EUA e por aqui. Aos números.

Depois de aprovar um “programa de resgate” de US$ 1,9 trilhão, focado em transferência de renda aos mais pobres e mais recursos para saúde e educação, Biden lançou um “programa de emprego” de US$ 2,3 trilhões nesta semana.

O valor da segunda iniciativa se divide em: US$ 621 bilhões em infraestrutura de transporte (incluindo rede de energia para veículos elétricos), US$ 689 bilhões em habitação e serviços públicos (como saúde, educação e creches), US$ 578 bilhões em inovação e geração de empregos (política industrial e tecnológica) e US$ 400 bilhões para expandir e melhorar o cuidado de idosos e pessoas portadoras de necessidade especiais.

Somando os planos de resgate e emprego, o “Pacote Biden” está em US$ 4,2 trilhões. O valor parece alto, mas como o programa de emprego será distribuído em oito anos, seu impacto imediato na economia não é grande. Por esse motivo Biden já recebeu críticas da extrema-esquerda dos EUA, que desejava um valor maior.

Biden foi “comedido” no programa de emprego porque foi ousado no programa de resgate. O US$ 1,9 trilhão já aprovados pelo Congresso terá impacto maior em 2021-22, ajudando os EUA a sair rapidamente da crise.

A ideia do plano de emprego é suceder as ações de resgate, de modo crescente a partir de 2022, gerando sustentação econômica, social e política para um novo ciclo de desenvolvimento dos EUA. Por este motivo, o pacote Biden já seria revolucionário, mas tem mais.

Para pagar o aumento do gasto, Biden também propõe ampla revisão tributária, cobrando mais do “andar de cima”. Rompendo a lógica de desoneração do capital que domina a política econômica desde 1980, Biden quer aumentar a tributação sobre o lucro das empresas e das famílias mais ricas, desfazendo parte da desoneração regressiva adotada por Trump.

Mais importante, o novo governo dos EUA discute que, acima de um valor anual mínimo, toda renda pessoal do capital seja taxada pela mesma alíquota de imposto de renda aplicada à renda do trabalho. E como se isso não fosse suficientemente progressista, Biden também quer alíquota mínima de imposto de renda sobre empresas, tanto sobre lucros domésticos (de 15%) quanto sobre lucros no exterior (de 21%).

Se a proposta tributária de Biden tiver sucesso (tomara que tenha), acabará o festival de planejamento tributário nos EUA, com efeito altamente positivo sobre todo o mundo ocidental.

Há 40 anos, o movimento Thatcher-Reagan gerou grande desoneração do capital, com aumento da desigualdade e volatilidade econômica, culminando na crise financeira de 2008 e estagnação econômica da década seguinte.

Agora, seja por demanda popular, seja por pressão da competição com a China, os EUA finalmente parecem se mover na direção contrária do neoliberalismo, adotando tributação mais progressiva e aumento do investimento público, com “pegada” ambiental e social.

Não sei se Biden terá sucesso. O plano de resgate já foi aprovado pelo Congresso, mas haverá oposição ferrenha de Wall Street e do Vale do Silício às iniciativas tributárias anunciadas nesta semana.

Torço e até rezo para que Biden prevaleça sobre a Faria Lima deles, pois isso melhorará a situação da maioria da população norte-americana e abrirá possibilidade de que outros países sigam o mesmo caminho.

Armadilhas

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A pandemia está trazendo grandes transformações para a sociedade, criando novos desafios, novas oportunidades e novas preocupações. A sociedade global vive um momento de desesperança, para muitos especialistas, a globalização era uma realidade inexorável e todas as nações deveriam se adaptar, abrir suas economias e se integrar os fluxos de comércio e de finanças. Se não nos adaptássemos aos ventos da globalização seríamos deixados de lado diante do progresso e renegados do desenvolvimento econômico. Na verdade, com as mudanças contemporâneas, alguns mitos estão perdendo espaço, levando a novas estratégias e novas formas de planejamento, não apenas centrados nos governos, mas na integração entre os governos e os mercados. Neste momento, todas as nações que estão superando este momento de incertezas e instabilidades são os que conseguiram construir um projeto nacional.

A pandemia deixou claro para a sociedade que é fundamental um setor industrial moderno e dinâmico, sem isso, nossa dependência será mais visível, deixando claro a nossa pouca autonomia. Sem desenvolver o setor industrial, somos uma nação dependente de insumos farmacêuticos, dependentes da importação de produtos hospitalares, respiradores e outros insumos fundamentais para a tão proclamada independência nacional.

Estamos numa situação de crescimento da dependência externa, somos importadores de produtos que, anteriormente, éramos autossuficientes. Deixamos de lado os sucessivos investimentos em ciência e tecnologia, reduzimos os recursos para os centros de pesquisas e passamos a acreditar que, num momento de instabilidade, seríamos socorridos pelos parceiros internacionais. Ledo engano, percebemos que precisamos construir nossas tecnologias e, para isso, não existe fórmulas rápidas e imediatas, demandam investimentos, focos na pesquisa científica, na formação de capital humano qualificado, ensino da ciência e o estímulo constante ao desenvolvimento da investigação científica.

Sem estes recursos, sem uma política pública concatenada pelos gestores públicos e pelos investimentos privados, vamos continuar formando profissionais de alta qualificação, cujos custos são elevados e, na maioria das vezes são formados por instituições públicas e, sem oportunidades internas e digna remuneração, são contratados por outras nações, cujos investimentos são valorizados no desenvolvimento de pesquisas científicas e tecnológicas.

A globalização nos trouxe grandes transformações, alterou a estrutura produtiva, aumentou os investimentos em ciência e tecnologia, mas ao mesmo tempo, deixou claro a necessidade de um projeto nacional, um plano concatenado que deve unir todos os setores da sociedade e estimulando a construção de um setor produtivo consolidado e diversificado. Nesta empreitada, percebemos que é fundamental a construção de um consenso político, consciente de que os entraves são violentos, tanto internos e externos. De um lado, encontramos grupos ganhadores desta situação de degradação social e pobreza crescentes, pessoas e grupos socais que ganham fortunas com a miséria que degrada a sociedade. De outro lado, países que sempre atuaram para impedir o desenvolvimento das potencialidades deste país, estimulando a perpetuação desta situação de desgoverno, desigualdade e degradação da sociedade.

Precisamos estimular a reflexão e a reconstrução da sociedade, a globalização reduziu os poderes nacionais e transferiu poder para os grandes grupos econômicos e financeiros, reduziu os poderes dos trabalhadores e criando espaços de dependência que ultrapassam as autonomias nacionais, aumentando as fragilidades e reduzindo a soberania.

Neste momento, precisamos retomar o controle dos rumos da sociedade, reconstruindo as estruturas industriais e consolidando nossa soberania. Nesta pandemia, percebemos o incremento da dependência externa, precisamos urgentemente de um grande projeto de desenvolvimento, fortalecendo os setores produtivos, investimento em capital humano e mostrando a importância da ciência nacional, retomando espaços de destaque na sociedade global.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia/Unesp, professor universitário. Publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 31/03/2021.

Pesquisador critica fetiche pelo novo e o ‘discurso ilusório’ do Vale do Silício

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Em entrevista à Folha, Lee Vinsel argumeta que inovação nem sempre é positiva, já que pode criar expectativas irreais

Bárbara Blum – Folha de São Paulo, 29/03/2021 – SÃO PAULO

‘Mova-se rápido e quebre as coisas”. O mote da gigante de tecnologia Facebook resume o tom que dita a conversa sobre inovação hoje: é importante ser disruptivo. A hipervalorização dessa abordagem, comum ao modelo de startups, porém, nem sempre produz inovação de fato e pode prejudicar setores da economia e profissionais que não se pautam pela ruptura para medir o sucesso.

Essa é a leitura que faz Lee Vinsel, historiador especializado em tecnologia, no livro “The Innovation Delusion: How Our Obsession with the New Has Disrupted the Work That Matters Most” (“A ilusão da inovação: como nossa obsessão pelo novo corrompeu o trabalho que mais importa”, em tradução livre), publicado em 2020 nos Estados Unidos.

Vinsel argumenta que é importante distinguir entre inovação real e o discurso sobre inovação —marcados pelo léxico e por valores da indústria da tecnologia que incluem destruição criativa, velocidade e uma mente brilhante por trás das novidades. Para o pesquisador, a inovação nem sempre é positiva, já que pode destruir empregos e criar expectativas irreais.

Como distinguir inovação de verdade de ilusão de inovação? Existe a diferença do que chamo no livro de inovação de fato e o discurso da inovação. O primeiro seria a introdução de novos métodos, produtos e tecnologias na sociedade.
O discurso de inovação, por outro lado, é a forma como falamos e pensamos sobre essas mudanças. Quando pensamos na história da palavra inovação, ela não era tão usada antes da Segunda Guerra e os anos 1960.

Como esse discurso de inovação se tornou dominante na vida cotidiana? Parte da minha teoria sobre o assunto é que o discurso sobre disrupção é um produto dos anos 1990. Acredito que essa forma de falar ascendeu junto com a internet. Existem áreas de disrupção clássica que vieram com a internet, como o streaming, que acabou com as grandes redes de locação de filmes. Houve uma fase em que se pensava que todos os aspectos da vida seriam alterados pela internet. E é um processo ligado ao Vale do Silício, justamente porque são pessoas interessadas em usar a internet para quebrar uma ou outra indústria. Mas hoje já vimos que nem todas podem sofrer esse processo. É difícil pensar na disrupção via aplicativo da indústria de aço e de biocombustível. Houve muito hype envolvido nesse discurso. A geração constante de novidades em métodos e produtos não se aplica a todos os campos de produção.

No livro você menciona a importância da manutenção e do cuidado, setores importantes, mas desvalorizados, caso dos serviços de enfermagem, cuidado com idosos, reparos em estruturas físicas. Como a pandemia impactou as percepções sobre os trabalhos de cuidado e manutenção?
A pandemia trouxe à tona a importância dos trabalhos essenciais. O discurso nos Estados Unidos é a favor dos trabalhadores essenciais. Porém, não há conversas sobre mudanças estruturais capazes de melhorar a vida dessas pessoas, e muitos desses trabalhos são mal pagos. Existe um impacto maior disso nas mulheres e minorias étnicas. É um problema profundamente conectado com a desigualdade. Quando falamos em cuidado, estamos falando em mulheres, especialmente pertencentes a minorias. Seria possível usar o discurso dos trabalhadores essenciais para discutir essas desigualdades.

Empresas de tecnologia não têm interesse em investir em manutenção? É um desinteresse movido por razões econômicas ou ligado à ideia de manter inovações em curso? 
As empresas não apenas não estão interessadas em manutenção, como fecham as iniciativas que aparecem. Com certeza isso é movido por lucro, mas em um nível mais profundo é uma questão cultural. Nós nos tornamos uma sociedade ‘‘throw-away’’ (do desperdício). Existe uma conspiração entre consumidores e as grandes empresas que sabotam o reparo e a manutenção. Consumidores não querem se incomodar com o reparo, preferem comprar um item novo.

Como é construída a relação entre as ocupações ligadas a cuidados e as características sociais desses trabalhadores — principalmente mulheres? O trabalho é desvalorizado por causa do grupo que o realiza ou os grupos que o realizam têm acesso a ele por já ser culturalmente desvalorizado? 
Existe uma hierarquia de status de trabalho e, a partir disso, criamos ideias de quais tipos de pessoas realizam cada tipo de trabalho.

Existe um discurso da manutenção da mesma forma que existe um discurso da inovação? No livro, decidimos não fazer uma lista de recomendações de políticas para manutenção. Trabalhamos com níveis diferentes: nacional, de organizações e individual. Fazer com que líderes de organizações pensem mais a longo prazo, respeitem mais os responsáveis por manutenção. Precisamos de melhorias na infraestrutura e na manutenção dela, precisamos de mudanças de legislação que encorajem organizações a pensar no longo prazo. Existem estruturas hoje que nos fazem pensar em crescimento e lucro. Precisamos do pensamento a longo prazo.

O discurso de inovação, no livro, é focado no gênio, no indivíduo que tem sozinho novas ideias. É uma figura nova? Mesmo no início do século 20 era possível identificar alguns CEOs carismáticos, como Henry Ford. Mas após a Segunda Guerra Mundial, que é quando a obsessão com crescimento emerge, companhias estão sempre procurando aquela novidade que vai colocá-los na frente de todo mundo. Existe um sistema de recompensa que incentiva esse comportamento. Mas existe uma performance do inovador, e se forma uma estrutura de trabalho na qual pessoas precisam se apresentar dessa forma. Tem até um visual, um código de conduta.

Você diz que a relação entre inovação e crescimento não é quantificável e que talvez não deveríamos incentivar tanto o crescimento. Pode aprofundar essa análise? 
O avanço tecnológico é ligado ao crescimento econômico. Mas, embora falemos cada vez mais em inovação, não é verdade que estejamos inovando cada vez mais. Talvez seja até possível falar em redução da inovação desde os anos 1970. Existe uma desconexão entre o discurso e a coisa em si, mesmo em negócios que querem ser grandes inovadores. Só o discurso não vai levá-los à inovação.

Na política, é mais importante inaugurar projetos do que fazer manutenção dos antigos? 
Vivemos uma cultura de cortar o laço: inauguramos estradas, pontes. É fácil receber crédito fazendo coisas novas, e não é tão fácil receber crédito por manter o bom funcionamento. É um incentivo ao pensamento a curto prazo.

Existe um descompasso entre a forma como o discurso da inovação aparece na educação e as funções que os jovens de fato vão realizar na vida profissional? 
Quando olhamos para disciplinas STEM (ciências, tecnologia, engenharia e matemática), tudo ali é voltado a inovação. Estudantes de engenharia fazem competições de robôs. Essa abordagem pode ser prejudicial para a autoestima dos jovens, pois esse não é o tipo de trabalho que eles vão fazer quando se formarem. Vemos muito burnout nesses campos, não surpreende que esses jovens fiquem deprimidos. Precisamos de uma representação mais fiel do tipo de trabalho que existe. Além disso, a figura do inovador é excludente para grupos como mulheres e minorias raciais. Se apostássemos nas figuras do cuidador, do provedor, em detrimento do inovador seria mais apelativo. É o cuidado com o mundo. Talvez não seja tão sexy quanto a figura do inovador, mas é muito importante.

De fato, numericamente nem todos podem ser líderes inovadores. Mas o discurso do que é desejável profissionalmente é voltado para a inovação. Com certeza. É matematicamente impossível que todos os estudantes em uma sala sejam CEOs. Ignorar que os trabalhos são majoritariamente de manutenção é a ilusão de inovação da qual falo no livro. É ignorar o lugar de onde estamos falando, ignorar o mundo ao redor. Temos que lidar com desigualdade, mudança climática. E não vamos conseguir sem olhar para as coisas pequenas. Por exemplo, se uma estrada está se deteriorando, se vamos envelhecer com conforto… Precisamos colocar os pés no chão.

RAIO-X
Lee Vinsel, 41
Professor da universidade Virginia Tech, nos EUA, onde leciona sobre sociedade, ciência e tecnologia. Fundou o grupo The Maintainers (Os mantenedores), dedicado à pesquisa sobre manutenção e trabalho cotidiano com tecnologia. É autor de “Moving Violations” (Johns Hopkins University Press, 2019) e “The Innovation Delusion’’ (Currency, 2020), este com Andrew L. Russell.

Remédio amargo

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O termo lockdown ganhou espaço no vocabulário nos últimos meses, podemos defini-lo como a versão mais rígida do distanciamento social e quando a recomendação se torna obrigatória. Neste período muitos especialistas destacaram-na como a forma de auxiliar no combate ao coronavírus, responsável por uma das maiores crises sanitárias do país.

Neste momento precisamos construir laços sociais, políticos e econômicos para garantir o isolamento de todos os grupos sociais, empresas e instituições, levando-as para, literalmente, reduzir suas atividades. Nos exemplos mais exitosos de Lockdown, todos os grupos sociais atenderam ao chamado das autoridades, cabendo ao poder público construir uma estratégica de comunicação eficiente, garantindo auxílios monetários e financeiros, aumento e rapidez da vacinação. Na sociedade brasileira, marcada por grandes desigualdades e crises de emprego e queda da renda, percebemos que os conflitos são generalizados, confrontos políticos, falsos argumentos e incompetência na gestão, com isso, percebemos que caminhamos rapidamente para o colapso e para as convulsões. O lockdown é necessário e imprescindível, depois de contabilizarmos 300 mil mortes, com uma gestão pública caótica, adotá-lo é a única forma de diminuir o colapso que se avizinha para a sociedade. Além do lockdown, precisamos acelerar o auxílio emergencial e acelerar a vacinação. Sem organização e na ausência de liderança os problemas tendem a piorar rapidamente.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia. Publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 28/03/2021.

Invisíveis, por Fernando Schuller,

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A desigualdade é ‘funcional’ no Brasil, e isso vem travando as políticas de isolamento

Fernando Schuller – Folha de São Paulo, 25/03/2021

Ele trabalha na segurança do prédio. Está sempre lá, cedo de manhã, o João. Nunca soube de onde ele vem e como chega até aqui. Um dia perguntei. “Pego um ônibus, embarco no metrô” e depois caminho um pedaço de Moema pra chegar aqui.”

Me lembrei do João quando vi um comunicador reclamando que a cidade andava “quase normal”, no meio de pandemia, com o transporte lotado e tal. Perguntei de onde as pessoas imaginam que surgem os entregadores de pizza, diaristas, motoristas, frentistas e porteiros que atendem o andar de cima, silenciosamente, todos os dias?

Alguém me disse que a pergunta era inconveniente e podia servir de boicote às medidas de isolamento. Era melhor manter essa coisa meio “invisível”. Achei curioso. Naquela visão, devíamos fingir que o problema não existia, ou quem sabe nem bem aquelas pessoas todas existiam. E irmos pra cama tranquilos depois de um filme na Netflix.

O problema da autoilusão é que você dá um drible na realidade, xinga seu adversário pra disfarçar, mas o mundo frio dos indicadores e as estações lotadas continuam lá, todas as manhãs. Os dados mostram que a taxa de isolamento social em São Paulo caiu a apenas 43%, agora no auge da pandemia. A pergunta é por que, e quem está pagando a conta.

Uma pista foi dada no estudo publicado no Journal of Population Economics, mostrando como diferenças de renda afetam as pessoas na pandemia. O grupo de maior renda tem até 54% a mais de chances em relação ao de menor renda de tomar medidas de proteção como o distanciamento social.

Há muitas pesquisas apontando nessa mesma direção. Uma das mais cruéis mostrou que a pandemia tem sido muito letal entre a população negra, no estado de São Paulo. Se estivéssemos na Dinamarca ou na Suécia, com uma estrutura social mais homogênea, medidas de isolamento atenderiam a todos de modo mais uniforme. Mas estamos no Brasil, com seu enorme contingente de pobreza. E aí as coisas se complicam.

Dan Ariely usou um termo difícil pra explicar o fenômeno. Sugeriu que a vulnerabilidade econômica leva as pessoas a fazer um “desconto hiperbólico”, priorizando os temas ligados à subsistência em detrimento de regras e cuidados com o futuro.

Meu ponto é que pouca gente parece de fato disposta a sair da retórica e encarar o problema. A maior probabilidade é de irmos levando. Podemos até fazer de conta que o auxílio emergencial vai resolver o problema, mas ele não vai.

Seu alcance é, quando muito, amenizar a situação de quem vive abaixo da linha de pobreza.

A verdade é que se trata, em boa medida, de um problema sem solução. O sistema político até poderia ter feito um ajuste duro e gerado uma transferência de renda mais robusta, mas não o fez. A elite do funcionalismo abriu mão de ganhar acima do teto? Os partidos abriram mão do fundão? Alguém topou discutir redução temporária de jornada na área pública, em meio à maré de demissões no lado privado?

Contar com a disposição da sociedade para isso é uma quimera. A mistura de pobreza e desigualdade é “confortável” no Brasil. Que percentual de famílias com maior renda deixa que a empregada fique em casa? Dias atrás vi o oposto: a família demite a empregada que precisava acompanhar o pai na UTI. Ela agora está “na batalha”, como me disse dia desses, no elevador. O risco da Covid não é o primeiro item de sua escala de urgências.

Escutei muita gente boa sobre como lidar com o problema. Há quem imagine que a solução é ir ao Supremo e aumentar o valor do auxílio. Quem sabe o STF ajude também a achar a fonte do recurso. Um interlocutor me falou de “pequenas medidas práticas”, como ampliar frotas de transporte e evitar aglomeração. “Não há bala de prata”, me disse ainda outro, “e já é quase tarde demais para tentar alguma coisa”.

Talvez ele esteja certo e o que nos resta, enquanto esperamos pela vacina, é exercitar a raiva política (quem sabe nossa grande especialidade) e evitar as perguntas inconvenientes. A opção seria ter liderança. Pactuar medidas duras e acelerar o fim dessa tragédia, mas não vejo disposição de quase ninguém nesta direção.

Oportunidades pós-pandemia

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O mundo vive momentos de ansiedade e preocupações, a pandemia está redefinindo as estruturas da sociedade, levando os indivíduos, as empresas e os governos a se reinventarem, buscando novos horizontes e perspectivas para a coletividade, reconstruindo novos espaços de produção e solidariedade dos seres humanos. Neste momento de crise sanitária global, ainda não conseguimos enxergar os horizontes que devem ser abertos para a sociedade global no período posterior a pandemia, mesmo assim, algumas características estão nítidas, criando desafios inéditos, preocupações crescentes e novas oportunidades, onde os atores mais preparados, ágeis e flexíveis, tendem a ganhar espaços na economia internacional.

Muitos acadêmicos estão refletindo sobre a sociedade internacional nos momentos posteriores da pandemia, cada um defende suas teses para compreenderem o comportamento dos consumidores, das empresas e governos dos próximos anos. Diante disso, percebemos que a grande maioria dos teóricos acreditam que o mundo pós pandemia será mais desigual e com novas formas de globalização, com novos modelos de produção, novos modelos de negócios e um aprofundamento da desigualdade e da exclusão social entre todas as regiões do mundo, exigindo uma atuação mais efetivas dos Estados Nacionais.

A indústria brasileira perdeu espaço na economia nacional, deixando claro a dependência de insumos importados, faz-se necessário um novo consenso entre todos os agentes econômicos e políticos para a reconstrução da indústria nacional. Reestruturando urgentemente os setores que foram impactados, tais como a indústria da saúde, que das últimas décadas perderam espaço na economia. Este fortalecimento reduzirá a dependência de parceiros internacionais, que num momento de crise, como a que vivenciamos, privilegiam sua produção interna e o bem-estar de sua população, reduzindo nossa autonomia. Neste momento, precisamos reconstruir nossa estrutura industrial e garantir forças produtivas autônomas e capacitadas para sobreviver e garantir a sobrevivência em momentos de crises, sejam sanitárias, econômicas, políticas e convulsões sociais. E fundamental aprendermos com a pandemia, que pode nos legar melhoras na estrutura econômica e produtiva, melhorando emprego e diminuindo a dependência internacional.

A pós-pandemia prescinde de uma consolidação da economia digital, que precisamos para concorrer e sobreviver no cenário internacional, onde as potencialidades das nações devem exigir investimentos adicionais na formação de capital humano, além de garantir investimentos científicos e tecnológicos, sem estes recursos as posições nos rankings educacionais e de produtividade tendem a piorar e perpetuar as péssimas condições de vida da população.

As novas tecnologias estão gerando grandes transformações na sociedade, neste momento precisamos construir as tecnologias 5G, estimular estas tecnologias e diminuir os hiatos crescentes com as nações desenvolvidas. No futuro devemos compatibilizar modelos híbridos entre atividades presenciais e digitais, exigindo a capacitação dos trabalhadores, estudos crescentes e contínuos, exigindo investimentos em inclusão digital, sem esta inclusão as desigualdades tendem a crescer, fragilizando o capital humano e diminuindo o desenvolvimento econômico.

O mundo pós pandemia exige uma maior cooperação entre as nações, internamente percebemos que vivemos num momento preocupante, existem inúmeras oportunidades para todos os agentes econômicos e políticos, mas faz-se necessário uma união e a busca de um consenso imediato. Neste momento se faz necessárias ações urgentes, precisamos reconstruir a indústria brasileira, esta reconstrução deve estimular a produção interna, a capacitação do capital humano, os investimentos de agências de fomento público, investimentos em pesquisas, ciência e tecnologia e políticas de proteção nacional, centrado no estímulo local e estímulo da concorrência global, com metas sólidas de vendas externas e incremento da produtividade. Sem atuações efetivas, serenas e imediatas, a sociedade tende a amargar outra década perdida.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia/Unesp, Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário de Região, Caderno Economia, 24/03/2021.

A carta tardia do PIB, por Cristina Serra.

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Entenderam que não adianta ter dinheiro para pagar UTI aérea para Miami?

Cristina Serra – Folha de São Paulo, 23/03/2021

Quer dizer que foi preciso um ano de pandemia, quase 300 mil cadáveres, o colapso dos hospitais e um tombo colossal na economia para que parte expressiva do PIB se manifestasse publicamente sobre a catástrofe humanitária que nos põe de joelhos? Tirante honrosas exceções que assinam a carta divulgada neste fim de semana, a maioria permanecera em indiferente pachorra.

São mais de 500 assinaturas; alguns sobrenomes reluzentes, de banqueiros, empresários, ex-ministros, ex-dirigentes do Banco Central e economistas que, até outro dia, clamavam pela urgência das reformas, mas não mostravam a mesma preocupação com a premência de salvar vidas.

Muitos até devem ter achado, como disse o famoso animador de auditório, que Bolsonaro teria uma “chance de ouro de ressignificar a política”, seja qual for o sentido disso no dialeto da Faria Lima. Agora, com as UTIs dos hospitais privados lotadas, parecem ter despertado do modo “repouso em berço esplêndido”.

O que mudou? Entenderam que não adianta ter dinheiro para pagar UTI aérea para Miami? Que não somos bem-vindos em nenhum país porque cevamos um criadouro de variantes agressivas do vírus? Que estamos todos na mesma tormenta, embora milhões a enfrentem agarrados a um pedaço de pau e pouquíssimos em um transatlântico? Simplesmente perceberam que Paulo Guedes não tem força para demolir o Estado, como esperavam? Ou a soma disso tudo?

Com tal carta, nossa elite mostra como é elástica sua tolerância diante de uma tragédia que atinge principalmente os mais pobres. Ao ler o documento, procurei menção a, quem sabe, aumento de imposto sobre suas imensas fortunas. Nenhuma palavra. Apesar de tardia, a carta pode até ajudar a controlar rompantes autoritários de Bolsonaro. Daí a conter o genocídio que nos abate há longa distância. Para isso, é preciso combinar com os mercenários e franco atiradores do centrão. E enquanto você lê esse texto, mais um coração brasileiro parou de bater.

Negação, negacionismo e má-fé, por Vera Iaconelli.

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Vera Iacoconelli – Folha de São Paulo, 23/03/2021.

Normalidade não é coisa de humanos, mas há casos e casos

Lembra aquela sua amiga que te ligou para falar que ia se separar do marido monstro, te deixando com a certeza de que, finalmente, ela ia se livrar daquele pequi roído? Você se sentiu aliviada(o) pensando como foi ótimo ter confessado tudo que você pensava dele há anos. Pois é… não só ela nunca se separou dele, como nunca mais atendeu seus telefonemas.

Entre belos discursos – “vou me separar”— e as fantasias inconscientes — “amar é sofrer”, por exemplo —, cada um de nós tem que lidar com sua divisão interna. O mecanismo de negação nos protege de realidades desagradáveis e permite que sigamos no dia a dia sustentando desejos conflituosos dentro de nós.

Uma das genialidades de Freud foi apontada por Philippe van Haute e Tomas Geyskens em “Psicanálise Sem Édipo: Uma antropologia clínica da histeria em Freud e Lacan” (Autêntica, 2016), na qual os autores recuperam a via que denominaram de “patoanalítica” da psicanálise. Isso significa dizer que eles resgatam a ideia freudiana de que normalidade não é coisa do mundo humano e o que chamamos de loucura, neurose e perversão é mais da ordem do grau do que da diferença absoluta. Caetano já teorizava, “de perto…”.

Agora imagina que a amiga, que volta deliberadamente para os braços do boy lixo e que sempre foi criticada por fazer isso, encontra um grupo na igreja que acredita que a mulher tem que se submeter ao marido, comungando com sua fantasia inconsciente. E que fazendo parte desse grupo ela se sinta importante pela primeira vez e ainda se veja representada na figura da primeira-dama e de mulheres em cargos importantes do governo. Junte-se a isso que seu ódio ao marido —e a si mesma— possa ser desviado para fora, sendo projetado em feministas, esquerdistas, comunistas…

Negacionismo foi um termo criado para falar de negações de eventos específicos como Holocausto ou certezas científicas. Para sustentar tamanha negação e ter efeitos sociais importantes, os sujeitos precisam se separar de quem contradiz suas interpretações da realidade e se unir a quem pensa igual. Aí entra um ingrediente desconhecido de Freud: as redes sociais, nas quais negacionistas encontram milhares de pessoas que pensam como eles. Não se trata mais de se dirigir pessoalmente à Hofbräuhaus em Munique para ouvir um tal de Hitler discursar contra judeus e homossexuais. Basta um clique para você encontrar seus pares e confirmar que a Terra é plana, óbvio.

Além disso, os laços de reconhecimento mútuo que pessoas usualmente preteridas pela sociedade fazem nesses grupos costumam ser carregados de afetos e de sentido de reconhecimento e pertencimento. O amor que une as bolhas se sustenta na condição de se destilar ódio aos outros. Quando essas bolhas encontram um líder que as represente de forma pública, temos a tempestade perfeita. O amor ao líder e o ódio projetado no inimigo comum permitem que negacionistas briguem menos entre si, criando a patota dos cidadãos de bem.
Já na má-fé o sujeito sabe muito bem qual é a realidade dos fatos, mas explora a miséria e o negacionismo de outros. Entre os exemplos que pululam, temos o dado pelo “pastor” Edir Macedo.

Enquanto prega que seus fiéis não precisam se vacinar —pois o vírus só contaminaria homens de pouca fé— corre para tomar a vacina recém-liberada nos EUA, onde mora.

Reconhecer a importância da vacina e, deliberadamente, desmenti-lo em público para obter vantagens —e, ato contínuo, tomá-la— é traço inequívoco de psicopatia.

Dito isso, que fique claro que Bolsonaro é um negacionista de segunda, mas genocida de primeira.

Esquerda e direita têm demonstrado, ao longo da pandemia, o lixo que são, por Pondé.

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Peste prova que a humanidade não evolui moralmente um centímetro, apesar de o marketing vender o contrário

Luíz Felipe Pondé – Folha de São Paulo, 22/03/2021

Máximas vindas do coração da peste:
1) Os idiotas da peste estão por toda parte. Seguem seu mito. Fazem pancadão e churrasco na cobertura do prédio. São responsáveis, indiretamente, em parte, pelas mortes ao dar sustentação a um governo irresponsável. Alguém ainda duvida de como nossa espécie é irracional?

2) A vacinação centralizada no Estado é coisa de gente atrasada. Muita dessa gente atrasada tem diploma e é especialista em epidemiologia. Já temos mercado paralelo, corrupção, nepotismo e truques oportunistas de gente que se encosta em quem de fato está na linha de frente para faturar vacina furando a fila. A vacina virou mais um mercado para a corrupção. Quem quiser ver verá: nasce um canalha a cada instante.

3) Quanto mais a mídia esfregar na cara das pessoas um alto número de mortos, mais indiferente elas ficarão. Grandes calamidades são monótonas. Nunca subestime a potência da monotonia como causadora de indiferença ao sofrimento alheio. Faltou inteligência aos jornalistas: correndo atrás de “opiniões científicas” a todo custo, acabaram por ingressar no frenesi do excesso de dados.

4) A peste se tornou um grande mercado para oportunistas (com ou sem diplomas) virarem celebridades vendendo o terror. Revistas científicas de renome buscando furos. Artigos sem revisão pelos pares saem na mídia como verdade última acerca da não eficácia de vacinas. Cientistas buscando seus 15 minutos de sucesso. O vírus é parceiro da vaidade.

5) Grande parte do país é composta de retardados mentais em todos os espectros sociais e econômicos. Do pancadão à cobertura do prédio, a saturação de gente boçal é gigantesca.

6) Os burocratas do Judiciário só querem aparecer, inclusive atrapalhando no que for necessário para desfilar o poder da sua caneta sobre nós mortais.

7) Os militares perderam uma grande chance de mostrar autonomia em relação ao mito e se tornar uma força clara no combate à peste. As Forças Armadas hoje são uma sombra atrás do mito, que as chama de “Meu Exército”.

8) A classe política brasileira, em grande parte, mais uma vez mostrou seu oportunismo, politizando a peste, o tratamento e a vacina, fazendo do Brasil uma república das bananas.

9) Em outras épocas, as igrejas —fossem de que denominação for— eram agentes claros de civilização e combate a pestes. Pergunto: para além da preocupação com seus “dízimos”, o que as igrejas têm feito como protagonismo no combate da peste?

10) A peste já deveria ter derrubado Bolsonaro da Presidência, se as Casas Legislativas tivessem um mínimo de vergonha na cara.

11) O STF tampouco tem sido um agente exemplar na peste. Indiferente a ela, tenta furar a fila da vacina e finge estar preocupado com o país exigindo um “plano de vacinação” do inútil Ministério da Saúde, como se essa exigência tivesse alguma validade efetiva contra as mortes. Bravatas togadas.

12) No Brasil, a burocracia durante a peste tem demonstrado o quanto ela pode ser um entrave na solução dos problemas, mesmo quando essa burocracia vem de especialistas em saúde pública e vacinas.

13) O Brasil é um país, em grande parte, de ladrões e oportunistas. E essa gente mau caráter pesa sobre os ombros de quem luta no dia a dia, na peste e mesmo além dela, para fazer do Brasil um país menos canalha. Eventos como a peste deixam claro o mau-caratismo de uma população. Em meio a esses ladrões e oportunistas tem gente com ou sem casaca, com ou sem colarinho branco, com ou sem diploma, de todos os espectros ideológicos.

14) Esquerda e direita têm demonstrado, ao longo da peste, o lixo que são.

15) No Brasil, se você for inteligente, você será corrupto, político ou juiz.

16) As redes sociais brilham com a luz do Hades. Entre os mais adictos nelas estão os veículos de mídia que podem destruir sua credibilidade à medida em que rezam no altar do “deus engajamento”.

17) A peste prova que a humanidade não evolui moralmente um centímetro, apesar de o marketing vender o contrário.

18) A melhor coisa a fazer é não acompanhar mais o ruído. O silêncio e o quietismo são hoje formas de higiene pessoal.

Fareed Zakaria oferece dez lições para o mundo pós-pandemia

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Escritor prevê que desigualdade deve aumentar, e globalização, continuar.

Folha de São Paulo – Rafael Balago – 20/03/2021 – SÃO PAULO

O mundo deve sair da pandemia de coronavírus mais desigual e com novas formas de globalização, aposta o escritor Fareed Zakaria. Produtos digitais, afinal, circulam entre as fronteiras com muito mais facilidade do que itens físicos e se tornaram muito mais buscados no último ano.

No livro “Dez Lições para o Mundo Pós-Pandemia”, o autor faz uma série de reflexões sobre como a crise sanitária deve trazer mudanças e debate questões políticas, econômicas e culturais da atualidade. A obra, escrita em meados de 2020, foi lançada recentemente no Brasil.
Zakaria, 57, nasceu em Mumbai, na Índia. É doutor em ciência política pela Universidade Harvard (EUA), colunista do Washington Post e apresentador da CNN americana. Abaixo, algumas de suas conclusões:

1. APERTEM OS CINTOS
As inovações tecnológicas avançaram muito nas últimas décadas, e as sociedades foram mudando depressa, sem se preocupar com medidas de segurança. Zakaria faz uma comparação: é como se estivéssemos construindo um carro cada vez mais veloz, mas que não possui airbag, cinto de segurança ou seguro, e disputando corridas sem nos preocupar com os riscos. Assim, após desviarmos de vários pequenos perigos, a pandemia gerou um acidente grave. Os danos teriam sido minimizados caso tivéssemos menos desigualdade social e mais medidas de prevenção a epidemias, por exemplo.

2. O QUE IMPORTA NÃO É QUANTO, MAS COMO O GOVERNO INTERVÉM
Os EUA são um exemplo de governo que gastou muito, mas não conseguiu conter a propagação do vírus —é o país com mais casos e mortes acumulados até agora — nem retomar rapidamente a economia. Apesar dos auxílios muitas pessoas pobres demoraram a receber seus cheques, enquanto pessoas de classe média e alta também foram beneficiadas. Zakaria também avalia que ideologias como esquerda e direita ficaram obsoletas. “Os governos com atitudes mais relaxadas, que não funcionaram bem, foram os do Brasil [direita] e do México [esquerda], governados por populistas ferrenhos.”

3. MERCADOS NÃO SÃO SUFICIENTES
A pandemia mostrou a importância do Estado para atuar em uma emergência, de uma maneira que os mercados sozinhos não teriam interesse em fazer. Não se trata apenas de oferecer assistência médica a quem não pode pagar, mas dar apoio a desempregados e financiar pesquisas de vacinas.

4. AS PESSOAS DEVERIAM OUVIR MAIS OS ESPECIALISTAS, E VICE-VERSA
Zakaria aponta que muitos especialistas são vistos apenas como parte da “elite” e do “sistema”, o que gera desconfiança entre pessoas com menor escolaridade. Nos últimos anos, políticos como Donald Trump e Jair Bolsonaro passaram a atacar pesquisadores para reforçar sua imagem antissistema. Assim, ser contra a ciência se tornou um fator de identidade política.

Para serem mais ouvidos, a recomendação aos especialistas é que se aproximem mais das pessoas de outros grupos sociais e proponham soluções factíveis à realidade delas. As determinações de lockdown são um exemplo claro da dificuldade de transpor uma recomendação teórica para a realidade.

5. A VIDA É DIGITAL, E O TRABALHO DEVE VOLTAR A SE LIGAR COM A VIDA DOMÉSTICA
A tecnologia necessária para trabalho, educação, consultas médicas e entretenimento a distância já existia há anos, mas faltava um empurrão para serem adotadas em massa. Zakaria avalia que o futuro deverá ter um modelo híbrido entre atividades presenciais e digitais mais intenso do que no pré-pandemia.

Por isso, o trabalho volta a ser mais conectado à vida doméstica, como foi na maior parte da história humana. Era comum que um agricultor morasse perto das terras que cultivava ou que um comerciante morasse em cima de sua loja, por exemplo.

6. SOMOS ANIMAIS SOCIAIS, E AS CIDADES SEGUEM VANTAJOSAS
Apesar de a tecnologia facilitar o isolamento físico, a vida nas cidades segue mais interessante, diz Zakaria, já que temos mais pessoas por perto para trocar experiências em meio à convivência cotidiana, muitas vezes de modo informal. Assim, a pandemia mostrou o quanto alunos e funcionários perdem em conhecimento ao deixarem de interagir pessoalmente. E, mesmo em tempos de comércio fechado, o morador de uma metrópole tem muito mais opções do que o de uma cidade menor.

7. A DESIGUALDADE VAI AUMENTAR
Países ricos têm condições de conseguir dinheiro para a retomada pós-pandemia. Já as nações pobres terão mais dificuldade para se endividar e, assim, ajudar seus cidadãos. Em tempos de crise, investidores preferem lugares considerados mais seguros, como EUA e Europa, em um ciclo que os torna ainda mais seguros, enquanto enfraquece as economias de países da América Latina e da África. Grandes empresas também têm mais facilidade para se financiar do que os pequenos negócios, o que poderá aumentar seu poder e tirar comerciantes menores do mercado.

8. A GLOBALIZAÇÃO NÃO MORREU
Apesar dos fechamentos de fronteiras para viajantes, a troca de produtos entre os países seguiu forte na pandemia. O modelo é muito firme, pois as cadeias de produção são integradas, e os produtos, montados com peças de várias partes do mundo. Além de produtos, serviços digitais também viajam muito mais facilmente entre as fronteiras.

Assim, um exame de raio-x feito nos EUA pode ser analisado por médicos na Índia com ajuda de um software em Singapura, e a globalização vai ganhando novas formas.

9. O MUNDO ESTÁ SE TORNANDO BIPOLAR
Durante a pandemia, a China seguiu com crescimento econômico, enquanto os EUA enfrentam uma crise, com alto desemprego. Esse movimento favorece a ascensão do país asiático rumo ao posto de maior potência mundial. No entanto, este mundo bipolar será diferente do da Guerra Fria, pois as economias dos dois países estão profundamente integradas. Portanto, há um risco bem menor de conflito do que no caso da União Soviética, conclui o autor. Ainda assim, Xi Jinping segue com uma política agressiva para conquistar mais espaço no cenário internacional, como, por exemplo, com a Iniciativa do Cinturão e Rota.

10. UMA GRANDE CRISE ABRE ESPAÇO PARA IDEALISTAS
Após a Segunda Guerra, os países vencedores investiram na cooperação internacional, que incluiu a criação da ONU para estimular o desenvolvimento dos países e manter a paz. É uma visão contrária à de que cada país deve buscar seu sucesso por conta própria, sem se preocupar com os outros, e que ganhou espaço nos últimos anos estimulada por Trump. Zakaria avalia que os EUA não terão como recuperar o posto de líder global incontestável, pois muitas outras nações buscam protagonismo, mas que a pandemia abre caminho para resgatar a ideia de que, se todos cooperarem, todos terão mais ganhos.