Economia Pós-pandemia

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A economia brasileira vem passando por grandes desequilíbrios macroeconômicos nos últimos anos, crescimento do desemprego, redução no investimento produtivo, diminuição da renda agregada e baixa capacidade de investimentos produtivos externos, para piorar estes desequilíbrios, percebemos repiques inflacionários e o crescimento da dívida pública. Estamos passando por momentos de incertezas crescentes, cujos impactos são o aumento dos desequilíbrios sociais, econômicos, empregos precários e o incremento da desesperança.

Neste momento, marcado por uma nova economia internacional centrada na concorrência e no aumento da competição entre as nações, as empresas e os indivíduos, as sociedades precisam construir agendas mais consistentes de redução das desigualdades sociais, do incremento dos investimentos públicos, melhoras da saúde, da eficiência dos indicadores da educação e da segurança, construindo uma sociedade que garanta a todos os cidadãos oportunidades e renove as esperanças de um futuro melhor.

O pós-pandemia prescinde de novos investimentos públicos e privados, sem estes recursos a economia terá grandes dificuldades para estimular novos espaços de crescimento econômico, incrementando maiores oportunidades de emprego, melhoras das rendas e dos salários agregados. Historicamente, em momentos de instabilidades e crises econômicas, os investimentos privados se retraem imediatamente, diante disso, como destacou o economista britânico John Maynard Keynes, faz-se necessário a atuação dos investimentos públicos. Sem estes recursos estatais, as condições sociais devem se degradar de forma acelerada, aumentando a violência urbana e a exclusão social, com o incremento do racismo, do aumento da pobreza e da redução das oportunidades para as classes mais vulneráveis, reduzindo as esperanças e incrementando os conflitos distributivos.

Neste momento, as decisões contemporâneas terão impactos para toda a coletividade, os desafios são enormes, as escolhas políticas prescindem de maturidade, a sociedade precisa optar por investimentos seguros, estimulando os setores da educação, capacitando o capital humano para os desafios da sociedade do conhecimento, construindo e viabilizando projetos futuros, viáveis e cujos retornos serão colhidos em anos, ou mesmo em décadas. Neste momento precisamos pensar no longo prazo, garantindo novas oportunidades e reduzindo os privilégios que perpetuam a pobreza e a degradação social.

Vivemos um momento peculiar no Brasil e na sociedade global, nestes momentos os governos devem mostrar caminhos para a reconstrução das nações, como aconteceu na crise de 1929, quando os governos passaram a intervir diretamente para alavancar os sistemas econômicas. Atualmente, cabe a sociedade global agir rapidamente, importando ideias parecidas como o Green New Deal Global, como ventilado nos círculos políticos e acadêmicos, neste momento de reconstrução precisamos estimular investimentos verdes, a humanidade deve diminuir a queima de combustíveis fósseis nos próximos trinta anos, e deve fazê-lo de modo a melhorar o padrão de vida e as oportunidades para os trabalhadores.

Na pandemia precisamos repensar o modelo econômico e social dominante da sociedade mundial, melhorar os indicadores sociais é fundamental para que garanta melhorias para todos os agentes sociais, sem estas mudanças a sociedade caminha por um período de grandes conflagrações e degradações para todos os indivíduos, pensemos sobre o assunto, a pandemia nos traz a oportunidade de evoluirmos como civilização e como seres humanos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia/Unesp, Professor Universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 02 de dezembro de 2020.

“Investimento público é mais importante que juro baixo tanto para atenuar os efeitos da recessão como no longo prazo”, segundo Lara Resende.

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Para economista, é preciso superar o arcabouço analítico anacrônico e equivocado que impõe o equilíbrio fiscal como o único objetivo de política econômica

Adriana Fernandes
26 de novembro de 2020 |O Estado de São Paulo

O economista André Lara Resende é hoje uma voz dissonante do pensamento econômico dominante no Brasil. Quinto entrevistado da série do Estadão “Saídas para a Crise Fiscal”, Lara Resende afirma que o investimento público é hoje muito mais importante do que a política de juros como resposta para a retomada econômica após a pandemia do coronavírus e também para o desenvolvimento de longo prazo do País.

Um dos formuladores do Plano Real e com a experiência de ter trabalhado mais de 30 anos no mercado financeiro, Lara Resende propõe a criação de um órgão, protegido de “pressões políticas ilegítimas”, para definir os investimentos públicos. Para ele, essa é hoje uma medida mais valiosa do que um Banco Central Independente.

O economista alerta que até agora não houve uma única iniciativa, nem mesmo propostas, de políticas públicas para garantir uma recuperação sustentada, uma vez superada a pandemia. Ambientalista, Lara Resende diz que é incompreensível a postura do governo Jair Bolsonaro em relação à questão ambiental, considerada por ele o mais grave problema a ser enfrentado pela humanidade, e que compromete o Brasil no exterior.

● Como o sr. avalia a resposta do governo à pandemia da covid-19?
A resposta à pandemia foi conturbada, incompetente e negacionista no todo. Quanto à política econômica, apesar de alguma hesitação inicial, com o auxílio de emergência, o governo acabou por dar uma resposta que aliviou temporariamente a situação dos que perderam o emprego ou a renda. O auxílio emergencial foi fundamental para aliviar a recessão e a crise social provocada pela pandemia. Até agora não houve uma única iniciativa, nem mesmo propostas, de políticas públicas para garantir uma recuperação sustentada, uma vez superada a pandemia. Quando a pandemia parece recrudescer, volta-se a falar na necessidade de encerrar o auxílio em nome do equilíbrio fiscal. Mais uma demonstração clara de que o governo continua dominado por restrições ideológicas.

● Uma das preocupações no Brasil é justamente o crescimento da dívida, que caminha para 100% do PIB. É um problema?
Trata-se de uma preocupação infundada. Em várias ocasiões na história, sobretudo depois de guerras ou catástrofes, inúmeros países tiveram dívidas superiores ao PIB. Hoje, Japão, EUA, Itália, entre outros, têm dívida superior ao PIB. A dívida pública não pode ter uma trajetória explosiva, mas, desde que o seu crescimento acelerado seja transitório, que passada a crise, com as contas reequilibradas e restaurado o crescimento da economia, a relação entre dívida e PIB volte a cair, não há qualquer problema em ultrapassar os 100% do PIB.

● Existe um limite para a dívida?
Não existe um limite intransponível para a dívida interna e o PIB. O endividamento externo, que depende de financiamento do exterior em moeda estrangeira, é sim perigoso. Como aprendemos com as sucessivas crises da dívida externa no século passado, quando os credores internacionais passam a ter dúvida sobre a capacidade do País de honrar seus compromissos em moeda estrangeira, a súbita interrupção do fluxo de financiamento pode provocar crises gravíssimas. No século passado, o Brasil era importador líquido de petróleo e derivados, assim como de trigo e outras commodities (produtos classificados como básicos por não ter tecnologia envolvida ou acabamento). Precisava de financiamento externo para cobrir o déficit com o resto do mundo. Hoje, somos autossuficientes em petróleo, exportadores líquidos de commodities e temos um setor agropecuário altamente superavitário. O Brasil de hoje não tem dívida pública externa, ao contrário, tem quase 30% do PIB em reservas internacionais A nossa dívida é interna, do Estado com os brasileiros.

● Em entrevista recente ao ‘Financial Times’, a economista-chefe do FMI, Gita Gopinath, disse que os países precisam evitar o erro de retirar prematuramente os estímulos fiscais, como ocorreu na crise financeira. Ela chama atenção que há formas de investimento público que podem criar empregos e aumentar a atividade econômica e, ao mesmo tempo, serem fiscalmente responsáveis para sair da crise. Como conciliar essas coisas?
Gita Gopinath disse apenas o que se sabe desde a publicação do livro de John M. Keynes (1883-1946, defensor de maior intervenção do governo na economia para estimular o crescimento) na década de 1930. Gopinath não é uma heterodoxa irresponsável, mas economista-chefe do FMI, doutora pela Universidade de Princeton, onde teve como orientadores Ben Bernanke, ex-presidente do Fed, e Ken Rogoff, professor da Universidade Harvard, dois expoentes da ortodoxia econômica. A política fiscal, sobretudo investimentos públicos que aumentem a produtividade e o poder aquisitivo da população, é o mais poderoso instrumento, tanto para se sair de uma recessão como para garantir a retomada do crescimento sustentado. A pergunta mais complicada de ser respondida é por que hoje no Brasil a opinião dos economistas que aparecem na imprensa, assim como a da própria imprensa, regrediu para o que era a ortodoxia do século XIX na Inglaterra? A chamada “Visão do Tesouro”, que sustentava a necessidade de sempre equilibrar as contas públicas, depois duramente criticada por Keynes, deixou de ser levada a sério.

● O Brasil, que tinha uma situação fiscal frágil e déficits há sete anos e com previsão de resultados negativos até 2028, pode seguir essa recomendação do FMI em 2021?
É verdade que há mais de duas décadas a relação dívida e PIB do Brasil tem aumentado, mas não temos uma situação fiscal frágil. A carga fiscal do Brasil é de quase 35% do PIB, muito alta para um país de renda média. Apesar da alta carga fiscal, não conseguimos controlar o crescimento da dívida. A razão é que a taxa de juros foi extraordinariamente alta até muito recentemente. Com taxas de juros que chegaram a mais de 25% ao ano e um crescimento medíocre da economia, o resultado é inexorável: a relação dívida/PIB cresce. O Estado brasileiro custa muito e gasta mal? Com certeza, mas não é essa a razão do crescimento da dívida. A política de taxa de juros do Banco Central, do real até muito recentemente, foi um gravíssimo equívoco. A história irá deixar claro o preço de uma política de juros extraordinariamente altos, associada a uma pesada e kafkiana carga fiscal.

● Qual a saída a seguir?
Antes de mais nada, é preciso superar a camisa de força imposta por um arcabouço analítico anacrônico e equivocado que impõe o equilíbrio fiscal como o único objetivo de política econômica. Dizem que com equilíbrio fiscal todos nossos problemas estarão milagrosamente resolvidos. Sem ele, caminhamos a passos largos para o abismo. Nada mais falso. Precisamos urgentemente voltar a ter um projeto para o País, ter objetivos de políticas públicas que balizem os investimentos públicos e privados, que norteiem a transição para uma matriz energética limpa e não nos deixe perder o bonde da revolução digital em curso. Precisamos refletir sobre as políticas de emprego, saúde e educação neste novo mundo do século XXI.
● Por que o sr. considera ser uma falácia o argumento de que o governo não tem dinheiro para investimento?
Porque é falso. O governo não tem recursos para investir porque adotamos restrições legais-administrativas que deixam relativamente livres os gastos correntes e impõem limites ao total dos gastos. O teto dos gastos (regra que proíbe que as despesas cresçam em ritmo superior à inflação) é exemplar: se mantido, vai levar ao colapso completo do investimento público. O governo que emite sua moeda fiduciária (documento que possa ser aceito como pagamento, como as notas de real), como é o nosso caso, não tem restrição financeira, pois, quando gasta, necessariamente, emite moeda. A decisão de obrigar o governo a retirar a moeda emitida, seja através da cobrança de impostos ou da emissão de dívida, é uma decisão político-administrativa. Pode se justificar para impedir que o governo gaste de forma irresponsável e incompetente, mas não é uma restrição real.

● É mais eficiente deixar os investimentos fora do teto?
Sim. O teto pode até ser uma restrição importante para impedir um Estado inchado, que gaste muito na sua própria operação, mas não faz sentido ter um teto com os gastos correntes não controlados. O resultado é a inviabilização dos investimentos. Os investimentos públicos são muito mais importantes do que juro básico baixo tanto para atenuar os efeitos da recessão quanto para o desenvolvimento de longo prazo. É mais importante ter um órgão sério e competente, protegido das pressões políticas ilegítimas, para definir os investimentos públicos, do que um Banco Central independente.

● É possível fazer uma recuperação econômica verde e sustentável pós-pandemia?
Infelizmente, o governo Bolsonaro está na contramão de uma política ambiental sustentável. A incompreensível postura do governo em relação à questão ambiental, hoje considerado o mais grave problema a ser enfrentado pela humanidade, compromete o Brasil no exterior, prejudica nossas exportações e reduz os investimentos externos. Além de fazer a coisa certa, teríamos muito a ganhar com uma política ambiental inteligente e responsável, que poderia servir de balizador de uma nova etapa de nosso desenvolvimento.

● Qual o papel das reformas administrativa e tributária para destravar o crescimento?
Me parece que uma reforma tributária cujos objetivos fossem a simplificação, a racionalização e a equidade, não o equilíbrio a qualquer custo, e que nos livrasse do atual cipoal tributário, seria um passo importante para nos tirar do atoleiro em que nos metemos. Mais do que uma reforma administrativa, nome que se dá ao que é apenas mais uma tentativa de reduzir os salários e os benefícios do funcionalismo, precisamos modernizar a governança do País, inclusive o sistema político, que caminha a passos largos para se tornar disfuncional e corre o risco de perder legitimidade.

“O racismo estrutura a sociedade brasileira, está em todo lugar”, diz Djamila Ribeiro

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Edson Veiga, MSN Notícias

Em entrevista, a filósofa e escritora fala sobre heranças da escravidão no Brasil e afirma que, com o caso Beto Freitas, a revolta negra historicamente sufocada encontrou “coro para ecoar pelo país”.

Foi pelas redes sociais que, na manhã de 20 de novembro, data em que o Brasil celebra o Dia da Consciência Negra, a filósofa, escritora e feminista negra Djamila Ribeiro soube do espancamento e assassinato de João Alberto Freitas, ocorrido em um supermercado Carrefour de Porto Alegre. “Fui ver a fundo do que se tratava e não consegui assistir ao vídeo”, conta. “Até hoje não assisti.”

Autora dos livros Lugar de Fala, Quem Tem Medo do Feminismo Negro e Pequeno Manual Antirracista, Ribeiro disse que conversou com a militante e teórica do feminismo negro Carla Akotirene sobre o caso. E a conclusão foi que toda vez que um negro vê outra pessoa negra sofrendo uma agressão, uma violência, este revisita “o trauma do colonialismo e de tudo o que as pessoas negras sofreram neste país”. No entendimento de ambas, é evidente que “uma pessoa branca consciente” também se choca com fatos assim; mas para um negro esse sofrimento assume proporções muito maiores.
Ao analisar o assassinato de Beto Freitas, ela recorda outras mortes que despertaram a raiva da população negra recentemente. Como a do adolescente João Pedro, baleado em operação policial, a da vereadora Marielle Franco, assassinada em março de 2018, e a da auxiliar de serviços Cláudia Silva Ferreira, baleada quando ia comprar pão para sua família, em março de 2014.

O caso Beto Freitas, no entanto, está sendo um marco no país, aponta. “Gerou uma onda de protestos contra o racismo que é, de certa forma, inédita. Uma revolta que foi ao longo da história sufocada, encontrou coro para ecoar pelo país”, afirma em entrevista à DW Brasil.

Mestra em Filosofia Política pela Universidade Federal de São Paulo, Ribeiro é colunista do jornal Folha de S.Paulo e da revista ELLE Brasil e professora convidada da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Em 2016, foi secretária adjunta de Direitos Humanos de São Paulo. No ano passado, recebeu do Reino dos Países Baixos o Prêmio Prince Claus, por conta do seu ativismo.

Na entrevista a seguir, ela também fala sobre as heranças da escravidão e a falta de inclusão das populações negras. “O racismo estrutura a sociedade e, assim sendo, está em todo o lugar”, afirma.

DW Brasil: Em seu livro Pequeno Manual Antirracista um dos pontos que você aborda é justamente combater a violência racial. Em casos extremos como o ocorrido na última semana em Porto Alegre, qual seria a melhor resposta antirracista?

Djamila Ribeiro: Nesse capítulo do meu livro, aponto a violência racial por diversos meios: pela morte em massa dos corpos negros por uma polícia militarista, num país onde a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado; pelo Poder Judiciário ser uma extensão da viatura de polícia, aceitando ralas “provas” como suficientes para condenar alguém, isso quando muito verificam.

Em geral, apenas a palavra do policial é o suficiente para condenar por anos à prisão, e aí eu me pergunto: como seria se não tivesse uma câmera lá? Se não houvesse uma demonstração cabal do assassinato?

Ora, um dos responsáveis é um policial militar e, não fosse a manifestação evidente de prova, a palavra dele seria suficiente para que Beto Freitas fosse um assassino, e o policial, uma potencial vítima em legítima defesa. Isso é a manifestação de um sistema que foi desenhado para operar dessa forma, uma forma que continua a alimentar o projeto racial supremacista branco. Precisamos nos questionar sobre qual formação tem sido dada aos agentes de segurança no país, bem como sua estrutura em si. Uma polícia militarizada, em guerra, na qual morrem predominantemente pessoas negras, qual projeto é esse? Ao fundo, estamos diante da estrutura racista. […]

Independentemente disso, penso também que a empresa deve uma indenização por danos morais coletivos à população negra, em um valor tão alto para que seja desinteressante ignorar as demandas históricas antirracistas, como essa em particular tem feito. Trata-se de uma empresa com um preocupante histórico de violência com pessoas negras no Brasil e funciona numa lógica colonial profunda.

Veja, a matriz do Carrefour está no Norte global, e para lá é enviada boa parte do lucro que aufere no Sul. Não sei qual discurso é feito na Europa, mas a sua filial brasileira vem se alinhando aos projetos políticos que têm promovido o desmonte dos direitos sociais no país. Reforma trabalhista, previdenciária, entre outras estão alinhadas com um discurso que nega humanidade. Então, é de se questionar o choque da matriz quando há a materialização do ranço colonial que tem promovido mortes. É preciso insistir em um debate honesto sobre a postura de empresas transnacionais em suas filiais abaixo da linha do Equador e cobrar indenizações por isso.

Declarações tanto do vice-presidente, Hamilton Mourão quanto do presidente Jair Bolsonaro buscaram negar a existência do racismo no Brasil e ainda dizer que a sociedade estaria “importando” uma questão dos EUA. De que maneira esse tipo de declaração aumenta o problema?

Não é surpresa para quem acompanhou a trajetória do homem que está hoje na Presidência do Brasil que tanto ele quanto seu vice digam algo nesse sentido. Eles representam um projeto político que fez do racismo a base do seu meio de produção econômica e de suas relações sociais e, a serviço desse projeto, eles continuarão seu discurso e sua prática. E é evidente que estão a dizer uma grande falácia.

O Brasil é a maior nação negra fora da África, somando 54% da população, e mesmo sendo maioria, [os negros] estão fora dos lugares de poder e experimentam em larga maioria os piores índices de desenvolvimento humano. Foram quase quatro séculos de escravidão em pouco mais de cinco séculos de chegada dos colonos.

Em 1888 houve a abolição formal, mas nenhuma política de inclusão das pessoas negras, pelo contrário. Ao passo que foi estimulada a vinda de imigrantes europeus, que receberam terras e oportunidades, pessoas negras foram marginalizadas de qualquer contato com o poder econômico e destinadas a serem base de exploração que, no caso das mulheres negras, se somam ao patriarcado. Nas palavras de Carla Akotirene, mulheres negras são a matriz geradora pois parem as vidas que serão a base do sistema.

Para aqueles que negam a existência do racismo no Brasil, como explicar ou mostrar que, sim, há muito racismo na sociedade?

Ao longo da história, o projeto de miscigenação foi romanceado no país, como manifestação sublime da democracia racial, pensamento do [sociólogo] Gilberto Freyre, no sentido de que no Brasil teria havido a transcendência racial com a convivência harmoniosa entre brancos, negros e indígenas. Ou seja, de acordo com esse pensamento, não existe racismo no Brasil, apenas desigualdade entre ricos e pobres. As mulheres negras brasileiras são as mulatas que sambam e estão sempre disponíveis sexualmente. Trata-se de algo entranhado no pensamento brasileiro e na organização social do país, algo que os movimentos negros ao longo de muitas décadas vêm denunciando e combatendo.
É uma construção supremacista histórica e vejo o Brasil exportá-la para o Norte global como se fosse cana-de-açúcar. Está na escola, nas famílias, no discurso midiático, em todo lugar. Então muitas pessoas negras não sabem que são negras, não têm sequer condições materiais para formular algo nesse sentido. Então, o que nos resta é lutar por políticas públicas, de educação, assistência social e apoiar projetos políticos nesse sentido. Isso em um sentido coletivo.

O que é racismo estrutural?

Olhar a história do Brasil desde a escravização até a falta de inclusão das populações negras. Entender que foram criados mecanismos legais para afastar pessoas negras de possibilidades de emancipação social. São vários os exemplos: a Constituição Federal de 1824 vedava o acesso de pessoas negras à educação, a Lei de Terras de 1850 condicionava o acesso a terras à compra e venda, e naquele contexto nenhuma pessoa escravizada estava apta a possuir uma propriedade, entre tantas leis de escravização.

Com o fim formal da escravidão, houve um processo de criminalização de pessoas negras, sobretudo homens, alvos de leis como a vadiagem, que determinava a prisão de pessoas “sem ocupação”, numa época de alto desemprego para os homens negros. As mulheres negras foram destinadas ao trabalho doméstico, uma herança presente até hoje. Atualmente, estima-se que mais de 6 milhões de mulheres negras são empregadas [domésticas] no país, e a lei que regulamenta a profissão somente foi aprovada em 2013, sob intensos protestos do sistema que se beneficiou historicamente desse trabalho.

Então, estamos dizendo que o racismo estrutura as relações raciais no Brasil. Uma estrutura presente antes mesmo de nós termos nascidos. No Brasil é comum entrarmos em restaurantes e não encontrar nenhuma pessoa negra no local – nem como garçom ou garçonete. Quem vai a shopping terá dificuldade de encontrar uma vendedora de lojas negra. Isso, vale frisar, em um país com 54% da população negra. Ou seja, o racismo estrutura a sociedade e, assim sendo, está em todo o lugar.

Como você avalia os protestos que pipocaram pelo país a partir do conhecimento público do recente assassinato ocorrido no Carrefour?

Penso que está sendo um marco no país, pois gerou uma onda de protestos contra o racismo que é, de certa forma, inédita. Há pouco mais de dois anos, Marielle Franco, mulher negra vereadora no Rio de Janeiro e grande promessa para a política nacional, foi assassinada em um contexto até hoje não revelado, porém com fortes ligações com a milícia que atua em favor do chefe do executivo nacional. Naquela época chegou a haver uma comoção nacional e internacional, pela brutalidade com a qual Marielle foi morta. Aquele contexto era de um assassinato com fins políticos, pelo que ela representava de potencial para o país, bem como por ser uma figura completamente antagônica ao projeto miliciano que se instaurou no poder. No caso de Beto Freitas, uma revolta que foi ao longo da história sufocada, encontrou coro para ecoar pelo país.

A polícia brasileira é a polícia com o mais alto índice de letalidade: em um ano, somente a polícia do estado do Rio de Janeiro mata mais que a polícia de todos os Estados Unidos. Então podemos ter uma dimensão de quantas vidas negras foram ceifadas no país, quantas mães enterraram seus filhos. Alguns casos despertaram a raiva da população negra ao trauma do colonialismo.

Não há como não citar o menino João Pedro, de pouco mais de 14 anos, que estava brincando em sua casa, durante o isolamento do coronavírus, quando a polícia disparou mais de 70 vezes sobre a residência em que ele estava, na qual não tinha ninguém sequer investigado. São tantos casos que podemos citar… Claudia Silva Ferreira, em 2014, mulher negra, mãe, que foi morta numa ação policial no Rio de Janeiro. Sem qualquer cerimônia, seu corpo foi jogado no porta-malas da viatura. Na saída da comunidade, o porta-malas abriu, e ela foi sendo arrastada pelo chão. Uma cena que nenhuma de nós jamais esqueceu, mas que para muitos é assunto do passado. Então, esse país deve muito à população negra, e o despertar está sendo na medida da dívida.

Desafios contemporâneos

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Vivemos momentos de grandes incertezas na sociedade global, definidas pelo grande sociólogo polonês Zygmunt Bauman como um mundo líquido, caracterizado por grandes instabilidades, volatilidades e grandes transformações. Para piorar o momento atual, vivenciamos uma grande crise sanitária, uma crise global com impactos sobre todas as regiões do mundo, gerando incremento dos infectados, mortes e degradações variadas.

Dentre os grandes desafios da sociedade contemporânea, destacamos os desequilíbrios climáticos, desemprego elevado, endividamento crescente, incremento das desigualdades sociais, além de conflitos políticos, raciais e culturais, além de violências, intolerâncias e desequilíbrios emocionais e psicológicas. Neste momento, a pandemia global se tornou o maior desafio mundial, cujos impactos destrutivos crescem aceleradamente, gerando medos, desesperanças e crueldades, contabilizando mais de 1 milhão de mortos, degradação econômica, insegurança e violências generalizadas.

Vivemos em uma sociedade marcada por variadas contradições, de um lado, percebemos tantas inovações tecnológicas, novos conhecimentos, novas ciências, novos materiais, novas descobertas que retardam o envelhecimento e melhoram a qualidade de vida e propiciam ao indivíduo mais bem-estar social. De outro lado, percebemos um mundo marcado por conflitos étnicos, desigualdades em ascensão, riquezas concentradas, pobrezas crescentes e instabilidades, depressões e violências generalizadas.

O incremento da ciência, do conhecimento e da tecnologia foram fundamentais para o crescimento da economia global, mas ao mesmo tempo percebemos que o crescimento da tecnologia não foi capaz de transformar os valores da sociedade, muito pelo contrário, os novos valores estão todos se concentrando nos valores do capital, do dinheiro, da ostentação e da acumulação. Estamos vivendo um descompasso entre valores, na contemporaneidade estamos construindo uma sociedade marcada por valores éticos e morais centrados nas incertezas e nas instabilidades, ao mesmo tempo, perdemos as referências da convivência social, da comunidade, da empatia e da solidariedade.

Os desafios são prementes, percebemos uma ausência de líderes mundiais capacitados para compreender a contemporaneidade, demonstrar conhecimentos técnicos e agilidade política para costurar novos espaços para a superação deste momento de grandes dificuldades e incertezas. Necessitamos de líderes ousados, criativos e solidários, com ideias dinâmicas e flexíveis, deixando de lado pensamentos atrasados, retrógrados e pouco eficientes. Neste momento de desagregação social, crises econômicas e conflitos políticos, estas lideranças devem deixar de lado crenças ultrapassadas, fortalecer a ciência, adotar políticas pragmáticas, centradas nas pesquisas científicas, estimulando os investimentos no conhecimento, na democratização dos ganhos e políticas de inclusão social, sem estas políticas dificilmente vamos conseguir dar passos mais eficientes para o desenvolvimento da civilização.

Neste momento, as políticas da contemporaneidade devem construir uma nova coletividade, mais inclusiva, mais reflexiva e verdadeiramente plural, sem o predomínio do individualismo e da concorrência degradante, fazendo com que a tecnologia e a ciência sirvam para o bem-estar de todos os grupos sociais ao invés de um pequeno grupo de privilegiados e num ambiente marcado por pobrezas e degradações, como estamos visualizando na sociedade contemporânea.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia/Unesp, Professor Universitário.
contato@aryramos.pro.br. Diário da Região, 25 de novembro de 2020, Caderno Economia.

A Nova Economia

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A sociedade internacional está passando por grandes transformações em todas as áreas e setores, estas alterações estão gerando impactos generalizados, neste momento as bases da economia estão passando por construções ou por reconstruções. Neste momento, percebemos o nascimento de uma Nova Economia, gerando novos atores sociais, políticos e culturais, com isso, percebemos novos desafios e novas oportunidades, trazendo medos e esperanças e, ao mesmo tempo, novos comportamentos, concorrências e riscos crescentes, estamos numa outra sociedade, numa nova coletividade e construindo novos modelos de civilizações.

Como destacou o criador do Fórum Econômico Mundial, Klaus Chwab, a Nova Economia traz novos conceitos para a economia contemporânea, como Indústria 4.0, Inteligência Artificial, Internet das coisas, robótica, civilização digital, Startups, 5G, computação quântica, biotecnologias, dentre outras. Estes novos conceitos estão transformando todas as economias, desafiando as nações, criando um mundo cheio de oportunidades, mas ao mesmo tempo percebemos grandes instabilidades, inseguranças e desesperanças.

A Nova economia está exigindo uma constante transformação cotidiana, os trabalhadores devem incorporar novas inovações, as invenções devem impulsionar a coletividade, os desafios devem ser crescentes, as atividades repetitivas do mundo do trabalho devem ser repassadas para as máquinas. Os trabalhadores devem ser estimulados para o pensamento crítico, exigindo novas mentalidades e a construção de novos equilíbrios emocional e espiritual, sem estes equilíbrios não conseguirão se adaptar a esta nova sociedade, marcadas por incertezas crescentes, instabilidades gerais, volatilidades, complexidades e transformações constantes. Destes desafios, destacando os modelos educacionais, das escolas e das universidades, que prescindem de novas metodologias para a construção dos novos conhecimentos, se a sociedade demanda cidadãos conscientes e críticos, os novos modelos de ensino devem capacitar para a construção dos trabalhadores do século XXII, deixando de lado os modelos repetitivos, superficiais e baseados nas decorebas constantes, criando novos modelos dinâmicos e reflexivos para auxiliar na construção da nova economia contemporânea.

Os novos modelos de negócios atuam na construção de ecossistemas de empreendimentos, tais como startups, empresas de tecnologias e marcadas pelo crescimento das inovações, com suas mentalidades dinâmicas, com seus comportamentos marcados pela ambiguidade, por modelos revolucionários de negócios, mais marcados pela flexibilidade, pelo dinamismo e menos burocracias, dominados por aplicativos e produtos intangíveis. Neste novo modelo de organização, encontramos o cenário da nova economia, centrados nas incertezas e constantes mudanças, esta nova sociedade pode ser definida pela disrupção, que tem como base um rompimento com o velho marcado e abertura para o novo, mais tecnológico, flexível e prático.

A sociedade mundial se caracteriza por grandes transformações, a rapidez destas alterações cresce de forma acelerada. Neste ambiente, os indivíduos estão atordoados, assustados, os trabalhos estão se tornando escassos, com isso, o mundo de trabalho está gerando instabilidades, desesperanças, depressões e ansiedades. Neste mundo contemporâneo, a tecnologia acelera rapidamente, neste ambiente, enquanto os indivíduos não conseguem acompanhar estas transformações impulsionadas pelas novas tecnologias, vivemos um grande paradoxo, os consumidores percebem inúmeras mercadorias disponíveis no mercado, mas de outro lado percebem seus rendimentos se reduzindo, seus salários diminuem e as perspectivas de sobrevivência dignas diminuem de forma acelerada, impulsionando conflitos, violências e a convivência social, neste momento, percebemos a importância de uma discussão maior sobre os rumos da sociedade mundial.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre e Doutor em Sociologia/Unesp, Professor Universitário Unirp e Fatec. Diário da Região, 18 de novembro de 2020, Caderno Economia.

O fim do auxílio emergencial, por Cecília Machado.

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É possível fazer mais, melhor e com muito menos recursos

Folha de São Paulo, 24/11/2020

Falta pouco mais de um mês para o fim do auxílio emergencial. Mas o calendário de vacinação no Brasil permanece incerto, e uma segunda onda da pandemia, à luz do que vem ocorrendo no hemisfério Norte, é dada como cada vez mais provável também aqui.

Na ausência de um plano para a manutenção da renda dos pobres e trabalhadores informais nos próximos meses, volta a ser posta em discussão a prorrogação do auxílio emergencial.

É claro que o auxílio foi importante para garantir a renda de diversas famílias, especialmente no início da pandemia. Mas também é verdade que, por ter sido estabelecido em caráter de urgência, buscando alcançar muitas pessoas e em curto espaço de tempo, várias regras e parâmetros do programa ficaram bastante aquém do ideal.

Hoje, a manutenção do auxílio, tal qual desenhado, exibe diversas ineficiências, além de um custo fiscal insustentável, caso ele venha a se tornar uma assistência de caráter mais permanente, o que sucessivas prorrogações poderiam indicar.

A dimensão e os números do programa são impressionantes. O auxílio corresponde a 56% do Orçamento de Guerra. Desde seu início, em abril, até agora, o auxílio emergencial beneficiou 118 milhões de pessoas de forma direta ou indireta, 56% da população brasileira.

Ao todo, foram 68 milhões de beneficiários, totalizando R$ 258 bilhões em transferências. Entre os benefícios, 19,2 milhões são do Bolsa Família, e outros 10,5 milhões estão no Cadastro Único.

A maior parte dos beneficiários, 38,1 milhões de pessoas, corresponde a novos registros, ou seja, são trabalhadores informais em sua maioria, mas também pessoas fora da força de trabalho ou desempregadas, “invisíveis” até então. A incidência em base ampla e o valor estabelecido para as parcelas permitiram que o programa alcançasse muito mais do que a simples reposição de rendas perdidas.

Até o fim do ano, o orçamento do programa deve alcançar R$ 300 bilhões. Não é pouco. Em perspectiva comparada, esse valor corresponde a dez vezes o orçamento anual do Bolsa Família. Ou então cinco vezes o orçamento anual do Benefício de Prestação Continuada. Ou 15 anos inteiros do orçamento com o abono salarial.

Não custa lembrar que o orçamento inicial do programa, R$ 98,2 bilhões para os três meses que foram previstos, é um terço do valor que agora observamos.

Entre as ineficiências do programa, estão os chamados erros de inclusão e de exclusão do programa. Ou seja, pessoas que receberam, mas não deveriam; e pessoas que não receberam, mas deveriam.

O TCU (Tribunal de Contas da União) identificou, por exemplo, 439 mil beneficiários que receberam benefícios indevidos em auditoria dos quatro primeiros meses do programa, totalizando R$ 813 milhões. Uma estimativa obviamente subestimada dos pagamentos indevidos, já que os critérios utilizados pelo TCU são bastante conservadores e usam informações de cadastros e registros administrativos do governo, onde não há informações sobre as rendas do setor informal e evasões fiscais.

Mais importante é o diagnóstico sobre as deficiências de controle e as inúmeras dificuldades na verificação dos critérios legais de qualificação ao programa. Entre eles, chama a atenção o caráter declaratório da composição da família, que impacta diretamente a elegibilidade ao programa, através da renda per capita da família, assim como o número de benefícios que um núcleo familiar pode receber.

O relatório do TCU identificou limitações de controle associadas à identificação de vínculos familiares (cônjuges e filhos), à multiplicidade de documentos legais que atestam a identidade de um cidadão e à dificuldade em estabelecer unidades domiciliares a partir dos endereços informados nos registros.

Não surpreende a baixa focalização do programa quando sua incidência é analisada em inquéritos populacionais que levam em conta o correto conceito de domicílio e família e que conseguem identificar todas as rendas que são de fato recebidas pelas pessoas.

Apenas pouco mais de 50% do auxílio emergencial incidiu sobre os 30% mais pobres da população. Já a metade mais rica da nossa população recebeu 25% do auxílio. E, entre os 10% mais ricos, 6% receberam o auxílio.

Embora sejam legítimas as ponderações acerca do ineditismo e da urgência na implementação do auxílio emergencial, é inegável a existência de inúmeras margens de ajuste que podem tornar o auxílio uma política pública mais efetiva. É possível fazer mais, melhor e com muito menos recursos.

Cecilia Machado
Economista, é professora da EPGE (Escola Brasileira de Economia e Finanças) da FGV.

“Auxílio emergencial foi ajuda significativa, mas seu fim deixará desigualdade como herança”, diz L. Carvalho.

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Laura Carvalho:

Economista e professora da FEA-USP explica por que a perspectiva de recuperação econômica do Brasil é ruim e defende um novo modelo que combine crescimento econômico com inclusão e sustentabilidade

Jornal GGN, 21/11/202

O auxílio emergencial representou uma ajuda significativa para os brasileiros durante a pandemia e preveniu uma queda ainda maior no PIB do país, mas a falta de um plano de recuperação econômica é preocupante, e a volta ao nível de renda pré-crise pode levar até duas décadas. Esse é o panorama traçado por Laura Carvalho, economista e professora da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP) e autora do recém-lançado livro Curto-circuito: o vírus e a volta do Estado.

Em entrevista exclusiva à Agência Pública, Laura Carvalho explica que, quando a pandemia chegou, as famílias mais pobres ainda estavam sofrendo os efeitos da recessão de 2015 e 2016, como a perda de renda, o desemprego e a precariedade no mercado de trabalho. “Graças à aprovação desse programa substancial de transferência de renda, você tem essa situação paradoxal em que, mesmo com uma crise muito profunda, os níveis de pobreza caem para os seus menores patamares da história e a desigualdade chega a cair”, explica.

No entanto, ela ressalta que esse efeito positivo tem data para acabar. “Com o fim do auxílio e com a impossibilidade de se compatibilizar novos programas generosos de proteção social com o atual desenho do teto de gastos, essas desigualdades – que na verdade subiram, mas foram neutralizadas pelo auxílio – vão aparecer, vão vir à tona”, diz. Como o patamar de renda dos brasileiros está ainda menor devido às crises sucessivas, ela acredita que levará duas décadas para recuperarmos a renda média que tínhamos em 2014.

Mas nem tudo é tragédia. Para a economista, essa é uma ótima oportunidade para passarmos a financiar políticas sociais com um imposto de renda mais alto para os ricos e a adotar um modelo econômico mais digno e sustentável – alinhado com a chamada “retomada verde” que diversos países ao redor do mundo estão propondo. “É perfeitamente possível desenhar um modelo que envolva o próprio combate às desigualdades de renda e de acesso a serviços, uma série de lacunas que a gente nunca superou, como um vetor de geração de empregos e de novas tecnologias. Não se trata de não ter crescimento econômico, mas de se ter um outro tipo de crescimento econômico que beneficie a maioria da população, não só alguns, e que não destrua o meio ambiente”, argumenta.
Laura Carvalho foi escolhida para esta entrevista pelos Aliados da Pública e, durante a conversa, respondeu a várias das perguntas que eles enviaram anteriormente. Se você quer escolher quem a Pública vai entrevistar, seja nosso Aliado.

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Em maio, você disse que a recessão causada pela pandemia devia ser enfrentada em duas fases. Primeiro com medidas para combater a pandemia em si e garantir a sobrevivência das famílias e empresas. Só depois, quando os números da doença estivessem menores, seria possível tomar medidas macroeconômicas. Como você avalia a resposta do governo Bolsonaro para lidar com a economia na pandemia? Estava de acordo com essas recomendações? 

Na primeira fase, nem é possível nem desejável que a economia seja reativada completamente, porque a ideia é justamente controlar a causa do problema, que é o próprio contágio pelo vírus. Na área econômica estritamente – deixando de lado a área da saúde, que foi um desastre –, há três eixos: um eixo voltado para a sobrevivência das famílias, com transferência de renda; um eixo voltado para a sobrevivência das empresas, que tem a ver com medidas para o crédito e adiamento do pagamento de impostos; e o terceiro, que é o eixo para preservação dos empregos, voltado para evitar as demissões e proteger os trabalhadores formais.
O primeiro [da sobrevivência das famílias] é o eixo mais bem-sucedido. Não foi uma iniciativa do governo, inclusive o programa aprovado foi muito maior em valor e em número de beneficiários do que aquilo que estava proposto inicialmente pela equipe econômica do governo. Mas o auxílio emergencial foi capaz de evitar uma perda de renda para a metade mais pobre da população brasileira durante essa que é a mais profunda recessão de que temos notícia. Então, houve, sim, uma perda de renda maior para os mais pobres quando a gente pensa em renda do trabalho, mas, quando a gente soma o auxílio emergencial, o índice de Gini, que mede a desigualdade, até cai durante a pandemia por conta desse programa. Ou seja, o auxílio foi capaz de neutralizar completamente o aumento da desigualdade que houve no mercado de trabalho durante a pandemia.
O segundo eixo, que é o de proteção às empresas, é o mais fracassado dos três, onde os impactos foram desastrosos. As linhas de crédito desenhadas pelo governo não chegaram na ponta, tampouco tiveram volume suficiente liberado. Isso até foi melhorando, outras linhas foram sendo criadas e expandidas, mas o desenho inicial exigia contrapartidas demais das empresas e também não cobria o risco dos bancos; então, os bancos não tiveram interesse em realizar as operações. E isso fez com que, até a metade de julho, 716 mil empresas fechassem definitivamente as portas no Brasil, das quais 99,8% tinham até 49 empregados. Os pequenos negócios, que, claro, têm muito mais dificuldade de sobrevivência, fecharam as portas. E são um negócio que emprega muita gente; portanto, isso também repercute nos empregos e nas nossas perspectivas de recuperação. O desastre foi quase tão grande quanto o da área da saúde, que também não teve nenhum sucesso.
O terceiro eixo, de preservação dos empregos exclusivamente, eu diria que está no meio do caminho, porque empregos foram preservados com a possibilidade de manter os empregados sem o custo total. A medida provisória que foi aprovada para a suspensão de contratos e redução da jornada de trabalho não foi desenhada de forma tão generosa quanto o que foi feito em alguns outros países, como o Reino Unido, que preservaram quase toda a renda dos trabalhadores que tiveram seus contratos de trabalho reduzidos. No caso brasileiro, a primeira versão era um desastre, nem previa nenhum tipo de remuneração para os trabalhadores que tivessem o contrato suspenso, mas aí isso gerou uma polêmica, a medida foi revista, e a segunda versão da medida prevê o pagamento de uma parte do seguro-desemprego para os trabalhadores nessa situação. Isso protegeu os trabalhadores com renda mais baixa, mas o seguro-desemprego tem um teto de R$ 1.813, então os trabalhadores que ganham mais de dois salários-mínimos e meio ainda tiveram uma perda de renda muito significativa.

Pensando naquela dicotomia que o governo colocava entre salvar vidas e salvar a economia, na realidade ele não conseguiu salvar vidas e só salvou parte da economia? 
Na verdade, era uma falsa dicotomia já na origem. A recuperação da economia depende do controle da pandemia. Isso está cada vez mais claro nos dados que saíram desde então, referentes a diferentes países. Os países que não conseguiram [controlar a pandemia] estão tendo quedas de PIB maiores. No caso brasileiro, o auxílio emergencial acabou conseguindo atenuar a queda do PIB. Ele deu tão certo que evitou a perda de renda da metade mais pobre da população e manteve os níveis de consumo, particularmente em municípios mais pobres do Norte e Nordeste do país. Isso contribui para que o Brasil não tenha uma das recessões mais profundas, mas, por outro lado, pelo fato de não termos controlado a pandemia e pensando que esse auxílio emergencial será encerrado no fim deste ano, as nossas perspectivas de recuperação são, sem dúvida, muito ruins se comparadas à economia global.

Em um texto recente para o Nexo, você fala que a recuperação econômica do Brasil vai ser em K, ou seja, ela será mais rápida para os ricos e mais lenta para os pobres. Mas você ressalta que a gente já estava em uma trajetória de recuperação em K da crise anterior, de 2015 e 2016. O que isso significa na prática para a população?

Quando se fala em recuperação em K, a ideia é um cenário em que a recuperação dos níveis de renda pré-crise será muito mais rápida para quem está no topo da pirâmide do que para quem está na base. Por isso, o formato da letra K ajudaria a ilustrar – na verdade, os mais pobres até continuariam perdendo renda enquanto os mais ricos já estariam se recuperando. Isso é exatamente o que víamos depois de 2017, quando começa a recuperação da última recessão no Brasil: o topo e o meio da pirâmide recuperavam a renda lentamente, mas os mais pobres ainda estavam perdendo renda.
Os mais pobres ainda estavam em recessão – com perda de renda, aumento da informalidade, precariedade cada vez maior no mercado de trabalho e taxas de desemprego ainda muito elevadas – quando a pandemia chegou. Graças à aprovação desse programa substancial de transferência de renda, você tem essa situação paradoxal em que, mesmo com uma crise muito profunda, os níveis de pobreza caem para os seus menores patamares da história e a desigualdade chega a cair. Se você olha para os 30% mais pobres, você vê que há até um ganho de renda em relação ao que era antes.
Mas com o fim desse auxílio e com a impossibilidade de se compatibilizar novos programas generosos de proteção social com o atual desenho do teto de gastos, essas desigualdades – que na verdade subiram, mas foram neutralizadas – vão aparecer, vão vir à tona. Isso pode nos levar a basicamente retomar a trajetória anterior de aumento da desigualdade e de perda de renda na base, mas partindo de um nível ainda menor de renda, porque agora estamos atravessando mais uma recessão. Então, isso tudo tende a criar um quadro que vai até prejudicar as nossas possibilidades de recuperação, porque já há muitas evidências de que no Brasil esse aumento da desigualdade funciona como uma âncora que impede a economia de crescer mais rapidamente.

O horizonte que estamos vendo é o de duas décadas perdidas?
Se a gente olha para o que ocorreu de 2017 até o início da pandemia, a gente vê que a recuperação era tão lenta que a gente levaria uma década para recuperar o nível de renda per capita que a gente tinha em 2014. E aí vem a pandemia. Se a gente olha para o que seria necessário o Brasil crescer para que seja apenas uma década perdida, já está claro que é impossível. A gente teria que crescer a um ritmo muito acima do que já crescemos em todos os períodos da história, o que não parece ser o caso, considerando tanto o cenário internacional quanto o da política doméstica. Simulando diferentes cenários, parece que a gente está muito mais perto de demorar duas décadas para voltar àquela renda per capita média de 2014 do que apenas uma década.

Estamos observando um aumento significativo no preço dos alimentos e até no aluguel. Se as coisas estão caras e as pessoas estão perdendo o emprego, por que a aprovação ao governo continua alta? 
É claro que a situação dos alimentos de fato tem um efeito desproporcional na cesta de consumo dos mais pobres. É um tipo de inflação que tem mais a ver com os efeitos da desvalorização do real somados ao aumento de preços de alimentos nos mercados internacionais. E o índice que reajusta o aluguel é muito sensível também a variações do câmbio e nos preços de alimentos.
Mas o fato é que, mesmo com esse aumento da inflação, com a perda de empregos e de renda durante a pandemia – que também afeta desproporcionalmente os trabalhadores menos escolarizados – ainda assim houve um ganho de renda para os 30% mais pobres. Se a gente olha para os 50% mais pobres, o auxílio compensa inteiramente a perda de renda. E isso é muito significativo. A gente está falando de metade da população brasileira tendo preservado sua renda na pandemia e parte delas até tendo aumentado sua renda graças a esse auxílio de R$ 600. Para muita gente parece pouco, mas para os níveis de renda no Brasil é muito significativo. Não quer dizer que seja o único fator a explicar a popularidade do governo, mas esse é um dos fatores, sim.

Muitos leitores perguntaram se é verdade que não existem recursos para bancar o auxílio emergencial durante mais tempo ou se é só uma questão de prioridades do governo. 
O atual teto de gastos vai mesmo diminuindo o espaço para despesas não obrigatórias ao longo tempo. As despesas com a Previdência, por exemplo, continuam crescendo mesmo com a reforma e, como o teto fica parado no mesmo lugar, ele só é reajustado pela inflação. Isso faz com que o espaço para o resto vá ficando cada vez menor.
Com esse contexto do teto, fica mesmo impraticável pensar em uma expansão significativa de gastos sociais. No entanto, há soluções alternativas, como, por exemplo, a tributação da renda dos mais ricos – que a gente sabe que pagam pouco imposto de renda da pessoa física no Brasil por causa de uma série de isenções e também de uma alíquota máxima baixa para padrões internacionais. A transferência, por exemplo, dessa arrecadação extra para programas de transferência de renda é algo que é perfeitamente possível. Já há simulações que mostram que daria para financiar um programa bastante generoso com medidas que não são nada radicais, que só tornam um pouco mais justo o nosso sistema tributário.
Mas isso também é inviável hoje com o teto de gastos porque a forma como ele é desenhado impede que se arrecade mais e se gaste mais. Os gastos estão parados no mesmo lugar independentemente do nível de arrecadação de impostos. Isso impossibilita que nós debatamos soluções alternativas, pois envolveriam um redesenho do teto que o tornasse mais alinhado com a experiência internacional, em que o limite para o crescimento dos gastos é atrelado a quanto cresce a economia e a arrecadação.

A dívida pública foi o principal assunto nas perguntas enviadas pelos leitores, especialmente no que diz respeito à alta porcentagem do orçamento federal que está comprometida com o pagamento da dívida. Alguns cálculos mostram que quase 40% do orçamento vai para pagar juros e amortizações da dívida. Quanto disso é verdade e quanto é exagero?
Em geral, esses números confundem um pouco o que de fato é o pagamento de juros com o que é uma rolagem da dívida pública, que é quando o governo emite dívida para pagar os juros sobre a dívida anterior. Esse é um procedimento normal, que todas as economias do mundo realizam.
Há muita confusão nesse debate. Não é correto dizer que é por conta do pagamento de juros que o orçamento público está restrito para outras áreas. Esse raciocínio mistura coisas muito diferentes em uma mesma conta. Na prática, o que restringe o orçamento público brasileiro são as regras fiscais que a gente adota. A meta de resultado primário faz com que, quando a economia cresce menos e arrecada menos, a gente seja obrigada a cortar gastos. O teto de gastos fixa o valor total dos gastos públicos.
A nossa capacidade de financiamento por meio da dívida pública permite que, em situações de emergência, a gente gaste mais para estabilizar a economia e evitar os efeitos socioeconômicos de um choque. É assim mesmo que deveria funcionar o sistema. O mito de que o país tinha quebrado e não tinha qualquer possibilidade de gastos adicionais se desfez a olho nu na pandemia. Esse ano, o Brasil gastou mais de 8% do PIB com medidas de combate à pandemia, e a maior parte disso foi justamente para o auxílio emergencial por meio da emissão de dívida pública. Não tivemos que recorrer, por exemplo, a dívidas em dólar, a empréstimos do FMI – como a Argentina e outros países do hemisfério sul. Agora, isso não significa que a gente queira ir para qualquer patamar de dívida pública e torná-la explosiva para todo o sempre.
O indicador que importa é o que relaciona a dívida pública com o PIB. E ele não depende só do quanto o governo está gastando, depende também do quanto a economia está crescendo, do próprio PIB, e do quanto o governo está arrecadando. Então, não é um cálculo estático, é um cálculo dinâmico.
No caso brasileiro, de um lado, dá para pensar em um caminho em que a gente tenta estabilizar a dívida e redistribuir os custos dessa crise por meio de uma tributação maior sobre altas rendas e patrimônios. E, de outro, a gente também toma medidas que estimulem o crescimento econômico para que a arrecadação de impostos volte, para que o PIB cresça, e essa dívida então deixe de pesar tanto assim em relação ao PIB.
Mas algum tipo de atuação pontual é necessária, já que há projeções mostrando que a dívida pode chegar até 100% do PIB em 2020.
Sim, mas o que se demanda para estabilizar a dívida pública é que é a grande controvérsia. Uma atuação que signifique cortar gastos em todas as áreas em meio a um quadro de crise econômica, que é o quadro que a gente tem no ano que vem, é justamente o que o FMI alerta que pode acabar sendo contraproducente porque isso prejudica a recuperação em tal nível que a dívida pode, ao invés de cair, subir em relação ao PIB, como, aliás, ocorreu no Brasil. Desde que começou o ajuste fiscal em 2015, a dívida pública só subiu em relação ao PIB porque a economia ficou estagnada.
Então, tem que ter muito cuidado com a composição desse ajuste para não prejudicar a própria retomada. E também é necessário considerar essa relação entre taxa de juros e taxa de crescimento econômico para projetar o que é essa dinâmica da dívida ao longo do tempo. O orçamento público não é como o orçamento familiar, em que você simplesmente não tem qualquer poder sobre quanto recebe. Ao gastar, o governo também pode estimular uma economia, que por sua vez cresce, o que gera arrecadação de impostos. Então, tudo isso não é uma matemática tão exata. A gente não pode correr o risco de precipitadamente tirar todo e qualquer estímulo da economia e, com isso, acabar sofrendo uma recessão ainda mais longa e uma dificuldade ainda maior de recuperar a arrecadação e estabilizar a dívida.

Você defendeu que a renda emergencial deveria ser permanente no pós-pandemia. Por quê? Essa é a melhor forma de reduzir a desigualdade no país? 
Quando eu falo em tornar permanente algum sistema mais amplo de proteção social, estou falando de criar uma renda básica, não de tornar permanente o atual formato do auxílio. Mas está claro que a precarização, a volatilidade da renda na base da pirâmide e outros desafios que o mercado de trabalho do século XXI vem apresentando – como relações de trabalho que não são sindicalizadas, e por isso trabalhadores não têm poder de negociação sobre quanto ganham, acabam aceitando jornadas indignas, salários indignos –, isso tudo justifica que a gente repense a rede de proteção social e expanda esses mecanismos de transferência de renda.
Acho que isso tem que vir em um pacote que tira de cima para dar para os mais pobres. Então, de um lado, a tributação progressiva da renda financia um programa mais amplo de transferência de renda do outro lado. E isso tem impactos significativos sobre a desigualdade. O Made [Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades], da Faculdade de Economia da USP, do qual faço parte, está lançando uma nota em que fica muito claro que uma tributação sobre os mais ricos no Brasil hoje é capaz de financiar um programa bastante generoso que atinja os 50% mais pobres da população com um benefício per capita bastante superior ao atual Bolsa Família. E isso teria um impacto muito significativo na desigualdade. A gente inclusive compara [essa proposta] com as propostas que foram feitas pelo governo, que remanejam recursos dos programas sociais existentes e, com isso, têm um impacto muito menor na desigualdade. É perfeitamente possível. Mas, claro, esbarra em restrições que são predominantemente políticas, não econômicas.
Com o fechamento de mais de 700 mil empresas pequenas e médias durante a pandemia, o desemprego também bateu recorde. Você disse que esse foi o eixo de medidas econômicas que menos deu certo, então qual seria o caminho para recuperar esses empregos?
Essa é a tarefa mais difícil porque empresas que fecham não necessariamente reabrem, empresas grandes que sobrevivem acabam dominando esses mercados, o que leva a uma concentração maior de riqueza e de poder de mercado na mão de poucos e destrói empregos, porque as pequenas empresas são as maiores empregadoras. Quase metade dos empregos no Brasil são de pequenas empresas, sobretudo em setores de serviço e de comércio que foram muito afetados por essa crise e que empregam muita gente da base da pirâmide e com menor grau de instrução. Então, isso é um problema de difícil solução porque, para que essas empresas voltem ou que outras as substituam gerando empregos, a gente precisa que a economia cresça. E esse crescimento econômico não pode ficar restrito ao topo da distribuição, porque a gente está falando de lojas, comércios e serviços em geral ao redor do Brasil, em todos os bairros, em municípios mais pobres, não só de quem serve às elites econômicas.
Esse crescimento robusto e essa retomada mais inclusiva exigiriam um plano de recuperação, como, aliás, vários países da Europa estão anunciando, desenhando, formulando. O debate hoje em países europeus e em alguns países asiáticos é justamente sobre planos de recuperação pós-pandemia que sejam inclusivos e sustentáveis e gerem empregos. O debate aqui no Brasil é sobre onde nós vamos cortar mais gastos no ano que vem, não sobre um plano de recuperação econômica. De alguma forma, a gente está completamente descolado dos desafios que estão colocados pela frente. Isso pode tornar permanente o fechamento das empresas e essa redução do número de ocupações na economia brasileira.
Além disso, a resposta muitas vezes são as reformas…
As reformas estão sendo pensadas sempre como “onde cortar” e “quantos bilhões de economia elas vão gerar”, o que também é uma maneira equivocada de pensar as próprias reformas. As reformas que estão sendo discutidas, como a reforma administrativa e a reforma tributária, são importantes para seus propósitos. Então, a reforma administrativa é importante para reestruturar as carreiras de maneira que os servidores públicos realizem o trabalho de forma mais eficiente para melhorar a qualidade dos serviços públicos para a população. Mas não é isso que acaba pautando o debate sobre a reforma.
A reforma no atual contexto, inclusive, não é favorável para esse tipo de discussão, porque as preocupações mais de curto prazo dominam – quase 14% de desemprego, desigualdade crescente, um auxílio emergencial que está chegando ao fim e que vai deixar desigualdades como herança, uma crise econômica que ainda não chegou ao fim, um problema na área da saúde, problemas na área de educação… E a discussão é sobre uma reforma administrativa que visa apenas gerar não sei quantos bilhões de economia. Essa não é a maneira de pensar o debate. Enquanto isso, a gente não tem nenhum plano de recuperação econômica.

Houve uma pergunta também sobre o Paulo Guedes, que não tem entregado nada do que prometeu. No primeiro ano de governo houve um crescimento pífio, durante a pandemia a proposta era um auxílio de R$ 200, e a única reforma que saiu do papel foi graças ao Congresso. O que ainda sustenta o Guedes no governo?
O governo foi eleito com essa plataforma que combina uma parte de conservadorismo e autoritarismo com esse fundamentalismo de mercado que o Paulo Guedes representa. Essa combinação nem é tão comum nesses novos movimentos de extrema direita ao redor do mundo, como na Hungria e nos Estados Unidos. E isso gera contradições crescentes.
Por um lado, isso ajudou a eleger o Bolsonaro porque garantiu o apoio de elites econômicas e reforçou o discurso de que a corrupção e o establishment políticos eram culpados pela crise econômica, então era melhor o estado não atrapalhar. Mas isso também é uma fraqueza do projeto bolsonarista que a gente viu durante a pandemia: o projeto não é capaz de lidar com o que a realidade impõe, não entrega resultados à população. O fato de, durante a pandemia, terem se aliviado as restrições e ter havido a possibilidade de fazer o auxílio emergencial acabou até ajudando o governo Bolsonaro e indo totalmente contra a agenda econômica difundida pelo Paulo Guedes.
Então, não sabemos o quanto essa contradição, que só vai aumentar, vai mudar o rumo da política econômica. É possível que o próprio Paulo Guedes altere esse rumo, como fez esse ano, ou talvez ele se torne incompatível com a continuidade do projeto.
O fato é que o Paulo Guedes em si também tem uma postura de não estar exatamente interessado em governar. O discurso e a mobilização da base acabam sendo muito mais importantes do que a formulação e a aprovação das políticas, e isso está muito em linha com a postura do governo Bolsonaro em geral. Veremos o que vai falar mais alto.

Você falou um pouco sobre uma retomada mais inclusiva e sustentável, a chamada “retomada verde“. Essa é uma possibilidade real no Brasil ou ainda estamos muito atrelados a correntes muito tradicionais e a um embate cristalizado no governo entre o liberalismo do Guedes e o desenvolvimentismo do Bolsonaro e dos militares?
Eu gosto de pensar que a gente tem todas as condições de formular um plano baseado em um novo modelo de desenvolvimento que seja inclusivo e sustentável e que não tenha a ver com esse desenvolvimentismo experimentado nos anos 1960 e 1970, que foi concentrador de renda e que também não tinha qualquer preocupação com os danos ambientais. Eu acho que é perfeitamente possível desenhar um modelo que envolva o próprio combate às desigualdades de renda e de acesso a serviços, uma série de lacunas que a gente nunca superou, como um vetor de geração de empregos e geração de novas tecnologias. Não se trata de não ter crescimento econômico, mas de se ter um outro tipo de crescimento econômico que beneficie a maioria da população, não só alguns, e que não destrua o meio ambiente.
A gente tem que articular um plano que envolva não só o setor público, mas o setor privado, as universidades, os institutos de pesquisa, e que seja orientado por essas missões de combate às nossas desigualdades e lacunas. Por exemplo, saneamento básico é uma área que a gente nunca resolveu. Uma parte do país não tem acesso a água e esgoto tratados. A área da educação, a da saúde que tem desigualdades enormes, que a gente viu agora concretamente, são áreas que claramente têm demandas urgentes da sociedade para a resolução desses problemas de infraestrutura ou de acesso a serviços e que têm um potencial enorme, se bem articulados, de mobilizar recursos que permitam o desenvolvimento de produtos e tecnologias locais que a gente possa potencialmente exportar. É possível inverter a lógica: não ser uma política industrial, voltada para os setores X ou Y da indústria, e sim ser uma política voltada para resolver os problemas da população que engendre efeitos para pequenos e médios produtores que tenham capacidade de gerar tecnologia e que possam ser mobilizados em uma estratégia assim, a partir das compras do governo, do BNDES e do setor privado.

Outra pergunta muito interessante que recebemos é quais são as alternativas para projetos de desenvolvimento econômico que levem em conta comunidades que não têm o lucro como objetivo? Onde cabem as lutas e os sonhos dessas populações?
Essa ideia de desenvolvimento que é pensada de maneira quase oposta à preservação ambiental, à sobrevivência das populações indígenas, que enxerga essas populações muitas vezes como um custo nesse processo, é justamente para onde não queremos ir. Inclusive, é uma oposição que é falsa.
Uma maneira muito mais interessante de pensar é o que eu estava descrevendo antes: partir das necessidades, das desigualdades e das demandas para gerar crescimento econômico inclusivo e ambientalmente sustentável. A economia solidária, circular, é plenamente compatível com um modelo assim. É evidente que no sistema capitalista sempre vai haver a tentativa de destruir e absorver esse tipo de iniciativa, e por isso é necessário que sejam formuladas políticas que preservem esse caráter. Mas isso não significa abrir mão do desenvolvimento econômico de maneira nenhuma.
No bioma amazônico, existe uma série de tecnologias que podem surgir justamente da sabedoria das populações indígenas e que têm que ser pensadas para serem compatíveis com o modo de vida dessas populações. Esse caminho também pode levar a aumentos de renda e à melhora de qualidade de vida para essas populações e para o Brasil em geral.
Essa ideia das missões sociais e ambientais como motores do crescimento econômico e desenvolvimento é uma inversão de lógica que é muito mais interessante para a gente pensar a estrutura produtiva do século 21, e não pensar em como retornar para estrutura produtiva do século 20.

‘O maior erro dos investidores é excesso de confiança’ segundo Richard Thaler.

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Expoente da economia comportamental diz que maior perigo é quando as pessoas acreditam que podem ‘bater o mercado’

Entrevista com Richard Thaler, Estado de São Paulo, 22/11/2020.

O economista americano Richard Thaler, de 75 anos, prêmio Nobel de Economia em 2017, é um dos expoentes da chamada “economia comportamental’, a corrente que estuda os efeitos da psicologia nas decisões econômicas. No best-seller Nudge – Um Pequeno Empurrão, escrito em parceria com o jurista Cass Sunstein e publicado em 2009, Thaler questiona a premissa de que os indivíduos tomam decisões econômicas de forma racional – adotada como verdade absoluta pelos economistas clássicos e neoclássicos – e apresenta um roteiro para ajudar a prevenir as escolhas erradas que fazemos em nossas vidas.
Nesta entrevista ao Estadão, realizada por e-mail, Thaler fala sobre como a pandemia está mudando o comportamento das pessoas e como isso vai moldar o mundo daqui para a frente. Fala também sobre os erros cometidos pelos investidores e sobre o que fazer para evitá-los. “O maior erro que os investidores cometem é o excesso de confiança”, afirma Thaler, que dará uma palestra por vídeoconferência amanhã, no Congresso Brasileiro de Mercado de Capitais, promovido pela B3 e pela Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiros e de Capitais (Anbima).

Como a pandemia afetou o nosso comportamento econômico e social e de que forma isso pode moldar as nossas vidas no futuro?
A pandemia é um momento determinante para o mundo. Desde o começo de março, a vida mudou para a maioria de nós. Tornou-se um teste para todos. Eu mesmo fui atingido em muitos aspectos por ela. Primeiro, a doença está tornando as nossas sociedades já desiguais ainda mais assimétricas. Nos Estados Unidos, as classes mais educadas não estão sofrendo muito, a não ser quando contraem a doença. As pessoas estão trabalhando em casa e lutando para educar os próprios filhos e cozinhar as suas próprias refeições. Mas, para a maioria, os meios de vida não foram ameaçados. Os mais abonados estão até reforçando a poupança, porque não têm em que gastar seu dinheiro.

No caso dos menos privilegiados, como foi o impacto da pandemia?
Os que trabalham na área de serviços, especialmente em restaurantes, hotéis e companhias aéreas, sofreram um duro golpe financeiro, e os profissionais de saúde que estão atuando na linha de frente da pandemia estão arriscando as suas vidas diariamente para cuidar dos doentes. Com certeza, trata-se de um grande teste para qualquer líder político e alguns estão claramente se dando melhor do que outros. Não consigo me lembrar de outra época em que tenha havido tanta incerteza. Todos nós estamos vivendo um dia de cada vez – e é provável que continue assim pelo menos por mais um ano, até surgirem vacinas para combater o vírus. São tempos assustadores.
O que mais chamou a sua atenção em termos de comportamento econômico na pandemia?
Em muitos casos, o comportamento mudou bem antes da adoção das medidas de isolamento social. A frequência a restaurantes e a realização de reservas aéreas, por exemplo, caíram rapidamente em meados de março, bem antes de as empresas fecharem. As pessoas têm bom senso. Bom, ao menos algumas pessoas têm.

Ao contrário do que diz a teoria econômica clássica e neoclássica, o sr. afirma que, muitas vezes, as nossas decisões econômicas são irracionais. Como isso afeta as pessoas, os mercados e os países?
Eu não gosto muito de usar a palavra “irracional”. Ser racional tem um significado especial em economia e o primeiro problema foi com os modelos que se baseiam em suposições irrealistas sobre comportamento. É claro que muitas pessoas são ingênuas sobre muitos aspectos de seu bem estar financeiro. Por isso, é importante que a gente as ajude sempre que possível. Mas algumas vezes, as pessoas pensam que eu estou criticando os seres humanos. É uma interpretação equivocada. Não é que as pessoas são burras. O mundo é que é duro.

Como a gente pode se proteger contra a nossa própria irracionalidade econômica?
Há muitas coisas que podemos fazer para nos proteger de nossas falhas. Todo mundo sabe que, às vezes, nós esquecemos das coisas. Por isso, fazemos listas. Colocamos alarmes para nos acordar e escrevemos compromissos importantes nos nossos calendários, para não perdê-los. Em questões financeiras, muitas famílias podem se beneficiar se fizerem as coisas de forma automática. Para muita gente, a melhor e talvez a única forma de poupar é se o dinheiro for tirado diretamente de seus contracheques antes que tenham a chance de gastá-lo. Os governos podem ajudar ao criar mecanismos que permitam que cada trabalhador possa direcionar diretamente uma parte de seu salário para a poupança. Também é importante oferecer estratégias sensatas de investimento, para que as pessoas não tenham de se tornar gestoras de seus próprios portfólios. Nós não fazemos cirurgias em nós mesmos. Chamamos médicos para fazê-las para nós. Com o nosso dinheiro, deveria acontecer a mesma coisa.

O professor Robert Schiller, também Prêmio Nobel de Economia, certa vez afirmou que ‘é o espírito animal que faz a economia andar’ e que tomamos decisões com base na intuição, e não na razão. Como isso se encaixa na sua teoria sobre os erros que cometemos nas nossas decisões?
Espírito animal é um termo confuso. Eu prefiro pular esta pergunta.

Se o sr. pudesse fazer uma única recomendação relacionada ao comportamento dos investidores no mercado, qual seria ela? Por quê?
O maior erro que os investidores cometem é o excesso de confiança. O maior perigo é quando as pessoas acham que podem selecionar uma ação específica para tentar “bater o mercado”. Os fatos mostram que a maioria dos gestores ativos (que selecionam papéis específicos para investir, em vez de montar uma carteira que espelhe os índices de mercado) fracassa ao fazer isso. É difícil. Sou diretor de uma empresa de gestão de recursos que adota uma estratégia ativa no mercado, mas nós contratamos pessoas muito inteligentes, damos a elas acesso a toneladas de informação e – mais importante – disciplina, para conseguir bons resultados. Quando falo em disciplina, quero dizer que nós tentamos apostar nos erros previsíveis dos outros. Isso é mais fácil do que tentar evitar os próprios erros.

Na prática, o que isso significa?
Por exemplo: pode haver uma estrada com uma curva perigosa. Prever que haverá colisões ali é fácil. Agora, se você receber um empurrão ou um estímulo, talvez possa evitar de se envolver em batidas. Nos Estados Unidos, muitas pessoas começaram a negociar por conta própria na Bolsa durante a pandemia. Pode se que tenham feito isso porque estavam entediadas e porque, durante um tempo, as apostas na área esportiva estavam suspensas. Ao longo desse período, o mercado subiu na maior parte do tempo, especialmente os papéis das grandes empresas de tecnologia, que são populares com pessoas físicas. Isso elevou o risco de haver excesso de confiança. Será que elas saberão quando chegar a hora de vender e sair do mercado? Eu duvido.

Numa escala de irracionalidade nas decisões econômicas de países, em qual posição o sr. colocaria o Brasil?
Dada a situação política no meu país, não me sinto credenciado a fazer julgamentos sobre governos de outras nações. Vamos apenas dizer que nenhum dos nossos governos está indo bem em lidar com a covid-19, especialmente em comparação com países como a Nova Zelândia.

O sr. investiria seu dinheiro no Brasil agora? Em qual ativo?
Eu não faço previsões sobre países.
O sr. está escrevendo um novo livro? Sobre o que será?

Sim. Quer dizer, mais ou menos um novo livro. O Cass Sunstein e eu estamos terminando agora uma grande revisão do nosso livro Nudge – Um Pequeno Empurrão. O título será Nudge – A Edição Final. Deve ser publicado no próximo verão (inverno no Brasil). Eu diria que será um livro, no mínimo, 50% novo. Terá muitos tópicos totalmente novos, incluindo um sobre o Sludge, que é o empurrão do mal. Este tem sido o meu projeto na pandemia.

Que livros o sr. está lendo agora?
Comecei a ouvir o áudio do novo livro do (ex-presidente) Barack Obama, que é narrado por ele mesmo. É muito agradável.

”O planeta está atravessado por múltiplas fraturas de desigualdade, que a pandemia irá agravar ainda mais” segundo Piketty.

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Novos indicadores permitem uma compreensão mais precisa e abrangente das desigualdades em nível mundial, detalha o economista em sua coluna

Thomas Piketty – Carta Maior, 17/11/2020

Graças ao esforço conjunto de 150 pesquisadores de todos os continentes, o World Inequality Database acaba de colocar online dados inéditos sobre a distribuição de renda em diferentes países do mundo. O que eles nos ensinam sobre o estado das desigualdades mundiais?

A principal novidade é que esses dados abrangem quase todos os países. Graças a pesquisas realizadas na América Latina, África e Ásia, já há 173 países com dados submetidos a tratamento, representando 97% da população mundial. Os novos dados também permitem analisar para cada país a evolução detalhada de toda a distribuição, dos mais pobres aos mais ricos.

Concretamente, já sabíamos que o aumento das desigualdades produziu-se de cima no curso das últimas décadas, com a explosão do famoso 1%. A novidade é oferecer uma comparação sistemática da situação das classes populares nas diferentes partes do mundo. Constata-se assim que a participação dos 50% mais pobres varia consideravelmente dependendo do país: oscila entre 5% e 25% da renda total. Em outras palavras, para uma mesma renda nacional, o padrão de vida dos 50% mais pobres pode variar de um fator que vai de 1 a 5. Isso mostra o quão urgente é ir além do PIB e dos agregados macroeconômicos para privilegiar o estudo das distribuições e grupos sociais concretos.

Patrimônio e renda
Deve-se notar também que as desigualdades são fortes em todos os países. A parcela dos 10% mais ricos representa entre 30% e 70% da renda total. É sempre significativamente mais elevada do que aquela dos 50% mais pobres. A diferença seria ainda mais acentuada se olhássemos a distribuição do patrimônio (o que se possui) e não da renda (o que se ganha em um ano). Os 50% mais pobres não possuem quase nada (geralmente menos de 5% do total), inclusive nos países mais igualitários (como a Suécia). Os dados disponíveis sobre patrimônio continuam todavia insuficientes e serão atualizados em 2021.

Em relação à distribuição da renda, há variações muito fortes entre países, inclusive no interior de determinada região e para um mesmo nível de desenvolvimento. Isso mostra que as políticas podem fazer a diferença. Na América Latina, podemos observar que Brasil, México e Chile são historicamente mais desiguais do que Argentina, Equador ou Uruguai (onde políticas sociais mais ambiciosas foram implementadas por várias décadas), e que a diferença entre esses dois grupos de países aumentou nos últimos vinte anos. Na África, as desigualdades mais extremas são encontradas no sul do continente, onde nenhuma redistribuição real de terras e da riqueza ocorreu desde o fim do apartheid.

De modo geral, o mapa das desigualdades mundiais reflete ao mesmo tempo os efeitos da antiga discriminação racial e colonial e o impacto do hipercapitalismo contemporâneo e de processos sociopolíticos mais recentes. Em vários dos países mais desiguais do planeta, como Chile e Líbano, os movimentos sociais dos últimos anos têm alimentado a esperança de profundas transformações.

O Oriente Médio aparece como a região mais desigual do planeta, tanto por um sistema de fronteiras que concentra recursos em territórios petromonárquicos, como por um sistema bancário internacional que permite transformar a renda do petróleo em renda financeira eterna. Na ausência de um novo modelo de desenvolvimento regional mais equilibrado, social-federativo e democrático, o temor é que as ideologias totalitárias e reacionárias em ação continuem a ocupar o terreno, como na Europa há um século.

Choque de desigualdade
Na Índia, onde as diferenças entre o topo e a massa da população atingiram níveis nunca vistos desde o período colonial, os nacionalistas hindus acreditam poder acalmar as frustrações socioeconômicas alimentando tensões identitárias e religiosas, cujo efeito é agravar a discriminação enfrentada pela minoria muçulmana, ameaçada de empobrecimento e marginalização duradoura.

Nota-se também a progressão contínua das desigualdades na Europa Oriental desde os anos 1990. Logo após a queda do comunismo, o choque de desigualdade foi muito mais brutal na Rússia, que em poucos anos tornou-se a capital mundial dos oligarcas, dos paraísos fiscais e da falta de transparência financeira, depois de ter sido o país da abolição total da propriedade privada. Mas, quase trinta anos depois, a Europa Oriental parece estar gradualmente se aproximando do nível de desigualdade observado na Rússia. A estagnação dos salários e a magnitude do fluxo de lucros para fora desses países alimentam uma frustração que o Ocidente do continente tem dificuldade em compreender.

A nível mundial, constata-se, é verdade, que a participação dos habitantes 50% mais pobres do planeta aumentou significativamente, passando de 5% da renda mundial total em 1980 para cerca de 9% em 2020, graças ao crescimento dos países emergentes. Esta progressão deve, porém, ser relativizada, na medida em que a participação dos 10% mais ricos do planeta se manteve estável em torno de 53% e a dos 1% mais ricos passou de 17% para 20%. Os perdedores são as classes médias e populares do Norte, o que alimenta a rejeição da globalização.

Resumindo: o planeta está atravessado por múltiplas fraturas de desigualdade, que a pandemia irá agravar ainda mais. Só um esforço acumulado de transparência democrática e financeira, hoje muito insuficiente, permitiria desenvolver soluções aceitáveis para o maior número.

Thomas Piketty é diretor de estudos da École des Hautes Etudes en Sciences Sociales e professor da Ecole d’économie de Paris. 

A desastrosa marcha à ré do combate à pobreza e à desigualdade, por M. H. Tavares.

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Os mais ricos ficaram com quase todo o crescimento da renda de 2017 para cá.

Folha de São Paulo, 19/11/2020.

Nos últimos dez anos, perdemos a luta contra a pobreza e a desigualdade, objetivo incontornável de qualquer país que se quer decente. Essa é a conclusão do primoroso trabalho “Distribuição de renda nos anos 2010: uma década perdida para desigualdade e pobreza”, escrito por três ases –os pesquisadores Rogério Barbosa, Pedro Ferreira de Souza e Sergei Soares– e recém-publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), do Ministério da Economia, na série Textos de Discussão.

Ali se lê que os ganhos conseguidos entre 2012 e 2014 –e que davam prosseguimento a uma longa trajetória virtuosa de redução do número de pobres e das disparidades de renda– cessaram com a crise econômica de 2015-2016 e foram literalmente revertidos nos dois anos seguintes.
O desarranjo da economia não atingiu a todos da mesma forma nem ao mesmo tempo. A derrocada começou no governo Dilma, provocada por uma leitura míope dos obstáculos da hora, conduzindo a soluções ineficazes para superá-los.

Mas foi ao longo da difícil recuperação que teve início em 2017, já sob o comando da centro direita de Temer & Meirelles, que a sorte dos mais pobres foi selada. Segundo os estudiosos citados, os brasileiros mais ricos se apropriaram de cerca de 80% do crescimento da renda no período, enquanto os ingressos da metade mais pobre caíram 4%. Na mesma proporção cresceu a desigualdade. Sem sombra de dúvida, esse aumento foi o responsável pela ampliação da pobreza.

Os pesquisadores demonstram que o inchaço do desemprego e a queda dos salários foram os vilões da tragédia que desfez sonhos e esperanças de milhões de famílias e multiplicou o número dos sem-teto nas grandes cidades.

A Previdência Social também teve seu papel: os maiores benefícios destinaram-se aos grupos de melhor remuneração. Finalmente, o estudo revela terem sido quase nulos os efeitos compensatórios dos programas de proteção da renda, como o Benefício de Prestação Continuada, o Seguro Desemprego e o Bolsa Família, cujos recursos não acompanharam o aumento dos que a ele teriam direito.
Uma administração que produziu muito progresso, mas não as condições fiscais para sustentá-lo, seguida de outra que em dois anos promoveu impressionante retrocesso social são responsáveis pela marcha à ré do país e pela perda de uma década de mitigação das injustiças.

Não é provável que o quadro melhore neste governo: reduzir pobreza e desigualdade não faz parte de sua agenda retrógrada. Que, ao menos, os democratas com preocupações sociais aprendam com o estrago e se preparem para fazer melhor.

Maria Hermínia Tavares

Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap. Escreve às quintas-feiras.