Como o coronavírus mudou o rumo da democracia no mundo, por Adam Tooze.

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Em entrevista ao ‘Aliás’, o historiador Adam Tooze diz que a pandemia foi um divisor de águas na questão das relações EUA-China

Guilherme Evelin, O Estado de S.Paulo – 13/11/2021

O historiador britânico Adam Tooze ganhou notoriedade global com a publicação em 2018 do livro Crashed- how a decade of financial crises changed the world (sem lançamento no Brasil), sobre a crise financeira internacional de 2008. Tooze acaba de publicar uma história da crise planetária provocada pela pandemia do novo coronavírus. O resultado do seu trabalho saiu no livro De Portas Fechadas- Como a Covid abalou a Economia Mundial, recém-lançado no País pela editora Todavia.

Em março de 2020, Tooze estava voltando para Nova York, onde dá aulas na Universidade Columbia, de uma viagem à Africa. No aeroporto de Istambul, na Turquia, ele se deu conta de como o pânico crescente em relação à pandemia estava levando as sociedades – e não propriamente os governos – a simplesmente parar e fechar as portas. Resolveu abraçar então a empreitada intelectual de contar a história desse fato sem precedentes. Ao esmiuçar desde os impactos nos números de pousos e decolagens no aeroporto de Heathrow, em Londres, reduzido ao movimento dos anos 50, até as intervenções do banco central americano, o Fed, para evitar um colapso dos mercados financeiros, Tooze faz a narrativa de 2020 com a lente de quem se assume como um “liberal keynesiano” e vê a pandemia como mais uma crise da era neoliberal iniciada nos anos 80. A seguir, trechos da sua entrevista para o Estadão

Qual é a melhor síntese para a pandemia: ela foi um divisor de águas na política e na economia global ou apenas intensificou tendências já existentes?
Se você pega o papel dos bancos centrais em administrar os mercados globais de finanças, a crise representou uma intensificação de tendências já existentes. Houve uma exacerbação da escala das intervenções dos bancos centrais nos Estados Unidos e na Europa. Em 2020, eles foram forçados a dobrar suas apostas. Um divisor de águas ocorreu nas relações entre Estados Unidos, Europa e a China. As tensões estavam aumentando há um tempo, mas essas relações tomaram uma nova, abrangente e militarizada perspectiva geopolítica. Eu acrescentaria um terceiro ponto. A crise teve também um aspecto de revelação. Ela revelou para nós claramente, com grandes letras em neon, o mundo em que nós estamos vivendo. Vejo o elemento revelatório no reconhecimento de que o problema ambiental, que muitos de nós achavam que estava concentrado na questão climática, tem também outras facetas, que são até mesmo mais amplas em termos dos danos que elas podem causar. A questão climática, a maior parte do tempo, representa uma crise local ou macroregional: os incêndios florestais, as secas, as grandes tempestades. A pandemia mostrou como um problema da relação do homem com o meio ambiente pode afetar todos no planeta.

Qual é a conexão entre seu novo livro e “Crashed”, seu livro sobre a crise financeira internacional? É o fim da ortodoxia que predominou nas políticas econômicas a partir de 1980?
“De Portas Fechadas” é uma espécie de sequência inesperada de Crashed. Eu não esperava tê-lo escrito. O que os une é que nós estamos em meio a um processo de busca por novos caminhos para administrar os riscos financeiros, geopolíticos, ambientais e as instabilidades políticas. Esse processo começou na Europa e nos Estados Unidos em 2008, mas nos mercados emergentes começou antes, na década de 90. Sim, o nível de ortodoxia nas práticas dos governos agora é muito difícil. Mas o que nós estamos vendo é uma evolução antes do que uma ruptura na forma como os governos fazem as coisas: há uma constante inovação com novas técnicas, novos meios de intervenção, novas políticas de administração de mercados financeiros. A nível de estrutura social, porém, há uma grande continuidade.

Todas as dramáticas intervenções dos últimos anos foram profundamente conservadoras. A razão delas não foi um projeto de transformação da sociedade, mas a manutenção do status quo.

Os estímulos fiscais e monetários adotados pelos governos e pelos bancos centrais foram enormes em 2020. Os governos colocaram em prática uma série de políticas há muito tempo reivindicadas por políticos de esquerda, assim como o adágio de John Maynard Kenyes: “Qualquer coisa que possamos realmente fazer, podemos pagar”. No entanto, como o senhor demonstra no livro, isso não representou uma vitória da esquerda. Por quê?
Há uma espécie de paradoxo. A esquerda é capaz de gerar diagnósticos, que são poderosos, atraentes e, muitas vezes, são os melhores em oferta. Mas ela não é capaz de reunir uma coalizão política para sustentá-los. Um diagnóstico correto não leva à necessária transformação. É preciso uma síntese dialética entre análise e poder político concreto. Muitas das políticas do repertório da esquerda foram adotadas por tecnocratas que estão no poder e têm condições de colocá-las em prática porque se sentem livres para fazer isso precisamente porque a esquerda é tão fraca. Se a esquerda fosse de fato um agente radical de mudança social, isso seria amedrontador para as pessoas no poder. Uma razão para que os bancos centrais independentes adotem ideias da Teoria Monetária Moderna não é porque eles acreditem que essa é a coisa certa a fazer. Na verdade, eles não sentem medo de que o radicalismo deles abra a porta para o radicalismo de outros ou para uma massiva insurgência de forças agressivas contra o sistema. Os bancos centrais operam com grande liberdade tecnocrática.

Como estamos vendo nos Estados Unidos, o presidente Joe Biden está tendo grandes dificuldades para conseguir apoio para seus planos de gastos trilionários com infraestrutura, programas sociais e ações de enfrentamento do aquecimento global. Isso não é a demonstração de que a ortodoxia econômica resiste?
Não acho que seja o neoliberalismo que esteja resistindo, mas o conservadorismo. O que nós estamos vendo nos Estados Unidos é o resultado do crescente fosso entre as forças que se reúnem em torno do Congresso e dos mecanismos eleitorais existentes em cada Estado e a opinião da maioria do eleitorado americano que vive nas cidades e tem se inclinado pelos candidatos presidenciais do Partido Democrata, de centro-esquerda. Esse drama representa mais a crise do sistema político americano do que uma história sobre o futuro do neoliberalismo. O ímpeto para gastar de pessoas como Chuck Schumer (líder do Partido Democrata no Senado) e Nancy Pelosi (presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos) tem menos a ver com uma epifania para agir como social-democratas do que um medo genuíno em relação à preservação da democracia americana, pela qual eles temem caso eles sejam derrotados nas eleições para o Congresso em 2022. O que nós estamos vendo não é uma luta sobre neoliberalismo, mas uma luta sobre a Constituição americana, que tem um grande viés contra uma ordem majoritária, e como ela deve funcionar.

Ao resenhar seu livro, Robert Rubin, ex-secretário do Tesouro dos Estados Unidos, se perguntou se a democracia americana iria sobreviver. Qual é a sua resposta para essa pergunta?
Isso depende do que você entende ao perguntar se a democracia americana irá sobreviver. Eu espero uma guerra civil? Não. Espero que os mecanismos da Constituição americana se tornem disfuncionais? Sim. Espero que o sistema político americano produza uma governança consistente pela maioria? Não. O Partido Republicano está comprometido em garantir que esse não seja o caso. Será uma democracia funcional no sentido de produzir decisões rapidamente em resposta aos grandes desafios? Não. Isso, na verdade, já está acontecendo. A democracia americana não tem funcionado bem há décadas. Sabemos que, em termos de comparação com outros países de renda alta, por vários indicadores, como concentração de riquezas, os EUA não têm funcionado bem.Eu concordo com o espírito da pergunta, mas não sei qual é a resposta. Diria que a democracia americana vai sobreviver de algumas maneiras. Os americanos não conhecem outra forma de governo. A ideia de que Trump poderia ter-se transformado numa espécie de ditador é absurda. Mas os EUA vão se tornar crescentemente uma democracia disfuncional? Eles já estão bem à frente nesse caminho.

Seu livro é uma advertência de que nós devemos nos preparar para uma onda de crises. O senhor está vendo algum progresso real na Conferência do Clima (COP-16) em Glasgow para evitar uma grande crise ambiental?
Não quero parecer desdenhoso em relação ao que foi feito na COP. Não é a abordagem mais construtiva. Mas vimos o grande e decisivo avanço que seria um acordo coletivo de todos os grandes consumidores de carvão para acabar com o consumo de carvão? Não. Vimos uma grande promessa em relação ao deflorestamento, mas onde estão os detalhes, os compromissos? Há promessa de zerar as emissões de carbono em 2050, mas em 2050 a maioria das pessoas envolvidas nesses acordos não estará viva. É o tipo de acordo ou promessa fácil de fazer, mas que tem muita pouca substância.

Quando se trata dos compromissos em relação a dinheiro, eles estão raspando o tacho para juntar 100 bilhões de dólares, quando deveríamos estar ganhando trilhões a cada ano. Não é como Trump e Bolsonaro fingindo que o problema não existe, mas não é um compromisso de ação que ataca a severidade da crise existente. É uma espécie de negacionismo “de facto”, sem se engajar no absurdo de negar que o problema existe. Isso reforça a percepção de que a COP não deve ser o fórum de decisões para esse tipo de acordo e que deve ser dada mais atenção às políticas nacionais dos grandes emissores: China, Europa e Estados Unidos. Não houve um fracasso total, como na COP de Copenhague, mas, ao final do jogo, a reunião de Glasgow serviu para traduzir as promessas do Acordo do Clima de 2015 em metas ao nível das nações, onde poderemos ver, talvez, ações reais.

Quais serão as implicações do novo cenário geopolítico com o aumento da competição entre EUA e China? Pode haver uma guerra no futuro?
Existem pessoas nos Estados Unidos e na China, cujo trabalho é planejar para a guerra. Se você os ouve, a guerra é uma possibilidade nítida. E eles claramente consideram que em Taiwan há um casus belli (expressão latina para designar um fato considerado suficientemente grave pelo Estado ofendido, para declarar guerra ao Estado supostamente ofensor.) É difícil acreditar que os Estados Unidos se movimentarão decisivamente para uma confrontação militar por causa de Taiwan. Mas é preciso levar em consideração que as pessoas no Pentágono, num ecossistema de poder complexo como o dos Estados Unidos, vivem em seus próprios mundos à parte. Houve uma virada notável entre o começo e o último ano do governo Trump e o começo do governo Biden: as pessoas que conduzem a política para a China não são mais as pessoas do Departamento do Tesouro ou do Departamento do Comércio ou do Fed (o banco central americano). É agora o pessoal do Conselho de Segurança Nacional e do Pentágono. A narrrativa agora em Washington é que as pessoas da área econômica lideraram as relações com a China, e elas fracassaram porque não entenderam a natureza do problema. Agora, chegou a vez de outra turma jogar. Por causa dessa mudança, não sei como essa bola poderá agora ser devolvida. Uma vez que a bola foi passada para o pessoal militar e da segurança nacional, eles agora têm que jogar o jogo até que ele chegue a uma espécie de conclusão. Talvez não seja a velha política de segurança nacional que leve a uma guerra com a China, porque soldados sabem quão sérias as guerras são.

Mas as relações com a China foram profundamente militarizadas. Elas estão sendo tratadas agora na dimensão da segurança nacional – e o governo Biden tem sido muito relutante em mudar essa abordagem. Os chineses viram que o governo Biden não iria mudar a linha de atuação para uma abordagem econômica mais convencional. E não é por acaso que tenham ocorrido tão poucas interações de alto nível entre Washington e Pequim desde o início do governo Biden.

Também não é um acidente que Xi Jinping não tenha comparecido à COP-26. Xi não quer estar na mesma conferência em que esteja Biden. A questão central para Xi, claramente, é a competição entre regimes. Os americanos anunciaram isso, e os chineses levaram esse anúncio a sério.

A pandemia atingiu severamente a América Latina e aumentou a percepção da crise da região. Como vê o impacto da pandemia no Brasil e na região?
O fato de que a América Latina, por causa dos altos níveis de informalidade, de desigualdade social e do populismo de alguns expoentes da política da região, foi mais duramente atingida pela pandemia não é surpreendente, porque o vírus, precisamente, ataca com mais força onde há fraquezas. Um segundo aspecto que eu quis enfatizar no livro foi a competência, a capacidade, a sofisticação dos Estados latino-americanos, com a exceção da Argentina e talvez do Equador, de lidar com o stress financeiro gerado pela pandemia. Depois que Fed injetou liquidez nos mercados, os principais hubs financeiros latino-americanos foram capazes de escapar de uma maciça tempestade financeira. Isso não é novo, mas, antes, não poderia ser considerado como uma coisa certa. Isso é o resultado de acúmulo de reservas financeiras , de capacidades, de competências, de networking, de capital cultural e social das elites financeiras latino-americanos dentro do sistema global. Isso implica também conformidade aos parâmetros ditados por Wall Street. Não são mais os rebeldes dos anos 60. Isso é altamente significativo. Não confere uma soberania radical, mas um grau de autonomia e uma habilidade para amortecer e evitar o pior, que seria uma crise sanitária, uma crise social e, ainda por cima, uma crise financeira. Um terceiro aspecto dessa crise é o grande ponto de interrogação que ela deixa em relação ao futuro da América Latina. É uma questão que tem sido colocada por intelectuais na América Latina há mais de um século, mas que ganhou ainda mais proeminência depois desse choque.

‘Estamos colhendo o custo do populismo’, diz economista da FGV

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Para Silvia Matos, Brasil vive muita incerteza, com juros altos e pouco espaço para gastos públicos

Luciana Dyniewicz, O Estado de S. Paulo – 21/11/2021

O Brasil entrou na pandemia com uma economia mais frágil que a de outros emergentes, enfrentou o período sem planejamento e saiu dela desrespeitando regras fiscais, o que cria incertezas e reduz investimentos, segundo análise da economista Silvia Matos, do Instituto Brasileiro de Economia (FGV/Ibre).

Esse cenário levará o País a um desempenho fraco em 2022. “A incerteza na economia brasileira é muito alta e o contexto é de limitações do crescimento, com juro alto e sem espaço para gastos públicos”, diz ela, que prevê um PIB de 0,7% no ano que vem.

De acordo com a economista, a situação poderia ser mais positivo, pois algumas reformas foram feitas nos últimos anos e deveriam ajudar na retomada. Medidas populistas, como o Auxílio Brasil – criado sem planejamento e discussão –, no entanto, impedem uma melhora da economia. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:

O Brasil está entre os emergentes que devem registrar pior desempenho econômico em 2022. O que difere o Brasil desses países de perfil semelhante?
O desempenho depende de como eram as condições antes da pandemia, de como o País lidou com a pandemia e das consequências da pandemia. Antes da pandemia, já estávamos em uma situação complicada. O crescimento do Brasil nos três anos depois da recessão de 2015 e 2016 foi muito ruim. A produtividade estava estagnada, havia muita informalidade e desemprego alto. Tivemos o choque da pandemia em cima de uma economia com muitos problemas. Depois, pelo fato de não termos tido uma estratégia nacional de combate à pandemia, também temos um desempenho pior agora.

Poderíamos ter tido uma queda maior da economia no começo da pandemia devido a medidas de restrições mais rígidas, mas também uma melhora mais rápida. A gente não quis lidar muito em um primeiro momento com o problema. Teve ainda uma questão de fechar os olhos quanto a gravidade e a persistência da covid. Não nos preparamos para lidar com o Orçamento. Quando você vai para uma guerra, tem de se preparar. Não só se preocupar em vencer uma batalha. Aí criou-se, no início deste ano, uma expectativa de retomada, mas ela perdeu o fôlego, porque bateu em restrições.

O que devia ter sido feito?
(O País) tinha de ter se preparado: pensado em uma política de proteção social para os informais, por exemplo. O governo não fez isso e, agora, com as eleições chegando, resolveu não seguir regras fiscais. Se tivesse se programado tecnicamente para um programa social, discutido valores, o risco e a volatilidade poderiam ser menores agora. Como isso não ocorreu, o mercado avaliou que o governo não tem compromisso. O populismo tomou conta. Aí o risco é maior, e o juro tem de subir mais. Nesse meio tempo, vem também um problema estrutural: a questão hídrica. Se não chove, não temos como crescer.

O Ibre projeta alta de 0,7% no PIB para 2022. Quais serão os principais fatores responsáveis pelo desempenho fraco?
Parte importante vem do fato de não haver solidez fiscal. O Orçamento hoje é muito restrito e ainda tem eleição em 2022. Agora, a incerteza política e fiscal é muito grande desde o impeachment (de Dilma Rousseff), mesmo com o avanço de reformas microeconômicas. Esse cenário, aliado ao juro e ao câmbio altos, afetará o investimento e toda a economia. Resumidamente: a incerteza na economia brasileira é muito alta e o contexto é de limitações do crescimento, com juro alto e sem espaço para gastos públicos.

O cenário internacional, que afeta todos os emergentes de forma semelhante, também não deve ajudar o Brasil em 2022, certo?
No primeiro trimestre deste ano, houve uma ilusão de que o mundo e o Brasil iam bombar, de que a pandemia não teria maiores consequências econômicas. Mas hoje há uma inflação alta de oferta. A China, que antes contribuía para uma inflação baixa no mundo, não consegue mais fazer isso. Está com uma limitação em sua oferta por conta do problema de energia e também da pandemia. Estamos em um período de inflação alta em todo o mundo que já está afetando o crescimento. A festa vai acabar mais cedo porque o juro vai subir. Já está subindo em emergentes. Era para estarmos saindo da pandemia radiantes, mas a vida é dura. Ainda mais no Brasil, onde estamos saindo com um déficit primário maior. A festa durou só um semestre e não nos preparamos para o fim. Estamos colhendo menos do que plantamos, porque até fizemos algumas reformas microeconômicas, mas aí veio o custo do populismo: mais inflação, juro mais elevado e menor crescimento. A pandemia não é a culpada por tudo.

A nova economia do projetamento, por Elias Jabbour.

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Publicado em A Terra é Redonda – 03/11/2021

As premissas do arcabouço intelectual necessário para compreender a formação econômico-social chinesa
Desde que abandonei teorias consolidadas, e datadas, do desenvolvimento econômico em prol do conceito de formação econômico-social passei a usufruir de liberdade indescritível. Teorias datadas engessam análise e só podem entregar o “particular no geral”. Os economistas hoje, como acreditam que as teorias já estão aí e que o importante é aplicá-las bem estão esbarrando nos limites de acreditarem que ao estudarem as relações entre Estado e mercado conseguem entregar algo capaz de entender processos complexos. Eis o limite da heterodoxia econômica e que a faz se aproximar, no método, da ortodoxia.

Explico. Neste tipo de análise a totalidade é amplamente deslocada com a quase negação da política e da história. Entre os marxistas acadêmicos não e percebe que mudanças institucionais não somente têm garantido o desatamento cíclico de pontos de estrangulamento na economia; mas também o surgimento de novas relações de produção via novos aportes sob forma de mais e melhor regulação do trabalho quanto aumentos salariais médios de 280% nos últimos dez anos.

Não impede a China de se tornar, ainda, uma sociedade menos desigual, mas demonstra que o Estado chinês tem respondido às demandas dos trabalhadores com assertividade. Caso fosse um país capitalista a China poderia elevar a competitividade de seus produtos criando um desemprego artificial de ao menos 10%…

Retornando. Como toda teoria este tipo de abordagem perde sentido quando surgem mudanças qualitativas, como ocorrem na China hoje. Daí a pobreza de reduzir as reformas pelas quais estão passando a economia chinesa como “onda regulatória”, “novas fronteiras de acumulação de capital”. Nada mais estático e microeconômico. Na verdade, o que existe é um movimento real gerando novos conceitos. E acredito que decifrar o conteúdo desses novos conceitos seja o maior desafio presente às ciências sociais, pois a China suscita uma engenharia social de patamar superior comprovada pela vitória inconteste contra a pandemia – expondo as mazelas do capitalismo ocidental.

A percepção de que a estava emergindo na China uma nova classe de formações sociais me livrou das camisas de força das teorias estruturalistas e de Estado desenvolvimentista / empreendedor de desenvolvimento. A universalidade do marxismo de Vladimir Lênin e Inácio Rangel aplicado a uma realidade particular nos abriu possibilidades ainda a serem amplamente exploradas. Não fomos pegos de surpresa com a atual onda de inovações institucionais.

Rapidamente percebemos a natureza qualitativa e diferente do que estava acorrendo. A contradição entre forças produtivas e relações de produção chegou a outro patamar. Luta de classes. Uma visão de “bloco de poder” deverá ser desafio diante do que significa a força de mais de 130 milhões de trabalhadores urbanos, ontem camponeses no processo de pressão sobre o Partido Comunista, garantindo a manutenção de uma estratégia socializante ao país.

A “Nova economia do projetamento” derivada da dinâmica do “desenvolvimento desequilibrado” mediado por ondas de inovações institucionais têm sido uma descoberta fascinante. A criação do computador quântico mais rápido do mundo é passo decisivo na construção da liberdade humana. Nova economia do projetamento é sinônimo de ampliação da capacidade de planificar, de elevar o domínio humano sobre a natureza e entregar ao ser humano a possibilidade de ser o senhor do seu destino.

Confesso que seria mais fácil e prestigioso me apreender a alguns conceitos abstratos e aprioristas como valor, dinheiro, fetiche, mercado e alienação e utilizá-los arbitrariamente. Isso é zona de conforto intelectual. Não combina comigo. Prefiro outro caminho, talvez herético. Observar uma totalidade entre formação econômico-social, modo de produção, o meta modo de produção (quem ler China: o socialismo do século XXI irá entender esse conceito) e a lei do valor como uma totalidade.

Observando em conjunto esta totalidade é algo que ao se movimentar vai rearranjando as lógicas de funcionamento da sociedade, gerando formação econômico-social a partir de novos modos de produção a partir de combinações entre diferentes formas/relações de produção e troca. Os resultados até aqui têm sido promissores. Muito ceticismo de nossos interlocutores, mas muita gente já utilizando do arcabouço intelectual por nós construído para construírem suas próprias hipóteses sobre a China. Estamos apenas no começo.

*Elias Jabbour é professor dos Programas de pós-graduação em Ciências Econômicas e em Relações Internacionais da UERJ. Autor, entre outros livros, de China hoje – Projeto nacional de desenvolvimento e socialismo de mercado (Anita Garibaldi).

Reabilitação de Confúcio é cada vez mais evidente na China, por Tatiana Prazeres.

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Partido Comunista e autoconfiança cultural favorecem valorização do filósofo

Tatiana Prazeres Senior fellow na Universidade de Negócios Internacionais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheira sênior na direção-geral da OMC.

Folha de São Paulo, 19/11/2021

Qufu é literalmente uma cidade de quarta ou quinta categoria na China. As cidades no país são informalmente classificadas em faixas, de acordo com sua importância. No entanto, em Qufu, na província de Shandong, há um museu de primeiríssimo nível, que visitei recentemente. A cidade natal de Confúcio, com pouco mais de 650 mil habitantes, é pequenina para padrões chineses, mas de um simbolismo cada vez maior para o país.

O confucionismo tem uma história de altos e baixos na China. Agora, no entanto, tem sido reabilitado pela sociedade e pelas lideranças chinesas. O Museu de Confúcio em Qufu, inaugurado em 2018, é sinal dos novos tempos. Tem mais de 17 mil metros quadrados de área de exposição (o Masp tem 10,5 mil metros quadrados).

O pensador nascido em 551 a.C. é associado a valores tradicionais do país, como a harmonia, a meritocracia, o respeito à hierarquia e à autoridade, a deferência aos idosos, além do comportamento ético. Com o tempo, valores confucionistas foram incorporados ao tecido social do país, servindo de substrato moral a uma sociedade desprovida de base religiosa forte.

Durante a Revolução Cultural (1966-1976), entretanto, o confucionismo sofreu um duro golpe. Foi visto como obstáculo à transformação social que se pretendia. O pensamento do filósofo foi classificado de conservador, retrógrado, burguês e, portanto, contrarrevolucionário —e muito. Combatê-lo era visto como essencial à causa comunista. Em Qufu, o túmulo de Confúcio e um templo em sua homenagem foram destruídos pela Guarda Vermelha.

Hoje, o partido fez as pazes com o confucionismo. Sua reabilitação ocorre gradualmente desde os anos 1980, mas foi nos últimos 15 anos que Confúcio readquiriu prestígio. Antes malditas, as ideias do filósofo passaram a figurar em discursos oficiais.

Não surpreende que o Partido Comunista, no comando há mais de 70 anos, valorize o respeito à autoridade e à harmonia social. Ao associar essas ideias a Confúcio, no entanto, o partido confere-lhes dose extra de legitimidade e valoriza o modelo político do país. Ademais, o confucionismo, além de milenar, é prata da casa —diferentemente do marxismo, importado.

Nem todas as ideias de Confúcio foram igualmente reabilitadas. A visão do pensador sobre as mulheres, em especial, é de tempos passados —e o partido sabe disso.

O resgate do filósofo fica evidente na política externa do país. Não é apenas à base de poderio econômico, tecnológico e militar que a China pretende projetar poder. Quando, em 2004, Pequim decidiu criar centros mundo afora para difundir a cultura e a língua chinesas, atribuiu-lhes o nome de Instituto Confúcio. Nenhum outro nome supera o do sábio da antiguidade em potencial de soft power para o país.

Para além da visão das autoridades, quão confucionista a China de 2021 realmente é? Muito, mais que nunca —respondeu-me uma professora chinesa. O confucionismo tem sido revitalizado na sociedade na esteira do crescimento do nacionalismo na China e das tensões externas envolvendo o país. Ganha importância com o aumento da autoestima dos chineses, com a valorização da história milenar e da cultura tradicional.

Jovens nacionalistas abraçam com gosto a ideia de autoconfiança cultural, que aliás tem outras manifestações visíveis. Volta à moda, por exemplo, o “hanfu”, o roupão tradicional chinês. O patriotismo favorece personalidades, ideias e mesmo produtos e marcas chineses. É o made in China, agora em alta.

O renascimento do confucionismo é simbólico de uma China que pensa já ter aprendido bastante com o resto do mundo.

Agora, sente-se também em condições de se promover e de ensinar. Se o museu em Qufu for indicativo da nova autoconfiança cultural dos chineses, ela é monumental.

O SUS diante da sua “janela histórica”, por Flávio Dieguez.

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Nelson Rodrigues dos Santos, um dos líderes da Reforma Sanitária, inaugura seção de artigos de Outra Saúde e sugere quatro rumos para defesa e ampliação da Saúde Pública, após a pandemia. Para ele, é hora de “otimismo da vontade”

Flávio Dieguez – OUTRA SAÙDE – 17/11/2021

Protagonista destacado da Saúde Pública brasileira e da construção do SUS, o epidemiologista Nelson Rodrigues dos Santos parece disposto, em tempos árduos, a continuar apontando caminhos na luta por esta causa. Outra Saúde publica hoje um texto cristalino, embora denso, em que ele vê uma “janela histórica” de oportunidade para retomar o projeto da Reforma Sanitária. O artigo foi publicado inicialmente pelo Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fiocruz, em 4 de outubro. Professor da Unicamp e conselheiro do Idisa – Instituto de Direito sanitário aplicado – “Nelsão” aponta o enorme atraso do Estado brasileiro na implantação de políticas igualitárias de Saúde, nas últimas três décadas. Lamenta o avanço, no mesmo período, da medicina como atividade voltada para o lucro. Mas enxerga, no novo prestígio alcançado pelo SUS durante a pandemia, a potência necessária para uma nova onda de mobilizações sociais. E propõe quatro objetivos centrais que ela deveria perseguir.

O pesquisador aponta, no artigo, os entraves persistentes à efetivação do modelo de saúde constitucional, proposto pela Reforma. Seus argumentos são muito convincentes – mas não impedem a conclusão surpreendentemente positiva – que ele emoldura no conhecido dístico do filósofo italiano Antônio Gramsci: “Pessimismo da inteligência e o otimismo da vontade”. É fato que estamos imersos, especialmente no Brasil, em profundo retrocesso civilizatório. Mas em grande número de países, parece haver avanços.

Além disso, escreve Santos, a despeito da atual situação brasileira, “vale lembrar outros momentos históricos, como nos anos 1980 em nosso país, quando foi realizado, com crescente e grandiosa participação social, amplo debate rumo a um projeto de sociedade e nação, inverso ao projeto da ditadura que se extinguia”. De lá para cá, ao longo de 33 anos, não foi possível estabelecer um nível adequado de financiamento do SUS. A esfera executiva federal desconsiderou a recomendação constitucional de destinar para o sistema 30% do orçamento da seguridade social e negligenciou, desde então, oito oportunidades, ao menos, de corrigir essa deficiência.

Em vez disso, de fato, inverteu as prioridades constitucionais: deixou de gastar na capacidade do sistema público enquanto financiava – por exemplo por meio de isenções tributárias – o setor de seguros e planos privados, apenas incipiente no final dos anos 1980. No entanto, a experiência adquirida nesses anos não foi pequena, e compensou os impasses da esfera federal. Como diz Santos: “[…] a experiência acumulada da gestão descentralizada (estadual e municipal), contra-hegemônica mas junto a entidades da sociedade, academia, poder Legislativo e outras, vem compensando parcialmente o grande vácuo imposto pela esfera federal e sua influência na opinião pública”.

Notavelmente, Santos contabiliza muito positivamente o esforço feito pelo SUS no enfrentamento da pandemia, o que o tirou da invisibilidade e mostrou sua necessidade e valor às camadas da população que usualmente têm preferência pela saúde privada. Diante disso, e da conjuntura global, torna-se plausível esperar que se firmem pactos sociais mais avançados, inclusive no Brasil. A dinâmica nacional também abre espaço para avanço na democratização e em pactos federados, e para movimentos para a construção de uma “social-democracia brasileira”.

É nesses termos que o pioneiro do SUS conclui seus argumentos apontando para uma “janela histórica”: “reabrindo para mobilizações sociais, democratização do Estado [e] resgate do SUS constitucional”. Ele diz esperar quatro desdobramentos que, no estreito espaço desta nota se poderia resumir assim: elevação dos investimentos federais nos serviços públicos em todos os níveis; modernização da gestão pública em todos os níveis, visando cumprir o direito constitucional da universalidade, equidade e integralidade; regulação dos serviços privados complementares do SUS – “como se públicos fossem”; e reformulação dos planos e seguros privados, de modo a substituir seu financiamento público pelos procedimentos normais de mercado.

Brasil, vitrine do rentismo parasitário, por Márcio Pochman.

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Incapaz de gerar riqueza nova, a “elite-ralé” do país aliou-se ao bolsonarismo. Em 10 anos, inflaram suas fortunas a base de fraudes e da pilhagem do Estado. A vida de milhões foi precarizada enquanto o número de bilionários mais que dobrou

Márcio Pochman, Outras Palavras 16/11/2021

Em apenas dez anos, a economia brasileira desceu do posto de sexta maior do mundo, alcançado em 2011, para a décima terceira colocação no ranking projetado dos países para 2021. Com o decrescimento do PIB per capita na década passada acumulado em 4,7%, fica evidente o registro de que o país empobreceu, embora pouquíssimos e seletivos segmentos sociais privilegiados tenham continuado a enriquecer, sobretudo pela ascensão do sistema de pilhagem.

No ano de 2011, por exemplo, o Brasil tinha 30 pessoas com fortunas acima de um bilhão de dólares (5,5 bilhões de reais) segundo avaliação da revista Forbes, sendo que a metade delas declarou depender da herança familiar para alavancar seu patrimônio. Juntos, os 30 bilionários contabilizaram uma fortuna total estimada em US$ 131,4 bilhões, o que equivaleu a 5% do total do PIB brasileiro de 2011.

Dez anos depois, a mesma revista apontou a existência de 65 bilionários no Brasil, cujo valor total das fortunas alcançou a soma de US$ 223,3 bilhões, ou seja, 16% do PIB estimado para o ano de 2021. Enquanto o número de bilionários foi multiplicado por 2,2 vezes, o total das fortunas aumentou 70% e a participação relativa dos bilionários no PIB subiu 191% entre 2011 e 2021.

Para um país que demonstra não conseguir gerar riqueza nova, difundiu-se na borda da classe dominante a estética do dinheiro velho (Old Money), fundamentado no continuado processo de financeirização do estoque das fortunas derivadas de heranças. Acumuladas, em geral, no passado, por gerações que deixaram de existir, a linhagem atual dos enriquecidos se associa crescentemente à pilhagem do Estado como mecanismo necessário para prosseguir valorizando de forma fictícia o estoque da riqueza puída.

As reformas trabalhistas e previdenciárias, bem como a própria mudança constitucional para abrigar o teto de gastos públicos não financeiros, exemplificam o quanto a guerra de classes sociais se deslocou para o interior do fundo público. Diante da escassez de riqueza nova, a imposição de maior espaço fiscal transcorre através da pilhagem orçamentária em favor da ostentação da estética do dinheiro velho aos já muito ricos e novos enriquecidos no país.

Ao mesmo tempo, cresce de importância a cultura do “meu patrocínio primeiro” (Sugar Baby), rapidamente incorporada pela diversa classe dirigente que busca ascender, mais recentemente mobilizada por fraudes de toda natureza (titularidade acadêmica e curricular, negociatas e outros). Pelo impulso da ascensão social a qualquer preço, o país se transforma numa espécie de cercado a mercantilizar de tudo o que paira sob o sol, fazendo-o retroceder aos tempos da acumulação primitiva exercida pela pilhagem dos ativos nacionais e riquezas naturais.

É neste contexto de fortunas duvidosas e de origem controversa, em fomento por uma elite-ralé, que o lumpesinato brasileiro ganha maior dimensão, reproduzindo-se em marcha forçada. Ao contrário da classe trabalhadora que se encontra vinculada às atividades produtivas, ainda dispondo da possibilidade de representação sindical e de alguns direitos sociais e trabalhistas, o lumpesinato constitui segmento crescente da população que, descolado da geração do excedente econômico, busca sobreviver a qualquer custo possível atribuído pela captura de parte da renda de outros segmentos sociais (assalariados, autônomos e empresários).

A decomposição da sociedade brasileira, expressa pela expansão da lumpenização do mundo do trabalho, resulta da prosperidade do rentismo parasitário que converte a política nacional em mais um negócio no interior do curso geral de pilhagem nacional. O resultado tem sido a efetivação da barbárie social exposta mundialmente como vitrine de um país que acompanha docemente o rebaixamento de suas principais instituições públicas.

Numa economia em decadência como a brasileira, o encurtamento da riqueza coloca maior centralidade no Estado e, sobretudo, no seu fundo público. Por isso se dá o aparelhamento do setor estatal, crescentemente ocupado por representantes de hordas do lumpesinato que, a serviço da elite-ralé, operam o governo de plantão voltado aos seus apoiadores para atender o requisito de evitar a derrota na próxima eleição.

A desfiguração de órgãos públicos como os de controle que se domesticam para favorecer grupos dominantes também transcorre no legislativo que opera um orçamento de ficção, fingindo seguir regras, locupletando operadores de “rachadinhas”, de emendas obrigatórias e expropriação de funcionários públicos, entre outras modalidades do exercício da pilhagem. No poder público, a realidade do desmonte não tem sido diferente, com ministério travestido de balcão de negócios operados na compra de vacinas falsas e difusão de mentiras reproduzidas em plataformas e redes sociais que garantem dinheiro de publicidade e reconhecimento de seguidores.

Assim, a reprodução social assentada na delinquência mudou mais recentemente a dinâmica da política nacional. Daí o sucesso da extrema direita, que se viabiliza convertendo a política em mais um negócio rentável a consolidar a idade de ouro das fraudes no Brasil – que segue ladeira abaixo.

Inflação

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As sequelas da pandemia sobre a sociedade brasileira crescem todos os momentos, deixando claro a grande dificuldade de construirmos consensos políticos para superarmos este momento, a economia não consegue criar espaços de crescimento consistente, o desemprego ainda permanece em números proibitivos, a miséria cresce e a exclusão social se mostra cada vez mais assustadora, gerando incertezas e instabilidades que postergam as melhorias econômicas.

A inflação deve ser definida como o aumento generalizado de preços na economia, seus impactos são variados, gerando ganhadores e perdedores, diante disso, os grandes perdedores são os setores mais fragilizados, setores que não conseguem se proteger dos impactos negativos do aumento dos preços e a perda do poder de compra, gerando empobrecimento crescente. Do outro lado, dois setores ganham com o aumento dos preços, o governo e o setor financeiro. Estes setores conseguem defender seu poder de compra, auferindo lucros maiores, piorando a concentração da renda e o aumento da desigualdade entre os grupos sociais.

A sociedade brasileira conviveu com inflação durante muitas décadas, namoramos momentos de hiperinflação, gerando instabilidades, incertezas, baixa confiança e reduzindo o crescimento econômico. Com a implantação do Plano Real, em 1994, a realidade melhorou, os índices inflacionários diminuíram a níveis mais civilizados e crescimento econômico mais consistente, estimulando investimentos produtivos, reduzindo o papel do Estado na economia e criando perspectivas saudáveis e momentos exuberantes, colocando o Brasil na berlinda da economia internacional.

Infelizmente esse sonho não se efetivou, cometemos erros na condução do plano de estabilização, deixamos o câmbio se apreciar, reduzimos os investimentos produtivos e estimulamos o crescimento da jogatina financeiro, colocando no centro da economia setores marcados por baixa produtividade, com reduzida geração de emprego e que contribuíram para o processo de desindustrialização, levando o país a aumentar a dependência dos setores agroexportadores e abrimos mão de um papel mais ativo nos setores industriais. Neste momento, tornamos um grande importador de produtos industrializados, como vimos nas dificuldades de conseguirmos os insumos industriais do setor da saúde.

A inflação, anteriormente esquecida, atualmente ganha força e está crescendo em todos os setores da economia brasileira, gerando incertezas e instabilidades, degradando os indicadores sociais, reduzindo os investimentos produtivos e reduzindo a geração de empregos. Neste momento, o governo se apoia na política monetária, aumentando os juros, restringindo a moeda que circula na economia e, com isso, posterga a recuperação dos investimentos e a retomada da economia.

A inflação em curso na sociedade brasileira está diretamente ligada aos choques de custos na sociedade internacional, gerada pela desagregação das cadeias produtivas globais e pelo incremento da pandemia, impactando sobre o preço do frete externo, reduzindo a produção em decorrência da falta de insumos, como percebemos no setor de semicondutores, os chamados chips, produtos fundamentais para a economia globalizada, centrada em tecnologias avançadas, sofisticação e alta complexidade.

A sociedade precisa compreender que a inflação é também, e principalmente, um fenômeno político. Numa sociedade como a brasileira, que naturaliza a pobreza e banaliza a desigualdade social, atrelando-a a ausência de empreendedorismo, os grandes ganhadores usam o poder econômico para incrementar seus ganhos financeiros e influenciar espaços da política, garantindo altos lucros, retornos elevados e rentabilidades vultosas. Em momentos de pandemia, de desestruturação econômica, de fome e de exclusão social percebemos quem são os grandes beneficiários das instabilidades em curso da sociedade brasileira, são aqueles que se escondem atrás de discursos falaciosos baseados em meritocracia, esquecendo que somos um dos países mais desiguais do mundo, sem oportunidade não existe meritocracia.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 17/11/2021.

Estagflação

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A economia brasileira vem passando por grandes processos de desestruturação econômica e produtiva, com impactos sobre setores inteiros, impulsionando a degradação da economia, aumentando o desemprego, elevando os preços e reduzindo a renda dos trabalhadores. Para piorar o ambiente, passamos por um momento de desajuste nos preços, desvalorização cambial, fragilidades fiscais e perda da confiabilidade externa, gerando um cenário que os economistas podem definir como estagflação.

Podemos definir a estagflação como uma situação simultânea de estagnação econômica, ou seja, ou até mesmo recessão, apresentando altas taxas de inflação. Neste momento, a atuação das autoridades econômicas exige maturidade e atuação sistemática, utilizando todos os instrumentos da política econômica, como forma de reverter uma situação negativa e preocupante para o comportamento da economia, com desemprego em alta, queda da renda e fragilidade dos indicadores macroeconômicos.

O ambiente econômico gera preocupação, o crescimento da inflação levou o governo a aumentar as taxas de juros e os investimentos produtivos estão em queda, inviabilizando a contratação de trabalhadores, postergando a recuperação econômica e, num momento de pandemia, com mais de seiscentos mil mortos, fragilizando os indicadores sociais, aumentando as tensões sociais e reduzindo a confiança dos setores produtivos.

O aumento da austeridade degrada mais o ambiente social, empobrecendo a massa da população e aumentando a degradação social, elevando a fome, a pobreza e a miséria. A elevação das taxas de juros aumenta a dívida pública, cada ponto percentual de aumento nas taxas de juros elevam a dívida do Estado em 50 bilhões de reais, com isso, o custo total da elevação da conta de juros alcançará valores aproximados de 400 bilhões de reais, recursos que beneficiam uma pequena parte da população, um contingente de 1% dos brasileiros em detrimento da grande maioria da sociedade, dessa forma, percebemos uma forma crescente da pilhagem dos recursos da sociedade para fins privados.

O incremento dos preços na sociedade brasileira está intimamente ligado as desvalorizações cambiais, as desarticulações das cadeias globais de produção e da elevação dos preços dos alimentos e a forte demanda por produtos agrícolas no mercado global. A desvalorização cambial impacta nos preços internos e eleva a inflação, a estabilização do câmbio exige uma atuação conjunta do governo, a construção de uma confiabilidade perdida e uma organização da agenda econômica que, infelizmente, apresenta grandes instabilidades e incertezas que fazem com que a moeda nacional perca espaço no mercado internacional e aumente os riscos para os investidores externos.

A agenda liberal preconizada pela equipe econômica, confusa e marcada por improvisações, gera instabilidade, reduz a confiança e afasta os investidores internos e externos. Estamos presenciando a retirada do Estado da condução da economia brasileira e sua substituição pelos atores privados, diante disso, percebemos que os investimentos não estão acontecendo, com isso, não estamos percebendo os supostos benefícios propagados pela propaganda oficial, muito pelo contrário, essas contribuíram apenas para a degradação do trabalho, gerando aumento no desemprego e no subemprego, redução dos investimentos públicos e privados, diminuição dos recursos da educação e da saúde pública, contribuindo para que o país retorne ao mapa da fome e da degradação social.

Os países desenvolvidos estão aumentando os investimentos produtivos e incrementando a atuação dos atores públicos, reestruturando as políticas industriais e o aumento dos investimentos em infraestrutura e na formação de capital humano, infelizmente, em terras brasileiras ainda estamos insistindo em discussões imaturas e limitadas entre Estado e Mercado, onde a combinação destes atores é o caminho mais apropriado para o crescimento econômico, a melhoria das condições sociais e a constituição da soberania nacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 10/11/2021.

Brasil atravessa convergência de escolhas equivocadas, diz ecóloga

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Para Mercedes Bustamante, ao não controlar o desmatamento nem investir em adaptações às mudanças climáticas, país coloca economia em risco

Folha de São Paulo, 07/11/2021

Cristiane Fontes
Marcelo Leite

OXFORD E SÃO PAULO
Mercedes Bustamante, uma das maiores autoridades brasileiras em ecologia e desmatamento do cerrado e da floresta amazônica, está alarmada com a perda de credibilidade do governo brasileiro na COP 26 cúpula sobre a crise do clima que se realiza em Glasgow, Escócia. Não o bastante, contudo, para perder o otimismo.

Uma entre mais de 200 autores de relatório do Painel Científico sobre a Amazônia, ela aponta como prioridades zerar o desmatamento, legal ou ilegal, “sem adjetivos”.

Ela também vê como essencial organizar de forma inclusiva atividades de bioeconomia, com base na parceria da ciência com o conhecimento tradicional, e aperfeiçoar a regulamentação do acesso a recursos genéticos que de fato atendam tanto à indústria quanto a populações locais.

Para isso, entretanto, seria urgente desfazer a série de escolhas equivocadas do país, alçada a níveis nunca vistos no governo Bolsonaro. “Não se consegue montar uma bioeconomia inclusiva na Amazônia competindo com uma economia ilegal como se tem hoje.”

O relatório do Painel Científico para a Amazônia (sigla SPA, em inglês) foi finalizado para lançamento na COP26. Quais são as principais recomendações do texto? Um dos primeiros pontos importantes é deter o desmatamento. E a gente não coloca um adjetivo aí, desmatamento legal ou ilegal, é deter o desmatamento e o processo de degradação da floresta.

O segundo passo é organizar as atividades sustentáveis na Amazônia. Há hoje uma série de atividades, algumas já ganhando escala, com base na utilização dos recursos biológicos que comporiam a bioeconomia num sentido mais amplo.

Mas existe uma lacuna enorme no que poderia ser feito a partir da integração dos diferentes sistemas do conhecimento: ciência, tecnologia e inovação e conhecimento indígena e tradicional.

O que falta para a construção dessa chamada bioeconomia amazônica? O conceito de bioeconomia deve ser abrangente o suficiente para a gente olhar povos da floresta, recursos terrestres, recursos aquáticos, agricultura familiar e atividades de maior escala.

O Brasil não conseguiu uma implementação satisfatória dos mecanismos que permitem o acesso aos recursos genéticos nem clareza em relação à repartição de benefícios associados ao conhecimento tradicional. Hoje o país não protege adequadamente o conhecimento tradicional, e eu acredito que também não atenda, de forma satisfatória, nem a indústria nem academia.

Outro gargalo para uma bioeconomia sólida e inclusiva é que ela demanda fiscalização e eliminação de atividades ilegais. Políticas que tenham como premissa a floresta em pé, rios saudáveis. Demanda ações claras de que apropriação indevida de terras púbicas, de unidades de conservação, de territórios indígenas não serão toleradas.

Por fim, o investimento em ciência, tecnologia e inovação ainda está muito aquém do necessário. Na Amazônia, a gente descreve uma espécie a cada dois dias, o que indica a enorme lacuna de conhecimento da diversidade.

Além disso, o Brasil enfrenta novamente o problema da fuga de cérebros. Vemos a convergência de uma série de escolhas equivocadas para o país. Acrescentaria ao quadro a questão da mudança do clima. Uma das grandes preocupações do Brasil deveria ser como as mudanças climáticas vão afetar a biodiversidade e o funcionamento dos sistemas naturais, que são nossa vantagem competitiva no mundo.

A gente vem organizando ou desorganizando o sistema com o olhar no retrovisor, para uma economia que não vai existir mais, deixando de perceber onde estão as possibilidades que se desenham rapidamente em função da crise climática. Você não consegue montar uma economia legal na Amazônia competindo com uma economia ilegal como a gente tem hoje.

O que seria mais urgente para a gente reverter a situação atual e assegurar a moratória do desmatamento? Vejo com bons olhos a movimentação dos governadores, das instituições locais, porque elas começam a ocupar o vazio que foi deixado pelo governo federal. Agora, uma boa parte do território amazônico é de responsabilidade de União.

A gente já percebe mercados que se fecham para o Brasil. Esse clima de instabilidade que a gente vive tem consequências econômicas.

Quando falamos de mudança no clima no Brasil, normalmente pensamos na Amazônia, mas o cerrado é segundo maior bioma. Que medidas de proteção são urgentes para a savana brasileira? Os critérios de sustentabilidade que a gente vem discutindo para a Amazônia se aplicam para todos os biomas brasileiros.

A situação do cerrado preocupa bastante porque o avanço do desmatamento se deu de forma muito rápida.

Quando a gente fala que 50% do cerrado já foram convertidos, as pessoas têm essa impressão de que há 50% intactos, mas estão bastante fragmentados e muitos deles em estágio de degradação.

Apesar de o Código Florestal colocar que tem de conservar pelo menos 20% no cerrado, hoje a maior parte do desmatamento não tem autorização de órgãos ambientais. Novamente, existe o problema do cumprimento da lei. Isso impossibilita que você tenha uma gestão desse processo de ocupação, olhando a paisagem e não a propriedade, que é um dos nossos grandes problemas.

O segundo ponto é que nós temos enormes áreas de pastagens, que continuam sendo o uso prioritário da terra no cerrado. Pastagens que estão degradadas, abandonadas, sobretudo na porção mais antiga de ocupação, no centro-sul.

O que seria possível fazer nessas áreas? Muitas delas podem ser utilizadas para a agricultura, segurando o desmatamento na porção norte, ou para restauração, para conectar fragmentos importantes que sejam de conservação da biodiversidade.

O terceiro ponto em relação ao cerrado é a mudança de práticas da agricultura de larga escala. No futuro, uma área extensa de monocultura não vai ter mais lugar, porque ela não se sustenta. E ela só tem lucro se tiver essa ocupação em larga escala.

Essa ocupação em larga escala no Matopiba [Maranhão, Tocantins, Piauí, Bahia] enfrenta um risco climático muito grande. E ele vai se acentuar, se a gente não conseguir manter o limite da temperatura em 1,5ºC, da meta do Acordo de Paris.

Isso começa a inviabilizar a agricultura nessas áreas e significa que elas têm de retornar para o centro-sul. Só que o centro-sul já está ocupado, então a gente vai chegar num dilema de competição por área, se não houver planejamento.

Qual a sua opinião sobre a participação do Brasil na COP26? A gente chega na COP26 com uma reputação bastante assanhada, debilitada.

O governo brasileiro pode levar uma bela proposta, que não está sendo amplamente discutida com a sociedade ou com a academia. As ações são tão contundentes no sentido contrário que uma meta que não tenha a clareza de etapas, como vai ser atingida, tem pouco efeito.

O Brasil está perdendo um tempo precioso. A gente discute muito a questão da redução das emissões dos gases de efeito estufa, sobretudo porque essa emissão vem do desmatamento, mas não vem discutindo adequadamente ações de adaptação, num país em que as camadas sociais mais pobres estão cada vez mais vulneráveis.

RAIO-X
Mercedes Bustamante, 58
Professora de ecologia da Universidade de Brasília desde 1993. Integra a Academia Brasileira de Ciências e a Academia Nacional de Ciência dos EUA. Participou do quinto relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas). Concentra sua pesquisa nas mudanças de uso da terra no Brasil e seus impactos sobre os ecossistemas.

Para muitos jovens, não faz mais sentido correr atrás de um diploma, por César Callegari.

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Explicação para queda no número de candidatos em vestibulares vai além da paralisação das aulas presenciais

César Callegari Sociólogo, ex-secretário de Educação Básica do MEC (2012-13, governo Dilma), ex-secretário municipal da Educação de São Paulo (2013-15, gestão Haddad) e autor de ‘O Fundeb’ (ed. Aquariana)

Folha de São Paulo – 07/11/2021

Uma sensação de desalento ronda a juventude brasileira. Motivos não faltam e causas são muitas. À pandemia, crise econômica, política e de valores, soma-se uma percepção generalizada de que um diploma universitário já não garante muita coisa.

Além das altas taxas de desemprego estrutural que atingem amplos setores da economia, restringindo oportunidades, as organizações são cada vez mais rigorosas ao apurar as reais competências de profissionais candidatos a uma vaga.

São cobrados conhecimentos e habilidades raramente proporcionados pela maioria dos cursos superiores, principalmente os oferecidos por instituições particulares de baixa qualidade.

O resultado vê-se em toda parte: engenheiros, economistas e tantos outros diplomados tentando seu ganha-pão em ocupações precarizadas que nada têm a ver com sua área de formação.

Diante do quadro, muitos jovens começam a questionar se vale a pena tanto esforço por um diploma. Isso pode explicar, em parte, a queda acentuada de inscrições para vestibulares e para o Enem, bem como a alta evasão registrada em cursos universitários.

Claro que os impactos da pandemia sobre o sistema educacional influenciam, atingindo principalmente os jovens em situação de maior vulnerabilidade socioeconômica.

Os quase dois anos de paralisação das atividades presenciais nas escolas e a dificuldade de acesso aos meios remotos de educação fazem com que muitos estudantes se sintam despreparados para enfrentar o desafio das provas.

Mas isso não explica tudo.

Falta ao Brasil uma política para a juventude. A começar por uma verdadeira reforma do ensino médio que dê sentido e significado para a educação superior. As recentes iniciativas nessa direção não passam de um arremedo de reforma.

Muita propaganda, nada aconteceu e pode piorar. Acenam com opções vocacionais que, na prática, não serão oferecidas, face à pobreza de condições da maioria das escolas. Criam uma ilusão de profissionalização onde não há laboratórios, internet, professores capacitados. Reduzem os direitos de aprendizagem ao que couber em 1.800 horas, limitando as possibilidades de uma formação crítica e criativa tão demandada hoje.

Assim, por se tratar de pura miragem, geram maior frustração, especialmente entre os alunos de escolas públicas desconfiados de que o ensino superior não vai resolver os déficits acumulados no nível básico. Isso precisa mudar.

Todos sabem que o futuro de um país depende de seus jovens. E as juventudes necessitam de um horizonte que hoje o Brasil lhes nega.

É possível e urgente construí-lo com educação básica e superior de qualidade, sustentadas por investimentos vigorosos e continuados que garantam acesso e permanência para todos. Com uma visão ousada e inclusiva de construção de futuro. Com políticas de ingresso no mundo do trabalho que combatam frontalmente a precarização e que se articulem às necessidades estratégicas do país.

O interesse pela educação superior está associado a um projeto de nação que, entretanto, ainda nos falta. Que seja inclusiva, democrática, desenvolvida e socialmente justa.

Educador, sociólogo e presidente do Instituto Brasileiro de Sociologia Aplicada