Visão Sistêmica

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A sociedade vem passando por inúmeras transformações em todas as áreas e setores, exigindo dos agentes econômicos e políticos uma análise mais sistêmica dos grandes problemas nacionais, evitando visões centradas apenas em questões conjunturais e se esquecendo de uma reflexão estruturada e consistente. Sem esta análise, os gestores se concentram em análises imediatas e se esquecem de análises mais estratégicas sobre os rumos das sociedades, querem medidas que tragam ganhos substanciais rapidamente e se esquecem que as grandes alterações devem ser construídas de forma consistente e estruturada.

No mundo contemporâneo, um dos maiores desafios para os gestores públicos, intelectuais e formadores de políticas governamentais é enxergar os problemas da sociedade de forma mais sistêmica. A grande maioria destes gestores percebem apenas um dos lados do processo, deixando de lado outros eixos desta equação, diante disso, as políticas adotadas acabam gerando desajustes na sociedade, faltando uma visão sistêmica e estruturada sobre o comportamento da coletividade.

Nesta visão limitada, percebemos que as medidas apenas visam uma resolução imediata, resolvendo parcialmente o problema e posteriormente, percebemos que o desafio fica ainda maior, os desajustes são mais intensos e as medidas necessárias exigem políticas maiores e mais efetivas. Muitos gestores defendem medidas de austeridade e redução dos benefícios sociais acreditando que, desta forma, com estas medidas a economia vai se recuperar e voltar ao tão sonhado crescimento econômico e esquecem que o sistema econômico é muito mais complexo e dinâmico do que muitos gestores acreditam. Menos investimentos na economia geram menos empregos, diminuição do consumo, redução das vendas e dos lucros dos agentes produtivos, levando a economia a comportamentos recessivos.

A sociedade brasileira durante séculos conviveu com iniquidades sociais, políticas e econômicas, gerando uma sociedade marcada por grandes pulsões de pobrezas e de indignidades, onde uma pequena parcela da sociedade vive envolta nas benesses da tecnologia, enquanto uma parte convive com trabalhos precários, recursos financeiros limitados, educação de baixa qualidade e grandes dificuldades de sobrevivência.

Nesta sociedade, chegamos num momento marcado por tantas iniquidades que se não conseguirmos, enquanto sociedade, adotar políticas mais equilibradas e inclusivas, com distribuição mais equânimes dos recursos econômicos para todos os grupos socais, com trabalhos mais dignos e decentes, percebendo uma grande convulsão social, contrariando, como destacou o sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, de que o povo brasileiro é cordial.

Vivemos uma sociedade marcada por grandes degradações econômicas, sociais e políticas, caminhando a passos largos a um processo de ruptura e de convulsão social. Os sinais desta degradação são nítidos e a pandemia deixa mais clara esta situação. Recentemente percebemos o incremento da desindustrialização, com isso, estamos perdendo empresas, investimentos para a geração de emprego e renda e reduzindo as perspectivas positivas para a coletividade. O mundo se transforma muito rapidamente, exigindo das sociedades investimentos em pesquisa e capital humano, em redução das desigualdades sociais e aumento das oportunidades para todos os grupos sociais. Vivemos num momento de grandes desafios e, ao mesmo tempo, de novas oportunidades, exigindo lideranças capacitadas e conscientes das potencialidades. Sem estas diretrizes, o país tende a acumular mais uma década perdida com a degradação dos indicadores sociais, com violências, exclusões e novas convulsões sociais, cujas consequências são inevitáveis e assustadoras.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado do Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 27/01/2021.

“A pandemia demonstrou as consequências de 40 anos de neoliberalismo”, avalia Joseph Stiglitz.

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O Prêmio Nobel de Economia, Joseph Stiglitz (Indiana, Estados Unidos, 1943), disse na quarta-feira que “a pandemia demonstrou as consequências de 40 anos de neoliberalismo”. O economista e professor da Universidade Columbia fez suas declarações no marco de uma palestra magistral no Congresso Futuro 2021, principal encontro de cientistas e intelectuais no Chile.

A reportagem é de Marco Fajardo, publicada por El mostrador, 21-01-2020. A tradução é do Cepat.

São “40 anos difamando a importância do governo, a importância da ação coletiva. O resultado desses 40 anos difamando o papel do governo é que o governo estava menos preparado para lidar com a pandemia, e (antes) menos preparado para outras crises”, como a financeira de 2008.

“O governo se fragilizou. Todos recorremos ao governo no caso da pandemia, foi o que fizemos com a crise financeira mundial. O governo dos Estados Unidos não foi capaz de responder de maneira efetiva. A ironia é que os mercados também não foram capazes de responder. Que, ao mesmo tempo, o neoliberalismo estava falando dos mercados e fragilizando os governos”, destacou.

“As regras que foram estabelecidas nesta era do neoliberalismo resultaram em mercados ineficientes, de curto prazo. Vimos isso em 2008, quando as instituições financeiras buscaram onde poderiam lucrar a curto prazo, mesmo assumindo riscos excessivos, manipulando os mercados de crédito predatórios”, afirmou.

De fato, “ficamos assombrados que nos Estados Unidos nossos mercados não conseguiam fabricar produtos simples, como equipamentos de proteção e máscaras, muito menos alguns produtos mais complicados como exames e ventiladores”. E comparou a situação a comprar um carro sem pneu reserva, economiza um pouco, mas se você estiver preso no meio do nada, o custo “pode ser enorme”.

“Lamentavelmente, o mercado reestruturou as regras do mercado, o que teve como consequência que o governo se tornou menos eficaz, assim como os mercados”, afirmou.

Efeitos da pandemia
“A pandemia ressaltou uma série de problemas. Afetou muitos países, mas responderam de maneiras diferentes”, com sucesso “na Nova Zelândia, Coréia do Sul e Taiwan, onde até países pobres como o Vietnã fizeram enormes esforços para controlá-la”, e fracassos como nos “Estados Unidos e no Brasil”.

Para o economista, os países bem-sucedidos têm sido aqueles “com governos eficazes, instituições robustas e boa ciência”, mas também destacou a importância da confiança “dos cidadãos, do governo e entre ambos”. “Os altos níveis de desigualdade enfraquecem a confiança”, advertiu.

Em relação ao vírus, destacou que afeta mais quem tem saúde precária, com baixa renda, algo que, como disse, acontece principalmente em países sem acesso universal ao sistema de saúde e sistemas “deficientes” de proteção social. Por isso mesmo, destacou que os Estados Unidos foram um dos mais afetados, com 25% dos casos, apesar de ser apenas 4% da população mundial.

Atribuiu isso ao fato de “termos péssimos sistemas de seguridade social, um país “que não reconhece o direito de acesso à saúde como um direito humano básico”, cujo resultado é a “enorme” diferença entre os que estão acima e abaixo na estrutura social. Um exemplo é que a expectativa de vida é menor do que quando o presidente Donald Trump assumiu o cargo em 2017”, apesar de todos os avanços da ciência e da medicina.

De fato, os setores baixos “sofreram mais mortes, maior exposição à doença e maior perda de renda”.

“A principal lição dessas crises é que os problemas não podem ser resolvidos apenas pelos mercados. Precisamos trabalhar juntos”, em uma “ação coletiva”, expressou.

Estratégia de recuperação
Stiglitz também abordou o tema das estratégias de desenvolvimento no contexto das atuais incertezas e desigualdades em todo o mundo, bem como da recuperação após a pandemia.

Nesse contexto, alertou que o PIB “não é uma boa métrica de desempenho econômico, não é uma boa métrica de rendimento social, desenvolvimento e de progresso social” e solicitou indicadores que incorporem outros fatores como a sustentabilidade, a desigualdade, a saúde e a seguridade de renda. Este último é difícil de garantir no mercado, por isso é importante “ter bons sistemas de seguridade social”.

O especialista destacou que ninguém sabe como será a recuperação, nem os efeitos do confinamento, nem como a economia reagirá às decisões políticas atuais, razão pela qual pediu “humildade” aos responsáveis pela política econômica.

E lembrou que a recuperação 2009-2012 beneficiou sobretudo os setores mais ricos, “uma recuperação para os banqueiros, para os mesmos que provocaram a crise, mas não para os milhões de cidadãos que perderam os seus empregos e as suas casas”. Uma crise que, em sua opinião, foi mal administrada “e nos levou a algo espantoso”.

Números absurdos
Sitglitz advertiu que durante décadas o neoliberalismo ignorou essas incertezas e promoveu “um conjunto de medidas econômicas que, em geral, não funcionavam”, e que mesmo assim continuaram sendo aplicadas pelo Consenso de Washington, “como se pudessem resolver algo com regras simplistas”.

Como um exemplo delas, avaliou a norma europeia de que o déficit não deve ultrapassar 3% do PIB como “um número que surgiu do nada. Mas há outros números igualmente arbitrários, como o de que a inflação não pode ultrapassar 2% e que a os impostos não devem exceder 60% do PIB.

“Essas normas nunca fizeram sentido” e são números “sem nenhuma consideração às incertezas das taxas de juros, o crescimento, o aumento da população, o aumento da produtividade”, com uma “arrogância sobre como diziam entender a natureza da economia em nossa sociedade”.

“A ironia era que esse conjunto de modificações no neoliberalismo tinha muitas falhas e o resultado é que não funcionou”, acrescentou.

“Enfrentamos uma série de crises que nos mostraram que esse modelo está errado, que a política econômica baseada nesses modelos foi errônea e agora estamos em uma situação em que nos vemos enfrentando a realidade”, em meio a uma situação onde nem o ambiente e nem a economia eram sustentáveis com um governo de Donald Trump que atacava os valores fundamentais, como a democracia e os direitos humanos, expressou.

Agora, disse, trata-se de “reconstruir” uma economia e uma sociedade mais verdes e baseadas no conhecimento, com mais igualdade, para um crescimento “sustentável e inclusivo”.

Nesse sentido, o economista defendeu a modificação não só das políticas, mas também do arcabouço “dentro do qual fazemos essas políticas”.

Modelo corruptor
Também criticou que o neoliberalismo foi incapaz de antecipar cenários como a crise financeira de 2008 e a pandemia. “O neoliberalismo argumentou que a desregulamentação e a liberalização financeira iriam desencadear um crescimento sem precedentes. Não fez isto. O que desencadeou foi uma instabilidade econômica sem precedentes”.

“Os modelos que fundamentam o neoliberalismo eram modelos corruptores que dizem que de alguma forma a economia sempre esteva em uma trajetória de equilíbrio, apesar de ter havido crises repetidas vezes, como a de 2008, e eventos como a pandemia, que foram ouvidos, mas não antecipados”.

Stiglitz observou que “agora caminhamos para outra possível crise, a crise climática. Essas crises ressaltam a necessidade de ações governamentais e demonstram a importância das externalidades, onde as ações tomadas por indivíduos e empresas têm enormes consequências para todos que estão no mundo. E ressaltam a necessidade de cooperação global. Ainda há outras crises que estamos enfrentando no mundo. Uma delas, com a qual estou muito preocupado, é a crise da desigualdade. A pandemia agravou as desigualdades, tanto no interior dos países, como entre eles. E exacerbou essas desigualdades”.

“O que necessitamos hoje são de melhores marcos orçamentários, melhores marcos para pensar as políticas monetárias. (…) Precisamos de espaço para políticas mais consideráveis, de livre disposição, que respondam às necessidades, na medida em que vão se revelando”, concluiu.

“Após a pandemia, haverá anos politicamente turbulentos”. Entrevista com Branko Milanovic.

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O economista estadunidense de origem sérvia Branko Milanovic (Belgrado, 1953) é considerado um dos intelectuais mais influentes do momento. Passou 20 anos liderando a análise econômica do Banco Mundial e atualmente é professor na Universidade da Cidade de Nova York como um dos grandes especialistas internacionais em desigualdade.

Após ter apresentado seu último livro, Capitalism, Alone (Ed. Harvard University Press, 2019), o mensal britânico The Prospect o considerou, em 2020, “um guia indispensável” para o mundo em que a Covid-19 eclipsa os Estados Unidos. The Prospect colocou Milanović em sua última lista dos 50 pensadores “mais destacados”.

Milanović, em posição contrária ao que alguns afirmam, não vê o capitalismo sofrer sua última crise por causa da pandemia. Também não vê boas notícias no que diz respeito às relações entre os Estados Unidos e a China, após a eleição do democrata Joe Biden como novo inquilino da Casa Branca.

Nesta entrevista, Milanović avalia que, “com a gestão Biden, as diferenças entre a China e os Estados Unidos vão se deslocar para outro cenário, o dos valores e o poder”. Seu pessimismo não para por aí.

Milanović acredita que haverá anos turbulentos após a pandemia e aponta para os social-democratas e liberais. Faz críticas à sua atuação diante da crise de confiança gerada pela globalização nessa parte da classe média ocidental que agora tem fé nos populistas.

A entrevista é de Salvador Martínez Mas, publicada por NIUS, 17-01-2021. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.
Foi dito que a pandemia está acelerando muitos processos, seja a digitalização, a automação ou o auge da China como potência internacional. O que está acontecendo no mundo por causa da Covid-19?

Efetivamente, processos estão sendo acelerados. E há processos que vão piorar. As relações entre a China e os Estados Unidos vão continuar se deteriorando, apesar da nova administração em Washington. Em relação a isto, sou pessimista com a gestão Biden.

Com Trump na Casa Branca, já se falava de guerra comercial entre os Estados Unidos e a China. Como as coisas podem piorar nesta frente?

Facilmente. Com Trump havia uma disputa econômica que levou à guerra comercial. Depois houve uma batalha irracional pelo surgimento de um vírus que Trump via quase como feito pelos chineses contra ele. Mas quando há um desacordo comercial, aquele que tinha Trump, isto é algo que é possível resolver, ao menos potencialmente. Mas com a gestão Biden, as diferenças entre a China e os Estados Unidos vão se deslocar para outro cenário, o dos valores e o poder. Trump nunca se interessou pelos assuntos de direitos humanos e democracia na China.

Biden agirá e isto significa desacordos com temas básicos. Isto quer dizer, ao final, que o governo dos Estados Unidos verá como ilegítimo ao da China, ainda que não diga isso oficialmente. Este é um assunto que não é possível resolver. Nisto não há compromisso possível. Os Estados Unidos são um país muito poderoso e criarão uma coalizão de países, com Japão, Índia, Austrália e pressionarão a União Europeia para que a situação da China piore mais do que com Trump.

Mas há países na Europa que estão fortemente vinculados à economia chinesa, como por exemplo a Alemanha de Angela Merkel. Como você vê a posição de países europeus assim?

É verdade que a Alemanha está em uma situação complicada. Não só por sua relação com a China, mas também pelo Nord Stream 2. Nos dois casos, a Alemanha tem interesses econômicos. Mas a pressão dos Estados Unidos e outros países será algo muito duro para resistir.

A crise econômica causada pela pandemia levou os estados ao resgate de suas economias, entrando por exemplo no capital de grandes empresas. A pandemia desloca o capitalismo liberal, próprio do mundo ocidental, para um capitalismo de estado como o chinês?

Não acredito nisso. O imenso apoio financeiro que se efetivou para salvar as economias é algo sem precedentes. O gasto público com o qual os estados estão assumindo o controle de empresas para salvá-las é algo temporário. São medidas como as que ocorrem nas guerras, exceto que a de agora – esperemos – será mais curta. No entanto, espero que o estado ganhe força na área da saúde.

Porque nesta crise vimos a fragilidade do estado e o que as políticas de austeridade aplicadas ao setor da saúde fizeram, assim como as políticas neoliberais de otimização do setor da saúde. Com estas políticas, diante de um drama como o atual, o sistema é incapaz de reagir. Houve falta de material médico, de leitos nas unidades de cuidados intensivos, inclusive de médicos. Nesse exato momento, na Califórnia, estão selecionando os pacientes para oferecer ou não tratamento no hospital.

Como especialista em desigualdade econômica, como avalia que a pandemia afeta este problema?

É difícil falar. Ainda estamos na pandemia. De fato, provavelmente estejamos agora no pico da pandemia. O que vimos é que há muitas pessoas dos setores essenciais que tiveram que trabalhar mais ou perderam o trabalho. Outras pessoas, que podem trabalhar a distância, não se viram muito afetadas pela pandemia, nem sequer em termos de renda.

Outros, na classe média baixa, se viram muito afetados porque se infectaram e sofreram o vírus. Depois, você tem as pessoas de muito de cima, bilionários como Jeff Bezos ou Elon Musk que estavam em uma boa posição na pandemia e que lucraram com a crise. Parece que houve um aumento da desigualdade entre países, mas também houve muita política expansionista da qual os segmentos da população com menos renda se beneficiaram.

Entre os social-democratas na Europa, a tendência é pensar que é preciso aumentar os impostos para pagar os efeitos da pandemia. Qual é a sua opinião?

É preciso levar em conta que nunca vimos um aumento de liquidez na economia como o atual, após o aumento que vimos na crise de dez anos atrás. Agora, nos Estados Unidos, há quem esboce usar a Teoria Monetária Moderna, segundo a qual os déficits não importam, porque estes podem ser financiados fornecendo mais dinheiro. Eu penso que, quando for o caso, seria necessário reduzir o nível da dívida e aumentar os impostos. Mas esse aumento da tributação não tem nada a ver com o aumento dos impostos que parte da esquerda já defende há tempo para reduzir a desigualdade
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Como ficam a democracia liberal e o capitalismo liberal, após o assalto ao Capitólio dias atrás?

Penso que não há dúvida de que a vitória de Trump, em 2016, e que em 2020 tenha obtido 70 milhões de votos – com 40% dos estadunidenses sem votar – são demonstrações do mal-estar que há nessa parte da classe média dos Estados Unidos que não se beneficiou da globalização. Isto é algo que sabemos empiricamente, é algo que não se pode discutir. Esta situação, transferida ao espaço político, adota a forma de uma narrativa razoável segundo o qual grande parte da sociedade dos Estados Unidos, e também do resto do mundo ocidental, foi atacada.

Por um lado, porque o capital abandonou seu país deixando-lhes sem trabalho e, por outro, porque os produtos que fabricavam agora podem ser importados mais baratos de outros países, especialmente da China. As turbulências causadas pelos coletes amarelos, na França, o auge do Vox, na Espanha, a instabilidade da Itália, o peso de Alternativa para a Alemanha, na Alemanha, e o Brexit são todos fenômenos que precisam ser vinculados a esses processos econômicos.

Como você vê a resposta que está sendo dada a isto pelos governos europeus? Refiro-me, por exemplo, a Macron, na França, ou Merkel, na Alemanha.

Não gosto de chamar estes movimentos de populistas. Mas estes que chamam de populistas têm uma desvantagem em relação a políticos como Macron por exemplo. É que o Reagrupamento Nacional não tem uma proposta para a França. Macron, sim, possui. Se partidos como o de Le Pen chegarem ao poder, não saberão o que fazer com ele. Estes movimentos podem fazer muito barulho, mas não têm uma alternativa política, e sabem disso.

Se Le Pen chegar ao poder na França, acontecerá o mesmo que com Trump. Não saberá o que fazer. Mas eu não acredito que chegarão ao poder. Entre outras coisas porque não acredito que queiram chegar ao poder. Sabe-se, por exemplo, que Trump não queria chegar ao poder. Ele chegou ao poder por uma vitória acidental.

Figuras como Trump são, então, resultado de que há partes da sociedade frustradas com uma globalização que lhes supõe prejuízos. Como é possível tratar esse mal-estar?

Parece que os partidos de esquerda na Europa estão seguindo o exemplo dinamarquês. Lá o caminho é algo como o nacional e o social ao mesmo tempo. Consiste em limitar a imigração e manter o estado de bem-estar para os cidadãos autóctones. Está sendo retirado dessa esquerda o componente tradicional internacionalista.

Na Dinamarca, desse modo, deseja-se fortalecer a classe média e tornar, além disso, mais difícil que o capital saia do país. É uma resposta, em suma, parecida às políticas dos anos 1960 e 1970, quando havia muito menos movimentos de capitais e de trabalhadores. Esta solução dinamarquesa, além de afetar um ou dois países, não pode ser aplicada ao mundo todo, com a distância que a globalização alcançou.

Não é possível ir contra a globalização?

Eu não concordo em se mover contra a globalização, porque esta, de um ponto de vista global, trouxe grandes vantagens aos países na Ásia. A China está a caminho de acabar com a pobreza extrema a Índia cresceu, antes da crise, a níveis de 6%, 7% e de 8% e a Etiópia, 10%. A globalização tornou o mundo um lugar transformado, mais rico. Ir contra a globalização é ser a favor apenas de um grupo muito pequeno do mundo. A classe média europeia é, no mundo, 4 ou 5% da população.

Que resposta política é possível dar, então, no mundo ocidental?

A esquerda deveria pensar muito mais em como é possível realizar as redistribuições da riqueza para que beneficiem aqueles que foram afetados pela globalização.

E os liberais e conservadores, no que teriam que pensar?

Eles estiveram no poder nos últimos 40 anos. Os liberais cometeram um grande erro ignorando assuntos como a redistribuição da riqueza. As políticas liberais, mesmo quando funcionaram, não fizeram o suficiente para eliminar o mal-estar de grande parte da população. Mas, em minha opinião, ao menos nos Estados Unidos, os liberais se fecharam em si mesmos, dispostos a que tudo vá para o espaço, desde que Trump diminua o imposto de empresas. Comportam-se de maneira surpreendentemente imediatista.

E após a pandemia, o que você espera?

Após a pandemia espero que haja alterações políticas. Porque, de modo geral, quando a pandemia está em andamento, as pessoas procuram seguir as regras. Mas quando terminar, muitas das coisas que acontecem pela perda de trabalho, como a perda do poder de compra, enquanto outros se tornaram extremamente ricos, ou que muitos governos sejam corruptos ou que tenham gerido mal a pandemia, tudo isto terá consequências políticas. Haverá anos politicamente turbulentos.

Vacinação e esquizofrenia, por Cida Bento.

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As mesmas vozes que condenam a desigualdade pregam as reformas neoliberais perversas

Folha de São Paulo, 21/01/2021

Estamos comemorando o início, ainda que incipiente, da vacinação contra a Covid-19, o que renova a esperança no futuro do nosso país.

Temos acompanhado parte da grande mídia se manifestar reivindicando que as populações mais vulneráveis, como indígenas, quilombolas, moradores das periferias brasileiras e profissionais da saúde, sejam cuidadas.

Essa parcela dos meios de comunicação, nos últimos anos, tem igualmente se manifestado contra a violência que atinge a população pobre, negra, feminina e LGBTQI+.

Mas o cenário é de muita esquizofrenia, já que essa mesma parte da mídia vem defendendo repetidamente o teto de gastos públicos, um dos grandes responsáveis pelo sucateamento do SUS e pelos ataques a todas as políticas públicas para cumprimento dos direitos sociais, bem como as redes de proteção social criadas a partir da Constituição de 1988, que ofereceriam condições para assegurar os direitos dessa população vulnerabilizada.
A redução drástica do orçamento da saúde tem sido sentida pela população com a desmontagem de programas como o Mais Médicos, o Farmácia Popular, a distribuição de medicamentos para pacientes crônicos, entre outros.

Como escreveu a cientista política Sonia Fleury, em 2020, no “Dicionário de Favelas Marielle Franco”, “a crise provocada pela emergência de uma pandemia põe a nu o que todos sabemos: não há direitos de cidadania sem um Estado garantidor, não há direito à saúde sem um sistema público universal e integral, com participação popular.(…)”.

Somente em 2019, a perda de investimentos na área da saúde representou R$ 20 bilhões, o que significa, na prática, a desvinculação do gasto mínimo de 15% da receita da União com a Saúde, afirma o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass).

É preciso lembrar que grande parte da população vulnerabilizada mora em favelas e depende quase que exclusivamente do SUS para ter acesso a serviços na área da saúde: 52,1 milhões de brasileiros vivem com uma renda domiciliar per capita de R$ 387 mensais.

A agenda neoliberal, absolutamente cruel, propõe desviar os recursos públicos para favorecer um mercado privado desregulado e de qualidade duvidosa, sem que a população possa participar das decisões públicas. Grandes corporações do setor de saúde querem ser proprietárias das unidades de saúde, sob a velha argumentação de que é preciso modernizar e inovar.

Como nos diz Milton Santos em seu clássico livro “Por uma Outra Globalização”, “o Estado acaba por ter menos recursos para tudo que é social (…) na privatização financia as empresas estrangeiras candidatas à compra do capital social nacional (…) assim, o Estado se omite quanto ao interesse das populações e se torna mais forte, mais ágil, mais presente, ao serviço da economia dominante”.

É nesse contexto que a esquizofrenia fica evidente, pois as mesmas vozes da mídia que condenam a desigualdade e as diversas formas de violência pregam as reformas neoliberais perversas que vêm aprofundando essas desigualdades e a violência contra as populações mais fragilizadas, gerando uma mortandade sem precedentes, seja pela ação do Estado brasileiro, via aparato da segurança pública, seja pela ação ou omissão da gestão pública diante da pandemia.

Em 2022, vamos poder renovar nossos Parlamentos e o Executivo de forma a assegurar representantes comprometidos com toda a sociedade, e não só com a força do “mercado”.

Quem sabe ampliar nossa consciência sobre o regime econômico, social e político em que vivemos e discutir a ganância das elites dominantes nos permita reencontrar, por meio do voto, a democracia e os objetivos comuns da vida humana, trazendo para o centro do debate a solidariedade, a igualdade, o bem comum e o amor na vida comunitária.

Cida Bento
Diretora-executiva do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), é doutora em psicologia pela USP

Restaurar o Estado é preciso, por Maria da Conceição Tavares.

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Economista descreve o sangramento profundo do país, acuado pelo reacionarismo. Faltam causas, bandeiras, propósitos. Mas, diante de uma esquerda paralisada, vê na Renda Básica a luta para despertar uma nova geração

Por Maria de Conceição Tavares, em A TERRA É REDONDA
Vivemos sob a penumbra da mais grave crise da história do Brasil, uma crise econômica, social e política.

Enfrentamos um cenário que vai além da democracia interrompida. A meu ver, trata-se de uma democracia subtraída pela simbiose de interesses de uma classe política degradada e de uma elite egocêntrica, sem qualquer compromisso com um projeto de reconstrução nacional – o que, inclusive, praticamente aniquila qualquer possibilidade de pactação.

Hoje, citar um político de envergadura com notória capacidade de pensar o país é um exercício exaustivo. O Congresso é tenebroso. A maioria está lá sabe-se bem com que fins. O elenco de governadores é igualmente terrível. Não há um que se sobressaia. E não vou nem citar o caso do Rio porque aí é covardia. O “novo” na política, ou o que tem a petulância de se apresentar como tal, é João Doria, na verdade um representante da velha extrema direita.

A ditadura, a qual devemos repudiar por outros motivos, não era tão ordinária nesse sentido. Não sofríamos com essa escassez de quadros que vemos hoje. O mesmo se aplica a nossos dirigentes empresariais, terra da qual não se vê brotar uma liderança. A velha burguesia nacional foi aniquilada. Eu nunca vi uma elite tão ruim quanto esta aqui. E no meio dessa barafunda ainda temos a Lava Jato, uma operação que começou com os melhores propósitos e se tornou uma ação autoritária, arbitrária, que atenta contra as justiças democráticas, para não citar o rastro de desemprego que deixou em importantes setores da economia.

É de infernizar a paciência que a Lava Jato tenha se tornado símbolo da moralização. Mas por quê? Porque nada está funcionando. Ela é uma resposta à inação política. Conseguiram transformar a democracia em uma esbórnia, em que ninguém é responsável por nada. Não há lei ou preceitos do estado de direito que estejam salvaguardados.

O futuro foi criminalizado. Não estou dizendo que o cenário internacional seja um oásis. O resto do mundo não está nenhuma maravilha, a começar pelos Estados Unidos. Convenhamos, não é qualquer país que é capaz de produzir um Trump. Eles capricharam. Na Europa como um todo, a situação também é desoladora. E a China, bem a China é sempre uma incógnita…

Mas, voltando ao nosso quintal, o centro medíocre se ampliou de uma maneira bárbara no Brasil. Não há produção de pensamento contra a mediocridade, de lado algum, nem da direita, nem da esquerda. Faltam causas, bandeiras, propósitos, falta até mesmo um slogan que cole a sociedade. O mais impressionante é que não estamos falando de um processo longo, de uma ou duas décadas, mas, sim, de um quadro de rápida deterioração em um espaço razoavelmente
curto de tempo. Estou no Brasil desde 1954 e jamais vi tamanho estado de letargia. Na ditadura, havia protesto. Hoje, mal se ouve um sussurro.

Por outro lado, também não se acham soluções pela economia, notadamente o setor produtivo. A indústria brasileira “africanizou”, como há muito já previra o saudoso Arthur Candal. Rendemo-nos à financeirização, sem qualquer resistência. A ideia do Estado indutor do desenvolvimento foi finalmente ferida de morte pela religião de que o Estado mínimo nos levará a um estado de graça da economia. Puro dogma. Estamos destruindo as últimas forças motrizes do crescimento econômico e de intervenção inclusiva e igualitária no social.
Essa minha indignação, por vezes misturada a um indesejável, mas inevitável estado de pessimismo, poderia ser atribuída a minha velhice. Mas não acho que seja não. Estou velha há muito tempo. Luto para não me deixar levar pelo ceticismo. Não é simples pelo que está diante de meus olhos.

Lamento, mas não me dobro; sofro, mas não me entrego. Jamais fugi ao bom combate e não seria agora que iria fazê-lo. Há saídas para esse quadro de entropia nacional e estou convicta de que elas passam pelas novas gerações. Como diria Sartre, não podemos acabar com as ilusões da juventude. Pelo contrário temos de estimulá-las, incuti-las. Por ilusão, em um sentido não literal, entenda-se a capacidade de mirar novos cenários, a profissão de fé de que é possível, sim, interferir no status quo vigente, o forte desejo de mudança, associado ao frescor, ao ímpeto e ao poder de mobilização necessário para que ela ocorra. Só consigo enxergar alguma possibilidade de cura desse estado de astenia e de reordenação das bases democráticas a partir de uma maciça convocação e ação dos jovens.

Por mais íngreme que seja a caminhada, não vislumbro saídas que não pela própria sociedade, notadamente pelos nossos jovens. Não os jovens de cabeça feita, pré-moldada, como se fossem blocos de concreto empilhados por mãos alheias. Esses mal chegaram e já estão a um passo da senectude. Estou me referindo a uma juventude sem vícios, sem amarras, de mente aberta, capaz de se indignar e construir um saudável contraponto a essa torrente de reacionarismo que se espraia pelo país. Há que se começar o trabalho de sensibilização já, mas sabendo que o tempo de mudança serão décadas, sabe-se lá quantas gerações.

Não consigo vislumbrar outra possibilidade para sairmos dessa geleia geral, dessa ausência de movimentos de qualquer lado, qualquer origem, seja de natureza política, econômica, religiosa, senão por uma convocatória aos jovens. Até porque, se não for a juventude, vai se falar para quem? Para a oligarquia que está no poder? Para a burguesia cosmopolita – que foi a que sobrou – com sua conveniente e perversa indiferença? Para uma elite intelectual rarefeita e um tanto quanto aparvalhada?

Ao mesmo tempo, qualquer projeto de costura dos tecidos do país passa obrigatoriamente pela restauração do Estado. É urgente um processo de rearrumação do aparelho público, de preenchimentos das graves lacunas pensantes. Nossa própria história nos reserva episódios didáticos, exemplos a serem revisitados. Na década de 30, durante o primeiro governo de Getúlio Vargas, guardadas as devidas proporções, também vivíamos uma dura crise. Não íamos a lugar algum. Ainda assim, surgiram medidas de grande impacto para a modernização do Estado, como, por exemplo, a criação do Dasp – Departamento Administrativo do Serviço Público, comandado por Luis Simões Lopes.

Na esteira do Dasp, cabe lembrar, vieram os concursos públicos para cargos no governo federal, o primeiro estatuto dos funcionários públicos do Brasil, a fiscalização do Orçamento. Foi um soco no estômago do clientelismo e do patrimonialismo. O Dasp imprimiu um novo modus operandi de organização administrativa, com a centralização das reformas em ministérios e departamentos e a modernização do aparato administrativo. Diminuiu também a influência dos poderes e interesses locais. Isso para não falar do surgimento, nas fileiras do Departamento, de uma elite especializada que combinou altíssimo valor e conhecimento técnico ao comprometimento com uma visão reformista da gestão da coisa pública.

Faço esse pequeno passeio no tempo para reforçar que nunca fizemos nada sem o Estado. Não somos uma democracia espontânea. O fato é que hoje o nosso Estado está muito arrebentado. Dessa forma, é muito difícil fazer uma política social mais ativa. Não é só falta de dinheiro. O mais grave é a falta de capital humano. O que se assiste hoje é um projeto satânico de desconstrução do Estado, vide Eletrobras, Petrobras, BNDES…

Restauração
O Estado sempre foi a nobreza do capital intelectual, da qualidade técnica, da capacidade de formular políticas públicas transformadoras. O que se fez no Brasil é assustador, uma calamidade. É necessário um profundo plano de reorganização do Estado até para que se possa fazer políticas sociais mais agudas. Chegamos, a meu ver, a um ponto de bifurcação da história: ou temos um movimento reformista ou uma revolução. A primeira via me soa mais eficiente e menos traumática. Ainda assim, reconheço, precisaremos de doses cavalares do medicamento para enfrentarmos tão grave enfermidade. Os sintomas são de barbárie. Parece um fim de século, embora estejamos no raiar de um. Em uma comparação ligeira, lembra o começo do século XX. Os fatos levaram às duas Guerras Mundiais. Aliás, a guerra, ainda que indesejável, é uma maneira de sair do impasse.

Por isso, repito: precisamos de uma ação restauradora. O que temos hoje no Brasil não é uma feridinha à toa que possa ser tratada com um pouco de mertiolate ou coberta com um esparadrapo. O Estado e a sociedade brasileira estão
em uma mesa de cirurgia. O corte é profundo, órgãos vitais foram atingidos, o sangramento é dramático. Este ressurgimento não deverá vir das urnas. Não vejo a eleição como um evento potencialmente restaurador, capaz de virar a página, de ser um marco da reconstrução.

Com o neoliberalismo não vamos a lugar algum. Sobretudo porque, repito: historicamente o Brasil nunca deu saltos se não com impulsos do próprio Estado. Esses últimos dois anos têm sido pavorosos, do ponto de vista econômico, social e político. Todas as reformas propostas são reacionárias, da trabalhista à previdenciária. Vivemos um momento de “acerto de contas” com Getúlio, com uma sanha inquisidora de direitos sem precedentes. Trata-se de um ajuste feito em cima dos desfavorecidos, da renda do trabalho, da contribuição previdenciária, da mão de obra. O Brasil virou uma economia de rentistas, o que eu mais temia. É necessário fazer uma eutanásia no rentismo, a forma mais eficaz e perversa de concentração de riquezas.

Renda mínima
Causa-me espanto que nenhum dos principais candidatos à Presidência esteja tratando de uma questão visceral como a renda mínima, proposta que sempre teve no ex-senador Eduardo Suplicy o seu mais ferrenho defensor e propagandista no Brasil. Suplicy foi ridicularizado, espezinhado por muitos, chamado de um político de uma nota só. Não era, mas ainda que fosse, seria uma nota que daria um novo tom à mais trágica de nossas sinfonias nacionais: a miséria e desigualdade.

Mais uma vez, estamos na contramão do mundo, ao menos do mundo que se deve almejar. Se, no Brasil, a renda mínima é apedrejada por muitos, mais e mais países centrais adotam a medida. No Canadá, a província de Ontario deu a partida no ano passado a um projeto piloto de renda mínima para todos os cidadãos, empregados ou não. A Finlândia foi pelo mesmo caminho e começou a testar um programa também em 2017. Ao que se sabe, cerca de dois mil finlandeses passaram a receber algo em torno de 500 euros por mês.

Na Holanda, cerca de 300 moradores da região de Utrecht passaram a receber de 900 euros a 1,3 mil euros por mês. O nome do programa holandês é sugestivo: Weten Wat Werkt (“Saber o que funciona”). Funcionaria para o Brasil, tenho certeza.

O modelo encontrou acolhida até nos Estados Unidos. Desde a década de 80, o Alasca paga a cada um de seus 700 mil habitantes um rendimento mínimo chamado Alaska Permanent Fund Dividend. Os recursos vêm de um fundo de investimento lastreado nos royalties do petróleo.

É bom que se diga que dois dos fundamentalistas do liberalismo, os economistas F. A. Hayek e Milton Friedman, eram defensores da renda básica e até disputavam a primazia pela paternidade da ideia. Friedman dizia que a medida substituiria outras ações assistencialistas dispersas.

No Brasil, o debate sobre a renda básica prima pela sua circularidade. O Bolsa-Família foi uma proxy de uma construção que não avançou. Segundo o FMI, a distribuição de 4,6% do PIB reduziria a pobreza brasileira em espetaculares 11%.

Essa é uma ideia que precisa ser resgatada, uma bandeira à espera de uma mão. Entre os candidatos à presidência, só consigo enxergar o Lula como alguém identificado com a proposta. Se bem que a coisa está tão ruim que, mesmo que ele possa se candidatar e seja eleito, teria enorme dificuldade de emplacar projetos realmente transformadores. O PT não tem força o suficiente; os outros partidos de esquerda não reagem.

Lula sempre foi um grande conciliador. Mas um conciliador perde o seu maior poder quando não há conflitos. E uma das raízes da nossa pasmaceira, desta letargia, é justamente a ausência de conflitos, de contrapontos. Não tem nada para conciliar. Mais do que conflitiva, a sociedade está anestesiada, quase em coma induzido. O que faz um pacificador quando não há o que pacificar?

Maria da Conceição Tavares é ex-professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Professora Emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Autora, entre outros livros, de Poder e dinheiro – uma economia política da globalização (Vozes).

Referências
Hildete Pereira de Melo (org.). Maria da Conceição Tavares. São Paulo, Expressão Popular/Fundação Perseu Abramo, 2019.

A experiência de quase morte da República americana, por Martin Wolf.

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Em suma, Trump tentou um golpe

Folha de São Paulo, 19;01/2021 – Extraído de Financial Times

O que aconteceu foi isto: o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, afirmou durante meses, sem provas, que não poderia ser derrotado em uma eleição limpa.

Assim sendo, ele atribuiu sua derrota a uma eleição fraudulenta. Quatro em cada cinco republicanos ainda concordam com isso. O presidente pressionou autoridades para reverter os votos em seus estados.

Ao falhar, tentou forçar seu vice-presidente e o Congresso a rejeitarem os votos dos colégios eleitorais apresentados pelos estados. Ele incitou um ataque ao Capitólio para pressionar o Congresso a fazer isso. Cerca de 147 congressistas, incluindo oito senadores, votaram por rejeitar os votos dos estados.

Em suma, Trump tentou um golpe. Pior, a grande maioria dos republicanos concorda com seus motivos. Um número enorme de legisladores federais os acatou. O golpe falhou porque os tribunais recusaram casos sem evidências e as autoridades federais fizeram seu trabalho. Mas dez ex-secretários de Defesa sentiram a necessidade de advertir os militares para não se envolverem.

Em março de 2016, antes que Trump tivesse ganhado a nomeação republicana, afirmei que ele era uma séria ameaça. Estava evidente que não tinha qualquer das qualidades exigidas de um líder de uma grande República. Mas, como se viu, ele tinha o defeito redentor da grave incompetência.

Como você reagiria se lhe contassem a seguinte história sobre uma democracia: a “grande mentira” sobre a eleição fraudada que o mandatário claramente perdeu; a mídia partidária que disseminou essa mentira; os eleitores que acreditaram nela; o ataque ao Legislativo por uma turba insurgente; e os legisladores que afirmaram que a eleição devia ser suspensa em resposta à dúvida que essas mentiras haviam criado? Você concluiria que ela estava em perigo mortal.

Os Estados Unidos não são uma sociedade majoritária. Pequenos estados têm poder de voto desproporcional, e alguns estados têm uma história de supressão de votos racista. Mas as eleições são feitas para decidir quem detém o poder. Como isso pode funcionar se a maioria dos eleitores de um dos dois partidos principais acredita que as eleições perdidas foram roubadas? Como pode o poder ser ganho pacificamente e detido legitimamente? O que resta como fator de decisão, senão a violência?

Como afirma Timothy Snyder, de Yale: “A pós-verdade é o pré-fascismo, e Trump foi nosso presidente pós-verdade”. Se a verdade é subjetiva, a força deve decidir. Não pode haver verdadeira democracia, somente gangues rivais de bandidos ou a gangue dominante do chefão.

Os otimistas teriam de concordar que este tem sido um momento muito ruim para a credibilidade mundial da República americana, para deleite de déspotas de toda parte. Mas, eles podem afirmar, ela passou pelo teste de fogo e agora está mais uma vez pronta para renovar sua promessa, no país e no exterior, como fez nos anos 1930 sob Franklin Roosevelt, em um momento ainda mais perigoso que hoje.

Infelizmente, não acredito nisso. O Partido Republicano está podre com insurreição. Assim que eu escrever isto, sei que pessoas vão começar a se queixar da violência e dos socialistas da esquerda. Mas absolutamente não há um equivalente a Trump entre os líderes democratas. Os pré-fascistas estão na direita.

Pior, Trump não é propriamente a doença, mas um sintoma. James Murdoch declarou recentemente que “O saque do Capitólio é a prova sólida de que o que pensávamos que era perigoso o é de fato, muito, muito. Esses canais que propagam mentiras para seu público libertaram forças insidiosas e incontroláveis que estarão conosco durante anos”.
Estaria ele se referindo à Fox News, a criação venenosa de seu pai, Rudolph?

O papel da bolha da mídia de direita ao criar o mundo da pós-verdade do trumpismo é evidente. Também o é a longa marcha financiada por plutocratas através das instituições. O Judiciário que isso criou produziu a cidadania armada, as contribuições políticas invisíveis e a crescente desigualdade que hoje põem em risco a estabilidade política.

Mais perturbador é como a elite republicana usou como arma a política da divisão racial, uma parte tão temível da história dos EUA, para atrair o apoio de eleitores de que precisavam para cortes de impostos e desregulamentação. Pessoas brancas sem diploma universitário estão experimentando “mortes por desespero” prematuras. Mas os liberais e as minorias étnicas são os verdadeiros inimigos da direita.

Enquanto as políticas da direita continuarem como estão, o perigo revelado desde a eleição não vai evaporar. Os congressistas republicanos vão tentar garantir que o novo presidente, Joe Biden, fracasse. Os fanáticos e carreiristas continuarão combinados. A propaganda de direita lunática continuará jorrando. Que tipo de pessoa se imagina que tal movimento escolherá como próximo candidato presidencial? Um conservador tradicional como Mitt Romney?

Trump mostrou o caminho. Muitos tentarão segui-lo. Como o objetivo de tantos republicanos é fazer o governo federal fracassar e enriquecer os ricos, é assim que sua política deve funcionar.
Chegamos a um momento de inflexão na história. Os Estados Unidos são a República democrática mais poderosa e influente do mundo. Apesar de todos os seus erros e defeitos, foi o modelo global e protetor dos valores democráticos. Sob Trump, isso desapareceu. Ele foi o opositor constante dos valores e aspirações incorporados em um ideal republicano.

Trump falhou. Além disso, depois de sua tentativa de golpe, ninguém pode negar que sua ameaça era real. Mas isso não basta. Se a política americana se desdobrar como parece provável que faça, haverá outros Trumps. Um deles, mais competente e impiedoso, poderá ter êxito. Para que isso seja evitado, a política dos EUA deve agora mudar para o respeito à verdade e uma versão inclusiva de patriotismo.

Roma foi possivelmente a última superpotência republicana. Mas os ricos e poderosos destruíram aquela República, instalando uma ditadura militar, 1.800 anos antes do nascimento dos EUA. A República americana sobreviveu ao teste de Trump. Mas ainda precisa ser salva da morte.

Martin Wolf
Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

Desenvolver tecnologias

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A pandemia está transformando a sociedade, desnudando suas limitações e mostrando as dificuldades mais intensas das sociedades, no caso do Brasil, percebemos que a situação é assustadora, de um lado percebemos muitas limitações estruturais que não foram criadas pela pandemia, mas está mostrando como o país vem perdendo espaço na sociedade global, como sua economia está perdendo na economia global, que os problemas sociais estão ficando cada vez mais assustadores e as perspectivas futuras são preocupantes.

Nos últimos anos a estrutura produtiva vem perdendo espaço na economia internacional, a indústria nacional perdeu dinamismo e estamos nos concentrando em setores que criam produtos de baixo valor agregado, gerando empregos com remunerações reduzidas e perdendo profissionais altamente qualificados, que passam a buscar novas oportunidades em outros países, diante disso, estamos perdendo cérebros fundamentais para o fortalecimento das estruturas produtivas, diminuindo a dependência dos mercados globais de produtos de valor alto agregado e estimulando o dinamismo da economia nacional.

As universidades têm um papel central na coordenação de novas estratégias de desenvolvimento, organizando setores dinâmicos, motivando investimentos produtivos e extraindo dos setores mais empreendedores da sociedade espaços de inovação, na construção de novas tecnologias, investindo em pesquisas científicas e tecnológicas, introduzindo nas escolas, nas faculdades e centros de pesquisas mentalidades do desenvolvimento de novos conhecimentos. Estas estratégias exigem que desenvolvamos novas tecnologias e não apenas nos concentremos apenas no consumo destas tecnologias, criando salários melhores e profissionais mais motivados, dinamizando o mercado interno, fortalecendo o crédito e estimulando o crescimento econômico e culminando no tão sonhado desenvolvimento.

A coordenação deste modelo deve ser feita pelo governo, juntando todos os eixos em prol do desenvolvimento tecnológico, os setores passarão a construir internamente, via planejamento, setores dinâmicos, ocupando profissionais altamente qualificados, cobrando das universidades a formação de profissionais mais capacitados, estimulando inovações científicas, pesquisando e garantindo para os estudantes e, posteriormente, profissionais formados, espaços para que surjam novos empregos, melhor remuneração, maior empregabilidade e gerando desenvolvimento.

Neste momento, devemos buscar exemplos exitosos do desenvolvimento econômico, como o da Coréia do Sul que, nos anos 50 era produtora de mercadorias de baixo valor agregado, dependentes de outras economias e uma sociedade pobre, marcada pela miséria e sem perspectivas de desenvolvimento. Atualmente, percebemos uma situação altamente complexa em sua estrutura econômica, produtora de tecnologias, máquinas e desenvolvimento científico, com atuação conjunta dos dois grandes grupos sociais da sociedade, o Estado e do Mercado.

O desenvolvimento prescinde de planejamento a longo prazo, construindo um ecossistema econômico centrado na inovação, no conhecimento e na pesquisa científica, fortalecendo instituições independentes e eficientes. Este projeto deve unir todos os setores da sociedade, investindo em setores fundamentais para a economia, estimulando o agronegócio, reconstruindo a indústria nacional, investindo e melhorando o capital humano, preservando o meio ambiente, desta forma, o país conseguirá enfrentar os grandes desafios do mundo contemporâneo, reduzindo as deficiências educacionais, garantindo oportunidades para todos os grupos sociais e consolidando os sonhos de muitos brasileiros e estrangeiros ilustres de que o Brasil é o país do futuro.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia/Unesp Araraquara, Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 20/01/2021.

Corporações são importantes demais para ficar na mão de homens de negócios, diz pesquisadora

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Hélène Landemore, professora titular de Yale, afirma que democracia já estava em coma nos EUA antes de Trump

Ana Estela de Sousa Pinto – FSP, 19/01/2021

A democracia já estava em coma antes mesmo da eleição de Donald Trump, e o poder só voltará a ser “pelo povo e para o povo” sob novas estruturas políticas, afirma a cientista política Hélène Landemore, professora da Universidade Yale. Ela defende assembleias de não políticos escolhidas por sorteio, como a que decidiu mudanças na Constituição da Islândia e a que fórmula política ambiental na França.

Também é preciso mudar a esfera privada, diz Landemore, 45, que no ano passado lançou o “Manifesto do Trabalho” com outras oito pesquisadoras. Segundo ela, em vez de propalar a ideia de que é preciso gestores à frente da política, o fundamental é levar a política para as empresas. “Corporações são importantes demais para ficar nas mãos de homens de negócios”, afirma.

A professora, que se define como “democrata radical”, diz acreditar que é hora de mudar a forma como decisões são tomadas: “Houve quase um golpe nos EUA. Quão mais baixo teremos que descer antes de tentar algo mais radical?”.
Para ela, a invasão ao Congresso só fracassou porque o presidente americano não estimulou seus partidários até o extremo, e a mensagem que ficará para outros líderes populistas do mundo será a de que “não é preciso ter medo de estimular explicitamente a violência”.

A derrota de Trump é um alívio para quem via a democracia dos EUA em risco?
Não creio. Mesmo que Trump seja impedido, há uma nova forma de populismo, com novos seguidores e gente como [o senador republicano] Ted Cruz pronta para seguir esse caminho. talvez de forma mais perigosa, por mais planejada.

Por que seria um populismo “novo”?
Nos EUA não houve nada semelhante há décadas. Mas, de fato, não há nada de novo em demagogos usando tropas populistas. Alguns dos meus colegas, como [o professor de filosofia de Yale] Jason Stanley, chamaram isso de fascismo desde o começo, sob críticas dos que viam em Trump apenas um palhaço querendo aumentar sua visibilidade.

É exagero ver fascismo em Trump?
Não acho que ele tivesse um projeto fascista no começo. Mas tem sede de sangue, é um “bully” [assediador, vive a intimidar os que considera vulneráveis]. Sem encontrar qualquer resistência, principalmente entre os republicanos, o fascismo foi crescendo dentro dele. Ele percebeu que isso lhe traria mais poder. Por que ele pararia? Sua personalidade autoritária, chauvinista, sexista vicejou num ambiente republicano que achou que seria capaz de controlá-lo, mas não foi.

Como e quando se percebe que o limite foi ultrapassado?
Com assediadores, nunca é cedo demais para reagir. Nós deixamos que Trump prosseguisse porque fomos complacentes. O alerta máximo deveria ter acendido já nos debates eleitorais com Hillary Clinton, quando ele disse que não aceitaria uma derrota nas eleições. Deixou claro que não tinha intenção de seguir as regras.

Trump é admirado por outros líderes, como o presidente brasileiro Jair Bolsonaro. Que mensagem fica da invasão ao Congresso e da reação a ela? Desencorajam tentativas de golpe?
Não. O que líderes como Bolsonaro vão aprender é que Trump não foi ousado o suficiente. Como é um oportunista, fez um cálculo para manter aberta a possibilidade de voltar em 2024. Incitou o golpe, mas não foi até o fim.
A lição para Bolsonaro é que não é preciso ter medo de estimular explicitamente a violência. Se Bolsonaro decidir que a única estratégia é ser ousado e queimar todas as pontes, como poderia recomendar Maquiavel —escolha um objetivo e vá com tudo—, o Brasil terá problemas, porque é muito fácil arrebatar o poder. Veja quão pouca polícia havia no Capitólio. Como as pessoas se juntaram para invadi-lo. Quão rapidamente havia gente pronta a apoiar o golpe, que falhou por pouco.

O fracasso do golpe não mostra que as instituições funcionaram?
Sou muito pessimista. Para mim, os rebeldes não foram ao extremo porque Trump não lhes ordenou isso explicitamente. Mas, se ele tivesse ido ao limite, o que teria acontecido? É um contrafactual, difícil de imaginar, mas preocupa. E o que pode acontecer em países em que o desespero ou a tolerância à violência são maiores?

Alguns políticos falam em diálogo com o outro lado para cicatrizar a polarização. É viável nesse ambiente de ódio “ao outro” dos dois lados da mesa?
Não vai acontecer por meio de estruturas políticas clássicas. Os líderes partidários estão colocando gasolina na fogueira, porque a polarização os beneficia. Eu começaria com algum tipo de assembleia cidadã com poder para ter suas decisões implementadas, por exemplo, sobre políticas de imigração ou como sair da crise da Covid-19.
Só não vejo bem como ultrapassar 40 anos de polarização, que acompanha quase perfeitamente o aumento da desigualdade. Reduzir a desigualdade é precondição, porque ela gera muito ressentimento, e isso inflama o populismo. O que os números sobre o Congresso americano nos dizem? Que ele é controlado pelos 10% mais ricos para os 10% mais ricos, especialmente para o 1%. A ideologia da classe dominante foi fingir que isso continua sendo democracia, quando é uma plutocracia, uma elitocracia fantasiada de democracia. As pessoas começam a pensar “se isso é democracia, não estou interessado; prefiro um líder autoritário que combata a corrupção e reduza o abismo”.

O que a sra. está dizendo é que a democracia já estava em coma? É um passo além dos alertas de que ela corre risco de morrer envenenada por dentro, como argumenta [o professor de Harvard Steven Levitsky?
Levitsky e [Daniel] Ziblatt [autores de “Como as Democracias Morrem”] têm uma definição mínima do que é democracia. Resume-se ao Estado de Direito e às normas constitucionais. Não se trata do poder exercido pelo povo para o povo. Para eles é satisfatório que seja exercido em nome da maioria e beneficie o povo. Talvez a barreira do aceitável tenha descido demais. A desregularização e a desindustrialização foram rápidas e brutais demais. A democracia, além de não ser pelo povo, deixou de ser para o povo. E a esquerda foi cúmplice. Também viraram um partido para os 10%, de democratas-caviar. Os trabalhadores preferiram Trump, que ao menos fala a língua deles.

Como a sra. se situa politicamente?
Como social-democrata. Mas talvez seja mais correto falar em procedimentalista radical, ou democrata radical, porque não foco mais políticas públicas e acho que eleições não bastam; é preciso mudar a forma como decidimos. As pessoas a quem estamos dando poder nunca vão ousar ultrapassar certos limites. Não há bem que venha de um Congresso em que 82% dos membros representam os 10% mais ricos. Defendo assembleias cidadãs com poder de decisão, cujas decisões sejam implementadas pelo governo. Não é uma solução perfeita, mas vale a pena tentar. Estamos num momento em que houve quase um golpe nos Estados Unidos. Quão mais baixo teremos que descer antes de tentar algo mais radical?

A sra. faz parte de um grupo que acaba de lançar um manifesto pela democratização do trabalho. É outra tentativa mais radical?
Uma das frases mais fortes do [senador republicano] Mitt Romney quando concorreu contra Barack Obama na eleição de 2012 foi “sou um gestor, um homem de negócios, por isso devo assumir o governo”. Trump também usou esse argumento: “Sei como administrar uma empresa, saberei administrar o país”. O neoliberalismo produziu homens de negócios que pensam que são mais capazes de governar que os políticos. É preciso dar meia-volta. Corporações são importantes demais para ficar nas mãos de homens de negócios, principalmente com o impacto que elas têm na esfera pública.
Precisamos que as corporações sejam orientadas por pessoas que entendem as condições democráticas para a vida política, que façam as empresas assumirem suas responsabilidades. Em vez de colocar gestores na política, temos que colocar políticos nos negócios. Democratizar a economia. É impossível haver democracia política se não houver empresas democráticas em que os trabalhadores têm poder, ou famílias democráticas em que seus membros têm poder.
A crítica será a de que é preciso ser lucrativo, viável economicamente. Sim, mas a sociedade pode construir as condições. Leis, regulações, mecanismos financeiros podem apoiar. Nosso próximo passo será trabalhar com companhias dispostas a tentar novas formas de governança. Já há executivos que entendem que a democracia só estará a salvo se o mundo corporativo também mudar.

Vocês se descrevem como um grupo de pesquisadoras mulheres. O gênero faz diferença?
Não foi algo proposital, mas esse é um grupo realmente colaborativo, não movido por egos. Algumas de nós têm alguma visibilidade, mas desde o começo foi um projeto coletivo. Gênero importa, no fim, porque mulheres acabam sendo, por necessidade, mais colaborativas.
Mas um integrante masculino seria rejeitado? Manteremos o grupo de nove mulheres porque está funcionando bem, mas já trabalhamos em colaboração com homens. Não chegamos a teorizar isso, mas, no fundo, não queríamos acabar reféns dos atores tradicionais desse campo, que são homens, e ter um homem representando o grupo. Não queremos ninguém nos representando. Queremos só ser um grupo.

Hélène Landemore, 45
Professora titular de ciência política da Universidade Yale desde 2009. Franco-americana, tem mestrado em ciência política pela Sciences-Po (Paris) e em filosofia pela Sorbonne-Paris 1 e doutorado em ciência política pela Universidade Harvard. Pesquisa teoria democrática, filosofia da economia e democracia do ambiente de trabalho, entre outros temas.
É autora de “Open Democracy” (Princeton University Press 2020, sem tradução no Brasil), em que defende novas formas de representação democrática baseadas em sorteio, e cofundadora do movimento Democratizing Work (democratizando o trabalho, em inglês).

Nova década perdida

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O final de 2020 marcou o término da segunda década do século XXI, um período marcado por inúmeras crises políticas e econômicas, com repercussões negativas para grande parte da sociedade, levando trabalhadores a perda de algumas conquistas históricas sociais, o incremento da instabilidade gerada pela pandemia que assola a comunidade internacional, o aumento no desemprego, o endividamento das nações e das desesperanças.

No caso brasileiro, percebemos que a sociedade vem passando por grandes instabilidades e reduzido crescimento econômico nos últimos quarenta anos, saindo de um momento de euforia no período entre os anos 1930 e 1980, que colocou o país dentre as economias que mais cresciam no cenário global, elevando o país entre as 10 maiores economias do mundo. Este cenário se transformou desde o começo dos anos 1980, motivados pelos desajustes econômicos, gerados pelo crescimento da inflação e o aumento na dívida externa, além de grandes conflitos políticos não resolvidos, condenando o país a grandes instabilidades políticas, desindustrialização, aumento da pobreza e da exclusão social.

A década atual (2011-2020) está sendo a pior em termos de crescimento econômico dos últimos 120 anos, período pior do que os anos 1980, conhecido na literatura econômica como “década perdida”. Observando os dados industriais do IBGE, percebe-se que, atualmente, a indústria está 15% abaixo de 2011, gerando uma queda do contingente empregado neste setor. A pior consequência deste período de fraqueza da atividade econômica é o alto desemprego e a situação do mercado de trabalho, com dezenas de milhões de brasileiros numa situação de vulnerabilidade social, com impacto sobre a recuperação econômica e piora das condições sociais.

Neste período de quase quarentas anos o Brasil passou por grandes instabilidades econômicas, moratória, hiperinflação, movimentos sociais, inúmeros planos econômicos, endividamentos públicos, crises cambiais, dois impeachments, inúmeras crises políticas, degradações da democracia, operações de combate a corrupção, rivalidades políticas, ativismo judicial, dentre outras. Neste ambiente de crises constantes, onde os grupos sociais se degradam uns aos outros, onde os grupos econômicos criticam a atuação do Estado Nacional e, ao mesmo tempo, constantemente batem nas portas deste mesmo Estado para angariar proteção e a manutenção dos seus privilégios.

Neste ambiente nos esquecemos dos conceitos de desenvolvimento econômico, centrados no planejamento e na supervisão governamental, onde todos os grupos econômicos devem dar sua contribuição, com a integração do Estado e do Mercado, sem rivalidades e degradações, trabalhando juntos e de forma integrada, cada um desempenhando seus papéis. Como foi feito por todos os países que conseguiram alçar suas estruturas econômicas a patamares mais elevados, melhorando as condições sociais da população, aperfeiçoando os serviços públicos para todos os grupos sociais, garantindo saúde, educação e segurança para todos os cidadãos, não apenas aos poucos grupos privilegiados.

Num ambiente marcado pelo crescimento da competição e da concorrência entre os agentes econômicos, onde o desenvolvimento prescinde de novos atores econômicos centrados em novas indústrias, baseados em conhecimento, em pesquisa científica e tecnologia, onde o capital humano se transformou no grande ativo da sociedade contemporânea. Neste ambiente, todas as nações que negligenciarem estes ativos intangíveis, deixando de lado o conhecimento, as pesquisas científicas e as universidades, ficarão mais atrasados nesta competição global, inviabilizando o desenvolvimento econômico, empobrecendo a sociedade e condenando a população a momentos sombrios para toda a coletividade.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia/Unesp Araraquara, Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 13/01/2021.

Juventude, angústias e desequilíbrios espirituais

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Recentemente, os institutos de pesquisa publicaram informações relevantes para compreendermos os rumos perigosos da juventude nacional, os desafios dos jovens, os medos e as dificuldades emocionais, econômicas, sentimentais e espirituais. Neste momento, marcados por crises generalizadas da sociedade que se repercutem sobre as famílias, os jovens são fortemente impactados, exigindo de atenções de políticas públicas, autoridades e gestores públicos, para se antecipar aos desequilíbrios futuros, cujos custos são elevados, não apenas econômicos, mas sociais, políticos e sentimentais.

Esta pesquisa destacou o aumento do desemprego dos jovens brasileiros, indicando que mais de 38% destes estavam sem emprego, sendo que uma parcela significativa deste contingente nem trabalhavam e nem estudavam, com estes dados nos mostra uma situação de grande preocupação, exigindo políticas efetivas para reverter a situação. Ao analisar esta pesquisa, percebemos que o investimento na juventude deve ser feito imediatamente, evitando que as condições sociais deste grupo social se degradem de forma rapidamente e gerem constrangimentos para o futuro da sociedade.

A doutrina espírita nos traz uma grande quantidade de livros que abordam esta temática, mostrando a importância deste período do espírito, neste momento o indivíduo passa a viver inúmeros conflitos, desde emocionais, físicos, sentimentais e psicológicos, muitos desequilíbrios se fazem mais evidentes e intensifiquem as dificuldades, exigindo atenção de seus familiares, principalmente dos pais e familiares mais próximos, sob pena dos jovens sucumbirem aos excessos do mundo material, principalmente, desordem, sexo descontrolado, drogas, malversação de recursos financeiros, dentre outros.

As transformações da sociedade contemporânea colocam no centro os prazeres materiais e a busca por recursos financeiros, marcados pelo hedonismo, levam muitos jovens a adotarem medidas equivocadas e, posteriormente, vão se deparar com problemas futuros, gerando graves constrangimentos financeiros e emocionais. Ao mesmo tempo, percebemos que o mundo está se caracterizando por inúmeras transformações, cujos impactos são complexos, as famílias perdem espaço na sociedade, os conceitos estão priorizando os indivíduos em contrapartida ao conceito de coletividade, levando as pessoas a buscarem seus interesses em detrimento dos seus ganhos imediatos. Estamos vivendo um mundo, onde os intelectuais destacam a chamada disrupção, onde as estruturas anteriores estão perdendo espaço e uma nova está em franco surgimento, uma sociedade que ainda não mostrou suas características mais íntimas, num momento, percebemos muitos conflitos e desequilíbrios.

Nesta sociedade marcada por disrupção, os novos jovens estão surgindo, marcados por grandes oportunidades, desafios, dúvidas e dificuldades, sem terem referenciais de orientações, neste momento, percebemos que este grupo está caminhando sem rumo, sem bússola e sem orientação, o resultado é o crescimento dos conflitos. Neste momento, as famílias mais abastadas terceirizam seus filhos para os especialistas, os psicólogos e psicoterapeutas são chamados para resolver estes conflitos do mundo contemporâneo.

A doutrina espírita busca fortalecer as bases da família, os papéis dos pais são centrais e imprescindíveis, esta função não pode ser terceirizada para profissionais e mostra que as falências das criações criam marcas que perpassam inúmeros vidas, muitos pais negligenciam a educação de seus filhos e, quando retornam ao mundo espiritual, sentem na pele os equívocos do processo educativo, neste momento, percebem que as dores e os arrependimentos ficam cada vez mais intensa no mundo imaterial, lembrando dos erros, das dificuldade e dos ressentimentos.

O fortalecimento da família é fundamental para diminuir os desequilíbrios dos seres humanos, reconstruindo os laços de amor e solidariedade entre os seres humanos, o espiritismo nos mostra que os pais atuais são responsáveis pelos filhos, que em outras oportunidades foram nossos pais, num constante e contínuo ir e vir no desenvolvimento dos seres humanos em prol do crescimento espiritual, emocional e sentimental. O discurso em prol da família contemporânea deve evitar chavões como os que ouvimos nos círculos religiosos, que usam da subserviência, da repressão e do medo como forma de criar pessoas desprovidas da capacidade de reflexão e sentimento, deixando de construir a empatia, o respeito e a solidariedade.

A sociedade precisa construir novos espaços de sociabilidade e coletividade, estimulando o sentimento dos diferentes, estimulando espaços de empatia e acolhimento, construindo pontes entre os indivíduos e deixando de lado o desenvolvimento de novos muros de segregação, como percebemos na sociedade contemporânea, marcada por conflitos, desequilíbrios e desesperanças. O jovem tem um papel central na coletividade, cabendo aos dirigentes, os gestores públicos, a intelectualidade, a academia e os grupos dominantes se convencerem da importância deste grupo social para os anos posteriores, momento crucial para melhorarmos a sociedade, sem estas políticas centradas nos jovens caminharemos para a incivilidade e para a degradação.

As angústias dos jovens crescem constantemente, o desemprego cresce de forma acelerada, muitos países estão percebendo as crises crescentes na juventude, as cobranças do mundo material, a busca por ocupações, os medos do futuro e as baixas perspectivas de sucesso, levam inúmeros jovens a sucumbirem ao desespero, muitos estão assolados pela depressão e pela ansiedade, recorrendo a ansiolíticos e remédios para dormir e relaxar, neste ambiente, o suicídio cresce de forma acelerada, gerando degradações para todas as famílias, levando desespero e indignação.

A doutrina espírita nos auxilia na compreensão dos valores da vida, nos traz um conjunto de reflexões que colocam os seres humanos no centro das dificuldades da sociedade, disponibilizando uma grande quantidade de livros de estudo, de reflexão e de aprendizagem, mostrando-nos a importância de colocarmos no centro de nossas colheitas, somos seres em constantes evoluções, vivemos inúmeras vidas, passando por muitas vivências, momentos felizes e construímos infelicidades, somos frutos de nossas escolhas, sentimentos e pensamentos. Se estivermos passando por momentos de dificuldades, faz-se necessário refletirmos sobre nossas escolhas, tudo que sentimos, o que nos atrai, sem esta reflexão, dificilmente teremos condições de superarmos estes momentos de dificuldades e trilharmos horizontes mais saudáveis e com esperanças.