Incompetência do governo eleva juros e compromete retomada, por José Francisco Lima Gonçalves

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Impactos da recessão sobre as contas públicas assustam o mercado

A incompetência do governo face à complexa situação acrescenta gravidade à trajetória presente desde antes da pandemia. Segundo o IBGE, a contração já ocorria no primeiro trimestre de 2020. Caminhávamos para o quarto ano seguido de crescimento perto de 1,0%.

Inflação baixa, juros baixos, confiança baixa. O colapso da atividade, do emprego e da renda tem determinantes no distanciamento social, mas não apenas.

Os impactos da recessão sobre as contas públicas assustam o mercado, assim como a iminência da contração da renda assusta as famílias e boa parte do setor não financeiro.

Se ninguém investia antes, o que dizer depois? E, se a expectativa é de corte de gastos pelo governo, qual a racionalidade de retornar aos níveis anteriores de produção e de arriscar investir?

Se o medíocre desempenho da economia lançava dúvidas em relação ao ajuste fiscal “expansionista”, dúvidas estão se tornando convicções. Cresce o número de analistas que se lembram do denominador da relação dívida/PIB. Cai o número de crentes em retomada com cortes de gastos.

O azedume recente do mercado se deu pela frustração da surpreendente expectativa sobre a existência de vontade e capacidade do governo de manter o regime fiscal. Enquanto bancos centrais se dedicam a “fazer o que for necessário” para a economia crescer, a busca de uma trajetória adequada para as contas públicas se resume a “fazer o que for necessário” para manter o gasto público dentro do teto.

Há argumentos que explicam a conveniência de controle das contas públicas. O desenho institucional do mecanismo pode ser bom ou ruim. O atual é péssimo.

Proíbe o governo de fazer política fiscal contra cíclica. O argumento é duplo: já fizemos e deu errado, por incompetência; e vai levar o mercado a elevar os juros, inibindo a recuperação ao invés de ajudar.

A questão da incompetência é mais ideológica do que técnica e historicamente errada. A questão dos juros tem aparecido com mais ênfase.

A expectativa de que sair do teto é aumentar a dívida e/ou “emitir, pois acabou o dinheiro”, e que isto levaria a mais inflação, explicaria a alta dos juros futuros pelo mercado, pois o Banco Central será levado a elevar a taxa básica na medida em que a inflação esperada se eleve.

A inflação decorrente do abandono do teto viria da demanda criada pelo gasto público e/ou pela transferência de renda, desvalorização do real e consequente alta de custos que seriam repassados aos preços.

Os preços dos serviços cresceram um bom tempo em torno de 8%, por forte demanda e frágil crescimento da oferta. Hoje, anda a 1,0%, caindo desde que a recessão 2015-16 destroçou o emprego e a renda. A inércia foi caindo com a mudança nas condições do mercado de trabalho.

Os preços administrados foram represados no governo Dilma e ajustados em choque em 2015, junto com o choque do câmbio quando o governo enviou ao Congresso um projeto de lei orçamentária com déficit primário. Um choque de expectativas.

O choque de preços de alimentos, via IPCA, ao longo de 2014 e meados de 2016, puxou o IPCA para cima e para baixo. Desde 2016, os núcleos de inflação caminham em níveis extremamente benignos. Há coincidência com a mudança de governo e de comando no BC?

O governo seguiu gastando, preparando o teto. O novo BC iria mostrar logo mais que uma coisa é o regime de metas de inflação, outra coisa é um regime de metas de câmbio.

A depender da intensidade e da duração do choque de custos, seu repasse para os preços depende das condições da demanda. Um choque de custos, digamos, via taxa de câmbio, pode ser repassado aos preços ao consumidor desde que esse os sancione, pagando-os.

Caso o repasse seja feito, a renda do consumidor cai. Caso não o seja, a margem da empresa cai. O que vai acontecer depende das condições do mercado de trabalho. Se a renda não estiver em expansão, o choque de custos não se torna inflação, mas corrosão da renda e das margens. A famosa recessão.

José Francisco Lima Gonçalves

É professor de Economia da FEA-USP e economista chefe do Banco Fator

As vozes roucas das humanidades contemporâneas

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A sociedade contemporânea vem passando por momentos de grandes instabilidades e incertezas, conceitos sólidos e consistentes vistos anteriormente com respeito e admiração, está sendo vista com ceticismo, levando a sociedade rever conceitos e reestruturar bases vistas anteriormente como estabelecidas, vivemos um momento de novos paradigmas, alguns nascendo e outros surgindo, trazendo novas cores, comportamentos e simbolismos crescentes.

Nesta sociedade marcada por tecnologias, máquinas e conhecimentos arraigados em todas as regiões ou coletividades, onde a quarta revolução industrial substitui valores humanos, gerando novos comportamentos humanos, formas de acumulação, trocas virtuais substituem a conversação e as trocas de impressões, levando os indivíduos a perceber novas estruturas sociais, políticas e culturais. Todos os novos paradigmas estão sendo motivados pelos interesses econômicos e financeiros, centrados no imediato e pela superficialidade, neste novo modelo os seres humanos sentem os medos aumentarem, desequilíbrios crescem de forma acelerada, as instabilidades aumentam, os conflitos crescem e as desesperanças se fazem mais permanentes.

Vivemos uma sociedade marcada pelas máquinas, o conhecimento humano e a ciência contemporânea transforma os comportamentos, os trabalhadores rivalizam por tecnologias marcadas pela flexibilidade, levando os indivíduos ao trabalho ininterruptos, somos trabalhadores contumaz, somos todos workaholic, somos viciados em trabalho, buscamos bater as metas impostas pelas organizações, corremos aos ganhos materiais do cotidiano e nos percebemos que as metas degradam aos sentimentos, os ambientes organizacionais são tóxicos e crescentemente superficiais, vestimos inúmeras máscaras e se esquecemos de nossa verdadeira personalidade, nossos desejos, nossos comportamentos e os nossos verdadeiros sentidos.

O homem econômico domina a sociedade contemporânea, pensamos e nos organizamos para adquirir nossos desejos materiais, contamos nossos ganhos monetários, nossas posses materiais, nossas conquistas materiais e quando percebemos somos escravos de uma sociedade, que deturpa nossa personalidade e nos transformamos em indivíduos alienados, sem identidades e sem perspectivas emocionais, vivemos um momento de transformações.

No período da idade média estávamos presos a alienados pelas ideias religiosas, estávamos imersos em teorias conspiratórias, temíamos a força superior que nos punia fortemente e nos maltratássemos quando enveredar nos escaninhos da revolta e aceitassem a dominação, o poder era cruel e temíamos o poder do Deus, com isso, para evitar as dores e as perseguições, deveríamos aceitar sem pestanejar, sem criticar e sem revoltar, este período durou muitos séculos.

Depois de séculos de escuridão e alienação, os ideais iluministas trouxeram novas ideias, novos comportamentos e novas religiões, impulsionando as letras, os discursos e os pensamentos dos seres humanos, contribuindo para a desagregação da sociedade da época e estimulou novos ambientes sociais e a construção de novos contratos sociais. Neste período inúmeros intelectuais estimularam o crescimento das ideias e os pensamentos sociais, teóricos do calibre como Rousseau, Locke, Maquiavel, Lutero, Da Vinci, Pestalozzi, Smith, Darwin, Kardec, dentre outros, contribuíram para o soerguimento e construção da sociedade moderna, estimulando luzes num período marcado por escuridão e ignorância, marcas profundas que ainda persistem na sociedade contemporânea.

No desenvolvimento da sociedade mundial, as ciências sociais ou Humanidades, foram fundamentais para transformar as coletividades, mostrando a importância da vivência em sociedade, a construção dos modelos econômicos, políticos e sociais, estimulando o crescimento das bases que solidificam os períodos históricos e mostram a importância da vivência social, o compartilhamento das experiências, o desabrochar das várias ciências, mostrando que os seres humanos nascem em conjunto para que todas compreendam que sua vivência deve ser feita e consolidada em grupos sociais, todos se auxiliando e prol do desenvolvimento conjunto.

Infelizmente, as ciências sociais e as humanidades, vem perdendo espaços na sociedade, os interesses do mundo do negócio, das negociações e dos valores materiais dominam a sociedade, transformando-nos em indivíduos S.A, somos motivados pelos ganhos materiais, nossas maiores energias estão concentradas nas questões profissionais, transformando nossas vidas em trabalhos constantes, deixando de lado outras questões fundamentais, como as saúdes física e emocional, as questões espirituais e os valores sentimentais, deixando todos os interesses dos seres humanos associadas aos trabalhos materiais e profissionais. Neste ambiente, percebemos indivíduos altamente intelectualizados, profissionais de grande capacidade técnica e dotados de conhecimentos de alta complexidade, trabalhadores de grande bagagem gerencial mas, ao mesmo tempo, frágeis e limitados quando enveredamos pelos escaninhos das emoções e dos sentimentos, somos crianças fisicamente convivendo limitações emocionais, pessoas que se frustram com os embates da vida entram em depressão, dominados por transtornos variados, medos generalizados e sentimentos desequilibrados.

Numa sociedade marcada pelos desenvolvimentos científicos centrados nas tecnologias que deixa de lado os valores das ciências sociais e pelas humanidades, transformam os indivíduos em autômatos, verdadeiras máquinas programadas pelos senhores, deixando de lado as reflexões, os questionamentos e a racionalidade emocional, esta sociedade está levando a coletividade para a degradação, a concentração das rendas e das riquezas, o incremento do desemprego, o aumento da miséria, a devastação da natureza e do meio ambiente, degradando os rios e florestas e ainda querem acreditar que somos seres racionais?

Vivemos numa sociedade marcada por inúmeras contradições, de um lado nos emocionamos ao ouvir os grandes filósofos contemporâneos, buscando palestras de intelectuais que nos levam aos prantos ou as emoções, além de reflexões pessoais. Adoramos ouvir as palavras de teóricos como Leandro Karnal, Mario Sérgio Cortella ou Luiz Felipe Pondé, suas reflexões levam multidões de pessoas para as livrarias das grandes cidades para adquirirmos seus últimos livros, suas palestras são concorridas, suas  colunas nos grandes jornais se buscadas como se estivessem as curas para os males individuais ou coletivos, mas ao mesmo tempo não querem aprofundar suas reflexões mais consistentes. Preferem se distanciar das universidades, buscam fórmulas acabadas para combater suas frustrações e desequilíbrios emocionais. Se as pessoas quisessem conhecer as suas estranhas mais íntimas, deveriam buscar os livros e as leituras de outros teóricos da filosofia que contribuíram para a compreensão da sociedade e nos trouxeram reflexões e questionamentos mais consistentes, dando a filosofia instrumentos fundamentais para o desenvolvimento do ser humano. Nesta sociedade, infelizmente, adoramos as emoções dos dramas contemporâneos alheios, nos emocionamos com estas histórias de outros indivíduos e esquecemos de nossos dramas mais íntimos, sem refletirmos nossas limitações mais íntimas nos tornamos seres humanos mais desajustados, desequilibrados e degradados emocionalmente e espiritualmente.

A Filosofia, como ciência, perdeu a empregabilidade da sociedade contemporânea, ao mesmo tempo, outras áreas das ciências sociais ou das humanidades, como a Sociologia, a Antropologia, a História, a Pedagogia, a Ciência Política, dentre outras, perderam o encanto no mundo profissional. Os indivíduos contemporâneos buscam outras áreas do conhecimento humano, preferem a empregabilidade de cursos como o Direito, a Medicina, as Engenharias, os cursos de Computação e de Tecnologia da Informação ganham espaço na sociedade, deixando as outras áreas em segunda ou terceira opção, faltando profissionais das humanidades, reflexões criticam, pensamentos sociais, planejamento e experiências que foram vivenciadas pelos profissionais das humanidades e das ciências sociais, fundamentais para a compreensão do conhecimento humanos que sempre auxiliaram no balizamento do desenvolvimento das sociedades.

Neste momento, percebemos a fragilidade dos profissionais das áreas das ciências sociais e da humanidade, somos os primeiros a serem substituídos pelas aulas à distância, sua presença para a sociedade é desnecessária, somos facilmente substituídos pela máquina, pelas apostilas, pelos programas de computação, os jogos de interação e se caracterizam pela superficialidade, deixando de abordar questões centrais na sociedade da tecnologia. As experiências dos seres humanos e as vivências da coletividade, mostrando que as civilizações que se basearam em valores transitórios, imediatistas e limitadas levam as sociedades as degradações mais íntimas e as devastações mais generalizadas, a história nos mostra inúmeras vezes que muitas civilizações perderam espaço e foram substituídos por outras organizações sociais.

Neste ambiente, percebemos que a força política dos professores é limitada, somos pouco organizados, sem unicidade, sem representatividade e não conseguem mostrar para a sociedade sua importância, nem internamente não conseguem se organizar com outras áreas do conhecimento. Num determinado momento vão perceber que sem a união de todos os polos do conhecimento humano, todos os cursos e profissionais serão substituídos por máquinas e equipamentos, substituídos por robôs e tecnologias sofisticadas, perdendo seus empregos, seus sonhos e mergulhando nas desesperanças, nos medos e na degradação social. Num período percebemos que os profissionais da humanidades estão sendo substituídos por outros equipamentos qualquer, na atualidade os que estão na mira são os profissionais do direito, os engenheiros, os gestores e outros profissionais liberais, num futuro não tão distante outros entrarão na obscuridade, perderiam seus empregos, suas dignidades, sua condição de vida, será que devemos esperar, de braços abertos, os próximos passos deste enredo assustador?

A tecnologia é fundamental para o desenvolvimento econômico e social, a introdução acelerada na sociedade está gerando grandes constrangimentos na coletividade, a ausência dos instrumentos da reflexão das ciências sociais e das humanidades nas discussões contemporâneas podem gerar graves desequilíbrios na convivência social, sem estas reflexões os indivíduos tendem a abraçar as novas tecnologias, as novas máquinas e os equipamentos que revolucionam o convívio social, construindo uma nova construção social, marcada pelo afastamento social, pelo isolamento do convívio social, gerando novos seres humanos, mais pragmáticos, mais flexíveis, menos empáticos, mais frios e superficiais, uma sociedade menos consistente, menos competitivo, mais marcados pelas incertezas e instabilidades, perpetuando as desigualdades, a fome e a exclusão, até o dia em que os seres humanos cansarem desta sociedade agressiva, infeliz e degradante, neste momento as grandes revoluções podem gerar muitas lágrimas, mortes, violências generalizadas e novas perspectivas para os seres humanos.

 

Aqui se faz, aqui se paga, por Marcos Lisboa.

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A inação do Palácio do Planalto começa a cobrar seu preço

A opção do Palácio do Planalto por não enfrentar dilemas cobrou, mais uma vez, a sua fatura. A proposta para financiar a expansão do Bolsa Família resultou em piora dos preços dos ativos e das taxas de juros.

Não deveria surpreender. O plano se valia de mecanismos pouco republicanos, como a suspensão unilateral do pagamento de dívidas, que, há tempos, são adotados por estados e municípios para pagar seus crescentes gastos com salários e aposentadorias.

O governo, que se dizia liberal na economia, segue confirmando que era tudo conversa para inglês ver. Não há privatização, abertura da economia e redução da arrecadação compulsória destinada ao Sistema S. Anunciou-se um esquisito “mais Brasil, menos Brasília”, que tampouco saiu do discurso.

São muitas as promessas não cumpridas, mas o pior ocorre quando se copia o que de mais reprovável é feito por estados e municípios. Propor o adiamento compulsório do pagamento de decisões judiciais é malandragem para viabilizar novas despesas públicas às custas de maior endividamento.

Para quem imaginava que o governo poderia expandir sua dívida sem prejudicar a economia, deve ser perturbador assistir ao choque de realidade dos últimos tempos.

A falta de agenda para controlar o crescimento dos gastos públicos resultou no aumento das taxas de juros de longo prazo, na desvalorização do câmbio e em mais dificuldades para financiar o governo e o setor privado.

Esses danos colaterais podem se agravar em poucos meses se não houver mudança de rumo. O governo escolhe o caminho errado ao optar pela inação frente aos dilemas do país. A tímida proposta de reforma administrativa é um dos exemplos do temor de desagradar aos grupos de interesse.

O apoio maroto ao perdão da dívida tributária das igrejas, as concessões aos militares e a resistência a realizar ajustes nas despesas revelam que o Palácio desconhece a extensão dos problemas. Incapaz de arbitrar conflitos, o presidente parece se desesperar frente às consequências da sua inação, pedindo soluções mágicas.

Dois dias depois do anúncio detalhado do plano, com direito a muitas entrevistas, o ministro da Economia disse que não era bem assim. Afinal, o governo sabe o que o governo faz ou, frente à repercussão, criou-se uma fantasia ministerial?

Alguns têm defendido “pensar fora da caixa”, como se toda criatividade fosse construtiva. Esquecem que pode ser também uma porta para o retrocesso. Nos anos 1980, assim como no começo da década de 2010, houve vários planos mirabolantes que prometiam milagres. Os resultados foram devastadores.

Como no passado, a responsabilidade pelo fracasso será do presidente.

Marcos Lisboa

Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia

 

Inadimplência e crescimento econômico  

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 A sociedade está passando por um dos momentos mais dramático na sua história, de um lado estamos vivenciando uma severa crise sanitária com mais de 130 mil óbitos, de outro lado, a economia está numa situação complexa, marcada por alto desemprego, dívida interna crescente, dólar nas alturas e sinais de aumento dos preços com impactos generalizados. Diante deste quadro, a economia brasileira apresenta altos índices de inadimplência, que restringem o crescimento no consumo interno, reduz as capacidades de compra e diminuiu as perspectivas do crescimento econômico. A inadimplência não começou neste ano, desde 2015 os índices crescem de forma acelerada, gerados pelas mudanças no mercado de trabalho, incremento no desemprego, taxas de juros elevadas que sempre marcaram a sociedade brasileira e inabilidade da população em gerenciar os recursos financeiros, herança dos momentos de inflação elevada. Neste ambiente, faz-se necessário a construção pactuada pela sociedade para diminuir estes níveis de inadimplência, chamando todos os atores econômicos, sem estas soluções na questão da inadimplência, novos investimentos e ambientes propícios para o estímulo econômico, o país ficará distante do sonhado desenvolvimento econômico.

 

Artigo escrito e publicado no Jornal Diário da Região, dia 04 de outubro de 2020.

Disponível no endereço abaixo: https://www.diariodaregiao.com.br/economia/rio-preto-e-regiao/2020/10/1208282-pandemia-aumenta-em-20-mil-o-numero-de-endividados-em-rio-preto.html

 

O poder da incerteza. Entrevista com Edgar Morin.

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02 de outubro de 2020. IHU on line

“Entramos na era das grandes incertezas”. Filósofo, sociólogo, antropólogo, Edgar Morin completou 99 anos em julho, sem nunca esgotar a sua curiosidade intelectual, reavivada pela crise do covid-19 que faz com que os governantes pareçam navegadores sem coordenadas. A bússola de Morin indica uma direção precisa. “Cambiamo strada” [Mudemos de rumo] é o convite do intelectual francês no seu livro recém-publicado pela Raffaello Cortina Editore.

A reportagem é de Anais Ginori, publicada por La Repubblica, 01-10-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

O grande pensador propõe “quinze lições do coronavírus” sob a insígnia da solidariedade, da inteligência, do advento da “ecopolítica” e do fim da “tecnoeconomia”. “Não conseguindo dar um sentido à pandemia, aprendamos com ela para o futuro”, escreve Morin.

Seus ensaios vão da elaboração do luto aos novos mitos do espetáculo, da ecologia à reforma do bem-estar social. Em uma época de simplificações, o filósofo teoriza há muito tempo sobre o “pensamento complexo”, a união dos opostos e dos saberes, como ele explicou nos seis volumes do “Método”, a obra enciclopédica escrita entre 1967 e 2006, e pela qual ele ganhou o apelido de “Diderot do século XX”

Eis a entrevista.

Você começa o livro com uma anedota pessoal: sua mãe adoeceu com a gripe espanhola, e essa experiência marcou o seu destino.

O psiquiatra Boris Cyrulnik demonstrou como um grave trauma pode nos dar, se conseguirmos sobreviver, uma capacidade de resistência que ele define, com um termo emprestado da física, “resiliência”. Eu resisti desde o nascimento. A menina que se tornaria minha mãe tinha problemas cardíacos por causa da gripe espanhola. Quando ela se casou, disseram que ela não poderia ter filhos, porque o parto seria fatal para ela. Ela engravidou pela primeira vez e abortou. Na segunda vez, a abortista clandestina lhe deu produtos que não funcionaram. O feto resistiu. Foi assim que eu nasci.

A resiliência vale para as nossas sociedades?

Embora não se corra o risco de uma morte imediata, uma grande crise social, política ou econômica constitui uma prova para a sociedade, que pode sair enfraquecida ou fortalecida. Podemos ir rumo a uma desagregação ou experimentar uma forma de resiliência e sair regenerados, apenas se mudarmos de rumo.

Você nunca usa o termo “revolução”.

A revolução soviética e depois a revolução maoísta produziram uma opressão que vai em sentido oposto à missão de emancipação. Seu fracasso restaurou aquilo que queriam liquidar, ou seja, capitalismo e religião. Em 1968, alguns acreditavam em uma prova geral de revolução; outros, que a economia havia sido atingida de morte pela revolta. Eu interpretei o fenômeno apenas como uma concessão momentânea da nossa civilização.

Desta vez, não se trata apenas de mais uma concessão? A “tecnoeconomia”, que você tanto critica, está sempre presente.

É verdade: hoje, a globalização “tecnoeconômica” é mais hegemônica do que nunca. Com a sua sede insaciável de lucro, ela foi o motor da degradação da biosfera e da antroposfera, provocou fechamentos nacionalistas, étnicos e religiosos. Mudar de rumo pode parecer impossível. Mas todos os novos caminhos que a história humana conheceu eram imprevistos, filhos de desvios que puderam criar raízes e se tornar forças históricas.

O sucesso dos Verdes na França é um sinal de que algo está se movendo?

Os sucessos dos Verdes nas eleições municipais dão esperança de progressos em nível local. Mas, para passar para o nível nacional, há uma grande distância. A ecologia deve ser integrada em um verdadeiro New Deal político-econômico-ecológico-social-cultural a fim de reverter o hipercapitalismo e diminuir as desigualdades. A ecopolítica agora é de importância primordial. Estamos apenas no início.

As epidemias existem desde o início dos tempos. O que é realmente inédito?

A impotência da ciência diante de um vírus desorientador, o caráter multidimensional da crise que atinge a vida de cada indivíduo, de todas as nações e do planeta inteiro. Há a sensação de que o mundo de amanhã não será mais como o que conhecemos.

Os cientistas lutam em posições diferentes, como os políticos.

A ciência não tem um repertório de verdades absolutas. Apenas a teologia se considera infalível. As teorias científicas são mutáveis, e os princípios aparentemente mais sólidos do século XIX, como o determinismo, dão lugar a outras teorias. A ciência, assim como a vida política, vive de conflitos e debates. As controvérsias, longe de serem uma anomalia, são necessárias para os progressos da ciência. O progresso científico nasce da competição e da cooperação. O risco, no entanto, é que a competição se torne concorrência, como na busca o tratamento ou da vacina, em detrimento da cooperação, que permitiria acelerar a eliminação do vírus.

Macron tem razão quando fala da necessidade de se “reinventar”?

Devemos nos repensar para nos reinventar. Mudar de vida e mudar de rumo. Muitas transformações parecem necessárias ao mesmo tempo: são necessárias reformas econômicas, sociais, pessoais, éticas. Por toda a parte no mundo, graças a essa crise global, apareceram miríades de nascentes, miríades de riachos, que, unindo-se, poderiam formar córregos e confluir em cursos de água, dos quais poderia nascer um grande rio.

Mudar de rumo significa seguir em frente sem esperar ter certezas absolutas?

Não se pode conhecer o imprevisível, mas é possível prever a eventualidade. A vida é uma navegação em um oceano de incertezas, através de ilhas de certezas. Embora oculta ou removida, a incerteza acompanha a grande aventura da humanidade, cada história nacional, cada vida individual. Porque cada vida é uma aventura incerta: não sabemos primeiro aquilo que nos espera, nem quando a morte chegará. Todos fazemos parte dessa aventura, repleta de ignorância, desconhecido, loucura, razão, mistério, sonhos, alegria, dor. E incerteza.

 

Estamos confortáveis com o tempo de reação do setor público à crise?, por Fernando Schuler

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A inércia do ensino público produzirá mais desigualdade, mas o sistema é de ‘não culpados’

Thiago conta que “não são aulas por vídeo”. Diz que é só uma interação. “A gente fala mais de cultura, racismo, bullying, coisas assim.” Isabela explica que o problema é a internet. “O sinal é fraco. Não tem aula, só atividade remota. No fim não entendia mais nada, desisti.”

Nas últimas semanas, li o que pude sobre nossa educação pública na pandemia. Me fixei nos relatos. Histórias dos alunos brigando com celulares que não funcionam e emails do colégio que não respondem. E dos alunos, em especial no ensino médio, que vão desistindo.

Os especialistas dizem que a evasão vai aumentar. Demétrio Magnoli cunhou um termo algo assustador: teremos a geração covid. Ela nos lembrará por muito tempo sobre como este ano triste foi também um ano irresponsável.

Alguns sugerem cancelar o ano letivo, quem sabe aprovar todo mundo, começar tudo no ano que vem. Os sindicatos fazem o jogo do nirvana. Aula tem que ser presencial, mas presencial não dá. Só depois da vacina. Então não tem jeito, não é mesmo?

Se a gente observar mais a fundo vai ver aí nossos dois Brasis. Logo no início da pandemia, o mundo das escolas privadas migrou para o espaço digital. Os professores se adaptaram com algum treinamento e o ano seguiu. Com perda de qualidade, que é a regra nisso tudo, mas seguiu.

Enquanto isso, a máquina estatal emperrou. A Pnad Covid mostrou 16,1% dos alunos ainda sem aula, em agosto. Uma enorme parcela com acesso muito precário a atividades, aulas sem interação, sem aferição do que se está ou não aprendendo.

Nosso debate público rapidamente decretou que o problema era a “desigualdade”. Os alunos mais ricos têm acesso à internet, os mais pobres, não. Tudo explicado? Na minha visão, coisa nenhuma.

A desigualdade é um dado estrutural da realidade brasileira. Há muito sabemos sobre a disparidade de acesso à tecnologia. E é óbvio que isso pesa na capacidade das famílias se adaptarem, orientarem os filhos, segurarem a barra numa situação difícil.

Não é exatamente para lidar com isso que existe a educação pública? Estudo recente do Ipea calculou em R$ 3,9 bilhões o custo para corrigir o déficit de acesso digital e a equipamentos. Informação e recursos não são o problema. O ponto é: estamos confortáveis com a velocidade de reação do setor público?

Fui conversar com dirigentes educacionais nos estados. Os problemas são óbvios. Falta acesso a redes, conexões instáveis, aplicativos difíceis de usar. As escolas fazem o mínimo, falta preparo aos professores para o ensino remoto.

Um deles foi direto: o problema é que o sistema não tem pressa. Quando tem orçamento, é difícil comprar equipamentos. Quando compra, é difícil treinar as pessoas. No final, a frase reveladora: “O setor privado fez isso porque tem interesse. Se não tem aula, os pais simplesmente tiram os filhos”.

E o setor público, perguntei, não tem interesse? Pergunta inútil. Se não tiver aula, os pais irão trocar de escola? E irão reclamar para quem? Alguém está realmente preocupado com isso e vai assumir a responsabilidade?

Eis o lado trágico da questão. Temos um sistema de “não culpados”. Os professores não têm culpa por causa do risco e por não terem controle algum do processo; os diretores dependem das secretarias, não controlam o orçamento, sistemas de compras ou a contratação de pessoal.

Os secretários também estão de mãos atadas. Pouco recurso, burocracia, os sindicatos resistem e não podem demitir quem é improdutivo. Por fim sobra o Ministério da Educação, mas o ministro já esclareceu que o problema também não é dele, que a responsabilidade é dos estados e municípios.

Todos reunidos concluiriam, desconfio, que a culpa é “disso tudo que está aí”, como gostava de dizer Leonel Brizola. Que esse papo de eficiência é coisa de neoliberal e que era mesmo impossível converter o drama da pandemia em um trabalho coordenado de inclusão digital.

Melhor tapar o sol com a peneira e pôr a culpa é na desigualdade. Ela mesma, que a inércia estrutural do setor público fará aumentar, como nunca, neste ano triste de 2020.

Fernando Schüler

Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.

 

Sobre escolas, exclusão e segregação, por Otaviano Helene,

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Sistema educacional trabalha para reproduzir as desigualdades no futuro

Folha de São Paulo, 30/09/2020.

Perto de 20% das crianças abandonam a escola antes de completar os nove anos do ensino fundamental —obrigatório, por sinal. Até o final do ensino médio, a exclusão já terá atingido cerca de metade dos jovens. Se já hoje não ter completado o ensino fundamental e mesmo o médio é um limitante terrível na luta por empregos e pela inserção na sociedade, que perspectivas terão essas pessoas em um futuro cada vez mais complexo?

Além da exclusão pura e simples, há também o enorme problema da dependência do desempenho estudantil com sua situação socioeconômica. Quinze mil escolas públicas e privadas, cujos estudantes prestaram as provas do Enem, foram classificadas pelo Inep em sete níveis, de acordo com a situação socioeconômica.

Em nenhuma das escolas classificadas entre os três estratos inferiores, sejam elas públicas ou privadas, os estudantes conseguiram uma média superior a 650 pontos em matemática, uma nota de corte típica para cursos com procura intermediária. Nos quarto e quinto grupos socioeconômicos, menos do que 0,1% das escolas superavam aquele limite. Já no sexto grupo, apenas 2% das escolas conseguiram superar aqueles 650 pontos.

A enorme maioria das escolas cujos estudantes atingem aqueles 650 pontos pertence ao sétimo grupo mais bem aquinhoado —aquele cuja renda familiar era de pelo menos dez salários mínimos, contava com empregado doméstico, tinha pelo menos três carros e duas geladeiras e outros indicadores equivalentes. Ou seja, o acesso às carreiras mais competitivas em instituições de ensino superior de qualidade, quer pelos critérios da nota no Enem, quer por vestibulares tradicionais, é coisa existente, como regra, apenas nos grupos economicamente superiores. Quando uma nota de corte perto de 700 é considerada, a situação se mostra ainda mais excludente: fora dos 5% ou 10% mais ricos, praticamente não há chances de sucesso.

Seja pela simples eliminação do sistema escolar —que afeta, repetindo, perto da metade da população jovem antes do final do ensino médio—, seja pela deficiência na formação escolar, o sistema educacional brasileiro exclui grandes parte de sua população da oportunidade de uma vida com plenas condições de se inserir na sociedade e, também, de dar sua contribuição à ela na forma de um profissional competente.

Por causa dessas características, o sistema educacional brasileiro está contribuindo para reproduzir no futuro as desigualdades atuais, sejam elas nas diferenças de rendas entre as pessoas, sejam nas diferenças entre as várias regiões do país, de cada estado e de cada município. Nosso sistema educacional é simplesmente excludente e segregacionista

Além disso, o país não está formando os quadros profissionais de que precisaria para se impor soberanamente entre os demais países. Sobre esse aspecto, vale lembrar que o Brasil, proporcionalmente à população, está próximo da centésima posição no que diz respeito à formação de profissionais em áreas absolutamente estratégicas, quer para o bem-estar da população, como nas áreas de saúde, quer para a produção econômica, no caso das áreas técnicas mais avançadas.

Para superar tal absurda situação é necessário um reforço nos recursos financeiros das escolas públicas, que são as que atendem a enorme maioria dos estudantes, em especial os mais desfavorecidos economicamente, para que possam oferecer oportunidades iguais a todos, independentemente de seus estratos sociais, econômicos e culturais.

Mas, por tudo o que já se escreveu e debateu, e nada mudou, só podemos chegar à conclusão de que essa situação é um projeto de país dos donos do poder. Portanto, só mudaremos esse estado de coisas com muita pressão popular e luta dos trabalhadores, em especial dos trabalhadores da educação, seja em que governo for, pois sabemos que esses poderosos estão acima de qualquer governo.

Otaviano Helene

Professor do Instituto de Física da USP, ex-presidente do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) e autor de ‘Um Diagnóstico da Educação Brasileira e de seu Financiamento’ (Autores Associados)

 

Trabalho virtual?, por Ricardo Antunes

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Se o trabalho virtual não cessa de se expandir, é bom não esquecer que nenhum smartphone ou tablet pode sequer existir sem a interação com as atividades humanas, inclusive aquela que nos remete às cavernas: a extração mineral.

do Blog da Boitempo

Trabalho Virtual?

por Ricardo Antunes.

[Não há celulares, computadores, satélites, algoritmos, big data, internet das coisas, Indústria 4.0, 5G, ou seja, nada do chamado “mundo virtual e digital” que não dependa do labor que começa nos subterrâneos. Se o trabalho virtual não cessa de se expandir, é bom não esquecer que nenhum smartphone ou tablet pode sequer existir sem a interação com as atividades humanas, inclusive aquela que nos remete às cavernas: a extração mineral. Sem a produção de energia, cabos, computadores, celulares e tantos outros produtos materiais; sem o lançamento de satélites; sem a construção de edifícios onde tudo isso é produzido e vendido, sem a produção e a condução de veículos que viabilizem sua distribuição, a internet não poderia sequer existir. Nas plataformas digitais, os algoritmos, concebidos pelas corporações globais para controlar tempos, ritmos e movimentos de todas as atividades laborativas, foram o ingrediente que faltava para, sob uma falsa aparência de autonomia, impulsionar, comandar e induzir modalidades intensas de extração do sobretrabalho, nas quais as jornadas de 14 (ou mais) horas de trabalho estão longe de ser a exceção.]

1. O nosso mundo (nosso?) é mesmo muito estranho. Por isso não é possível deixar de recordar aqui a obra prima de Ciro Alegría, Ancho e lejano es el mundo, menos pelo seu conteúdo (um mergulho profundo no mundo indígena e amazônico latinoamericano), mas dele me recordo pela força e atualidade da metáfora presente em seu título.

É mesmo muito esquisito esse mundo. No ano passado, por exemplo, para voltarmos bem pouco no tempo, tudo parecia seguir uma normalidade lépida, faceira e ligeira. Veloz como um bólido, mas cambaleante como um bêbado. A diferença abissal entre ricos e pobres seguia seu curso “natural”, na bonança (coisa do passado) e nas crises, estas últimas convertidas em um verdadeiro depressed continuum, para recordar István Mészáros.

Assim, o desenfreado relógio da tecnologia continuava – para fazer uma remissão à insuperável metáfora de Karl Polanyi – turbinado como o “moinho satânico”. Plasmada dominantemente pelos movimentos dos mercados e das corporações, a tecnologia de nosso tempo continuava conectada, sempre on line. Sem direito à desconexão. Que a devastação da natureza seguisse seu curso impiedoso e letal, que a destruição do trabalho fizesse explodir bolsões de miséria e pobreza em quase todos os cantos do mundo, era uma consequência inevitável do espírito do tempo. Afinal, a compensação se encontrava no regozijo dos novos barões globais.

E foi desse modo que o mundo maquínico-informacional-digital não descansou, impelido pelo capital financeiro, o mais asséptico de todos, aquele cujo mister é sempre fazer mais dinheiro, como já disse um dia alguém.

Essa nova realidade “virtual” não poderia deixar de esparramar um palavrório diferenciado, um novo léxico global: gig-economy, sharing economy, platform economy, crowd sourcing, home office, home work etc. E foi assim, na mesma onda, com o virtual work, que deixou de ser espaço de reflexão dos filósofos e físicos e ganhou de vez as páginas dos jornais, revistas, internet, redes sociais, poluindo os apologéticos panfletos empresariais, repetidos ad nauseam por CEOs. Como quase tudo que se esparrama como vírus, o conteúdo parece menos importar. O que vale é ter impacto midiático.

Mas, antes de tratar contemporaneamente do trabalho virtual, é bom recordar, mesmo que sumariamente, o que é verdadeiramente substantivo: o trabalho.

  1. Desde logo é preciso dizer que o terreno é tortuoso e movediço. Um verdadeiro vale tudo. Mas, se como nos ensinou o gênio de Guimarães Rosa, “pão ou pães, é questão de opiniães”,aqui vai a nossa.

Em sua ontogênese, o trabalho nasceu e floresceu como um autêntico exercício humano, ato imprescindível para tecer, plasmar e deslanchar a vida, produção e reprodução do ser que acabava de se tornar social. E, ao assim proceder, suplantamos o último animal pré-humano. Foi por isso que György Lukács, em sua Ontologia do ser social, recorreu a Aristóteles para apresentar os dois elementos fundamentais explicativos desse novo ato humano: pensar e o produzir. Compete ao primeiro a delimitação da finalidade e dos meios para sua efetivação, sendo que ao segundo, cabe a concreção do fim pretendido, efetivar a sua realização.

Pode-se dizer, então, que os ingleses acertaram, em sua linguagem, ao conceber essa atividade humana vital para manter o metabolismo entre humanidade e natureza como work. E assim o fizeram para que se pudesse claramente diferenciar de labour, aquele outro modo de ser do trabalho que remete a sujeição, vilipêndio, tripalium e que acabou por desfigurar o trabalho, na antessala da Revolução Industrial, fazendo-o assumir uma “segunda natureza”.

O trabalho deixou de ser atividade vital para a reprodução humano-social e metamorfoseou-se, convertendo-se em força de trabalho especial, imprescindível para a criação de uma riqueza excedente que passou a ser privadamente apropriada pela nova classe oriunda dos burgos. Vê-se, então, ao menos neste caso, a clara superioridade da língua de Shakespeare: trabalho, travail, arbeit, lavoro, trabajo, nenhuma delas oferece a clareza do binômio work e labour.

E foi assim que o único meio possível de sobrevivência para as massas camponesas e urbanas pobres e despossuídas se transformou indelevelmente e tornou-se uma imposição: laborar para não desempregar.

O imbróglio não foi pequeno e mudou profundamente o modo de vida da humanidade. Isto porque aquilo que, junto com a aparição da humanidade, germinou como um valor, transfigurou-se em um desvalor (ou não-valor), para poder “livremente” criar um mais-valor. Que passou a ser apropriado privadamente por outrem. A alquimia da modernidade estava, enfim, realizada.

3. Como entender, então, contemporaneamente, o trabalho virtual?

Um primeiro ponto é ontologicamente central: se esta modalidade de trabalho não para de se expandir aqui e alhures, é bom não esquecer que nenhum smartphonetablet ou assemelhado pode sequer existir sem a interação com as atividades humanas, inclusive aquela que nos remete às cavernas: o trabalho de extração mineral, realizado nas minas chinesas, africanas ou latino-americanas.

Não há celulares, computadores, satélites, algoritmos, big data, internet das coisas, indústria 4.0, 5G, ou seja, nada do chamado mundo virtual e digital que não dependa do labor que começa nos subterrâneos, nas “sucursais do inferno”. Como pude indicar em O privilégio da servidão, no plano fílmico, essa concretude é exasperada no filme Behemoth, de Zhao Liang. Sob temperatura desertificada, os acidentes, as contaminações do corpo produtivo, as mutilações, as mortes, eis o cenário real, a protoforma que plasma o mundo virtual com suas tecnologias da informação. E aqui faço um breve depoimento pessoal: como sociólogo do trabalho, visitei, uma única vez, uma mina, em Criciúma, Santa Catarina. Tão breve quanto desci aos infernos, pedi para subir à superfície. Bastou – e me marcou para sempre – a inesquecível, forte e lúgubre experiência.

Assim, uma efetiva compreensão do que é contemporaneamente o trabalho virtual nos obriga a romper, desde logo, um duplo limite, que oblitera seus sentidos e significados. O primeiro diz respeito ao forte traço eurocêntrico que frequentemente “esquece” que a maior parte da força global de trabalho está fora dos países do Norte. Esta se encontra pesadamente nos países do Sul, nas periferias globais, como China, Índia (e outros países asiáticos), além da África (África do Sul) e América Latina (Brasil, México). Estes países têm enorme força de trabalho, o que desde logo obsta qualquer formulação “generalizante” acerca dos significados do trabalho, quando a dita cuja se restringe estritamente ao Norte e exclui o Sul.

O segundo limite é, em alguma medida, consequência do anterior. Dada a complexidade atingida nas últimas décadas pela divisão internacional do trabalho, com a consequente expansão das novas cadeias produtivas de valor, há uma imbricação indissolúvel entre as chamadas atividades intelectuais e aquelas ditas manuais (sabemos, por certo, do enorme limite destas definições rígidas). Ou, nas palavras da qualificada socióloga do trabalho Ursula Huws, entre as atividades de “criação” e aquelas mais “rotineiras”2, que se ampliam no universo do trabalho virtual, online, com suas ferramentas de comando digital, softwares etc. e que cada vez mais se inserem nos processos produtivos fabris, agronegócios, nos escritórios, serviços, comércio etc3.

Mas é imperioso enfatizar, uma vez mais, que tais atividades sequer poderiam existir sem a produção de mercadorias que se originam em espaços como as sweatshops da China ou outros espaços produtivos do Sul4. Na síntese de Ursula Huws: sem a produção de energia, cabos, computadores, celulares e tantos outros produtos materiais; sem o fornecimento das matérias-primas; sem o lançamento de satélites espaciais para carregar os sinais; sem a construção de edifícios onde tudo isso é produzido e vendido, sem a produção e a condução de veículos que viabilizem sua distribuição, sem toda essa infraestrutura material, a internet não poderia sequer existir e menos ainda ser conectada5.

Recentemente, nas plataformas digitais essa realidade vem se exacerbando ao limite. Os algoritmos, concebidos e desenhados pelas corporações globais para controlar os tempos, ritmos e movimentos de todas as atividades laborativas, foram o ingrediente que faltava para, sob uma falsa aparência de autonomia, impulsionar, comandar e induzir modalidades intensas de extração do sobretrabalho, nas quais as jornadas de 12, 14 ou mais horas de trabalho estão longe de ser a exceção. O curioso mundo virtual algorítmico, então, convive muito bem com um trágico mundo real, onde a predação ilimitada do corpo produtivo do trabalho regride à fase pretérita do capitalismo, quando ele deslanchava sua “acumulação primitiva” com base no binômio exploração espoliação, ambos ilimitados6.

Assim, ao contrário de um imaginário mundo do trabalho virtual, ascético, limpo, paradisíaco, dadas as clivagens e diferenciações presentes na desigual divisão internacional do trabalho, estamos presenciando, simultaneamente, tanto a expansão do trabalho virtual quanto a ampliação do trabalho manual, visto que as primeiras dependem indelevelmente de uma infinitude de ações humanas que se desenvolvem no mundo coisal, objetivo, material.

Portanto, uma efetiva compreensão do significado real do trabalho virtual não pode obliterar e “apagar” estes traços centrais acima indicados, que tornaram o mundo do capital de nosso tempo um complexo emaranhado, que se encontra encalacrado até o pescoço. E que a pandemia exasperou e desnudou.

* Publicado originalmente na revista Com Ciência.

Reforma de impostos de Guedes é injusta, ineficiente e selvagem, por Vinícius Torres Freire.

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Com CPMF, reforma do governo aumenta injustiça e ineficiência tributária no país

“Poucas ideias são tão ruins que não podem ser pioradas. Infelizmente, o sistema tributário brasileiro não é exceção à regra… Uma prova disso é a constante ameaça do retorno da famosa… CPMF”, escreveu Adolfo Sachsida em um livro de 2017. Sachsida é ora secretário de Política Econômica do Ministério da Economia de Paulo Guedes.

A esse respeito, muita gente está de acordo com o secretário, este jornalista inclusive. Guedes quer substituir um imposto ruim e decadente, a contribuição patronal para o INSS, por um ainda pior, a CPMF ou equivalente. Se conseguir, vai aumentar a confusão, as distorções e várias iniquidades da tributação no Brasil.

Um modo de acabar com o imposto sobre folha de salários é tributar mais a renda, de preferência a dos mais ricos (ou o consumo, alternativa pior). Tributar mais os rendimentos maiores é também um modo de pegar os lucros da “economia digital”, que têm escapado dos fiscos do mundo inteiro.

Guedes não quer bulir com o IR. Pretende comer a renda de modo insidioso, com uma CPMF, imposto menos visível e que trata ricos e pobres da mesma maneira.

A ideia do ministro é arrumar R$ 120 bilhões a fim de reduzir o que as empresas pagam para o INSS. Acabaria o imposto sobre remunerações de um salário mínimo ou menos; a contribuição sobre salários maiores diminuiria. Uma conta de guardanapo indica que, de fato, esse dinheiro seria bastante para reduzir a alíquota do INSS de 20% para uns 11% (para salários maiores que um mínimo), tudo mais constante.

Guedes acha que arrecadaria esses R$ 120 bilhões com uma alíquota de 0,4% para sua CPMF misteriosa. Quando a CPMF era de 0,38% (de 2002 a 2007), a receita era regularmente 1,35% do PIB, atualmente uns R$ 94 bilhões. Mas passemos, pois ninguém sabe o que é essa CPMF do ministro e a economia mudou em 13 anos.

Uma CPMF ou coisa que o valha vai pesar mais sobre indústria e agricultura, menos sobre serviços. Impostos sobre a folha de salários, como a contribuição patronal para o INSS, pesam mais, claro, sobre setores que gastam relativamente mais com mão de obra e menos com capital.

Mas ao fim e ao cabo, impostos sobre transações financeiras são selvagens, em nada relacionados a um critério econômico razoável. Uma cadeia de produção longa e movimentação financeira relativamente grande levarão uma empresa a “pagar” mais (na verdade, a recolher mais imposto, repassando a conta para o cliente).

A CPMF tende a aumentar a iniquidade social e econômica da tributação. Um grande princípio da reforma tributária seria justamente uniformizar o quanto possível os impostos que cada setor ou empresa têm de recolher. Outro motivo da reforma é acabar com a cumulatividade (o imposto em cascata, que fica mais pesado quanto mais “fases” a produção de um bem ou serviço envolver). A CPMF é cumulativa.

Além do mais, uma CPMF de 0,4% é uma enormidade em ambiente de taxas de juros baixas. Logo, vai criar tumulto e custo também no mercado financeiro.

A redução dos encargos sobre a folha vai ajudar a criar empregos? Não há evidências. Talvez facilite formalização e contratações quando e se a economia estiver crescendo. Impostos menores sobre o emprego podem ser um coadjuvante da melhoria do mercado de trabalho, mas não o motivo.

Deputados relevantes ainda dizem que a CPMF não passa ou que pode atrasar a reforma tributária. Que o país esteja discutindo tal coisa é outro sucesso da selvageria iníqua e ignara que move o governo de Jair Bolsonaro.​

Vinicius Torres Freire

Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).

Reforçando o SUS

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Sistema deve ser mais funcional e eficiente para cumprir missão constitucional 

Arminio Fraga

Sócio da Gávea Investimentos, membro do Conselho Consultivo da StoneCo e Fundador do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde

Miguel Lago

É diretor-executivo do IEPS

Rudi Rocha

É diretor de pesquisa do IEPS e professor da FGV-Eaesp

A pandemia trouxe a importância dos sistemas públicos de saúde para o centro do debate. Ao longo dos últimos 30 anos, o Brasil construiu um dos maiores sistemas universais do mundo, com notáveis resultados em várias áreas, a despeito da escassez de recursos e da enorme desigualdade regional e social. No entanto, claramente restam ainda imensas carências, com consequências humanas dramáticas.

Há exatamente um ano lançamos o IEPS, organização apartidária e sem fins lucrativos, que tem por objetivo estudar, avaliar e sugerir melhorias em políticas para a saúde do país. Nesse espírito, apresentamos aqui algumas ideias que poderiam nortear uma agenda de reformas para fortalecer o SUS.

O tema é polêmico. Para alguns, o SUS carece de mais recursos. Para outros falta gestão, tecnologia e capital privado. O setor vive um estado permanente de embate. O quadro fiscal do Brasil é desfavorável. Gasta-se muito, mas nem sempre priorizando bem. Nossa visão é que o Estado gasta pouco com a saúde, e há de fato muito espaço para avanços nas outras frentes citadas. Vejamos por quê.

Países com sistemas de saúde universais e públicos tendem a investir significativamente mais do que o Brasil. Enquanto dedicamos menos de 4% do PIB ao SUS, o Reino Unido investe cerca de 8% do seu bem mais elevado PIB per capita no National Health Service (NHS). O subfinanciamento crônico se reflete em filas que estampam as capas de jornais e tempo de espera inaceitável para exames e cirurgias.

O primeiro estudo institucional do IEPS sugere que nos próximos dez anos o governo precisará aumentar significativamente os aportes ao SUS.

Em função dos imensos desafios que o país enfrenta na área fiscal, essa demanda terá que ser atendida gradualmente, como parte de um esforço maior de revisão das prioridades do gasto público.

Sistemas de saúde têm em essência duas características fundamentais: a repartição de riscos entre as pessoas e um desenho onde os mais ricos subsidiam os mais pobres. No Brasil, a recuperação da função distributiva passa por aumentar os aportes ao SUS e eliminar subsídios regressivos.

Apesar de o SUS oferecer serviços gratuitos a toda a população, o gasto privado com saúde segue maior que o gasto público. O setor que atende 22% dos brasileiros por meio de planos de saúde privados e gastos pessoais é responsável por 58% do gasto total com saúde no país.

Sem dúvida saltam aos olhos subsídios tributários dados pelo governo federal a gastos provados, que representam cerca de um terço do gasto federal com saúde (uns 0,6% do PIB). Adicionalmente, seria possível obter alguma receita com a introdução de tributos saudáveis sobre açúcar e ultraprocessados, como já se faz com álcool e tabaco.

Entendemos que o simples aporte incremental de recursos, embora urgente, não é suficiente. Precisa ser complementado por ganhos de eficiência.

Um primeiro passo seria coordenar melhor a atuação dos estados e municípios, de fato transformando a atenção básica na principal porta de entrada e vetor organizador do fluxo de pacientes dentro do sistema.

Para assegurar que essa integração seja bem-sucedida, é preciso implementar mudanças na organização regional do sistema. Um número muito grande de municípios não tem escala para ter seus próprios hospitais. Cabe desenvolver regiões de saúde dotadas de uma escala capaz de racionalizar a prestação dos serviços. Todo esforço institucional no sentido de promover mais regionalização deve ser encorajado.

Uma segunda área a explorar seria o aperfeiçoamento da colaboração com a iniciativa privada. Quando bem regulada, e com incentivos bem alinhados via contratos transparentes, pode ser uma aliada importante na busca por maior escala e eficiência.

O desempenho das organizações sociais da saúde Brasil afora é muito heterogêneo e precisa ser estudado para que se possa separar o joio do trigo. A falta de transparência de informações impede que tal avaliação seja feita com a profundidade adequada.

No entanto, a limitada evidência existente sugere que há muito espaço para melhorias no sistema. Em última instância, trata-se de um desafio de governança e gestão.

Para acelerar todas essas mudanças, será necessário um choque tecnológico. Destacam-se a criação de um prontuário eletrônico unificado por paciente e o uso da telemedicina pelas equipes de atenção básica em todo o território nacional, conectando-as com especialistas, aumentando sua resolutividade e suprindo assim as lacunas na oferta de médicos e profissionais de saúde que existem em muitas regiões do país. Há muito a se fazer nessa área, muito espaço para saltos de qualidade.

Outro tema relevante é a crescente judicialização da saúde observada no Brasil. Verdade que os processos de judicialização garantem a realização do direito constitucional à saúde, algo inquestionável. No entanto, a experiência internacional demonstra que, mesmo em países mais avançados, diante da finitude dos recursos orçamentários existentes, urge encarar o difícil desafio da priorização dos gastos com saúde.

Cabe reconfigurar a Conitec, transformando essa comissão interministerial em uma agência independente —nos moldes do NICE no Reino Unido— que determine com clareza o rol de procedimentos cobertos pelo SUS, bem como a incorporação de novas tecnologias.

Assim, litígios judiciais seriam reduzidos progressivamente, sobretudo os movidos por demandas nem sempre vinculadas a procedimentos efetivos e seguros para os pacientes.

Por fim, cabe adotar uma abordagem transversal de promoção de saúde em todas as políticas públicas (alimentação, urbanismo, ambiente, educação, cultura), pois será por meio delas que poderemos ter uma população cada vez mais saudável.

Um sistema de saúde que se propõe a cuidar de toda a população precisa estar mais bem preparado, funcional e eficiente para cumprir com sua missão constitucional. Os muitos que sofrem precisam de nossa pressa no reforço ao SUS.

Arminio Fraga

Sócio da Gávea Investimentos, é presidente do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).