Capitalismo virótico, diz Ricardo Antunes.

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Em entrevista, professor da Unicamp fala sobre o nível predatório e destruidor do capitalismo, discussão presente no novo livro Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0

Por Jornal GGN- 14/10/2020

Capitalismo virótico: um sistema destrutivo que só será superado através das lutas sociais, diz Ricardo Antunes.

por Liana Coll

Estamos vivendo, em pleno século XXI, as formas mais predatórias do capitalismo. A reflexão é do sociólogo e professor da Unicamp Ricardo Antunes, responsável pela organização do livro Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0, lançado no último 1º de outubro. A publicação foi viabilizada através de parceria entre o Ministério Público do Trabalho (MPT/15ª região) e a Unicamp e traz artigos de 21 autores. Em entrevista concedida ao Portal da Unicamp, o pesquisador fala sobre alguns dos temas contemplados na obra, como o nível de destrutividade do capital, que o fez cunhar a expressão “capitalismo pandêmico”, e a expansão da uberização do trabalho, com trabalhadores convertidos a prestadores de serviços e enfrentando jornadas extensas, desprotegidas e desprovidas de direitos.

“No capitalismo do século XXI, da sua tecnologia mais avançada, nós estamos retornando a um nível de exploração que mais se assemelha ao capitalismo da acumulação primitiva, da protoforma do capitalismo, como digo no ensaio que abre esse livro. Nós estamos retornando a jornadas de trabalho de 10 horas, 12 horas, 14 horas, 16 horas por dia, como no início da Revolução Industrial, ou como nas colônias que se utilizavam de trabalho escravo”, analisa. Esse nível de exploração, conforme o professor, se aprofunda na pandemia, mas se atrela a um conjunto de medidas anteriores, como a Reforma Trabalhista decorrente uma política econômica que ele classifica como “neoliberalismo primitivo”.

Traçando um paralelo entre o nível de destruição do capital, as queimadas no Brasil e a circulação do novo coronavírus, Ricardo Antunes chama o capitalismo atual de “tóxico e virótico”, ou de “capitalismo pandêmico”, uma vez que combina crescente níveis de exploração e degradação humanas à destruição do meio-ambiente. Por isso, afirma: “É preciso reinventar o mundo. Onde o trabalho tenha dignidade e sentido humano e social, onde não haja destruição da natureza”.

Para o docente, que também lançou recentemente o ebook Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado, dada à tragédia social, que combina cada vez mais trabalhadores e trabalhadoras informais, uberizados e desempregados com o crescente lucro das grandes corporações, não há como o capitalismo se reorganizar. O abissal nível desigualdades, junto à destruição dos direitos sociais, só conhecerão um limite: “esse limite se chama luta social, rebelião, confrontação, descontentamento”, pontua.

Confira a entrevista e assista também ao vídeo “Trabalho e adoecimento?”, em que Ricardo Antunes e a professora da Unicamp e médica do trabalho Márcia Bandini falam sobre a relação entre trabalho e saúde.

Como você pontua no e-book Coravírus: o trabalho sob foto cruzado e também no livro Uberização, trabalho digital e indústria 4.0, vivemos um sistema de metabolismo antissocial do capital. O que isso significa e como culmina, junto à crise estrutural, no que você chama de capital pandêmico?

O capitalismo se parece com o corpo humano. Marx usou a ideia do metabolismo social como sendo similar, metaforicamente, ao metabolismo humano. Nós temos órgãos que no seu todo funcionam, e alguns são mais vitais que outros. O capitalismo é assim. Foi o filósofo húngaro István Mészáros que cunhou a expressão sistema de metabolismo social do capital, que só se reproduz destruindo. Eu dou três exemplos que eu desenvolvo longamente no ebook e no livro novo [Uberização, trabalho digital e indústria 4.0]. A destruição do trabalho é mundial. Nós temos hoje uma grande população na informalidade. Mês atrás a Organização Internacional do Trabalho [OIT] estimava que chegaríamos a 1 bilhão e 600 milhões de pessoas na informalidade, mas temos mais que isso, porque é impossível mensurar a informalidade. Há dois meses o IBGE disse que a informalidade no Brasil estava diminuindo, em plena pandemia, e alguém falou “puxa, que bom”. Não, não é bom. É porque o informal está perdendo emprego. É uma tragédia ainda maior porque se você tem um informal trabalhando é trágico, mas ele come. Se você tem um informal desempregado você tem uma tragédia mais profunda.

“Nós chegamos hoje num capitalismo tóxico e virótico”, diz Ricardo Antunes

Então o sistema de metabolismo social do capital e é destrutivo em relação ao trabalho, é destrutivo em relação à natureza. Nós chegamos hoje num capitalismo tóxico e virótico. Nós hoje respiramos um ar contaminado, o aquecimento global compromete o mundo, especialmente os países da periferia. Estamos vendo no Brasil as queimadas. O país pegando fogo no sentido literal, com queimadas na Amazônia, no Pantanal, em reserva florestal no Paraná, em Minas Gerais. Temos os derretimentos das geleiras e quando as geleiras derretem os vírus que estavam lá sedimentados se esparramam. Quando há queima generalizada no Amazonas isso afeta totalmente as condições ambientais, ecológicas e os vírus começam a circular. O capitalismo é destrutivo porque ele supõe energia fóssil, tem produção descontrolada no agronegócio, como a criação de gado, altamente comprometedora do meio-ambiente, extração mineral, destruição de florestas, queimadas, etc, agrotóxicos que poluem os rios, a lista é enorme. É um sistema de metabolismo social destrutivo e é destrutivo em relação ao gênero humano.

O capitalismo se estruturou no século XVIII como sistema de metabolismo social e eu quis chamar nesse meu livro pela primeira vez esse sistema de metabolismo social de antissocial. É possível enfatizar, na linha do meu amigo Mészáros, que é um sistema de metabolismo antissocial do capital. O capitalismo não tem como se reorganizar dado ao tamanho da tragédia global, que não é só no sul do mundo. Veja a situação dos imigrantes no norte do mundo, sendo jogados nos mares. Mas como assim? “O mundo europeu é dos europeus”, mas quantos italianos, alemães, portugueses e espanhóis vieram, por exemplo, para a América Latina no século passado? Está tudo errado e é por isso que eu chamo de sistema de metabolismo antissocial do trabalho. É preciso reinventar o mundo, onde o trabalho tenha dignidade e sentido humano e social, onde não haja destruição da natureza. Como vão viver nossos filhos e netos? Com contaminações pulmonares uma atrás da outra. Já estão falando que o próximo vírus da Sars vai ser tenebroso, que a Covid pode ter formas mais violentas. Por isso chamo no livro de capitalismo virótico ou capitalismo pandêmico.

No início da pandemia, algumas análises apontavam para a oportunidade de repensar hábitos de consumo. Hoje as intenções de consumo dos brasileiros voltam a crescer. Na reabertura de comércios, por exemplo, registros mostram as ruas lotadas e filas para entrar em lojas. É possível usar esse exemplo para pensar a perda de sentido social do trabalho?

É possível, mas com cuidado porque não são a mesma coisa. O que é o trabalho dotado de sentido humano social? Por exemplo, a produção bélica, de armas e de bombas, qual o sentido que tem? Um sentido destrutivo, altamente lucrativo e que só pode vender se mata pessoas, se elimina povos. É um trabalho que enriquece as grandes corporações. Mas assim como esse exemplo há muitos outros. Quantos dos produtos que nós consumimos, por exemplo, um medicamento que poderia custar US$1 ou US$2 e custa U$50 porque ele é embalado, tem plástico, tem metal, é colorido, fofinho, tem algodãozinho. Ou seja, a droga medicamentosa poderia custar mais barato se não fosse o invólucro. É a sociedade involucral. Essa pandemia mostrou qual o trabalho que é útil, por exemplo o trabalho dos cuidados. Nós passamos a dar valor ao trabalho das trabalhadoras domésticas.

Qual o sentido humano e social da produção de automóveis? É ter um carrão, é poluir o ar, é disputar com o outro qual o carro melhor, percebe? Enquanto a produção deveria ser de trens, de ônibus de transporte coletivo. O consumo é a expressão fetichizada e estranhada de uma sociedade que é depauperada na vida e no momento em que ela pode fazer algo ela vive seu momento catártico e de regozijo no consumo.

Há naturalmente um represamento que decorre por estarmos fazendo parte de uma população em isolamento. É natural que em algum momento se precise comprar algumas coisas que estão faltando. Agora, o capitalismo não funciona sem esse momento catártico do consumo. É o gozo supremo de uma sociedade desprovida de sentido humano societal. Então tem a ver sim, até porque a produção se enfeixa no consumo e o consumo depende da produção. O que enriquece as grandes corporações é esse ciclo.

Por exemplo, porque eu tenho que trocar todo ano de celular? É um problema complicado porque o celular nosso não é programado para durar 10, 15, anos. Eu posso tomar um cuidado danado, colocar capinha, não deixar cair. Com um ano de uso, já deu problema e não conecta mais a bateria nele. A bateria não entra mais. Mas como assim? Eu não deixei cair. O automóvel, quanto tempo duram os automóveis? Quando eu era menino, na década de 1960, eles podiam durar 30 anos. Hoje o automóvel é programado para durar quatro ou cinco anos. E se eu bato o automóvel e compromete três ou quatro peças, a perda é total, porque se eu for recuperar as peças sai mais caro que o automóvel. No mundo que nós temos, isso faz parte de uma lei de tendência decrescente do valor de uso das mercadorias. Elas podem ter o máximo de qualidade total, mas elas têm que durar cada vez menos e, como duram cada vez menos, vou ter que comprar cada vez mais. Um celular por ano, um carro por ano, um televisor por ano, um micro-ondas por ano.

A destruição ambiental é brutal, o depauperamento do trabalho é brutal porque há uma complexa maquinaria informacional digital. Algoritmos, inteligência artificial, internet das coisas, 5g. É muito espetacular a 5g, vou dar um exemplo sobre a Apple e a empresa chinesa Huawei. A Apple produz os seus celulares na FoxConn chinesa, numa montadora terceirizada. Em 2010 houve 16 tentativas de suicídios de trabalhadores numa fábrica que produz, que monta para a Apple. Isso gerou uma grita generalizada e não foi só nesse ano, as mortes se sucederam a tal ponto que a Apple foi pressionada. Se ela monta seus produtos na FoxConn, ela é corresponsável pelas mortes da FoxCOm. A Huawei, concorrente chinesa, e a Alibaba, funcionam com um sistema na China chamado 9.9-6. É um sistema onde os trabalhadores e as trabalhadoras trabalham das 9h às 21h, 12 horas por dia, e seis dias por semana. Fácil né? É esse mundo que nós queremos? Enquanto o resultado desse vilipêndio, dessa exploração brutal do trabalho, é que eu vou ter uma maquininha aqui que vai fazer meu gozo catártico durante um ano, depois ele vira pó e precisa comprar outro. O consumo é um enfeixamento desse quadro trágico.

No seu ebook, você aponta que estamos vivendo a forma mais destrutiva das relações capitalistas. Durante a pandemia, mais de metade da população perdeu rendimentos e os índices de desemprego novamente batem recordes. Cresce a intermitência, a uberização, o número de desalentados, a terceirização, como você pontua. Ao mesmo tempo, o patrimônio dos super ricos teve um grande aumento, segundo mostrou relatório da Oxfam de julho. O que acontece durante a pandemia que aprofunda ainda mais essas relações de crescente acúmulo, em uma ponta, e de precariedade, em outra? Qual o limite – se há – da desproporção dessa balança?

Há um limite e esse limite se chama luta social, rebelião, confrontação, descontentamento. Eu não sei como o mundo vai se rebelar, mas é possível. Nesse governo atual, agora a renda emergencial caiu para R$300 e já disse a figura que preside esse país que isso não vai ser eterno. Quando as populações estiverem 40%, 50%, 60% na informalidade e sem recurso, como elas vão fazer? Vão ficar esperando nas periferias, nos morros, nas comunidades a comida divina que virá dos céus, provavelmente por obra do espirito santo? Não. Entende? Então o limite quem vai dar é o nível de confrontação social que nós vamos entrar. Mas, professor, qual alternativas você vislumbra? Eu vou brincar. Eu vislumbro a alternativa Bacurau, em que em um dado momento uma comunidade que está sendo vilipendiada vai buscar o caminho deles. Eu imagino a alternativa do Coringa, também um filme espetacular e emblemático, onde um individuo desprezado socialmente se torna o líder simbólico da rebelião contra os ricos. E imagino também, para provocar, a alternativa do Parasita. Uma família operária trabalhadora que achou que estava feliz empregada e na verdade estava vivendo um inferno. E o final do filme é forte, quando o pai da família se dá conta da tragédia que a sua família se envolveu nesse trabalho.

O que estou sugerindo é que o limite vai ser dado pelas lutas sociais. Agora saindo do metafórico e dando dados concretos, houve o breque dos apps, as duas paralisações dos trabalhadores uberizados, no sentido amplo, que não é só o trabalhador que transporta pessoas em automóveis, mas aquele que usa a moto, a bicicleta para transportar comida em toda essa parafernália: Uber, Uber Eats, Ifood, Amazon, Rappi, essas maravilhas que não param de crescer. A Amazon tem uma propaganda que diz que de ‘A a Z tem tudo na Amazon’ e sabe o que isso significa? Ela começou vendendo livros, depois criou hipermercados e hoje ela faz tudo. Se eu quiser traduzir um artigo meu para mandarim eu consigo entrar uma plataforma da Amazon, que vai encontrar um tradutor ou tradutora. Trabalho que não é regulamentado, não tem direitos do trabalho. Isso eu trato nesse livro que organizei e que é uma pesquisa do grupo de pesquisa Metamorfoses do Mundo do Trabalho aqui do IFCH [Instituto de Filosofia e Ciências Humandas] da Únicamp, que eu coordeno, junto com o MPT da 15ª região, região de Campinas. Nós fotografamos isso, temos um cenário onde os trabalhadores e trabalhadoras se metamorfoseiam em prestadores de serviços e empreendedores e não têm a legislação social protetora do trabalho. Ou seja, no capitalismo do século XXI, da sua tecnologia mais avançada, nós estamos retornando a um nível de exploração que mais se assemelha ao capitalismo da acumulação primitiva, da protoforma do capitalismo, como digo no ensaio que abre esse livro. Nós estamos retornando a jornadas de trabalho de 10 horas, 12 horas, 14 horas, 16 horas por dia, como no início da Revolução Industrial, ou como nas colônias que se utilizavam de trabalho escravo. Então o limite vai ser dado pelas lutas sociais, porque o capital não tem limites.

Um dos discursos que sustentam e buscam justificar a existência dos trabalhos precarizados, principalmente os uberizados, é o do empreendedorismo e do “proletário de si próprio”, como você menciona. Por que esse discurso é problemático?

Na pandemia essas empresas de plataformas estão ganhando muito dinheiro. Muitas pequenas empresas, que empregam muito, quebraram. O governo as abandonou. Ele podia ter dado apoio às pequenas e médias empresas condicionado a não demitir ninguém e não fez isso. Os trabalhadores foram para a rua. O mito do empreendedorismo começou a derreter. Quantos empreendedores perderam tudo? Como eu digo, há o empreendedor, que sonha ser burguês de si próprio mas esta mais próximo de ser um proletário de si mesmo. Não estou criticando quem virou empreendedor, porque se a pessoa não tem o que fazer precisa se virar. Estou criticando quem imaginou que a saída do empreendedorismo fosse a saída do mundo. Agora não tem salário, não tem consumidor e não tem previdência. Muitos deles vêm que perspectiva? Depressão, suicídio e adoecimento. E depender de uma renda emergencial que é verdadeiramente irrisória. 300 reais é quanto as classes médias pagam semanalmente para o seu cachorrinho no pet shop. Para não falar das classes burguesas, porque aí é a gorjeta do cafezinho.

Eu falei em escravidão digital quanto eu estava finalizando meu livro O Privilégio da Servidão. É o trabalho que está dentro dos algoritmos, dos celulares, dentro da IA [Inteligência Artificial], mas trabalha 10, 12 horas por dia, tem metas, chega em casa, vai trabalhar em casa. Sempre falo o trabalhador e a trabalhadora, pensando na divisão sociosexual, racial e étnica do trabalho, para compreender o que chamo de nova morfologia do trabalho. A uberização é uma modalidade que começou com o zero hour contract. Médico, advogado, cuidados, engenheiros e professores vão fazer qualquer trabalho. A uberização não atinge só trabalhadores de plataformas de automóveis, de motos e bicicletas. Tem médico uberizado, advogado uberizado, arquiteto uberizado, jornalista uberizado. E os teus direitos? Que direito? Você é MEI, é intermitente, você trabalha e ganha pelo seu trabalho. O risco que nós corremos é criar uma infernal sociedade dos uberizados onde a maioria da classe trabalhadora vai ser uberizada. Atenção, STF que vive aprovando essas medidas. O STF não devia ter a competência para julgar essas questões do trabalho. Para isso existe o Tribunal Superior do Trabalho e é bom que o TST se atente também. Para o capitalismo de hoje não há espaço para justiça do trabalho. No artigo que escrevi com Vitor Filgueiras no livro novo mostramos 11 pontos que mostram que uberizado é sim contratado porque quem tem o comando é a plataforma, que não vende a tecnologia, ela explora a força de trabalho e faz a espoliação, porque o trabalhador/a tem que comprar o carro ou alugá-lo, comprar ou alugar a moto ou bicicleta, tem que pagar celular, pagar a conexão, tem que comprar até mesmo a mochila, pagar se adoece.

Terceirização irrestrita, reforma trabalhista, reforma de previdência formaram um conjunto de destruição à direitos no âmbito do trabalho e da seguridade social que já vinha se mostrando destrutivo para os trabalhadores. Agora temos as reformas administrativas, que incorporam medidas prejudiciais ao serviço público. Frente a um crescente contingente de trabalhadores precarizados, quais são as consequências da devastação dos serviços públicos? E como você avalia o discurso de que o serviço público é inchado?

É um vilipêndio. O serviço público não pode ser privatizado e desfigurado por esse neoliberalismo primitivo. Nós temos no Brasil um poder autocrático, com traços negacionistas, de destruição da ciência e o corolário disso no plano da política econômica é um neoliberalismo primitivo que assusta os neoliberalistas mais sofisticados. Eu não tenho apreço nenhum por nenhuma variante do neoliberalismo, nem a sofisticada nem a primitiva. Aliás não sei qual a pior, porque o neoliberal sofisticado é mais complexo, então o neoliberal tem a aparência de um social democrata e a alma de um predador. O neoliberalismo tem a alma da predação e qual é a predação? A privatização do que for possível e o desmonte das atividades públicas sociais do Estado. Então saúde dá lucro? Privatiza? Educação dá lucro? Privatiza. Estradas dão lucro? Privatiza. Cárcere dá lucro? Privatiza. O resultando é que estamos criando o desmonte do Estado brasileiro.

Depois que voltei da Índia que escrevi que o Brasil caminha celeremente para se tornar uma Índia na América Latina. A Índia é um país com mais de 1 bilhão de pessoas, com uma burguesia riquíssima e absolutamente minoritária porque combina-se um sistema de classes com um sistema de castas. Eu conheço o Brasil inteiro e a miséria brasileira eu já vi. Na Índia foi um choque, porque eu não podia imaginar que a degradação do ser humano chegasse nesse nível. Hoje aumentou o desemprego, a massa de trabalhadores e trabalhadoras que não encontram trabalho, e tudo isso tende a aumentar. Você precisaria de um serviço público muito mais estruturado. É verdade que precisaríamos reinventar o serviço público, profundamente público e social. A ideia de destruir o serviço público e criar “serviço privado”, entre aspas, é a destruição da sociedade brasileira. Caminharemos para sermos uma sociedade com um nível de miséria que se aproxima da Índia? E quais são os países que mais estão se destruindo na pandemia? Vejamos quais são os países que mais estão se destruindo na pandemia? A Índia, os Estados Unidos e o Brasil. Três países do vilipêndio, três países da destruição e da predação. Tomara que possamos aprender com outros países, onde o trabalho público foi vital para minimizar a tragédia da pandemia. Não fosse o SUS a nossa tragédia seria muito maior. E o SUS existe não por causa desse governo, que tentou destruí-lo. O SUS é uma conquista da população brasileira, e haveremos de torná-lo um exemplo. Ele é o ponto de partida de um trabalho público dotado de sentido público e social. Sem ciência desenvolvida nas universidades e sem pesquisa das instituições de fomento, nós nos tornaremos uma Índia tropical.

O ataque do FMI progressista, por Nelson Barbosa.

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Enquanto isso, nosso debate fiscal está capenga

Folha de São Paulo, 16/10/2020.

O “FMI do bem” atacou novamente. Na semana passada a equipe fiscal do Fundo recomendou aumento do investimento público para sair mais rapidamente da recessão da Covid. Nesta semana os progressistas do FMI voltaram à carga, sugerindo aumento da tributação sobre os mais ricos para financiar a reconstrução econômica pós pandemia.

Dado que a desigualdade de renda e riqueza aumentou muito nas democracias ocidentais nos últimos 40 anos (desde o início da era neoliberal com Thatcher e Reagan), era uma questão de tempo até que o tradicional FMI se rendesse ao óbvio: é possível recuperar a economia mais rápido com redução de desigualdade via política fiscal progressista, isto é, aumento de tributação sobre os mais ricos para financiar aumento do investimento público e expansão da rede de proteção social, com transferências de renda aos mais pobres e serviços públicos de qualidade, sobretudo de saúde, para todos.

Apesar de corretos, os conselhos do “FMI do bem” continuam ignorados no Brasil. Do lado tributário, nossa equipe de ideologia econômica e sua torcida na Faria Lima insistem em dizer que não devemos aumentar a arrecadação do governo porque temos uma carga tributária elevada quando comparada com outros países emergentes.

A segunda parte da afirmação está correta. O Brasil realmente tem carga tributária mais alta do que países com o mesmo nível de renda per capita, mas faltou dizer o que mais temos de diferente da média das economias emergentes.

Arrecadamos mais porque redistribuímos mais recursos via transferências de renda e serviços públicos. Temos sistema de Previdência Social com piso dado pelo salário mínimo e (ainda bem) benefícios corrigidos pela inflação. Temos sistema universal de saúde pública (SUS), único em países com mais de 100 milhões de habitantes. Temos ampla rede de proteção social, com benefícios para idosos e deficientes de baixa renda, além do combate à pobreza via o bem-sucedido Bolsa Família.

Se considerarmos a carga tributária liquida, a arrecadação bruta menos as transferências de renda realizadas pelo governo, a receita que efetivamente fica com o Estado Brasileiro não é tão alta em relação aos demais países emergentes.

Tributamos mais por que decidimos, lá em 1988, construir uma rede de proteção social abaixo da linha do Equador. Aos trancos e barrancos, com governos tucanos e sobretudo petistas, aumentamos a seguridade social e isso ajuda a entender por que a recessão da pandemia não será tão grande aqui quanto em outros países emergentes de baixa carga tributária (olhem as projeções de queda do PIB no México, no Peru e na Colômbia).

Podemos e precisamos aumentar a arrecadação do governo, combinando redução de desonerações, fim da guerra fiscal entre Estados e aumento da tributação direta (da renda e patrimônio) sobre os mais ricos. Tudo isso pode ser feito com redução da complexidade de nossa tributação indireta e não elimina a necessidade de controlar, também, o crescimento do gasto corrente do governo, sobretudo com salários de alguns grupos de servidores.

Mas por enquanto nosso debate fiscal está capenga, focado somente no gasto do governo. Temos que debater despesa pública, mas, para sair da crise com geração de emprego e redução de desigualdades, também temos que recuperar a arrecadação tributária, de modo gradual e previsível, para que o setor privado (famílias e empresas) tenha tempo para se adaptar ao novo sistema.

O “FMI do bem” deu a dica. Quando a Faria Lima vai escutar? Quando as urnas decidirem mandar escutar.

Nelson Barbosa

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

 

Partido Republicano matou o conservadorismo nos EUA, por Lúcia Guimarães

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Encurralado por transformação demográfica, partido já não disfarça mais que pretende impor a ditadura da minoria

Folha de São Paulo – 14/10/2020

A cirurgia foi um sucesso, mas o paciente morreu. O ditado sarcástico se aplica ao Partido Republicano dos Estados Unidos que, para conquistar a Casa Branca, em 2016, decidiu cometer suicídio.

O sistema bipartidário americano, que alterna poder entre republicanos e democratas desde a segunda metade do século 19, ruiu com a eleição de Donald Trump. Se não existe bolsonarismo, apenas o capitão se desviando da lei e protegendo a família do palácio que os brasileiros sustentam, o mesmo fenômeno acontece em Washington.

Não há trumpismo, apenas um empresário incompetente, com várias falências no currículo, saqueando os cofres públicos, protegido pelo silêncio dos bilionários que hoje pagam menos impostos, os destruidores do meio ambiente que se livraram de leis reguladoras e os vigaristas que venderam a alma em troca de um assento no Congresso.

O espetáculo pornográfico da sabatina da juíza Amy Coney Barret, indicada pelo presidente para a Suprema Corte, basta para demonstrar a putrefação do que os americanos chamavam de conservadorismo. O partido de Abraham Lincoln, que aboliu a escravidão, é hoje um lacaio de quem oferecer o lance maior no leilão da política.

A juíza é uma extremista de boas maneiras. No espaço de algumas horas de audiência no comitê judiciário do Senado, ela se recusou a endossar a transferência pacífica de poder ao vencedor da eleição de novembro e a condenar a intimidação de eleitores que o presidente vem instigando em comícios.

Seu assento na corte, que parece garantido, foi comprado com dezenas de milhões de dólares por grupos de interesses que se escondem atrás de fundações laranjas. O sequestro da Suprema Corte pelo Partido Republicano nada tem a ver com princípios morais, criminalização do aborto e proibição do casamento gay. Essas bandeiras são chocalhos para agitar o culto.

Os juízes comprados por bilionários estão lá para cumprir uma agenda econômica –desmontar estruturas de governo, garantir impunidade da elite e desfigurar o país que emergiu mais democrático da Segunda Guerra.

Encurralado pela realidade –a transformação demográfica que torna impossível aos republicanos conquistar a maioria de eleitores nas urnas–, o partido já não disfarça mais que pretende impor a ditadura da minoria. Suprimir voto, reduzir drasticamente locais de votação e até roubar cédulas, como descobrimos na Califórnia, esta é a agenda republicana. Governar é apenas um contratempo na manutenção niilista do poder.

Não há o que recuperar. O movimento “nevertrumper” (nunca trumpista), que atraiu republicanos chocados com a confirmação da candidatura de Trump, endossa a candidatura do democrata Joe Biden em nome de conservadores.

Mas um expoente do grupo teve a coragem de admitir: só a extinção do Partido Republicano oferece saída para o pensamento conservador. Tom Nichols, um acadêmico especialista em relações internacionais, primeiro se desligou, em 2018, do partido ao qual pertenceu por quase toda a vida adulta.

Mas, em setembro, ele escreveu que não basta mais votar em Biden para punir os republicanos. Nichols acredita que o partido, transformado em culto à personalidade do presidente, perdeu a razão de existir. Corrupção, racismo, teocracia, desrespeito à lei e instituições hoje definem o que sobrou do partido de Lincoln.

Lúcia Guimarães

É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspondente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.

‘O sistema privilegia quem está no poder’, diz cientista político.

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Carlos Pereira prevê que a renovação política não deve ter a mesma força nas eleições municipais

Natália Portinari – O Globo – 12/10/2020

BRASÍLIA — Para Carlos Pereira, cientista político da Fundação Getulio Vargas (FGV), a distribuição dos recursos dos fundos eleitoral e partidário para privilegiar políticos experientes é esperada. A lógica é privilegiar campanhas com maior “densidade” e “viabilidade”. Ele prevê que a renovação política, fenômeno que apareceu com força nas eleições de 2018, não deve ter a mesma força nas eleições municipais.

Por que partidos privilegiam candidatos experientes?

Os partidos tendem a privilegiar a estrutura tradicional, quem de certa forma está no partido há muito tempo e conhece os canais decisórios dentro do partido. É um comportamento racional, muito esperado. Tendem também a concentrar recursos em puxadores de votos. Como não há mais coligação proporcional (para vereador), tem que concentrar em quem tem viabilidade. Dado que a legislação permite a discricionariedade dos partidos em decidirem sobre a alocação, cumprindo as cotas, é esperado que quem tem mais chance tenha mais recursos.

Essa distribuição atrapalha a renovação política?

Quando a gente vem de uma associação de escândalos de corrupção, em que a elite política de vários partidos foi envolvida, as demandas por renovação alcançam mais importância. Mas na realidade esse fenômeno (renovação) é raro em qualquer democracia. Nas democracias estáveis, como os Estados Unidos, onde a democracia é mais longeva, a taxa de renovação é baixíssima, 90% dos parlamentares concorrem à reeleição. O sistema é desenhado para privilegiar quem está no poder. O que tivemos nas eleições de 2018 foi mais a exceção do que a regra, devido a escândalos e descrédito da política tradicional.

Por que as eleições de 2018 são um cenário diferente de agora?

A eleição de 2018 teve um caráter de antipolítica. O presidente Jair Bolsonaro se beneficiou muito dessa estrutura, mas hoje se comporta como qualquer outro político tradicional, apesar de ter prometido que não se portaria dessa forma, então o eleitor vai se desgarrando desse argumento da renovação e vai procurando os parlamentares que de fato podem trazer algum benefício concreto para suas bases.

Há algum outro motivo para haver menos renovação em 2020?

O eleitor, especialmente para as eleições proporcionais, para o Legislativo, decide muito em cima da hora em quem vai votar. E essa decisão é muito ancorada em cima da ação dessa rede local de interesses. Quanto mais engajada a rede local de interesses estiver em torno de um candidato, mais ela vai gastar energia e recursos para que ele se reeleja, e o eleitor não necessariamente vai estar muito ligado. Os cargos para o Executivo despertam mais interesse dos eleitores.

 

‘Enfrentamos hoje a volta de um estado de fome epidêmica no Brasil’, diz historiadora

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Para Adriana Salay, 36, governo não fará nada para impedir o agravamento da insegurança alimentar sem pressão popular

Emílio Sant’ana – Folha de São Paulo, 12/10/2020.

Após anos dedicados aos estudos sobre a fome e os hábitos alimentares dos brasileiros, é de sua presença diária nas ruas da zona norte de São Paulo, alimentando uma legião de famintos e desempregados, que a historiadora Adriana Salay, 36, tira suas conclusões.

“Se esse Estado que está hoje colocado não entende que essa população precisa sair da situação de fome, temos que fazer uma mobilização da sociedade civil e criar esse enfrentamento com o Estado”, afirma.

Ao lado do marido, Rodrigo Oliveira, chef do restaurante Mocotó, Adriana criou o projeto Quebrada Alimentada, que distribui 200 marmitas por dia e 220 cestas básicas por mês desde o início da pandemia do novo coronavírus.

Debruçada sobre a obra de Josué de Castro, autor de “Geografia da Fome” e ex-presidente do Conselho Executivo da FAO, o órgão das Nações Unidas para agricultura e alimentação, ela vê a fome epidêmica, causada pela emergência sanitária, se juntar à fome endêmica no país.

Segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE, 37% das famílias viviam em insegurança alimentar em 2018. Essa porcentagem era de 23% em 2013.

A realidade de 2020 deve se revelar ainda pior. Não à toa, o Relatório Global de Crises Alimentares, do Programa Mundial de Alimentação (PMA), da ONU, apontou que a pandemia pode fazer o número de pessoas em insegurança alimentar duplicar no mundo.

Na última sexta-feira (9), o programa da ONU ganhou o Prêmio Nobel da Paz pelos esforços em combater a fome e evitar que ela seja usada como arma em conflitos.

Nesta semana, o projeto de Adriana e Rodrigo fará parte de uma ação batizada de “Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”. Organizada pelo coletivo Banquetaço, a campanha terá programação online (genteprabrilhar.org) para debater a fome a partir desta segunda (12) até sexta (16). No sábado (17) e no domingo (18), “marmitaços” em diferentes capitais devem distribuir refeições nas ruas.

Chefs como Rodrigo, Helena Rizzo, Paola Carosella, Bel Coelho e Bela Gil fazem parte da campanha.

O que mudou na geografia da fome desde que Josué de Castro publicou o livro homônimo?  Tivemos avanços importantes. Quando ele publicou (1946), há dados expressivos de que populações periféricas do Recife, por exemplo, usavam 70% da renda em alimentação. Isso era normal. Não que hoje isso tenha passado, mas tivemos avanços como os programas de transferência de renda e de cisternas no sertão. Passamos por uma seca importante recentemente no sertão que não gerou retirantes e situações de fome como estavam colocadas na época do Josué de Castro.

Eu encontrei na imprensa, por exemplo, cenas de canibalismo nas secas sertanejas nos anos 30. Cenas como essas e campos de concentração para refugiados das secas, em 1932, não estão mais colocadas hoje.

Josué separa fomes epidêmicas —devido a crises— e endêmicas —estruturais. Agora, temos menos crises de fome, mas temos uma manutenção da fome endêmica.

Hoje, devido à pandemia, temos a volta da fome epidêmica? Sim. Na minha perspectiva, sim. E por isso vem toda essa movimentação. Por causa da Quebrada Alimentada começamos a gravar um documentário com depoimentos de pessoas que procuram o programa. Há depoimentos que são muito representativos desse momento. Alguém que ganha um salário mínimo (R$1.045) e vive com mais três pessoas, por exemplo, está em uma situação de fome estrutural, porque o salário mínimo hoje no Brasil não alimenta adequadamente quatro pessoas com os outros custos de vida. Outras pessoas que não estavam nessa situação são alçadas a esse lugar porque perderam renda.

Um dos depoimentos, por exemplo, é de um camelô que trabalhava no Brás. Com o fechamento do comércio, ela perdeu toda sua renda. Mesmo tendo conseguido R$ 1.200 de auxílio emergencial do governo federal, porque ela é responsável pela casa e vive com três filhos, não consegue se alimentar a todos. Ela paga R$ 800 de aluguel. Com R$ 400 não consegue. Ela passou 15 dias comendo apenas arroz.

A fome é um processo, não é um fato posto. Ela narra exatamente esse processo da fome. Primeiro, começa a diminuir a quantidade das refeições; depois, a mulher, que é a pessoa que faz a gestão da fome na maioria dos lares, começa a pular refeições. E só então os filhos deixam de comer. Ela narrou exatamente isso, sem ter conhecimento científico, da entrada na situação de crise de fome por causa da pandemia. Antes, ela não estava nesse lugar e tinha renda suficiente para alimentar a família.  Ela mora aqui, na Vila Medeiros, na zona norte. É um bairro com algumas vulnerabilidades, mas não é o lugar mais vulnerável. Estamos bem no meio do caminho em termos de IDH na cidade.

É isso que encontram nas ruas quando distribuem marmitas e cestas básicas?  Há duas figuras importantes aí. Fiz entrevistas com 220 famílias que se cadastraram no programa de cestas básicas para entender o que estava acontecendo. Há um perfil de famílias que já estavam em situação difícil e outro muito grande de famílias em que alguém perdeu emprego. Das 220 famílias, 180 estão nesse perfil. O que temos que pensar numa sociedade monetizada como a nossa, é que a renda é fator decisivo para comer ou não.

É só olhar para POF de 2018, que saiu no mês passado, os números de fome aumentaram muito. E São Paulo é o estado, em números absolutos, que tem mais gente nessa situação. E o que significa a pandemia [nesse cenário]? Temos que pensar o que o auxílio emergencial compra em São Paulo e o que compra em uma cidade pequena no interior de Pernambuco. Os R$ 600 podem ser suficientes lá, mas aqui não paga um aluguel. E agora, metade disso.

 

Qual sua avaliação da atuação das três esferas de governo contra a fome durante a pandemia?  São três esferas diferentes, mas que estão caminhando juntas no combate à fome fazendo muito aquém do que deveriam nesse momento. Vale lembrar que o valor do auxílio emergencial não foi definido no Executivo, mas no Legislativo. É uma medida importante, mas não é o suficiente. Há algumas políticas públicas que deveriam ser implementadas ou mantidas nesse momento, como o programa de aquisição alimentar para o PNAE, que é o programa de alimentação escolar, que praticamente acabou.

A escola é um lugar privilegiado para acessar essas famílias em vulnerabilidade. As escolas públicas têm o mapeamento dessas famílias, elas têm um programa de aquisição alimentar que é muito importante, porque 30% desses alimentos precisam vir da agricultura familiar. Quando você desmantela esse programa, não são só essas famílias que são prejudicadas, como também esses agricultores.

Defendemos a implementação de algumas políticas como o auxilio aluguel, a intensificação dos restaurantes populares, e nada disso tem sido feito. Não há uma política de contenção de fome em nenhuma das esferas de governo.

Isso te surpreende de alguma forma, ou em que medida, após o país ter conseguido reduzir de forma expressiva a fome?  Saímos do Mapa da Fome da FAO, em 2014. Mas, em minha concepção, enquanto tivermos alguém passando fome, precisamos falar sobre isso. São inegáveis os avanços dos governos anteriores na erradicação fome, e todos os dados mostram isso. E não só o Brasil avançou. Mas pensando nos governos que estão instalados hoje, não me surpreende. Quando a pandemia chegou, com o entendimento que tenho e olhando para os trabalhos de Josué de Castro, já sabia o que iria ocorrer. As crises são fatores geradores de fome.

O que mudou para mim? Não posso mais ficar só nos livros. Sei o que está acontecendo e é hora de agir. Aí vem o Quebrada Alimentada e o Gente Nasceu para Brilhar.

Se esse Estado que está hoje colocado não entende que essa população precisa sair dessa situação de fome, temos que fazer uma mobilização da sociedade civil para colocar esse problema na pauta e criar esse enfrentamento com o Estado.

Mas o Estado não tem condições de responder a isso minimamente?  É papel do Estado. Ele tem todas as ferramentas. Tem o cadastro único, que mapeia as pessoas em vulnerabilidade alimentar, CCAs [Centros para Crianças e Adolescentes, serviço municipal] que acolhem as crianças e podem fazer a distribuição por lá, tem os restaurantes populares, o programa de merenda escolar. Tem todas as ferramentas, o que falta é vontade política para que isso aconteça. Não à toa, na nossa campanha são mais de cem grupos que se mobilizaram.

A gente fala muito que estamos enxugando gelo porque não estou resolvendo o problema. Se eu dou uma marmita hoje, essa família vai estar com fome de novo amanhã, porque ela não tem acesso a renda para se alimentar de forma adequada e saudável. É papel do Estado fornecer essa alimentação. O papel da sociedade civil nesse momento se dá para levantar essa bandeira. Esse Estado que está colocado não vai fazer isso por conta própria, a não ser que tenha uma cobrança.

Vocês já sentiram algum tipo de censura a esse tipo de mobilização?  Já. A gente escuta muito que tem gente que pega as marmitas para vender. Tem críticas de quem diz que essa fome é resultado, porque mandaram todo mundo ficar em casa [durante a pandemia]. Mas acredito que o saldo ainda é positivo.

Há pouco tempo a primeira dama do estado de São Paulo, Bia Dória, disse que viver na rua é uma situação cômoda. Qual sua avaliação sobre essa afirmação?  Acredito que é problemático pelo lugar que ela está e atribuo essa fala à falta de conhecimento sobre o estado que o marido dela governa. Se você começar a entender os mecanismos que vão gerar população de rua e de pessoas com fome, você não pode culpar o indivíduo por estar ali. São as dinâmicas sociais que vão gerar essa situação e a falta de conhecimento que vai gerar uma fala equivocada como essa.

De que forma isso faz parte da sua pesquisa? O entendimento desse fenômeno é justamente o centro da minha pesquisa. Essa leitura da fome enquanto crise não deixou de existir. Quando você olha para a fala do presidente Jair Bolsonaro quando ele disse que não existia fome no Brasil porque não existe pessoas esqueléticas na rua, está defendendo uma posição. Ele tira de campo a noção de fome estrutural. Isso não é algo único e posto. É uma disputa.

Existiam as teorias neomalthusianas de que a população cresceria mais do que a produção de alimentos. Isso caiu por terra porque já produzimos para alimentar o mundo, mas ainda somos um mundo com fome porque as pessoas têm acessos diferentes ao alimento. Esses debates e essas disputas existem inclusive sobre os níveis de insegurança alimentar. Hoje, a FAO considera como fome apenas insegurança alimentar grave, só que a insegurança alimentar moderada já é uma família pular refeição. Os nomes formam as coisas. Se eu tiro o termo fome, para boa parte da sociedade isso muda a intensidade do fenômeno.

O Nobel da Paz para o PMA, da ONU, te surpreendeu?  Nesse momento de crise, no qual a fome no mundo pode chegar a índices inimagináveis e o Brasil pode se tornar um dos epicentros emergentes da fome no mundo, segundo a Oxfam, o prêmio deixa seu recado de quais estratégias ele quer fomentar. Josué de Castro, lá nas décadas de 1950 e 1960, já falava que guerra e fome estão interligadas, por isso alimento e paz também.

Acredito que é uma boa resposta aos ataques que essas organizações vêm sofrendo de políticas nacionalistas como as de Trump e Bolsonaro.

 

Mirian Goldenberg: ‘liberdade é a melhor rima para a felicidade’

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Revista Vida & Arte – Jéssica Reis – 10/10/2020

Você já ouviu falar em curva da felicidade? Sim, ela existe e foi descoberta por meio de pesquisas realizadas por economistas em 80 países com mais de 2 milhões de pessoas. Eles descobriram um padrão constante, em que as pessoas mais jovens e as mais velhas são as mais felizes e as que se sentem menos felizes são as que estão entre 40 e 50 anos.

Pesquisadora desde 1988 sobre amor, sexo e traição, a antropóloga Mirian Goldenberg encontrou também uma curva da felicidade nas mulheres brasileiras. Segundo Mirian, as mulheres que têm entre 40 e 50 anos são as que se sentem mais infelizes, insatisfeitas, frustradas, deprimidas e exaustas. Elas reclamam, principalmente, de falta de tempo, falta de reconhecimento e de falta de liberdade.

Colunista da Folha de São Paulo, autora dos livros “A bela velhice”, “Coroas”, “Corpo, envelhecimento e felicidade”, “Velho é lindo!”, “Por que os homens preferem as mulheres mais velhas?”, entre outros, Mirian Goldenberg conversou com a revista Vida&Arte sobre as transformações que percebeu nos relacionamentos desde o início de suas pesquisas, como estão as relações afetivas atualmente e, claro, sobre a busca das mulheres por liberdade e felicidade.

V&A – Em um dos seus artigos publicado na Folha de São Paulo, você menciona que faz pesquisas desde 1988 sobre amor, sexo e traição. Quais as mudanças, transformações mais marcantes que percebeu nos relacionamentos desde o início de suas pesquisas?

Mirian Goldenberg – O que eu percebo de mais importante e mais visível é que para uma geração que hoje está com 70, 80 anos, que viveu a revolução sexual no século passado, nos anos 1960, nos anos 1970 é que a liberdade sexual era uma questão prioritária, principalmente, para as mulheres. Foi um momento de extrema libertação sexual. Libertação porque surgiu a pílula, o divórcio, as pessoas podiam transar antes do casamento, coisa que não se fazia até então, a psicanálise aconteceu, houve toda uma revolução cultural baseada na ideia de liberdade e o sexo era o lugar onde as pessoas exerciam essa liberdade, ou essa libertação. O que eu percebo é que hoje mudou o significado, por uma série de questões, já nos anos noventa, com a AIDS, o sexo já passou a ser algo que gerava medo, que as pessoas deveriam se proteger e com advento da internet, algo que era vivido na vida real, passou a ser vivido no mundo virtual.

V&A – Como você avalia as relações afetivas no momento atual?

Mirian Goldenberg – Eu acho que a principal característica do momento atual é a diversidade, é a possibilidade de você não seguir os modelos pré-estabelecidos, a possibilidade de você ter uma escolha maior e até inventar o tipo de relacionamento que você quer viver. É verdade que ainda existe muita pressão, muita padronização, muita cobrança social dentro de um modelo mais convencional de família, de ter filhos, de um relacionamento dentro da mesma casa, mas, ao mesmo tempo, apesar dessa cobrança, a maioria das pessoas que eu pesquiso não consegue, e nem quer, seguir esse padrão mais tradicional. Então, hoje há um aumento não só das separações, mas das pessoas que não querem casar, que não querem ter filho, que não querem morar junto, você vê uma diversidade muito maior de experiências amorosas e sexuais. Eu acho que a marca dessa geração é não querer seguir um padrão que produz infelicidade, então as pessoas estão procurando criar o seu próprio relacionamento e mesmo existindo muito preconceito, elas têm muito mais coragem de inventar a sua forma de amar.

V&A – O mundo virtual provocou mudanças nos relacionamentos?

Mirian Goldenberg – Nunca digo que o mundo virtual cria ou provoca grandes mudanças, ele reflete as mudanças e reflete os desejos, não cria nada. É óbvio que você pode chegar a conclusão de que hoje está mais fácil trair o seu parceiro, porque basta deixar o seu parceiro dormindo e ir para o computador que vai encontrar um mundo disponível de pessoas com quem você pode trair ou com quem você pode se relacionar. O mundo virtual facilitou o exercício de desejos e de comportamentos que sempre existiram, mas que eram muito mais complicados. Eu estudo esse tema há trinta anos, tenho um livro que se chama ‘A outra”, na época que eu estudei esse tema, que foi em 1988, uma pessoa que tinha amante, ligava do orelhão e precisava que a amante estivesse em casa, era muito mais complicado. Trair hoje com o celular, com a internet, com o What’s App, é mais fácil, mas não significa que você vai trair. É importante distinguir o fato de ser mais fácil, do fato de que provoca uma traição, não provoca uma traição. Se a pessoa não quer trair ela pode ter toda tecnologia disponível que não vai trair. No entanto, é óbvio que ficou muito mais fácil tudo, encontrar um amor, encontrar um parceiro sexual, encontrar alguém com quem você pode ter um relacionamento extraconjugal é muito mais fácil com o mundo virtual tão presente nas nossas vidas.

V&A – O que esperar dos relacionamentos nos próximos anos, teremos mais mudanças?

Mirian Goldenberg – A grande revolução dos relacionamentos ficou mais evidente nos anos 1970 com as separações, com o sexo mais livre, com a pílula, com a possibilidade de não ter filhos, com a liberdade maior da mulher, com a psicanálise e isso vai cada vez mais ficar evidente. A grande mudança que a gente está vendo e que vai ver nos próximos anos é que aquilo que já era um comportamento de muitos homens e mulheres, mas não era legítimo socialmente, não era aceitável, vai ser mais legítimo, aí eu dou exemplo de não querer casar, não querer ter filhos, não querer morar junto. Isso já acontece, só que ainda não é tão legítimo socialmente, não é tão aceitável como vai ser, as pessoas vão ter mais escolhas, vão poder decidir o que elas realmente querem em suas vidas amorosas e sexuais. Eu acho que a grande mudança é essa.

V&A – As mulheres buscam mais liberdade ou felicidade, ou a liberdade e a felicidade se complementam?

Mirian Goldenberg – Quando eu faço essa pergunta: ‘o que você mais inveja em um homem’, as mulheres respondem categoricamente ‘liberdade’. Não só a liberdade sexual, mas liberdade no mundo do trabalho, de poder envelhecer, com corpo, liberdade de movimento, liberdade de fazer xixi em pé, liberdade em todos os sentidos. Então, para as mulheres, o maior desejo é liberdade, independência também, e isso elas conquistam, pelo menos na minha pesquisa, mais tardiamente. Quando elas têm mais de cinquenta, mais de sessenta, elas se sentem muito mais livres e também mais felizes. Elas querem liberdade e felicidade, mas para terem felicidade elas precisam conquistar a liberdade e a independência. Nem todas conseguem. Em geral, a gente consegue ter mais liberdade, não só a liberdade financeira, mas liberdade psicológica, autonomia, com a maturidade.

V&A – Falando em liberdade e felicidade, como está o sexo entre as pessoas. Existe mais liberdade hoje?

Mirian Goldenberg – É óbvio que existe muito mais liberdade hoje em todos os sentidos, inclusive sexual, a liberdade é um valor muito grande e nós conquistamos muito mais liberdade, principalmente as mulheres, mas ainda falta muito, porque se não faltasse as mulheres não invejariam, como invejam na minha pesquisa, a liberdade. Existe mais liberdade hoje? Sim, mas ainda existe muito preconceito, muito tabu, muitas cobranças sociais em várias áreas da vida e, particularmente, no sexo. O sexo, apesar de ser mais livre hoje, ainda é um tabu. As pessoas falam muito sobre sexo, mas na vida real, o sexo não é tão satisfatório e eu tenho escrito muito sobre isso, acabei de publicar um livro chamado ‘Liberdade, Felicidade e Foda-se’ e acabei de mandar também um livro para minha editora sobre ‘Amor, Sexo e Traição’. Se fosse algo mais livre, não precisaríamos falar tanto sobre sexo e nem escrever tanto sobre sexo.

V&A – No mesmo artigo, publicado na Folha de São Paulo no dia 27 de agosto, você fala sobre a importância do sexo em diferentes idades, de diferentes perspectivas. Qual a importância do sexo em cada fase da vida?

Mirian Goldenberg – Eu não acho que o sexo é importante em cada fase da vida, ele é importante de forma diferente para as pessoas. Tem pessoas que colocam muito a sua felicidade na satisfação sexual e tem outras que não acham isso tão importante. O que eu mostro no meu artigo é que os jovens têm uma valorização maior do sexo e depois os casais valorizam o sexo também, mas eles valorizam muito mais o companheirismo, a compreensão, a amizade, principalmente, nesse momento que nós estamos vivendo. Os mais velhos, não posso generalizar, mas grande parte das pessoas mais velhas que eu pesquiso não acham que o sexo é tão importante assim, principalmente as mulheres. Então, o que eu posso dizer é que não há uma receita e não tem nada a ver com a idade, tem muito mais a ver com escolhas, com os projetos, com os valores e com que você realmente acha importante para ser feliz. E para grande parte das pessoas que eu pesquiso, principalmente as mais velhas, o sexo é apenas um dos ingredientes da felicidade, não é o mais importante.

V&A – No seu livro ‘Liberdade, Felicidade e Foda-se’, você fala sobre essa relação entre felicidade e liberdade, especialmente entre pessoas mais velhas. Em suas pesquisas você constatou que as pessoas se sentem mais felizes e mais livres na terceira idade?

Mirian Goldenberg – O que eu descobri na minha pesquisa que está no livro ‘Liberdade, Felicidade e Foda-se’ e também no meu TED que viralizou, é que quanto mais jovem você é, mais você se compara com os outros, mais você foca no que te falta, mais você inveja o que os outros têm. E quanto mais velho você é, o tempo passa a ser prioritário, você passa a simplificar sua vida e focar não no que lhe falta, mas no que você tem. E aí você percebe que não é tanto assim o que você precisa para realmente ser feliz. Eu acho que a virada que acontece em geral quando você é mais maduro, é uma grande mudança de foco, você para de se comparar, para de ficar enxergando só o que você não tem, sofrendo com isso e passa a valorizar aquilo que você escolheu. Os seus projetos de vida, os seus amigos, aquilo que realmente é essencial para sua felicidade.

V&A – Falamos tanto em curva na pandemia, mas também existe a curva da felicidade? O que seria a curva da felicidade?

Mirian Goldenberg – Então, como eu falo no meu livro ‘Liberdade, Felicidade e Foda-se”, assim como no meu TED, a curva da felicidade é uma curva que eu encontrei nas minhas pesquisas, mas que outros pesquisadores também encontraram, que mostra que você é mais feliz quando nasce e vai perdendo essa felicidade em função das obrigações, das comparações, do que lhe falta, do sofrimento por não seguir um padrão e depois dos cinquenta anos, em geral, essa curva volta a subir porque você passa a priorizar o que é realmente importante para você e não fica se comparando com o que os outros têm, com os padrões sociais. E o que passa a ser mais importante são as relações que você cria do que as posses, o consumo, o dinheiro, o status, o prestígio e poder. Então, essa curva mostra muito bem como que as pessoas ganham felicidade e liberdade quando elas têm mais idade, que é o oposto do que o senso comum imagina. É por isso que no Brasil, as pessoas têm tanto pânico de envelhecer, elas acham que perdem, mas na verdade nós ganhamos muito mais do que perdemos com a idade.

V&A – Como é essa curva com as mulheres brasileiras, o que você constatou em suas pesquisas? Do que as mulheres mais se queixam?

Mirian Goldenberg – As brasileiras que eu pesquisei se queixam muito de falta de tempo, falta de reconhecimento, falta de liberdade, elas sofrem muito com o envelhecimento e elas sentem que passam a não existir mais quando envelhecem. Elas falam que se tornam invisíveis. No entanto, quando elas realmente envelhecem, depois dos 50, 60, 70, 80, elas dizem categoricamente, ‘esse é o melhor momento da minha vida, nunca fui tão livre, nunca fui tão feliz, é a primeira vez que eu posso ser eu mesma’. Por isso, que elas me dizem que ‘liberdade é a melhor rima para a felicidade’ e elas só adquirem isso com a maturidade. E o que eu acho muito importante frisar é como a amizade tem um papel fundamental em todas as fases da vida, mas principalmente quando nós envelhecemos, que são os amigos e as amigas que cuidam, que apoiam, que estão presentes, é o que elas chamam de família escolhida. Até elas falam mais dessa família do que da família biológica. É importante a gente frisar que o que eu tenho feito nos meus estudos, o contexto geral do envelhecimento é não só apontar as perdas, os problemas, as doenças, mas ver também o que é possível ganhar, conquistar quando a gente tem mais idade.

V&A – Tem algum projeto em andamento para este ano ou para o próximo?

Mirian Goldenberg – Eu continuo fazendo as minhas pesquisas. Eu tenho uma pesquisa com cinco mil homens e mulheres, sobre envelhecimento, felicidade, amor, sexo, traição. Eu tenho dois livros que já estão nas editoras e em função dessa situação não saíram, um se chama “Invenção de Uma Bela Velhice” e outro “Amor, Sexo e Traição”. Então, eu continuo escrevendo muito, pesquisando muito e, principalmente, tentando encontrar caminhos para todos nós brasileiros, mesmo dentro dessa situação trágica, possamos encontrarmos nossos projetos de vida e sermos um pouco, pelo menos, mais felizes. Eu acho que todo meu movimento desde março é tentar encontrar saídas possíveis para enfrentar esse sofrimento. E é isso que eu tenho feito, principalmente, escrevendo muito.

 

Um gigante sem fôlego e sem rumo, por Rolf Kuntz.

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Sem plano sequer para alongar a retomada, o País parece condenado a crescer menos que 3%

Rolf Kuntz, O Estado de S.Paulo

11 de outubro de 2020

O Brasil, vejam só, deixou de ser o país do futuro. Que futuro pode ter um país emergente incapaz de crescer 3% ao ano? Esqueçam Stefan Zweig. Pensem num ministro da Educação preocupado com a vida sexual dos estudantes, num ministro do Meio Ambiente avesso à proteção das florestas, num ministro da Economia empenhado em recriar uma aberração tributária, a CPMF. Considerem um presidente negacionista, propagandista da cloroquina e centrado em interesses pessoais e familiares, com destaque para a reeleição. Quem se importa, em Brasília, com o miserável crescimento projetado para o médio e o longo prazos, nada além de 2,5% ao ano?

Bolas de cristal muito consultadas preveem mediocridade, ou algo pior que isso, no médio e no longo prazos. Por enquanto, há algum dinamismo. Passado o grande choque, os negócios voltaram a mover-se, como em todo o mundo. Em 2021 o produto interno bruto (PIB) crescerá 3,5%, segundo a mediana das projeções do mercado. A expansão ficará em 2,8%, de acordo com estimativa recente do Fundo Monetário Internacional (FMI). A partir daí o cenário fica menos claro, mais inquietante e, principalmente, mais estimulante para uma avaliação das condições do Brasil.

O PIB crescerá 2,3% em 2022, segundo o FMI, e apenas 2,2% em cada um dos três anos seguintes. Pela projeção do mercado, captada na pesquisa Focus, do Banco Central, a expansão será de 2,5% ao ano em 2022 e 2023. Detalhe relevante: essa taxa de 2,5% aparece há tempos, nessas pesquisas, como estimativa para o médio prazo. As projeções do FMI têm a mesma característica: números baixos, na casa dos 2%, quando se ultrapassa o horizonte de um ou dois anos. Não se trata de preguiça dos analistas. O problema está na economia brasileira. Os economistas do mercado e das entidades multilaterais são inocentes.

Para olhar um pouco mais longe, os economistas levam em conta o potencial de crescimento da economia. Esse potencial é determinado por vários fatores, com destaque para os investimentos em capital fixo (máquinas, equipamentos e construções), em capital humano, em conhecimento (ciência e tecnologia) e em inovação. Fatores institucionais e de ambiente de negócios, como tributação, segurança jurídica, burocracia e integração internacional, também são importantes. O Brasil tem ido mal, há muitos anos, em todos esses quesitos.

Só o investimento em capital fixo é mostrado de forma explícita nas contas nacionais brasileiras. Na maior parte dos últimos 20 anos esse investimento foi equivalente a menos de 20% do PIB, embora a meta oficial tenha sido, quase sempre, uma taxa de pelo menos 24%. Além disso, boa parte do investimento foi pouco produtiva.

Muitas obras públicas ficaram inacabadas, outras consumiram tempo demasiado, o superfaturamento foi frequente e houve amplo desperdício. A contribuição dessas obras para a capacidade produtiva acabou sendo muito prejudicada. O setor privado investiu mais que o governamental, mas o protecionismo e outros fatores limitaram os incentivos à busca de eficiência, inovação e competitividade.

A indústria de transformação começou a perder vigor alguns anos antes da recessão de 2015-2016. Incentivos fiscais e financeiros mal concebidos, somados à corrupção, favoreceram grupos e ramos empresariais, mas a maior parte do setor escorregou ladeira abaixo até chegar a pandemia. A equipe do presidente Jair Bolsonaro jamais apresentou um diagnóstico sério dos problemas da economia brasileira. Por isso mesmo nunca propôs um plano de modernização, dinamização e retorno a um crescimento aceitável para um país emergente.

A única reforma importante aprovada desde o ano passado, a da Previdência, estava madura no fim do mandato do presidente Michel Temer. Ainda na gestão Temer as normas trabalhistas foram modernizadas e flexibilizadas, sem eliminação de direitos. Também nesse período foi criado o teto de gastos. Hoje, além de pouco avançar na pauta de reformas, o ministro da Economia insiste em objetivos modestos, como a desoneração da folha salarial.

Essa desoneração pode evitar demissões e preservar empregos, mas é insuficiente para ampliar a oferta de vagas. Isso foi comprovado na gestão da presidente Dilma Rousseff, quando mais de 50 setores foram contemplados com a redução de encargos. Desse conjunto sobraram 17 setores – com 6 milhões de trabalhadores, segundo se estima. O mais prudente, agora, é preservar esses benefícios pelo menos por um ano, por causa das condições da economia.

Seria bom se a equipe econômica notasse a diferença entre evitar demissões e gerar empregos, objetivos tão bons quanto distintos. Geração de empregos depende, em primeiro lugar, da atividade e das perspectivas de crescimento. Não se moverá a economia eliminando direitos trabalhistas, recriando um monstrengo tributário e gastando energia para subordinar o Orçamento de 2021 aos interesses eleitorais do presidente. Planejamento para o longo prazo vai muito além disso, mas essa noção parece estranha aos condutores da política econômica.

*JORNALISTA

 

‘A escola não precisa ser o único lugar do aprendizado’, diz pioneiro do ensino online

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Em entrevista ao Estadão, Salman Khan, criador da Khan Academy, faz análise sobre a experiência de aulas pela internet durante a pandemia; ele defende ainda que acesso à internet e bons dispositivos deve ser tão importante quanto água e luz

Por Bruno Capelas – 11/10/2020 – O Estado de S. Paulo

Durante anos, a educação online foi um tema subestimado – parecia papo para gente otimista demais com a tecnologia ou então só uma opção para quem não podia passar horas em uma sala de aula. Em 2020, tudo mudou: de repente, o mundo inteiro teve que descobrir como aprender ciências, matemática e geografia na frente de uma tela. A experiência pode ter sido frustrante para muita gente, mas não deve servir como indício que aulas online não funcionam, diz o americano Salman Khan, pioneiro do ensino pela internet.

“A forma como estamos usando educação online hoje está aquém do ideal, mas acredito que a escola não precisa ser o único lugar do aprendizado”, afirma ele, em entrevista exclusiva ao Estadão. Antes que se diga que Khan é um radical, ele explica: não é preciso escolher entre a tecnologia e as aulas presenciais – um pode estar a serviço do outro. “É possível deixar as aulas expositivas para a internet e aproveitar o tempo ao vivo com interação, comunicação e tutoria”, diz.

Ele tem propriedade no assunto: há mais de uma década, está à frente da Khan Academy. Inicialmente um canal com aulas de reforço no YouTube, a organização sem fins lucrativos se expandiu para ser uma plataforma com conteúdo do ensino básico (e também aulas de programação) usadas no mundo todo por 18 milhões de alunos. Durante a pandemia, o tráfego do site, apoiado por fundações de nomes como Bill Gates  e Jorge Paulo Lemann subiu quase 300%.

Ao Estadão, Khan fala sobre como vê a experiência atual da educação pela internet e como ela pode se mesclar às aulas presenciais no futuro. “A tecnologia tem de estar a serviço dos professores e alunos”, diz. Ele também discute a importância de uma educação interativa e propõe que ter acesso à internet e a um dispositivo no qual se pode digitar e assistir a aulas será tão importante para uma residência quanto ter água, luz e saneamento básico. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Muita gente, nos últimos meses, teve de usar a educação online como sua principal ferramenta. Como o sr. avalia a experiência?

As pessoas me associam bastante com a educação online, então você poderia achar que estou empolgado. Mas sou o primeiro a dizer que a forma como estamos usando educação online hoje está aquém do que seria considerado ideal. Por causa da pandemia, a educação à distância não é tão boa quanto seria numa sala com amigos e professores. Hoje, há escolas fazendo um bom trabalho. Outras, nem tanto, mas há boas razões para isso. Replicar o que acontece na sala de aula em videoconferências não basta. É preciso se aproveitar da tecnologia de forma diferente. Sabemos que globalmente há muitas famílias que não tem acesso à internet ou a dispositivos de qualidade. Às vezes, isso também não é o suficiente: falta apoio ou até mesmo espaço para se estudar em casa. É um período complexo e entendo que muitas crianças não conseguem se engajar nas aulas online. Mais que isso: elas estão esquecendo o que sabem, atrofiando suas habilidades. A pandemia ainda vai durar mais um tempo, ao todo será pelo menos um ano inteiro em que as crianças estarão longe dos amigos, às vezes tendo de passar mais tempo em habitações longe do ideal.

Muito se fala que a pandemia pode acelerar a digitalização, mas há um risco da educação online sofrer uma rejeição maior no futuro por conta de experiências ruins no presente?

Encorajo as pessoas a não pensar nos extremos. Aprendemos a distância há séculos, como com cursos de correspondência. O importante não é pensar na tecnologia como um absoluto, mas sim nos objetivos pedagógicos. A partir deles, dá para entender que ferramentas podem ser usadas. Acredito que o aprendizado não deve ser restrito a tempo ou espaço. Ele deve também estar ligado às necessidades e realidades dos estudantes. Há 400 anos, a nobreza fazia isso com tutores. Isso é muito caro. Mas o online pode ajudar nesse sentido. Acredito que a escola não precisa ser o único lugar onde o aprendizado acontece. Uma instrução inicial sobre um tema, uma aula expositiva, pode ser feita pela internet. E ao juntar as pessoas num espaço físico, é possível ter uma aula mais interativa, o professor pode fazer a tutoria dedicada de um aluno ou um grupo de alunos. Além disso, a internet pode ser útil para explorar interesses ou lacunas: se você quer aprender sobre história russa ou se na sua região não há um bom professor de cálculo avançado, por que não usar um professor pela internet? Enquanto isso, um professor mais próximo pode ajudar a mediar essa relação.

O sr. acredita que a educação online pode substituir as aulas presenciais?

Se eu tiver que escolher entre um professor incrível e uma tecnologia incrível, fico sempre com o professor. Para mim, não é uma questão de um ser melhor que o outro. Não precisamos fazer essa escolha. A tecnologia pode estar a serviço dos professores e dos alunos. Pense nisso com um grão de sal, claro. Em condições ideais, uma aula presencial será melhor que uma aula virtual. É possível fazer um diálogo socrático no Zoom? Claro, mas ao vivo você vê a reação das pessoas ao mesmo tempo. Além disso, há benefícios intangíveis na comunicação pessoal, ao conversar com um colega no intervalo entre as classes. Agora, é preciso pensar no oposto: se você tem uma aula online interativa, com muita gente participando, ela com certeza é melhor do que uma aula presencial em que o professor passa uma hora falando e todo mundo dorme. A questão é: o que é chato ao vivo se torna ainda mais chato online. É preciso repensar o online. Hoje, por limitações de tempo e espaço, professores dão aulas de uma hora, cinco dias por semana, para turmas de 30 pessoas. Será que não é melhor fazer uma aula de 10 minutos com cinco crianças? É uma interação personalizada, com a ajuda necessária. Ter 10 minutos da atenção de um professor pode ser melhor do que uma hora só de discurso.

Nas redes sociais, hoje vemos muitos vídeos sobre professores chorando quando as crianças abrem suas câmeras. O que significa que muitas crianças não estão interagindo com os professores. O quanto essa interação importa?

Em muitos lugares, entendo que as câmeras não sejam ligadas por questões de conectividade. Mas não é sempre, claro. Se as crianças não estão com as câmeras ligadas, é bem provável que elas não vão se engajar. Por outro lado, é preciso ponderar como essas aulas estão sendo dadas. Uma aula ao vivo no Zoom na qual o professor fala por mais de 3 minutos sozinho não deveria ser ao vivo. Deveria ser um vídeo gravado. Ao vivo, os estudantes devem ser chamados para participar, aleatoriamente. A sensação de precisar estar alerta faz as pessoas prestarem atenção – em reuniões, nós adultos lidamos do mesmo jeito, não é mesmo?

A Khan Academy tem cursos do ensino básico, mas também aulas de programação. Como o sr. explica sua estrutura?

Criamos a Khan Academy como uma forma de trazer reforço para os estudantes. Muitas crianças vão à escola mas acabam tendo dificuldade ao entender um assunto ou se preparar para uma prova. Podemos dar explicações, ajudando cada aluno a aprender no seu ritmo e na sua vontade. A plataforma pode tanto ser usada individualmente como também como apoio, determinado pelos professores.

Olhando o site da Khan Academy, percebi quanto conteúdo diferente é ensinado no Ensino Médio. Parece um desafio aprender tanta coisa ao mesmo tempo – e em um espaço de tempo curto. O que o sr. acha disso?

O Ensino Médio tenta cobrir muitos assuntos e poucas crianças conseguem reter muito desse conteúdo. Eu sou fã do “menos é mais”. Acredito que é importante focar no que as pessoas precisam aprender – e acho que isso é uma lição válida para os tempos que estamos vivendo. Para crianças menores, acredito que o foco está em leitura, línguas e matemática. Para os maiores, acredito que aprofundar aprendizados seria interessante. Eu faço parte da direção da Khan School Lab, uma escola física baseada na Khan Academy. Vivo discutindo com os professores: por que não fazer duas aulas com mais tempo, que permitam profundidade, em vez de cinco aulas por dia? Mais tempo permite aos estudantes ter uma imersão completa num tema.

Nos últimos anos, países como o Brasil passaram a ter muito mais pessoas online, mas essa inclusão aconteceu via smartphones. São aparelhos com velocidade e possibilidades de uso limitados. É algo que pode limitar o alcance da educação online?

Na Khan Academy, tentamos fazer as coisas mais acessíveis o possível. Temos apps, porque sabemos que um celular é o principal meio de acesso à internet na maior parte do mundo. Mas para aprendizado, é preciso ter uma boa tela, para que você possa assistir às aulas, digitar um artigo ou mesmo fazer um trabalho visual. Espero que a covid-19 seja um catalisador para uma mudança de comportamento. Hoje, uma casa que não tem água, luz, aquecimento ou saneamento básico é vista como um lugar não aceitável para se morar, abaixo das condições ideais. Com a pandemia, acredito que precisamos e passaremos a ter uma visão similar para lugares que não têm uma conexão de internet e um dispositivo que você pode digitar de forma plena. Não é só uma questão acadêmica. É uma questão de estar empoderado economicamente, na pandemia ou não.

 

Ganhadores e Perdedores

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Com pandemia, impacto nas economias foi sincronizado, mas retomada expõe diferenças

The Economist, O Estado de S. Paulo

11 de outubro de 2020 | 05h00

Em fevereiro, a pandemia do coronavírus atingiu a economia global com o pior choque desde a segunda guerra mundial. Quarentenas e uma queda no gasto do consumidor levaram a uma implosão do mercado de trabalho na qual o equivalente a quase 500 milhões de vagas desapareceram quase da noite para o dia. O comércio global tremeu com as fábricas fechadas e os países fechando suas fronteiras. Uma catástrofe econômica ainda maior só foi evitada graças a intervenções sem precedentes nos mercados financeiros por parte dos bancos centrais, ao auxílio dos governos aos trabalhadores e às empresas falidas, e à expansão dos déficits orçamentários a patamares comparáveis aos de momentos de guerra.

O impacto foi sincronizado. Mas, conforme a recuperação se encaminha, estão se abrindo imensas lacunas no desempenho dos diferentes países, que podem ainda redefinir a ordem econômica mundial. De acordo com previsões da OCDE, já no fim do próximo ano a economia dos Estados Unidos terá o mesmo tamanho que teve em 2019, mas a da China será 10% maior. A Europa seguirá agonizando abaixo de sua produtividade pré-pandemia, situação que pode durar vários anos, um destino que também pode ser o do Japão, que passa por um aperto demográfico.

Não se trata apenas do fato de os maiores blocos econômicos crescerem a velocidades diferentes. De acordo com o banco UBS, no segundo trimestre do ano a distribuição dos ritmos de crescimento em 50 economias foi a mais discrepante em pelo menos 40 anos.

A variação é resultado das diferenças entre os países. O fator mais importante é a disseminação da doença. A China praticamente a conteve, enquanto a Europa (e talvez em breve os EUA) enfrenta uma cara segunda onda. Ao longo da semana retrasada, Paris fechou seus bares e Madri iniciou uma quarentena parcial.

Enquanto isso, na China, pode-se pedir uma bebida em uma boate. Outra diferença é a estrutura preexistente das economias. É muito mais fácil operar fábricas observando o distanciamento social do que administrar empresas do setor de serviços que dependem do contato cara a cara. Na China, a manufatura representa uma fatia maior da economia do que em qualquer outro país de grandes dimensões. Um terceiro fator é a política de resposta. Em parte, essa é uma questão de tamanho: os EUA injetaram mais estímulo do que a Europa, incluindo gastos equivalentes a 12% do PIB e um corte de 1,5 ponto porcentual nos juros de curto prazo. Mas as políticas de resposta também incluem a reação dos governos às mudanças estruturais e à destruição criativa geradas pela pandemia.

Esses ajustes serão imensos. A pandemia deixará as economias menos globalizadas, mais digitalizadas e mais desiguais. Com os trabalhadores de escritório fazendo ao menos parte da jornada semanal em seus quartos e cozinhas, aqueles de salário mais baixo que antes eram garçons, faxineiros e assistentes de vendas terão de encontrar novos empregos nos subúrbios.

Conforme um número cada vez maior de atividades são transferidas para a internet, os negócios passarão a ser dominados pelas empresas donas da propriedade intelectual mais avançada e os maiores repositórios de dados. O boom nas ações de empresas de tecnologia observado este ano é uma amostra do que virá, assim como a grande migração digital da indústria bancária. E, agora, os juros baixos manterão os preços dos ativos em alta, mesmo se as economias continuarem enfraquecidas. Isso vai ampliar o abismo entre o setor financeiro e a economia real.

Isso não é uma preocupação para a China, que por enquanto parece estar emergindo da pandemia mais forte, ao menos no curto prazo. Mas o vírus expôs problemas de prazo mais longo no aparato econômico chinês. No longo prazo, seu sistema de vigilância e controle estatal, que tornou possível a aplicação de quarentenas brutais, deve impedir a livre circulação difusa de decisões, pessoas e ideias que resultam no fomento à inovação e melhoram o padrão de vida.

A Europa é a retardatária. Sua resposta à pandemia corre o risco de estagnar as economias de seus países, em vez de permitir que se ajustem. Em suas cinco maiores economias, 5% da força de trabalho continua envolvida em esquemas de licença nos quais o governo lhes paga para aguardarem o retorno dos empregos ou dos turnos, coisa que pode nunca ocorrer. Na Grã-Bretanha a proporção é duas vezes maior. Em todo o continente, a suspensão das recuperações judiciais, a tácita paciência dos bancos e uma enxurrada de auxílio estatal direcionado correm o risco de prolongar a vida de empresas zumbis que deveriam falir.

A dúvida paira sobre os EUA. Durante a maior parte do ano, foi oferecida uma rede de segurança mais generosa para os desempregados e um estímulo maior do que seria de se esperar no lar do capitalismo. Sabiamente, o país também permitiu o ajuste do mercado de trabalho, e se mostrou menos inclinado que a Europa a resgatar empresas que correm o risco de se tornarem obsoletas. Em parte como resultado disso, os EUA já observam a criação de muitos novos empregos, diferentemente da Europa.

A fraqueza dos EUA está na sua política, tóxica e dividida. Na semana passada, o presidente Donald Trump parecia desistir de negociar uma renovação do estímulo. Enquanto duas tribos rivais considerarem as concessões mútuas um sinal de fraqueza, será quase impossível aprovar reformas essenciais, como uma nova rede de segurança, ou uma economia mais voltada para a tecnologia, ou um rumo mais sustentável para os déficits. A covid-19 está impondo uma nova realidade econômica.

odos os países terão de se adaptar a ela, mas os EUA enfrentam uma tarefa desafiadora. Se o país quiser liderar o mundo que vai emergir da pandemia, será necessário um recomeço para a sua política. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

“Elite apoiou tirano para exercer pequenas tiranias”, diz Pedro Serrano

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Em artigo para Carta Capital, jurista escreve que barracos no restaurante Gero e na praia carioca resumem o que se chama de elite

O comportamento da elite brasileira, ou de parte dela, revela que ainda não foi possível fazer a transição da estrutura colonial escravista para uma sociedade cidadã em que vigoram os princípios democráticos, constitucionais e civilizados.

Dois tristes episódios recentes expuseram esse viés colonial, anticidadania e autoritário das nossas elites: os conflitos ocorridos no restaurante Gero, em São Paulo, e na Praia do Leblon, no Rio de Janeiro.

No primeiro episódio, um homem chegou ao restaurante minutos antes de fechar e se recusou a deixar o local. Quebrou os protocolos sanitários e ofendeu outros clientes. Sentiu-se desrespeitado ante as tentativas de que cumprisse a lei.

No segundo caso, duas mulheres passeavam de biquíni em um carro conversível com a capota abaixada quando foram atingidas com garrafas jogadas por clientes de um restaurante que estavam nas mesas da calçada em frente ao veículo. Uma das moças desce e agride fisicamente quem jogou as garrafas.

Em ambos os casos, está presente a aporofobia: o preconceito, a aversão e o ódio contra os pobres. Nossa elite tem como regra não aceitar a pobreza, identificada com a negritude, os nordestinos e os indígenas. Não existe aceitação de que a pobreza é parte integrante da nação.

O resultado é o sentimento que essa elite criou de que é superior aos outros, de que constitui sozinha a nação. Gente da elite tende a tratar o outro, quando conflitam, mesmo em se tratando de um igual, como um estrangeiro deseducado, desinformado e de menor qualidade humana.

Nos conflitos, busca retirar do outro as suas características humanas mínimas. Exatamente o que aconteceu nos dois episódios. No caso do Gero, o senhor que provocou o incidente se gabava de “ser de berço”, ter tido educação nos EUA e Europa e de ser um “cavalheiro”.

A autorreferência como privilegiado implica que visão e comportamento são sempre orientados por uma percepção de que a lei serve para os outros, mas não para si mesmo. Trata-se de uma noção absolutista típica, na qual o soberano produzia as leis que ele mesmo se desobrigava a cumprir. A elite se comporta assim, como um rei absolutista. Não se coloca numa condição de cidadania, em que todo e qualquer um é igual perante a lei.

As tentativas de fazer a lei ser cumprida são entendidas como ofensa, justamente por contrariarem o sentimento de “minirrei”. A igualdade perante a lei, que funda a ideia de cidadania, é tida como agressão, como expressou o tumultuador do Gero. A noção de privilégio vem daí e choca-se com o sentido maior dos direitos, a ideia de universalidade.

No caso do Leblon, circulou a informação de que as moças trocaram beijos e isso teria levado à indignação da agressora. Mas o fato de duas mulheres se beijarem é amparado pela Constituição. Se pode haver uma expressão heteroafetiva na via pública, igualmente pode haver uma homoafetiva, fundamento que se origina também do princípio da igualdade.

Uma vez mais, o traço antidemocrático, autoritário e inconstitucional se revela. Se alguém enxerga uma ilegalidade que ocorre no passeio público, que comunique as autoridades, em vez de assumir a justiça com as próprias mãos. Caso houvesse algum delito no automóvel, uma infração de trânsito, é desproporcional e mais delituosa a reação violenta de jogar garrafas, assim como a agressão física usada como resposta às garrafas atiradas. A violência é algo a ser repudiado intensamente numa sociedade democrática, constitucional e civilizada.

Mas a elite se acha no direito de fazer justiça com as próprias mãos. Isso ecoa a estrutura colonialista que segue latente. Os escravos eram torturados e punidos pelos donos. O julgamento não é o Estado quem faz, mas o indivíduo. Juiz e carrasco, assim como os donos de escravos eram.

O governo Bolsonaro estimula esse paradigma ao difundir uma ideia de nação formada apenas por incluídos e apoiadores. Os demais são excluídos. Sobrepostas a essa estrutura colonialista, as formas de autoritarismo líquido que ganharam impulso com Bolsonaro também liquefazem a distinção entre público e privado, atribuindo ao particular funções típicas de Estado. Assim, em vez de significar o direito a ter direitos e, portanto, o dever de garantir e manter os direitos, a cidadania é substituída pela noção do direito individual de exercer funções de polícia, típicas do Estado.

O autoritarismo líquido percorre não apenas os ambientes da intersubjetividade política, ele penetra na subjetividade dos cidadãos. No seu Discurso da Servidão Voluntária, uma das lições que Étienne de La Boétie nos dá é a de que indivíduos apoiam o tirano para poder exercer suas pequenas tiranias. Eis o resultado da eleição de Bolsonaro: a elite, ou uma parte, apoiou um tirano para poder exercer no cotidiano essas pequenas tiranias.