Medos

0

O mundo vem passando por grandes transformações, de um lado percebemos alterações profundas nas estruturas econômica e produtiva, aumento da tecnologia, fortalecimento dos setores financeiros, aumento do desemprego, novas exigências nos mercados, incremento dos conflitos culturais e degradação do meio ambiente, de outro, uma pandemia que espalha destruição em todos os continentes, mortes, medos e preocupações generalizadas, cujos impactos são os desequilíbrios emocionais, afetivos, financeiros e psicológicos, diante disso, percebemos a necessidade de reconstruir as bases da sociedade global.

O crescimento tecnológico ganhou espaço em todas as sociedades, as máquinas aumentam a produtividade do trabalho, garantem o crescimento das riquezas, o mercado de consumo passa por mudanças variadas, consolidando os mercados virtuais, as compras geram novos prazeres e satisfações, criando novas necessidades e aquisições, levando aos indivíduos os sabores do consumo desenfreado.

A tecnologia deve ser vista como uma grande conquista para a civilização, os benefícios devem ser socializados para todas as comunidades, enquanto estes frutos do conhecimento ficarem restritos a pequenos grupos da sociedade, os conflitos tendem a crescer de forma acelerada, gerando pulsões de medos e ressentimentos e, num período posterior podem gerar degradações e violências.

Nesta sociedade, os conflitos estão aumentando, os medos estão se mostrando cada mais evidentes, os grupos sociais estão em confrontos, todos buscando seus interesses imediatos, defendendo seus grupos sociais e esquecendo os interesses maiores da sociedade. Neste momento, muitos grupos sociais carecem de condições mínimas de sobrevivência, o desemprego e o subemprego crescem de forma acelerada, criando uma massa crescente de indignidade, consolidando um caldo de desesperança e de revolta. Numa sociedade, como a brasileira, percebemos que mais de cem milhões de pessoas não possuem saneamento básico, ruas sem asfaltos, água encanada e muito menos acesso a internet, uma coletividade que vive no século XXI mas traz, para seu desespero geral, o atraso e a degradação do século XIX, com isso, os medos contemporâneos alimentam as violências e as desesperanças.

Na pandemia, percebemos a importância da ciência, do conhecimento e da pesquisa, neste momento de medos que consumiram mais de 6 milhões de pessoas na sociedade mundial, um dos maiores aprendizados da sociedade contemporânea foi a união dos cientistas e pesquisadores de inúmeras nacionalidades, que conseguiram responder rapidamente com uma vacina em período recorde de tempo, mostrando a todos a relevância da união de esforços em prol da comunidade.

A pandemia está nos trazendo vários ensinamentos valiosos para a comunidade internacional, dentre elas, destacamos a união dos povos, das comunidades científicas e pesquisadores, viabilizando a vacina e combater os males do coronavírus, um desafio global que exigem dedicação e investimentos de todos os governos, superando este modelo centrado na concorrência e na competição, substituindo por novos paradigmas de cooperação e de auxílios, deixando de lado os interesses mesquinhos e imediatos em prol de uma sociedade mais igualitária, mais civilizada, onde todos os cidadãos possam participar dos frutos do progresso pela tecnologia, transformando os medos contemporâneos e as desesperanças em espaços de esperança e de solidariedade.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia/Unesp, Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 23/12/2020.

Fábricas são escolas produtivas, por Paulo Gala.

0

21/12/2020 Paulo Gala

Entrevista para a revista da Confederação Nacional das Indústrias (CNI)

1) Como você visualiza a política industrial do Brasil?
Erros de política industrial não significam que a política industrial não funciona. O fato de o Brasil não ter conseguido avançar mais no mercado mundial significa apenas que não executou essas políticas de maneira adequada. Eu destacaria: metas de exportação, metas de sofisticação tecnológica e metas de conquista de mercados mundiais. Tudo isso a Ásia do leste fez com maestria. Taiwan, Singapura, Corei do Sul e hoje China. Foram milagres produzidos por políticas industriais bem feitas. No Brasil não conseguimos avançar tanto quanto eles e jogamos a toalha a partir dos anos 90. Abrir mão de políticas industriais significa abrir mão da possibilidade de se desenvolver.

2) Em que medida o sistema financeiro pode potencializar a atividade industrial no país?
O salto de escala e tecnológico das indústrias de países pobres e de renda média não vai ocorrer sem políticas adequadas que recuperem o papel dos bancos públicos como por exemplo o BNDES. A experiência asiática da segunda metade do século XX demonstra que é incontornável a constituição de um sistema financeiro formado pela interação virtuosa entre grandes bancos comerciais públicos e privados. Bancos de desenvolvimento de grande porte são necessários para desenvolver instrumentos financeiros destinados ao crédito de longo prazo. É bastante reconhecida entre economistas a necessidade da intervenção do Estado em processos que envolvam externalidades positivas e negativas, informação assimétrica, incerteza, risco elevado e concentração do poder econômico. Entre as externalidades positivas estão a construção de infraestrutura e outros bens públicos, como a geração de conhecimento científico e tecnológico, papel que muitas vezes cabe ao investimento público e apoio de bancos públicos.

3) Uma das demandas do setor é o prolongamento dos programas emergenciais de financiamento e da política de expansão de crédito. Como você visualiza essa demanda?
A implosão da economia brasileira em 2014 e 2015 arrastou nossa indústria para uma monumental queda até hoje não recuperada. O desaparecimento do crédito e da demanda interna tiveram efeitos diretos e violentos na produção doméstica de carros, motos, caminhões, moveis, eletrodomésticos, bens de consumo em geral, matérias da construção civil, aço, entre outros. Nossa produção industrial colapsou com queda de 20% entre 2014 e 2016; e lá ficou até hoje. Nossa retomada econômica desde então foi muito tênue. O pouco que crescemos foi baseado em serviços de baixa qualidade; novos empregos com salários menores e mais precários foram gerados. O pouco nível de proteção que ainda existe para nossa indústria nacional também não resolveu o problema. O auxílio de emergência somado a uma taxa de câmbio mais desvalorizada e juros SELIC na mínima trouxeram novas perspectivas. A transferência de renda via auxílio de emergência representará algo como 6% do PIB, com transbordamento de demanda para indústria. A SELIC em mínima histórica e juros reais negativos trouxeram importante impulso ao setor de construção civil que aumentou a demanda por bens industriais. A taxa de câmbio acima de R$5 aumento muito a competividade de nossa produção
industrial aqui e lá fora. Tudo isso deveria ser mantido em 2021, claro que com níveis menores do auxílio emergencial. Seriam ótimas e novas notícias para o setor. Ainda num contexto de pandemia o BNDES deveria ser usado para assumir riscos que bancos privados não aceitam. Isso ocorreu em parte com o fundo público criado pelo governo para socorrer pequenas e médias empresas, o PRONAMPE. Essas medidas deveriam ser mantidas a meu ver.

4) Você costuma dizer que “a indústria é a escola produtiva da economia”. O que isso significa exatamente?
O conhecimento formal codificado (alfabetização, conhecimento matemático e científico) é importante para adquirir habilidades específicas necessárias à prática profissional. Mas é na prática profissional que o conhecimento do tipo não codificado, que se manifesta no “know-how” embutido em rotinas inconscientes e muitas vezes complexas, é compreendido e internalizado. Isso ocorre em geral no setor manufatureiro e de serviços complexos atrelados. A indústria converte o capital humano aprendido nas escolas em produtos e serviços de alto valor agregado. Estudos da OCDE mostram que de todos os setores de uma economia as manufaturas são sempre os setores que mais gastam em pesquisa e desenvolvimento como proporção de suas vendas e valor adicionado.

5) E como o setor industrial contribui para a formação desse conhecimento?
Embora muitas empresas de países em desenvolvimento possam adquirir máquinas para atividades básicas de produção e contem com razoável disponibilidade de trabalhadores qualificados, falta-lhes a capacidade de produzir novas tecnologias e novas máquinas. Tecnologias essas que demandam um complexo processo de aprendizagem produtiva em empresas que tem marcas e processos proprietários, patentes e know how diferenciado. Esse tipo de dinâmica de inovação e aprendizagem se encontra na maioria das vezes no setor industrial. Países hoje emergentes apenas usam as máquinas, países ricos produzem as máquinas no coração de seus sistemas industriais.

6) Um dos problemas do país é a baixa escolaridade da população. Em que medida reverter esse cenário vai contribuir para o crescimento da produtividade industrial?
É ilusório acreditar que a mera escolarização da população será capaz de elevar a produtividade aos níveis requeridos pela competitividade nos mercados internacionais. A transformação estrutural em tempos de acelerada evolução tecnológica requer uma estratégia de aprendizagem tecnológica eficaz. Para tanto, é preciso identificar os hiatos de conhecimento relevantes em diversas industriais e as políticas que podem ser implementadas de maneira correta para lidar com essas deficiências. Os mercados mundiais para produtos nobres do ponto de vista tecnológicos são naturalmente concentrados. A inovação e o domínio tecnológico criam barreiras à entrada nos mercados, o que por sua vez cria poder de monopólio para as empresas. Existe enorme assimetria no comercio global que não poderá ser apenas compensada com investimento em educação. Políticas públicas precisam ser desenhadas em países emergentes para que se possa nivelar esse campo de jogo inclinado em favor de países hoje desenvolvidos.

7) Qual a relevância da indústria para o desenvolvimento econômico de uma nação?
Desenvolvimento econômico é acúmulo de capital humano, de conhecimento de uma sociedade que se traduz na capacidade de produzir bens e serviços complexos que geram altos lucros e salários. Para isso não basta que um país invista em educação. Precisa cultivar a indústria. O setor industrial é o único capaz de converter o acúmulo de conhecimento em produtos e serviços que geram a riqueza das nações. O processo de desenvolvimento econômico pode ser entendido como uma industrialização rumo a fronteira tecnológica mundial. Os países hoje ricos mantem a produção manufatureira de altíssimo conteúdo tecnológico em seu território junto com serviços empresariais complexos associados a essa produção. Transferem para países pobres as fábricas poluidoras e de baixo valor adicionado. Quando um país enriquece a indústria perde participação absoluta no PIB mas continua enorme em termos absolutos. Países hoje ricos tem a maior produção industrial do mundo tanto em termos absolutos quanto per capita. Não existe desenvolvimento econômico sem um setor industrial pujante.

Home office já tinha vantagens até no século 18

0

Mesmo com poucos dados da época, é possível perceber que existem paralelos surpreendentes com os dias de hoje
The Economist, O Estado de S. Paulo / 20 de dezembro de 2020

Sally Brown, que nasceu em Vermont no início dos anos 1800, tinha uma rotina típica para uma trabalhadora da época.

Como mostra seu diário, um dia ela está terminando de fazer as meias; no outro, está ordenhando a vaca; no terceiro, tecendo lã. Todos os seus trabalhos eram feitos em casa.

A mudança dos escritórios para as mesas de cozinha das casas dos trabalhadores de colarinho branco em 2020 parece não ter precedentes e só foi possível com o Slack e o Zoom. Mas não é nada novo. Na verdade, a história do trabalho de casa sugere alguns paralelos surpreendentes com os dias de hoje.

O surgimento do capitalismo na Grã-Bretanha e em outros lugares de 1600 a meados do século 19 não ocorreu fundamentalmente nas fábricas, mas, sim, nas casas das pessoas. Em suas cozinhas ou quartos os trabalhadores faziam de tudo, de vestidos a sapatos e caixas de fósforos.

Quando Adam Smith escreveu A Riqueza das Nações em 1776 era perfeitamente comum trabalhar em casa. Smith descreveu a famosa operação da divisão do trabalho na fabricação de alfinetes, não em algum moinho escuro e infernal. Ele falou sobre uma “pequena manufatura” de umas dez pessoas – que poderia muito bem estar dentro ou anexada à casa de alguém.

Não é fácil estabelecer números exatos de quantas pessoas trabalharam em casa durante os diferentes períodos históricos. Até mesmo na Grã-Bretanha, onde os dados econômicos são mais extensos que em qualquer outro país, existem poucos dados confiáveis sobre a força de trabalho até meados do século 19. Mas outras fontes deixaram algumas pistas. Uma delas diz respeito ao significado da palavra house (casa, em inglês).

Hoje, o termo conota domesticidade. Mas, até o século 19, tinha uma definição muito mais ampla, com o sufixo – house abrangendo também a produção econômica. Em Uma Canção de Natal”, Scrooge trabalha numa counting-house, ou seja, uma “casa de contabilidade”. A arquitetura oferece outras dicas. Na Grã-Bretanha, muitas casas do século 18 ainda têm as janelas do andar superior excepcionalmente grandes, porque os tecelões que trabalhavam nesses espaços precisavam do máximo de luz possível.

Por volta de 1900, administradores franceses tomaram a iniciativa de perguntar às pessoas sobre seu local de trabalho, não apenas sobre o que faziam. Eles descobriram que um terço da força de trabalho industrial da França trabalhava em casa. Pesquisas dinamarquesas da mesma época revelaram que um décimo da mão de obra total o fazia em casa, em tempo integral.

Esses esforços de pesquisa ocorreram no auge do sistema de produção fabril; nas décadas anteriores, a parcela de trabalho realizado em casa deve ter sido muito maior. De acordo com uma estimativa feita para os Estados Unidos, a partir de dados oficiais, mais de 40% da mão de obra total trabalhava em casa no início do século 19. Somente em 1914 a maioria da força de trabalho passou a trabalhar em fábricas ou escritórios.

O surgimento dessa mão de obra industrial trabalhando de casa teve duas causas principais. O crescimento do comércio global e o aumento da renda per capita a partir de 1600 aumentaram a demanda por produtos manufaturados, como lãs e relógios. Mas a nova tecnologia emergente era mais adequada para o trabalho em pequena escala do que para as fábricas de grande escala (o tear jenny, a máquina que disparou a revolução industrial, só foi inventada na década de 1760). As casas eram o lugar óbvio para se estar.

O que surgiu foi chamado de “sistema putting-out”, ou sistema de produção domiciliar. Os trabalhadores retiravam matérias-primas e, às vezes, equipamentos de um depósito central. Eles voltavam para casa e produziam as mercadorias por alguns dias, antes de devolver os artigos prontos e receber o pagamento. Os trabalhadores eram contratados independentes: recebiam por peça, não por hora, e tinham pouca ou nenhuma garantia de trabalho de uma semana a outra.

Os relatos de como era trabalhar em casa nos séculos 18 e 19 são poucos e esparsos. Boa parte da força de trabalho do sistema putting-out era constituída por mulheres, que tinham menos chance de escrever autobiografias (o predomínio de mulheres no sistema putting-out também explica por que gerações de historiadores não lhe deram muita atenção).

Apesar disso, algumas características emergem dos arquivos. A jornada média de trabalho era mais longa. Ao contrário dos dias de hoje, quando a maioria das pessoas tem emprego, as pessoas saltavam de um trabalho a outro, dependendo de onde podiam ganhar dinheiro, como Sally Brown.

Com os dedos cansados e feridos

Alguns historiadores da economia sugerem que os trabalhadores eram impiedosamente explorados sob o sistema putting-out. Aqueles que possuíam as máquinas e matérias-primas gozavam de enorme poder sobre seus empregados. Com os trabalhadores espalhados por todo um condado, era difícil que eles se unissem contra patrões exploradores para exigir melhores salários – quanto mais formar sindicatos.

Os chefes “podiam facilmente se unir contra o fiador, que enfrentava uma oferta de trabalho do tipo pegar-ou-largar”, argumentam Jane Humphries e Ben Schneider, da Universidade de Oxford, em um artigo de 2019. Alguns trabalhadores realmente enfrentaram dificuldades. O poema de Thomas Hood “The Song of the Shirt” evoca uma trabalhadora que labuta na pobreza.

Como resultado, alguns historiadores aplaudem o desenvolvimento do sistema fabril a partir do final do século 18. Os trabalhadores se mudaram de um lugar onde a vida doméstica se misturava livremente à produção econômica para um lugar exclusivamente dedicado à busca da eficiência.

Não é de surpreender que a produtividade do trabalho fosse mais alta na fábrica, nem que o sistema fabril aos poucos tenha superado e substituído o sistema putting-out. Amontoados na fábrica, os trabalhadores podiam se juntar para pedir salários mais altos; e os sindicatos começaram a crescer a partir da década de 1850. Segundo dados ingleses, os trabalhadores fabris recebiam de 10 a 20% mais do que os trabalhadores que trabalhavam em casa.

Mas a história não para por aí. Alguns trabalhadores que trabalhavam em casa resistiram à mudança para o sistema fabril – sobretudo se unindo aos Luditas, uma sociedade de trabalhadores têxteis ingleses do século 19 que destruíam máquinas, pois sentiam que elas estavam tomando seu trabalho. Outra explicação é que os proprietários das fábricas, pelo menos no curto prazo, tiveram pouca opção a não ser oferecer salários mais altos para atrair os trabalhadores de suas casas. Isto sugere que trabalhar em casa tinha suas vantagens.

Uma dessas vantagens era econômica. Os trabalhadores que trabalhavam em casa talvez recebessem menos que os trabalhadores fabris, mas podiam ganhar renda por outros meios. Os trabalhadores de casa da indústria de lã recebiam uma determinada quantidade de matéria-prima e precisavam devolver o mesmo peso do material transformado em meias. Mas, ao expor a lã ao vapor, ela pesava mais, permitindo que os trabalhadores ficassem com uma parte da matéria-prima.

Esta não era a única vantagem. Trabalhadores que trabalhavam em casa nas áreas rurais ou semirrurais podiam obter lenha e alimentos e, assim, aumentar suas rendas escassas. Em 1813, um observador notou, com desdém, que as mulheres em Surrey, condado próximo a Londres, ganhavam 3 xelins por semana lavrando brejos para fazer vassouras – “produções miseráveis e empregos sem valor”, em sua opinião. Mas 3 xelins por semana não estava muito longe da média de ganhos femininos na época.

Os trabalhadores que trabalhavam em casa também tinham mais controle sobre seu tempo. Contanto que o trabalho fosse realizado de acordo com o padrão exigido e dentro do prazo, eles não eram obrigados a fazê-lo de determinada maneira. Isto contrastava fortemente com a fábrica, onde cada aspecto da vida era planejado com antecedência e os trabalhadores eram monitorados de perto.

E os trabalhadores de casa podiam decidir a combinação exata entre trabalho e lazer – em contraste com os trabalhadores fabris, que ou trabalhavam as jornadas de 12 ou 14 horas estipuladas pelo proprietário da fábrica, ou não tinham trabalho nenhum. A jornada de trabalho média no século 18 era mais curta do que viria a ser no século 19. Depois de beber um tanto na noite de domingo, os trabalhadores domésticos muitas vezes tiravam o dia de folga antes de voltarem “relutantemente ao trabalho na terça-feira, aquecerem-se para a labuta na quarta-feira e trabalharem furiosamente na quinta e na sexta-feira”, como escreveu David Landes, historiador da economia da Universidade de Harvard. As pessoas também dormiam mais.

Essa maior autonomia era especialmente importante para as mães. Num mundo em que os homens pouco faziam no trabalho familiar, as mulheres podiam combinar o cuidado dos filhos com a contribuição para a renda da família. Não era nada fácil. Às vezes, as mulheres davam a seus bebês o Godfrey’s Cordial, uma mistura de xarope de açúcar e láudano, para deixá-los desacordados por um tempo. Mas trabalhar de casa possibilitava conciliar o trabalho remunerado com o trabalho familiar de uma forma que o sistema fabril não permitia. Com a expansão das fábricas, a participação feminina na força de trabalho caiu.

Em 1920, o sociólogo alemão Max Weber argumentou que a separação do trabalhador de sua casa teve consequências de “alcance extraordinário”. A fábrica era mais eficiente que o sistema doméstico que a precedeu – mas também era um espaço em que os trabalhadores tinham menos controle sobre suas vidas e onde se divertiam muito menos. Dependendo de quão permanente seja, a mudança de volta para casa induzida pela pandemia de hoje pode ter efeitos de longo alcance semelhantes. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

O lucro das grandes S.A. e o interesse público, por Celso Ming.

0

Cada vez mais grandes corporações maximizam seus lucros operando contra o interesse público e contra o interesse do consumidor

Estado de São Paulo, 20/12/2020

Os governos dos países mais avançados economicamente estão assustados com o crescimento do poder econômico e político das big techs.

Elas não apenas produzem lucros impressionantes, como, também, controlam praticamente metade da população mundial.

Sabem tudo sobre os hábitos de cada um, o que veste, o que come, o que faz nas horas de trabalho ou de lazer, qual orientação política segue e, obviamente, o que pretende comprar. E como esse controle vale muito dinheiro, somam mais riquezas às muitas que já possuem.

Além disso, manobram para acabar com a concorrência, desestimulam o desenvolvimento de outras empresas que rodeiam seu terreiro, pagam o mínimo de impostos onde atuam e contratam os melhores escritórios de advocacia para enfrentar qualquer pendenga judicial…

Há duas semanas, o mais prestigiado colunista econômico do mundo, o inglês Martin Wolf, do Financial Times, escreveu artigo em que demonstra que um dos maiores economistas do século 20, o norte-americano Milton Friedman, da Universidade de Chicago, estava totalmente equivocado quando em publicação de 1970 escreveu que “a responsabilidade social da empresa consiste em aumentar seus lucros”.

O ponto de vista de Friedman é o de que os bons lucros são as melhores indicações de que uma empresa atende ao interesse público. Se vende mais e lucra mais é porque responde adequadamente às necessidades do consumidor. Se deixasse de suprir o consumidor, seus produtos ou serviços encalhariam, a empresa deixaria de faturar e acabaria por ser alijada do mercado. Ela só tem de respeitar os reguladores e os contratos e seguir apresentando resultados para seus acionistas.

Martin Wolf aponta para outra direção. E, para isso, se apoia num livro recente publicado por Stigler Center (Milton Friedman, 50 years later), no qual fica demonstrado que as grandes empresas aumentam, sim, cada vez mais seus lucros, mas operam contra o interesse público e contra o interesse do consumidor.

Apenas em reforço ao que ficou dito acima, elas destroem o ambiente competitivo; ganham enormes economias de escala e, nessas condições, impõem seus preços; têm acesso às fontes mais baratas de capital; fogem o quanto podem do recolhimento de tributos e das regulações, na medida em que transferem suas sedes para paraísos fiscais, contratam os melhores especialistas em administração tributária e impõem cláusulas draconianas nos seus contratos.

Ainda passaram a ter importante controle sobre as regras do jogo, ao passo em que lobbies poderosos trabalham para moldar as leis e regulamentações a seu favor. E, porque contribuem copiosamente para financiamentos de campanha ou conseguem corromper funcionários públicos, passam a ter imenso poder político.

Se estivesse vivo, muito provavelmente Milton Friedman acabaria por rever sua tese que tanto impacto teve nos empresários. Mas dificilmente apresentaria recomendações de fácil implantação para mudar as regras desse jogo desigual, que eleva as grandes corporações para níveis que pairam acima do bem e do mal.

Na teoria, a proposta para começar a virar esse jogo talvez não esteja tão distante. Trata-se de levar os Estados a exercer o controle sobre essas fontes de poder que tendem a sabotar a própria capacidade de governar.

O problema é que nenhum governo sozinho seria capaz de impor suas condições. Antes mesmo da crise de 2008, as grandes corporações financeiras fizeram o diabo com as aplicações dos seus clientes, sem que nenhum organismo regulador interviesse nas pirâmides financeiras que empobreceram as classes médias. Até agora, nenhum país conseguiu cobrar impostos sobre as operações das gigantes de tecnologia.

Há anos, o G-20 tenta um acordo mínimo sobre a tributação desses capitais colossais, mas não consegue avançar. Os países são, por exemplo, contra a existência e a atuação dos paraísos fiscais dos outros países, mas não contra as de seus próprios. Os Estados Unidos não aceitam a taxação de suas big techs, pois entendem que invadiria seu próprio espaço tributário.

Ou seja, enquanto não houver amplo acordo entre governos, parece improvável que essas S.A., as gigantescas corporações e outras mais, possam ser controladas pelo poder público.

CELSO MING É COMENTARISTA DE ECONOMIA

Educação: a aposta radical do oficinar, por Antonio Lafuente

0

Outras Palavras, 11/12/2020.

Contra a alienação do ensino taylorista, surgem dinâmicas que buscam valorizar múltiplos saberes, desierarquizá-los e quebrar fronteiras entre eles. Mas há riscos: superficialidade, performismo e menosprezo pela reflexão e pela crítica

Taylorizar um projeto supõe separá-lo em tantas partes quanto possível e, em seguida, designar a elas uma posição em uma cadeia de eventos sucessivos e, paralelamente, em outra cadeia de valor. Assim, cada fragmento tem sua hierarquia, seu responsável e seu momento em uma cadeia de produção e reprodução. Taylorizar é colocar cada um em seu lugar e criar um lugar para cada um. A finalidade de tudo é melhorar a eficiência do sistema e aproveitar melhor os tempos. Não importam as habilidades dos integrantes da cadeia porque, ao serem separadas as funções, basta que seja cumprida aquela que lhe foi designada. Nada é híbrido (mistura de culturas), aleatório (deixado à improvisação) ou insuficiente (aberto à adaptação). Tudo deve se encaixar em uma cadeia de causas-efeitos que funcione sem conflitos, sem ajustes, sem equívocos. Tudo deve ficar no nível de máxima operacionalidade.

A taylorização cria especialistas programados, funções fixas, margens vigiadas, concepções próprias, práticas submissas e culturas fechadas. Em oposição à taylorização estão as iniciativas hacker, os arranjos do bricoleur, os protótipos abertos, os coletivos amadores, os hábitos populares e todas essas formas de codificar o conhecimento dividido que implicam em truques, artimanhas e improvisações. Os espaços DIY [do it yourself, ou “faça você mesmo”], os movimentos táticos, os projetos makers ou os grupos de amantes das plantas, a cozinha e o patchwork, todos em seu conjunto, encarnam e mobilizam uma cultura que quer ser diferente. Uma cultura que é contra-hegemônica e que quer ser chamada de radical.

Contra-hegemônica e radical, mas não necessariamente esquerdista. Capaz de visualizar outro mundo possível, mas crítica com a ideia de que a divisão nas classes possa explicar todos os conflitos que enfrentamos. Radical porque aponta para todas as direções e contra todas as dicotomias que criam falsos e desnecessários lugares de passagem entre fronteiras imaginárias. Radical porque os rompimentos entre antigo e moderno, entre funcional e obsoleto, entre velho e jovem ou entre passado e futuro são tão artificiais quanto interessados no serviço de um mundo que vê empecilhos em tudo o que não pode instrumentalizar sem descanso. E junto com as formas mencionadas de territorializar o tempo, também há outras maneiras de habitar a urbe que levam a negar a pertinência dessas dicotomias que querem uma tensão extrema entre o privado e público, entre a tecnologia e o artesanato, entre o amador e o profissional ou entre a produção e a reprodução. Combater esses encerramentos da inteligência e da vida é apostar no radical, sem a necessidade de ser esquerdista, sem necessidade de colocar todos os ovos na mesma cesta ou, em outras palavras, sendo um pouco mais pós-moderno e um pouco menos universal.

Temos que distinguir entre taylorização e granularização. Fragmentar os projetos em partes é atribuir ao seu desenvolvimento etapas intermediárias a serem alcançadas. Há muita sabedoria em construir os projetos para que uma sequência de pequenas metas intermediárias estimule sua continuidade, aproveitando assim essa condição evolutiva do cérebro que premia essas simples vitórias com liberações de endorfina. A fragmentação então é uma estratégia que coloca os atores em primeiro plano, tanto porque é uma forma de fazer seu trabalho de maneira mais agradável e produtiva, como também porque é uma garantia de hospitalidade a quem possa se interessar pelo que fazemos. A descomposição em fragmentos dos projetos favorece a incorporação de interessados, tanto os que têm muito tempo, quanto os que apenas podem desviar algum momento esporádico e intermitente. Os projetos granulares criam espaços comuns, os taylorizados destroem a comunidade. A taylorização é um gesto vertical, autoritário, arrogante e fechado: se antepõe ao rendimento, nega a participação, ignora as “outras“ habilidades do trabalhador e é, em consequência, duplamente alienante, pois separa o trabalhador do fruto de seu trabalho, além de separá-lo também de suas habilidades cognitivas.

A taylorização do trabalho favorece sua mercantilização e nos transforma em dispensáveis, contingentes e dóceis. É a estrada que conduz à precarização. É a estrutura que confunde as organizações com seu organograma e que faz do trabalhador um escravo da máquina. Taylorizar a cultura é transformá-la em informação para que logo o mercado a transforme em um recurso. E aqui cabe, tomara que não aconteça tão logo, perguntar quem ganha e quem perde cada vez que tais dispositivos se mobilizam. Se você considerar o lado mau da equação, nunca encontrará respostas suficientemente satisfatórias. Se considerar o outro, não deveria descansar em paz. Por isso precisamos de mais conceitos para incluir no repertório de instrumentos com os quais podemos entender e mudar o mundo. Temos que aprender a trabalhar no modo oficina.

Oficinar a cultura ou a educação implica em suspeitar de todas as tentativas de descompor o aprendizado em seções, níveis, objetivos, provas e qualificações. Também supõe discutir a divisão por disciplinas, áreas, matérias ou conhecimentos. E, desde cedo, desrespeitar essas fronteiras que querem separar o formal do informal, ou o acadêmico do urbano, o objetivo do político, o tecnológico do artesanal e o cultural do científico. Nenhum estudo confiável que tenha se aproximado o suficiente dessas divisões deixou de nos explicar as muitas formas de atravessá-las, especialmente pelas pessoas que são seus vizinhos e que as suportam. Oficinar a educação implica então em apostar em outros modos de fazer com que seja diminuída a distância entre o que se ensina e o que se aprende, entre o que chamamos de saber e o que entendemos por fazer, entre ser original e ser um bom DJ, entre produzir e compartilhar, entre argumentar e visualizar. A oficina parece o instrumento adequado para a implementação do design thinking ou é o caminho necessário das palavras aos atos, o que é o mesmo que dizer que se configura como um excelente recurso para promover uma cultura socialmente colaborativa, juridicamente aberta, politicamente radical e epistemicamente plural. Sim, oficinar a educação é uma forma de “hackeá-la”.

Temos confiado tanto em seminários, simpósios ou congressos que nos surpreende sua ampla ascendência e seu rápido envelhecimento. É inevitável que acabem sendo a expressão genuína de uma cultura elitista e entediante. A oficina, o festival e a unconference continuam crescendo como formas mais abertas e praticáveis de troca de experiências e conhecimentos. Não se trata de mudar as palavras, mas as culturas. Ninguém mais quer escutar brilhantes ladainhas. Não se trata de se misturar com os mais inteligentes, mas de inaugurar outros processos. Não tem mais mérito quem sabe mais, mas quem mais (se) oferece. Não se trata de esclarecer, desvendar ou revelar nada, mas de escutarmos, dividirmos e cuidarmos. O mérito não é de quem assina primeiro, mas de quem cuida melhor. E cuidar é fazer as coisas juntos. A oficina é o novo espaço que precisamos? Será a oficina o lugar da crítica?

A cultura deve ser crítica. A cultura deve resistir a qualquer precipitação e estar atenta às muitas tentativas de simplificação. Ser crítico implica não se resignar aos modelos reducionistas. Ser culto não é saber fazer as coisas. Não basta dispor de um livro de receitas a partir do qual resolver (nossos) problemas. A cultura não deve ser só funcional. Melhor que o seja, mas não é suficiente. Para ser culto não basta mapear os problemas, os territórios ou os conflitos de forma verossímil, contrastada e normalizada. Ser culto não é o mesmo que ser científico. Uma cultura é crítica quando sabe medir as consequências das coisas. Uma pessoa culta sabe ver a face oculta da Lua. Não se contenta com as realizações, também quer avaliar os danos colaterais. Uma pessoa culta sabe que é impossível iluminar um objeto sem criar uma sombra. Uma pessoa crítica sabe que na sombra se acumula muita dor, muita exclusão e muita mentira criadas com o mesmo gesto que buscava a felicidade, a democracia e a justiça. Não há uma sem a outra e, portanto, não há cultura sem contracultura.

A oficina tem seus monstros: o imperativo do oficinismo e o mal da oficinite. Há pouco tempo, senti essa consequência que impõe um só modo de compartilhar conhecimento: o oficinismo. O oficinismo tem fácil explicação. Consiste em admitir que na sala de aula se vai desenhar, discutir, compartilhar ou trocar receitas. Tudo o que não cabe em uma receita é especulativo, discursivo, unidirecional e antigo. Temos que falar de coisas práticas, rápidas, replicáveis e divertidas. Sem uma apresentação na tela, um pacote de post-its coloridos, um momento de trabalho em círculo e algum contraste dramatizado de critérios, os conteúdos ficarão obsoletos, suas aulas serão interrompidas e os professores perderão o direito à cidade. Educar é ensinar, mas aprender junto. E aprender poderia se transformar em acumular habilidades: cultivar plantas, tocar piano, trocar conteúdos, recodificar algoritmos, narrar histórias e percorrer o mundo. Bonito sonho, e necessário.

Recapitulemos um instante. No modo oficina, o professor já não se imagina como docente, mas como um facilitador, mediador, treinador, acompanhante… Um coach, dizem as escolas de negócios. Para realizar um seminário, é preciso conhecer muito sobre o tema, mas para abrir uma oficina, é preciso ter outras habilidades, como a de ser versátil, espirituoso e sociável, assim como não exagerar no rigor, não manifestar erudição, não se envolver em virtuosismos dialéticos ou não exigir leituras exageradas. Alguém que trabalha nas oficinas, o oficinista opera como uma espécie de cola social e é o artista da sociabilidade. Conforme a maneira como o vemos, dependendo de onde o consideramos, o oficinista poderia ser um ator imprescindível, sempre atento ao cuidado dos afetos e efeitos que se mobilizam no espaço da oficina. Se o público já é social entertainment, a oficina poderia se transformar em terapia social. Na oficina, fazemos coisas, mas sobretudo as fazemos juntos e isso parece acalmar a ansiedade de muitos. Me parece que não é suficiente e que falta alguma coisa. Falta alguma coisa?

No modelo oficina, se lê pouco e com pressa. Se discute menos do que se fala. O objetivo não é problematizar nossos conceitos, nossas práticas, nossos códigos ou nossas tecnologias. O objetivo é adequá-los rapidamente e transformá-los em um tutorial. Sempre há muita documentação. Tudo deve ser registrado e postado na rede. O esforço documental é admirável e ensina o caminho a uma cultura mais aberta e participativa. Sempre há uma infinidade de fotos, vídeos, desenhos, mapas mentais e outros trabalhos manuais. Em uma oficina, sempre há tempo para criar, processar e pós-produzir resultados. Todos fazem tudo. Não há divisão especializada do trabalho. Há um preço a ser pago por tudo isso, pois o modo oficina consome muito tempo e, consequentemente, os processos que ele inicia devem ser concentrados e curtos. Enfim, não há tempo para tentativas, o incerto ou o imperfeito.

Em sua forma mais paródica, as oficinas são um espaço de estagnação, onde se forma gente obediente e conformista: exploradores de salão, não de campo; cozinheiros de domingo, não diários; redatores de críticas, não leitores. Engrandecer uma receita supõe implementar práticas móveis entre diferentes domínios do saber, pois implica em contrastar experiências, estabelecer termos ou trabalhar colaborativamente. Entretanto, destacar-se exige um compromisso de maiores riscos como, por exemplo, aceitar que a verdade certamente estará bastante dividida e que todos, incluindo os que creem ter razão, devem renunciar a sua imposição. Não se trata de convencer, mas de conviver: fazer o possível para a vida em comum. O gesto crítico implica escutar pontos de vista muito diferentes e, fugindo do consenso que sempre foi a forma na qual as maiorias se impuseram frente às minorias, construir narrativas que não sejam alérgicas ao frágil, ao contraditório, ao dividido e, enfim, ao plural. Ser crítico é criar mecanismos que evitem a produção de mais excluídos, mais minorias, mais periferias, mais invisíveis… Os muitos arredores com os quais convivemos.

Se a taylorização nos fez eficientes e alienados, a oficinização poderia nos fazer funcionais e estúpidos. E a essa nova doença poderíamos chamar de oficinite. Sofrem dessa doença as pessoas que já não confiam nas tradições dialógicas e que fogem das tensões, dos interstícios e das sombras.

ANTONIO LAFUENTE
Físico, pesquisador do Centro de Ciências Humanas e Sociais do Conselho Superior de Investigações Científicas (CSIC) da Espanha, na área de estudos da ciência. Seu interesse pela relação entre tecnologia, patrimônio e bens comuns desembocou nos laboratórios cidadãos, na inovação social e na cultura do prototipado.

O fundamentalismo de mercado, por Robert Reich

0

Para reverter a desigualdade, precisamos desconstruir o mito do “livre mercado”
Como pôde um punhado considerável de bilionários – cujas vastas fortunas se multiplicaram mesmo durante a pandemia – convencer a vasta maioria do público de que sua riqueza não deve ser taxada para sustentar o bem comum?
Eles empregaram um dos mais antigos métodos usados pelos mais ricos para manter a riqueza e o poder – um sistema de crenças em que a riqueza e o poder nas mãos de poucos aparecem como natural e inevitável.

Séculos atrás, ele era o dito “direito divino dos reis”. O rei James I da Inglaterra e o rei Luís XIV da França, dentre outros monarcas, asseguravam que os reis recebiam sua autoridade de Deus e, portanto, não deviam prestar contas a seus súditos terrenos. Essa doutrina viu seu fim com a Revolução Gloriosa do século XVII e com as Revoluções Americana e Francesa do século XVIII.

Seu equivalente moderno pode ser chamado de “fundamentalismo de mercado”, uma crença que tem sido promovida pelos super ricos de hoje com o mesmo entusiasmo que a velha aristocracia tinha pelo seu direito divino. De acordo com ela, o que você recebe é simplesmente uma medida do que você vale em dinheiro.

Se você acumula um bilhão de dólares, certamente o mereceu, pois tal quantia foi um prêmio recebido do mercado. Se você mal sobrevive, a culpa é toda sua. Se milhões de pessoas estão desempregadas ou se seus salários estão encolhendo, ou elas têm que ter dois ou três empregos e não possuem a menor ideia do que receberão no mês seguinte ou, até mesmo, na próxima semana, é uma pena, mas este é o resultado das forças do mercado.

Essa visão predominante é absolutamente falsa. Um “livre mercado” não pode existir sem um governo. Um mercado – qualquer mercado – precisa de um governo para criar e garantir as regras do jogo. Na maioria das democracias, tais regras emanam das legislaturas, das agências e cortes administrativas. O governo não “interfere” no “livre mercado”. Ele cria e mantém o mercado.

As regras do mercado não são neutras nem universais. Elas parcialmente refletem as normas e os valores da sociedade. Elas também refletem quem, na sociedade, tem o maior poder de criar ou influenciar as regras tácitas do mercado.

O debate interminável sobre se o “livre mercado” é melhor do que o “governo” torna impossível o exame de quem exerce tal poder, como eles se beneficiam disso e se tais regras devem ser alteradas para que mais pessoas se beneficiem delas. O mito do fundamentalismo de mercado é, portanto, extremamente útil àqueles que não querem que tal exame seja realizado.

Não é nenhum acidente que aqueles com influência desproporcional sobre as regras do mercado – que são os maiores beneficiários da criação e adaptação destas regras – também são aqueles que apoiam de forma mais veemente o “livre mercado”, e são os mais fervorosos defensores da superioridade relativa do mercado sobre o governo.

O debate mercado vs. governo serve apenas para distrair o público da realidade subterrânea de como as regras são geradas e alteradas, do poder nos interesses dos endinheirados sobre este processo, e a extensão de seus ganhos resultantes disso. Em outras palavras, estes defensores do “livre mercado” não apenas querem que o público concorde com eles acercada superioridade do mercado, mas também sobre a importância central do debate interminável sobre quem – o mercado ou o governo – deve prevalecer.

É por isso que é tão importante expor a estrutura subjacente ao dito “livre mercado” e mostrar como e onde o poder se exerce sobre ele.

Desigualdades de renda, de riqueza e de poder político continuam a aumentar em todas as economias avançadas. Essa não é a única realidade possível. Mas para revertê-la, precisamos de um público informado capaz de ver através das mitologias que protegem e preservam os super ricos de hoje, assim como o Direito Divino dos Reis de séculos atrás.
*Robert Reich é professor de políticas públicas na Universidade da Califórnia-Berkeley. Foi Secretário do Trabalho dos Estados Unidos durante os governos de Bill Clinton (1993-1997).

“Moralmente, não estávamos preparados para esta pandemia”, afirma Michael Sandel.

0

IHU, 16/12/2020

Michael Sandel tem muito a dizer e sabe como dizer. Professor de filosofia política na Universidade Harvard, sua condição de intelectual não o impede de ser um rockestar do pensamento contemporâneo: suas aulas são televisionadas, enche estádios, as pessoas fazem filas para o escutar.

A reportagem é de Elba Astorga, publicada por Telos, 14-12-2020. A tradução é do Cepat.

Sua mensagem não é complacente, há tempo está preocupado com as armadilhas da meritocracia: a globalização, o pensamento neoliberal, a tecnocracia. Seu ideário filosófico se baseia na consecução do bem comum: esse ponto onde confluem pessoas de todas as classes, todas as raças, todos os níveis de formação e o resultado (ideal) é a melhora de todos. Não se trata de uma busca romântica de igualdade, mas do interesse genuíno em que o conjunto da sociedade seja capaz de apreciar a diferença entre valor social e valor econômico.

Sandel participou da II edição do Fórum Telos, organizado pela Fundação Telefónica. Desta vez não encheu auditórios, mas pudemos vê-lo e escutá-lo através da tela, como se falasse só para nós. A mensagem é alta, clara, direta: é preciso valorizar as pessoas pela contribuição que fazem ao bem comum.

Solidariedade e pandemia

“Moralmente, não estávamos preparados para esta pandemia”, afirma Sandel. É que esses meses de emergência sanitária manifestaram a tremenda desigualdade econômica que ocorreu nas últimas décadas.

Esta lacuna, unida à produzida pela meritocracia, parece ter fechado os “vencedores” da corrida pelo mérito em uma bolha que invisibiliza aqueles que estão passando mal e torna a solidariedade um deus menor no panteão do capitalismo neoliberal. Daí a acusação de Sandel da perda dos princípios morais necessários para enfrentar esta pandemia.

Lamenta também que durante estes meses os famosos do mundo, de políticos a celebridades, lançaram uma mensagem perfeita como #hashtag em qualquer rede social: “Estamos juntos nisto”, uma frase que soa reconfortante para os ouvidos de qualquer um, mas que, quando se analisa um pouco, revela-se vazia de conteúdo, pois não descreve a sociedade atual, tão desigual e indiferente.

Ainda em março, nos primeiros meses deste choque global, a outra versão que circulava era: “estamos todos no mesmo barco”, que também soava legal até que alguém apontou, “no mesmo barco não, estamos todos no mesmo mar, mas uns vão de iate, outros em lancha, outros em barco”. E também existem aqueles que vão segurando em uma tábua, podemos acrescentar. É dessa desigualdade que Sandel fala.

Pode ser que o exemplo mais patente da desigualdade, nestes meses distópicos de 2020, tenha sido a divisão do trabalho. A grande distância entre aqueles que podem conservar seu emprego e trabalhar de casa, sem exposição, nem risco, e os que pela natureza de suas funções não tiveram outra opção a não ser ir para a rua e se expor ao vírus (e os que ficaram sem trabalho). Sendo assim, esse yin-yang perverso de vencedores-perdedores econômicos se tornou agora mais real e evidente.

A questão é que, segundo Sandel, neste tempo, vimos que sem profissionais da saúde, trabalhadores industriais, entregadores, repositores, assistentes, caminhoneiros e muitos outros saindo de suas casas para trabalhar, a vida em uma cidade, de um país, pode parar. O paradoxo é que, além de geralmente não ser bem remunerados, esses trabalhos são pouco reconhecidos. E agora ocorre que são essenciais.

Talento, ajuda e sorte

É aqui que nos deparamos com a última pedrinha que Sandel colocou em nossos sapatos: suas dúvidas acerca da idoneidade da meritocracia como método para estabelecer uma escala de valor social, sua certeza de que a meritocracia “é corrosiva para o bem comum”. De fato, é o tema central de seu último livro: A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum? (Civilização Brasileira, 2020).

A meritocracia parte da ideia de que, em igualdade de condições, os que triunfam são os melhores. Soa tão atrativa que, durante anos, partidos de diferentes tipos, em diferentes países, a tornaram parte de seu projeto.

Para Sandel, o problema está em que ninguém coloca em dúvida a promessa de que “se você se esforça, terá êxito”. E, assim, os que triunfam acreditam que é porque conseguiram sozinhos e merecem todas as recompensas recebidas, ao passo que os que ficam para trás se dizem: “Não fui capaz, sou um fracasso”. Estas crenças geram arrogância em alguns, desmoralização em outros, e contribuem para a indignação e a rejeição às elites meritocráticas.

Sandel aprofunda os fatores para o êxito que a meritocracia não vê: além do talento, também contam (e como!), a ajuda, a sorte. É realmente coisa de quem triunfa que possua os talentos que a sociedade valoriza e premia, ou é questão de boa sorte? E o que há de dívida com aqueles que o ajudam, com sua família, seus amigos, a comunidade e inclusive a época em que vive?

Sua impressão é que seria necessário refletir sobre o papel da sorte e a ajuda recebida no êxito pessoal para poder olhar para os menos afortunados e pensar: “Se não fosse por meu direito de nascimento, pela graça de Deus ou pela simples sorte, eu poderia estar aí”. Seria uma boa maneira para neutralizar a atitude tóxica em direção ao êxito da sociedade atual.

Incertezas Econômicas

0

A sociedade mundial vem passando por momentos de grandes inquietações e incertezas em decorrência da pandemia, os desafios são gigantes e exigem líderes capacitados para compreender o momento que estamos vivendo e que consigam repensar as bases da economia e da sociedade. Cabem as lideranças encontrar novas oportunidades e caminhos, construindo esperanças e perspectivas para o futuro imediato. Ao mesmo tempo a pandemia nos mostra que está surgindo uma nova sociedade, a anterior está ficando para trás, precisamos reconstruir a economia em novas bases, criando empregos, melhorando as condições sociais e investindo em uma nova sociedade, vendo as tecnologias como aliadas, abrindo novas possibilidades e criando esperanças.

A economia prescinde de regras claras e de instituições estáveis. Os investimentos produtivos precisam de um ambiente de confiança e de perspectivas positivas. Sem estabilidade não conseguimos despertar o espirito animal dos empresários, como relatado pelo economista austríaco Joseph Schumpeter, cujas contribuições para o desenvolvimento econômico foram fundamentais, mostrando a relevância do empreendedorismo, da inovação e daquilo que chamou de destruição criadora, um momento dinâmico onde novos paradigmas superam estruturas ultrapassadas, destruindo negócios e criando novas oportunidades.

Neste momento, percebemos que as incertezas crescem em todos os países. Os indicadores negativos pressionam os governos e os mercados, de um lado, percebemos as dificuldades da pandemia e, de outro lado, vislumbramos a degradação dos indicadores sociais. Diante deste momento precisamos construir novos consensos, fortalecendo a economia e as estruturas produtivas, criando estabilidade e confiança, sem elas não teremos investimentos produtivos, incremento do desemprego e aumento da instabilidade política.

A economia brasileira vem apresentando performance medíocre, taxas reduzidas de crescimento econômico, perspectivas de inflação, incremento da dívida pública, aumento das desigualdades, degradação das condições sociais e incrementando a violência urbana. A economia precisa diminuir as incertezas, precisamos construir consensos políticos e estabilidades, sem regras consistentes, sem equilíbrio orçamentário, com inseguranças na condução econômica, dificilmente o país conseguirá galgar novos espaços de crescimento nos próximos anos.

Diante deste cenário de incertezas, marcadas por pandemias e instabilidades, percebemos mudanças inimagináveis, instituições tradicionalmente ortodoxas e críticas dos investimentos estatais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, estão sugerindo novos investimentos governamentais para superar este momento de fragilidades estruturais. Sem os investimentos públicos como alavanca econômica, os custos sociais aumentarão imensamente, gerando impactos políticos e instabilidades, aprofundando os fossos entre as classes sociais.

Os investimentos privados são fundamentais na recuperação econômica, o espírito animal dos empreendedores é imprescindível, para isso, faz-se necessário que o Estado defina uma agenda de prioridades econômicas e políticas. Intervenções devem ser pactuadas, as agendas de emprego são urgentes e emergenciais, cabendo ao Estado definir as políticas públicas dos próximos anos. Sem elas, corremos o risco de mergulharmos numa situação de deflagração social que jamais imaginamos. Neste momento de grandes incertezas e instabilidades, precisamos lembrar o grande mestre o economista Celso Furtado, que numa de suas obras destacou que os grandes problemas brasileiros não são econômicos, como muitos acreditam, mas sim os problemas políticos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia/Unesp, Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 16/12/2020.

Milton Friedman estava errado sobre as corporações, por Martin Wolf.

0

Folha de São Paulo, 09/12/2020.

Mas como H.L. Mencken supostamente disse (embora talvez não o tenha feito), para cada problema complexo existe uma resposta simples, clara e errada

Qual deveria ser o objetivo de uma corporação de negócios? Por muito tempo, a opinião prevalecente, nos países de fala inglesa e, cada vez mais, em outras regiões, foi a defendida pelo economista Milton Friedman em um artigo para o The New York Times, intitulado “a responsabilidade social das empresas é elevar seus lucros”, publicado em setembro de 1970. Eu costumava acreditar nisso, igualmente. Mas estava errado.
O artigo merece ser lido na íntegra. Mas o cerne daquilo que ele defende surge na conclusão:

“Existe uma e apenas uma responsabilidade social para as empresas: usar os recursos de que dispõem e se engajar em atividades concebidas para aumentar seus lucros, desde que respeitem as regras do jogo, ou seja, se engajem em competição livre e aberta, sem trapaça ou fraude”.

As implicações dessa posição são simples e claras. Essa é sua principal virtude. Mas como H.L. Mencken supostamente disse (embora talvez não o tenha feito), “para cada problema complexo existe uma resposta simples, clara e errada”. E a conclusão citada acima é um exemplo poderoso de como isso é verdade.

Passados 50 anos, a doutrina precisa ser reavaliada. Apropriadamente, se considerarmos a conexão entre Friedman e a Universidade de Chicago, o Centro Stigler, da Escola Booth de Administração de Empresas, parte daquela instituição, acaba de publicar um livro eletrônico, “Milton Friedman 50 Years Later”, que contém opiniões variadas a respeito do assunto.

No excelente artigo que conclui o volume, Luigi Zingales, que promoveu o debate, tenta oferecer uma avaliação balanceada. Mas, em minha opinião, sua análise é devastadora. Zingales propõe uma pergunta simples: “Sob que condições é socialmente eficiente que os gestores se concentrem apenas em maximizar o valor para os acionistas?”
A resposta dele tem três pontos. “Primeiro, companhias devem operar em um ambiente competitivo, que definirei como um ambiente no qual as empresas acatam preços e acatam regras. Segundo, não deve haver externalidades (ou o governo precisa ter a capacidade de tratar com perfeição dessas externalidades por meio de regulamentação e tributação). Terceiro, os contratos devem ser completos, no sentido de que todas as contingências relevantes possam ser especificadas no contrato, sem custos”.

É desnecessário dizer que nenhuma dessas condições se aplica. De fato, a existência mesmo das corporações demonstra que não se aplicam. A invenção da corporação permitiu a criação de entidades imensas a fim de explorar as vantagens da economia de escala. E levando em conta essa escala, a ideia de que as empresas acatem preços é absurda. Externalidades, muitas delas de alcance mundial, são onipresentes. E as corporações também existem porque os contratos são incompletos. Se fosse possível escrever contratos que especifiquem todas as eventualidades, a capacidade dos gestores para responder ao inesperado seria redundante. Acima de tudo, as corporações não acatam regras, e sim as fazem. Envolvem-se em jogos na criação de cujas regras elas têm um papel importante, via política.

Minha contribuição para o livro enfatiza esse último ponto, ao questionar o que constituiria um bom “jogo”. Argumento que “seria um jogo no qual as companhias não promoveriam falsa ciência sobre o clima e o meio ambiente; em que companhias não matariam centenas de milhares de pessoas, ao promover o vício em opioides; em que as companhias não fariam lobby por sistemas tributários que permitem que estacionem boa proporção de seus lucros em paraísos fiscais; em que o setor financeiro não faria lobby por regras de capitalização insuficientes que causam imensas crises; em que companhias não fariam lobby para buscar castrar uma política efetiva de defesa da competição; em que companhias não pressionariam vigorosamente contra os esforços para limitar as consequências sociais adversas do trabalho precário; e assim por diante”.

É verdade, como argumentam muitos dos autores que contribuíram para o compêndio, que a corporação por cotas de responsabilidade limitada foi (e continua a ser) uma brilhante inovação. Também é verdade que tornar mais complexos os objetivos corporativos podem ser problemáticos. Assim, quando Steve Kaplan, da Escola Booth, pergunta de que maneira as corporações deveriam calcular as vantagens e desvantagens relativas de muitos objetivos diferentes, ele conta com minha simpatia. De forma semelhante, quando líderes empresariais nos dizem que a partir de agora atenderão às necessidades mais amplas da sociedade, eu me pergunto: primeiro, devo acreditar que o farão? Segundo, devo acreditar que sabem como fazê-lo? E, por fim, quem os elegeu para essa função?

E, no entanto, os problemas que o grave desequilíbrio econômico, social e de poder político inerente à situação atual gera são vastos. Quando a isso, a contribuição de Anat Admati, da Universidade Stanford, é convincente. Ela aponta que as corporações obtiveram muitos direitos políticos e civis mas que não estão sujeitas a obrigações correspondentes. Entre outras coisas, é raro que pessoas sejam responsabilizadas individualmente por crimes corporativos. A Purdue Pharma, agora insolvente, se admitiu culpada por acusações criminais relacionadas à maneira pela qual trabalhou com o medicamento OxyContin, que viciou um número imenso de pessoas. Indivíduos são presos rotineiramente por comerciar drogas ilegais, mas, como ela aponta, “nenhum indivíduo da Purdue foi parar na cadeia”.

O poder corporativo irrestrito vem sendo, além disso, um fator importante para a ascensão do populismo, especialmente o populismo de direita. Considere a maneira pela qual alguém age ao tentar convencer as pessoas a aceitar as ideias econômicas libertárias de Friedman. Em uma democracia dotada de sufrágio universal, a tarefa é realmente difícil. Para vencer, os libertários precisam se aliar aos defensores de outras causas – guerra cultural, racismo, misoginia, nativismo, xenofobia e nacionalismo. Mas boa parte disso acontece, é claro, por baixo dos panos, de forma a permitir que as conexões sejam negadas plausivelmente.

A crise financeira de 2008, e o resgate subsequente àqueles cujo comportamento a causou, tornaram ainda mais difícil vender a ideia de um mercado livre e desregulamentado. Assim, se tornou politicamente essencial para os libertários apostar ainda mais nas causas acessórias. Trump não era a pessoa que eles desejavam: ele é errático e desprovido de princípios, mas é um empreendedor político que parecia um candidato adequado para conquistar a presidência. E ele deu aos libertários o que mais desejavam: desregulamentação e cortes de impostos.
Há muita discussão a realizar sobre como as corporações deveriam mudar. Mas a maior questão, por larga margem, é como criar boas regras para o jogo em termos de competição, normas trabalhistas, meio ambiente, tributação, e assim por diante. Friedman presumia que nada disso importasse, ou que uma democracia funcional sobreviveria a ataque prolongado por pessoas que pensavam como ele. Nenhuma dessas suposições se provou correta. O desafio é criar boas regras do jogo, por via política. E hoje isso não é possível.

Financial Times, tradução de Paulo Migliacci

Martin Wolf
Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

‘Apressar a austeridade não é o modo de assegurar crescimento’ diz OCDE.

0

Aumento de gastos públicos na quarentena e de impostos sobre os mais ricos no pós-pandemia. A receita fiscal que a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) tem dado para os países serve também para o Brasil, ainda que seja preciso dosá-la com mais cuidado, diz o diretor do Centro de Política e Administração tributária do órgão, Pascal Saint-Amans.

“Não quero parecer ingênuo. Tenho completa noção de que países ricos podem ter um nível de dívida alto e que países como o Brasil são muito mais frágeis. Então, o “custe o que custar” (nos gastos) talvez possa requerer mais foco”, diz ele. 

Depois, acrescenta: “O melhor modo para resolver a sustentabilidade da dívida e para assegurar crescimento é não apressar a austeridade.”

A OCDE recomendou que os governos continuem gastando para impulsionar suas economias. Mesmo o Brasil, que tem dívida elevada, deve fazer isso? 

Sim, estamos recomendando essa política no pico da crise. Apoiamos completamente os governos para que adotem políticas para compensar os impactos negativos da covid. Em termos de política tributária, também é preciso dar suporte para a economia, concedendo isenções sobre contribuições sociais e para pequenos negócios. Uma vez que o país deixa o pico da pandemia, nosso conselho é não se apressar com a consolidação fiscal. Porque o que aconteceu em 2008 e em 2009 foi que os governos encararam a crise e rapidamente voltaram para as políticas de austeridade. A Europa sofreu com essa política ruim, foi por isso que teve a crise grega. Então, é preciso ser cuidadoso na consolidação fiscal. Quando você está na fase de recuperação, você pode deixar o ‘custe o que custar’ para melhorar o direcionamento das políticas. Focar naqueles que vão precisar mais. Por exemplo, em um país como o Brasil, direcionar os gastos aos mais vulneráveis, porque o país tem uma desigualdade muito elevada e uma parte muito grande da população extremamente vulnerável. No que diz respeito aos impostos, não se apressem para aumentá-los. Na terceira fase, quando as coisas estiverem estabilizadas, aí vocês terão de aumentar os impostos.

A carga tributária brasileira é elevada quando comparada a de outros países emergentes. Isso também serve para o Brasil? 

O Brasil, quando você o compara com o restante da América Latina, tem uma carga tributária bastante elevada. Mas, ainda assim, provavelmente será necessário aumentar os impostos para fortalecer a política tributária. Aqui há dúvidas não só de qual o nível ideal, mas também em relação à estrutura do sistema tributário. Mas o que dizemos é que essa crise é grande demais para ser desperdiçada em termos de revisão de políticas tributárias. Vocês precisarão revisá-las seriamente. Façam isso de modo que se possa reduzir desigualdades. No Brasil, isso serve em relação à questão de taxar renda do capital, renda do capital em termos de imposto sobre pessoa física e sobre pessoa jurídica, imposto sobre herança… São áreas que nos últimos 30 anos tiveram, em todo o mundo, políticas generosas que precisam ser revisadas. Também recomendamos políticas ambientais. Isso vai trazer vocês para uma reflexão de que é preciso taxar mais emissões de carbono – e, sim, o Brasil precisa taxar muito mais, apesar de vocês terem a Amazônia para absorver parte do excesso do carbono no mundo. Mas vocês terão de fazer isso. Estamos cientes de que o Brasil, como outras economias emergentes, têm subsídios para combustíveis fósseis e, se vocês cortarem esses subsídios, terão de compensar os mais vulneráveis. Mas isso significa que vocês terão de fazer uma revisão séria da política tributária no médio prazo.

Essas mudanças devem incluir alteração no teto do Imposto de Renda, como alguns defendem?

Não sei de cor os detalhes do sistema tributário brasileiro. Mas um teto de 27,5% para a população mais rica é bastante baixo. Especialmente em um país onde você tem uma concentração de riqueza, receita e renda nos 10% mais ricos. Definitivamente é muito baixo. Mas esse tipo de reforma tem de ser feita de forma global, com todos os outros elementos do sistema tributário.

E as medidas de ampliação de gasto público também são aplicáveis ao País, ainda que a relação dívida/PIB já seja alta?

Não quero parecer muito ingênuo. Tenho completa noção de que países ricos podem ter um nível de dívida alto e que países como o Brasil, economias emergentes, são muito mais frágeis, especialmente com taxas de juros muito baixas. O fluxo de capital não os ajuda muito. Então, provavelmente, o “custe o que custar” talvez possa requerer algum foco. Deve-se manter uma política tributária mais generosa durante a recuperação, mas talvez não tão generosa. E depois (da crise), reconstruir o sistema melhor, esse é o mantra hoje no G-20. Construir melhor a política tributária, com descarbonização, redução de desigualdades, taxação de renda de capital. Não só reconstruir melhor, mas também mais em termos de aumento de receita para enfrentar o crescimento da dívida. 

A discussão sobre aumento de progressividade de tributos parece não ecoar muito ainda no Brasil. O que pode acontecer se o mundo avançar nessa direção, menos o Brasil?

Política tributária é uma questão doméstica. Cada país escolhe seu sistema. Na questão de progressividade, é uma questão social de vocês. Se os brasileiros estão felizes com uma sociedade extremamente desigual e com políticas tributárias a favor dos ricos, isso é problema dos brasileiros. Um modo em que pode haver respingos (da tendência mundial no País) é na tributação de emissão de carbono. É com ela que você atinge o Acordo de Paris. Se alguns países não participarem, então suas ações domésticas podem ter impacto no bem coletivo. Veremos nos próximos anos qual será a dinâmica da luta contra as mudanças no clima e qual será o papel do Brasil no jogo, que pode mudar com os EUA voltando ao debate em janeiro (quando Joe Biden assume a Casa Branca).

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.