Rumores externos

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A sociedade internacional vem passando por grandes transformações e incertezas em todas as cadeias produtivas, com impactos nos preços e pressões inflacionárias, impactando sobre o consumo, sobre os investimentos, sobre os empregos e as perspectivas de recuperação econômica, aumentando as instabilidades e as preocupações, gerando problemas sociais, quebras econômicas e degradação política.

Para piorar este cenário, a economia internacional acordou sobre as perspectivas da falência de um dos grandes conglomerados imobiliários da China, Evergrande, cujo potencial pode ser gigantesco, com impactos sobre a economia, a demanda global de produtos importados e desestruturação do sistema financeiro, com desemprego, queda na renda e a dificuldade de recuperar os indicadores econômicos, tão degradados em momentos de pandemia.

O mercado imobiliário na China é gigantesco, nos últimos dez anos mais de 130 milhões de pessoas saíram do campo para viver nas cidades, sendo construídos mais de 70 milhões de apartamentos, apenas para absorver esta demanda de uma economia que cresce de forma acelerada. Com este crescimento, o setor se alavancou rapidamente, gerando bolhas de créditos que levaram o governo a costurar novas regulações e impactaram sobre as compras, diminuíram o crescimento econômico, reduzindo lucros e estimularam as dificuldades atuais.

Os dados sobre a empresa chinesa são assustadores, emprega mais de 200 mil funcionários, o endividamento da empresa chegou a mais de US$ 300 bilhões, sendo que mais de 100 bancos emprestaram a empresa e correm o risco de prejuízos altíssimos, gerando preocupações e descontentamentos. Apesar destes dados, não devemos esperar uma crise financeira como a do mercado imobiliário norte-americano em 2008. Desde o começo do ano as ações da Evergrande caíram mais de 80% e a empresa está tentando queimar estoques para pagar juros dos títulos que estão vencendo.

Embora alguns analistas acreditem que a crise da empresa chinesa pode impactar sobre o sistema internacional, é importante destacar que o sistema financeiro chinês não é integrado ao resto do mundo e as autoridades possuem instrumentos para garantir a liquidez do sistema, não importando o tamanho do buraco. Devemos destacar ainda, que mais de 80% do endividamento da empresa é em moeda local e os grandes credores são bancos públicos.

Países como o Brasil podem sentir a crise na queda das exportações para o mercado chinês, cuja demanda por commodities podem reduzir e impactar sobre o setor produtivo, principalmente pelos setores ligados ao minério de ferro e, em menor escala sobre os produtos do agronegócio, mas os riscos não devem ser descartados e nem desprezados.

Alguns analistas acreditam que a China caminha para a fragilização do modelo implementado no começo dos anos 80, outros teóricos acreditam que a crise do mercado imobiliário era esperada e deve reestruturar alguns modelos de negócios e o combate dos monopólios devem ser aperfeiçoado, pois a concentração de poder impacta negativamente para a coletividade, nesta visão, a crise da Evergrande deve ser vista como uma forma de repensar a atuação do Estado, como estamos vendo em países desenvolvidos, com maior intervencionismo governamental e maior regulação.

Neste ambiente de crises crescentes que caracterizam o mundo, marcados pelas incertezas e instabilidades geradas pela pandemia, as dificuldades das cadeias produtivas com aumento nos custos e do incremento da concorrência em escala global, faz-se necessário, construir espaços de atuação conjunta com todos os atores do desenvolvimento econômico. Deixando de lado os crescentes conflitos e confrontos desnecessários que limitam a confiança, a melhora do ambiente dos investimentos, a geração de emprego e a melhoria do bem-estar da sociedade.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 29/09/2021.

Crise na China evidencia risco de manter “crescimento fictício”

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Por Marcelo Ninio – 25/09/2021

Para levar adiante seu plano de frear a oferta de crédito fácil, é preciso aceitar uma queda significativa nos números do PIB, abrindo mão do “crescimento fictício”. Mas essa é uma ação que esbarra em grande resistência política, afirma Pettis, que há anos alerta para os riscos do excesso de endividamento para a economia chinesa.

Como a situação chegou a esse ponto?
Por muito tempo as incorporadoras cresceram rápido demais. Seu sucesso era puxado por três fatores: alto endividamento, muita liquidez e grandes lucros brutos. O problema é que nos últimos anos a liquidez desacelerou, chegando a ser negativa em agosto. O governo passou a ficar tão preocupado com o volume de endividamento no setor imobiliário que começou a impor limites. Não é a primeira vez que isso acontece. Há anos o governo fala em tomar medidas. Mas toda vez que tentava frear o crescimento das incorporadoras havia recuos, porque isso afeta a economia, reduz o preço dos imóveis e desacelera o setor imobiliário, que tem enorme importância na economia chinesa. Eles representam 25% do PIB e empregam milhões de pessoas, direta e indiretamente. Só a Evergrande tem 200 mil funcionários. Por isso é muito difícil exercer controle. Não há uma saída fácil. A Evergrande significa um grande dilema para os reguladores. Se querem eliminar a cultura da dívida é melhor não intervir. Mas sem uma intervenção há o risco de os problemas se alastrarem rapidamente e afetarem a população. Quanto maior a intervenção mais difícil será solucionar o problema. Acho que os reguladores se surpreenderam com a rapidez com que a economia ficou sob risco e estão ansiosos para aplicar uma solução que ponha um fim nisso.

Se uma intervenção parece inevitável, porque o governo ainda não se pronunciou?
É muito complicado. Se o governo faz um anúncio é para cessar o pânico. Isso significa que é preciso pensar em todos os componentes. O que fazer com as pessoas que investiram em ativos da Evergrande? O que fazer com os funcionários da Evergrande? O que fazer com as pessoas que pagaram adiantado por imóveis da Evergrande que não estão finalizados? O que fazer com a indústria de tinta, que está prestes a falir por ter fornecido enormes quantidades à Evergrande e não foram pagos? O que fazer com as construtoras que trabalhavam para a Evergrande e suspenderam os pagamentos a seus operários? Há muitos elementos nessa equação e é preciso encontrar uma solução para todos. Uma solução pela metade não serve. Quando o governo entrar em cena deve ser para acabar com o pânico.

Há vários tipos possíveis de intervenção, da máxima, em que o governo garante todos os pagamentos e acaba com a crise ao outro extremo, em que não há intervenção alguma. O governo deverá escolher algo no meio, mas qual? Uma solução política melhor talvez leve a uma solução econômica pior e vice-versa. É muito difícil apresentar uma resposta que agrade a todos. Na realidade não há tal saída, é preciso encontrar uma solução que basicamente agrade a Xi Jinping, Liu He [principal assessor econômico] e as pessoas em torno deles.

Sabia-se que o setor imobiliário chinês era “viciado em dívida”. Porque o governo não agiu com mais firmeza para reduzir essa dependência?
Por que as bolhas crescem? Politicamente é muito difícil esvaziá-las. Quem faz isso é acusado de destruir algo que estava funcionando. É muito difícil argumentar que se a bolha não for esvaziada em algum momento ela explodirá e causará grandes danos. É algo muito difícil de provar. Como disse um presidente do Fed [BC americano], o trabalho do Banco Central é cortar a bebida quando a festa está ficando animada. Fica todo mundo furioso, porque enquanto estão bebendo as pessoas não costumam pensar na ressaca do dia seguinte.
Evergrande para promover as correções necessárias, ao impor no ano passado limites à alavancagem das incorporadoras, as chamadas “três linhas vermelhas?

As três linhas vermelhas são o gatilho, não a causa. A causa é o vasto e excessivo endividamento do setor imobiliário. Em algum ponto isso ia ter que parar, seja por medidas regulatórias ou porque a situação ficou tão fora de controle que haveria uma crise. Os reguladores decidiram botar um fim nisso, mas não havia meio de fazê-lo sem causar danos. Há anos as autoridades têm tentado colocar um freio, mas toda vez que eles agem há prejuízos e torna-se politicamente inaceitável e eles recuam.

O governo está disposto a aceitar um crescimento menor do PIB para frear o endividamento?
Claro que as pessoas que podem responder a essa questão jamais irão discuti-la. Meu palpite é que o crescimento real é menor do que eles pensam. Portanto, mesmo se eles acreditam que é possível abrir mão do crescimento fictício gerado pelo setor imobiliário, o custo político de uma queda no PIB pode ser difícil de aceitar. E mesmo se conseguirem se livrar do mau crescimento, parar de construir apartamentos que ficarão vazios e não trazem nenhum valor econômico, de construir pontes desnecessárias e estender ferrovias a lugares que não fazem sentido, qual será o crescimento real da China? Eu acho que será bem menor do que eles esperam. Por muitos anos o crescimento do PIB foi maior que o da renda das famílias. Então em teoria hoje poderia haver uma grande queda no crescimento do PIB sem uma queda drástica no crescimento da renda. Politicamente é muito difícil.

Quais os riscos da crise na Evergrande para a economia mundial?
Acho que são bastante limitados. O perigo de um contágio financeiro é pequeno. O sistema financeiro chinês ainda é em grande medida fechado. A razão de os mercados terem reagido tão mal à crise da Evergrande é que há muita confusão sobre a China. Então sempre que algo acontece na China a reação dos mercados é recuar. Se a Evergrande forçar um reajuste na economia chinesa, com menos investimento e mais consumo, tudo o que a China importa para investimento, como minério de ferro, terá uma demanda menor [com impacto sobre exportadores como o Brasil]. Não quer dizer que isso se dará imediatamente, mas em algum momento isso acontecerá. A China não pode continuar tendo o maior nível de investimento da história, isso já há 20, 30 anos. Se a Evergrande é o que levará a essa mudança nós não sabemos, é esperar para ver.

O governo tem capacidade de promover essa mudança?
Tem, mas lembre qual o papel da dívida. A dívida vem crescendo rapidamente na China desde os anos 1980, mas isso não era muito notado porque o PIB crescia na mesma velocidade. Só nos últimos dez ou 15 anos a dívida acelerou e o PIB desacelerou. E a razão disso é que a dívida foi usada em investimentos desnecessários. O Brasil passou pelo mesmo nos anos 1970. O papel da dívida é manter os investimentos em alta, que por sua vez são necessários para manter o crescimento do PIB, empregos, etc. Mas se você quer se livrar da dívida é preciso aceitar um nível bem menor de investimentos e um crescimento do PIB muito mais baixo. É sempre um problema político. Todos querem ter altas taxas de crescimento, o problema é que num certo ponto não dá mais para jogar esse jogo e os ajustes se tornam extremamente perigosos. Por isso, quanto antes os ajustes são feitos, melhor.

Combate ao autoritarismo requer união tática de forças antagônicas, diz Anne Applebaum

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Em livro, jornalista partiu de rupturas pessoais para aprofundar compreensão de como autocratas vêm persuadindo cada vez mais pessoas

FERNANDO CANZIAN – FOLHA DE SÃO PAULO, 22/09/2021

Em “Twilight of Democracy – The Seductive Lure of Authoritarianism” (crepúsculo da democracia – o apelo sedutor do autoritarismo), a jornalista e historiadora americana Anne Applebaum, 57, parte de rupturas pessoais com familiares e amigos para aprofundar como líderes autocratas vêm persuadindo cada vez mais pessoas comuns para o campo antidemocrático.

Em um sobrevoo global, a autora esmiúça as estratégias comuns desses líderes e oferece sugestões de como enfrentá-los. Sobre a forma e o conteúdo do governo brasileiro de Jair Bolsonaro, Applebaum afirma que ele não difere dos demais e que, por antecipação, já copia os momentos finais da Presidência Trump nos EUA.

Para a vencedora do prêmio Pulitzer de não ficção em 2004 pelo livro “Gulag: Uma História” (Ediouro), o combate aos autocratas deve passar necessariamente pela união tática de forças políticas antagônicas, mas que tenham o objetivo comum de se livrar deles.

“É preciso que haja uma trégua, onde sejam colocadas de lado as diferenças para que se possa concordar sobre algo bem mais importante”, afirma Applebaum, que fará uma palestra no ciclo Fronteiras do Pensamento em 29 de setembro.

Políticos populistas e antidemocráticos têm usado o mesmo roteiro na Europa e nos EUA. No Brasil, Bolsonaro procura desqualificar as instituições e ataca a mídia. Se o roteiro é sempre parecido, já não é tempo de as democracias aprenderem formas eficientes de combater essas ameaças? Concordo que existe um padrão nesses ataques à democracia, com os candidatos a autocratas não liberais imitando uns aos outros e estudando o que funciona em cada país. No Brasil, vemos o presidente Bolsonaro imitando Trump mesmo antes do resultado das eleições [de 2020], ao dizer que, caso ele não vença, elas terão sido fraudadas. O ponto é que os opositores a esse tipo de político precisam estar preparados, pois isso não é algo que os Estados democráticos necessariamente tenham como combater. Tem de partir das pessoas que defendem a democracia e seus valores liberais.

Essas pessoas, no Brasil, nos EUA e na Europa, deveriam se reunir e aprender também uns com os outros as táticas de combate, para que isso não volte a acontecer no futuro. No caso dos autocratas, não existe uma aliança ou uma rede, mas eles estão aprendendo uns com os outros.

Mas não tenho certeza de que seus oponentes estejam fazendo a mesma coisa. Embora sofram do mesmo mal, eles normalmente estão divididos em centro-direita, centro-esquerda e verdes. Representantes de sindicatos e associações empresariais também tendem a não gostar uns dos outros. Mas é preciso que sejam formados novos tipos de alianças e relacionamentos para confrontar essa ameaça.

A senhora afirma que o autoritarismo atrai pessoas que não toleram a complexidade, que são alérgicas a debates intensos. Os progressistas deveriam se apropriar das mesmas táticas de comunicação dos autoritários? A grande questão para os oponentes de figuras autoritárias é exatamente essa. Quando temos sociedades profundamente polarizadas, como nos EUA, na Polônia ou Brasil, o que é mais efetivo? Mobilizar a sociedade para o enfrentamento unindo partidos antagônicos [com um objetivo comum] ou utilizar uma linguagem mais raivosa e direta?

Não existe uma fórmula. A melhor campanha talvez tenha de usar os dois caminhos. Um tipo de linguagem que vai unir as pessoas de vários campos políticos e, ao mesmo tempo, ter certeza de que as pessoas estarão suficientemente motivadas.

Em sua pergunta, você usou o termo progressistas. Mas é importante lembrar que a luta não deve ser feita apenas pela esquerda ou pelos progressistas. Ela deve incluir a centro-direita, empresários e mesmo aquela parte da população que se considera conservadora e está incomodada com as táticas dos autocratas. É preciso que haja uma trégua, em que sejam colocadas de lado as diferenças, para que se possa concordar sobre algo bem mais importante.

Como a mídia pode contribuir para trazer mais racionalidade ao debate político? Muitas vezes a mídia, especialmente as TVs, embora isso também ocorra nos jornais, acabam refletindo os argumentos que as pessoas estão usando no Twitter. Isso ocorre particularmente porque muitas empresas de mídia, desde o advento da internet, estão fragilizadas. Na busca por mais leitores e audiência, acabam caindo nessa armadilha de usar o sensacionalismo ou uma linguagem raivosa para conquistar leitores.

Ando envolvida em algumas discussões com jornais italianos, além de outros, para entender se a mídia pode analisar melhor o que vem fazendo. E isso pode até levar a um novo modelo de negócio, de construção de consensos, unindo mais lados do espectro político.

Podemos pensar em nós mesmos não apenas como parte de uma cruzada [contra autocratas] ou como a representação de apenas uma linha de pensamento. Podemos pensar em nós mesmos como provedores de conteúdo para um número bem maior de leitores de vários lados, além de formadores de consensos.

A senhora afirma no livro que políticos autoritários bem-sucedidos costumam usar as melhores pessoas da elite intelectual em seus propósitos. No Brasil, temos uma administração que nem sequer disfarça a ignorância em temas básicos. Seria motivo de otimismo para os brasileiros que discordam do governo? Não conheço a política brasileira o suficiente para comentar a natureza das pessoas que fazem parte do governo Bolsonaro, mas deve ser o mesmo que ocorre na Polônia [risos].

Mas lembre-se que, muitas vezes, as pessoas que trabalham nas campanhas desses líderes autoritários são muito bem formadas. Em muitos casos, podem ser pessoas frustradas que se sentiram pouco reconhecidas e recompensadas em governos anteriores e que não necessariamente se enxergam como sem talento. Pelo contrário. Muitas consideram que enfim estão conseguindo o que merecem.

Infelizmente, o resultado desse processo é que instituições que deveriam se manter neutras ao longo do processo acabam se politizando.

O economista francês Thomas Piketty e outros especialistas em desigualdade argumentam que o aumento da disparidade de renda deixou os eleitores mais vulneráveis a mensagens populistas. Qual sua opinião? Concordo que o aumento da desigualdade causa um efeito de distanciamento nas pessoas, que acabam por se sentir fora do sistema. Dependendo do país, isso pode ser muito marcante.

Mesmo porque os autocratas agem de maneira a oferecer uma espécie de filiação a algo. “Somos os verdadeiros brasileiros ou americanos!”, dizem. Mas é preciso ser muito cuidadoso em pensar que essa é a única razão e que, acabando com o problema da desigualdade, as coisas estarão resolvidas.

Claro que devemos diminuir a desigualdade. Mas, no caso dos EUA, muitos dos que votaram em Trump não foram necessariamente os mais pobres, que vivem de seguro-desemprego ou de outros tipos de ajuda social. Muitos de seus eleitores são extremamente ricos. E Trump conseguiu um apoio bastante grande entre membros da classe média. [A ascensão dos autocratas] não é apenas um fenômeno econômico. Mas concordo que isso acaba contribuindo para um sentimento de alienação de parte da sociedade.

No geral, como a senhora avalia o atual estágio das democracias liberais ocidentais? É uma situação bastante frágil internamente, em vários países. Mas há aí também um componente externo importante, pois as democracias liberais têm de lidar agora com um grande desafio: a China, país que não só consegue crescer rapidamente como está exportando seu modelo para o resto do mundo.

De uma maneira falsa, mas que tem apelo, os chineses oferecem uma alternativa para o desenvolvimento. Isso tem ressonância, particularmente, entre os autocratas. Eles podem dizer: “Veja, criando um sistema de partido único, acabando com a oposição política e controlando a internet podemos conseguir desenvolvimento e crescimento”. Isso esconde vários elementos da ascensão da China, especialmente o fato de que o país só começou a crescer depois que permitiu a adoção de modelos de negócios privados.

A coisa mais importante que temos a fazer é consertar internamente nosso próprio sistema. Isso passa por regular melhor o que é produzido na internet e nas redes sociais; aumentar o controle sobre o sistema financeiro internacional, que se tornou bastante cleptocrático, permitindo alimentar os autocratas; e modernizar nossas próprias democracias nessa era digital.

ANNE APPLEBAUM, 57
Formada em história e literatura pela Universidade Yale e mestre em relações internacionais pela London School of Economics, é escritora e integrou o conselho editorial do jornal The Washington Post. Vencedora do prêmio Pulitzer de não ficção pelo livro “Gulag: Uma História” (2004)

Projeto Nacional

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A pandemia desnudou as desigualdades crescentes da sociedade global, mostrando que os seres humanos se comprazem com o imediatismo, buscam as riquezas degradando o meio ambiente e acreditam que a tecnologia é a solução dos mais variados problemas da coletividade, estimulando os investimentos em tecnologia sem humanismo, sem solidariedade e sem empatia, o mundo caminha a passos largos para a degradação, a incivilidade e a mediocridade.

Neste ambiente, percebemos que a sociedade brasileira passa por um momento de grandes desagregações, as taxas de miséria e de exclusão social crescem de forma acelerada, a inflação propaga para todos os grupos sociais e impacta fortemente para os setores mais fragilizados, os preços dos combustíveis aumentam sem dar trégua, fragilizando os setores que acreditaram que a solução do momento é a difusão dos aplicativos. Neste momento, os preços de todas as cadeias produtivas crescem de forma acelerada, com isso, os trabalhadores perdem renda e são levados a aceitarem cargas excessivas de trabalho, criando transtornos e dores crescentes, síndromes de burnout, depressão e problemas psiquiátricos.

O ambiente exige a reconstrução nacional, estamos nos aproximando de duzentos anos de independência e os resultados são preocupantes, necessitamos de liderança e precisamos, urgentemente, de um projeto nacional e construir um ambiente saudável para imaginar o futuro desta nação, deixando de lado os interesses mesquinhos e imediatos, buscando as bases do progresso material e emocional, se afastando do caos e da ingovernabilidade.

O século XX trouxe grande crescimento econômico para o Brasil, tivemos problemas e muitos equívocos como todas as nações. Erramos em alguns setores fundamentais e acertamos em outros, os resultados gerais foram positivos, saindo de uma situação intermediária no cenário internacional e nos tornamos uma das dez maiores economias do mundo. Naquele momento, o Brasil recebia delegações de vários países do mundo que queriam entender o rápido crescimento do país, éramos vistos como exemplo no mercado internacional, sociedade pujante e dotada de forte potencial de crescimento e de desenvolvimento econômico.

Infelizmente, atualmente perdemos este potencial de crescimento, desde os anos 80 entramos num ambiente de mediocridade, estabilizamos nossa moeda e controlamos a inflação, desenhamos políticas públicas exitosas e crescemos internamente e recebemos elogios internacionais. Desde 2015, perdemos o dinamismo na economia global, passamos a sermos vistos como uma preocupação e nossas perspectivas futuras são sombrias.

O momento pressupõe liderança, organização política e competência de todos os atores econômicos e políticos, construindo um espaço de conversação onde todos os grupos sociais devem participar, intensificando as discussões democráticas, construindo projetos nacionais, repensando o papel do Estado Nacional, estimulando a atuação dos setores privados como atores dos investimentos produtivos e da geração de emprego e de renda. Neste momento de grande instabilidade econômica, pandemia e polarização crescente, precisamos aprofundar a democracia, os valores republicanos e os sentidos da civilização.

Não criaremos um país sem reconstruirmos os laços de solidariedade, sem nos revoltarmos com as condições indignas de trabalho e de sobrevivência que é a realidade de uma parte crescente da sociedade nacional. Precisamos compreender que o século XXI prescinde de capital humano qualificado, escolas e universidades bem estruturados, salários dignos e condições de trabalho decentes, tudo isso, pressupõem recursos elevados que se reverterá em uma política fiscal centrada em tributos equilibrados, onde os grupos que auferem mais rendas devem pagar mais em detrimento dos mais pobres, uma estrutura tributária deve ser progressiva para toda a coletividade, sem vencermos estes entraves, a sociedade brasileira tende a repetir os dados preocupantes e perspectivas sombrias.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 22/09/2021.

Chinesa Evergrande não deve causar crise financeira global; entenda o porquê, por R. Zeidan

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Desde o início do ano, ações da empresa com mais de U$ 300 bilhões em dívidas caíram mais de 80%

Rodrigo Zeidan
Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Folha de São Paulo, 21/09/2021

Não é todo dia que uma incorporadora imobiliária causa risco no sistema financeiro de um país, mas esse é o caso da
Evergrande, empresa chinesa com mais de U$ 300 bilhões (R$ 1,6 trilhão) em dívidas. Desde o início do ano, suas ações caíram mais de 80%, e a empresa está tentando queimar estoques para pagar os juros dos títulos que estão vencendo.

O tamanho da sua dívida e o estrago que pode causar no balanço dos mais de 100 bancos que emprestaram dinheiro para a empresa preocupam, mas não devem causar uma crise financeira. São duas as razões para isso: o sistema financeiro chinês não é integrado ao resto do mundo e as autoridades chinesas têm bala na agulha para garantir a liquidez do sistema, não importa o tamanho do buraco.

Ainda assim, há riscos. Crises financeiras não acontecem pelo tamanho do endividamento, mas sim pela qualidade das dívidas, públicas e privadas, e alavancagem das instituições financeiras.

Um exemplo é a crise de 2008, causada em grande parte pelos bancos americanos que criaram produtos financeiros (como credit default swaps), no qual empacotaram dívidas imobiliárias boas com ruins, mas conseguindo que o conjunto fosse classificado como de baixíssimo risco.

Como há muita incerteza sobre a qualidade das dívidas das incorporadoras imobiliárias chinesas, isso poderia ser o estopim para uma crise financeira local. Em parte, o colapso da Evergrande é resultado das mudanças regulatórias na China e do agressivo modelo de negócio da empresa.

As novas regras, introduzidas há mais de um ano, incluem limites no endividamento e alavancagem de empresas imobiliárias. A empresa, como muitas do setor, usava seu tamanho para se endividar, comprar terrenos e continuar crescendo.

Hoje, a Evergrande é tão grande que sua falência poderia levar a um pânico generalizado, desde que o PBOC, banco central chinês, deixe isso acontecer, o que é pouco provável. As autoridades chinesas têm instrumentos para resgatar o sistema financeiro; afinal, é função dos bancos centrais serem emprestadores de última instância.

Contudo, há exemplos mundiais de má gestão de crises sistêmicas. O banco central japonês agiu a conta-gotas no início da década de 1990, e até hoje a economia japonesa paga por isso. No dia 15 de setembro de 2008, o Federal Reserve, banco central americano, anunciou que deixaria o Lehman Brothers ir à falência, erro monumental pelo qual pagamos até hoje.

Se uma crise na China acontecer, o que esperar no Brasil?

Crises financeiras se espalham por meio de sistemas financeiros e comércio exterior. A moeda chinesa, o yuan, não é conversível e há controle de capitais no país. Por mais que a Evergrande também tenha dívida em moeda estrangeira, a maior parte é em moeda local. Mais ainda, desde que o yuan sofreu um ataque especulativo por empresas estatais chinesas, em 2015 e 2016, o processo de integração financeira com o resto do mundo parou.

Uma crise financeira ficaria contida na China. Mas só do lado financeiro. Uma recessão lá levaria o mundo junto, pela queda na demanda mundial. O caso da Evergrande não deve causar uma crise financeira. Mas mesmo que o risco de uma recessão global seja baixo, convenhamos, o mundo não precisa de mais notícias ruins.

Paulo Freire é decente e democrático, nunca silenciaria quem dele discordasse, por Cortella.

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Há pessoas que, de propósito, distorcem o repertório freiriano com o objetivo de desqualificar sua relevância na educação contemporânea

Mario Sergio Cortella Filósofo, com doutorado em educação pela PUC-SP, sob a orientação de Paulo Freire, de quem foi chefe de Gabinete e a quem substituiu no cargo de secretário municipal de Educação de São Paulo (1991-1992)

Folha de São Paulo, 19/09/2021

Paulo Freire é uma pessoa decente!

A prática vivencial e o patrimônio cultural que nos legou justifica o tempo verbal no presente, e assim precisa ser, pois não há como aquilatar o legado de uma pessoa como ele e supor que este fique somente na memória do pretérito, em vez de também impregnar, como de fato ocorre, a história do presente e os desdobramentos vindouros.

De novo: Paulo Freire é uma pessoa decente! E o é exatamente por não ter procurado edificar suas práticas e concepções a partir do logro da boa-fé de outras pessoas, ou acolhido o embuste no qual assumisse como da própria autoria o que estivesse na lavra de outrem, ou da intenção do ludibrio que conduzisse ao engodo gerador de vantagens exclusivistas, ou, ainda, da promoção do engano intencional que levasse alguém a compreender de modo equivocado o que deveria ser assimilável de forma transparente, para manter este alguém sob seu domínio.

Paulo Freire é um intelectual honesto! E, assim, se agora presencialmente conosco estivesse, não repudiaria —como jamais o fez— objeções e discordâncias ao seu trabalho, desde que fundamentadas em argumentações sinceras e contraposições idôneas, que expusessem com suportes e embasamentos verídicos os eventuais deslizes, desacertos e lapsos nos quais pudesse ter incorrido.

Um intelectual honesto de fato não entende como ofensa o que pode ser uma contribuição para refinamento e correção do que elabora, mas de maneira alguma se submete à dissolução do que propugna apenas por encontrar desaprovação, especialmente porque essa desaprovação pode ser oriunda justamente da correta compreensão e, daí, o repúdio.

Paulo Freire encontra mais denegação por parte de quem o entende muito bem, com as decorrências políticas que seu ideário implica, do que por parte de quem pouco o conhece e que em certos momentos é maldosamente induzido à burla.

Uma parte dos que dele discordam o faz virtuosamente, assumindo com sinceridade as divergências de caminhos e suas resultantes, em um jeito escrupuloso. Contudo, há outra parte que, de propósito, distorce o repertório freiriano, com o objetivo de desqualificar a relevância expressiva deste —mundo afora— na educação contemporânea, e, além disso, pretende ardilosamente imputar a ele a composição das mazelas e penúrias da educação nacional.

Este ponto, o da distorção, é tão relevante para demonstrar o papel da trapaça na intenção de desabilitar a proeminência de Paulo Freire, que vale trazer dois exemplos concretos.

Uma das contribuições mais eminentes que ele fez à filosofia da educação contemporânea é ter adensado a compreensão de que nenhuma pessoa é capaz de somente ensinar, assim como não há nenhuma que seja capaz de somente aprender; em outras palavras, todas e todos, de algum modo e em circunstâncias variadas, somos educadores e educandos uns dos outros, em meios às nossas vivências, convivências e relacionamentos, o que exclui a possibilidade de haver, de um lado, somente néscios discentes e, do outro, somente sábios docentes. Essa condição não suprime nem a tarefa e nem o lugar de quem tem responsabilidade de formar, mas requer que quem o faça leve em conta, inclusive como alavanca de aperfeiçoamento recíproco, que quem está em formação não chega sem algo saber, e quem exerce o ensino não sabe tudo.

Ora, um dos subtítulos internos de sua obra mais merecidamente afamada, “Pedagogia do Oprimido”, é: “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”. Porém, se excluirmos (como na burla feita por minoria furiosa) o que vem após a sentença inicial, recortando do conjunto da ideia só o ponto de partida, ficaria “ninguém educa ninguém”, o que não somente distorce o sentido real (ninguém apenas educa, ninguém é apenas educado) como, além de tudo, sugere ter Paulo Freire depreciado o ato educativo e o ofício de quem o faz!

Outro exemplo, mais usual, é sobre a afirmação por ele feita, em muitas de suas obras, de a Educação ser um igualmente um ato político. Isto é, todo ato pedagógico —porque não é neutro e influencia, interfere, colabora ou prejudica uma comunidade — é similarmente um ato político. É claro que Paulo Freire está fazendo referência à política na acepção clássica grega, como sendo a maneira como coletivamente organizamos nossa vida comum, coabitada na pólis, na interrelação entre o privado e o público, assemelhado aos que os latinos chamaram de civitas, como cidade, chegando entre nós ao termo cidadania.

Em momento algum Paulo Freire indicou que o ato pedagógico, a educação, deva ser partidária, ou doutrinária, ou proselitista, ou catequética. Ao contrário! Se assim o fosse, e defendesse a manipulação, teria demolido o cerne da sua filosofia que é o ato pedagógico ser fomentador, para cada pessoa e para todas as pessoas, de uma consciência livre, com a educação como prática da liberdade e uma pedagogia da esperança e da autonomia.

Por isso, Paulo Freire é uma pessoa democrática! Nunca procuraria silenciar quem dele discordasse, calando a dissensão, impondo o pensamento único, excluindo a condição de fazer do diálogo a presença da mutualidade do proveito, no lugar de construir uma argumentação que pudesse ser suficiente para convencer (e não vencer!).

Como pessoa decente, intelectualmente honesta e democrática, ele permanece entusiasmando a lapidação do que chamou também de “inédito viável”, aquilo que ainda não é (por isso, inédito) mas pode ser (por isso, viável).

E qual é esse inédito viável entranhado no percurso de Paulo Freire? Vida boa, para todas e todos, em qualquer lugar e época, e, como, diria ele, cheia de boniteza!

Paulo Freire é um brasileiro que ainda tem muito a nos ensinar, por Silvio Almeida.

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Filósofo e educador, que completaria 100 anos nesta semana, ensinava que educação é a transformação do mundo

Silvio Almeida Professor da Fundação Getúlio Vargas e do Mackenzie e presidente do Instituto Luiz Gama.

Folha de São Paulo, 19/09/2021

Costuma dizer o historiador Luiz Antonio Simas que o Brasil é um empreendimento de ódio, pois é um país que se funda em um projeto de Estado-nação excludente. As instituições políticas e jurídicas brasileiras, que em grande medida atuam contra o povo —especialmente negros e indígenas—, sempre viram a cultura e a sabedoria popular como formas de vulgaridade, primitivismo ou “coisas de vagabundo”.

Por isso, é comum na história do Brasil que tudo que coloque em questão o pacto antipovo que caracteriza o país seja tratado como ameaça; que tudo que se atreva a estimular a formação de uma consciência nacional-popular e crítica seja repelido.

Este ódio do Brasil contra a brasilidade que emerge da resistência do povo brasileiro talvez seja uma explicação para a intensa campanha difamatória promovida contra o filósofo e educador Paulo Freire, morto em 1997, e que complementaria 100 anos de idade no dia 19 de setembro deste ano.

Nos últimos anos, a obra de Paulo Freire —um dos maiores pensadores da educação de todos os tempos, reconhecido nacional e internacionalmente— tem sido apontada por reacionários como sendo o principal motivo da decadência da educação no Brasil.

Não é a desigualdade social, o baixo salário de professores, a falta de estrutura das escolas e nem a ausência de um projeto nacional o problema da educação. O problema, na misteriosa cabeça dessas pessoas, é Paulo Freire, que seria quase que um “educador do fim do mundo”.

Talvez, neste ponto —e só neste e pelos motivos errados— os detratores de Paulo Freire tenham alguma razão, pois sua lição mais poderosa é: podemos pôr fim a um mundo que já não nos serve e podemos projetar outro completamente novo, em que caibamos todos nós.

Freire não enxergava a educação como um ato de “transferir” conhecimento, depositar saberes no aluno como se este fosse uma caixa ou um cofre. Este tipo de educação alienante —que não à toa denominava de “bancária” — concorre para que a exploração e a opressão sejam apresentadas à consciência dos indivíduos como dados “naturais” e não como circunstâncias históricas.

A educação para Freire é um processo de transformação que vai além do indivíduo. Na mesma linha traçada por Jean-Paul Sartre, Freire entendia o indivíduo sempre em situação, ou seja, sempre envolto pela facticidade e pela presença de outros indivíduos. Dessa forma, a educação, ao moldar a subjetividade, inevitavelmente interfere nos sentidos que o indivíduo atribui ao mundo em está lançado e na relação com outros indivíduos.

Com efeito, a educação para Paulo Freire não é apenas a mudança da consciência, mas a transformação do mundo, sem o que o indivíduo não se transforma. Entre mundo e ser humano há uma inextrincável relação dialética que, se pudesse ser desfeita, o ser humano deixaria de ser humano e o mundo perderia o sentido.

Em outras palavras: para Paulo Freire o ser humano é ser humano “no mundo” e o mundo só existe porque o ser humano nele habita.

Com essa proposição, Paulo Freire desfaz algumas ilusões de que é possível mudar a realidade apenas construindo escolas ou alterando diretrizes curriculares.

Educar é desenvolver a autonomia de alunos e alunas para que possam reivindicar a própria humanidade, o que se traduz na criação de um mundo em que não mais haja oprimidos e opressores. Inspirado por Frantz Fanon e Amílcar Cabral, Freire considera a educação um processo inevitavelmente político e revolucionário.

Para os que querem tornar aceitável a miséria e a exploração, Paulo Freire é o educador do fim do mundo. Com toda a sua amorosidade e rigorosidade, o filósofo brasileiro nos leva a pensar que este mundo, tal como conhecemos, precisa de fato acabar para que outro, fundado em uma práxis de solidariedade e respeito, possa vicejar.

Grupos em permanente busca por direitos estão mais vulneráveis ao adoecimento mental, por Cida Bento.

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Autocuidado nos estimula a recuperar memórias sobre nossas potências coletivas

Cida Bento Conselheira do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), é doutora em psicologia pela USP

Folha de São Paulo – 16/09/2021

Neste Setembro Amarelo, mês em que concentramos nossa atenção na prevenção ao suicídio — que atinge, no Brasil, 13 mil pessoas a cada ano—, mais do que nunca temos que atentar para as condições que tornam a vida de tantas pessoas insuportável de ser vivida.

De acordo com estimativas da OMS (Organização Mundial da Saúde) de 2021, o suicídio continua sendo uma das principais causas de morte no mundo. A campanha Setembro Amarelo envolve várias organizações, como a ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria) e o CFM (Conselho Federal de Medicina). O CVV (Centro de Valorização da Vida) é um apoio permanente ao enfrentamento desse desafio no campo da saúde.
Muitos problemas no campo da saúde mental da população brasileira foram acirrados pela crise sanitária e econômica, que incide sobre o aumento dos índices de suicídio, como diversos estudos que ganharam manchete na grande mídia nos mostraram nestes tempos de pandemia.

No Brasil, milhões de pessoas se encontram desempregadas, e os problemas de segurança alimentar, de acesso à saúde, à moradia, ao trabalho digno geram sofrimento principalmente em períodos como o que estamos vivendo, em que o governo reduz orçamentos para políticas públicas.

Do lado oposto, o fortalecimento de políticas de proteção social funcionou como elemento de prevenção ao aumento de doenças mentais na Itália, no período de 2000 a 2010, segundo publicação do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz.

Nesse sentido, estabelecer diálogo social é imprescindível para encontrar saídas que envolvam governos, empregadores, trabalhadores e movimentos sociais, para enfrentar conjuntamente a crise.

Conflitos de classe, de raça, violência de gênero e outros estão relacionados com o sofrimento psíquico, individual e coletivo. Grupos que vivem uma permanente busca pelos seus direitos e para afirmação social da sua identidade estão mais vulneráveis ao adoecimento mental.

Na população indígena, o suicídio foi quase três vezes maior que a média nacional, segundo o Ministério da Saúde, em 2018. Acrescente-se a isso o fato de que 79% dos suicídios ocorrem em países de baixa e média renda, segundo a Opas (Organização Pan-Americana de Saúde), em 2016.

Audre Lorde, mulher negra, apontou caminhos essenciais para acolher e enfrentar esse desafio de crise, cunhando o termo “autocuidado”, debatido em grupos feministas e antirracistas e conectado com o contexto político e coletivo.

Audre fala em transformação pessoal e política ao mesmo tempo. Trata autocuidado como a construção de nosso bem-estar, de nossa sobrevivência.

Em um coletivo acolhedor, o autocuidado permite reconhecer-se com medo, impotente, frágil e buscar a autopreservação diante de um ambiente ameaçador. Ou seja, um coletivo com uma escuta ativa para os sentimentos de dor, de perdas, de humilhação e sujeição.

Ao cuidar dos outros e se deixar cuidar, alimentam-se a reciprocidade, a cumplicidade e a solidariedade, resgatando e fortalecendo a autoconfiança e a fé no coletivo.

O autocuidado vem sendo exercitado por coletivos de mulheres negras, indígenas e quilombolas. São grupos que nos provocam a pensar em uma humanidade que preserva tanto a vida humana como a de outros seres vivos no planeta. Ou seja, do próprio planeta.

Nessa atividade política coletiva, criam-se redes de solidariedade para garantir alimentação e produtos de higiene para periferias urbanas desempregadas, reduzindo os danos da política genocida, pois o autocuidado está no território do bem viver, do afeto e da amorosidade.

Nos estimula a recuperar as memórias sobre nossas heranças, nossas riquezas esquecidas, nossas potências coletivas que permitem criar outras realidades políticas e sociais e reforçar o nosso compromisso e bem-estar com a vida.

Caos generalizado

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A economia brasileira está caminhando a passos largos a uma recessão com impactos generalizados para grande parte da sociedade, com incremento dos conflitos institucionais, diminuição da confiança e da credibilidade dos agentes econômicos, com queda dos investimentos e instabilidades que nada auxiliam na recuperação da economia, neste ambiente de incertezas o desemprego aumenta, a renda diminui e limitam as perspectivas de melhora econômica.

Vivemos um momento de desgoverno, descrédito e instabilidades crescentes, a inflação cresce de forma acelerada, o câmbio se desvaloriza e impacta sobre os preços internos. Os preços proibitivos dos combustíveis impactam diretamente sobre a estrutura produtiva, prejudicando a grande massa da população, inviabilizando os motoristas dos aplicativos que ganharam relevância neste período de pandemia. O aumento dos preços dos combustíveis garante os lucros de um pequeno grupo social em detrimento da população, contribuindo para a piora da concentração da renda, aumentando a inflação e reduzindo a renda da população, efeito imediato menos consumo e menor geração de emprego.

No país do agronegócio, conhecido como o celeiro do mundo, a fome e a exclusão crescem de forma acelerada e, em contrapartida, os ganhos dos grandes produtores agrícolas crescem, estimulando o consumo nos mercados de luxos, estimulando os investimentos em imóveis de alto padrão e aumentando a ostentação, contribuindo para incrementar as contradições que crescem na sociedade brasileira, perpetuando os privilégios de poucos grupos em detrimento de uma sociedade centrada na desigualdade, no racismo e na exploração.

Neste ambiente de incertezas e instabilidades os investimentos se concentram no curto prazo, o planejamento é deixado de lado e prescinde de profissionais altamente capacitados para entendermos o momento e construirmos os cenários futuros. Os investimentos que dominam a economia brasileira buscam rendimentos imediatos e deixam de lado os dispêndios de longo prazo, postergando os recursos para a infraestrutura, negligenciando os investimentos da educação, cujos retornos são mais distantes e demorados, a ciência e a tecnologia são negligenciadas e nos tornando mais dependentes do mercado internacional, acreditando que as tecnologias estarão disponíveis para a aquisição no mercado global. A pandemia nos mostra que, sem desenvolvimento próprio de tecnologias, de máquinas e de vacinas, somos cada vez mais dependentes dos humores dos agentes econômicos e políticos internacionais, países que optaram, anteriormente, na construção de sua autonomia científica e tecnológica.

Estas tecnologias podem estar disponíveis no mercado global, mas os valores serão, cada vez mais elevados e, num momento de crises mundiais, como numa pandemia, os desenvolvedores destas tecnologias priorizam seus mercados internos e seus interesses imediatos, deixando de lado seus “parceiros” comerciais. Neste ambiente de grandes desafios e concorrências crescentes, os investimentos em educação, pesquisa, ciência e tecnologia se mostram cada vez mais relevantes e, infelizmente, não estamos aprendendo as lições deste momento de pandemia e de crises crescentes, insistindo em conflitos políticos desnecessários, propondo pautas atrasadas e perpetuando o caos generalizado.

A pandemia desagregou as estruturas produtivas globais, gerou aumento dos custos produtivos, a falta de insumos está levando muitos conglomerados a rever políticas de investimentos, aumento da inflação e levando os bancos centrais a elevarem as taxas de juros, cujos impactos imediatos são visíveis na economia brasileira, menos investimentos, menos empregos, mais inflação e maior endividamento das famílias e dos setores produtivos.

Num ambiente de desconfianças e discursos de ódio e de ressentimento, precisamos de uma agenda para superarmos os atrasos que perpetuam nosso subdesenvolvimento, atacando os verdadeiros problemas da sociedade brasileira, a pobreza, a fome, a exclusão social e o desemprego que crescem de forma acelerada.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 15/09/2021.

A cultura, a economia criativa e a retomada pós-pandemia, por Eduardo Saron

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Construir ambientes trará impactos à educação e ao mundo do trabalho

Eduardo Saron Diretor do Itaú Cultural, presidente do Conselho de Cultura e Economia Criativa do governo de São Paulo e membro dos conselhos do Instituto CPFL e do Instituto Cultural Vale

Folha de São Paulo, 09/09/2021

No final de julho, os ministros da Cultura do G20, reunidos na Itália, deram um recado para o mundo: a cultura e a economia criativa terão papel determinante na retomada da pós-pandemia e devem estar no centro das políticas públicas para estimular o emprego, a renda, a educação, a diminuição das desigualdades, a criação de um ecossistema digital saudável e seguro, a saúde mental e a sustentabilidade do planeta.

A constatação não é mera retórica. No campo da economia, por exemplo, a importância desses segmentos é inquestionável. No caso do Brasil, em 2019, ano pré-pandemia, a economia criativa respondeu por 2,61% do PIB e movimentou R$ 171,5 bilhões no país, segundo Estudo da Firjan (Federação das Indústrias do Rio de Janeiro). No mesmo período, o importante setor da construção civil contribuiu com 3,7% para o PIB nacional, de acordo com o Dieese.

No campo do emprego, o segmento também é uma máquina de geração de oportunidades. Segundo o Observatório do Itaú Cultural, no último trimestre de 2019 a economia criativa empregava nada menos que 5,2 milhões de trabalhadores.

Aqui também vale a pena a comparação com a construção civil, que, no mesmo período, registrava 6,8 milhões de empregos. Ou seja, o cotejo do PIB das duas indústrias mostra que a economia criativa empregava, proporcionalmente, mais que a construção civil no pré-pandemia.

Mas não é só no campo da economia que as bandeiras defendidas pelos ministros do G20 podem fazer a diferença. Em um momento em que iniciamos a volta dos alunos às escolas, a cultura e as atividades criativas podem contribuir para acolher e encantar as crianças e os jovens neste recomeço.

Exemplos de que a arte melhora o aprendizado, diminui a violência e reduz as desigualdades são abundantes. O Programa Guri da Grande São Paulo, por exemplo, demonstrou que os alunos atendidos em seus projetos de formação musical apresentaram melhora significativa das habilidades emocionais, comportamentais e vivenciaram estreitamento das relações familiares, entre outros indicadores positivos. Cada real investido nessa iniciativa gerou R$ 6,53 em benefícios sociais.

A cultura também é apontada por especialistas como estratégica para desenvolver a criatividade, o pensamento crítico e as relações colaborativas. Construir ambientes que estimulem essas competências terá impacto na educação e no mundo do trabalho, beneficiando os indivíduos e a competitividade do país.

Na Carta de Roma, como ficou conhecido o documento elaborado pelos ministros do G20, fica patente, ainda, a centralidade da cultura para enfrentarmos o desafio da saúde mental, que está afetando milhões de brasileiros nesta crise sanitária. Na Inglaterra, por exemplo, o programa Artlift, que adota atividades artísticas para melhorar a qualidade de vida de pacientes com depressão e ansiedade, reduziu em 37% as taxas de consulta e, em 27%, as de hospitalização dos atendidos, gerando economia de 216 libras por indivíduo ao NHS, o sistema de saúde pública do país.

Mesmo com todo esse potencial, não se viu e não se vê no horizonte uma estratégia do Estado e da sociedade brasileira para colocar a arte e as atividades criativas no centro das políticas públicas. O que se observa, na verdade, é um desmonte e um debate ineficiente e desfocado, que só amplifica o descaso com esses segmentos que tanto podem contribuir para a nossa recuperação.

A cultura e a economia criativa, com as suas múltiplas potencialidades transformadoras, podem ser decisivas para o Brasil conquistar desenvolvimento com equidade. O país precisa focar na retomada e abandonar as crises artificiais e deletérias que estão tragando toda a nossa energia.

Converter a Carta de Roma, que sobretudo fortalece os direitos humanos e a democracia em um guia central de políticas públicas, seria um bom começo. Precisamos agir.