A carta tardia do PIB, por Cristina Serra.

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Entenderam que não adianta ter dinheiro para pagar UTI aérea para Miami?

Cristina Serra – Folha de São Paulo, 23/03/2021

Quer dizer que foi preciso um ano de pandemia, quase 300 mil cadáveres, o colapso dos hospitais e um tombo colossal na economia para que parte expressiva do PIB se manifestasse publicamente sobre a catástrofe humanitária que nos põe de joelhos? Tirante honrosas exceções que assinam a carta divulgada neste fim de semana, a maioria permanecera em indiferente pachorra.

São mais de 500 assinaturas; alguns sobrenomes reluzentes, de banqueiros, empresários, ex-ministros, ex-dirigentes do Banco Central e economistas que, até outro dia, clamavam pela urgência das reformas, mas não mostravam a mesma preocupação com a premência de salvar vidas.

Muitos até devem ter achado, como disse o famoso animador de auditório, que Bolsonaro teria uma “chance de ouro de ressignificar a política”, seja qual for o sentido disso no dialeto da Faria Lima. Agora, com as UTIs dos hospitais privados lotadas, parecem ter despertado do modo “repouso em berço esplêndido”.

O que mudou? Entenderam que não adianta ter dinheiro para pagar UTI aérea para Miami? Que não somos bem-vindos em nenhum país porque cevamos um criadouro de variantes agressivas do vírus? Que estamos todos na mesma tormenta, embora milhões a enfrentem agarrados a um pedaço de pau e pouquíssimos em um transatlântico? Simplesmente perceberam que Paulo Guedes não tem força para demolir o Estado, como esperavam? Ou a soma disso tudo?

Com tal carta, nossa elite mostra como é elástica sua tolerância diante de uma tragédia que atinge principalmente os mais pobres. Ao ler o documento, procurei menção a, quem sabe, aumento de imposto sobre suas imensas fortunas. Nenhuma palavra. Apesar de tardia, a carta pode até ajudar a controlar rompantes autoritários de Bolsonaro. Daí a conter o genocídio que nos abate há longa distância. Para isso, é preciso combinar com os mercenários e franco atiradores do centrão. E enquanto você lê esse texto, mais um coração brasileiro parou de bater.

Negação, negacionismo e má-fé, por Vera Iaconelli.

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Vera Iacoconelli – Folha de São Paulo, 23/03/2021.

Normalidade não é coisa de humanos, mas há casos e casos

Lembra aquela sua amiga que te ligou para falar que ia se separar do marido monstro, te deixando com a certeza de que, finalmente, ela ia se livrar daquele pequi roído? Você se sentiu aliviada(o) pensando como foi ótimo ter confessado tudo que você pensava dele há anos. Pois é… não só ela nunca se separou dele, como nunca mais atendeu seus telefonemas.

Entre belos discursos – “vou me separar”— e as fantasias inconscientes — “amar é sofrer”, por exemplo —, cada um de nós tem que lidar com sua divisão interna. O mecanismo de negação nos protege de realidades desagradáveis e permite que sigamos no dia a dia sustentando desejos conflituosos dentro de nós.

Uma das genialidades de Freud foi apontada por Philippe van Haute e Tomas Geyskens em “Psicanálise Sem Édipo: Uma antropologia clínica da histeria em Freud e Lacan” (Autêntica, 2016), na qual os autores recuperam a via que denominaram de “patoanalítica” da psicanálise. Isso significa dizer que eles resgatam a ideia freudiana de que normalidade não é coisa do mundo humano e o que chamamos de loucura, neurose e perversão é mais da ordem do grau do que da diferença absoluta. Caetano já teorizava, “de perto…”.

Agora imagina que a amiga, que volta deliberadamente para os braços do boy lixo e que sempre foi criticada por fazer isso, encontra um grupo na igreja que acredita que a mulher tem que se submeter ao marido, comungando com sua fantasia inconsciente. E que fazendo parte desse grupo ela se sinta importante pela primeira vez e ainda se veja representada na figura da primeira-dama e de mulheres em cargos importantes do governo. Junte-se a isso que seu ódio ao marido —e a si mesma— possa ser desviado para fora, sendo projetado em feministas, esquerdistas, comunistas…

Negacionismo foi um termo criado para falar de negações de eventos específicos como Holocausto ou certezas científicas. Para sustentar tamanha negação e ter efeitos sociais importantes, os sujeitos precisam se separar de quem contradiz suas interpretações da realidade e se unir a quem pensa igual. Aí entra um ingrediente desconhecido de Freud: as redes sociais, nas quais negacionistas encontram milhares de pessoas que pensam como eles. Não se trata mais de se dirigir pessoalmente à Hofbräuhaus em Munique para ouvir um tal de Hitler discursar contra judeus e homossexuais. Basta um clique para você encontrar seus pares e confirmar que a Terra é plana, óbvio.

Além disso, os laços de reconhecimento mútuo que pessoas usualmente preteridas pela sociedade fazem nesses grupos costumam ser carregados de afetos e de sentido de reconhecimento e pertencimento. O amor que une as bolhas se sustenta na condição de se destilar ódio aos outros. Quando essas bolhas encontram um líder que as represente de forma pública, temos a tempestade perfeita. O amor ao líder e o ódio projetado no inimigo comum permitem que negacionistas briguem menos entre si, criando a patota dos cidadãos de bem.
Já na má-fé o sujeito sabe muito bem qual é a realidade dos fatos, mas explora a miséria e o negacionismo de outros. Entre os exemplos que pululam, temos o dado pelo “pastor” Edir Macedo.

Enquanto prega que seus fiéis não precisam se vacinar —pois o vírus só contaminaria homens de pouca fé— corre para tomar a vacina recém-liberada nos EUA, onde mora.

Reconhecer a importância da vacina e, deliberadamente, desmenti-lo em público para obter vantagens —e, ato contínuo, tomá-la— é traço inequívoco de psicopatia.

Dito isso, que fique claro que Bolsonaro é um negacionista de segunda, mas genocida de primeira.

Esquerda e direita têm demonstrado, ao longo da pandemia, o lixo que são, por Pondé.

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Peste prova que a humanidade não evolui moralmente um centímetro, apesar de o marketing vender o contrário

Luíz Felipe Pondé – Folha de São Paulo, 22/03/2021

Máximas vindas do coração da peste:
1) Os idiotas da peste estão por toda parte. Seguem seu mito. Fazem pancadão e churrasco na cobertura do prédio. São responsáveis, indiretamente, em parte, pelas mortes ao dar sustentação a um governo irresponsável. Alguém ainda duvida de como nossa espécie é irracional?

2) A vacinação centralizada no Estado é coisa de gente atrasada. Muita dessa gente atrasada tem diploma e é especialista em epidemiologia. Já temos mercado paralelo, corrupção, nepotismo e truques oportunistas de gente que se encosta em quem de fato está na linha de frente para faturar vacina furando a fila. A vacina virou mais um mercado para a corrupção. Quem quiser ver verá: nasce um canalha a cada instante.

3) Quanto mais a mídia esfregar na cara das pessoas um alto número de mortos, mais indiferente elas ficarão. Grandes calamidades são monótonas. Nunca subestime a potência da monotonia como causadora de indiferença ao sofrimento alheio. Faltou inteligência aos jornalistas: correndo atrás de “opiniões científicas” a todo custo, acabaram por ingressar no frenesi do excesso de dados.

4) A peste se tornou um grande mercado para oportunistas (com ou sem diplomas) virarem celebridades vendendo o terror. Revistas científicas de renome buscando furos. Artigos sem revisão pelos pares saem na mídia como verdade última acerca da não eficácia de vacinas. Cientistas buscando seus 15 minutos de sucesso. O vírus é parceiro da vaidade.

5) Grande parte do país é composta de retardados mentais em todos os espectros sociais e econômicos. Do pancadão à cobertura do prédio, a saturação de gente boçal é gigantesca.

6) Os burocratas do Judiciário só querem aparecer, inclusive atrapalhando no que for necessário para desfilar o poder da sua caneta sobre nós mortais.

7) Os militares perderam uma grande chance de mostrar autonomia em relação ao mito e se tornar uma força clara no combate à peste. As Forças Armadas hoje são uma sombra atrás do mito, que as chama de “Meu Exército”.

8) A classe política brasileira, em grande parte, mais uma vez mostrou seu oportunismo, politizando a peste, o tratamento e a vacina, fazendo do Brasil uma república das bananas.

9) Em outras épocas, as igrejas —fossem de que denominação for— eram agentes claros de civilização e combate a pestes. Pergunto: para além da preocupação com seus “dízimos”, o que as igrejas têm feito como protagonismo no combate da peste?

10) A peste já deveria ter derrubado Bolsonaro da Presidência, se as Casas Legislativas tivessem um mínimo de vergonha na cara.

11) O STF tampouco tem sido um agente exemplar na peste. Indiferente a ela, tenta furar a fila da vacina e finge estar preocupado com o país exigindo um “plano de vacinação” do inútil Ministério da Saúde, como se essa exigência tivesse alguma validade efetiva contra as mortes. Bravatas togadas.

12) No Brasil, a burocracia durante a peste tem demonstrado o quanto ela pode ser um entrave na solução dos problemas, mesmo quando essa burocracia vem de especialistas em saúde pública e vacinas.

13) O Brasil é um país, em grande parte, de ladrões e oportunistas. E essa gente mau caráter pesa sobre os ombros de quem luta no dia a dia, na peste e mesmo além dela, para fazer do Brasil um país menos canalha. Eventos como a peste deixam claro o mau-caratismo de uma população. Em meio a esses ladrões e oportunistas tem gente com ou sem casaca, com ou sem colarinho branco, com ou sem diploma, de todos os espectros ideológicos.

14) Esquerda e direita têm demonstrado, ao longo da peste, o lixo que são.

15) No Brasil, se você for inteligente, você será corrupto, político ou juiz.

16) As redes sociais brilham com a luz do Hades. Entre os mais adictos nelas estão os veículos de mídia que podem destruir sua credibilidade à medida em que rezam no altar do “deus engajamento”.

17) A peste prova que a humanidade não evolui moralmente um centímetro, apesar de o marketing vender o contrário.

18) A melhor coisa a fazer é não acompanhar mais o ruído. O silêncio e o quietismo são hoje formas de higiene pessoal.

Fareed Zakaria oferece dez lições para o mundo pós-pandemia

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Escritor prevê que desigualdade deve aumentar, e globalização, continuar.

Folha de São Paulo – Rafael Balago – 20/03/2021 – SÃO PAULO

O mundo deve sair da pandemia de coronavírus mais desigual e com novas formas de globalização, aposta o escritor Fareed Zakaria. Produtos digitais, afinal, circulam entre as fronteiras com muito mais facilidade do que itens físicos e se tornaram muito mais buscados no último ano.

No livro “Dez Lições para o Mundo Pós-Pandemia”, o autor faz uma série de reflexões sobre como a crise sanitária deve trazer mudanças e debate questões políticas, econômicas e culturais da atualidade. A obra, escrita em meados de 2020, foi lançada recentemente no Brasil.
Zakaria, 57, nasceu em Mumbai, na Índia. É doutor em ciência política pela Universidade Harvard (EUA), colunista do Washington Post e apresentador da CNN americana. Abaixo, algumas de suas conclusões:

1. APERTEM OS CINTOS
As inovações tecnológicas avançaram muito nas últimas décadas, e as sociedades foram mudando depressa, sem se preocupar com medidas de segurança. Zakaria faz uma comparação: é como se estivéssemos construindo um carro cada vez mais veloz, mas que não possui airbag, cinto de segurança ou seguro, e disputando corridas sem nos preocupar com os riscos. Assim, após desviarmos de vários pequenos perigos, a pandemia gerou um acidente grave. Os danos teriam sido minimizados caso tivéssemos menos desigualdade social e mais medidas de prevenção a epidemias, por exemplo.

2. O QUE IMPORTA NÃO É QUANTO, MAS COMO O GOVERNO INTERVÉM
Os EUA são um exemplo de governo que gastou muito, mas não conseguiu conter a propagação do vírus —é o país com mais casos e mortes acumulados até agora — nem retomar rapidamente a economia. Apesar dos auxílios muitas pessoas pobres demoraram a receber seus cheques, enquanto pessoas de classe média e alta também foram beneficiadas. Zakaria também avalia que ideologias como esquerda e direita ficaram obsoletas. “Os governos com atitudes mais relaxadas, que não funcionaram bem, foram os do Brasil [direita] e do México [esquerda], governados por populistas ferrenhos.”

3. MERCADOS NÃO SÃO SUFICIENTES
A pandemia mostrou a importância do Estado para atuar em uma emergência, de uma maneira que os mercados sozinhos não teriam interesse em fazer. Não se trata apenas de oferecer assistência médica a quem não pode pagar, mas dar apoio a desempregados e financiar pesquisas de vacinas.

4. AS PESSOAS DEVERIAM OUVIR MAIS OS ESPECIALISTAS, E VICE-VERSA
Zakaria aponta que muitos especialistas são vistos apenas como parte da “elite” e do “sistema”, o que gera desconfiança entre pessoas com menor escolaridade. Nos últimos anos, políticos como Donald Trump e Jair Bolsonaro passaram a atacar pesquisadores para reforçar sua imagem antissistema. Assim, ser contra a ciência se tornou um fator de identidade política.

Para serem mais ouvidos, a recomendação aos especialistas é que se aproximem mais das pessoas de outros grupos sociais e proponham soluções factíveis à realidade delas. As determinações de lockdown são um exemplo claro da dificuldade de transpor uma recomendação teórica para a realidade.

5. A VIDA É DIGITAL, E O TRABALHO DEVE VOLTAR A SE LIGAR COM A VIDA DOMÉSTICA
A tecnologia necessária para trabalho, educação, consultas médicas e entretenimento a distância já existia há anos, mas faltava um empurrão para serem adotadas em massa. Zakaria avalia que o futuro deverá ter um modelo híbrido entre atividades presenciais e digitais mais intenso do que no pré-pandemia.

Por isso, o trabalho volta a ser mais conectado à vida doméstica, como foi na maior parte da história humana. Era comum que um agricultor morasse perto das terras que cultivava ou que um comerciante morasse em cima de sua loja, por exemplo.

6. SOMOS ANIMAIS SOCIAIS, E AS CIDADES SEGUEM VANTAJOSAS
Apesar de a tecnologia facilitar o isolamento físico, a vida nas cidades segue mais interessante, diz Zakaria, já que temos mais pessoas por perto para trocar experiências em meio à convivência cotidiana, muitas vezes de modo informal. Assim, a pandemia mostrou o quanto alunos e funcionários perdem em conhecimento ao deixarem de interagir pessoalmente. E, mesmo em tempos de comércio fechado, o morador de uma metrópole tem muito mais opções do que o de uma cidade menor.

7. A DESIGUALDADE VAI AUMENTAR
Países ricos têm condições de conseguir dinheiro para a retomada pós-pandemia. Já as nações pobres terão mais dificuldade para se endividar e, assim, ajudar seus cidadãos. Em tempos de crise, investidores preferem lugares considerados mais seguros, como EUA e Europa, em um ciclo que os torna ainda mais seguros, enquanto enfraquece as economias de países da América Latina e da África. Grandes empresas também têm mais facilidade para se financiar do que os pequenos negócios, o que poderá aumentar seu poder e tirar comerciantes menores do mercado.

8. A GLOBALIZAÇÃO NÃO MORREU
Apesar dos fechamentos de fronteiras para viajantes, a troca de produtos entre os países seguiu forte na pandemia. O modelo é muito firme, pois as cadeias de produção são integradas, e os produtos, montados com peças de várias partes do mundo. Além de produtos, serviços digitais também viajam muito mais facilmente entre as fronteiras.

Assim, um exame de raio-x feito nos EUA pode ser analisado por médicos na Índia com ajuda de um software em Singapura, e a globalização vai ganhando novas formas.

9. O MUNDO ESTÁ SE TORNANDO BIPOLAR
Durante a pandemia, a China seguiu com crescimento econômico, enquanto os EUA enfrentam uma crise, com alto desemprego. Esse movimento favorece a ascensão do país asiático rumo ao posto de maior potência mundial. No entanto, este mundo bipolar será diferente do da Guerra Fria, pois as economias dos dois países estão profundamente integradas. Portanto, há um risco bem menor de conflito do que no caso da União Soviética, conclui o autor. Ainda assim, Xi Jinping segue com uma política agressiva para conquistar mais espaço no cenário internacional, como, por exemplo, com a Iniciativa do Cinturão e Rota.

10. UMA GRANDE CRISE ABRE ESPAÇO PARA IDEALISTAS
Após a Segunda Guerra, os países vencedores investiram na cooperação internacional, que incluiu a criação da ONU para estimular o desenvolvimento dos países e manter a paz. É uma visão contrária à de que cada país deve buscar seu sucesso por conta própria, sem se preocupar com os outros, e que ganhou espaço nos últimos anos estimulada por Trump. Zakaria avalia que os EUA não terão como recuperar o posto de líder global incontestável, pois muitas outras nações buscam protagonismo, mas que a pandemia abre caminho para resgatar a ideia de que, se todos cooperarem, todos terão mais ganhos.

Pandemia é chance para país desenvolver tecnologia de saúde, diz Monica de Bolle

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Para economista, Brasil tem potencial para ser referência em mundo no qual convivência com vírus será permanente

Eduardo Cucolo – Folha de São Paulo, 15/03/2021

Mundo pandêmico

A realidade que a gente tem pela frente não é uma realidade em que vai poder declarar um fim da pandemia. A fase aguda da pandemia vai passar, a gente não vai ficar no estágio em que está agora, mas esse estado de alerta permanente vai continuar conosco. Isso tem implicações em como os países, as pessoas e a economia vão se adaptar. Mercado de trabalho, ambiente de trabalho, aglomerações de todos os tipos, como eventos esportivos, viagens, todas essas coisas estão alteradas, e a gente não vai voltar ao que tinha antes.

No segundo semestre de 2021, a gente vai relaxar medidas restritivas, medidas sanitárias, em várias partes do mundo. Mas, supondo que todas essas vacinas deem conta dessas variantes, as que existem e as que vão surgir, a gente só consegue ter um contingente no mundo vacinado em quantidade suficiente para conseguir respirar com algum alívio, com certo otimismo, lá para o final de 2022.

Eu passei os últimos dois anos fazendo uma série de especializações em medicina em Harvard e calhou da pandemia acontecer. Para mim, pela natureza desse vírus, ele vai permanecer entre nós. A gente vai ter de se adaptar a conviver com isso, passar por surtos, por várias vacinas que vão ter de ser atualizadas recorrentemente e continuar com algum grau de cautela nas nossas vidas. Você vai ter sempre um repositório de Sars-Covid-2 em algum lugar do mundo sofrendo mutações.

Mudança na economia

O setor de serviços vai ter de se reinventar. Já havia uma pressão para se pensar novos modelos de trabalho e na pandemia isso teve de acontecer. Você pode pensar pelo lado negativo, algumas pessoas vão perder permanentemente os empregos que tinham porque eles vão desaparecer. Por outro lado, há mudanças que geram uma flexibilidade maior, muitas pessoas não voltarão aos escritórios, e isso gera um ganho de eficiência enorme.

Para um país poder se sair melhor que outro vai ter de investir muito na área de saúde. Em tudo: testagem, equipamento de proteção pessoal, capacidade de vigilância genômica, que requer vários laboratórios com equipamentos de ponta e uma rede que converse entre si e esteja rastreando no país inteiro.

Nova agenda para o Brasil

A agenda para mim no Brasil hoje, se tivesse um governo com visão estratégica, seria a saúde pública. É onde a gente tem uma vantagem natural, pelo sistema de saúde que a gente tem.
Você vê a Índia exportando vacina para muitos países e também exportando medicamente, produtos químicos. A China, a mesma coisa. A Rússia está tendo o mesmo tipo de posicionamento. Se você olhar para esses países [do Brics], tirando o B [de Brasil], o resto dos Brics estão todos fazendo esse reposicionamento. O Brasil teria uma posição muito privilegiada para fazer isso. Já fomos grandes produtores de medicamentos e vacinas, mas abrimos mão dessa vantagem.

A agenda de longo prazo deveria ser essa. Dessas coisas começam a vir inovações, tecnologias, inserção global, capacidade de estar mais envolvido nas cadeias de produção globais, tudo pela via da saúde pública.

Quais são as reformas que a gente precisa fazer para alcançar esses objetivos? Aí você faz as reformas com esses objetivos em mente. Vamos fazer uma reforma administrativa que atenda a esse objetivo, uma reforma tributária de modo a alcançar esse objetivo.

Estados Unidos da América

Colocar a saúde pública no centro das discussões faz com que essas oportunidades fiquem mais visíveis e você começa a mudar um pouco o debate no Brasil. Aqui nos EUA, vai acontecer a mesma coisa. O setor de saúde aqui tem uma precariedade que o Brasil não tem. Tem muitas escolas de medicina de ponta, mas o sistema de saúde vai ter de ser reinventado.

O envelhecimento populacional é outro aspecto importante do porquê investir em saúde pública. E tem as sequelas da própria Covid. O número de pessoas que vão precisar dessa área para continuar sendo produtivas… Algumas vão ter sequelas para sempre, que as torna dependentes de centros de reabilitação.

Aqui nos EUA, todos os hospitais têm centro de reabilitação para quem teve Covid. A gente já tinha essa realidade de envelhecimento populacional somada a uma carga de doenças crônicas cada vez maior. Agora, além disso, tem o efeito que vem com as sequelas da Covid.

A triste solidão da educação brasileira, por Débora Garofalo.

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Precisamos discutir um processo qualificado, igualitário e comprometido

Débora Garofalo
Mestra em educação, é professora na rede pública de São Paulo; em 2019, foi a primeira sul-americana a disputar o Global Teacher Prize, sendo considerada uma das dez melhores professoras do mundo

Folha de São Paulo, 18/03/2021

Temos vivido tempos difíceis na educação. O agravamento da pandemia e a ausência de uma coordenação do Ministério da Educação para os problemas em diferentes regiões do nosso país fazem com que uma das queixas recorrentes dos educadores seja lidar com a falta de infraestrutura, além do sentimento de solidão na sala de aula —não observado apenas neste ambiente, mas sim em todo o processo educativo.

Com o início da pandemia, vimos a educação parar no chão da escola. O que pensávamos que duraria poucas semanas foi substituído por um longo e angustiante período que já soma um ano, com consequências graves à aprendizagem de crianças e jovens e nos colocando no topo do ranking dos países que não conseguem controlar a pandemia e com o maior tempo de escolas fechadas. A epidemia de Covid-19 não só aumentou as desigualdades, mas a evidenciou de uma maneira brusca.

A escola não pode ser vista apenas como um local para aprendizagem. Muitas vezes ela é a extensão da casa dos estudantes, que cumpre e integra a rede de proteção da infância e adolescência nos papéis de garantir alimentação, convívio social, assistência médica e psicológica; ou seja, é reconhecida a necessidade de caminharmos para uma educação com valores integrais.

Há um ano com aulas mediadas por tecnologia ou distribuição de materiais didáticos, podemos destacar que a educação brasileira está solitária. Assistimos à inércia do MEC e à ausência de orientações para aulas no formato híbrido, além da falta de ações para o retorno presencial seguro e o fomento a políticas públicas, como o investimento em programas como o Educação Conectada. Fatores que deveriam ser prioridade para a elaboração de diretrizes básicas, com o objetivo de orientar redes e governos.

O novo Fundeb aprovado no final do ano passado, não será suficiente para superar os desafios e assegurar o retorno seguro e híbrido das aulas presenciais. Constantemente sofremos com ameaças de corte na pasta da Educação, mostrando ausência de diálogo e prioridade no setor. Erros que se somam ao passado recente e que novamente afetarão milhares de crianças e jovens.

No centro do processo, deve-se destacar o protagonismo docente, que materializou o planejamento e a gestão das ações nas unidades escolares, mostrando o importante papel social de construir saberes e o desenvolvimento integral que fundamenta a sociedade. Para planejar e executar as reaberturas das unidades escolares são necessários investimentos e, mais do que isso, fomentar diálogos com o território educativo e com quem faz a educação na ponta —gestores, professores e estudantes, com construção de protocolos locais, constituídos de maneira democrática.

Problemas educacionais também são problemas de desigualdade social. Promover a inclusão e a democracia digital a professores e estudantes é essencial para criar vínculos e pertencimento com o cognitivo, além da necessidade de ressignificar a educação. Caminhar para a educação híbrida é essencial para atender e cumprir os protocolos de saúde e de distanciamento social para o retorno gradual e, em paralelo, contribuir para a recuperação da aprendizagem.

Um dos maiores aprendizados desta pandemia é o de que nada substitui as aulas presenciais. E, para reinventar o processo educacional, é necessário se guiar de ações pertencentes, que envolvam a comunidade escolar e contemplem o risco de evasão —muitos jovens foram obrigados a emergir no mundo informal do trabalho. Não só a economia deve ser priorizada, mas também a educação.

Conseguimos descobrir a vacina para a Covid-19. Agora é preciso reunir esforços para transformar e priorizar a educação brasileira. O caminho passa pelo trabalho coletivo, escuta ativa, investimentos relevantes e aposta na educação como transformação da sociedade. Não basta apenas tecer discussões sobre voltar ou não, precisamos discutir a partir da crise: como não termos um processo isolado, mas sim qualificado, igualitário, comprometido com a aprendizagem e com políticas factíveis para todos.

Desagregação familiar, pandemia e neoliberalismo

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A pandemia está desnudando as grandes dificuldades existentes em todas as sociedades, em todas as nações estamos percebendo desafios assustadores, desequilíbrios emocionais, desagregações familiares, angústias e preocupações crescentes, exigindo políticas públicas para reconstruir as convivências sociais e a reconstrução dos laços afetivos e emocionais, num momento marcado pelas políticas sociais se fragilizando e o pensamento neoliberal, mesmo perdendo forças, ainda é hegemônico.

A pandemia está mostrando as pobrezas das sociedades, os desajustes econômicos e sociais estão num crescente, a consolidação do individualismo, da concorrência desigual, do crescimento do mito da meritocracia, medos e desesperanças que levam os indivíduos às depressões e às ansiedades, muitos deles mais fragilizados e desequilibrados recorrem ao suicídio, como forma de fuga das desesperanças, acreditando que este caminho o levará para acalmarem seus sentimentos mais íntimos e pessoais.

As famílias estão desagregadas, os lares estão devastados pelos desequilíbrios financeiros, as perspectivas são preocupantes, a pandemia está desnudando as estruturas. Os seres humanos estão no limite, de um lado, percebemos desequilíbrios emocionais centradas na ausência da inteligência emocional e, de outro lado, as perspectivas financeiras são assustadoras, as alterações no mundo do trabalho geram preocupações crescentes, gerando conflitos internos, conflitos familiares e medos generalizados.

Neste ambiente, percebemos o crescimento de movimentos fundamentalistas e religiosos, que estimulam os cultos e os rituais exteriores, marcados pelas interações centradas em falas superficiais e bem orquestradas, que estimulam o empreendedorismo e os negócios, marcados pela busca do enriquecimento, pelo entesouramento e o crescimento da meritocracia. Estes movimentos crescem de forma acelerada, transformando antigos espaços fechados de cinemas ou estruturas industriais desativadas de cidades médias e grandes em locais de cultos e louvações religiosas.

O mundo do trabalho passa por alterações crescentes, as atividades impactadas pelas tecnologias não mais se restringem aos trabalhos repetitivos e mecanizados, impactando para variadas atividades profissionais liberais, com isso, os movimentos de degradação dos trabalhadores da classe média, gerando perdas de rendas e das riquezas, fragilizando a classe média, cuja importância na sociedade sempre foi relevante e imprescindível.

Destacamos ainda, a fragilização das famílias, muitas degradadas por problemas financeiros e monetários, sem fontes de recursos adicionais acabam abandonando os convênios médicos e as escolas particulares, impactando vários setores da economia, fragilizando escolas e setores de saúde que perdem recursos e precisam fechar suas instalações ou aceitar promessas pouco atraentes pelos grupos maiores e mais estruturados. As famílias, acossados pelas crises financeiras, se entregam aos empregos existentes e, nesta busca acelerada pela sobrevivência com alguma dignidade, se percebem desintegrados, seus filhos cresceram, os espaços de convivência familiar se reduziram, os recursos monetários diminuíram e as surpresas negativas crescem, gerando decepções, medos e desesperanças.

Destacamos o incremento das drogas e as más companhias, que geram preocupações dos pais e dos familiares, crianças que cresceram e se transformaram em adolescentes, cheios de conflitos e desequilíbrios, criando constrangimentos com os pais, muitos deles se entregam aos pequenos furtos para bancar seus consumos internos, muitos, mais audaciosos e arrojados, começando negócios maiores, se aventurando no mundo das drogas e da delinquência. Estes relatos são naturais na sociedade contemporânea, onde as crises dos valores crescem aceleradamente, onde as religiões perdem a capacidade de construir novos espaços de sociabilidade, onde as escolas se limitam a construção de consumidores e os mercados se reduzem a locais do consumismo, da vaidade e de hedonismo.

No mundo da pandemia, as realidades são destrutivas, as famílias se entregam a conflitos abertos, os divórcios crescem de forma acelerada, as violências nos lares aumentam, gerando conflitos abertos entre pais e filhos, levando a assassinatos, agressividades e violências, as famílias perderam os laços de solidariedade, de respeito e de construções sociais, emocionais e afetivas.

A desagregação das famílias está impactando fortemente nas escolas e nas instituições de ensino, de um lado percebemos o abandono dos adolescentes pelas famílias, que mergulham nas atividades cotidianas de trabalho e justificam suas atitudes de descaso e de abandono, para trabalhar e conseguir acumular recursos monetários para garantir escolas de qualidade e a compra de bens, produtos e mercadorias para satisfazerem os desejos e as necessidades dos filhos. Os resultados imediatos estão sendo sentidos nos anos posteriores, desequilíbrios crescentes, desajustes emocionais, imaturidades e inseguranças, adultos imaturos e incertos sobre os rumos futuros e, muitas vezes, altamente dependentes dos pais e de seus familiares.

Neste momento de degradação, percebemos a hegemonia da ideologia neoliberal, centrada nos conceitos da redução do papel do Estado na sociedade, visto como o grande agente gerador de degradação e da putrefação da sociedade. Pelo pensamento neoliberal, quanto menor intervenção do Estado na sociedade, melhor para o crescimento econômico que, segundo este pensamento, os grandes indutores do desenvolvimento devem estar sempre centrados nos mercados e nos investimentos privados, sempre mais eficientes e produtivos para a coletividade.

O pensamento neoliberal se difunde pelos pensadores do capital, indivíduo ou pessoas que pensam através dos preceitos do capital, difundindo para a toda a coletividade as teses da aversão ao intervencionismo do Estado. Defendendo a competição e a busca crescente da concorrência, como a única forma de estimular o sistema ao desenvolvimento. Para o neoliberalismo os investimentos acreditam ou difundem para a coletividade que o grande responsável pelo desemprego da sociedade é o alto emaranhado de leis e regras que limitam o empreendedorismo, diante desta análise, a forma de estimular o mercado de trabalho é a redução dos benefícios trabalhistas, reduzindo os custos trabalhistas e estimulando novos investimentos. Seguindo estes preceitos, em novembro de 2017 a Reforma Trabalhista entrou em funcionamento e, ainda não gerou todos os benefícios para a coletividade, as promessas foram inúmeras, mas as realizações não aconteceram. Hoje o Brasil amarga mais de 14% de desempregados, se somando os subempregados e os desalentados, os números ultrapassam mais de 30%.

O mundo contemporâneo vive momentos de grandes inquietações, medos e desesperanças, as famílias sentem os impactos econômicos, políticos e culturais, levando as pessoas a instabilidades e incertezas crescentes, que demandam atenções maiores para evitar constrangimentos e convulsões em todos os países. O predomínio do econômico é um grande equívoco da sociedade, o enfoque do lucro e do enriquecimento geram cobranças crescentes, levando os indivíduos a desequilíbrios emocionais e psicológicos, levando a sociedade reconstruir os laços de afetividade e solidariedade, sem estes, o caos pode crescer e os desajustes conjunturais tendem a crescerem e se tornarem estruturais.

Vivemos momentos de grandes dificuldades em todos os quadrantes do mundo, os desafios são crescentes, as desigualdades crescem de forma acelerada, as famílias estão desestruturadas, o consumo e a acumulação estão se transformando em uma religião, a política está sendo criminalizada, os setores financeiros dominam a sociedade e adota sua agenda, defendendo seus interesses imediatos, diante isso, a sociedade precisa repensar seus interesses e preservar os valores que fazem dos seres humanos um indivíduo melhor e mais solidário, sem repensarem nossos caminhos e as escolhas, estaremos se afastando dos verdadeiros valores que constroem uma coletividade melhor.

Desigualdades

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Um dos grandes legados da pandemia que assola a sociedade brasileira é o quadro de desigualdades generalizadas com impactos para todos os grupos sociais, políticos e econômicos, estamos num momento de inflexão, as escolhas existentes podem criar novas oportunidades para o país ou pode contribuir para perpetuar desequilíbrios crescentes e estruturais que, sem uma resolução plausível, podem levar o país ao colapso, com grandes dificuldades de governabilidade e uma convulsão social, que podem levar a sociedade a fragilização democrática.

Neste momento de grandes desigualdades, a sociedade brasileira está começando a conhecer as entranhas das dificuldades de grande parte da população, pessoas que vivem sem proteção do Estado, sem empregos dignos e altamente degradados, sem acesso a educação de qualidade, sem atendimentos médicos e hospitalares e de proteções sociais. A pandemia está desnudando a desigualdade nacional, as dificuldades de acesso as tecnologias, os instrumentos de interação social são precários, as deficiências do ensino remoto se mostram mais claras e as pessoas estão morrendo pela falta de oxigênio, vivemos uma verdadeira tempestade perfeita, mostrando incompetência e degradação moral.

A pandemia está nos mostrando o tamanho da economia informal nacional, estamos percebendo a degradação do mercado de trabalho, onde milhões de trabalhadores estão rastejando em empregos precários e degradantes, sem proteção social, sem benefícios trabalhistas, sem rendas e sem perspectivas. Numa sociedade que sonha com a modernidade e com o desenvolvimento econômico, é imprescindível garantir para seus cidadãos condições dignas de sobrevivência, ainda mais num momento de crescimento dos desequilíbrios sociais, das incertezas econômicas e das degradações políticas e culturais. O mercado de trabalho está degradado, sem um acordo entre todos os agentes econômicos e na construção de consensos políticos consistentes, a economia nacional tende a continuar rastejando em recessões e depressões continuadas.

Outro ponto interessante que deve ser destacado, é a grande incapacidade dos governos de construir novos espaços de solidariedade, de confiança e de credibilidade, precisamos desenvolver eixos de empatia entre as elites econômicas e políticas com a população, que sofre de formas diferenciadas e aumenta a insatisfação social que podem criar conflitos que poderiam criar constrangimentos para toda a coletividade. A sociedade contemporânea prescinde de confiança e de credibilidade, sem elas o mundo dos negócios perde legitimidade e reduzem os investimentos produtivos, sem estes a economia não se reproduz e os indicadores macroeconômicos se degradam. Sem confiança na sociedade, os atores econômicos e sociais tendem a fragmentação e ao descontentamento com a classe política, levando ao crescimento das instabilidades e das incertezas, possibilitando o surgimento de outsiders, cujas consequências são desconhecidas.

Vivemos inúmeros dilemas contemporâneos, as instabilidades crescem de forma acelerada e a degradação política aumenta e retroalimenta as instabilidades na estrutura econômica e produtiva. Necessitamos de líderes capacitados e conscientes das dificuldades contemporâneas, sem resolvermos os desequilíbrios políticos e acalmarmos os conflitos que cresce em todos os momentos, não conseguiremos reconstruir as bases da economia nacional e as dificuldades sociais tendem a prevalecer e os conflitos podem ser avolumar. A pandemia nos mostrou as pobrezas materiais e as limitações espirituais, os desafios são imensos e os espaços de reconstrução nacional são reduzidos, neste momento novas lideranças devem aparecer, mostrando os rumos, mostrando as dificuldades e orientando para a reconstrução de novos espaços. Como nos mostrou o primeiro-ministro Winston Churchill britânico, um dos maiores líderes do século XXI: “A diferença entre um estadista e um demagogo é que este decide pensando nas próximas eleições, enquanto aquele decide pensando nas próximas gerações”.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 17/03/2021.

‘Desertificação da política é o legado da Lava Jato’, diz cientista político

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Para cientista político, operação ‘morre’ pelos próprios erros, como ações ‘messiânicas’ e querer ‘salvar o País’
Luiz Werneck Vianna

Wilson Tosta, O Estado de S.Paulo – 13/03/2021

Rio – Depois que o ministro Edson Fachin, do Suprema Tribunal Federal, anulou as condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e considerou a 13.ª Vara Federal em Curitiba incompetente para julgá-lo, o cientista político Luiz Werneck Vianna afirmou ao Estadão que a Lava Jato “morreu de morte morrida”. Para o professor da PUC-Rio, a ação dos procuradores da força-tarefa e do então juiz Sérgio Moro tinha objetivo “messiânico” – mudar o País pelo Código Penal –, durou demais e deu errado. Vianna descartou ainda a possibilidade de Moro ser candidato à Presidência, e disse que o combate à corrupção será tema “lateral” em 2022.

Que balanço faz desse processo, com a decisão de Fachin?
Demorou muito. Não é a primeira vez que a Justiça tarda e falha. Mas o fato é que a decisão é inatacável do ponto de vista jurídico. A Lava Jato não podia assimilar todos os casos de corrupção que estavam ocorrendo no País. Desde o começo, foi um erro monumental, em que juízes e procuradores jovens, eu diria provincianos, assumiram o papel de salvadores do País. Andaram estudando a operação que transcorreu na Itália (Mãos Limpas) e aplicaram aqui. Fizeram uma leitura descontextualizada da situação italiana. E mobilizaram a mídia como peça de sustentação. Acho que foi um erro.

Mas tudo que o STF está revendo foi aprovado pelo próprio STF. Por que a mudança agora?
Não creio que tenha sido uma manobra conspiratória. A Lava Jato… ela durou demais. Nasceu de uma concepção abstrusa, em que um pequeno núcleo de procuradores e juízes assumiu um papel messiânico, de salvação da política.

Querer fazer política pelo Judiciário é um caminho ruim. E foi o que a “República de Curitiba” tentou. Pelo processo formal, os processos não deveriam ser vinculados a Curitiba, mas à Justiça Federal. Houve um erro humano.

Desqualificou-se a política, os partidos, e ficamos em um deserto. O legado da “República da Lava Jato” é a desertificação da política.

Qual foi o ponto de virada, no qual se notou que a Lava Jato estava indo além do que poderia?
Foi um processo. Começa com a revisão da política da chamada condução coercitiva. Havia as prisões demoradas, a que eram submetidos os indiciados nas ações, ações cercadas de espetaculosidade. A mídia participou disso, de uma forma inteiramente franca e aberta. Não existiria “República de Curitiba” sem a mídia.

Essas prisões prolongadas muitas vezes foram confirmadas pelo Supremo…

Mas de outras vezes, não. A sociedade também não estava atenta ao que se passava, na medida em que a luta contra a corrupção encontrou guarida na alma popular. Encontrou legitimidade nos anseios escondidos, ocultos, da sociedade.

Os integrantes da Lava Jato atendiam a uma demanda social?
É, eles foram levados à desgraça pelo sucesso. Foi um grande sucesso, não é? Chegou-se até a especular uma candidatura de Moro a presidente da República.

Isso está afastado?
Está. Moro sai desse processo inteiramente desqualificado como juiz. Ele foi parcial.
Que saldo fica?

O saldo primeiro, para mim, é o de que não se deve combinar ação política com ação judiciária. São duas dimensões: a política é uma coisa, a Justiça é outra. Houve essa combinação esdrúxula, e deu no que deu.

Mas isso, de certa forma, continua, não? Porque agora, com a decisão de Fachin, a Justiça também interveio na política…

Ah, continua. Isso agora faz parte do nosso DNA. A política se judicializou no Brasil. Por falta de política, falta de partido. Não se veem medidas judiciais interferindo na questão sanitária brasileira? Na compra de vacina? No lockdown? Isso foi trazido para a política pelos erros da própria política. E agora dificilmente sai.

Quais são as consequências do retorno de Lula à política?
O fato é que, para escapar da polarização extremada, Bolsonaro e Lula, seria preciso que as forças do centro tivessem outra capacidade de interferir nos acontecimentos. Mas o centro está fraco também!

Existe centro na política, com chances de sucesso eleitoral?
Não sei se o centro vai se reconstituir. Ele pode se reconstituir para ter um papel marginal. Penso que, se o PT tiver maior lucidez, não vai ser o protagonista da sucessão. Seria, nessa minha projeção utópica, o construtor de uma frente de centro-esquerda. Ele participaria, evidentemente, ativamente. Agora, sem o papel principal. É possível? Ele não tem história disso. Sempre procurou ser o protagonista. E ficou claro, no discurso de Lula, que isso vai persistir.

Voltando à Lava Jato: a postura messiânica do Ministério Público e da Justiça acabou?
A Lava Jato está acabada. Morreu de morte morrida.

Não foi de morte matada?
Não.

Não foi o STF que matou?
Pode ter sido um golpe de misericórdia, mas estava morta. Passou da conta. Foi um projeto messiânico de salvação do Brasil pela reparação da criminalidade, pela punição, pela extirpação do crime. Isso é uma proposta fora de sentido. Os males do Brasil não são esses. Tem corrupção, sempre teve. É necessário que se combata a corrupção de outra forma, não de uma forma que comprometa todo o tecido político, como se fez. Queriam salvar o País por mecanismos judiciários, pelo Código Penal. Não é por aí.

Em 2022, um candidato com a bandeira do combate à corrupção seria então enfraquecido?
Olha, a bandeira da luta contra a corrupção não fará parte da próxima sucessão eleitoral de forma protagônica. Vai ser um tema adjetivo, lateral.

Mulheres criam filhos, acumulam plantões e limpam a casa na folga, por Drauzio Varella

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O que a sociedade oferece em troca dessa generosidade e dedicação? Salários baixos e condições precárias

Drauzio Varella – Folha de São Paulo, 14/03/2021

Deu no que deu. É a crônica de uma tragédia anunciada: caminhamos para perder 3.000 brasileiros por dia.

Não temos estrutura hospitalar para dar conta dos que procuram os pronto-socorros e superlotam nossas enfermarias e UTIs, do Amazonas ao Rio Grande do Sul, passando por São Paulo, o estado mais rico.

É a consequência das ações e atitudes da autoridade máxima do país, que desde o início da epidemia fez de tudo para combater as medidas de prevenção, da irresponsabilidade demagógica de muitos governadores e prefeitos incapazes de impor restrições à movimentação nas cidades nos momentos cruciais e do egoísmo fraticida dos nossos conterrâneos que decretaram por conta própria o fim da epidemia, comemorado com desfaçatez perversa nas festas e aglomerações.

Quem teve o privilégio de nunca haver entrado numa UTI com todos os leitos ocupados não faz ideia do inferno vivido pelas equipes de plantão. As emergências e as solicitações são ininterruptas, atender a todas é humanamente impossível quando há 20 ou 30 pacientes em estado crítico e um punhado de
profissionais para cuidar deles.

Enquanto todos se mobilizam para socorrer um paciente em parada cardíaca, outro fica mais grave porque o aparelho de ventilação mecânica deixou de ser ajustado, ao mesmo tempo em que uma senhora inconsciente aspira o próprio vômito e o monitor de um dos leitos dispara o alarme para indicar queda da pressão arterial.

Quem já viveu situações como essas sabe que há horas nas quais nos sentimos tão estressados e impotentes, que dá vontade de sair correndo para nunca mais voltar.

A demanda crescente por plantonistas nas UTIs leva à contratação de profissionais que nem sempre receberam treinamento adequado. Para piorar, os salários baixos obrigam muitos a trabalhar em mais de um hospital.

A insegurança financeira, o medo de contrair o vírus e infectar os familiares, o cansaço físico, a sucessão de noites mal dormidas, a frustração por não conseguir realizar o melhor atendimento e o convívio com a morte onipresente causam impactos psicológicos que nem todos conseguem suportar.

Outro dia, ouvi o desabafo de um colega que, ao sair de um plantão no qual precisou dobrar o turno, para cobrir o horário de um companheiro que havia que havia morrido de Covid, passou por um bar na Vila Madalena lotado de gente sem máscara. “Senti vontade de descer do carro e esbofetear um por um aquele bando de imbecis.”

Nesta semana seguinte à do Dia da Mulher, quero fazer uma homenagem àquelas que estão na linha de frente do atendimento de pacientes com Covid. São enfermeiras, auxiliares de enfermagem, fisioterapeutas, fonoaudiólogas, farmacêuticas, faxineiras, psicólogas, nutricionistas, médicas, atendentes e outras mulheres que constituem no mínimo 60% a 70% da força de trabalho dedicada aos cuidados com os doentes e seus familiares. Não fossem elas, o que seria de nós?

Essas figuras anônimas criam filhos sozinhas, gastam duas horas para ir e mais duas para voltar do trabalho, acumulam plantões em outras unidades de saúde para cobrir as despesas da família, cuidam das lições dos filhos, da saúde dos pais e ainda cozinham, fazem compras e limpam a casa nas horas em que deveriam descansar.

Quando vejo prestarem homenagens aos “médicos da linha de frente”, acho merecido, é claro, mas sinto falta do reconhecimento a essa legião de mulheres que administram os medicamentos prescritos, dão banho nos acamados, levam ao banheiro os que ainda conseguem andar, trocam as roupas de cama e as fraldas dos incontinentes, dão comida na boca, consolam os que se desesperam, seguram as mãos dos aflitos e ainda amparam os parentes inconformados, alguns dos quais transmitiram o vírus ao ente querido.

O que a sociedade oferece em troca dessa generosidade e dedicação aos mais frágeis? Salários baixos, condições precárias de trabalho e de assistência social. Quando perdem a vida por causa do vírus contraído no emprego, os filhos e os que dependem financeiramente delas ficam desprotegidos.

O que leva tantas mulheres a exercer uma profissão que lhes impõe tamanhos sacrifícios, renúncias, tristezas e frustrações para cuidar de pessoas que podem lhes transmitir um vírus capaz de pôr em
risco a vida delas e das pessoas que mais amam é um dos mistérios da alma feminina.