Aumento da pobreza e da fome produz alto número de moradores de rua, por Drauzio Varella.

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Não é possível ficar de braços cruzados diante dessa infâmia, à espera inútil de governantes incompetentes

Dráuzio Varella Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

Folha de São Paulo, 21/10/2021

Aos domingos pela manhã, costumo correr pelas ruas centrais de São Paulo. Com a cidade vazia àquela hora, o trajeto é sempre o mesmo: sigo pela Maria Antônia, Consolação, praça da República, Barão de Itapetininga, Viaduto do Chá, rua Direita e praça da Sé.

Quem vê a praça da Sé de hoje, marco zero da cidade, não acredita que por ali circulavam homens de terno e gravata e mulheres com vestido e bolsa. Às 7h da manhã, a praça é um formigueiro de homens e até mulheres e crianças.

Alguns dispõem do conforto de barracas do tipo iglu que garantem a eles um mínimo de proteção e privacidade, outros não têm alternativa senão acomodar-se em colchões de espuma esburacados e encardidos que alguém jogou fora ou em pedaços de papelão que um dia foram caixas. Enquanto começa a movimentação dos madrugadores, os notívagos dormem a sono solto empacotados em cobertores ordinários.

Como o hábito de passar por ali no mesmo horário é antigo, acompanho há anos o crescimento do número de moradores da praça. Posso lhes garantir, sem medo de exagerar, que pelo menos quadruplicou nos últimos dois ou três anos. Anos atrás, só havia homens, boa parte dos quais dependentes de álcool, crack ou com transtornos psiquiátricos; agora, são famílias inteiras.

Há uma semana, o jornalista Fernando Canzian comentou, nesta Folha, uma pesquisa realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, a Rede Penssar. Tomo a liberdade de ressaltar os seguintes dados citados no texto: “Quase 20 milhões de brasileiros, um Chile, declaram passar 24 horas ou mais sem ter o que comer, em alguns dias. Mais 24,5 milhões não têm certeza de como se alimentarão no dia a dia, e já reduziram a quantidade e a qualidade do que comem. Outros 74 milhões vivem com medo de passar por essa situação”.

Não é preciso pós-graduação em matemática para concluir que 112 milhões, pouco mais da metade dos brasileiros, vive em estado de insegurança alimentar — leve, moderada ou grave. Nesse contingente, de 2014 para cá, o rendimento real per capita proveniente do trabalho caiu cerca de 30%.

No século passado, quando as secas assolavam o Nordestes, o povo do interior resistia à fome até bater o desespero, juntar a família e meia dúzia de pertences e sair pelas estradas poeirentas para buscar auxilio no povoado mais próximo. Os velhos e as crianças eram os que mais penavam, muitos ficavam pelo caminho ao lado de uma cruz de madeira.

Os bem aventurados que conseguiam chegar a São Paulo construíam barracos com teto de zinco, na periferia inchada e despreparada para recebê-los.

No internato e na residência médica no Hospital das Clínicas, meus colegas e eu recebíamos crianças desidratadas que vinham com diarreia e vômitos, resultantes da miséria, da falta de higiene e
de saneamento básico.

Nos plantões do pronto socorro de pediatria fazia parte da rotina perdermos dois ou três pacientes, num turno de 12 horas. Na enfermaria, tínhamos uma ala para desnutridos, crianças magrinhas, com as costelas à mostra, que eram internadas para tomar café da manhã, almoçar e jantar todos os dias. Em contraste com elas, os desnutridos farináceos, alimentados à base de farinha, gordinhos, com os cabelos ralos e descorados como os das espigas de milho.

Essa realidade parecia ter ficado 50 anos atrás, nenhum de nós imaginava revivê-la. Ninguém esperava ver a fome assolar as cidades mais ricas do país, em pleno século 21.

Aceitamos a desigualdade social entre nós com a mesma naturalidade com que nossos antepassados conviviam com a escravidão. Eles, também, achavam que o mundo era cruel e que a economia não teria como sobreviver sem a mão de obra escrava. Envergonhada de “tanto horror perante os céus”, um
dia a sociedade decretou o fim da escravidão e liberou os negros para irem atrás da sobrevivência por conta própria.

Acabar com a desigualdade brasileira por decreto não será possível, mas com a fome, sim. Um país que deixa 20 milhões de cidadãos passarem um dia inteiro sem ter o que comer não pode ser considerado civilizado.

Não é possível ver uma sociedade no estágio de desenvolvimento que atingimos de braços cruzados diante dessa infâmia, à espera inútil de que governantes incompetentes como os nossos encontrem
solução para uma tragédia dessas dimensões.

Tempestade Perfeita, de César Calejon.

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O livro Tempestade Perfeita, escrito pelo jornalista César Calejon nos traz muitos elementos para compreender a sociedade brasileira, uma leitura fundamental para refletirmos sobre o Brasil contemporâneo, as dificuldades e os desafios, afinal estamos vivendo uma verdadeira tempestade perfeita.

Desgoverno de Bolsonaro destrói o melhor do Bolsa Família, por Campello e Brandão.

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Programa ganha nova versão sem regras claras, sob silêncio dos arautos da austeridade

Folha de São Paulo, 19/10/2021

Tereza Campello Economista, doutora por notório saber em saúde pública, pesquisadora associada à Universidade de Nottingham e ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (governo Dilma)

Sandra Brandão Economista, mestre em Economia pela Unicamp

Em 20 de outubro de 2021, o Programa Bolsa Família completaria 18 anos. Se fosse um cidadão, estaria alcançando a maioridade. No entanto, apesar de sua trajetória de sucesso e do reconhecimento internacional que angariou, confirmados por dezenas de milhares de estudos realizados ao redor do mundo, sendo mais de 19,6 mil no Brasil (Plataforma Lattes, outubro 2021), não haverá motivos para celebrar.

De forma autoritária, desrespeitando a legislação e ferindo as melhores práticas sobre políticas públicas, Bolsonaro aniquilou o Bolsa Família. O programa foi extinto sem qualquer estudo técnico que desse suporte ao ato ou embasasse a opção pelo mal desenhado e insustentável programa que pretende substituí-lo.

Em seus 18 anos de existência, o Bolsa Família foi continuamente aprimorado, incorporando críticas e sugestões. Com base em dados e evidências, foi possível avançar e descartar questionamentos sobre seus impactos, parte expressiva dos quais originada na carga de ódio, preconceito e racismo que atinge diariamente os pobres no Brasil.

Hoje, temos dados que mostram que o Bolsa Família não desestimula o trabalho, do que é exemplo recente estudo do Banco Mundial, nem incentiva o aumento da natalidade.

Temos fartos resultados sobre impactos surpreendentes em saúde, que vão desde redução de 58% da mortalidade infantil causada por desnutrição e do déficit de estatura das crianças até efeitos não esperados, como controle e detecção precoce de tuberculose e hanseníase.

Há menos de um mês, um estudo inovador, com mais de 6 milhões de indivíduos, mostrou que o Bolsa Família reduziu em 16% a mortalidade de crianças de 1 a 4 anos, entre 2006 a 2015. Em famílias com mães negras e em municípios pobres, a redução foi ainda maior, chegando a 26% e 28%, respectivamente.

Frente aos muitos resultados de sucesso do Bolsa Família, e diante do aumento dos níveis de pobreza e fome no Brasil, o mais razoável, prudente e eficaz seria ampliar os valores do benefício e o público atendido. Isto poderia ser feito de forma simples e segura, sem os riscos envolvidos em mudanças abruptas, mal planejadas e feitas no afogadilho às vésperas da eleição.

Mas é claro que não podemos esperar prudência e apego aos bons princípios da administração pública em qualquer medida do governo Bolsonaro.

Nestes três anos e meio de (des)governo, houve dez anúncios sobre o fim do Bolsa Família. E a Medida Provisória 1.061 não contém propostas que resultem de debates amadurecidos no governo e com a sociedade. Ao contrário, ela não disfarça seus objetivos exclusivamente eleitorais. Ela destrói exatamente as características que tornaram o Bolsa Família o maior, melhor e mais eficiente programa de transferência condicionada de renda do mundo, pois:

(1) cria um conjunto de 9 tipos de benefícios diferentes, tornando mais oneroso e complexo o programa;

(2) opta por centrar a atuação do Estado no aplicativo, abandonando o Cadastro Único como ferramenta de identificação e inclusão, base para uma atuação integral de combate à pobreza, com oferta de bens e serviços públicos;

(3) desqualifica o processo humanizado de abordagem e acolhimento garantido no Sistema Único de Assistência Social, o SUAS;

(4) centraliza todo o processo no governo federal, secundarizando a cooperação federativa.

A proposta enviada pelo governo Bolsonaro, além de frágil tecnicamente, é ainda ilegal. Estabelece um novo programa, sem definir o valor da linha de pobreza nem o valor dos benefícios, criando uma despesa continuada sem que se saiba o montante dela. Não previu, na proposta de lei orçamentária, receitas para fazer frente aos gastos com o programa.

Como mostra o debate em torno do aumento do IOF e da postergação do pagamento de precatórios, para criar um artificio que permita aumentar suas chances eleitorais, Bolsonaro destruiu um programa bem sucedido de 18 anos e feriu a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Apesar disto, os arautos da austeridade fiscal e da eficiência administrativa estão em silêncio.

Quanto vai custar o novo programa? Quais os critérios de inclusão das famílias? Quais estudos justificam adotar nove tipos diferentes de benefícios? Quais os impactos esperados com o novo programa? Nada disto está claro.

Um programa com 18 anos de existência, com custo fiscal baixo e impactos inquestionáveis está sendo extinto e, em seu lugar, propõe-se a incerteza. Há um crime em curso contra os pobres do Brasil, e o silêncio é ensurdecedor.

Cabe reconhecer, contudo, que, mesmo em seus últimos momentos, o Bolsa Família dá mais uma contribuição, mostrando que, quando questões eleitorais entram em cena, a ciência, as boas práticas, a eficácia e eficiência do Estado não são assim tão relevantes para uma parcela dos especialistas e dos economistas, sempre tão críticos em relação a programas em benefício dos mais pobres. Difícil escolha.

Desigualdade sistêmica faz famílias pobres deixarem legado de miséria, por Michael França.

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O progresso tecnológico aumenta as vantagens de quem nasce em ambientes privilegiados

Michael França Ciclista, doutor em teoria econômica pela Universidade de São Paulo; foi pesquisador visitante na Universidade Columbia e é pesquisador do Insper.

Folha de São Paulo, 19/10/2021

No passado, o esforço individual permitiu que milhões de jovens de baixa renda ascendessem socialmente ao redor do mundo. Diversas profissões não requeriam deles elevado nível de qualificação. Predominava o trabalho braçal.

Nesse contexto, era mais factível para os desfavorecidos prosperar e criar melhores condições de vida para suas famílias. Entretanto, esse cenário mudou.

Com o passar do tempo, o mundo do trabalho se transformou. O progresso tecnológico aumentou a demanda por mão de obra altamente qualificada e portadora de habilidades complexas. Para atender às novas exigências do mercado, famílias de alta renda passaram a investir intensamente na formação de seus filhos.

Contudo, na ausência de um sistema educacional público de qualidade, investimentos privados na educação representam consideráveis vantagens para os descendentes da elite adquirirem melhor qualificação e, assim, ocuparem os empregos que apresentam maiores remunerações.

Fora do mercado de trabalho, eles também têm altas chances de obter posições de prestígio em praticamente todo contexto socioeconômico. Na política, sabe-se que países com expressiva desigualdade tendem a apresentar maior concentração de poder em determinados grupos ao longo do tempo.

O caso brasileiro é emblemático. Algumas poucas famílias tradicionais detêm considerável poder para manter suas vantagens e, até mesmo, para influenciar nos rumos do país.

Além disso, deve-se pontuar que o progresso tecnológico aumentou a disponibilidade de produtos e serviços. Porém, dado que nem todos possuem capacidade financeira para comprar as facilidades da vida moderna, as vantagens daqueles que nascem em ambientes privilegiados aumentaram com o passar do tempo.

Isso tem profundas implicações na transferência de renda intergeracional. Os filhos dos ricos tendem a acumular cada vez mais recursos e aumentar o patrimônio familiar que será herdado pelos descendentes.

Nesse contexto, tem-se que na parte de cima da pirâmide social brasileira existem poucas famílias competindo pelos espaços de poder e usufruindo de uma estrutura social que permite a manutenção de seu status socioeconômico ao longo do tempo de maneira quase automática.

Na base da pirâmide o cenário é outro. Existem milhares de famílias batalhando pela sobrevivência. Por sua vez, a desigualdade nas oportunidades que um indivíduo terá na vida começa antes mesmo do seu nascimento.

A literatura acadêmica mostra que filhos de mães que não tiveram cuidados adequados durante a gravidez apresentaram resultados significativamente piores na vida. Quando nascem, muitas dessas crianças vivem em ambientes e famílias desestruturadas.

O baixo nível educacional dos pais e do círculo social em que a criança está inserida afeta negativamente o seu desenvolvimento individual. Nas escolas, ela não consegue aprender o suficiente e a taxa de evasão é acentuada.

Adicionalmente, muitas delas sofrem tanto com preconceito racial quanto com o de classe.
Na falta de melhores oportunidades, os descendentes das famílias desfavorecidas vão obter baixo nível educacional e, consequentemente, não conseguirão desenvolver as habilidades necessárias para um mercado de trabalho cada vez mais competitivo.

Sem perspectivas no trabalho, o custo de ter filhos quando se é relativamente jovem é pequeno. Assim, dada a baixa mobilidade social brasileira, o que se percebe é que as famílias de baixa renda acabam transferindo para as futuras gerações o legado de sua miséria.

Nesse mês o Google Fotos me lembrou que faz um ano que me mudei da favela São Remo em São Paulo, lugar onde morei por oito anos. Assim, não poderia deixar de escrever um pouco mais sobre desigualdade de oportunidades. Por fim, o texto é uma homenagem à música “A cidade”, de Chico Science, interpretada conjuntamente com Nação Zumbi.

Fome

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Depois de um início de século de grandes transformações sociais, políticas, culturais e econômicas, a pandemia desnudou uma realidade assustadora para a sociedade brasileira, somos um dos maiores produtores de alimentos, garantindo grandes ganhos no agronegócio e, ao mesmo tempo, estamos percebendo o retorno da fome no país, os dados recentes nos mostram que mais de 20 milhões de brasileiros declaram passar 24 horas ou mais sem ter o que comer em alguns dias, mais de 24 milhões não tem certeza de como se alimentarão no cotidiano, levando-os a reduzir a quantidade e qualidade do que comem. Neste cenário 74 milhões de pessoas vivem inseguros sobre se vão acabar passando por isso, vivendo num momento de grandes inquietações, instabilidades, incremento de fome e da exclusão social.

Vivemos num momento de grandes calamidades, a economia perdeu força e a recuperação se mostra cada vez mais distante, percebemos espasmos de recuperação de alguns indicadores positivos, alguma melhora nos investimentos externos e, ao mesmo tempo, percebemos uma degradação dos indicadores mais consistentes, tais como a inflação, aumento na fome e na exclusão social. Com inflação em ascensão o Banco Central aumenta as taxas de juros, geradas pela desvalorização cambial e a desagregação das cadeias globais de produção. Com taxas de juros maiores a economia se reduz, diminuindo os investimentos produtivos, retraindo o consumo e piorando os indicadores de emprego e renda, com isso, os indicadores econômicos agregados pioram, aumentando a degradação social e incrementando a exclusão social.

Desde os escritos de Josué de Castro, médico, cientista social, geógrafo e intelectual de várias denominações acadêmicas, a questão da fome e da exclusão social ganharam espaço nas discussões nacionais, onde destacamos os estudos sobre ecologia e a fome no nordeste brasileiro, contidos nos livros Geografia da Fome e Geopolítica do Fome. Todas estas obras tocaram em um tema urgente para a sociedade brasileira, mostrando os grandes desafios sociais e políticos para o combate da situação de penúria e de degradação social, destacando os setores da sociedade que ganham com esta situação de indignidade e de destruição da alma nacional.

A pandemia nos mostra nossas indignidades, nossas heranças de degradações sociais nos mostram como perpetuamos e naturalizamos as condições de destruição da sociedade nacional, neste momento, precisamos rever modelo econômico, investigando as condições que nos levaram a situação de degradação que vivemos na contemporaneidade, estimulando uma reflexão de todos os grupos sociais, criando condições para que os grupos mais degradados tenham acesso ao orçamento público. Neste momento, precisamos repensar as políticas públicas, todas que apresentarem resultados negativos devem ser reestruturadas, àquelas que beneficiam apenas grupos sociais e econômicos dominantes precisam ser repensadas e novas políticas públicas devem ser desenvolvidas e devem estar centradas na redução das desigualdades, da geração de empregos dignos, propiciando cidadania e acesso ao mercado de consumo de massa.

Não seremos uma nação desenvolvida se não nos preocuparmos com todos os setores da sociedade, garantindo oportunidades para todas as classes sociais, garantindo progresso material e imaterial. A história nos mostra que todas as nações que conseguiram alçar o desenvolvimento econômico, antes de mais nada conseguiram inserir a população ao mercado do consumo e garantindo cidadania e dignidade.

Num momento de escassez e de rivalidades crescentes no ambiente global, marcados por incertezas e instabilidades, a construção do desenvolvimento das nações deve ser o objetivo maior da sociedade brasileira, superando a dualidade nacional, acabando com a fome, reduzindo a desigualdade e construindo um projeto nacional, sem isso, seremos sempre vistos como o país do futuro.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 20/10/2021.

Todos contra a exclusão escolar, por Alexandre Schneider.

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É preciso que a agenda de políticas públicas tenha como diretriz combater o nível de desigualdade educacional brasileira

Alexandre Schneider – Folha de São Paulo, 18/10/2021

O Brasil tomou um trem veloz em direção ao passado. Inflação, juros, desemprego, desigualdade, fome, trabalho infantil, evasão escolar, desmatamento, agressões ao meio ambiente e pobreza crescentes ou em níveis presentes há 30 anos nos dão o tamanho do atraso e do desafio multidimensional que nosso país deverá enfrentar nos próximos anos.

Na educação, palco dos maiores retrocessos, é preciso que a agenda de políticas públicas tenha como diretriz combater um mal que não é novo, mas que foi elevado durante a pandemia: o nível de desigualdade educacional brasileira. O retrato mais claro, além das diferenças no desempenho dos estudantes medidos por exames padronizados, está nos indicadores de exclusão escolar.

Um estudo recente do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC) e do Unicef traçou o panorama da exclusão escolar e nos trouxe dados alarmantes. Em 2019, segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, cerca de 1,1 milhão de crianças e adolescentes em idade escolar obrigatória estavam fora da escola, a maioria deles nas faixas etárias de 15 a 17 anos (629 mil) e de 4 e 5 anos (384 mil).

Pretos, pardos e indígenas formam o maior contingente de excluídos da educação, correspondendo a cerca de 71% dos estudantes que estavam fora da escola antes da pandemia. O principal motivo apontado pelos estudantes para abandonar a escola foi o de desinteresse em estudar (37% das crianças e adolescentes entre 11 e 14 anos e 38% dos adolescentes entre 15 e 17 anos).

No fim do ano letivo de 2020 o número de excluídos chegou a mais de 5 milhões de alunos. Temos, portanto, um quadro de desigualdade educacional pré-pandemia que se intensificou durante este período, com um maior número de crianças e adolescentes fora da escola. Garantir o direito à educação exigirá políticas educacionais e políticas de apoio à educação no curto e médio prazo nos três níveis de governo e nas escolas.

No curto prazo todas as redes públicas do país devem instituir uma política de busca ativa de crianças e adolescentes que estão fora da escola. Além da busca ativa, o desenho de protocolos simples de acompanhamento da frequência e da participação dos estudantes na escola, antecipando possíveis evasões é uma medida muito eficaz e fácil de ser implementada.

Investir em programas de saúde mental dos estudantes e educadores, na ampliação do acesso à internet e na organização dos tempos e espaços de aprendizagem para a garantia de apoio aos estudantes em situação mais vulnerável são estratégias capazes de fortalecer o vínculo destes estudantes com a escola e evitar sua exclusão.

Também é fundamental a instituição de uma rede de proteção social articulando as áreas de saúde, educação e desenvolvimento social no acompanhamento dos estudantes e suas famílias.

A agenda educacional brasileira ainda está presa ao que foi proposto e implementado nas gestões de Paulo Renato Souza e Fernando Haddad. É inegável sua contribuição e o avanço promovido pelas políticas engendradas por ambos, mas hoje é necessário um passo além. Não vamos superar as desigualdades educacionais brasileiras com um sistema em que todos os incentivos existentes contribuem para manter ou até mesmo ampliar a exclusão.

Uma nova agenda exige a instituição de metas e indicadores voltados à redução das desigualdades educacionais e não à variação da média dos resultados, cujo sucesso muitas vezes se dá fechando a porta da escola aos mais vulneráveis.

Esta agenda requer a instituição de um Sistema Nacional de Educação, que organize um regime de colaboração entre a União, Estados e Municípios, dando aos últimos mais autonomia. O fortalecimento dos municípios e a ampliação da autonomia das escolas são medidas capazes de facilitar a aproximação entre a comunidade e a educação públicas. As pessoas “vivem nas cidades” e os professores de seus filhos às vezes habitam o mesmo quarteirão. O prefeito e os gestores educacionais são figuras mais próximas do que as autoridades estaduais e federais.

Por fim é necessário operar uma mudança que vá além da implementação dos currículos. Formar os professores para o uso de metodologias e práticas centradas no estudante, construir uma escola mais humana, que respeite os saberes comunitários, aproxima a aprendizagem da realidade de seus estudantes. Em um cenário de alta exclusão de pretos, pardos e indígenas, por exemplo, não basta cumprir a lei que obriga o ensino da história e cultura indígena e afro-brasileira. É preciso que as escolas sejam ativamente antirracistas e que todos os seus profissionais sejam formados para tal.

O combate à exclusão escolar, chaga antiga que ganhou contornos ainda mais inaceitáveis por conta da pandemia de Covid-19, deve ser a meta mais importante nos próximos anos. A missão da escola pública não é apenas alcançar excelência educacional. É a de garantir que todos estejam na escola, na idade certa, aprendendo. Apoiar a escola pública nessa missão deveria ser nosso mais importante compromisso como brasileiros.

O marxismo de Lênin, por Elias Jabbour.

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Xi Jinping e o “marxismo de Lênin”, por Elias Jabbour

Ao deslocar as teorias do desenvolvimento (estruturalismo latinoamericano e anglosaxão) e de Estado Desenvolvimentista à explicação de um fenômeno novo em prol do conceito de formação econômico-social, abriu-se um relevo de possibilidades intelectuais.

Jornal GGN – 16 de outubro de 2021

Tenho trabalhado com a ideia de que emergiu na China em 1978 uma nova classe de formações econômico-sociais, o socialismo de mercado. O “marxismo de Lênin” foi fundamental na minha recente trajetória intelectual. O que chamo de “marxismo de Lênin” é o marxismo que alça o conceito de formação econômico-social ao grau de conceito de fronteira das ciências humanas e sociais. Esse conceito, um tanto quanto obscuro em Marx e Engels, e ganha forma e conteúdo em Lênin e seu livro “Quem são os amigos do povo e como lutam contra a socialdemocracia?”. São inúmeras as contribuições de Lênin e outros pensadores à construção deste conceito. Destaco Mao Tsétung, Mariátegui e, no Brasil, Ignacio Rangel.

Eu e Alberto Gabriele em “China: o socialismo do século XXI” e ser lançado em breve pela Boitempo Editorial trabalhamos, aprofundamos e tentamos inaugurar uma visão inovadora sobre a China tendo este conceito como chave.

Uma homenagem ao “marxismo de Lênin” sob forma de uma inovadora e polêmica construção de uma visão do socialismo e do capitalismo nos últimos 100 anos e posicionando a formação econômico-social que emerge na China em 1978 como parte desta nossa construção teórica. O que tem a ver Xi Jinping com isso tudo? Xi Jinping inaugura uma era em que mudanças institucionais intentam transformar qualitativamente os esquemas de propriedade do país. Isso não é um ato isolado, uma simples virada política. Tem luta de classes, mas tem conceito.

Ao deslocar as teorias do desenvolvimento (estruturalismo latino-americano e anglo saxão) e de Estado Desenvolvimentista à explicação de um fenômeno novo em prol do conceito de formação econômico-social, abriu-se um relevo de possibilidades intelectuais. Uma formação econômico-social é algo em constante movimento. É algo que abriga diferentes modos de produção de diferentes épocas históricas operando em unidade de contrários, porém hegemonizado pelo poder político de novo tipo e suas respectivas formas de propriedade públicas.

O caráter desigual do processo de desenvolvimento de uma formação com diferentes “camadas geológicas” que se combinam, dando origem a novas, nos levou a buscar o cerne de sua dinâmica. O chamado universal no particular que as grandes terias não nos entregam. Essa desigualdade no processo interno de desenvolvimento demandava a constante construção de instituições capazes de mediar as relações entre os diferentes modos de produção, historicamente distantes. Mas territorialmente próximos, em processo de combinação.

O processo de desenvolvimento econômico em meio esta dinâmica depende da capacidade de resposta institucional do Estado. É colocar constantemente as relações de produção em concordâncias com as novas forças produtivas que surgem. O universal no particular na experiência chinesa pode ser percebida nesta capacidade de mudanças institucionais rápidas que explicam o crescimento ininterrupto chinês. Recolocar o Estado e o setor privado em diferentes papeis ao longo do tempo.

Assim foi se desenvolvendo essa nova formação econômico-social. Em meio a inúmeras contradições. Como o movimento e a contradição são as lógicas fundamentais, não é de se estranhar o avanço do setor privado sobre o estatal na década de 1990, por exemplo. Observando em dinâmica. A urbanização elevou a capacidade de organização dos trabalhadores que passaram a ser voz mais ativa, empurrando para frente aquela experiência e dando forma a um Estado nada weberiano. Uma nova teoria do Estado é necessária para compreender aquela dinâmica. Está aí mais uma lacuna a ser enfrentada. Conto com a inteligência de Eduardo Costa Pinto para isso.

Mudanças institucionais cíclicas e luta de classes são uma totalidade. Xi Jinping capitaneia uma nova onda de inovações institucionais, mais profunda e ativa. Esquemas novos de propriedade surgem, novas formas históricas de propriedade hegemonizadas pelo setor público, idem. A síntese disso é o surgimento, também, de uma nova dinâmica de acumulação, com leis e regularidades próprias a serem descobertas, que chamamos de “Nova Economia do Projetamento”.

Trata-se da forma histórica do socialismo em nossa presente época.

Enfim, as ideias são assim. Não podemos requentar o que autores europeus e norte-americanos, inclusive marxistas, falam e escrevem sobre a China. Podemos mais. Podemos elaborar mais e melhor. Coragem e força a quem enfrenta, de verdade, este debate em alto nível.

Elias Jabbour, professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Econômicas (PPGCE) e em Relações Internacionais (PPGRI) da UERJ

Brasil conviverá com real mais fraco por bastante tempo, diz Pastore em novo livro.

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Economista também afirma que país precisa romper com passado e buscar terceira via em 2022

EDUARDO CUCOLO – FOLHA DE SÃO PAULO, 16/10/2021

O Brasil deve permanecer por bastante tempo com um câmbio depreciado, fator que dificulta o combate à inflação e que não resolverá sozinho o problema de falta de competitividade da indústria brasileira.

A afirmação é do ex-presidente do Banco Central Affonso Celso Pastore, que está lançando seu novo livro, “Erros do passado, soluções para o futuro: A herança das políticas econômicas brasileiras do século 20”.
Para ele, um novo superciclo de commodities e um forte fluxo de capital estrangeiro para o Brasil, como vistos na primeira década do século 21, não vão se repetir. Mas o país pode aproveitar o câmbio depreciado para mitigar o impacto inicial de uma necessária revisão de mecanismos de proteção à indústria que só geraram ineficiência.

Pastore diz também que o país corre o risco de perpetuar alguns desses erros do passado caso reeleja o presidente Jair Bolsonaro ou o ex-presidente Lula. Ele se diz otimista com uma terceira via social-democrata, com um modelo econômico de Estado provedor e que reduza desigualdades.

“Sou muito cético em relação ao Brasil com um desses dois ganhando a presidência. Não sou cético em relação à terceira via”, afirma.

Dividida em sete capítulos, a publicação trata de temas como hiperinflação, milagre econômico, crise da dívida externa, câmbio e o “eterno problema fiscal”. Em todos os casos, coloca à prova as narrativas históricas sobre esses temas ao confrontá-las com dados e trabalhos acadêmicos.

Sobre o uso do câmbio no desenvolvimento do comércio exterior, por exemplo, Pastore afirma que uma moeda subvalorizada é apenas um facilitador do aumento da competitividade, mas não um substituto de medidas que aumentem a eficiência da indústria.

Ele também faz uma análise das políticas econômicas da época do milagre econômico brasileiro (1968-1973), na qual destaca um modelo de promoção de exportações por meio de subsídios fiscais e creditícios que, em vez de abrir a economia ao comércio exterior, acentuou distorções e gerou problemas muito semelhantes aos do modelo de substituição de importações.

O autor também resgata a discussão da sua tese de doutorado, de 1969, quando questionou o pensamento da época de que a agricultura de um país subdesenvolvido como o Brasil não conseguiria alcançar um alto nível de desenvolvimento e produtividade, algo facilmente desmentido na atualidade.

Pastore também alerta que o país evoluiu muito em relação à independência do BC, algo que impediu o país de combater a inflação com eficiência até a construção do Plano Real. Mas afirma que o problema do país na área fiscal atrapalha a política monetária e reverte os ganhos obtidos desde a criação do teto de gastos.

Para ele, esse limite de despesas foi praticamente abandonado. “O governo resolveu que, para não descumprir na aparência o teto de gastos, vai aprovar uma emenda constitucional que posterga o pagamento de precatórios. Ele muda a Constituição para dizer que cumpriu. O mercado financeiro não é ingênuo”, afirma.
Veja abaixo os principais trechos da conversa com o economista.

Inflação
Estamos muito mais aparelhados hoje para combater a inflação do que no passado. O Brasil não tinha um Banco Central ou, quando passou a ter, durante muitos anos não tinha autonomia. Nós progredimos. Essa lição, aprendemos. Mas o Brasil não conseguiu resolver o seu problema fiscal, de forma que ele interfere na política monetária e conduz a um tipo de solução [aumento maior de juros] que é muito mais custosa para a sociedade.
Câmbio

Quando os EUA reagiram à Covid com uma política monetária extremamente estimulativa, isso provocou um enfraquecimento do dólar, que produziu valorizações em todas as moedas. O Brasil, devido ao risco fiscal, não se beneficiou disso. O real permaneceu depreciado. Você está vendo o real hoje, depois de várias intervenções do Banco Central, rodando a R$ 5,40, que é uma taxa completamente depreciada e com comportamento muito divergente do de outros países.

O câmbio se depreciou. Parte é gerada por fundamentos. Há uma depreciação acima dos fundamentos, exagerada, provocada pelo prêmio de risco.

Teto de gastos
Em 2016, para criar um fato político que geraria uma onda a favor de reformas, o governo resolveu aprovar a emenda constitucional que fixa o teto de gastos. A partir daí, as taxas de juros começaram a cair. Só que esse teto de gastos virou hoje uma coisa praticamente inexistente.

Olha o que está acontecendo na questão dos precatórios. A regra do teto não está sendo cumprida, o governo não está fazendo as reformas e não está controlando os gastos.
Isso vai para prêmio de risco. Esse prêmio de risco se manifesta em juros mais altos sobre a dívida pública e câmbio mais depreciado. Com câmbio mais depreciado, a inflação sobe e a sociedade paga um custo que é ter de suportar juros mais altos e crescimento mais baixo para controlar a inflação. Tínhamos um problema fiscal, encaminhamos uma solução, mas abandonamos isso e estamos colhendo um resultado muito negativo.
Indústria ineficiente

O Brasil criou na indústria um protecionismo absolutamente gigantesco, o que gera ineficiência no setor produtivo. O governo não tem de defender só o interesse privado, tem de defender também o interesse da sociedade como um todo.

A retórica diz que tem de compensar o custo Brasil, então vamos arrumar um câmbio mais depreciado. O que tem de arrumar é reduzir o custo Brasil, não é depreciar o câmbio.

Dólar mais caro
Eu prevejo [no livro] um período de câmbio continuamente depreciado. Portanto, há aqui uma oportunidade ímpar para o país promover uma redução de tarifa, de proteção aduaneira para indústria, sem penalizar a indústria. Esse período deveria ser usado a favor do país. Isso seria uma oportunidade para fazer um processo de liberalização e aumentar a eficiência produtiva da economia brasileira.

Bolsonaro e Lula
Nem com Lula nem com Bolsonaro. Eles já mostraram o que são. As pessoas esquecem o que foi mensalão, o “petrolão”, o segundo mandato do Lula e o erro dele de manter a Dilma no poder, o que nos colocou em uma crise econômica da qual não nos recuperamos.

Há uma chance, mas ela não está com os dois tidos como os que vão ficar para o final [segundo turno]. Se for por aí, sou muito cético em relação ao Brasil.

Terceira via
Estamos falando de algo que se traduz em políticas econômicas com essa característica do capitalismo social-democrata, no qual o Estado seja um provedor de seguros para a sociedade. Não seguros que deixem todos sem incentivo para aumentar a eficiência, mas que permitam eliminar injustiças.

Um governo tem de se preocupar com reformas que produzam crescimento econômico, mas não é só crescimento econômico. Não estamos apenas tentando reproduzir no Brasil um capitalismo liberal meritocrático assemelhado ao dos EUA, com Estado mínimo. Gosto muito mais do modelo europeu.

Agora, depende de nós, da sociedade civil. Não podemos sentar na beira da calçada e chorar porque estamos indo mal, chamando a mamãe como fazíamos quando crianças. Os eleitores são adultos. Cada indivíduo tem a obrigação de vir ao debate, colocar suas ideias e a fazer pressões para que os políticos se organizem e enfrentem com mais chance de vitória esse desafio.

Rompimento com o passado
O Brasil vai ter de humildemente reconhecer os erros do passado. A razão pela qual escrevi o livro é a gente conhecer nossa história, saber onde erramos. A história não se repete, nem como farsa. Portanto, não posso usar suas lições na sua amplitude e totalidade. Mas posso aprender que há momentos em que temos de fazer um rompimento.

Estamos diante da oportunidade de ter um rompimento com o passado. Em vez de ficar nessa escolha entre duas experiências extremamente frustradas, temos obrigação de buscar alguma coisa nova e que esteja fundamentada em cima de princípios éticos, econômicos, de bem-estar, que permita o crescimento do país. Quero convidar as pessoas para esse tipo de reflexão, para ver se a gente consegue obter algum tipo de acordo a respeito dos caminhos do país.

“ERROS DO PASSADO, SOLUÇÕES PARA O FUTURO”
Preço Impresso: R$ 79,90 / e-book: 39,90
Autor Affonso Celso Pastore
Editora Portfolio-Penguin/Editora Schwarcz

A mais importante disrupção é preparar novas gerações de professores para utilizar tecnologias

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Edtechs abusam da ideia sebastianista de que uma inovação possa, no final da formação do estudante, apagar anos de lições de casa não feitas

Luiz Alvares Rezende de Souza, Presidente da Numbers Talk – Business Analytics

Oscar Hipólito, Professor titular da USP, é assessor educacional da Numbers Talk – Business Analytics e diretor acadêmico da Cintana Education (Brasil)

Folha de São Paulo, 13/10/2021

Estabelecida há pouco mais de um século e meio, a máxima evolucionista da seleção contínua dos indivíduos mais adaptados foi claramente revolucionária. Natura non facit saltum é o enunciado resgatado por Charles Darwin dos pensadores gregos: a natureza não dá saltos. Por alguns já foi classificada como reacionária. Liberal, outros disseram. E chegou mesmo a ser rotulada de progressista em algumas ocasiões.

Nem reacionária e tampouco liberal, ela é pragmática e, no estilo de Richard Dawkins, implacável em suas modernas leituras. A tese da macroevolução aplica-se a espécies, empresas, e também a ideias. A cada geração, indivíduos com maiores chances de sobrevivência reproduzem seu DNA e adquirem maior participação na população. O resto do trabalho é puro crescimento exponencial, um modelo matemático que a pandemia da Covid-19 conseguiu demonstrar de maneira didaticamente macabra para as gerações atuais.

Assim tem sido com as edtechs: elas ajudam a selecionar mutações bem-sucedidas nas soluções de problemas ligados ao setor educacional. E o segmento abusa da ideia sebastianista de que uma inovação empreendedora-disruptiva possa, no final da formação do estudante, apagar anos de lições de casa não feitas. Infelizmente esse tipo de ideia encontra ambiente extremamente favorável para se propagar em nossa sociedade de tradição ibérica.

Não temos evidências de que inovações disruptivas em educação foram capazes de produzir impactos em larga escala para melhoria de indicadores como analfabetismo, resultados no PISA, permanência escolar, renda média per capita ou medidas de ganho de produtividade nas populações atingidas.

Ao contrário, são fartas as evidências de que um bom ensino de língua(s), raciocínio lógico e matemático, atividades práticas bem planejadas e conduzidas, compromisso com os fundamentos teóricos dos cursos desde seu início, e ações focadas em engajamento dos estudantes no seu processo de ensino-aprendizagem contribuem inequivocamente para melhores resultados.

Também são abundantes os estudos que relacionam aumento de níveis médios de resultados educacionais associados à posterior elevação nos indicadores de produtividade da economia, e consequente aumento de renda das gerações que foram alvo desse tipo de política.

Em outras palavras, temos referências conhecidas e países que seguiram com sucesso esses caminhos. Saber interpretar os resultados de evidências de programas bem-sucedidos em edtechs, ou em centenas de projetos disponíveis nas redes pública e privada, e identificar os que possam ser escalados para compor soluções, sem dúvida é o grande desafio da gestão da inovação em educação. Será que hoje temos essa “leitura organizada”, para poder evoluir nosso sistema educacional?

Certamente é a evolução de estratégias provadas em educação e sua adaptação ao ambiente e sistemas de ensino existentes, e não a crença em soluções mágicas, isoladas ou pretensamente disruptivas que deve receber nossa atenção. O uso massivo de vídeos (curtos), sala de aula invertida, linguagem youtuber, project based learning e tantas outras pirotecnias que encantaram professores de primeira hora, e principalmente investidores em busca do próximo grande projeto de alto crescimento, não são páreos para uma lição de casa diária, bem planejada e bem-feita.

Em uma visão objetiva baseada em evidências, se as soluções mais eficientes de ensino-aprendizagem e com escala passam necessariamente por tecnologia, então elas também, necessariamente, passam pelo seu bom uso por parte significativa dos professores. Talvez a grande e mais importante disrupção esteja aí: preparar novas gerações de professores para utilizar múltiplas tecnologias (a maioria ainda está por vir!) e para habilitar nossos alunos a trilhar de maneira mais eficiente o percurso de aprendizagem, como vem acontecendo em países como Singapura, Finlândia, Coreia do Sul, Canadá, Estônia entre outros.

“Entre a tecnologia e o bom professor, eu escolho o último” disse Salman Khan fundador e CEO da EdTech Khan Academy em uma entrevista publicada pela Revista Telos 114, em setembro de 2020. Ele resumiu o que há de mais importante no processo de ensino aprendizagem: o Professor.

Nesse sentido, alguns pontos precisam ser levantados para que se possa equacionar e solucionar as questões que têm comprometido negativamente a qualidade da Educação. Quantos de nossos professores atuais conseguem de fato usar recursos de trabalho colaborativo durante uma aula por videoconferência? Quantos professores conseguem executar uma avaliação voltada para aprendizagem? Terão eles condições de formar alunos para atuar em um mercado de trabalho global e altamente competitivo? Quando nossos governantes e em especial o Ministério da Educação, MEC, levarão a bom termo os programas de capacitação dos professores bem como sua valorização e reconhecimento necessários para melhorar os resultados da aprendizagem dos alunos e otimizar sua formação? Será que o investimento no quadro de professores é capaz de gerar taxa de retorno privada, e atrair esforços, ou não seria essa a inovação mais importante que deveríamos estar buscando em educação?

Certamente as respostas a essas questões jogarão um pouco de luz nos pontos críticos que precisam ser revistos para a melhoria do desempenho do sistema de ensino. Professores bem formados aliados ao uso de inteligência de dados e análise de evidências tanto na aprendizagem dos estudantes quanto na gestão acadêmica são fundamentais se quisermos tirar a educação, em todos os níveis, do estado de mediocridade em que está.

Byung-Chul Han: ”O celular é um instrumento de dominação. Age como um rosário”

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Filósofo sul-coreano, uma das estrelas do pensamento atual, se aprofunda em sua cruzada contra os smartphones. Acredita que se transformaram em uma ferramenta de subjugação digital que cria viciados. Em entrevista, Han afirma que é preciso domar o capitalismo, humanizá-lo

Por Sergio C. Fanjul – Carta Maior – 11/10/2021

Com certa vertigem, o mundo material, feito de átomos e moléculas, de coisas que podemos tocar e cheirar, está se dissolvendo em um mundo de informação, de não-coisas, como observa o filósofo alemão de origem coreana Byung- Chul Han. Não-coisas que, ainda assim, continuamos desejando, comprando e vendendo, que continuam nos influenciando. O mundo digital cada vez se hibridiza de modo mais notório com o que ainda consideramos mundo real, ao ponto de confundirem-se entre si, fazendo a existência cada vez mais intangível e fugaz. O último livro do pensador, Não-coisas. Quebras no mundo de hoje, se une a uma série de pequenos ensaios em que o pensador sucesso de vendas (o chamaram de rockstar da filosofia) disseca minuciosamente as ansiedades que o capitalismo neoliberal nos produz.
Unindo citações frequentes aos grandes filósofos e elementos da cultura popular, os textos de Han transitam do que chamou de “A sociedade do cansaço”, em que vivemos esgotados e deprimidos pelas inapeláveis exigências da existência, à análise das novas formas de entretenimento que nos oferecem. Da psicopolítica, que faz com que as pessoas aceitem se render mansamente à sedução do sistema, ao desaparecimento do erotismo que Han credita ao narcisismo e exibicionismo atual, que proliferam, por exemplo, nas redes sociais: a obsessão por si mesmo faz com que os outros desapareçam e o mundo seja um reflexo de nossa pessoa. O pensador reivindica a recuperação do contato íntimo com a cotidianidade – de fato, é sabido que ele gosta de cultivar lentamente um jardim, trabalhos manuais, o silêncio. E se rebela contra “o desaparecimento dos rituais” que faz com que a comunidade desapareça e que nos transformemos em indivíduos perdidos em sociedades doentes e cruéis.

Byung-Chul Han aceitou esta entrevista como EL PAÍS, mas somente mediante um questionário por e-mail que foi respondido em alemão pelo filósofo e posteriormente traduzido e editado.

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Como é possível que em um mundo obcecado pela hiperprodução e o hiperconsumo, ao mesmo tempo os objetos vão se dissolvendo e vamos rumo a um mundo de não-coisas?

Há, sem dúvida, uma hiperinflação de objetos que conduz a sua proliferação explosiva. Mas se trata de objetos descartáveis com os quais não estabelecemos laços afetivos. Hoje estamos obcecados não com as coisas, e sim com informações e dados, ou seja, não-coisas. Hoje somos todos infômanos. Chegou a se falar de datasexuais [pessoas que compilam e compartilham obsessivamente informação sobre sua vida pessoal].

Nesse mundo que o senhor descreve, de hiperconsumo e perda de laços, por que é importante ter “coisas queridas” e estabelecer rituais?

As coisas são os apoios que dão tranquilidade na vida. Hoje em dia estão em conjunto obscurecidas pelas informações. O smartphone não é uma coisa. Eu o caracterizo como o infômata que produz e processa informações. As informações são todo o contrário aos apoios que dão tranquilidade à vida. Vivem do estímulo da surpresa. Elas nos submergem em um turbilhão de atualidade. Também os rituais, como arquiteturas temporais, dão estabilidade à vida. A pandemia destruiu essas estruturas temporais. Pense no teletrabalho. Quando o tempo perde sua estrutura, a depressão começa a nos afetar.

Em seu livro se estabelece que, pela digitalização, nos transformaremos em homo ludens, focados mais no lazer do que no trabalho. Mas, com a precarização e a destruição do emprego, todos poderemos ter acesso a essa condição?

Falei de um desemprego digital que não é determinado pela conjuntura. A digitalização levará a um desemprego maciço. Esse desemprego representará um problema muito sério no futuro. O futuro humano consistirá na renda básica e nos jogos de computador? Um panorama desalentador. Com panem et circenses (pão e circo) Juvenal se refere à sociedade romana em que a ação política não é possível. As pessoas se mantêm contentes com alimentos gratuitos e jogos espetaculares. A dominação total é aquela em que as pessoas só se dedicam a jogar. A recente e hiperbólica série coreana da Netflix, Round 6, em que todo mundo só se dedica ao jogo, aponta nessa direção.

Em que sentido?

Essas pessoas estão totalmente endividadas e se entregam a esse jogo mortal que promete ganhos enormes. Round 6 representa um aspecto central do capitalismo em um formato extremo. Walter Benjamin já disse que o capitalismo representa o primeiro caso de um culto que não é expiatório, e sim nos endivida. No começo da digitalização se sonhava que ela substituiria o trabalho pelo jogo. Na verdade, o capitalismo digital explora impiedosamente a pulsão humana pelo jogo. Pense nas redes sociais, que incorporam elementos lúdicos para provocar o vício nos usuários.

De fato, o smatphone nos prometia certa liberdade… Não se transformou em uma longa corrente que nos aprisiona onde quer que estejamos?

O smartphone é hoje um lugar de trabalho digital e um confessionário digital. Todo dispositivo, toda técnica de dominação geram artigos cultuados que são utilizados à subjugação. É assim que a dominação se consolida. O smartphone é o artigo de culto da dominação digital. Como aparelho de subjugação age como um rosário e suas contas; é assim que mantemos o celular constantemente nas mãos. O like é o amém digital. Continuamos nos confessando. Por decisão própria, nos desnudamos. Mas não pedimos perdão, e sim que prestem atenção em nós.

Há quem tema que a internet das coisas possa significar algo assim como a rebelião dos objetos contra o ser humano.

Não exatamente. A smarthome [casa inteligente] com coisas interconectadas representa uma prisão digital. A smartbed [cama inteligente] com sensores prolonga a vigilância também durante as horas de sono. A vigilância vai se impondo de maneira crescente e sub-reptícia na vida cotidiana como se fosse o conveniente. As coisas informatizadas, ou seja, os infômatas, se revelam como informadores eficientes que nos controlam e dirigem constantemente.

O senhor descreveu como o trabalho vai ganhando caráter de jogo, as redes sociais, paradoxalmente, nos fazem sentir mais livres, o capitalismo nos seduz. O sistema conseguiu se meter dentro de nós para nos dominar de uma maneira até prazerosa para nós mesmos?

Somente um regime repressivo provoca a resistência. Pelo contrário, o regime neoliberal, que não oprime a liberdade, e sim a explora, não enfrenta nenhuma resistência. Não é repressor, e sim sedutor. A dominação se torna completa no momento em que se apresenta como a liberdade.

Por que, apesar da precariedade e da desigualdade crescentes, dos riscos existenciais etc., o mundo cotidiano nos países ocidentais parece tão bonito, hiperplanejado, e otimista? Por que não parece um filme distópico e cyberpunk?

O romance 1984 de George Orwell se transformou há pouco tempo em um sucesso de vendas mundial. As pessoas têm a sensação de que algo não anda bem com nossa zona de conforto digital. Mas nossa sociedade se parece mais a Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley. Em 1984 as pessoas são controladas pela ameaça de machucá-las. Em Admirável Mundo Novo são controladas pela administração de prazer. O Estado distribui uma droga chamada “soma” para que todo mundo se sinta feliz. Esse é nosso futuro.

O senhor sugere que a inteligência artificial e o big data não são formas de conhecimento tão espantosas como nos fazem crer, e sim mais “rudimentares”. Por que?

O big data dispõe somente de uma forma muito primitiva de conhecimento, a saber, a correlação: acontece A, então ocorre B. Não há nenhuma compreensão. A Inteligência Artificial não pensa. A Inteligência Artificial não sente medo.

Blaise Pascal disse que a grande tragédia do ser humano é que não pode ficar quieto sem fazer nada. Vivemos em um culto à produtividade, até mesmo nesse tempo que chamamos “livre”. O senhor o chamou, com grande sucesso, de a sociedade do cansaço. Nós deveríamos nos fixar na recuperação do próprio tempo como um objetivo político?

A existência humana hoje está totalmente absorvida pela atividade. Com isso se faz completamente explorável. A inatividade volta a aparecer no sistema capitalista de dominação com incorporação de algo externo. É chamado tempo de ócio. Como serve para se recuperar do trabalho, permanece vinculado ao mesmo. Como derivada do trabalho constitui um elemento funcional dentro da produção. Precisamos de uma política da inatividade. Isso poderia servir para liberar o tempo das obrigações da produção e tornar possível um tempo de ócio verdadeiro.

Como se combina uma sociedade que tenta nos homogeneizar e eliminar as diferenças, com a crescente vontade das pessoas em ser diferentes dos outros, de certo modo, únicas?

Todo mundo hoje quer ser autêntico, ou seja, diferente dos outros. Dessa forma, estamos nos comparando o tempo todo com os outros. É justamente essa comparação que nos faz todos iguais. Ou seja: a obrigação de ser autênticos leva ao inferno dos iguais.

Precisamos de mais silêncio? Ficar mais dispostos a escutar o outro?

Precisamos que a informação se cale. Caso contrário, explorará nosso cérebro. Hoje entendemos o mundo através das informações. Assim a vivência presencial se perde. Nós nos desconectamos do mundo de modo crescente. Vamos perdendo o mundo. O mundo é mais do que a informação. A tela é uma representação pobre do mundo. Giramos em círculo ao redor de nós mesmos. O smartphone contribui decisivamente a essa percepção pobre de mundo. Um sintoma fundamental da depressão é a ausência de mundo.

A depressão é um dos mais alarmantes problemas de saúde contemporâneos. Como essa ausência do mundo opera?

Na depressão perdemos a relação com o mundo, com o outro. E nos afundamos em um ego difuso. Penso que a digitalização, e com ela o smartphone, nos transformam em depressivos. Há histórias de dentistas que contam que seus pacientes se aferram aos seus telefones quando o tratamento é doloroso. Por que o fazem? Graças ao celular sou consciente de mim mesmo. O celular me ajuda a ter a certeza de que vivo, de que existo. Dessa forma nos aferramos ao celular em situações críticas, como o tratamento dental. Eu lembro que quando era criança apertava a mão de minha mãe no dentista. Hoje a mãe não dá a mão à criança, e sim o celular para que se agarre a ele. A sustentação não vem dos outros, e sim de si mesmo. Isso nos adoece. Temos que recuperar o outro.

Segundo o filósofo Fredric Jameson é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. O senhor imaginou algum modo de pós-capitalismo agora que o sistema parece em decadência?

O capitalismo corresponde realmente às estruturas instintivas do homem. Mas o homem não é só um ser instintivo. Temos que domar, civilizar e humanizar o capitalismo. Isso também é possível. A economia social de mercado é uma demonstração. Mas nossa economia está entrando em uma nova época, a época da sustentabilidade.

O senhor se doutorou com uma tese sobre Heidegger, que explorou as formas mais abstratas de pensamento e cujos textos são muito obscuros até o profano. O senhor, entretanto, consegue aplicar esse pensamento abstrato a assuntos que qualquer um pode experimentar. A filosofia deve se ocupar mais do mundo em que a maior parte da população vive?

Michel Foucault define a filosofia como uma espécie de jornalismo radical, e se considera a si mesmo jornalista. Os filósofos deveriam se ocupar sem rodeios do hoje, da atualidade. Nisso sigo Foucault. Eu tento interpretar o hoje em pensamentos. Esses pensamentos são justamente o que nos fazem livres.